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Salmos
ISBN: 978-85-356-4230-8
NIHIL OBSTAT
IMPRIMATUR
SERGIO DA ROCHA
Arcebispo Metropolitano de Brasília
Presidente da Cnbb
Brasília, 20 de setembro de 2016
Paulinas
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04110-020 – São Paulo – SP (Brasil)
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Todos os direitos reservados
Apresentação
Ler a Bíblia é uma oportuni‑ com a Bíblia” e uma “maior parti‑
dade de encontrar‑se com a miste‑ cipação nos sacramentos” podem
riosa presença da Palavra de Deus resultar em uma “fé mais fecunda”
neste mundo. Nas últimas décadas, (Aparecida, 262).
esse processo de escuta e leitura foi Após ter apresentado no final de
experimentado de modo especial 2015 o Novo Testamento, por ocasião
na América Latina. “As pequenas co‑ do Centenário da Congregação das
munidades, sobretudo as Comuni‑ Irmãs Paulinas, publica-se agora,
dades Eclesiais de Base, permitiram no início de 2017, o livro bíblico dos
ao povo chegar a um conhecimento Salmos. Busca‑se traduzir, de forma
maior da Palavra de Deus” (Puebla, exata e fluente, o que poetas israeli‑
629; Aparecida, 178). Assim, foi pos‑ tas escreveram em hebraico no de‑
sível experimentar como o encontro correr do primeiro milênio antes de
pessoal e comunitário com a Pala‑ Cristo.
vra de Deus – sobretudo, com Jesus, Para auxiliar a compreensão
o Verbo encarnado – renova as rela‑ do texto bíblico, foram elaboradas
ções, favorece o compromisso com Notas Explicativas e uma Introdu‑
a justiça e estimula a construção de ção. Atentas ao caráter literário e ao
um mundo melhor, mais próximo contexto histórico‑geográfico, elas
do Reino de Deus. visam, sobretudo, à reflexão teoló‑
Contudo, para ampliar o acesso gica presente nos Salmos, facilitan‑
à Palavra de Deus através da escuta do sua leitura espiritual, seu estudo
e leitura da Bíblia, a V Conferência acadêmico e sua celebração litúrgi‑
Geral do Episcopado Latino-Ameri‑ ca. Enfim, as Irmãs Paulinas e seus
cano e do Caribe definiu, em 2007, colaboradores querem com esta tra‑
que seria “prioritário fazer tradu‑ dução contribuir para que “o estudo
ções católicas da Bíblia” (Aparecida, da Sagrada Escritura” se torne “uma
94). Consoante a isso, PAULINAS porta aberta para todos os crentes”
Editora, no mesmo ano, decidiu ini‑ (Evangelii Gaudium, 175), cultivando
ciar uma longa jornada de trabalhos, também a esperança de que os ins‑
a fim de realizar uma tradução da truídos pela Bíblia cheguem mais
Bíblia com o nome de A BÍBLIA. Ou facilmente a um encontro pessoal e
seja, com espírito eclesial de discípu‑ comunitário com a Palavra de Deus,
lo‑missionário, as Irmãs Paulinas, tanto para seu bem como para o bem
com seus colaboradores, se propõem de toda a humanidade.
a ajudar a Igreja em sua tarefa de
anunciar o Evangelho a todos, cien‑ Paulinas Editora
tes de que o “contato mais direto 2017, Tricentenário de Aparecida
5
Direção e colaboração
Direção editorial
Bernadete Boff
Vera Ivanise Bombonatto
Tradução do hebraico,
introdução e notas
Matthias Grenzer
Revisão exegética
Leonardo Agostini Fernandes
Renatus Porath
Revisão literária
Anoar Jarbas Provenzi
Revisão geral
Equipe Paulinas
Capa e ilustração
Cláudio Pastro
Diagramação
Manuel Rebelato Miramontes
Abreviaturas
Ab Abdias Js Josué
Ag Ageu Jt Judite
Am Amós Jz Juízes
Ap Apocalipse Lc Lucas
At Atos dos Apóstolos Lm Lamentações
Br Baruc Lv Levítico
Cl Colossenses Mc Marcos
1Cor 1 Coríntios 1Mc 1 Macabeus
2Cor 2 Coríntios 2Mc 2 Macabeus
1Cr 1 Crônicas Ml Malaquias
2Cr 2 Crônicas Mq Miqueias
Ct Cântico dos Cânticos Mt Mateus
Dn Daniel Na Naum
Dt Deuteronômio Ne Neemias
Ecl Eclesiastes (Coélet) Nm Números
Eclo Eclesiástico (Sirácida) Os Oseias
Ef Efésios 1Pd 1 Pedro
Esd Esdras 2Pd 2 Pedro
Est Ester Pr Provérbios
Ex Êxodo Rm Romanos
Ez Ezequiel 1Rs 1 Reis
Fl Filipenses 2Rs 2 Reis
Fm Filêmon Rt Rute
Gl Gálatas Sb Sabedoria
Gn Gênesis Sf Sofonias
Hab Habacuc Sl Salmos
Hb Hebreus 1Sm 1 Samuel
Is Isaías 2Sm 2 Samuel
Jd Judas Tb Tobias
Jl Joel Tg Tiago
Jn Jonas 1Tm 1 Timóteo
Jó Jó 2Tm 2 Timóteo
Jo João 1Ts 1 Tessalonicenses
1Jo 1 João 2Ts 2 Tessalonicenses
2Jo 2 João Tt Tito
3Jo 3 João Zc Zacarias
Jr Jeremias
Introdução aos Salmos
Na tradição cristã, o livro das Salmo 116,10-19 Salmo 115
orações do antigo Israel, de Jesus de Salmos 117–146 Salmos 116–145
Nazaré e da Igreja recebeu o nome de Salmo 147,1-11 Salmo 146
Salmos, palavra grega usada para Salmo 147,12-20 Salmo 147
traduzir o termo hebraico mais pre- Salmos 148–150 Salmos 148–150
sente nos títulos colocados acima de
diversas orações (ver, por exemplo, O livro dos Salmos revela ele-
mizmor em Sl 3,1). O termo indica mentos que indicam ser a obra or-
uma oração em forma de recita- ganizada literariamente. Podem
ção poética, ou seja, cantada com o ser observadas quatro fórmulas do-
acompanhamento de instrumentos xológicas (Sl 41,14; 72,18-19; 89,53;
de cordas. A expressão grega Salté‑ 106,48) que, sem terem ligação di-
rio, também utilizada pelos cristãos reta com as orações das quais lite-
para o conjunto dos Salmos, refere- rariamente fazem parte, dividem o
-se ao instrumento musical lira. livro dos Salmos em cinco grandes
O povo judeu, no entanto, chama o partes, formando uma estrutura
livro dos Salmos de louvores (heb.: paralela ao Pentateuco (Gênesis,
tehilim), pois as muitas orações Êxodo, Levítico, Números e Deute-
(Sl 72,20) em forma de lamentações, ronômio). Dessa forma, a tradição
preces e súplicas irão resultar em um judaica compreende os Salmos como
louvor múltiplo (Sl 150,6). resposta que Israel dá à proposta fei-
A numeração dos Salmos varia ta na Torá. Além disso, observando
de acordo com suas antigas edições. os títulos dos Salmos, percebe-se a
A regra básica é de que o número formação de grupos de orações. Cin-
maior sempre se refere à Bíblia He‑ co coleções são atribuídas a Davi (Sl
braica. A Septuaginta, tradução 3–41; 51–72; 101–103; 108–110; 138–
grega das Sagradas Escrituras de 145). Doze Salmos (Sl 50; 73–83),
Israel, estabeleceu uma numeração voltados sobretudo à leitura teológi-
diferente, sendo nisso seguida pela ca da história de Israel, são ligados a
Vulgata, tradução latina do Antigo Asaf. Outros doze (Sl 42–49; 84–85;
Testamento: 87–88), com foco na importância
Texto hebraico Traduções grega e teológica de Sião, são atribuídos aos
latina
filhos de Coré. Quinze Salmos
Salmos 1–8 Salmos 1–8
formam um conjunto chamado
Salmos 9–10 Salmo 9
Cantos das subidas (Sl 120–134),
Salmos 11–113 Salmos 10–112
como orações provavelmente rela-
Salmos 114–115 Salmo 113
Salmo 116,1-9 Salmo 114
cionadas às festas de peregrinação,
quando o povo se deslocava até Je-
8
– I n t r o d u ç ão ao s s a l m o s
rusalém. Vale lembrar também o Destaca-se a superioridade e a so-
Halel Egípcio (Sl 113–118). Os dois berania do Deus de Israel. Contudo,
primeiros Salmos (Sl 1–2) e os cinco se de um lado Deus é insondável, do
últimos (Sl 146–150) estabelecem outro a história se torna espaço e ce-
uma moldura em torno de toda a nário da relação entre o Senhor e seu
composição literária do livro. povo eleito, visto que esse relaciona-
Os Salmos podem ser classifi- mento quer servir de experiência
cados de acordo com determinados exemplar para a humanidade in-
gêneros literários. Existem hinos, teira. Sobretudo, o evento do êxodo
com os elementos característicos de e a transformação dessa experiência
um apelo, que convidam os ouvin- de libertação em um projeto jurídico
tes-leitores ao louvor, sendo depois são oferecidos como modelo de fé e
apresentada a justificativa do lou- comportamento para todas as gera-
vor. Além disso, há lamentações ções. Com o êxodo, Deus revelou sua
individuais e coletivas, as quais justiça. O Senhor, Deus de Israel, é
por excelência aquele que se propõe
apresentam uma invocação (mui-
fazer justiça a quem está sendo in-
tas vezes com a menção do nome de
justiçado. Isso, por sua vez, traz con-
Deus), a descrição do sofrimento (por
sequências para a vida cotidiana do
vezes acompanhada de perguntas
fiel. Em especial, ao refletir sobre a
sobre a origem do mal) e a formu-
estrutura do mundo e sobre a expe-
lação da prece ou súplica; é possível
riência do sofrimento e da morte,
que declarações de confiança ou pro-
assim como sobre a possibilidade de
messas de louvor acompanhem as
encontrar a felicidade na vida, o ho-
lamentações. Às lamentações corres- mem se pergunta a respeito da exis-
pondem os cantos de ação de graça, tência de uma ordem divina, capaz
nos quais se narra, sobretudo, como de guiar quem procura orientação.
Deus salvou o fiel ou a comunidade O texto aqui apresentado traz
dos fiéis, suscitando nos últimos o uma tradução dos Salmos segundo
agradecimento. Além disso, certas a Bíblia Hebraica. Prevaleceu, com
temáticas – por exemplo, a realeza isso, o princípio da fidelidade ao
do Senhor, a figura messiânica do rei texto provavelmente mais original,
de Israel, Sião, a história do povo de mesmo que este, com suas dificul-
Deus ou a proposta de vida oriunda dades textuais em relação à forma e
da sabedoria – dão origem à forma- ao conteúdo, exija do ouvinte-leitor
ção de paralelismos e, com isso, de mais do que boa parte das tradu-
grupos de textos no livro dos Salmos. ções antigas e modernas exige. Para
Quanto ao conteúdo, certas con- amparar os leitores, notas de rodapé
vicções e esperanças norteiam o mais extensas se propõem acom-
conjunto dos cento e cinquenta poe- panhar, estrofe por estrofe, a lógica
mas contidos no livro dos Salmos. interna do que está sendo pensado
9
– I n t r o d u ç ão ao s s a l m o s
em cada Salmo. Essas explicações se va (Sl 23). Além disso, as estrofes dos
baseiam num diálogo com os estu- poemas são de tamanho irregular.
dos exegéticos mais atuais. Em espe- Em vez de usar a rima, a poesia he-
cial, vale lembrar os estudos amplos braica trabalha com diversos tipos
de Erich Zenger (†) e Frank-Lothar de paralelismos. Poéticos, com sua
Hossfeld (†), biblistas alemães (Die linguagem enfática fundamentada
Psalmen I; Psalm 1–50. Würzburg: nos paralelismos, nas metáforas e,
Echter, 1993; Psalmen 51–100. 2. sobretudo, no diálogo dramático,
ed. Freiburg: Herder, 2000; Psal‑ os Salmos parecem corresponder à
men 101–150. Freiburg: Herder, experiência de fé que o orante é con-
2008). vidado a fazer, haja vista esta envol-
Além disso, é importante lem- ver as experiências do dia a dia em
brar que os Salmos são textos poe- sua conversa com Deus.
ticamente compostos. Os discursos Jesus de Nazaré acolheu os
diretos trabalham, em diversos mo- Salmos como orações em sua vida,
mentos, com assíndetos, ou seja, sem especialmente nas controvérsias e
conjunções ou conectivos explícitos. durante sua paixão. Com dezenas
Multiplicam-se as imagens metafó- de trechos diretamente mencionados
ricas, bem como expressões artísticas nos escritos do Novo Testamento –
e arcaizantes. Repetições, sequências alguns deles em diversos lugares –,
incomuns de palavras e frases, mas o livro dos Salmos é o escrito vete-
também figuras descritivas, ocupam rotestamentário mais citado pelos
os versos. A alternância de discursos autores neotestamentários. Além
nem sempre deixa claro quem os disso, existem centenas de alusões
enuncia: ora se fala sobre alguém aos Salmos no Novo Testamento.
