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Aspectos do fotojornalismo: veracidade, verossimilhança e a representação

do outro1

OLIVEIRA, Laís Ferreira (Graduada em comunicação social)2


UFF/RJ

Resumo: Este trabalho discute questões éticas e políticas na produção da fotografia documental,
especialmente no âmbito do fotojornalismo. Retomando o pensamento de Susan Sontag(2003) sobre a
interferência dessas imagens na vida dos representados, a diferenciação de verdade e verossimilhança
de Joan Fontcuberta(2010) e a análise dessa categoria de imagens de Derrick Price(1997),
observamos como a tomada e a estética fotográfica relacionam-se a eventos sociopolíticos. Para tanto,
retomamos o trabalho histórico de Robert Cappa e Henri-Cartier Bresson na revista Magnum,
comparando-o com a produção da contemporânea National Geography Magazine. Nesse exercício,
recorremos às orientações para a produção de imagens existentes no manual de fotojornalismo da
Associated Press.

Palavras-chave: Fotografia documental; fotojornalismo; representação; Revista Magnum; National


Geography Magazine.

Introdução: o ato fotográfico, o realismo e a relação com o outro

Em Sobre a Fotografia, a filósofa americana Susan Sontag debruça-se, dentre outros


temas, sobre as possíveis relações entre fotografia e surrealismo. Em Objetos de Melancolia, a
autora caracteriza o surrealismo como uma arte predominantemente burguesa e afirma que
“os surrealistas entenderam mal o que havia de mais brutalmente comovedor, irracional,
inassimilável, misterioso - o próprio tempo” (SONTAG, 1981, p. 68). A autora defende que a
fotografia seria, ao contrário de diversas obras associadas àquela vanguarda, a verdadeira arte
surrealista, na medida em que apresentaria um “páthos irrefutável como mensagem do
passado e a concretude de suas sugestões a respeito da classe social”(SONTAG, 1981, p.68).
A reflexão de Sontag aproxima-se daquela estabelecida por André Bazin(1991) em Ontologia
da Imagem fotográfica. Para Bazin, a fotografia embalsama o tempo. Nesse gesto, a

1 Trabalho apresentado no GT de história da mídia visual e audiovisual , integrante do IV Encontro Regional


Sudeste de História da Mídia – Alcar Sudeste, 2016.
2 Mestranda em comunicação, com ênfase no estudo do cinema e do audiovisual no PPGCOM UFF; graduada
em Comunicação Social pela UFMG(2016).
fotografia, ao manter contiguidade física e material com o seu representamen3, interfere de
formas variadas na apreensão da realidade de um objeto. Considerando esses elementos, é
possível problematizar o realismo usualmente associado à fotografia – especialmente no
fotojornalismo –, como a fotografia interfere na realidade do outro e a influência dos meios de
publicação na recepção dessas imagens.
No primeiro caso, Sontag afirma que a fotografia “tem a reputação pouco atraente de
ser a mais realista e, portanto, a mais fácil das artes miméticas”(SONTAG, 1981, p.65). A
filósofa compara fotografia e pintura, argumentando como a fotografia, no século XX,
mantinha-se como observadora da realidade e do tempo, ao passo que, na pintura, escolas de
vanguarda distanciavam-se de pretensões miméticas. Essa distinção é explorada também por
Philip Dubois(1988) em O ato fotográfico e outros ensaios. Dubois afirma que um dos
principais critérios responsáveis por distinguir a fotografia de pintura situa-se nas distintas
temporalidades sustentadas por ambas as artes. De acordo com esse autor, “O instante
fotográfico é um instante eminentemente paradoxal”(DUBOIS, 1988, p. 166). Segundo esse
autor, a fotografia instauraria uma temporalidade “mais infinita, total, congelada na
interminável duração das estátuas” (DUBOIS, 1988, p.168), o que a transformaria em
impressão fotoquímica sincrônica e a distinguiria da pintura – considerada diacrônica. Assim,
ter-se-ia na fotografia a possibilidade de uma real impressão da realidade, conforme apontado
por Sontag, ainda que a representação do real na imagem fotográfica estivesse situada em
tempos distintos àqueles do momento da tomada.

