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Territórios dos sentidos: da emergência dos processos de

subjetivação na metrópole contemporânea


MARINA REBECA OLIVEIRA SARAIVA*

Resumo: O objetivo deste artigo é problematizar a noção de território a partir


das reflexões do antropólogo Nestor Perlongher, encontradas principalmente no
livro O negócio do michê (2005). Diferente das análises clássicas do campo da
Sociologia e da Antropologia Urbanas - que definem o território como um
espaço físico ao qual são atribuídas determinadas significações sociais –, a
“cartografia” desenvolvida por Perlongher enfatiza a produção de territórios
que não se subscrevem em uma fixitude espacial, mas que não são menos
"reais" que os espaços físicos problematizados por uma vertente clássica dos
estudos urbanos. Essa discussão traz ainda as contribuições do filósofo Gilles
Deleuze e do psicanalista Félix Guattari, influências importantes para
Perlongher e para compreensão dos processos de subjetivação na metrópole
contemporânea.
Palavras-chave: Território, Metrópole Contemporânea, Subjetividade,
Antropologia da Cidade.
Abstract: The objective of this paper is to discuss the notion of territory from
the anthropologist Nestor Perlongher’ reflections, mainly found in the book O
negócio do michê (2005). Unlike classical analysis of the field of urban
sociology and anthropology - that define the territory as a physical space to
which they are assigned certain social meanings - the "mapping" developed by
Perlongher emphasizes the production of territories that do not align in a fixed
space, but no are less "real" than the physical spaces that are problematized by
a classical vision of urban studies. This discussion also brings the contributions
of the philosopher Gilles Deleuze and of the psychoanalyst Felix Guattari,
important influences to Perlongher and to the understanding the processes of
subjectification in the contemporary metropolis.
Key words: Territory, Contemporary Metropolis, Subjectivity, Anthropology
of the City

*
MARINA REBECA OLIVEIRA SARAIVA é Mestre em Sociologia/UNICAMP, Doutoranda
em Antropologia Social/USP.

21
Ilustração do artista multimidiático canadense Marc Ngui, inspirada no volume I da obra Mil Platôs de Gilles
Deleuze & Félix Guattari. Disponível em http://www.bumblenut.com/drawing/art/plateaus/index.shtml

Introdução seus habitantes. Para além da proposta


[...] a experiência urbana de flexibilização de conceitos como
contemporânea propicia a formação território, fronteira, identidade, lugar,
de uma complexa arquitetura de não-lugar etc., a proposta da Arantes
territórios, lugares e não-lugares, (2000) chama atenção para a
que resulta na formação de impossibilidade de desenhar práticas
configurações espaço-temporais cotidianas a partir de um espaço
mais efêmeras e híbridas do que os fechado, fixo e supostamente
territórios sociais de identidade homogêneo, e ao mesmo tempo propõe
tematizados pela antropologia um olhar sobre a experiência urbana dos
clássica (Arantes, 2000, p. 106). citadinos em suas variadas escalas e
O trecho faz um convite interessante: dimensões.
para entender a cidade contemporânea é O antropólogo Michel Agier (2011)
importante afrouxar fronteiras e também traz contribuições que operam
deslocar identidades, o que não significa nesse sentido. Ao definir uma
desconsiderar as territorialidades (tratá- "antropologia da cidade", ele ressalta a
las como não-lugares), mas sim importância de se deslocar o ponto de
percebê-las em relação. Trata-se, pois, vista das cidades para os citadinos (p.
de pensar o espaço urbano como o 38), assim como da problemática do
cenário onde lugares se entrecruzam na objeto para a do sujeito, ou seja, é
complexidade da experiência urbana de preciso sair do território essencialista da

