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18º Encontro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas

Transversalidades nas Artes Visuais – 21 a 26/09/2009 - Salvador, Bahia

DA FRAGMENTAÇÃO À VIRTUALIZAÇÃO:
CORPO, FOTOGRAFIA E VIDEOINSTALAÇÃO

Regilene A. Sarzi-Ribeiro
Docente/FAAC/Unesp/Bauru/SP
Doutoranda/PUC/SP

Resumo: A especificidade da imagem videografica, como um espaço múltiplo de


imagens fragmentadas resultante de inúmeros recursos de manipulação da imagem,
cortes, closes e enquadramentos herdados da fotografia, instala nas videoinstalações
o corpo fragmentado, que na relação com as novas tecnologias passará de corpo
fragmento para corpo virtual. Tendo como base as teorias do Fragmento e do Virtual,
respectivamente de Omar Calabrese (1988) e Pierre Lévy (1996), este artigo visa tecer
relações entre os meios de expressão, fotográfico e videográfico, buscando a
transversalidade dos conceitos na representação do corpo contemporâneo. Corpo
que, nos resultados da pesquisa, apresenta-se como um fenômeno em transição,
mutação, no qual a fragmentação o leva à virtualização - corpo múltiplo em constante
devir.
Palavras-chave: corpo; fragmentação; virtualização; fotografia; videoinstalação.

Abstract: The specificity of the image videography, as an area of multiple images


resulting from fragmented many resources to manipulate the image, cuts, and closes
frameworks inherited from the photo, install videoinstalations in the fragmented body,
which in relation to new technologies will fragment to the body virtual body. Based on
the theories of the Fragment and the Virtual, respectively, Omar Calabrese (1988) and
Pierre Levy (1996), this article aims to make relations between the means of
expression, photography and video, seeking a broad representation of the concepts of
the body in contemporary . Body that presented in the search results as a phenomenon
in transition, changing, in which the fragmentation leads to virtualization - bodies
multiple in constant becoming.
Keywords: body; fragmentation; virtualization; photograph; videoinstalation.

Da Fragmentação – Corpo e Fotografia.

Por volta de 1830 a invenção da Fotografia revela planos de


composições e a percepção mais detalhada de imagens, que o olhar humano
mais lento e menos preciso não conseguia captar. Surgem discussões entre a
pintura e a fotografia, “a hipótese de que a fotografia reproduz a realidade
como ela é e a pintura a reproduz como a se vê é insustentável: a objetiva
fotográfica reproduz, pelo menos na primeira fase de seu desenvolvimento
técnico, o funcionamento do olho humano” (ARGAN, 1992, p.79).
O amplo registro dos movimentos, disposição, iluminação dos objetos,
enquadramentos e os novos enfoques trazidos pela fotografia, possibilitaram
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ao pintor mais dinamismo, riqueza de detalhes e a desconstrução dos


contornos dos objetos, face à deformação que a foto causa ao captar a
velocidade do movimento de um objeto.
Entre as pesquisas da ciência destaca-se a propensão de fragmentar o
tempo e o espaço em unidades cada vez menores para os estudos da matéria,
que certamente contribuíram para ampliar o conhecimento do mundo natural e
a soberania dos sentidos humanos. Igualmente as imagens e as descobertas
dos fotógrafos cientistas como Ducheme, Marey e Muybridge causaram grande
impacto entre os artistas de Vanguarda (EWING, 1996). Como os cubistas e os
futuristas que além da fotografia, dialogaram com o cinema empregando seus
mecanismos de cortes e diferentes planos da imagem.
A fotografia instantânea, descoberta na década de 1870 é outro motivo
para a freqüente exploração da imagem do corpo por meio de fragmentos, pois
permitiu efeitos fortuitos, que provocavam ângulos estranhos e inusitados,
imagens desfocadas, distorções dos objetos em primeiro plano, e aquilo que se
considera que tenha surtido maior efeito: aparições inesperadas de cortes,
partes e pedaços, de figuras fotografadas, que de repente numa falha de
enquadramento deram origens aos fragmentos.
O Futurismo (1910), por sua vez, defenderá o movimento como a
representação da velocidade traduzida como uma força física que deforma os
corpos até o limite de sua elasticidade, revelando no efeito o dinamismo
invisível da causa. O desmembramento do corpo humano multiplica seus
componentes, altera o tipo morfológico de seus órgãos internos e muda o
sistema do seu funcionamento biológico para uma mecânica mais condizente
com a sociedade moderna.
Entre os anos de 1945 e a década de 1950, a representação do corpo-
imagem na História da Arte continua marcada pela decomposição dos cubistas
e permanece como a grande descoberta da Arte Moderna. No entanto, passa a
ser explorada pelo novo conceito de imagem que rompe com o real e reflete as
contradições conceituais contemporâneas.
Neste contexto, as fotografias produzidas no campo da medicina
contribuem para a visão cada vez mais fragmentada do corpo somado às
técnicas de litografia e de impressão colorida que permitiram aos anatomistas