A associação imediata da fotografia ao realismo é discutida também por Joan


Fontcuberta(2010). Segundo o autor, “a função das fotografias não é corroborar nossa verdade
ou assentar nosso discurso, mas exclusivamente questionar as hipóteses em que outros
possam fundamentar sua verdade” (FONTCUBERTA, 2010, p. 96). Nesse sentido,
Fontcuberta caracteriza a fotografia antes como um meio favorável à discussão sobre a
realidade que sua representação imediata. De acordo com o autor, a forma da fotografia seria
responsável por dois movimentos principais: aproximar o observador do real e, ao mesmo

3Segundo a semiótica de Charles Sanders Peirce, os signos são compreendidos de forma triádica, formado por
três elementos: um objeto, um interpretante e um representamen. O representamens seria o quefundamenta o
signo para aquele que o percebe, constituindo um elemento desencadeador da percepção. Considerada índice, a
fotografia, pela escrita da luz, estabelece contiguidade física com o que representa.
tempo, frustrá-lo por não permiti-lo alcançar a verdade. Analisando o gesto fotográfico,
Fontcuberta distingue verdade e verossimilhança. Segundo o autor, “a verdade é um assunto
acidentado; a verossimilhança, por outro lado, resulta-nos muito mais tangível e, obviamente,
não é oposta à manipulação” (FONTCUBERTA,2010, p.104). Situado em um contexto de
reflexão sobre as formas de manipulação e montagem da imagem proporcionadas pelo meio
digital, a aproximação do ato fotográfico à verossimilhança e não à verdade justifica-se,
também, pela presença ideológica e política na dinâmica fotográfica. De acordo com
Fontcuberta, o “realismo não tem nenhuma relação com ‘a realidade’, que é um conceito vago
e ingênuo;o realismo só adquire sentido como opção ideológica e política”(FONTCUBERTA,
2010, p. 105), o que aponta para a necessidade de se compreender as matrizes ideológicas e
políticas existentes no ato fotográfico. Considerando esses elementos, pensamos que o
fotojornalismo é exemplar na compreensão da análise de Fontcuberta, na medida em que
oscila entre a produção de imagens verossímeis e verdadeiras.

O politico do gesto fotográfico nem sempre é considerado pelos fotógrafos. Ao se


debruçar sobre o desenvolvimento histórico da fotografia, Susan Sontag afirma: “a história da
fotografia revela uma longa tradição de ambivalência a respeito de sua capacidade de tomar
partido: adotar um dos lados é tido como minar sua perpétua premissa de que todos os temas
tem validade e interesse”. (SONTAG, 1981, p.92) A posição de Sontag dialoga com o
pensamento de muitos que tendem a conceber a fotografia – especialmente aquela documental
e associada ao fotojornalismo – como imparcial. De acordo com a autora, não é possível
conceber-se o ato fotográfico como algo distanciado dos interesses daquele que o executa.
Sontag conceitua o ato fotográfico como um artefato que produz “lascas fortuitas do
mundo(…)nuvens de fantasia e pílulas de informação” (SONTAG, 1981, p.92) e uma
ferramenta inerente à cultura de massa. Tais conceitos são responsáveis por construir a
identidade do fotógrafo como uma espécie de voyeur, que transita de forma errante no espaço
onde está e captura a cidade como quem apenas acolhe o que dela emana. No caso de
fotógrafos que retratam contextos de guerra, miséria e problemas sociais, há a identificação
com um papel de testemunha e de propagador das informações acerca desses episódios. No
entanto, há um gesto recorrente de não se considerar a interferência política e social dos
elementos representados. Na análise da produção e carreira de Henri Cartier-Bresson, por
exemplo, Susan Sontag aponta para um “turismo de classe”(SONTAG, 1981, p.88), em que o
fotógrafo seria um voyeur a registrar elementos de uma realidade marcada por mudanças
bruscas de nível social e de relevância ética, em que se destacariam imagens da miséria.