(ele/eles, terceira pessoa), ora se fala Consequentemente, os Salmos se tor-
diretamente a este alguém (tu/vós, naram também a oração dos cristãos
segunda pessoa), exigindo grande e da Igreja, fazendo parte da herança
atenção para acompanhar as rápi- religiosa que originalmente pertence
das mudanças de pessoa e perspecti- ao povo judeu.
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Sl 1
Salmo 1
2,1-3 Na primeira estrofe, o orante imagina 2,4-6 Na segunda estrofe, ocorre uma mu‑
uma revolta dos povos não israelitas con‑ dança de lugar. Imagina-se a reação do
tra o Senhor e seu ungido. Este último é o Senhor que está nos céus. Seu escárnio
rei de Israel, consagrado pelo Senhor (v. 6) e riso revelam sua soberania; ira e ardor
e aclamado como seu filho (vv. 7.12). Como transmitem a paixão com que ele defende
instrumento nas mãos de Deus, sua tarefa sua ordem, seu rei e Sião como seu lugar
consiste na promoção da ordem divina escolhido. Enfim, sua palavra (v. 6) se opõe
no mundo. Em especial, deve aprender o à palavra de todas as autoridades que cons‑
temor ao Senhor, seu Deus, e observar as piraram contra ele e seu ungido.
palavras da Torá (Dt 17,19), uma instrução 2,7-9 De volta a Sião, o rei messiânico apre‑
capaz de promover tanto a liberdade dos senta um discurso semelhante ao dos pro‑
oprimidos quanto uma convivência mais tocolos cerimoniais de entronização no
igualitária, com base no respeito à digni‑ Antigo Oriente (2Rs 11,12). Três promessas
dade e à sobrevivência de todos. Contudo, acompanham o novo rei: sua filiação di‑
justamente esse projeto de Deus é avaliado vina (v. 7b), a entrega a ele de toda a terra
pelos reis da terra como algo que os apri‑ como propriedade (v. 8) e seu domínio to‑
siona. Por isso, a intenção deles é ficar li‑ tal sobre as nações (v. 9). No entanto, será
vres dessa ordem (v. 3). na dependência da palavra do Senhor que
o rei exercerá sua autoridade.
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Sl 2
3,1 Recorda-se, aqui, um dado biográfico pelo Senhor, o qual atua a partir do monte
do rei Davi, que precisou fugir de seu filho Sião (v. 5). Confiante no apoio do Senhor,
Absalão porque este havia promovido uma nem sequer perdeu o sono (v. 6), por mais
revolta, insistindo num golpe de estado. que multidões lhe fizessem oposição (v. 7).
Não obstante, quando recebeu a notícia da 3,8-9 A última parte do poema inicia-se com
morte deste mesmo filho, Davi sofreu mui‑ uma prece dupla (v. 8ab), dirigida direta‑
to (2Sm 15–18). mente a Deus. Como os agressores se ergue‑
3,2-4 Na primeira estrofe, ao dirigir-se di‑ ram (v. 2), o Senhor deve erguer-se contra
retamente ao Senhor, o orante relata a os inimigos perversos. Confiante na rela‑
miséria de ser agredido por muitos (vv. ção pessoal com seu Deus, a experiência
2-3a), porque os opositores, com suas pa‑ histórica da ação divina contra os oposito‑
lavras, tentam isolá-lo e desesperá-lo (v. res serve ao orante como esperança para o
3b). Contudo, prevalece no fiel a confiança tempo presente (v. 8cd). Assim, declara sua
no Senhor, o qual é experimentado como fé diante dos ouvintes (v. 9a), contradizen‑
quem protege o perseguido (v. 4). do os agressores (v. 3b). No final, proclama
3,5-7 Na segunda estrofe, o orante, dirigin‑ a salvação e pede que o Senhor estenda sua
do-se aos ouvintes, fala sobre Deus. Des‑ bênção ao povo (v. 9b).
taca sua experiência de ter sido atendido
14
Sl 4
Salmo 4
7 Muitos dizem:
“Quem nos fará ver o bem?
A luz de tua face, Senhor, fugiu de nós!”
8 Deste mais alegria a meu coração
do que no tempo em que se multiplicaram os cereais e o mosto deles.
4,7-9 Na última parte, o orante dirige-se ao teriais deles não mais se têm multiplicado
Senhor. Em diálogo com Deus, testemunha (v. 8). Ao contrário deles, quem reza aqui se
uma inversão dos destinos. Muitos, pois, sente presenteado pelo Senhor, descobrin‑
duvidam agora da presença bondosa do do neste a verdadeira fonte de alegria, paz
Senhor (v. 7), sobretudo porque os bens ma‑ e segurança.
16
Sl 5
Salmo 5
5,2-3 Ao iniciar sua oração com preces indi‑ ajuda divina, pois, conforme a tradição
viduais, o orante chama Deus de rei. Essa religiosa do Antigo Oriente e de Israel, a
terminologia talvez revele proximidade divindade profere seu julgamento manhã
ao templo de Jerusalém, cujas origens se após manhã (Sf 3,5; Jó 38,12-15). O Sl 5 pode
encontram vinculadas à casa real. Aliás, ser a prece de quem procura proteção ju‑
todo o Sl 5 mantém a mesma tônica, sen‑ dicial, vigiando pela atuação matutina de
do que o orante se dirige individualmente seu Deus (Sl 101,8).
ao Senhor. Apenas no versículo 7b a fala de 5,5-8 O orante descreve as características
quem reza assume, por um instante, uma principais de Deus, cujo reconhecimen‑
linguagem de ensino, num discurso sobre to se torna decisivo para o acesso à casa do
o Senhor. Senhor (vv. 5-7). Pressupõe-se a desistência
5,4 Quem reza aqui parece estar no templo da perversidade, da maldade/malfeitoria,
(v. 8). Sua oração faz uma alusão à prepa‑ da jactância, do crime de sangue e do em‑
ração do sacrifício matutino. Contudo, a buste, práticas condenadas por Deus. Em
manhã faz lembrar também o motivo da contrapartida, quem puder se aproximar
17
Sl 5
do templo, lugar que hospeda a santidade o conduza no caminho marcado pela jus‑
do Senhor, reconhece que isso somente é tiça e retidão divinas (v. 9).
possível porque a pessoa é abundantemen‑ 5,11-12 Outras preces do orante insistem em
te agraciada por Deus (v. 8; Ex 34,6). destinos diferentes para quem se revolta
5,9-10 O orante se sente ameaçado por adver‑ contra Deus (v. 11) e para quem se abriga em
sários que atuam com palavras falsas (v. 10). Deus (v. 12).
Diante dessa miséria, ele pede que o Senhor 5,13 No final de suas preces, quem reza aqui
declara sua fé na bênção do Senhor ao justo.
18
Sl 6
Salmo 6
6,2-4 O orante vê o Senhor como um educa‑ simboliza a pessoa enquanto um ser vivo
dor que repreende e corrige (v. 2). Contudo, que deseja viver.
pede que ele use a pedagogia da miseri‑ 6,5-8 O orante reinicia suas preces (v. 5). Em
córdia (v. 3), não a da ira e da fúria. Estas vez de imaginar fúria e ira em Deus, insiste
últimas são experimentadas pelo orante na lealdade do Senhor, como fruto da mi‑
em forma de doença. Seus ossos se encon‑ sericórdia divina. Porque ele é leal, espera‑
tram paralisados (v. 3). Assustado, sente-se -se que atue de modo libertador. Contudo,
como quem parou de respirar. Na cultura para que se possa fazer memória do Salva‑
hebraica, a alma (v. 4) é a parte do corpo dor no mundo, é necessário que o Senhor
humano que hospeda o sopro divino. Tra‑ atue em favor dos vivos (v. 6), em especial
ta-se da garganta, imaginada como local daqueles que choram continuamente (vv.
da respiração e região onde a pessoa sente 7-8).
determinados desejos. A alma, portanto,
19
Sl 6
6,9-11 Acontece aqui uma mudança no dis‑ rados como quem se apavorou em meio a
curso (v. 9). O orante dirige-se agora a seus seu sofrimento (vv. 3.4.11), a não ser que
opositores, após se convencer, através de voltem ao Senhor, sentindo vergonha de
sua oração, de que o Senhor é sensível à sua seu comportamento. Descobre-se, assim,
dor (vv. 9b-10). Isso, por sua vez, tem con‑ que o Senhor muda para melhor a vida
sequências para quem hostiliza o sofredor. de quem, no meio de seu sofrimento, o
Os inimigos de quem chora ficarão apavo‑ procura.
20
Sl 7
Salmo 7
1 Lamentação de Davi, que cantou ao Senhor por causa das palavras de Cuch, o
benjaminita.
7,1 O título lembra as imprecações que Davi implora por salvação. A situação parece ser
recebeu do benjaminita Semei por causa desesperadora, pois violentos perseguido‑
de Absalão, o qual se revoltou contra seu res ameaçam sua alma e, com isso, sua vida.
pai, obrigando-o a deixar Jerusalém (2Sm 7,4-6 O orante introduz no discurso que di‑
16,5-10). Contudo, ao receber a notícia rige ao Senhor um juramento de inocência.
da morte de seu filho, Davi sofreu muito Amaldiçoa a si mesmo (v. 6), caso tenha co‑
(2Sm 19,1). metido determinados crimes (vv. 4-5).
7,2-3 Nessas preces iniciais, o orante, ao lem‑
brar a Deus a confiança nele depositada,
21
Sl 7
7,7-10 Quem reza aqui volta a formular pre‑ juiz justo. Ao falar sobre Deus, imagina
ces dirigidas ao Senhor. Como um guer‑ que este fique indignado com a maldade
reiro, Deus deve se opor aos agressores do dos perversos. Pensa até na possibilidade
justo (v. 7a-c). Para o orante, parece existir de o juiz divino permitir que o violento se
um tribunal (celeste) estabelecido (v. 7d), autodestrua. Ao não recuar (v. 13a), Deus
no qual o juiz divino promove seus julga‑ pode fazer com que o perseguidor do jus‑
mentos em relação à comunidade de todas to se arme cada vez mais (v. 13b-d). No
as nações (v. 8). Tal fato é comentado no ver‑ entanto, com tal armamento, o agressor
sículo 9a, sendo que, por um momento, a talvez provoque sua própria morte (v. 14a).
voz presente no Sl 7 fala sobre o Senhor di‑ Resumindo: a maldade nasce dentro do
rigindo-se à comunidade de seus ouvintes. perverso (v. 15) e se volta contra ele mesmo
Retornando, por sua vez, ao caso concreto (vv. 16-17). Ao não acolher a justiça divina,
do orante, este insiste em seu destino par‑ todo esforço do homem pode tornar-se
ticular (vv. 9b-10c). Contudo, por mais que contraproducente.
aponte para sua justiça e integridade, será a 7,18 O orante termina sua oração com uma
qualidade do Deus justo, sobretudo sua ca‑ promessa de louvor. O Deus que está no
pacidade de examinar de forma incorrupta alto (vv. 8b.18b) merece o agradecimento,
e profunda o ser humano, que garantirá o sobretudo quando o perseguido percebe
sucesso do processo. que o nome do Senhor garante justiça a
7,11-17 Dirigindo-se agora a seus ouvintes, quem está sendo brutalmente agredido.
o orante descreve a atuação de Deus como
22
Sl 8
Salmo 8
10 Senhor, nosso Senhor, como é magnífico teu nome em toda a terra!
8,2 O Sl 8 é emoldurado por um refrão (vv. 4,4; Jó 24,9). O grito dos bebês revela a for‑
2a.10), embora o versículo 2b não seja repe‑ ça do Senhor, capaz de mudar a postura de
tido no final do poema. Há um contraste: a quem insiste na inimizade.