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revelar os segredos do corpo com maior precisão. Ademais, a fotografia e a


técnica dos raios-x são considerados excelentes instrumentos de fragmentação
da imagem, na qual pedaços do corpo e da carne humana podem ser
objetivados, quantificados, codificados, racionalizados e dissociados de
qualquer conjunto, como o do corpo inteiro, ao qual pertençam (CZEGLEDY,
2003).
Os novos enfoques trazidos pela fotografia possibilitaram mais
dinamismo e riqueza de detalhes. “No fundo, hoje se pode registrar a epiderme
das coisas, a trama dos tecidos já sem a mediação gráfica ou cromática, mas
precisamente através da transcrição de alta fidelidade fornecida pelo olho
fotográfico” (BARILLI, 1994, p.115). O corpo atual é um corpo explorado por
imagens das mídias, das câmeras digitais e scaners, um corpo-imagem que se
prolifera na enorme multiplicação de imagens fotográficas e nos
desdobramentos das novas tecnologias apropriadas pelas artes visuais.
O fato é que antes da fotografia o único registro possível do corpo era
realizado por meio da pintura, do desenho e da escultura. A forma de
documentação e representação do corpo, por excelência, eram as narrativas
tradicionais da arte. Não havia outros meios, somados ao fato de que esses
não favoreciam a reprodução e a cópia já que eram objetos únicos concebidos
artisticamente, variando conforme o estilo e a visão de cada artista.
A fotografia carrega consigo além da possibilidade de contemplação
estética do corpo em todos os seus ângulos, a possibilidade de
reprodutibilidade das imagens. Deve-se considerar também a variedade de
aparências, faces, tipos e a multiplicidade de superfícies que o olhar fotográfico
pode produzir (SANTAELLA, 2004).
Ademais a relação entre a fotografia e o corpo ocorre na medida em que
a fotografia, assim como a maioria das expressões artísticas, terá uma forte
relação com a produção de imagens do corpo, desde a sua invenção no século
XIX (GATTO, 2005). A tecnologia permitiu ao homem conhecer, ao mesmo
tempo, o funcionamento do seu corpo e o despertar da magia estética contida
nas imagens fotográficas. E, ainda, permitiu aos nossos olhos detalhes nunca
antes percebidos, assim como a reinvenção do corpo sob uma nova condição e
realidade.

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Porém tal dualidade, entre conhecer a mecânica do corpo humano e ao


mesmo tempo poder recriá-lo, melhorado e idealizado por meio das imagens,
será vinculada à ambivalência de pensamentos no início do século XX, gerada
pelas duas grandes guerras mundiais. O detalhamento das imagens do corpo
ocorrerá primeiro no olhar humano, tornando a percepção visual humana
fragmentária, detalhista, para depois reconstruí-lo como um todo, na visão do
conjunto.
Neste sentido, a arte é feita basicamente por meio do olhar humano e
seu funcionamento múltiplo e fragmentário. Por isso a História da Arte é repleta
de cenas e imagens de fragmentos de corpos humanos, sagrados ou profanos,
já que apenas a câmera fotográfica e a cinematográfica conseguirão se
aproximar da dinâmica do olho humano (OLIVARES, 1998).
As representações do corpo, que ganharam notoriedade no século XX
com o advento da imagem fotográfica, repercutem até os dias de hoje,
sobretudo as que surgiram a partir de imagens da Primeira Guerra Mundial
(1914-1918). Imagens que mostram os mais de dez milhões de corpos
destruídos, mutilados e traumatizados. Tal exercício de registro do corpo é que
originou a prática de fragmentação do mesmo e a visualidade contemporânea
do corpo, levando-nos a experiência do mesmo por meio da virtualização,
como veremos nas videoinstalações.
Para o teórico italiano Omar Calabrese o fenômeno da fragmentação
está diretamente relacionado à perda da totalidade ou “[...] perda da
integridade, da globalidade, da sistematicidade ordenada em troca de uma
instabilidade, da polidimensionalidade, da mutabilidade [...]” (CALABRESE,
1988, p.10), que se manifesta entre os mais variados campos de conhecimento
e da vida do homem atual. Trata-se de uma característica do espírito do nosso
tempo, denominada Neobarroco. “O ‘neobarroco’ é simplesmente um ‘ar do
tempo’ que alastra os fenômenos culturais de hoje, em todos os campos do
saber [...]” (CALABRESE, 1988, p.10).
Conforme o conceito de fragmento aplicado a este artigo primeiro deve-
se considerar a idéia do todo, sistema e conjunto, que pressupõe a parte,
porção, fragmento e o pormenor. Portanto, faz-se necessário levar em conta
uma primeira consideração: o fragmento e o pormenor são sinônimos de parte