A argumentação de Sontag encontra coincidência com alguns elementos discutidos por


Derrick Price, especialmente na obra Observadores e observados. De acordo com Price, a
fotografia teria sido empregada para relatar guerras, observar regiões remotas do mundo e
fazer observações científicas, o que exemplifica o voyeurismo apontado por Sontag.
Remetendo a algumas práticas do início da fotografia na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos,
Price aponta como a prática fotográfica foi importante para o desenvolvimento de políticas
culturais e investigação social em ambos os países. Sob a proteção da objetividade científica,
a fotografia teria sido usada por diversos colonizadores britânicos como elemento de registro
étnico dos povos conquistados. Esse movimento funcionaria como dupla dominação, na
medida em que os povos fotografados eram dominados pelo país de origem dos fotógrafos e,
simultaneamente, eram submetidos à uma estetização no ato de fotografar que não pertencia
à cultura autóctone. A dominação passível de existir no ato fotográfico é central na discussão
da fotografia documental realizada por Price. Price argumenta que o documentário teria sido
conceituado como uma prática fotográfica que deveria transcender a produção de imagens. De
acordo com o autor, “o objetivo dos fotógrafos era o de trazer à atenção uma audiência o
sujeito de seu trabalho, e, em muitos casos, de abrir o caminho para a mudança
social” (PRICE, 1997,p. 6). Essa perspectiva foi, ao longo das décadas, controversa, na
medida em que a fotografia documental não constitui, necessariamente, uma imagem
desinteressada do mundo e responsável por mudanças sociais efetivas.

Em sua abordagem, Price diagnóstica o fotógrafo como um exemplar sofredor, que


avaliaria de forma imparcial as questões sociais durante o exercício da produção documental.
O acontecimento da tomada, porém, é atravessado por determinados contextos de poder e
controle. Segundo Price, “uma história do documentário pode ser estruturada em torno do
relato da associação entre fotógrafo e sujeito, e das relações de poder que são mediadas entre
eles.” (PRICE, 1997, p.18). O inglês sublinha que essas relações executam-se por meio do
poder putativo da câmera, que pode impor ao invés de criar significado e desautoriza o “leitor
ou espectador qualquer ato de interpretação vis-à-vis do texto” (PRICE, 1997,p.18).
Consequentemente, Price argumenta que a fotografia documental instalar-se-ia em um
âmbito do senso comum e estaria inacessível ao engajamento critico.

Os impactos dos enquadramentos e modulações dos acontecimentos pela fotografia


documental na percepção politico e social de seus receptores atravessam, também, a discussão
de Susan Sontag em Diante da dor dos outros. Segundo Sontag, jornalistas teriam uma
condição de espectatorialidade das tragédias não coincidentes com o espectador que recebe
as imagens e fotografias produzidas. O espectador reagira com “compaixão, ou indignação,
ou aprovação, à medida que cada desgraça se representa”(SONTAG, 2003, p.20). A
experiência da situação e da tragédia do outro por meio da fotografia culminaria em um
sentimento de compaixão entorpecida, a qual não mais possibilitaria uma reação de
inconformação e revolta que implicasse estratégias favoráveis a mudanças sociais efetivas.
Nesse contexto, o fotojornalismo desempenharia um papel significativo. De acordo com a
autora, “o fotojornalismo conquistou o reconhecimento que lhe era devido no início da década
de 1940 – tempo de Guerra” (SONTAG, 2003, p. 32). A tomada das cenas bélicas e dos
corpos feridos por aqueles que, apesar de não estarem envolvidos no conflito, tornam-os
esteticamente belos, é uma postura política. Ao mediar o mundo em suspensão e destruição da
Guerra, fotógrafos como Robert Capa e Henri Cartier-Bresson fabricavam outras narrativas
sobre os embates em curso.

Robert Capa, Henri Cartier-Bresson e a Revista Magnum: análise de episódios do


fotojornalismo

De origem húngara, Robert Capa foi um fotógrafo que se destacou pelo exercício do
fotojornalismo durante conflitos mundiais, como a Guerra Civil Espanhola, a Guerra Sino
Japonesa e a invasão na Normandia. Na obra Magnum stories, o escritor e fotógrafo Chris
Boot descreve-o como o grande líder da Revista Magnum, considerada um dos exemplos
emblemáticos da história do fotojornalismo.
Um dos primeiros trabalhos responsáveis pelo reconhecimento de Capa desenvolveu-
se entre 1936 e 1939, período da Guerra Civil Espanhola. Destacou-se a fotografia A morte de
um soldado legalista (FIGURA 1). Vencedora do prêmio Pulitzer, a imagem apresenta um
soldado republicano no instante exato em que ele é atingido por um bala inimiga. De acordo
com Sontag(2003), essa imagem representa o exercício da fotografia documental voltada
para o consumo e pouco afeita ao ideal de alteridade e representação do outro. Segundo
Sontag, a fotografia de Capa seria chocante, voltada à atração do espanto e da supresa,
sintomática de um contexto em que o “choque se tornou um estímulo primordial de consumo
e de uma fonte de valor”(SONTAG, 2003, p. 23). As características apontadas por Sontag
intesificam-se quando consideramos o contexto de publicação da imagem, no dia 12 de julho
de 1937, pela revista Life. Na época, a imagem