22
definição (o que é a cidade?) e partir território. Aqui eles não devem ser
para a pergunta o que faz a cidade. encarados enquanto sinônimos. Dessa
Segundo Agier (2011), é dessa maneira maneira, o texto elege autores que
que o "próprio ser da cidade surge, ajudam a problematizar cada um desses
então, não como um dado, mas como conceitos, entretanto, se atém
um processus, humano e vivo, cuja especialmente ao último. Segundo,
complexidade é a própria matéria da salvo a exceção do antropólogo Nestor
observação, das interpretações e das Perlongher, Deleuze e Guattari
práticas de 'fazer a cidade'" (p. 39). A contribuem em um campo mais
cidade, portanto, passa a ser pensada filosófico do que propriamente
como um processo, algo que se empírico. Isto significa que suas
constitui a todo instante, através da contribuições aparecem de um ponto de
inserção e da experiência dos citadinos vista conceitual e não pela apresentação
no cotidiano da metrópole. de um modelo teórico-metodológico
fechado, “aplicável” a um campo de
Mas como podemos entender o
processo que faz a cidade a partir do(s) pesquisa. É impossível visualizar
qualquer uma das ideias desses autores
citadino(s)? A intenção desse artigo é
em um dado de campo. Nesse sentido, a
apresentar contribuições teóricas para
intenção não é fazer com que
essa e outras questões, tendo como
procuremos “linhas de fuga” e
referência um campo de diálogo
“rizomas” 2 em nossos respectivos
heterodoxo e partindo especificamente
campos de pesquisa. Pelo contrário,
de uma problematização sobre a noção
Rolnik (1995) indica que o melhor
de território. Ou seja, busca refletir
desses autores é justamente a
sobre as potencialidades da referida
possibilidade da "abertura do
noção a partir de autores pouco
pensamento". Deleuze e Guattari nunca
explorados no eixo dos estudos urbanos,
se propuseram a criar nenhum tipo de
pelo menos no Brasil1. Refiro-me ao
filósofo Gilles Deleuze, ao psicanalista método fechado e aplicável à pesquisa,
mas sim engendrar um pensamento
Félix Guattari e ao antropólogo Nestor
singular, que diz respeito mais a
Perlongher. A intenção, portanto, é
estabelecer um diálogo com esses criatividade do pesquisador do que à
possibilidade de reprodução automática
autores a partir da noção de território e,
de conceitos e categorias. Nesse
ao mesmo tempo, apresentar de maneira
sentido, “só é possível embarcar no
introdutória pistas teóricas e possíveis
contribuições para a emergência dos universo deleuziano se for a partir de
um exercício do pensamento a serviço
estudos dos processos de subjetivação
na cidade contemporânea. de questões que pedem passagem na
existência de cada um” (ROLNIK,
De antemão, é importante ressaltar 1995, p. 6).
alguns pontos. Primeiramente, chamar
atenção para as diferenciações em torno No campo disciplinar das Ciências
de categorias como espaço, lugar e Sociais, poucas pesquisas ousaram
dialogar com a "filosofia da diferença”
apresentada por esses autores3. O
1
No Brasil, apesar de poucos, é possível citar
alguns autores que realizam esse debate nos
2
estudos urbanos. Inicialmente é possível indicar Conceitos fundamentais nos textos de Deleuze
os trabalhos de Caiafa (2007), Diógenes (2008), e Guattari e que serão brevemente apresentados
Almeida e Tracy (2003), além do próprio ao longo do texto.
3
Perlongher (2005). Cf. Machado (2009).