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e termos interdefinidos, que mantém relações de reciprocidade, implicação e


pressuposição. Porém, são conceitos em oposição, já que se configuram duas
ações efetivas concebidas de maneira completamente diferentes.
A palavra pormenor, ou detalhe, tem origem no francês renascentista e
significa talhar-se. Esse talhar-se nos remete a uma ação do sujeito sobre ele
mesmo. O pormenor só pode ser observado a partir do inteiro e da operação
do talho. Um exemplo comum dessa ação é o zoom do vídeo. O detalhe será
definido pela reconstrução e substância da operação, por meio da aproximação
e relação com o inteiro que o tornará perceptível.
Já o fragmento elabora sua ação de tornar-se parte de uma maneira
completamente diferente. O fragmento quebra, corta-se, separando-se
totalmente do conjunto. Ao cindir sua relação com o todo, torna-se autônomo. A
etimologia do fragmento deriva do latim frangere que significa quebrar. Essa é
sua diferença basal para com o pormenor. O fragmento não contempla um
inteiro anterior a ele para ser definido. Ele será observado tal como ele é e não
como uma ação de um sujeito anterior. Há uma ruptura com o sistema que o
gerou, ao passo que o pormenor dialoga constantemente com o conjunto que o
gerou.

Fig. 01 – Robert Davies Fig. 02 – Alfred Stieglitz


Olho I - (1992) – fotografia. Sem Título (As Mãos de Helen Freeman) - (1918)
Fonte: (EWING, 1996, p.48) fotografia. Fonte: (EWING, 1996, p.35)

Portanto, as características mais marcantes do fragmento são: 1) quanto


ao ato de quebrar; nele o inteiro está in absentia; 2) os confins do fragmento
não são definidos e sim interrompidos; 3) é o recorte de uma coisa; a geometria
de um fragmento é a de uma ruptura; 4) a análise da linha irregular da fronteira
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permite uma obra de re-construção/ re-constituição do todo pela via de


hipóteses do sistema de pertença; 5) o fragmento não é explicado, ele explica
de um jeito novo o mesmo sistema; 6) o fragmento torna-se ele próprio o
sistema de renúncia à pressuposição da sua pertença a um sistema.
(CALABRESE, 1988).
Pode acontecer de um fragmento se tornar ele mesmo o próprio sistema:
“Isto é, quando se apresenta uma obra fragmentária de aspecto
verdadeiramente inteiro. Neste caso, falta sua referência, e o ‘fragmento’ nada
pressupõe fora dele, remete para a sua pura fenomenologia” (CALABRESE,
1988, p.89).

À Virtualização – Corpo e Videoinstalação.

Na imagem produzida pelo vídeo o fragmento é parte integrante da


linguagem poética. O fragmento é um elemento estrutural da imagem
videografica, cuja especificidade do meio, composto de inúmeras operações
técnicas tais como enquadramentos, cortes, planos fechados, planos de
detalhe, zoom, e demais procedimentos de criação da imagem só farão
acentuar.
Igualmente, a fragmentação da imagem pode compor uma
videoinstalação, na medida em que estas obras se caracterizam como um dos
tipos da arte da Instalação que exploram e manipulam o espaço, tal como um
local, um sítio específico, e o tempo, compondo com imagens e sons
ambientes esculturais.
As instalações que se apropriam dos meios de comunicação de massa,
monitores e ou superfícies de projeções de imagens, concebidos e
apresentados tais como eventos totais, embora explorem a multiplicidade e a
fragmentação das imagens e o próprio corpo ali apresentado em partes, serão
ampliadas por tecnologias e técnicas midiáticas contemporâneas.
Esses recursos audiovisuais somados às operações técnicas da própria
construção da imagem permitem o aumento da manipulação do tempo, já que
diferentes experimentações utilizam diversos monitores ou sistemas de

