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do outro1
Resumo: Este trabalho discute questões éticas e políticas na produção da fotografia documental,
especialmente no âmbito do fotojornalismo. Retomando o pensamento de Susan Sontag(2003) sobre a
interferência dessas imagens na vida dos representados, a diferenciação de verdade e verossimilhança
de Joan Fontcuberta(2010) e a análise dessa categoria de imagens de Derrick Price(1997),
observamos como a tomada e a estética fotográfica relacionam-se a eventos sociopolíticos. Para tanto,
retomamos o trabalho histórico de Robert Cappa e Henri-Cartier Bresson na revista Magnum,
comparando-o com a produção da contemporânea National Geography Magazine. Nesse exercício,
recorremos às orientações para a produção de imagens existentes no manual de fotojornalismo da
Associated Press.
3Segundo a semiótica de Charles Sanders Peirce, os signos são compreendidos de forma triádica, formado por
três elementos: um objeto, um interpretante e um representamen. O representamens seria o quefundamenta o
signo para aquele que o percebe, constituindo um elemento desencadeador da percepção. Considerada índice, a
fotografia, pela escrita da luz, estabelece contiguidade física com o que representa.
tempo, frustrá-lo por não permiti-lo alcançar a verdade. Analisando o gesto fotográfico,
Fontcuberta distingue verdade e verossimilhança. Segundo o autor, “a verdade é um assunto
acidentado; a verossimilhança, por outro lado, resulta-nos muito mais tangível e, obviamente,
não é oposta à manipulação” (FONTCUBERTA,2010, p.104). Situado em um contexto de
reflexão sobre as formas de manipulação e montagem da imagem proporcionadas pelo meio
digital, a aproximação do ato fotográfico à verossimilhança e não à verdade justifica-se,
também, pela presença ideológica e política na dinâmica fotográfica. De acordo com
Fontcuberta, o “realismo não tem nenhuma relação com ‘a realidade’, que é um conceito vago
e ingênuo;o realismo só adquire sentido como opção ideológica e política”(FONTCUBERTA,
2010, p. 105), o que aponta para a necessidade de se compreender as matrizes ideológicas e
políticas existentes no ato fotográfico. Considerando esses elementos, pensamos que o
fotojornalismo é exemplar na compreensão da análise de Fontcuberta, na medida em que
oscila entre a produção de imagens verossímeis e verdadeiras.
De origem húngara, Robert Capa foi um fotógrafo que se destacou pelo exercício do
fotojornalismo durante conflitos mundiais, como a Guerra Civil Espanhola, a Guerra Sino
Japonesa e a invasão na Normandia. Na obra Magnum stories, o escritor e fotógrafo Chris
Boot descreve-o como o grande líder da Revista Magnum, considerada um dos exemplos
emblemáticos da história do fotojornalismo.
Um dos primeiros trabalhos responsáveis pelo reconhecimento de Capa desenvolveu-
se entre 1936 e 1939, período da Guerra Civil Espanhola. Destacou-se a fotografia A morte de
um soldado legalista (FIGURA 1). Vencedora do prêmio Pulitzer, a imagem apresenta um
soldado republicano no instante exato em que ele é atingido por um bala inimiga. De acordo
com Sontag(2003), essa imagem representa o exercício da fotografia documental voltada
para o consumo e pouco afeita ao ideal de alteridade e representação do outro. Segundo
Sontag, a fotografia de Capa seria chocante, voltada à atração do espanto e da supresa,
sintomática de um contexto em que o “choque se tornou um estímulo primordial de consumo
e de uma fonte de valor”(SONTAG, 2003, p. 23). As características apontadas por Sontag
intesificam-se quando consideramos o contexto de publicação da imagem, no dia 12 de julho
de 1937, pela revista Life. Na época, a imagem
Criada em 1937 por uma equipe integrada por Robert Capa e Henri Cartier-Bresson, a
revista Magnum é representativa das formas que a fotografia documental pode assumir.
Destacaram-se, por exemplo, as diferenças de produção e estéticas de Capa e Bresson. No
primeiro caso, Capa tornou-se reconhecido pela habilidade de construir narrativas fotográficas
de fácil aceitação pelos veículos de imprensa. De acordo com Chris Boot, Capa “era um
carismático gênio do marketing, a frente dos seus colegas por ter a habilidade de pensar
através de histórias que funcionariam e venderiam no mercado" (BOOT, 2004, p.6). Na
editoração da Magnum, Capa tornou-se famosos por instruir os demais fotógrafos da revista a
trabalhar com conceitos de história e desenvolver imagens que foram premiadas. Nessa
estratégia, algumas escolhas pictóricas e formais predominavam. Boot afirma que, no
momento de tomada, “pouco importava se elas estavam ‘um pouco fora do foco’, desde que a
história em questão tivesse os ingredientes do mito, do heroísmo, da coragem e do
sacrifício”. (BOOT, 2004, p. 66). Esse relato aponta para imagens do fotojornalismo cujo
consumo seria ágil. No caso dos fotógrafos da Magnum, a fotografia corresponderia antes a
um elemento representativo e ilustrativo de uma história pré-formulada pelos editores que a
um gesto de investigação dos fatos para apreender a verdade. Essa modulação dos
acontecimentos seria responsável pela criação de pontos de vista em que elementos narrativos
e estéticos construíram versões sobre a guerra distanciadas da violência. Conforme afirma
Boot,
As guerras de Capa podem ter sido terríveis, mas, nas mãos dele, mantinham um
senso homérico de romance. O poder dele como comunicador dependia, também, do
seu status mítico de narrador, ou, mais especificamente, em ser considerado o
‘melhor fotógrafo de guerra de todos os tempos’(BOOT, 2004, p. 66).