majestade do Senhor preenche o espaço aci‑ 8,4-9 O olhar para o céu suscita a pergun‑
ma do céu (Sl 113,4), mas sua grandeza pode ta a respeito da grandeza e dignidade do
ser observada também na terra, ao se verifi‑ ser humano (vv. 4-5). A resposta destaca
car aqui a presença magnífica do nome do sua realeza (vv. 6-9). Como o rei, cada hu‑
Senhor. Esse contraste realça a expansão da mano é coroado com glória e esplendor (Sl
magnificência divina. 21,6; 45,4). Ao receberem glória e esplen‑
8,3 Numerosas pessoas fazem oposição ao dor, o homem e a mulher se assemelham
Senhor: agressores, inimigos e vingado‑ ao Senhor (Sl 29,1.4; 96,6; 104,1), partici
res. Contudo, Deus desarma todos eles pando do domínio de Deus sobre a criação
com o que sai da boca dos bebês e dos que (Gn 1,28).
mamam. Trata-se de um grito que, em 8,10 Os humildes reconhecem sua própria
princípio, somente exige a satisfação das dignidade como fruto da graça divina.
necessidades básicas. É um grito que difi‑ Compreendem o senhorio do Senhor, em
cilmente pode ser ignorado, colocando o vez de perguntar: “Quem será um senhor
adulto diante da decisão de ajudar ou não para nós?” (Sl 12,5).
quem é absolutamente indefeso (Lm 2,11s;
23
Sl 9 (9A)
Salmo 9 (9A)
9,2-3 No início, o orante destaca sua alegria o Senhor enfrenta os opositores exterio‑
pelo Deus de Israel. Promete enfatizar as res, as nações e quem ataca o indivíduo de
maravilhas e o nome do Senhor, o que leva o forma perversa ou impiedosa (v. 6). Não há
ouvinte-leitor a pensar na criação e na his‑ inimigo que Deus não consiga dobrar, ain‑
tória vivida pelo povo de Deus. da que sejam cidades e capitais de impérios
9,4 A esperança que motiva o louvor de quem (v. 7).
reza aqui está ligada a uma futura supera‑ 9,8-10 A meditação do eterno reinado do
ção de determinados opositores, operada Senhor e da permanente prevalência de
pela presença de Deus. sua justiça e retidão permite concluir que
9,5-7 O orante relata experiências feitas no a pessoa esmagada e aflita encontra nesse
passado. Ele obteve justiça em um conflito Deus a proteção de que necessita.
jurídico (v. 5). Enfim, a história revela que
24
Sl 9 (9A)
9,11 O orante faz parte de um grupo de in‑ Deus se mostrou sensível ao grito dos opri‑
divíduos que se consideram conhecedores midos (Ex 2,23-25).
do nome do Senhor. Trata-se de pessoas 9,14-15 O orante pede ao Senhor que o pro‑
ameaçadas em sua sobrevivência, necessi‑ teja, afastando-o dos portões da morte e
tadas de justiça. Por isso, buscam a Deus. aproximando-o dos portões de Jerusalém.
A oração aqui presente reflete, portanto, a 9,16-17 Na retrospectiva, é descrita a sorte
experiência de vida e a espiritualidade dos das nações que planejaram o infortúnio
pobres. dos outros. Quem reza aqui verifica a ação
9,12-13 No antigo Israel, o trono do Senhor do juiz divino, visto que o perverso compli‑
está localizado ora no céu, ora em Sião (Sl ca sua vida com seus próprios feitos.
11,4), montanha que hospeda o templo, o 9,18-19 A sorte futura dos perversos e das
palácio e a parte mais antiga da cidade de nações será oposta ao destino que se espera
Jerusalém. Deus é digno de salmos porque para o pobre e os oprimidos. O orante in‑
não se esquece de quem tem seu sangue vio‑ siste na expectativa de os miseráveis serem
lentamente derramado por outros. No pas‑ lembrados por seu Deus.
sado, especialmente no êxodo, esse mesmo
25
Sl 9 (9A)
9,20-21 Com preces genéricas, o orante fi‑ gados pelo Senhor, adotando, dessa forma,
naliza a oração: que as nações e o homem uma postura marcada pelo temor a esse
como ser mortal reconheçam suas limita‑ Deus.
ções, inclusive a necessidade de serem jul‑
26
Sl 10 (9B)
Salmo 10 (9B)
28
Sl 11 (10)
Salmo 11 (10)
Abrigo-me no Senhor.
Como dizeis à minha alma:
“Escapa, como um pássaro, rumo ao monte!”?
11,1 No passado, o orante pôs sua confiança investigar os crimes contra a humanidade
no Senhor. Agora estranha o discurso da‑ e que sinta repugnância por quem ama a
queles que insistem em sua eventual fuga, violência.
em vez de contarem com a justiça divina. 11,6 O orante formula sua prece desejando
11,2-3 Quem reza aqui lamenta que os de que o destino dos violentos seja como o
coração reto sejam caçados por perversos. da cidade de Sodoma, cujo povo também
Ódio, cobiça e violência atingem quem tinha insistido na violência absurda (Gn
tenta cumprir a ordem divina. Com isso, 19,24). Pressupõe que o Criador seja capaz
os fundamentos do cosmo e da convivên‑ de realizar, do céu, seu julgamento (Sl 18,8-
cia social são abalados (Sl 82,5), impossi‑ 16).
bilitando a sobrevivência da pessoa justa. 11,7 A oração termina com uma manifes‑
11,4-5 De forma hínica, o orante descreve a tação de confiança. O Senhor é amante da
atuação do Senhor como juiz, imaginan‑ justiça e, como tal, opta pelo reto, quando
do que este último se assente em seu trono. este é vítima de violência, pois ambos se ob‑
Acredita que o rei cósmico está disposto a servam mutuamente (v. 4c).
29
Sl 12 (11)
Salmo 12 (11)
2 Salva, Senhor,
porque o leal chegou ao fim.
De fato, os fiéis desapareceram do meio dos filhos do ser humano.
3 Dizem falsidade uns aos outros.
Têm lábios de lisonjarias,
falam com coração duplo.
12,8-9 Quem reza aqui encerra sua oração vina dos que são atingidos pela vileza dos
manifestando confiança na proteção di‑ perversos.
31
Sl 13 (12)
Salmo 13 (12)
13,1-3 Em uma típica lamentação indi‑ 13,4-5 Na segunda parte de sua lamentação,
vidual, o orante, ao invocar o nome do quem reza aqui formula uma prece apre‑
Senhor, apresenta sua miséria, pois já não sentando as razões de seu pedido. Aparen‑
experimenta mais a presença benéfica de temente, aproxima-se da morte, já que esta
seu Deus. Chega a duvidar do sentido po‑ última confirmaria o triunfo dos oposito‑
sitivo de sua existência, atormentando seu res.
próprio raciocínio. As perguntas que, por 13,6 O orante encerra sua lamentação com
um lado, parecem questionar criticamente uma confissão de confiança no Senhor,
a atuação de Deus, por outro, expressam a acompanhada pela promessa de louvor,
esperança de que o Senhor ponha um fim a porque já experimentou a lealdade de
essa situação. Deus, o que é sempre motivo de alegria e
louvor.
32
Sl 14 (13)
Salmo 14 (13)
14,1-5 O orante inicialmente caracteriza o que são oprimidos por eles. E isso irá assus‑
insensato, imaginando que a ausência de tá-los (vv. 4-5).
Deus na vida dele provoque um compor‑ 14,6 Quem reza aqui afirma que o Senhor é
tamento destrutivo, incapacitando-o de um abrigo para quem está sendo oprimido.
realizar o bem (v. 1). Em seguida, essa refle‑ Parece ser uma ironia, mas Deus não existe
xão é estendida à humanidade. Parece ha‑ para o orante da mesma forma que existe
ver um desinteresse generalizado quanto para quem, de modo insensato, insiste na
ao conhecimento de Deus, levando todos maldade.
a insistir nos malfeitos (vv. 2-3). Contudo, 14,7 Finalmente, o orante imagina que a sal‑
existem vítimas, as quais, ao serem injus‑ vação de Israel se realizará no momento em
tiçadas, insistem na justiça. Enfim, em‑ que o Senhor inverter o destino do povo so‑
bora os insensatos não queiram saber da frido. Percebe-se que se trata de uma oração
presença de Deus, irão descobrir a atuação formulada por quem faz parte dos oprimi‑
poderosa do Senhor justamente na vida dos dos ou, no mínimo, deseja-lhes uma sorte
diferente.
33
Sl 15 (14)
Salmo 15 (14)
1 Salmo de Davi.
15,1 O orante pergunta, no início de sua ora‑ 15,3 O orante avança em sua reflexão, dan‑
ção, quem pode estar no monte santo, quer do destaque à ausência de determinados
dizer, em Sião, e, mais exatamente, na ten‑ atos na vida de quem quer se aproximar
da, ou seja, no templo. Davi tinha armado de Deus. Ao optar pelo companheirismo
uma tenda em Jerusalém para instalar nela e pela boa vizinhança, evitou difamação,
a arca (2Sm 6,17). Mais tarde, Salomão cons‑ maldade e escárnio, pois a língua facil‑
truiu, nesse mesmo lugar, a casa do Senhor mente ameaça uma convivência mais soli‑
(2Cr 3,1; 7,11). dária e igualitária.
15,2 Com formulações genéricas, quem reza 15,4ab A convivência marcada pelo modelo
aqui destaca a integridade moral, a prática de comportamento revelado pelo Senhor
da justiça e a autenticidade no pensamento acontece, primeiro, entre os fiéis que te‑
como critérios para um encontro feliz com mem o Senhor. Além disso, é necessário
Deus no santuário. No lugar de qualquer manter certa distância dos que a comuni‑
tipo de pureza ritual, é o comportamento dade solidária não consegue integrar, pois
social da pessoa que promove a permanên‑ eles adotaram modelos de comportamento
cia junto ao Senhor. incompatíveis com o grupo.
34
Sl 15 (14)
15,4c-5b Além da língua, determinado uso 15,5c A oração termina com uma promessa.
do dinheiro destrói a convivência fraterna Ao acolher o modelo de comportamento
indicada por Deus. Por consequência, apro‑ proposto pelo Senhor, o justo pode experi‑
xima-se do Senhor quem faz justiça com mentar a presença de seu Deus no santuário
seus bens materiais e não sacrifica a verdade e, com isso, confiar num futuro sem trope‑
para evitar danos pessoais. Empresta para ços. As portas que dão acesso ao Senhor são
ajudar o necessitado, em vez de lucrar com as portas da justiça (Sl 118,19s). A pureza é
a miséria dele (Ex 22,24-26; Dt 23,20s; Lv ligada ao modelo de comportamento indi‑
25,35-38). E não prejudica a vida dos inocen‑ cado pelo Senhor (2Cr 23,19).
tes, optando pela corrupção mediante a acei‑
tação de suborno (Ex 23,8; Dt 16,19).
35
Sl 16 (15)
Salmo 16 (15)
1 Um epigrama de Davi.
Guarda-me, Deus,
porque em ti me abrigo!
2 Disse ao Senhor:
“Tu és meu Senhor, minha bondade!
Não há nada acima de ti!”
16,1-2 O orante inicia sua oração com uma santos e nobres, o orante pode estar se refe‑
prece e uma confissão (v. 1bc). Pede pro‑ rindo, de forma irônica, a outros deuses ou
teção a Deus, pois nele se abrigou. Ao a pessoas que rendem culto a tais divinda‑
recordar suas próprias palavras, que cor‑ des. Quem reza aqui rejeita sacrifícios de li‑
respondem à fé de Israel (v. 2), realça a in‑ bação, com derramamento de sangue, uma
superabilidade do Senhor, visto que este vez que, na cultura israelita, o sangue é vis‑
último pode ser experimentado como o to como elemento que carrega a vida, já que
maior bem. esta pertence somente ao Senhor. Por isso, é
16,3-4 As palavras de quem reza aqui podem impensável que se derrame sangue no chão.
ser compreendidas de diversas formas. É 16,5-6 O orante faz referência ao processo
possível que as expressões “santos” e “no‑ de divisão das terras entre as famílias que
bres” (v. 3) indiquem a comunidade dos compõem a comunidade. Foi-lhe atribuí‑
fiéis ao Senhor. Nesse caso, o orante esta‑ do um lote agradável, que se tornou uma
ria afirmando que, ao se encontrar com tais herança esplêndida (v. 6). Contudo, ao vol‑
pessoas, experimenta a proteção divina. tar o olhar para seu terreno, quem reza aqui
No entanto, ao observar a continuação do percebe que o Senhor é sua verdadeira dádi‑
discurso (v. 4), percebe-se outra possibili‑ va, capaz de sustentá-lo (v. 5).
dade de compreensão. Falando, pois, de
36
Sl 16 (15)
16,7-8 O orante afirma que o Senhor lhe tem 16,9-11 A presença de Deus provoca alegria,
um plano individual. Além disso, durante sobretudo por permitir que o orante more
a noite, seus rins o lembram da importân‑ com segurança na terra, sem risco de ini‑
cia de acolher o conselho divino, em vista migo ou desastre. A morte está distante
de um futuro bom. Na cultura do antigo porque o Senhor indica à pessoa um itine‑
Israel, os rins representam o sentimento rário de vida. Como os rins (v. 7), também o
da pessoa. Enfim, o orante sabe que, tendo fígado (v. 9) representa o sentimento da pes‑
o Senhor à frente e à direita, não tropeçará. soa, em especial, seu bom humor.