23
antropólogo Nestor Perlongher pode ser 1999, p. 391). Essa reflexão se
considerado uma dessas poucas aproxima da proposta esboçada por
referências de diálogo4, mas seus Perlongher (2005, 2008), no sentido que
estudos parecem ter ecoado com mais abre caminho para a dimensão da
força nos estudos de gênero e subjetividade nas leituras dos espaços
aparentemente teve menos impacto nos da cidade. Entretanto, Perlongher se
estudos urbanos. É por isso que esse utiliza da palavra território, ou melhor,
artigo busca apresentar, ainda que de territorialidades, que é caracterizada por
maneira breve, as possíveis um posicionamento importante diante
contribuições desse autor para uma da relação dos indivíduos com o espaço.
possibilidade de antropologia urbana/da
Em uma perspectiva clássica, território
cidade/na cidade, que se volta aos
pode ser definido como um espaço
processos de subjetivação na metrópole.
devidamente delimitado e passível de
A forma território/subjetividade determinadas significações sociais,
atribuições identitárias e relações de
Michel de Certeau (2008) se refere à
idéia de lugar para indicar a ordem poder, ou seja, nos depararmos com a
forma território-Estado e a sua
topográfica estável que é delimitada
pela distribuição de elementos caracterização geográfica, política e
específicos. Por exemplo, o urbanista cultural. Nessa linha de pensamento,
que projeta uma rua e nela distribui que se fundamenta a partir de alguns
postes, bueiros, calçadas, autores da Geografia5, território seria
algo fortemente ligado a um espaço
paralelepípedos e ao mesmo tempo
físico: as pessoas estão no e pertencem
identifica seus usos. Já o espaço é o
ao território e, ao mesmo tempo, elas os
cruzamento de móveis; é, como indica o
produzem. A maneira como Perlongher
próprio Certeau, o lugar praticado. "A
(2008), inspirado em Deleuze &
rua geograficamente definida por um
Guattari, irá se referir à ideia de
urbanismo é transformada em espaço
território, se difere exatamente nesse
pelos pedestres" (p. 202). Para Certeau,
ponto, pois, para ele, a afirmativa se
o lugar se caracterizaria por sua
inverte. Não é o indivíduo que está no
estabilidade enquanto o espaço pelas
território, mas o território é que está no
operações móveis através das ações dos
indivíduo.
"sujeitos".
Ao descrever as territorialidades
Uma leitura fenomenológica,
itinerantes dos michês na cidade de São
apresentada por Certeau (2008) através
Paulo, Perlongher (2008) contraria as
do filósofo Merleau-Ponty, acrescenta à
premissas espaciais de identidade
oposição lugar/espaço o caráter
(unificadas, fechadas, homogêneas) e
existencial que configura as
reflete sobre a noção de território
espacialidades. A experiência espacial
marginal. O antropólogo procura
está relacionada ao "estar no mundo",
descrever os movimentos de construção
ela nos situa em um meio, orienta
nossas percepções, ou seja, "existe de territórios subjetivos a partir da
tantos espaços quantas experiências relação dos michês com determinados
espaciais distintas" (Merleau-Ponty, códigos sociais que se apresentam nos
espaços da cidade. Trata-se de uma
etnografia dos processos de
4
Cf. também Almeida e Tracy (2003),
Bittencourt (2011), Caiafa (2007), Diógenes
5
(2008). Cf. Souza, 1995.