ocupava a página direita inteira; ao lado, à esquerda, vinha um anúncio de página


inteira de Vitalis, uma pomada de cabelo masculina, como uma pequena foto de
alguém se exercitando no tênis e uma foto grande do mesmo homem de smoking
branco ostentado na cabeça o cabelo lustroso muito bem partido e escorrido
(SONTAG, 2003, p. 31).

As escolhas estéticas de Capa e a veiculação dessa imagem não estimulavam um


posicionamento crítico e criterioso acerca da guerra nela representada. Retomando o
pensamento de Price, é possível dizermos que, ao terem contato com a imagem de Capa na
revista, os leitores apenas eram espectadores daquele conflito vivido, não se imputando em
reflexões acerca das mortes na Guerra.

Figura 1: A morte de um soldado legalista, de Robert Cappa.

Fonte: Site da Scuola Riguardare. Disponível em <http://riguardare.com.br/riguardare/capa.html#0>


Segundo Price, Capa e outros fotógrafos famosos por terem desenvolvidos coberturas
de conflitos bélicos – Bert Hard, W. Eugene Smith, Carl Mydans, David Douglas Duncan,
entre outros - possuíam grande credibilidade e respeito junto ao público, revelando em
imagens um mundo não acessível aos espectadores. De acordo com o inglês, “a câmera
forneceria não os fatos objetivos que eram desejados pelo positivismo, mas relatos de mundos
nos quais a ‘verdade’ era alcançada através do poder produtor das imagens” (PRICE, 1997, p.
10). A construção dessa verdade, porém, atravessa escolhas políticas e estéticas que, como
nos aponta Sontag, podem construir narrativas e discursos diversos sobre a realidade dos
representados.

Criada em 1937 por uma equipe integrada por Robert Capa e Henri Cartier-Bresson, a
revista Magnum é representativa das formas que a fotografia documental pode assumir.
Destacaram-se, por exemplo, as diferenças de produção e estéticas de Capa e Bresson. No
primeiro caso, Capa tornou-se reconhecido pela habilidade de construir narrativas fotográficas
de fácil aceitação pelos veículos de imprensa. De acordo com Chris Boot, Capa “era um
carismático gênio do marketing, a frente dos seus colegas por ter a habilidade de pensar
através de histórias que funcionariam e venderiam no mercado" (BOOT, 2004, p.6). Na
editoração da Magnum, Capa tornou-se famosos por instruir os demais fotógrafos da revista a
trabalhar com conceitos de história e desenvolver imagens que foram premiadas. Nessa
estratégia, algumas escolhas pictóricas e formais predominavam. Boot afirma que, no
momento de tomada, “pouco importava se elas estavam ‘um pouco fora do foco’, desde que a
história em questão tivesse os ingredientes do mito, do heroísmo, da coragem e do
sacrifício”. (BOOT, 2004, p. 66). Esse relato aponta para imagens do fotojornalismo cujo
consumo seria ágil. No caso dos fotógrafos da Magnum, a fotografia corresponderia antes a
um elemento representativo e ilustrativo de uma história pré-formulada pelos editores que a
um gesto de investigação dos fatos para apreender a verdade. Essa modulação dos
acontecimentos seria responsável pela criação de pontos de vista em que elementos narrativos
e estéticos construíram versões sobre a guerra distanciadas da violência. Conforme afirma
Boot,
As guerras de Capa podem ter sido terríveis, mas, nas mãos dele, mantinham um
senso homérico de romance. O poder dele como comunicador dependia, também, do
seu status mítico de narrador, ou, mais especificamente, em ser considerado o
‘melhor fotógrafo de guerra de todos os tempos’(BOOT, 2004, p. 66).