37
Sl 17 (16)
Salmo 17 (16)
1 Oração de Davi.
17,1-2 Com uma prece tríplice, o orante se Nelas, o sol é considerado um deus que, ao
dirige inicialmente ao Senhor como ouvi‑ nascer todas as manhãs, impõe sua justiça.
dor (v. 1). Sem enganação, pretende insistir, 17,3-5 O orante foi examinado por Deus. No
através de sua oração, na justiça. Quem reza entanto, tal exame contribuiu com sua pu‑
aqui necessita urgentemente de justiça. As‑ rificação. Em vez de se impor com sua boca,
sim espera que da face brilhante do Senhor optou pelas palavras dos lábios divinos.
saia seu julgamento (v. 2). Há um parale‑ Soube apoiar-se nas trilhas do Senhor, em
lismo com as culturas vizinhas de Israel. vez de optar pelas veredas dos criminosos.
38
Sl 17 (16)
17,6-12 Ao reiniciar suas preces, o orante derrubá-lo (v. 11), comportando-se como
manifesta mais uma vez sua confiança em um leão (v. 12).
Deus (v. 6). Todavia, sua situação é dramá‑ 17,13-14 Com preces curtas e aceleradas, o
tica. Outros se erguem contra ele. Por isso, orante pede que o Senhor, ao erguer-se, se
busca abrigo no salvador divino (v. 7). Deus oponha ao perverso, que se ergue contra os
há de lhe oferecer a proteção de suas asas, justos (v. 7). Dessa forma, insiste no seguin‑
semelhante a um pássaro, ao sol alado – te contraste: enquanto o inimigo desejoso
imagem comum no Antigo Oriente – ou experimenta um fim precoce, as diversas
aos querubins, sendo estes últimos leões gerações dos conservados por Deus gozam
alados com cabeça humana (v. 8). Enfim, de alimentos abundantes.
existem perversos cobiçosos que já pro‑ 17,15 A oração se encerra com uma confissão
vocaram destruição na vida de quem reza de confiança. Emoldurando todo o Salmo
aqui (v. 9). Trata-se de gente altiva e insen‑ (v. 1), a justiça é apresentada como a verda‑
sível, semelhante a um coração revestido de deira imagem de Deus, pois a religião israe‑
gordura (v. 10; Sl 119,70). Embora já tenham lita não permite nenhuma representação
caminhado com o orante, agora querem material do Senhor (Ex 20,4; Dt 5,8).
39
Sl 18 (17)
Salmo 18 (17)
18,8-16 Quem reza aqui apresenta uma (vv. 10-15). Percebe-se a ação de Deus sem
teofania. Deus aparece e fica irado com os que este se torne diretamente visível. O tí‑
inimigos do fiel. Diversas imagens ilus‑ tulo dado a Deus – quem cavalga sobre um
tram a força e o domínio do Senhor. A querubim (v. 11) – lembra os tronos de reis
terra trêmula e um terremoto dão visibi‑ cananeus e fenícios, ladeados por leões
lidade à presença de Deus (v. 8). Além dis‑ alados com face humana, figuras semidi‑
so, o Senhor aparece como um vulcão em vinas chamadas de querubins.
ação (v. 9) ou no meio de uma tempestade
41
Sl 18 (17)
18,17-20 Ao receber ajuda do alto, o oran‑ do este precisa enfrentar inimizade e ódio
te se assemelha a Moisés quando criança, por parte de seus contemporâneos.
pois, como este, é tirado das águas (Ex 18,21-25 No início e no final desse trecho,
2,10), sendo que as águas abundantes re‑ o orante descreve sua ideia da atuação do
presentam o caos. Aliás, o nome Moisés Senhor (vv. 21.25). No centro, apresenta
provém, em hebraico, do verbo tirar. No seu próprio comportamento (vv. 22-24).
mais, fica claro que a ação libertadora e o Afirma, assim, que a insistência do ho‑
apoio do Senhor se dirigem ao menos re‑ mem na justiça divina traz consigo a re‑
sistente, pois Deus tem apreço pelo justo. compensa por parte de Deus.
Assim, o Senhor defende o íntegro, quan‑
42
Sl 18 (17)
18,26-32 O orante destaca a compatibilida‑ 18,33-35 Deus parece agir duplamente com
de entre Deus e o fiel que insiste na inte‑ o fiel. Primeiro, educa-o para a integridade.
gridade (v. 26s). Reafirma o compromisso Em seguida, equipa-o suficientemente, a
do Senhor com o povo oprimido, acompa‑ fim de que possa se defender, nos conflitos
nhado pela esperança de que o destino dos bélicos, contra seus inimigos.
humilhados e dos opressores orgulhosos 18,36-39 O Senhor combate por seu fiel (Ex
possa ser invertido (vv. 28-30). A história da 14,14). Por isso, este último é totalmente vi‑
revelação do Senhor, mediante sua palavra, torioso contra seus inimigos. Acolhendo o
quer oferecer proteção ao mais necessitado. título da oração (v. 1), com sua referência a
Ao descobrir isso, o humilhado afirma a in‑ Davi, as palavras aqui ditas podem ser com‑
comparabilidade de Deus (vv. 31-32). preendidas como um canto de vitória do rei.
43
Sl 18 (17)
18,40-46 Dois tipos de inimigos estão sendo quem haviam perseguido. Contudo, não
vencidos: os de dentro – pessoas ou grupos se prevê a aniquilação das nações estran‑
interessados num golpe contra o rei (vv. 40- geiras. Há apenas o canto dos Salmos en‑
44a) – e os de fora – povos estrangeiros (v. tre elas, a fim de que conheçam o nome de
44b-46). Mas continua a esperança de que quem realmente tem força para salvar.
os opositores do fiel não possam contar 18,51 O final da oração traz a perspectiva
com a proteção divina, a qual define a vitó‑ messiânica. Quem rezou aqui é identifica‑
ria no meio do conflito. do agora com o rei Davi e com seus suces‑
18,47-50 Em forma de hino, o orante louva sores (v. 1), ou seja, com o messias, o ungido
o Senhor, voltando a realçar as ações sal‑ do Senhor. Ao identificar o messias com
víficas de Deus. Agora os inimigos do fiel Jesus, a releitura do Sl 18 promovida pelos
ao Senhor encontram-se subjugados por cristãos torna-se cristológica.
44
Sl 19 (18)
Salmo 19 (18)
19,8-11 Em forma de hino, o orante destaca 19,12-14 Por mais que reconheça o valor dos
as qualidades da Torá. São realçadas a inte‑ mandamentos do Senhor, quem reza aqui
gridade, a confiabilidade, a retidão, a pu‑ sabe que pode consciente e inconscien‑
reza e a veracidade das tradições jurídicas temente errar. Além disso, está ciente de
do antigo Israel, pois permitem um tipo que pode desviar-se das leis divinas, dan‑
de justiça que é mais desejável do que qual‑ do espaço para a arrogância e a rebeldia, e
quer bem material. Seguindo o ensino con‑ corrompendo quem quer seguir o agir do
tido no Pentateuco, reconhece-se que tais Senhor.
leis são do Senhor. Ao tirar os oprimidos da 19,15 Em sua meditação, o orante descreve
sociedade escravista, o Senhor revelou tam‑ duas ordens impostas pelo Senhor, ambas
bém sua moral, pois os mandamentos de descritas na Torá: a do cosmo e a da convi‑
Deus visam, sobretudo, à proteção da liber‑ vência solidária entre as pessoas que for‑
dade, que é fruto da graça divina. mam o povo de Deus.
46
Sl 20 (19)
Salmo 20 (19)
7 Agora sei:
realmente, o Senhor salva seu ungido.
De seu santuário celeste lhe responde
com as valentias de sua direita salvadora.
21,2 Medita-se sobre o rei e sobre sua relação nas, uma vez que o Senhor o salvou (v. 6).
com o Senhor. Logo no início, o orante des‑ Assim, o rei abençoado por Deus (v. 4a) se
taca que o rei sente alegria porque descobre torna uma fonte de bênçãos ao povo (v. 7a).
a força salvadora de seu Deus. O que lhe ale‑ Mas para isso é preciso que o rei se mante‑
gra não é sua função régia, mas sim a desco‑ nha próximo da presença divina, fascinado
berta do poder divino. por ela (v. 7b).
21,3-7 O orante descreve como o Senhor 21,8 Como os demais fiéis, também o rei
preparou o rei, quando este assumiu o go‑ somente não vacilará se confiar na soli‑
verno. Coroado por Deus (v. 4b), tem seus dariedade do Senhor. O rei, portanto, é o
pedidos atendidos pelo Senhor. Participa exemplo do fiel, e assim era visto pelo israe‑
da vida de Deus, que não tem fim (v. 5). Es‑ lita após o fim da monarquia.
pelha a glória, a majestade e a honra divi‑
48
Sl 21 (20)
21,9-13 Imagens fortes ilustram a ação di‑ o caos e a desordem seja do rei, quem reza
vina, contra a qual se opõem os inimigos (v. aqui faz questão de imaginar essa batalha
9a) que promovem intrigas (v. 12). Enquan‑ como elemento da realeza divina.
to o rei e, com ele, seu povo experimentam 21,14 O final retoma a afirmação inicial de
a bênção junto à face do Senhor (v. 7b), a que a força pertence ao Senhor (vv. 2a.14a).
mesma face divina pode expressar ira (v. 10) Presente desde as origens de Israel, o povo
e provocar a destruição entre os que insis‑ contempla essa força ao olhar para sua his‑
tem no ódio (v. 9b). Por mais que, nas cultu‑ tória. Por isso, a força divina motiva o canto
ras do Antigo Oriente, a tarefa de combater dos salmos.
49
Sl 22 (21)
Salmo 22 (21)
4 No entanto, tu és santo;
és quem se assenta sobre os louvores de Israel.
5 Nossos pais confiaram em ti;
confiaram e os fizeste escapar.
6 Gritaram a ti e se colocaram em segurança;
confiaram em ti e não se envergonharam.
22,2-3 O orante inicia sua lamentação indi‑ 22,7-9 Ao lamentar-se novamente de sua si‑
vidual com uma invocação tríplice: Meu tuação individual (vv. 2-3), quem reza aqui
Deus! (vv. 2a.3a), pois o Deus que se tinha descreve seu estado como perda de digni‑
tornado tão pessoal e próximo de repente dade humana. Além disso, em vez de expe‑
se revela distante, deixando de ser experi‑ rimentar a ajuda dos outros, torna-se alvo
mentado como quem salva. de zombarias. O sarcasmo dos que o menos‑
22,4-6 Adotando linguagem cultual (v. 4), prezam chega a seu auge quando estes pres‑
o orante se lembra da relação positiva de supõem, em seu diálogo com quem sofre e
Deus com seu povo. Na retrospectiva, real‑ na conversa entre si (v. 9), que Deus não tem
ça, em tom de confissão, a experiência his‑ apreço pelo sofredor.
tórica de Israel, segundo a qual Deus não
decepcionou a confiança nele depositada.
50
Sl 22 (21)
22,10-11 Não obstante a conversa dos zom‑ 22,13-19 Quem reza aqui reinicia sua la‑
badores, o orante destaca sua relação ínti‑ mentação individual. Encontra-se cercado
ma com Deus, a qual foi iniciada enquanto e agredido por forças caóticas, represen‑
ainda estava no ventre de sua mãe. Aliás, o tadas pelo touro (v. 13), pelo leão (v. 14) e
gesto de projetar ou arremessar um recém‑ pelos cães (v. 17a). Não há como resistir.
-nascido sobre os joelhos de alguém indica Ao interromper a linguagem metafórica,
a pertença da criança a essa pessoa (Gn 30,3; o sofredor deixa claro que os agressores,
50,23). na realidade, são alguns malfeitores (v.