24
desterritorialização e Deleuze & Guattari, a intenção é apenas
reterritorialização que permitem aos pontuar, ainda que de maneira breve, o
michês se engajarem em discursos e impacto que ela tem nas reflexões sobre
práticas formatados por um código a noção de território para o antropólogo
peculiar que distribui atribuições Nestor Perlongher (2005, 2008).
categoriais a corpos e desejos em
É importante mais uma vez ressaltar
movimento (PERLONGHER, 2008, p.
que, ao problematizar categorias como
245).
desterritorialização, reterritorialização,
Diferente das análises clássicas do agenciamento e devir, Deleuze &
campo da Sociologia e da Antropologia Guattari (1997) não se referem a um
Urbanas - que definem o território como exemplo etnográfico específico. Suas
um espaço físico ao qual são atribuídas reflexões são direcionadas para a
determinadas significações sociais – a construção de um arcabouço conceitual
"cartografia" é o método desenvolvido que diz respeito à produção da
por Perlongher para enfatizar a existência nos mais diversos contextos.
produção de territórios que não se Isso significa que é possível falar de
subscrevem em uma fixitude espacial. devir e agenciamento tanto na “cidade”
Trata-se de um método de pesquisa que quanto no “campo”, tanto nas
busca apreender o processo de produção “sociedades civilizadas” quanto nas
das formações subjetivas que também “sociedades primitivas”.
podem ser definidas como paisagens
psicossociais. Para Deleuze (2005), as A produção da subjetividade é uma
subjetividades se apresentam sob a preocupação central na obra dos
forma de diagramas compostos por pensadores franceses. Contrários aos
linhas: molar, molecular e de fuga, essas padrões impostos pelas etiquetas
linhas engendram os mapas subjetivos identitárias, pelas ideias de sujeito e
analisados pelo cartógrafo 6. representação, assim como de estrutura
ou sistema, ambos preferem se referir
Dessa maneira, para compreendermos ao conceito de agenciamento como a
as análises desenvolvidas pelo força motora da ação dos “sujeitos”.
antropólogo, torna-se imprescindível Trata-se de uma noção mais ampla que
um mergulho na obra dos pensadores abre espaço para os movimentos de
franceses Gilles Deleuze e Felix criatividade ou inventividade que são
Guattari. Agenciamento, produzidos pelos indivíduos a partir do
territorialização, desterritorialização, confronto com os códigos sociais
linhas de fuga, processos de vigentes (molares), definidos pelos
subjetivação, devir, espaço liso, espaço filósofos como pontas de
estriado, são alguns dos conceitos desterritorialização e movimentos de
desenvolvidos por estes filósofos 7, que reterritorialização.
ajudaram Perlongher na confecção de
sua análise sobre territorialidades Para Deleuze & Guattari (1997), o
marginais. Não cabe, aqui, a tarefa território é o espaço subjetivo vivido, é
impossível que é destrinchar a obra de o lugar onde um sujeito se sente “em
casa”, ele é sinônimo de apropriação, de
6
uma subjetividade fechada em si
Cf. Rolnik, 2007. mesma. O território é, portanto, o
7
Essas categorias são desenvolvidas em vários
textos, mas aqui são mencionadas tendo como
conjunto das representações, dos
referência o volume 5 da obra Mil Platôs comportamentos, dos investimentos,
(Deleuze & Guattari, 1997). nos tempos e nos espaços sociais,
25
culturais, estéticos e cognitivos maneira semelhante Perlongher se
(ROLNIK & GUATTARI, 2005, p. refere à territorialidade.
388). Entretanto, Deleuze & Guattari
A opção pela territorialidade, e não
vão indicar que a formação subjetiva
pela identidade, busca colocar em cena
produzida por um território específico
algo já apontado pela Escola de
pode se desterritorializar, se abrindo às
Chicago: a “fragmentação” do sujeito
linhas de fuga, ou seja, realizando um
urbano. Ao recuperar a noção de
movimento pelo qual se abandona o
segmentariedade através dos textos de
território e constrói-se um outro
Evans-Pritchard e Deleuze & Guattari,
território (reterritorialização). Em
Perlongher indica que o sujeito urbano
outras palavras, a reterritorialização
não pode ser considerado como uma
consistirá numa tentativa de
unidade fechada em si mesma, pois é
recomposição de um território engajado
fragmentado por diversas
em um processo desterritorizalizante
segmentaridades (2008, p. 161): circula
(Ibid, p. 388).
pela casa, pelo trabalho, pelas ruas,
É possível encontrar em Deleuze & praças, escolas, ônibus, estações de
Guattari a ideia de código e metrô, etc.
sobrecodificação 8; elas dizem respeito