Fotógrafo reconhecido pela defesa do “instante decisivo” no ato de tomada, Henri Cartier-
Bresson defendia o ato fotográfico como desenho. Associando-se à narração de histórias,
Bresson costumava não se identificar com o fotojornalismo. Em Mangum stories(2004), o
fotógrafo francês afirma:
Bresson detalha sua perspectiva no texto O instante decisivo, em que retrata o processo de
produção fotográfica por meio dos seguintes pilares: a reportagem, o tema, a composição, a
técnica, os clientes e as cores. No âmbito da reportagem, Bresson salienta o quão difícil
constitui o ato de recortar um determinado acontecimento e retratá-lo por meio da fotografia.
A representação da realidade necessita de uma composição adequada, cuja preparação não
deve obstruir a intuição para apreender momentos no ato da tomada.
Uma das imagens que nos permitem compreender o “instante decisivo” de Bresson e
as interferências da fotografia documental na realidade do outro é a fotografia “Tamil
Nadu” (figura 2) Essa imagem foi produzida por Bresson em Madurai, na Índia, em 1950.
Nessa época, o país lutava pela independência da colonização da Inglaterra e era submetido a
um regime de distribuição de alimentos rígido. Consequentemente, milhões de pessoas
enfrentavam problemas de subnutrição. A princípio, Bresson produziu essa fotografia para
denunciar a fome que assolava aquele país. No entanto, por meio da observação da imagem,
podemos questionar a benesse dessa ação. Nesse sentido, a mão da mulher, que tenta esconder
o rosto da criança, aponta para o desconforto dos representados. Há o desejo de proteger
aquele filho, evitar que aquela dor se transforme em imagem cuja circulação é desconhecida.
Há dúvidas sobre como aquela denúncia afetará modos de viver já atravessados pelo
sofrimento e pela hostilidade. Assim, é possível pensarmos que se, por um lado, essa imagem
repercutiu no questionamento mundial do contexto sociopolítico da Índia, por outro, os
indivíduos nela representados oscilam entre a super exposição e o sofrimento.
Uma das características da fotografia é, como vimos, o fato de que ela parece
possuir um relacionamento especial com a realidade. Nós falamos de tomar
fotografias ao invés de fazê-las, porque as marcas de sua construção não são
imediatamente visíveis; elas têm a aparência de vir a existir como função do próprio
mundo ao invés de objetos culturais cuidadosamente fabricados (SONTAG,
2003, p.35).
Nos exemplos que trabalhamos neste artigo, constatamos que a natureza do fotojornalismo
pode ser favorável à criação de objetos culturais pouco verossímeis. Em muitos casos, os
mecanismos de produção optam antes por um discurso condizente à instituição que os
sustenta que à uma interpretação imparcial e múltipla da realidade.
Conclusão
Em Objetos de melancolia, Susan Sontag afirma: "o que é verdade para as fotos é
verdade para o mundo visto fotograficamente" (SONTAG, 1981, p.94). Aos nos debruçarmos
sobre os processos produtivos de Robert Capa e sobre o fotojornalismo propostos pela
Associated Press, percebemos que a realidade sustentada pela fotografia corresponde a um
propósito e a uma ideologia estabelecidos. Ao fotografar para ilustrar narrativas já definidas
previamente, Capa tencionava a verdade associada à tomada da fotografia. De maneira
semelhante, a produção de imagens para a grande imprensa é atravessada pelos interesses
comerciais de cada veículo, os quais constroem discursos específicos sobre a realidade.
A possibilidade da fotografia utilizar-se da verossimilhança em prol de interesses
particulares torna-se complexa na abordagem de realidades sociais de miséria e conflitos
étnicos. Conforme afirma Price em sua obra,
Nesse sentido, percebe-se como a fotografia pode, de fato embalsamar o tempo como propôs
Bazin(1991); não garante, porém, que se constituirá em um elemento que respeite a realidade
e a dor do outro. Muitas vezes, como notamos na análise da fotografia de Tamil Nadu de
Bresson, a imagem fotográfica pode auxiliar na transformação social de maneira ampla, mas
afetar negativamente o micro cotidiano dos indivíduos que retrata.
Referências
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1991.
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de julho de 2016.
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FONTCUBERTA, Joan. A tribo que nunca existiu. In: O beijo de judas. Barcelona: Editorial
Gustavo, 2010.
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Disponível em <http://jasonfrancisco.net/jason_francisco_photoworks_%26_writings/Henri_Cartier-
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NationalGeography Magazine> Acesso em 18 de julho de 2016.
HORTON, Brian. Associated Press Handbooks. United States: McGraw-Hill Education, 2000.
PRICE, Derrick. Observadores e observados - a fotografia em todas as paradas. In: WELLES, Liz.
Photography – A critical Introduction. Tradução: Rui Cezar dos Santos. Londres: Routledge. Título
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SCUOLA Riguardare. Disponível em <http://riguardare.com.br/riguardare/welcome.html>. Acesso em 18 de
julho de 2016.
SONTAG, Susan. Sobre a fotografia. São Paulo: Companhia das Letras, 1981.
——————- Diante da dor dos outros. Tradução de Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia
das Letras, 2003.