22,12 Em sua prece central, o orante destaca 17b). Ele imagina, por um instante, que
o contraste que marca sua vida: Deus está Deus esteja por detrás desse processo que
distante (v. 2c), ao passo que a angústia está o aproxima da morte (v. 16c), visto que
próxima. Além disso, a experiência negati‑ seus pertences já estão sendo distribuídos
va feita com as outras pessoas evidenciou (v. 19).
que, além de Deus, não há quem possa au‑
xiliá-lo.
51
Sl 22 (21)
Respondeste-me.
22,20-22b Apesar de crer que Deus, o Senhor sendo que o hino é logo entoado. O orante
de toda a história, o coloca no pó da morte, convida a assembleia (v. 24) e lhe apresenta
o orante se dirige justamente a esse mesmo o motivo do louvor: o Senhor, pois, não
Deus para que lhe garanta, com sua força, a menosprezou quem estava em meio à mi‑
sobrevivência. séria, mas lhe teve apreço (v. 9). Por conse‑
22,22c Não é dito como Deus atendeu às quência, até o louvor tem suas origens na
preces de quem reza aqui. Apenas se afirma ação salvífica de Deus (v. 26). Além disso,
que o Senhor deu sua resposta favorável a espera-se que todos os necessitados pos‑
quem havia afirmado que Deus não res‑ sam comer e saciar-se, para sempre, lou‑
ponde (v. 3b). vando a Deus (v. 27).
22,23-27 A resposta favorável por parte do
Senhor suscita a promessa de louvor (v. 23),
52
Sl 22 (21)
22,28-32 Finalmente, o orante prevê a ex‑ Senhor, cujo governo é marcado por um
tensão do louvor à terra inteira, sendo ele tipo de justiça que insiste na inversão do
assumido por todas as gerações. As nações destino de quem perdeu a dignidade.
haverão de reconhecer o reino universal do
53
Sl 23 (22)
Salmo 23 (22)
1 Salmo de Davi.
23,1a Davi originalmente era pastor de (Sl 8,6; 34,11). Os alimentos básicos estão
gado pequeno (1Sm 16,11). Mais tarde, re‑ disponíveis num ambiente que permite
cebeu a tarefa de pastorear seu povo (Sl também o descanso. Contudo, o caminho
78,71s). Aqui, Davi afirma que o Senhor é rumo a esse bem-estar passa pelas trilhas
seu pastor, destacando que a verdadeira de justiça, a qual corresponde ao nome do
liderança pertence ao Senhor, Deus de Senhor.
Israel. A Davi, por sua vez, cabe a tarefa de 23,4 A perspectiva muda. O orante deixa de
salmodiar. se dirigir a seus ouvintes e se volta, agora,
23,1b-3 No início, o orante se dirige a seus de forma direta, ao Senhor. Em seu dis‑
ouvintes para lhes falar sobre o comporta‑ curso, destaca como experimenta o pasto‑
mento do Senhor. Contudo, supera a ima‑ reio do Senhor quando sua sobrevivência
gem do pastor divino que visa apenas ao está ameaçada. A escuridão lembra situa‑
coletivo, ao rebanho, ou seja, ao povo (Is ções marcadas pela presença de um regi‑
40,11; Jr 31,10; Ez 34,11; Sl 80,2). Quem reza me opressor (Is 9,1.3), pelo aprisionamento
aqui descreve o cuidado do pastor para e pela miséria (Sl 107,10), assim como pela
com um só animal (Gn 48,15; Ez 34,16). própria morte (Jó 10,21; 38,17). Contudo, o
No antigo Israel, o trabalho do pastor era bom pastor lhe oferece conforto, defenden‑
exigente e perigoso (Gn 31,38-40). Aqui se do-o através do uso de dois instrumentos:
imagina um pastor de gado pequeno, que o bastão – uma clave mais curta, resistente
anda com seu rebanho à procura de verdes e pesada, formando, no lado oposto à em‑
pastagens e de água em lugares de repouso. punhadura, algo semelhante a uma maça,
As trilhas lembram os caminhos estreitos a fim de servir como arma contra um ani‑
na região montanhosa. Todavia, o orante, mal selvagem – e o bordão ou cajado – mais
ao se identificar com um só animal, expe‑ comprido, útil para que o pastor se apoie
rimenta a atuação favorável do bom pastor. nele, afaste um arbusto ou ofereça algum
Afirma que está livre de qualquer carên‑ apoio a um animal que precisa superar um
cia, necessidade ou falta de bens materiais desnível.
54
Sl 23 (22)
23,5 O orante continua a falar diretamente sendo este convidado a participar da abun‑
ao Senhor. Contudo, a imagem muda. dância dos bens do anfitrião.
Deus é descrito agora como um anfitrião 23,6 Como no início de sua oração (vv.
que acolhe quem está sendo hostiliza‑ 1b-3), o orante discursa mais uma vez sobre
do (Gn 19,1-29; Js 2,1-21) e que lhe oferece o Senhor. Aliás, a presença do nome de Deus
uma refeição no ambiente sob sua prote‑ emoldura o poema (vv. 1b.6b). A experiên‑
ção (Gn 18,1-15). Outros dois gestos desta‑ cia da hospitalidade do anfitrião divino faz
cam a hospitalidade amorosa do anfitrião. com que a oposição enfrentada pelo orante
Em primeiro lugar, o Senhor unge a ca‑ (v. 5) ceda lugar ao conhecimento da bene‑
beça do hóspede com perfume/óleo (Am volência e da solidariedade do anfitrião por
6,6; Ecl 9,8; Sl 92,11; 133,2; Lc 7,46). No excelência, haja vista já ter experimentado
Antigo Oriente, os perfumes eram produ‑ a justiça divina (v. 3). Mais ainda: quem reza
zidos tendo como base um líquido gordu‑ aqui imagina poder repetir, toda vez que
roso extraído de vegetais. Num segundo voltar ao templo, a experiência do pastoreio
momento, a taça do hóspede transborda, e da hospitalidade do Senhor.
55
Sl 24 (23)
Salmo 24 (23)
1 De Davi. Um salmo.
24,1b-2 Quem reza aqui inicia sua oração Sl 15,1). A primeira resposta insiste, de for‑
com uma declaração de propriedade. A ter‑ ma genérica, no comportamento prático,
ra e seus moradores pertencem ao Senhor. simbolizado pelas palmas das mãos, e no
O Criador não só cria, mas também con‑ caráter ou mentalidade da pessoa, repre‑
serva o que criou. Após ter vencido o caos sentados pelo coração (v. 4a). A segunda
representado pelos mares e pelas corrente‑ reposta destaca a ausência de determina‑
zas, o Deus de Israel mantém a terra insta‑ das ações no passado (v. 4bc), sendo que a
lada, de forma constante, sobre tais forças. expressão “vazio” inclui a ideia de outros
A estabilidade do mundo é fruto da ação deuses, avaliados como um nada (v. 4bc).
contínua do Senhor como Criador. Finalmente, espera-se que tais atitudes por
24,3-5 Na segunda parte de sua oração, parte da pessoa possam contribuir com a
quem reza aqui levanta uma dupla pergun‑ bênção e a justiça salvadora do Senhor (v. 5).
ta sobre as condições a serem cumpridas 24,6 O orante indica agora o grupo dos que
por quem quiser subir ao templo e parti‑ se esforçam por encontrar o Senhor, apre‑
cipar, em pé, do culto celebrado nesse es‑ sentando tais pessoas a seus ouvintes como
paço habitado pela santidade do Senhor, aquelas que realmente estão interessadas
portanto, um lugar santo e santuário (v. 3; em Jacó, ou seja, no povo de Israel.
56
Sl 24 (23)
24,7-10 Quem reza aqui se dirige agora aos combate por seu povo (Ex 14,14). Ao confiar
portões antigos do templo, a fim de que na força divina, baseada nos exércitos celes‑
deem passagem ao rei, que é o próprio tes, Israel pode ter sua subsistência garan‑
Senhor, Deus de Israel. A glória desse Deus tida. O povo de Deus, portanto, mantém-se
deve voltar a preencher o santuário, fazen‑ não por força própria mas sim pelo apoio
do-se presente entre os fiéis que ali estão divino.
(Is 6,1-4). O Senhor é lembrado como quem
57
Sl 25 (24)
Salmo 25 (24)
1 De Davi.
25,1b-3 O orante inicialmente destaca sua rebeldia. Afinal, desde a juventude, ou seja,
confiança no Senhor. Contudo, tal refú‑ desde que existe a possibilidade de racioci‑
gio ocorre em meio a conflitos. Há inimi‑ nar e chegar a uma decisão própria, a pes‑
gos que querem triunfar sobre quem reza soa pode optar pelo mal.
aqui. No entanto, a partir de sua experiên‑ 25,8-10 A bondade e a retidão do Senhor
cia de vida, o orante pensa naqueles que, consistem justamente em sua disponibi‑
como ele, têm no Senhor o motivo de sua lidade de instruir o homem. Tal ensino
esperança, realçando novamente que, a tal dirige-se de um modo especial aos oprimi‑
grupo, se opõem os traidores, pessoas que dos, dos quais o orante parece fazer parte. É
resistem à ordem prevista por Deus para o dessa forma que os curvados e humilhados
mundo. Essa ordem se torna visível na cria‑ podem aprender como é possível caminhar
ção e foi revelada pelo Senhor a seu povo no rumo à liberdade e como construir uma so‑
decorrer de sua história. ciedade alternativa e justa, sem insistir em
25,4-7 Quem reza aqui pede para se tornar um estruturas opressivas. Ao preservar os esta‑
aprendiz nos caminhos do Senhor, o qual tutos do Senhor e, consequentemente, ter
é compaixão, fidelidade, lealdade, graça sua dignidade respeitada e sua sobrevivên‑
e bondade (Ex 34,6-9). O orante encontra cia garantida, saberão que seu Deus lhes é,
no Senhor a verdade capaz de superar uma de fato, fiel.
situação marcada pela presença de pecado e
58
Sl 25 (24)
25,11 O orante roga ao Senhor por perdão. a Deus passa pela acolhida do ensino do
Pelo contexto imediato, a culpa deve con‑ Senhor (v. 12), visto que tal ensino permite
sistir na oposição ao ensino do Senhor, o uma vida em segurança (vv. 13a.15), os bens
qual auxilia na libertação dos oprimidos. materiais necessários para uma sobrevi‑
25,12-15 Após ter refletido sobre o homem vência digna (v. 13b) e, sobretudo, a comu‑
como pecador, o orante descreve a voca‑ nhão com o Senhor (v. 14).
ção humana positiva. O respeito ou temor
59
Sl 25 (24)
1 De Davi.
Senhor, julga-me,
porque caminhei em minha integridade!
Confio no Senhor,
não titubearei.
2 Examina-me e prova-me!
Depura meus rins e meu coração,
3 porque tua lealdade está diante de meus olhos!
Caminhei, pois, em tua verdade.
26,1b-3 O orante se apresenta como um jus‑ 26,4-7 O acolhimento do projeto de Deus in‑
to. Confiou no Senhor e acolheu a ordem di‑ clui afastar-se dos que insistem na maldade
vina prevista para o mundo, a qual visa ao (vv. 4-5). O amor ao altar e à casa do Senhor
serviço e à preservação da criação (Gn 2,15), (v. 8), lugar que supostamente reúne os jus‑
assim como a uma convivência amorosa en‑ tos, provoca, em contrapartida, a aversão
tre as pessoas (Lv 19,18). Todavia, quem co‑ às reuniões dos perversos, por mais que
labora com a verdade encontrada em Deus estes últimos estejam assentados de forma
espera que ela prevaleça na vida cotidiana. poderosa. O justo, porém, prefere manter‑
Por isso, pede que o Senhor o julgue, ou -se de pé no templo (Sl 24,3). Enfim, quem
seja, que Deus lhe faça justiça, evitando seu reza aqui sabe que é possível insistir na ino‑
fracasso total. Em contrapartida, o orante cência, sendo ela resultado das maravilhas
está consciente da necessidade de que seus operadas pelo Senhor. Por isso, Deus recebe
sentimentos, representados pelos rins, e a ação de graças proferida pelo fiel que age
seu raciocínio, simbolizado pelo coração, assim.
sejam aperfeiçoados por Deus.