aos fluxos sociais e materiais que estão Dessa maneira, Perlongher (2008)
em jogo nos processos de subjetivação, procura mostrar que as territorialidades
essas categorias também estão são flutuantes e não se reduzem a uma
diretamente relacionadas às reflexões de fixidez espacial, pois o michê arrasta
Perlongher (2005, 2008). consigo um “código-território” por onde
quer que vá. Código esse que se
É através dessa inspiração que a inscreve no corpo, nos gestos, nas
categoria de código-território é palavras, a "boca do lixo" está no michê
apresentada pelo antropólogo argentino. e não o contrário. A territorialidade
Ao também elencar uma crítica à noção itinerante pode ser lida como uma
de identidade e de representação, manifestação de nomadismo urbano.
Perlongher (2008) indica que a ideia de
territorialidade não se limita ao espaço Félix Guattari (1992) apresenta uma
físico e nem mesmo remete a “lugares importante reflexão sobre o nomadismo
vazios” ou a construção de identidades e seus processos de subjetivação na
espaciais individualizadas, definidas, cidade contemporânea. Para ele,
fixas. Trata-se, ao contrário, de O nomadismo selvagem da
problematizar uma territorialidade que desterritorialização [na cidade]
se manifesta na instantaneidade e no contemporânea demanda [...] uma
acaso dos encontros (PERLONGHER, apreensão “transversalista” da
2008, p. 159). Assim como Deleuze & subjetividade, [...] uma apreensão
Guattari (1997) preferem falar em que se esforçará para articular
pontos de singularidades (por
território e não em identidade, de
exemplo, uma configuração
particular do terreno ou do meio
8 ambiente), dimensões existenciais
Rolnik & Guattari (2005) citam como exemplo
específicas (por exemplo, o espaço
as sociedade agrárias primitivas, que
funcionavam segundo seu próprio sistema de visto pelas crianças ou pelos
codificação territorializado e foram deficientes físicos ou doentes
sobrecodificadas por uma estrutura imperial que mentais), transformações funcionais
lhes impõem sua hegemonia militar, religiosa, virtuais (por exemplo, mudanças de
etc. (p. 381-382). programa e inovações
26
pedagógicas), afirmando ao mesmo Diferente dessa sociabilidade nômade,
tempo um estilo, uma inspiração, “mundana”, há a socialidade
que fará reconhecer [...] a assinatura sedentária, que seria, por exemplo, a
de uma criação (GUATTARI, família. Há, portanto, uma contigüidade
1992: 177).
entre dois pólos de redes de
É a partir desses elementos que Guattari sociabilidade que se alternam: uma é
(1992) vai propor a “restauração de uma nômade e marginal e a outra é
Cidade Subjetiva”, engajada tanto nos sedentária e normal. Esses modos de
níveis mais singulares dos indivíduos sociabilidade não são tratados em
quanto nos níveis mais coletivos. Para oposição, mas pela coexistência e
Guattari “as cidades são imensas tensão que se desenvolvem em vários
máquinas [...] produtoras de planos (p. 194). Ou seja, o antropólogo
subjetividade individual e coletiva” (p. mostra a convivência de sociabilidades
172). A “Cidade Subjetiva” se apresenta diferenciadas em um espaço que abriga
como uma ordem subjetiva “mutante” populações "fixas" e "ambulantes" ao
que pode nascer em meio ao “caos” da mesmo tempo. Donas-de-casa,
cidade contemporânea, trata-se da prostitutas, michês, traficantes e
construção de uma nova poesia do comerciantes; demarcam, diferenciam e
urbano, de uma nova arte de viver na disputam seus territórios.
cidade (GUATTARI, 1992: 175), ela é
Para sobreviver no espaço urbano, as
uma criação, produto de processos de
populações nômades (os michês,
ruptura – de focos de singularização
mendigos, meninos de rua, etc.)
como prefere Guattari.
recorrem às formas de organização e
O nômade seria aquele que estabelece sociabilidade que se diferenciam da
localizações, mas não pára de circular ordem dominante, “em cujos interstícios
(Perlongher, 2005, p. 247). Falar de emaranham suas redes relacionais mais
nomadismo, linhas de fuga e rupturas ou menos frouxas e instáveis,
não é o mesmo que falar de desvio. Por ‘retrabalhando’ os valores da sociedade
isso, a proposta de análise apresentada mais ampla, mas mantendo certa
por Perlongher (2008) intenta tomar o exterioridade ou estranhamento a
sujeito não como desviante de uma respeito deles” (PERLONGHER, 2008,
norma social dominante, mas como p. 197). Apesar de focar suas reflexões
“viajante” entre “pontos de ruptura” e nessas territorialidades marginais, é
“pontos de sutura”, permitindo ler o importante ressaltar que elas não são