Considerando a argumentação de Boot, torna-se complexa uma associação das fotografias


de Capa a um realismo imediato. O gesto de cronista imparcial, assumido por Capa e pelos
demais fotógrafos que adotavam um estilo semelhante ao dele, cerceava uma abordagem mais
crítica da guerra. Como nos alerta Sontag, o exercício da fotografia na Magnum:
“preconizava uma missão ampla e eticamente árdua para os fotojornalistas: fazer a crônica do
seu tempo, fosse este estado de guerra ou de paz, como testemunhas honestas, livres de
preconceitos chauvinistas” (SONTAG, 2004, p.33).

Fotógrafo reconhecido pela defesa do “instante decisivo” no ato de tomada, Henri Cartier-
Bresson defendia o ato fotográfico como desenho. Associando-se à narração de histórias,
Bresson costumava não se identificar com o fotojornalismo. Em Mangum stories(2004), o
fotógrafo francês afirma:

Eu gostaria de explicitar o meu ponto de vista: eu nunca fui um contador de


histórias. Mesmo quando eu assinei contratos, era um pretexto para manter a minha
fotografia diariamente, uma vez que eu nunca acreditei verdadeiramente no segundo
pilares da lei do fotojornalismo: ‘quem, o que, quando, onde e porque’(BOOT, 2004,
p.74).

Bresson detalha sua perspectiva no texto O instante decisivo, em que retrata o processo de
produção fotográfica por meio dos seguintes pilares: a reportagem, o tema, a composição, a
técnica, os clientes e as cores. No âmbito da reportagem, Bresson salienta o quão difícil
constitui o ato de recortar um determinado acontecimento e retratá-lo por meio da fotografia.
A representação da realidade necessita de uma composição adequada, cuja preparação não
deve obstruir a intuição para apreender momentos no ato da tomada.

Os mecanismos de produção de Henri Cartier-Bresson são analisados e questionados


por Price em Observadores e Observados (1997) De acordo com o Price, o instante decisivo
bressoniano corresponderia a “um pequeno intervalo de tempo quando todos os elementos
importantes posicionados antes que a cena voltasse à sua desordem cotidiana (PRICE, 1997,
p.31). Essa imagem produziria, simultamente, informação e prazer visual. Price aponta, ainda,
o desenvolvimento de um segmento da fotografia documental que passou a se concentrar “na
exploração da vida cultural e da experiência popular”(PRICE, 1997, p.31), o que estimulou a
criação de imagens voltadas para a celebração do transitório e do fragmentário.

Uma das imagens que nos permitem compreender o “instante decisivo” de Bresson e
as interferências da fotografia documental na realidade do outro é a fotografia “Tamil
Nadu” (figura 2) Essa imagem foi produzida por Bresson em Madurai, na Índia, em 1950.
Nessa época, o país lutava pela independência da colonização da Inglaterra e era submetido a
um regime de distribuição de alimentos rígido. Consequentemente, milhões de pessoas
enfrentavam problemas de subnutrição. A princípio, Bresson produziu essa fotografia para
denunciar a fome que assolava aquele país. No entanto, por meio da observação da imagem,
podemos questionar a benesse dessa ação. Nesse sentido, a mão da mulher, que tenta esconder
o rosto da criança, aponta para o desconforto dos representados. Há o desejo de proteger
aquele filho, evitar que aquela dor se transforme em imagem cuja circulação é desconhecida.
Há dúvidas sobre como aquela denúncia afetará modos de viver já atravessados pelo
sofrimento e pela hostilidade. Assim, é possível pensarmos que se, por um lado, essa imagem
repercutiu no questionamento mundial do contexto sociopolítico da Índia, por outro, os
indivíduos nela representados oscilam entre a super exposição e o sofrimento.

Figura 2: Tamil Nadu

Fonte: STAMBERG(2003). Disponível em <http://www.npr.org/templates/story/story.php?storyId=1318621>


Uma breve análise do contexto contemporâneo: elementos da revista National
Geography Magazine

Em Magnum stories, Chirs Boot afirma: “National Geography é uma revista


contemporânea que continua a bancar generosos contratos, permitindo as fotógrafos a
oportunidade de gastar às vezes vários meses em uma única história” (BOOT, 1997, p.9).
Publicada pela primeira vez em 1888, a National Geography é reconhecida por publicar
ensaios sobre diversos temas, destacando-se grupos étnicos, manifestações culturais,
paisagens e desastres ambientais. Um episódio tornou-se internacionalmente famoso: o
ensaio fotográfico sobre a tribo dos Tasaday, publicado na década de 70. Essas imagens são
discutidas por por Joan Fontcuberta (2010) no texto “A tribo que nunca existiu”. O ensaio,
que apresentava uma tribo indígena selvagem, foi descoberto como produzido ficcionalmente
por montagem. Como nos aponta Fontcuberta, ainda houve aqueles que defenderam a
proposta desse trabalho, na medida em que, ainda que ficcionais, essas imagens teriam
atentado e estimulado a necessidade de preservação de tribos indígenas.