61
Sl 26 (25)
26,8-10 Ecoando uma forte convicção da re‑ pode ser pensada como fruto da misericór‑
ligião do antigo Israel, o justo afirma que dia divina.
o futuro não pertence aos violentos e cor 26,12 O fato de poder ser uma pessoa reta
ruptos. Na confiança de que Deus se opõe a e de experimentar a redenção no meio
eles, o orante não quer ser juntado aos peca‑ de uma sociedade que é influenciada por
dores (Gn 18,23-33). quem insiste na maldade é motivo de lou‑
26,11 O orante insiste em sua integridade vor na reunião do fiéis.
(v. 1) e pede sua redenção, a qual somente
62
Sl 27 (26)
Salmo 27 (26)
1 De Davi.
27,1-3 O orante apresenta, de modo cora‑ 27,4-6 O templo se torna um refúgio ex‑
joso, sua confiança na vitória sobre to‑ traordinário para o orante. Nele pode des‑
dos aqueles que lhe fazem oposição, por cobrir o que é agradável ao Senhor, refletir
mais que insistam na maldade e o ata‑ (Pr 20,25) e sentir-se seguro diante de seus
quem. Concentrado no Senhor como seu perseguidores, a fim de poder voltar a er‑
defensor, ele não tem motivo para temer guer sua cabeça. É essa experiência pessoal
ninguém. que leva o orante a participar da liturgia e a
dar seu testemunho.
63
Sl 27 (26)
27,7-13 Após ter falado aos ouvintes sobre contar com a ajuda de pai e mãe, talvez por
a atuação salvadora do Senhor (vv. 1-6), o terem morrido (v. 10a). Resta, como única
orante dirige-se diretamente a seu Deus solução, na terra dos vivos, a prevalência
(vv. 7-12, exceto os versículos 10b.13). Pro‑ da bondade do Senhor (v. 13). Contudo, o
cura novamente a presença auxiliadora orante não imagina a misericórdia divina
dele, seguindo o mandamento que sabe como algo automático (v. 7b), pois clama
dizer junto a Deus (v. 8ab; Am 5,4). Sur‑ ao Senhor diante da possibilidade de ex‑
ge, mais uma vez, a figura de quem es‑ perimentar a ira dele (vv. 7a.9b).
preita o justo e faz uma acusação falsa, a 27,14 No final, quem reza aqui dá um con‑
qual ocorre, sobretudo, no contexto foren‑ selho a seu ouvinte, de acordo com sua
se (Ex 20,16; 23,7; Dt 19,15-20). Há, ainda, experiência de vida: ser forte através da es‑
um agravante: quem reza aqui nem pode perança no Senhor.
64
Sl 28 (27)
Salmo 28 (27)
1 De Davi.
28,1-2 Quem apresenta suas súplicas nessa o princípio da justiça retributiva (Sl 125,
oração parece estar no templo, pois men‑ 4-5). Enfim, a paz social e até a sobrevivên‑
ciona a câmara no lugar mais restrito da cia física da pessoa podem depender, de for‑
construção do santuário, a qual também é ma dramática, da ação justa de Deus diante
chamada de Santo dos Santos. Trata-se do de quem insiste na maldade.
lugar mais sagrado, que abriga a Arca da 28,5 Existe maldade tanto no pensamento
Aliança (1Rs 8,6). como nas obras, ou seja, na prática adota‑
28,3-4 Continuam as preces dirigidas ao da pelo perverso (vv. 3c.4ab). Para o orante
Senhor. Contudo, fica claro que são os mal‑ – que a partir de agora se dirige a seus ou‑
feitores perversos que afligem o orante. vintes –, as origens da malfeitoria se encon‑
Afinal, o exercício da maldade pode pro‑ tram numa postura marcada pela falta de
vocar uma morte prematura, e esta pode atenção a tudo aquilo que o Senhor revela,
até atingir o fiel (v. 3a). Esse é o motivo da seja na criação, seja na história que seu povo
prece insistente por uma ação divina, atra‑ viveu.
vés da qual o Senhor deve fazer funcionar
65
Sl 28 (27)
28,6-7 Há um avanço. O orante relata a sal‑ força para os outros, em especial para o rei
vação experimentada, sem que se descreva ungido por Deus. Quem reza conta com
detalhe algum da desconstrução dos per‑ a possibilidade de o Senhor, sempre de
versos. Insiste, porém, na força do Senhor, novo, restaurar o povo e quem o governa.
o qual está disposto a proteger quem pre‑ 28,9 Seguindo sua confissão de fé, o orante
cisa de seu auxílio. É essa experiência de formula uma prece final, deixando claro
vida que o orante quer celebrar, formulan‑ que o povo depende do pastoreio constante
do seu agradecimento. do Senhor.
28,8 A experiência de vida do orante o mo‑
tiva a confessar o Senhor como quem é a
66
Sl 29 (28)
Salmo 29 (28)
1 Salmo de Davi.
29,1-2 Quem reza aqui formula uma ordem 29,5-9b Descreve-se o vigor da voz do
inicial, dirigindo-se ao exército celeste (Sl Senhor. Ela atinge duas árvores cujas di‑
82,1; 89,7-8; Jó 1,6). Nas culturas vizinhas mensões impressionam o israelita: o cedro
do antigo Israel, acredita-se num panteão, (v. 5), por sua altura, e o carvalho (v. 9), por
com um conjunto de deuses, em geral hie‑ sua espessura. Além disso, o orante atribui
rarquicamente organizados. Os membros à voz divina uma força capaz de provocar
da assembleia divina têm a tarefa de apre‑ terremotos (vv. 6.8), seja no Líbano, no Sa‑
sentar suas honras ao rei celeste, manifes‑ rion – outro nome para o monte Hermon,
tando a majestade do deus mais alto. De o qual faz parte da cordilheira do Anti-Lí‑
certa forma, a religião de Israel participa bano (Dt 3,9) –, seja continuando rumo ao
desse imaginário, adaptando-o, porém, à norte, em Cades, cidade às margens do rio
sua fé no Senhor. Orontes. No centro da estrutura concêntri‑
29,3-4 A voz do Senhor é comparada ao tro‑ ca, a qual apresenta uma teofania, a voz do
vão, cuja imagem sublinha a força poderosa Senhor é associada aos relâmpagos, descri‑
e a majestade do Deus de Israel. As águas tos como chamas de fogo (v. 7).
abundantes representam o caos, mas o
Senhor está acima delas.
67
Sl 29 (28)
29,9c Pelo contexto literário (vv. 1-2), trata‑ Portanto, o dilúvio mencionado aqui é o
-se do palácio celeste em que os filhos de oceano celeste. A imagem do Senhor assen‑
Deus glorificam agora o Senhor. Contudo, tado sobre o dilúvio indica o domínio abso‑
na cultura do antigo Israel, o templo ter‑ luto de Deus sobre as forças que o homem
restre participa da realidade celeste (v. 11). imagina como caóticas e indomáveis. O
29,10-11 Na cosmovisão israelita, existem orante espera que o povo seja ajudado pela
as águas acima do firmamento (Gn 1,6-7). força ilimitada do Senhor.
68
Sl 30 (29)
Salmo 30 (29)
2 Senhor, exalto-te,
porque, quanto a mim, puxaste-me para cima
e não alegraste meus inimigos.
30,1-2 O orante louva a Deus motivado pela 30,5-6 O orante convida os demais fiéis a
experiência de ter sido puxado para cima, celebrar a santidade do Senhor (v. 5). Ela é
ou seja, de ter sido salvo pelo Senhor, como descrita por meio de duas antíteses (vv. 6-7).
se puxa um balde do fundo de uma cisterna No Senhor, prevalece o favorecimento, em
(Ex 2,16.19). Elevado e sem precisar aguen‑ vez de a ira destrutiva. Por consequência,
tar a alegria maliciosa dos opositores, pro‑ o choro cede lugar ao júbilo. A irracionali‑
põe-se exaltar o Senhor. dade do sofrimento e da morte é substituí‑
30,3-4 Como o povo do êxodo, quem reza da pelo sentido presente na cura e na vida,
aqui sabe por experiência própria que o sendo estas últimas o resultado da atuação
Senhor escutou seu grito de socorro (Ex salvífica do Senhor.
2,23-24) e o fez subir (Ex 3,8). O orante já se
havia sentido próximo da morte, em meio
aos moribundos, cujo destino é o sheol, o
abismo.
69
Sl 30 (29)
30,7-12 Mais uma vez o orante apresenta (vv. 10-11). Enfim, pôde ver seu destino mu‑
sua experiência de vida. Sentiu-se sosse‑ dado. Em vez de ser visivelmente isolado,
gado e autoconfiante, não acreditando que por meio de uma roupa de pano de saco,
pudesse acontecer-lhe algum mal (v. 7). feita de pelo de cabra, pôde voltar à roda de
Contudo, quando a situação confortável dança e se alegrar (v. 12). Com isso, experi‑
acabou, teve a sensação de que Deus havia‑ mentou que a vida não é fruto da autocon‑
-se afastado (v. 8). Mais ainda: ao ficar apa‑ fiança, mas é mais um dom, um presente.
vorado, não lhe restou outra solução senão 30,13 Uma vez descoberta a origem da vida
gritar por socorro a seu Deus (v. 9). Até ten‑ na graça divina, o louvor e o agradecimento
tou convencer o Senhor de que sua morte constantes ao Senhor começam a ser ób‑
não seria útil, pois, ao ser auxiliado, pode‑ vios.
ria continuar o anúncio da verdade divina
70
Sl 31 (30)
Salmo 31 (30)
31,8-9 De volta ao diálogo direto com Deus sua miséria e transformou seu aperto em
(vv. 2-6), o orante anuncia a manifestação amplidão, apesar dos opositores.
de sua alegria, pois o Senhor foi sensível à
72
Sl 31 (30)
31,10-19 O orante reinicia seu lamento. Sur‑ formula sua prece em direção ao Senhor (v.
ge, com isso, um sofredor que sente por um 18cd) e em direção a quem se opõe, com alti‑
momento certo alívio das dores, mas logo vez, ao justo (v. 19).
em seguida é novamente atingido por elas. 31,20-25 Mais uma vez, o orante destaca a
Faz-se, então, uma descrição do processo experiência já ocorrida da ação benevolen‑
do sofrimento como um determinado es‑ te do Senhor para com quem procura pro‑
tado de espírito marcado pela aflição, irri‑ teção nele (vv. 20.8-9). Da mesma forma,
tação e tormento (vv. 10.11). A sensação de espera que a cabana na cidade fortificada,
ter-se tornado culpado (v. 11c) acompanha ou seja, o templo de Jerusalém, continue a
a lenta desintegração do corpo. Todos, de ser um esconderijo contra as más línguas
forma ostensiva, tratam o sofredor com (vv. 21-22). No final, quem reza aqui resume
desdém (v. 12). Enxergam-no como alguém a atenção positiva do Senhor para com o
já morto (v. 13). Quem sofre experimenta orante, embora este tenha cultivado certo
perseguição (vv. 14.16b). Quem reza aqui, pessimismo (v. 23). Por isso, quem reza con‑
por sua vez, aposta na confiança em Deus vida a comunidade dos fiéis a cultivar seu
(v. 15), pedindo por misericórdia (v. 10a), li‑ amor pelo Senhor, pois este age de um jeito
bertação (v. 16b), iluminação (v. 17a) e salva‑ com os crentes e leais, e de outro com os que
ção (v. 17b). E isso precisa ter consequências se deixam conduzir por sua altivez.
para quem aumenta, de forma perversa,
os tormentos do sofredor. Assim, o orante
73
Sl 32 (31)
Salmo 32 (31)
32,1-2 Ao se dirigir ao ser humano em geral, Ao apresentar sua situação ao Senhor, con‑
o orante introduz o tema do perdão. Há fe‑ seguiu descobrir que este oferece perdão
licidade quando a rebeldia do homem é su‑ e, portanto, a superação do sentimento de
portada (v. 1b), quando o pecado da pessoa é culpa (v. 5d), possibilitando a cura de de‑
apagado (v. 1c) e quando a culpa não é mais terminados males psicossomáticos. A con‑
levada em conta (v. 2a). Contudo, a expe‑ fissão do pecado provavelmente foi um ato
riência da graça do perdão visa a um novo público, no templo, seguido pelo anúncio
estado de espírito, marcado pela ausência do perdão divino (2Sm 12,13; Jó 31,33-34; Pr
da mentira (v. 2b). 28,13).
32,3-5 O orante relata sua experiência de 32,6 O foco cai agora sobre o conjunto dos
vida. Seu pecado lhe trouxe a doença, acom‑ fiéis em oração. Como o orante experimen‑
panhada pelo gemido e bramido constante. tou a inversão de seu destino ao dialogar
Sua vitalidade acabou. Quem reza aqui com Deus, todos devem experimentar a
imagina tal processo como resultado da proteção divina diante das forças caóticas
ação divina. Felizmente, porém, o orante da natureza, capazes de ameaçar o homem
descobriu também que não adianta querer em sua sobrevivência.
ocultar o pecado mantendo-se mudo (v. 3).