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projeções com vários teipes, acrescendo em grande número a quantidade de


imagens, múltiplas, que na parte formarão o todo (RUSH, 2006).
A multiplicidade presente na composição do espaço ambiental das
videoinstalações pelo uso de vários monitores e a relação direta do espectador
com este ambiente, que pode adentrá-lo com o seu corpo, nele caminhar e sair
deste espaço promove a interação do espectador. Outro elemento primordial e
constitutivo das videoinstalações, somado à fragmentação, será a multiplicação
da percepção do corpo, promovida por tal interação. Esta interação
estabelecerá diferentes graus de virtualização do corpo (LÉVY, 1996), tanto do
corpo representado na obra quanto do corpo do espectador da obra.
Considerando-se que a construção e a estrutura da imagem videografica
são herdeiras dos procedimentos técnicos da fotografia que tornam as imagens
usadas pelas videoinstalações fragmentárias, justifica-se o fato de que o vídeo
possui lugar de destaque dentro das novas tecnologias capazes de gerar o
fenômeno de fragmentação e virtualização.
Com o propósito de definir o fenômeno da virtualização do corpo por
meio de uma relação de proximidade com a estética da fragmentação e a
imagem videografica, alguns aspectos técnicos como corte e enquadramento
das cenas, relacionadas à representação do corpo fragmentado e ao campo da
imagem nas videoinstalações merecem atenção. Já que destas operações
resultarão a multiplicidade e as diferentes percepções do corpo, que segundo
Pierre Lévy (1996) leva à virtualização do mesmo.
O avanço tecnológico e o uso dos novos meios de produção de imagens
são apontados pelos pesquisadores como um dos motivos do contato cada vez
mais intenso do homem com o seu corpo. Esse mesmo avanço tecnológico e
contato da arte com os novos meios alteram a representação mediada do
corpo dando origem às artes do corpo virtual.
A palavra virtual é originária do latim medieval virtualis, derivado de
virtus, que significa força, potência. Ou seja, o virtual é um dos aspectos do
real, aquilo que existe em potência e não em ato. Dessa forma, o virtual tende
a atualizar-se constantemente e não se opõe ao real, mas ao atual. O virtual é
alimentado pelas inúmeras possibilidades de se tornar atual, um constante
devir. Contrário ao processo de atualização, o processo de virtualização torna-

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se uma dinâmica cuja característica determinante será a transformação de uma


realidade num conjunto de possíveis, uma verdadeira mutação de identidade.
Nesse sentido, “[...] a virtualização é um dos principais vetores da
criação de realidade” (LÉVY, 1996, p.18). E por conter esta propriedade, tal
qual um fenômeno de geração incessante de novas realidades, uma dos
principais aspectos é o desprendimento do aqui e agora, ou seja, o virtual é
algo que não está presente, está em suspenso, in absentia. Tal como o
fragmento em que o todo está contido nele, está in absentia.
Essas maneiras de construir o corpo, e com ele se relacionar do homem
pós-moderno, desencadearam um processo de virtualização dos corpos. O
fenômeno da virtualização do corpo é apontado como uma “[...] nova etapa na
aventura de auto-criação que sustenta nossa espécie” (LÉVY, 1996, p.27). A
virtualização do corpo ocorre na medida em que a nossa vida física e psíquica
passa cada vez mais por uma exterioridade física e mental, complexificada e
multiplicada pelas trocas e inter-relações entre os circuitos econômicos,
institucionais e técnicos.
Uma das funções físicas do corpo humano que é mais afetada por esse
processo de virtualização do corpo é a percepção, cada vez mais externalizada
e projetada para fora do corpo físico do homem. Essa externalização da
percepção, promovida pelas novas tecnologias, nos lança para fora do nosso
corpo o tempo todo. Contudo, é reinventada permanentemente por meio das
experiências individuais e coletivas que vivenciamos inclusive com as
experiências estéticas. “[...] a virtualização do corpo, não é, portanto, uma
desencarnação, mas uma reinvenção, uma reencarnação, uma multiplicação,
uma vetorização, uma heterogenese do humano” (LÉVY, 1996, p.33).
Um corpo virtual é um corpo ausente que será atualizado a cada novo
contato do público com a obra de arte. Um corpo que não está presente por
meio da representação mediada como a concebemos por imagens do todo,
mas de partes. Entretanto, o corpo se faz presente, está lá, é tema da obra,
mas esta in absentia. Um corpo em potência, capaz de ser resgatado de
inúmeras formas, a cada novo contato com um novo observador reagente. Um
corpo devir. Um corpo múltiplo, fragmentário, diverso e virtual.