A eficácia, a alteridade e a interferência da National Geography podem ser


questionadas em outros episódios. Na série a qual a figura 3 pertence, “Filhos de Mandela”, é
dúbio o seu sentido politico. Essas imagens foram publicadas em 2010, integrando um ensaio
sobre a África do Sul. Na apresentação dessas fotografias, a África do Sul é descrita como
um território multiétnico, vibrante e democrático. Produzidas por James Nachtwey, as
imagens teriam o propósito de apresentar um território e uma realidade distantes da longa
sombra do regime segregacionista do apartheid. Porém, ao observarmos a imagem,
percebemos que há apenas crianças negras e que o processo fotográfico de Nachtwey não
favorece ao desaparecimento do regime de descriminação racial: apenas estetiza, com belas
cores, uma realidade que permanece árdua e conflituosa. Torna-se possível retomarmos ao
pensamento de Susan Sontag, segundo a qual os fotógrafos de classe média desenvolveriam,
muitas vezes, processos de coleção de acontecimentos fortuitos e de elementos do cotidiano
das classes sociais mais pobres. A autora sinaliza que em “um mundo que está bem adiantado
em seu caminho para tornar-se um vasto garimpo a céu aberto, o colecionador se transforma
em alguém engajado num consciencioso trabalho de salvamento”(SONTAG, 1981, p. 74). É
possível pensarmos que, ao invés de transformá-la, o fotógrafo apenas coleciona a realidade
dessas crianças.
Figura 3: Imagem da série Filhos de Mandela, produzida por James Nachtwey.

Fonte: National Geography Magazine. Disponível em <http://ngm.nationalgeographic.com/2010/06/


south-africa/fuller-text NationalGeography Magazine>

O fotojornalismo distanciado da arte: orientações de um manual para o exercício da


profissão

Em Guide to Photojouranism, Brian Horton(2000) apresenta perspectivas positivas e


pragmáticas acerca do fotojornalismo. Editor chefe da Associated Press e fotógrafo premiado
pela cobertura de megaeventos esportivos, Horton relaciona a importância do fotojornalismo
ao atendimento da demanda por informação existente nos diversos indivíduos e lugares. De
acordo com Horton, os profissionais do fotojornalismo possuem a preciosa característica de
"assistirem a história e, assim, produzirem conteúdo nos mais variados caminhos. Isso requer
educação, experiência, desejo, conhecimento, ideias e o mais raros de todos os fatores:
talento". (HORTON, 2000, p.5). Horton defende que aquele que trabalha com o
fotojornalismo é guiado mais pelos ditame do fazer jornalístico do que por determinada
pretensão ou capacidade artística. O autor reflete sobre as técnicas de composição, estilo e
publicação de fotógrafos envolvidos com o fotojornalismo, em que Horton
defende a incidência da sensibilidade, do pensamento, do instituto e da curiosidade.

Dentre as sessões propostas por Horton, destacam-se duas relevantes na análise da


fotografia documental e do fotojornalismo: The Look and News. No primeiro caso, há a
abordagem de alguns procedimentos que devem ser adotados pelos fotojornalistas durante o
processo de escolha dos enquadramentos e produção da imagem fotográfica. Segundo Horton,
o desenvolvimento de um estilo próprio é um desafio e, para alguns fotojornalistas, deve ser
evitado para que não interfira na informação. Para o fotógrafo Lynn Burrows, profissional da
revista The Virgian -Pilot, os fotógrafos iniciantes deveriam somente fotografar a partir do
que sentem e revisar constantemente as fotografias que produzem. Esse posicionamento
distancia-se daquele sustentado por Hall Buell, segundo o qual os jornalistas não deveriam ser
aritstas "porque os artistas possuem o ponto de vista próprio, ou ao menos deveriam.
Jornalistas são repórteres e apenas reportam aquilo que aconteceu" (HORTON, 2000, p.34).