74
Sl 32 (31)
32,7-8 De volta à experiência de vida do 32,9-10 Mais uma vez, são focados os de‑
orante, este confessa agora a ação protetora mais fiéis, que devem aprender com o
e preservadora do Senhor (v. 7ab), a qual entendimento exemplar do orante. A in‑
se torna também motivo de alegria na co‑ sistência na perversidade provoca dores,
munidade (v. 7c). Segue um oráculo de sal‑ causadas pelos próprios delitos e pelo sen‑
vação, provindo da boca divina (v. 8). Este timento de culpa. Em contrapartida, a
é provavelmente anunciado em meio ao confiança no Senhor e em seu perdão leva
culto por quem tem a função profética de a pessoa a experimentar a graça, ou seja, a
anunciar a palavra de Deus, a qual insiste fidelidade que Deus tem por sua criatura.
no caminho bom. O futuro do pecador de‑ 32,11 O tríplice apelo à comunidade subli‑
pende de seu acolhimento da instrução di‑ nha a relação entre a alegria e uma retidão
vina. marcada pela insistência na justiça.
75
Sl 33 (32)
Salmo 33 (32)
33,1-3 O hino começa com uma interpelação 33,6-12 O orante contempla agora a cria‑
para que justos e retos entoem um canto ção como fruto da palavra do Senhor (v. 4a).
novo, com instrumentos musicais, a fim de Destaca os céus e o exército celeste (v. 6), as
expressar seu agradecimento ao Senhor. A águas do mar terrestre e o oceano subterrâ‑
novidade do canto é fruto da relação reno‑ neo, representantes das forças caóticas (v. 7),
vada com Deus. assim como a terra com seus moradores (v.
33,4-5 São realçadas características impor‑ 8). Como isso é o resultado do que o Senhor
tantes do Senhor. O amor de Deus dirige‑ disse (v. 9), pressupõe-se que a criação espe‑
-se à justiça, definida no direito do antigo lhe a ordem divina e comunique a palavra de
Israel, sobretudo no Pentateuco. Tais leis, Deus à humanidade. Toda a humanidade
apresentadas em forma de mandamento, deveria reconhecer o poder do Senhor. O
são a palavra reta do Senhor. Ele mesmo modo de o Senhor agir com as nações torna‑
atua segundo tal palavra, mantendo-se leal -se outra oportunidade de descobrir a sobe‑
aos justos e fazendo com que sua graça e fi‑ rania desse Deus (vv. 10-12). Não existe povo
delidade ocupe todos os espaços. que possa resistir aos planos divinos e, com
isso, a seu povo eleito.
76
Sl 33 (32)
33,13-19 Por ter criado o coração humano, famintos, os quais, mesmo aproximando‑
órgão que na cultura do antigo Israel repre‑ -se da morte, mantêm sua esperança no
senta sobretudo o raciocínio e a reflexão, Senhor (vv. 18-19).
o Senhor entende o que motiva as práticas 33,20-22 Após o apelo inicial ao louvor, di‑
das pessoas. Ao acompanhar a humani‑ rigido à comunidade dos justos (vv. 1-3), e
dade do alto, Deus percebe que o homem e, a ampla descrição de certas características
sobretudo, os governantes preferem acre‑ do Senhor no centro da oração (vv. 4-19), o
ditar no esforço militar, ou seja, em tropas hino termina com dois elementos: o gru‑
numerosas (v. 16a), em soldados valentes (v. po que reza declara, em primeiro lugar,
16b) ou no cavalo (v. 17). No entanto, a opção como depositou sua confiança em Deus
de Deus contradiz essa lógica. O olho prote‑ (vv. 20-21); em seguida, tal grupo dirige-se
tor do Senhor acompanha, sobretudo, o fra‑ diretamente a Deus, pedindo que o Senhor,
co, em vez de favorecer quem quer ser forte sendo fiel, os agracie (v. 22).
por conta própria. Aqui, o orante pensa nos
77
Sl 34 (33)
Salmo 34 (33)
34,1 O título refere-se a 1Sm 21,11-16, quan‑ riência pessoal de ter sido libertado pelo
do Davi se passa por insensato por ficar Senhor, quando outros provocaram afli‑
com medo de Aquis, rei de Gat. Talvez por ções e humilhação em sua vida (vv. 5-8).
querer ridicularizar Aquis, o autor o chame O orante estende, de forma repetida, sua
aqui de Abimelec (Gn 20). experiência aos demais tementes ao Senhor
34,2-11 O orante anuncia, em primeiro lu‑ (vv. 6.8). Por isso, convida todos a se refugia‑
gar, seu louvor, para que as razões desse rem nesse Deus, o qual, com sua bondade,
engrandecimento do Senhor se tornem pode provocar a superação dos momentos
motivo de alegria para os curvados (vv. marcados pela ausência dos bens necessá‑
2-4). Quem reza aqui pode relatar sua expe‑ rios (vv. 9-11).
78
Sl 34 (33)
34,12-23 Na segunda parte de sua oração opção ética. De um lado, quem reza aqui
(vv. 12-23), o orante apresenta um ensino realça a opção do Senhor pelos injustiça‑
sapiencial, com o objetivo de transmitir o dos, uma vez que ela inclui a oposição di‑
valor do temor ao Senhor (v. 12b). Inicial‑ vina ao malfeitor (vv. 16-19). Do outro, o
mente, destaca-se aqui, através de uma per‑ orante evita o perigo de negar a existência
gunta didática, o que o homem mais deseja: dos sofrimentos. De fato, males atingem
ver o bem e apreciar a vida (v. 13); em segui‑ também os justos. No entanto, para quem
da, são feitas algumas exortações (v. 14s). O insiste na justiça existe a esperança de re‑
respeito ao Senhor se concretiza na opção denção, ao passo que quem opta pela mal‑
pelo bem e na resistência à maldade. Con‑ dade aproxima-se da morte (vv. 20-23).
tudo, dois pressupostos fundamentam tal
79
Sl 35 (34)
Salmo 35 (34)
1 De Davi.
35,1-4 Quem reza aqui provavelmente está e combater contra quem rouba o próximo
sendo atacado. Talvez se trate de uma dis‑ (Ex 14,14.25).
puta jurídica (v. 11) em que a sobrevivência 35,5-6 O orante imagina que o combatente
econômica e social da pessoa se encontra a seu favor agora é um membro do exército
ameaçada pela insistência de alguns na celeste, ou seja, um anjo ou mensageiro do
opressão e no empobrecimento de seus con‑ Senhor (Ex 14,19), alguém capaz de exe‑
terrâneos (v. 10; Sl 43,1; 119,153s). Diante dis‑ cutar a intervenção divina, favorecendo o
so, o orante pede que o Senhor se torne um deslize e o desaparecimento de quem in‑
guerreiro disposto a erguer-se (Nm 10,35) siste na perversidade (Sl 1,4).
80
Sl 35 (34)
35,7-10 O orante destaca, em primeiro lugar, (v. 11). Há cobranças indevidas, ingratidão
que as ações de seus perseguidores ocorrem da parte dos opositores (v. 12), os quais não
sem motivo (v. 7), acreditando que o mal levam em consideração como o orante, no
planejado possa atingir individualmente passado, se mostrou solidário, em especial
cada um de seus próprios causadores (ver com os doentes (vv. 13-14). Juntamente lhe
o singular no versículo 8). Para si mesmo, fizeram oposição, deleitando-se com o mal
porém, quem reza aqui imagina outro des‑ alheio (v. 15). Contudo, o orante considera a
tino, por causa da ação libertadora e sal‑ zombaria e a agressividade como algo pro‑
vadora do Senhor em favor do oprimido e fano ou ímpio (v. 16), imaginando que Deus
pobre (vv. 9-10). Justamente ao impedir que não possa tolerar isso para sempre (v. 17).
o mais forte e quem rouba levem a vitória, o Pelo contrário, do agradecimento e louvor
Senhor revela sua incomparabilidade. dos que foram salvos das atitudes desastro‑
35,11-18 Quem reza aqui enfrenta teste‑ sas dos violentos nascerá o povo forte.
munhas falsas em um processo jurídico
81
Sl 35 (34)
19 Que meus falsos inimigos não se alegrem por minha causa!
Os que sem motivo me odeiam acenam com o olho.
20 Porque não falam de paz,
mas, contra os serenos da terra,
planejam palavras de embustes.
21 Abriram suas bocas largamente contra mim.
Disseram: “Ah! Ah!
Nosso olho viu!”
22 Senhor, viste isso?
Não emudeças!
Senhor, não te afastes de mim!
23 Desperta! Acorda por causa de meu julgamento,
meu Deus e meu Senhor, por causa de minha disputa!
24 Senhor, meu Deus, julga-me conforme tua justiça!
Que não se alegrem por minha causa!
25 Que não digam em seu coração:
“Ah! Esse era nosso desejo!”
Que não digam: “Nós o devoramos!”
35,19-25 O orante continua a descrever a sua justiça, e sim conforme a justiça divina
atuação dos inimigos. Estes, de modo gra‑ (v. 23s).
tuito, insistem no ódio, querendo aniqui‑ 35,26-28 O orante pede o louvor a Deus por
lá-lo inteiramente (vv. 21a.25c). Agem de parte dos que se alegram com a salvação do
forma maliciosa e traiçoeira contra o gru‑ justo, descobrindo nesse acontecimento a
po dos serenos, que estão a favor da paz (v. vontade e a grandeza do Senhor (v. 27). Além
20). Acusam falsamente (v. 21c). Contudo, disso, quem reza aqui promete transformar
quem reza aqui pede, mais uma vez, a ação a justiça divina no objeto de sua meditação
do Senhor. O orante, no contexto forense, diária, adequando silenciosamente toda a
insiste em seus direitos, mas não segundo sua existência a essa proposta de vida (v. 28).
82
Sl 36 (35)
Salmo 36 (35)
36,1-5 O orante ouve em seu coração a voz da Senhor, sendo que tal ordem quer preen‑
rebeldia personificada (v. 2a), a qual insiste cher todos os espaços, do mais alto até o
na perversidade porque não se intimida mais profundo. Pois é dessa forma que Deus
diante de Deus (v. 2b). Faz parte da medi‑ manifesta sua postura salvadora, que se di‑
tação de quem reza aqui sentir-se atraído rige a todos os seres vivos (v. 7). Ao descobrir
pelo pecado (v. 3). Assim, rejeita qualquer a preciosidade da fidelidade de Deus, o ser
instrução sobre o bem (v. 4), planeja o mal e humano busca a proteção divina, como um
caminha para realizá-lo (v. 5). passarinho debaixo das asas da mãe ou,
36,6-10 Quem reza aqui entoa um hino, des‑ segundo a imagem do Antigo Oriente, sob
tacando a fidelidade, que é graça, e a leal‑ o sol alado (v. 8). No final, o salmista olha
dade do Senhor, as quais, apesar da atuação para o templo, a fim de contemplar o anfi‑
dos perversos e da presença do mal, preen‑ trião divino que oferece comida e bebida (v.
chem o cosmo (v. 6). No entanto, a graça 9), procurando a fonte e a luz que favorecem
divina traz consigo a justiça e o direito do a vida (v. 10).
83
Sl 36 (35)
36,11-13 O orante termina sua oração com ça divina será necessária para que os so‑
preces. A fidelidade e a justiça de Deus de‑ berbos, com sua violência, não atinjam o
vem continuar em vista da comunidade justo (v. 12). Todavia, no templo já pode ser
dos que insistem na retidão por causa de antecipadamente declarada a derrota dos
seu conhecimento do Senhor (v. 11). A gra‑ malfeitores (v. 13).