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O caráter de multiplicidade e fragmentação de que são compostas as


videoinstalações farão com que o espectador tenha, mesmo compartilhando
um evento total, a experiência múltipla que o projeta para fora de si mesmo,
reforçando seu contato com um corpo fragmentado. Tanto por meio das
imagens que se projetam na obra, compostas como mosaico quanto com o seu
próprio corpo dentro da obra, atualizando em tempo presente aquele corpo
virtual, ali em constante devir.
Ao observar obras contemporâneas que tem o corpo como tema e que
usam as novas tecnologias para sua poética, pode-se tecer algumas relações
entre a representação do corpo humano fragmentado e o corpo virtual de Lévy.
Tal exercício visa refletir a fragmentação da imagem do corpo como parte
integrante deste processo de virtualização, já que um dos resultados apontados
por Lévy é a multiplicação da percepção desse corpo, via as novas tecnologias
como o vídeo. Essa multiplicação será gerada, entre outros motivos, pela
constante exposição às imagens do corpo fragmentado.
No Brasil, as primeiras experiências estéticas com o vídeo ocorrerão em
meados de 1960 com a chegada da primeira câmera Portapak ao país. O
pioneirismo conceitual dos anos de 1960 e 1970 e as obras de artistas como
Letícia Parente, Gil Wolman, Hélio Oiticica, Wesley Duke Lee, Antonio Dias e
Sônia Andrade, entre outros, marcam a videoarte brasileira, influenciando
artistas contemporâneos e suas videoinstalações. No cenário internacional se
destacam o Grupo Fluxus e os artistas Bruce Nauman e Vito Acconci, que
registram suas performances e expõem-nas em videoinstalações (MACHADO,
2007).
Na obra Made in Brasil (1974-1975) de Letícia Parente [fig.03], os
aspectos técnicos de corte e ação, de zoons e planos de detalhe, apresentam a
imagem do corpo fragmentando-o, por meio de detalhes, na medida em que a
ação captada pelo vídeo não apresenta nenhum elemento fora dela mesmo.

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Fig. 03 - Letícia Parente Fig. 04 – Vito Acconci


Frame do vídeo - Made in Brasil (1974-1975) Frame do vídeo - Theme Song (1973)
Fonte: (MACHADO, 2007, p. 09). Fonte: (RUSH, 2006, p.90).

A ação é fechada, a cena restrita ao enquadramento do monitor e da


câmera. A imagem se esgota em si mesma e se completa no gesto daquele
que realiza a ação. Dessa forma um rosto preenche a tela, a mão e parte de
um pé são suficientes para dizer o que se pretende. O entorno e aquilo que
poderia se encontrar ao redor da cena não interessa. Isso explica e justifica,
como se observa no vídeo Theme Song (1973) de Vito Acconci [fig.04], que o
tipo de operação, o corte, o plano de detalhe, close, são opções formais dos
vídeos destes artistas.
Durante os anos de 1980 e 1990 desenvolve-se no Brasil um grupo de
artistas que exploram exaustivamente os pressupostos poéticos do vídeo.
Entre eles se encontram Arthur Omar, Eder Santos, Cao Guimarães, Regina
Silveira e Sandra Kogut. Para estes artistas o corpo será mais do que um tema,
será o sujeito do discurso, crítico e político. Aquele que quebra com as
convenções do meio videográfico a favor de um questionamento da própria
exposição que o vídeo impõe, e que a cultura também irá impor como algo
natural e aceitável. (MELLO, 2007).
Na instalação Crux (1983-1987), Gary Hill [gif.05] se apropria do corte
como elemento da imagem integrada à instalação. O corpo é fragmentado,
cabeça, mãos, e pés são separados por um dispositivo criado especificamente
para a instalação. Um conjunto de cinco câmeras partiu o corpo do artista em
cinco partes: uma câmera foca a cabeça, duas se fixam nas mãos e outras
duas recortam os pés. Assim detalhadamente o corpo de Gary Hill transita de