A presença da subjetvidade dos fotógrafos no fotojornalismo atravessa a análise da


fotografia documental. Uma das questões relacionadas é se o fotojornalismo fabrica ou não
objetos culturais a partir da manipulação digital da imagem. De acordo com o fotógrafo
Kenny Irby, a manipulação das fotografias pela imprensa é algo recorrente: "está acontecendo
todos os dias. Está desafiando todos os dias. Todas as revistas que você observa, seja a Vibe
Magazine ou a Time Magazine, tem capas manipuladas consideravelmente (HORTON, 2000,
p.38)". A construção das imagens por meio da manipulação interfere desde o momento da
tomada. De acordo com Nighswander, os fotojornalistas deveriam tentar fazer uma imagem
mais flexível possível, na medida em que "você não pode adicionar informações depois que a
fotografia é feita"(HORTON, 2000, p.55). Como discutimos, há, no exercício do
fotojornalismo, elementos editoriais e estéticos que atravessam a função de abordagem da
realidade de forma fidedigna aos acontecimentos vividos.

Os mecanismos de funcionamento do jornalismo distanciam-se de algumas potências


existentes na fotografia apontados por Susan Sontag. Segunda a filósofa,

Uma das características da fotografia é, como vimos, o fato de que ela parece
possuir um relacionamento especial com a realidade. Nós falamos de tomar
fotografias ao invés de fazê-las, porque as marcas de sua construção não são
imediatamente visíveis; elas têm a aparência de vir a existir como função do próprio
mundo ao invés de objetos culturais cuidadosamente fabricados (SONTAG,
2003, p.35).

Nos exemplos que trabalhamos neste artigo, constatamos que a natureza do fotojornalismo
pode ser favorável à criação de objetos culturais pouco verossímeis. Em muitos casos, os
mecanismos de produção optam antes por um discurso condizente à instituição que os
sustenta que à uma interpretação imparcial e múltipla da realidade.

Conclusão

Em Objetos de melancolia, Susan Sontag afirma: "o que é verdade para as fotos é
verdade para o mundo visto fotograficamente" (SONTAG, 1981, p.94). Aos nos debruçarmos
sobre os processos produtivos de Robert Capa e sobre o fotojornalismo propostos pela
Associated Press, percebemos que a realidade sustentada pela fotografia corresponde a um
propósito e a uma ideologia estabelecidos. Ao fotografar para ilustrar narrativas já definidas
previamente, Capa tencionava a verdade associada à tomada da fotografia. De maneira
semelhante, a produção de imagens para a grande imprensa é atravessada pelos interesses
comerciais de cada veículo, os quais constroem discursos específicos sobre a realidade.
A possibilidade da fotografia utilizar-se da verossimilhança em prol de interesses
particulares torna-se complexa na abordagem de realidades sociais de miséria e conflitos
étnicos. Conforme afirma Price em sua obra,

De maneira menos sensacional, os mortos foram registrados enquanto depositados


nos caixões ( a fotografia foi saudada como sendo um excelente substituto para a
máscara mortuária), enquanto todos os vivos pareciam sujeitos apropriados para a
mirada da câmera(PRICE, 1997, p.1).

Nesse sentido, percebe-se como a fotografia pode, de fato embalsamar o tempo como propôs
Bazin(1991); não garante, porém, que se constituirá em um elemento que respeite a realidade
e a dor do outro. Muitas vezes, como notamos na análise da fotografia de Tamil Nadu de
Bresson, a imagem fotográfica pode auxiliar na transformação social de maneira ampla, mas
afetar negativamente o micro cotidiano dos indivíduos que retrata.

Referências

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1991.

BOOT, Chris. Magnum Stories. Londres: Phaidon Press, 2004.

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PRICE, Derrick. Observadores e observados - a fotografia em todas as paradas. In: WELLES, Liz.
Photography – A critical Introduction. Tradução: Rui Cezar dos Santos. Londres: Routledge. Título
original: Surveyors and surveyed- photography out and about 1997
SCUOLA Riguardare. Disponível em <http://riguardare.com.br/riguardare/welcome.html>. Acesso em 18 de
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<http://www.npr.org/templates/story/story.php?storyId=1318621>. Acesso em 18 de julho de
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