campo social não somente pelas uma atribuição específica dos michês,
estruturas, mas também pelas fugas e ou daqueles que são vistos sob a marca
desestruturações (p. 196). Ou seja, da errância. De fato, é possível
Perlongher percebe que a experiência encontrar nesses grupos uma leitura
michê em São Paulo envolve um privilegiada sobre essas reflexões.
nomadismo, pois esta é constituída Entretanto, sob a perspectiva de
através de deambulações por diferentes Deleuze & Guattari, é possível dizer
pontos da cidade. As tendências de que onde houver tentativa de fixação de
nomadização, portanto, são as linhas de territórios, haverão territorialidades,
fuga que atravessam os sujeitos e o constituídas por movimentos de
levam a participar simultaneamente, desterritorialização e
ainda que em diferentes graus de reterritorialização. A cidade, em seu
envolvimento, de “modos de amplo contexto, enquanto espaço de
sociabilidade nômades” (p. 196). trajetórias e devires, é por excelência,
27
um espaço produtor de subjetividades, de condomínio podem se
de territorialidades. desterritorializar desse código-território
As análises de Perlongher (2008), ao entrarem em contato com a vida
além dos muros, por intermédio dos
portanto, indicam que não há um modo
diversos enfrentamentos destes
único, fechado e específico de ser
indivíduos com os espaços da cidade.
michê, mas formas plurais de
Isso pode ser exemplificado pelas
experimentar a prática da prostituição
particularidades que envolvem as
viril na cidade de São Paulo, e nesse
perspectivas de moradores adultos e
sentido ele apresenta as diversas
moradores infantis e suas relações sui
categorias de michê elencadas em sua
generis com uma forma de habitar na
pesquisa de campo9.
cidade. O código-território consiste na
Desejar a cidade: esboço de uma cristalização de uma formação subjetiva
leitura sobre os condomínios fechados específica. Assim, é possível pensar,
Para concluir, trago uma rápida reflexão então, que o código-território sugerido
tendo como referência meu campo de pelo condomínio agencia de diferentes
pesquisa, que trata das diferentes maneiras as subjetividades das crianças
experiências etárias de moradia nos e dos adultos que vivem nesses espaços.
condomínios fechados de luxo. Nesse
Para Perlongher (2008), as relações dos
sentido, as territorialidades fabricadas
indivíduos com a cidade é constituída
nos condomínios fechados mostram que
por processos de subjetivação mutáveis
não há um modo único de descrever os
em corpos que se deslocam e circulam.
moradores desses espaços.
Se fizermos essa leitura tendo como
O mapa da experiência urbana de referência os moradores de condomínios
moradores de condomínios fechados fechados, podemos indicar que esse
pode ser traçado tendo como referência espaço, a princípio um território fixo e
os momentos de contato, ainda que homogêneo, pode ser pensado como um
superficial, desses habitantes com a vida dos vários agenciamentos que compõem
da metrópole. Isso ocorre o código-território de seus moradores,
principalmente através de atividades não de maneira única, cada morador
rotineiras como: ir ao trabalho, deixar será afetado por esse agenciamento de
os filhos na escola, ir às compras, se uma maneira particular. Ou seja, há
deslocar ao aeroporto, entre outras distintos modos de vivenciar a
atividades cotidianas. experiência de ser morador de
Assim, na esteira de Perlongher (2008) condomínio fechado e, mais do que
e Deleuze & Guattari (1997), podemos isso, essa experiência não pode ser lida
dizer que o código-território de um apenas pela dimensão espacial do
morador de condomínio fechado de condomínio e dos muros, nem deve ser
luxo, por exemplo, pode se constituir completamente sujeitada a qualquer um
através da cristalização operada pelo deles. Dessa maneira, mesmo diante de
agenciamento sócio-espacial uma forma de morar que recusa os
“condomínio” na subjetividade desses contatos com os espaços urbanos, existe
indivíduos (paranóia securitária, ideal uma possibilidade de etnografia das
de pureza, desejo de se apartar da ações que se voltam para a experiência
cidade, etc.). Entretanto, os moradores da/na cidade.

As análises de Perlongher (2005, 2008),


9
Cf. Os gêneros in Perlongher, 2008, p. 138. assim como as contribuições de Deleuze
28
& Guattari, mostram que é importante GUATTARI, Felix. A restauração da cidade
atentar para as linhas de fuga que subjetiva in Caosmose: um novo paradigma
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