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pés descalços e sobre uma espécie de cruz eletrônica, através dos monitores
colocados em cruz (SENRA, 2005).
No Final da década de 1980 as projeções de imagens nas
videoinstalações passam a ter tamanhos variados, assumindo todos os
tamanhos de telas. Se Tony Oursler projeta minúsculas imagens sobre
pequenos objetos ovais suspensos, Bill Viola e Steve McQueen irão criar obras
cujas projeções são monumentais, tomando paredes inteiras.

Fig. 06 - Tony Oursler


Fig.05 – Gary Hill
Mansheshe (1997) – Videoinstalação.
Crux (1983-1987) – instalação. Fonte:
Fonte: (RUSH, 2006, p.147).
(http://www.mediaartnet.org/assets/img/data/2126/bild.jpg).

Em Mansheshe (1970), Tony Oursler [fig.06] introduz o espectador num


espaço em que cabeças falantes híbridas são projetadas sobre objetos ovais
suspensos em mastros. As cabeças conversam diretamente com o espectador
por meio do olhar fixo que dirigem para a câmera, e lançam palavras e
aforismos sobre relacionamentos inter-pessoais, crenças religiosas,
identidades sexuais, fatos pessoais. Sob o ponto de vista formal, fica claro que
o artista quer retirar a imagem do monitor para projetá-la no real, criando
paralelos entre as cabeças virtuais e as reais, instaladas no inconsciente do
espectador por vozes, presenças irônicas e satíricas.
As videoinstalações, cuja sintaxe se aproxima das artes plásticas, como
pinturas ou fotomontagens eletrônicas, compostas de superposições de
imagens ao estilo colagem, são diferentes do campo narrativo e das imagens
panorâmicas do cinema (LEOTE, 2000). Dessa forma, propõe-se a analise das
imagens do corpo fragmentado nas novas tecnologias como signos visuais que
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se constituem em algo cuja geração de sentidos é mais ampla que a exposição


explicita do corpo humano em pedaços.
Neste sentido, as obras que pertencem à série de vídeos-instalações
TRANS-E: o corpo e as tecnologias, da artista Diana Domingues e Grupo
Artecno, apresentam o corpo em fragmentos por meio da presença virtual e
simbólica do corpo que se atualizará no contato real e também fragmentário do
espectador com a obra, como em A Ceia (1994) e em Afeto (1994).
Em A Ceia [fig.07] o corpo é fragmentado e exposto por imagens de
videolaparoscopias, colocados dentro de tonéis de ferro. Ao adentrar o espaço
da instalação o visitante aciona um sensor de infravermelho que faz um líquido
pingar por cima dos tonéis e escorrer, numa metáfora ao ato de dar e receber
energia do espectador que ativou o fluxo do liquido. No espaço da instalação
doze peles de animas, seis de cada lado dos tonéis sãos dispostos
simetricamente e contrastam com as vísceras humanas, revividas naquele
cenário pelas imagens. O corpo do espectador caminha por estes vestígios de
corpos virtuais e com seu movimento pelo ambiente envia sinais de vida que
fazem os aparelhos que controlam o liquido que pinga sobre os tonéis, além de
deixarem cair encenarão funções vitais do corpo humano (SANTAELLA, 2003).
Diana Domingues ao mesmo tempo em que explora o corpo
fragmentado em sua fragilidade, multiplicado, ao avesso, por dentro como nas
imagens de tomografias e videolaparoscopias, promove um contato extra-
sensorial com o mesmo por meio de uma externalização comparada à
virtualização do corpo, de que nos fala Lévy (1996). A artista expõe sua visão
da carne, dos tecidos humanos e reentrâncias do corpo ao mesmo tempo em
que nos leva ao contato da vida que flui e pulsa através da tecnologia e dos
novos meios técnicos.
Como na vídeoinstalação Afeto [fig.08] que leva o espectador a
experimentar o corpo fragmentado por meio da percepção de um corpo múltiplo
composto por um imenso corredor com inúmeras projeções de tomografias
cranianas.

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Fig. 07 – Diana Domingues Fig. 08 – Diana Domingues


Afeto (1994) – Videoinstalação. A Ceia (1994) – Videoinstalação.
Fonte: (http://artecno.ucs.br/indexport.html) Fonte: (http://artecno.ucs.br/indexport.html)

Os procedimentos de interação que o espectador realiza ao adentrar a


obra fazem com que a sua percepção e representação corporais permaneçam
fragmentadas. Contudo, a virtualização gerada pela experiência fragmentária,
tanto visual, por meio das imagens, quanto física, de interação permite que o
corpo se atualize a cada nova experiência estésica.
Neste sentido, defende-se que a imagem do corpo fragmentado se
configura numa representação composta de um alto índice poético que faz com
que o fragmento se atualize por meio da sua competência de inteiro. A
representação do corpo fragmentado nas videoinstalações pode ser
considerada como parte significante de um processo de virtualização do corpo
humano e a relação com uma nova maneira de se olhar, uma nova
configuração da percepção humana.
Um olhar fragmentado, outrora despertado pelos primeiros contatos com
a ciência e a razão no Iluminismo e explorado pela fotografia que perpetuou as
representações do corpo fragmentado. Agora, um olhar virtual que se
manifesta no contemporâneo por meio das videoinstalações de forma singular,
como decorrência da fragmentação do corpo e da percepção humana.
O sucessivo desmembramento dos corpos e a obsessiva destruição dos
cânones de representação de um corpo intacto, belo e perfeito, apontam para

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uma nova configuração do corpo: um corpo virtualizado, multiplicado pela


fragmentação, representado, sobretudo, pela arte, ao mesmo tempo real e
virtual.
O corpo fragmentado e agora um corpo virtual. As reflexões aqui
propostas buscaram estabelecer relações entre o processo de fragmentação
da imagem do corpo e a virtualização do mesmo, partindo da fotografia para
chegar às videoinstalações, e o fenômeno da virtualização do corpo apontada
por Lévy como uma “[...] nova etapa na aventura de autocriação que sustenta
nossa espécie” (LÉVY, 1996, p.27).
Ao observar o corpo fragmentado em algumas obras contemporâneas
que o exploram como tema e usam as novas tecnologias para sua poética, foi
possível tecer relações que visam caracterizar o corpo virtual como decorrência
do corpo fragmentado. Aproximando os meios de expressão, fotográfico e
videografico, buscou-se a transversalidade dos conceitos na representação do
corpo contemporâneo.
Contrapondo Calabrese (1988) e Lévy (1996) constatou-se que ambas
as teorias tratam de fenômenos contemporâneos em processo, que guardam
relações entre si. Considerando-se que o fragmento e o virtual são elementos
que fazem parte da estrutura da imagem gerada pelas novas tecnologias tanto
na fotografia, por meio da constante representação do corpo em fragmentos,
quanto no vídeo, por meio da virtualização que sofre a percepção humana.
Os resultados da pesquisa apontam para um corpo que se apresenta em
transição, em mutação, no qual a fragmentação leva à virtualização – corpo
múltiplo em constante devir. Se a imagem fotográfica apresenta o fragmento
como sistema autônomo, no qual o todo está contido na parte, a imagem das
videoinstalações transformará o corpo multiplicado em um corpo virtualizado
pelas novas tecnologias. Tecnologias que permitem a construção de um
espaço múltiplo em que fragmentação e virtualização são estruturas decisivas
para as experiências estéticas com as videoinstalações. Igualmente, da
fragmentação à virtualização o corpo se reconstrói continuamente nas
videoinstalações.

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18º Encontro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas
Transversalidades nas Artes Visuais – 21 a 26/09/2009 - Salvador, Bahia

Referências
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Currículo Resumido do Autor:


Docente e Coordenadora - Grupo de Estudos “O Corpo nas Artes Visuais”.
FAAC/UNESP/Bauru/SP. Doutoranda em Comunicação e Semiótica – PUC
(SP). Mestre em Artes – IA/UNESP/SP. Graduação em Educação Artística –
Hab. em Artes Plásticas – FAAC/UNESP/Bauru/SP. Artista Plástica,
pesquisadora com ênfase para Gravura, Corpo, Imagem, Arte Contemporânea
e Novas Tecnologias.
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