84
Sl 37 (36)
Salmo 37 (36)
1 De Davi.
37,1-2 O orante exorta seu ouvinte aconse‑ uma vez, o orante insiste na confiança em
lhando-o a não se preocupar com quem Deus, o qual garante o surgimento da jus‑
insiste na maldade, pois este, como nova tiça e do direito como a luz e o meio-dia.
planta que ainda não criou raízes profun‑ 37,7 Há duas posturas contrastantes: a do
das, facilmente desaparecerá. Portanto, a irado, que usa de intrigas contra o bem-su‑
insistência na desigualdade não terá futuro. cedido; e a do silencioso, que sabe esperar
37,3-4 A confiança em Deus possibilita a pela atuação do Senhor.
benfeitoria, a permanência na terra e o cul‑ 37,8-9 A posse definitiva da terra será de
tivo da lealdade. Além disso, a convivência quem coloca sua esperança no Senhor;
com o Senhor se torna prazerosa para os por isso, em vez de ficar irritado com este
benfeitores, pois lhes possibilita a realiza‑ último – achando que Deus não se opõe aos
ção de seus próprios desejos sábios. que insistem na maldade –, pode abando‑
37,5-6 Incentiva-se aqui um esforço e um nar a fúria.
movimento em direção ao Senhor. Mais
85
Sl 37 (36)
37,20 Duas metáforas ilustram o desapa‑ 37,23-24 Quando o homem permite que o
recimento rápido dos perversos: eles são Senhor firme seus passos, agrada a Deus.
passageiros como a vegetação abundante Apoiado pelo Senhor, jamais sofrerá der‑
nos campos que some com o calor ou no rota definitiva.
momento da colheita, ou eles se desfazem 37,25-26 Quem reza aqui expressa sua
como a fumaça. experiência de vida, adotando a primeira
37,21-22 Dois tipos de comportamento se pessoa do singular. Testemunha que,
opõem. Enquanto o perverso defrauda e quando se insiste na justiça, não ocorre
engana o próximo, o justo se caracteriza abandono total e, por consequência, misé‑
como quem ajuda de forma bondosa. O ria. Motivado por essa experiência de vida,
orante imagina ser vontade de Deus que os o justo ajuda os mais necessitados de for‑
bens estejam nas mãos de quem sabe agir ma generosa e transmite essa postura à ge‑
justamente com eles, emprestando-os aos ração seguinte.
mais necessitados.
87
Sl 37 (36)
37,27-28c A insistência no bem traz consigo direito do antigo Israel e é avaliada como
a possibilidade de permanecer na terra, expressão máxima da sabedoria. Fazendo
sem ser expulso dela. É o Senhor, porém, dela o centro da reflexão e do raciocínio, o
quem quer garantir a cada israelita um pe‑ homem anda com firmeza.
daço de chão, visto que o mandamento de 37,32-33 Quem insiste na perversidade não
Deus prevê a inviolabilidade dos limites do hesita em arrumar uma emboscada jurí‑
terreno do vizinho (Dt 19,14). Para o oran‑ dica para eliminar quem busca a justiça,
te, o Senhor é não apenas o autor desse di‑ mesmo que seja através de um processo
reito, mas também quem ama (Sl 33,5) e não com falsos testemunhos, pagamento de su‑
abandona o justo. borno ou outra forma de corromper os par‑
37,28d-29 Quem insiste na desigualdade, ticipantes.
na opressão e, portanto, na queda dos po‑ 37,34 Mesmo na situação mais crítica, quan‑
bres precisa ser afastado da comunidade, a do a pessoa é injustiçada sem poder reclamar
fim de que nela prevaleça a vontade divina, seus direitos, é preciso manter a esperança
segundo a qual a posse da terra deve per‑ no Senhor, aguardando a ação divina capaz
tencer aos justos. de inverter o destino de todos. Esse processo
37,30-31 Trata-se da instrução de Deus, ou torna-se visível quando é promovida a trans‑
seja, da Torá (Pentateuco), que contém o ferência da posse da terra.
88
Sl 37 (36)
37,35-36 Por mais que o perverso tenha-se um comportamento perverso não têm fu‑
imposto de forma ampla e violenta, repen‑ turo.
tinamente desaparece. 37,39-40 O Senhor é descrito metaforica‑
37,37-38 Somente a insistência na integri‑ mente como lugar fortificado que oferece
dade e retidão promete a paz. A rebeldia proteção aos justos perseguidos, favore‑
contra a ordem prevista por Deus para o cendo a salvação deles. Afinal, o amor di‑
mundo e, consequentemente, a adoção de vino se dirige aos justos (Sl 146,8).
89
Sl 38 (37)
Salmo 38 (37)
38,1-4 Quem reza aqui está gravemente Afirma que seus delitos e sua ignorância
doente. A dor atinge seu corpo inteiro, carne e em relação à ordem divina lhe trouxeram
osso. Além disso, o orante imagina que a cau‑ o sentimento de culpa, o qual pesa agora
sa de seu sofrimento se encontre numa reação sobre ele, desencadeando o processo de so‑
divina ao pecado cometido por ele, como se o matização.
Senhor quisesse educá-lo agora pelo mal que 38,7-9 Ao descrever sua doença, o orante dá
lhe impõe. No entanto, a força de quem se la‑ a entender que a dor atingiu a psique. Seu
menta aqui ainda é suficientemente grande espírito está quebrado. Também a postu‑
para formular preces, uma vez que estas últi‑ ra de seu corpo revela a dor sentida. Além
mas pressupõem a esperança de que o sofri‑ disso, o sofredor parece realizar um ritual
mento possa ser superado. de luto, ao andar de cabeça baixa e ao ge‑
38,5-6 O doente continua a se indagar so‑ mer semelhante ao rugido de um leão.
bre as prováveis origens de sua situação.
90
Sl 38 (37)
38,10-15 O orante doente não esconde de dual. Ao ficar calado, recusa-se a responder
Deus sua situação lamentável. Pelo contrá‑ às mentiras (vv. 14-15).
rio, apresenta-lhe seu soluço e o que deseja 38,16-21 O conflito aumenta. Há inimi‑
(v. 10), no momento em que está definhan‑ gos fortes, bastante vivos, que não estão
do, percebendo seu fim cada vez mais pró‑ dispostos a tolerar a insistência do oran‑
ximo (v. 11). Não lhe resta a possibilidade te na bondade (v. 20s). Com isso, Deus se
de dirigir-se aos familiares e amigos (v. 12). torna a única esperança para quem sofre.
Os anteriormente próximos já se tornaram Assim, quem reza aqui tenta motivar o
opositores. Querem caçá-lo, promovendo Senhor a agir, apresentando-se, de início,
sua queda através da divulgação de men‑ como quem espera urgentemente por algo
tiras (v. 13). É provável dizerem que o sofri‑ (v. 16). O segundo argumento refere-se
mento de quem reza aqui seja o resultado aos opositores. Não pode ser a vontade de
do comportamento dele. Enfim, eles não Deus que estes se alegrem maliciosamente
têm palavras para consolar o sofredor. Com com a queda do doente (v. 17). Em seguida,
isso, a pessoa doente encontra-se defini‑ o orante revela sua disposição de enfrentar
tivamente isolada. Mesmo assim o orante o sofrimento (v. 18) e de apresentar publi‑
não pretende contradizer esse processo so‑ camente seus próprios erros (v. 19).
cial originado por seu sofrimento indivi‑
91
Sl 38 (37)
38,22-23 Com suas preces finais, o oran‑ ciência de que a salvação somente se torna
te insiste na proximidade do Senhor. Em possível na experiência do amor gratuito
meio ao sofrimento extremo, nasce a cons‑ de Deus.
92
Sl 39 (38)
Salmo 39 (38)
39,1 A palavra “Iditun” se refere a um grupo aumentou sua dor. No final, o coração do
levita de músicos que atua no templo de Je‑ orante o impulsionou a abrir a boca (v. 4c).
rusalém (1Cr 16,41s). 39,5-7 Dirigindo-se diretamente ao Senhor,
39,2-4 Quem reza aqui tentou deter suas pa‑ o orante destaca a transitoriedade da vida.
lavras, evitando ser um tagarela (Pr 10,19; Contempla a brevidade de seus dias (v. 6ab)
11,12s, 13,3; 17,27; 21,23). Propôs-se observar e imagina sua existência como algo ilusório,
seu próprio comportamento (v. 2a), afas‑ como se fosse um sonho. Além disso, ao sen‑
tando-se da prática do mal (Pr 16,17; 21,29). tir a proximidade da morte, descobre o valor
Contudo, o silêncio guardado somente inexistente das riquezas acumuladas (v. 7c).
93
Sl 39 (38)
39,8-12 O orante tem o Senhor como única de que Deus volte a agir, invertendo o des‑
fonte de esperança (v. 8). Por mais que ima‑ tino de quem está chegando ao limite (v. 11).
gine ter provocado seu próprio sofrimento No final, a experiência da transitoriedade é
através de seu comportamento errado, tor‑ ampliada a toda a humanidade (v. 12).
nando-se objeto de zombaria para quem 39,13-14 A prece final do orante insiste na
nega a existência de uma ordem sábia no necessidade de o Senhor acolhê-lo como
mundo, acredita ainda na possibilidade um visitante estrangeiro que depende da
da salvação (v. 9). Enfim, quem reza aqui se hospitalidade de quem o recebe. A insis‑
cala mais uma vez, disposto a aceitar sua si‑ tência de Deus no castigo do homem, pois,
tuação de sofrimento (v. 10). Agora, porém, anularia qualquer tipo de sossego.
o silêncio é acompanhado pela expectativa
94
Sl 40 (39)
Salmo 40 (39)
40,1-5 Quem reza aqui se lembra da drama‑ destino do mais sofrido, erguendo-o da mi‑
ticidade do momento em que ficou preso séria e oferecendo-lhe um novo tipo de fir‑
numa cisterna, atolado na lama fedorenta meza. A imagem da rocha contrasta com a
(v. 3; Jr 38,6). Talvez se trate de uma metá‑ do chão instável no fundo de uma cisterna,
fora, para ilustrar a vida do pobre que está onde há perigo de afogamento. Contudo, a
sendo oprimido (v. 18). No entanto, sen‑ experiência de libertação suscita canções
tindo-se ameaçado em sua sobrevivência, novas, que convidam a confiar também no
depositou sua esperança no Senhor, expe‑ Deus capaz de salvar, em vez de a ir ao en‑
rimentando seu Deus como quem inverte o contro de quem é uma mentira (Am 2,4).
95
Sl 40 (39)
40,6-11 Dirigindo-se agora diretamente ao presente no interior dele (v. 9). Trata-se de
Senhor, o orante se lembra do que Deus já um ensino no qual prevalece a justiça di‑
fez para seu povo e do que ainda fará (v. vina (vv. 10-11). Quem reza aqui quer re‑
6). Como resultado dessa história de re‑ dimensionar a atenção da comunidade,
velação, surgiu uma instrução – em he‑ pois, segundo sua experiência, em vez de
braico, Torá (v. 9) –, a qual existe em forma sacrifício e holocaustos, Deus gosta da fi‑
de um rolo de livro (v. 8). Tal ensino deve delidade ao próximo, a qual coincide com
ser ouvido pelo homem (v. 7), fazendo-se o conhecimento de Deus (Os 6,6).
96
Sl 40 (39)
40,12-18 Quem reza aqui provavelmente pobre, pois está sendo curvado e humi‑
experimenta as consequências negati‑ lhado por outros (v. 18). No entanto, em
vas de seu comportamento criminoso (Dt meio a estes muitos mal-estares, formula
28,15.45). Por ser culpado, não tem mais sua prece. Espera que o Senhor o liberte
coragem de levantar seu olhar (v. 13). Pelo dessa situação, com a necessária pressa (v.
contrário, é perseguido (v. 15). Tornou-se 14), sem se demorar (v. 18).
97
Sl 41 (40)
Salmo 41 (40)
5 Eu disse:
“Senhor, sê misericordioso comigo!
Cura minha alma,
porque pequei contra ti!”
6 Meus inimigos falam mal de mim:
“Quando morrerá e perecerá o nome dele?”
7 E, quando alguém vem para me ver,
seu coração fala falsidade.
Reúne desgraça para si,
sai para o beco e fala!
8 Todos aqueles que me odeiam, juntos cochicham a meu respeito.
Planejam meu mal:
9 “Algo maligno foi derramado sobre ele!
Deitou-se! Não se erguerá de novo!”
10 Até o homem que estava em paz comigo,
em quem confiava, pois comia meu pão,
levantou seu calcanhar contra mim.
41,1-4 O orante felicita a pessoa que é atenta já feitas no passado (v. 4b), quem reza aqui
ao mais necessitado (v. 2a). Aqui, o neces‑ aconselha os ouvintes a desistirem de com‑
sitado é um enfermo (v. 4a) hostilizado por pactuar com os opositores do doente (v. 3c).
inimigos (v. 3c). Prevendo, no entanto, a ação Pois felizes são somente o sofredor que tem
libertadora, protetora e transformadora do seu destino invertido (v. 3b) e quem se mos‑
Senhor (vv. 2b.3a), segundo experiências trou solidário com ele (v. 2a).
98
Sl 41 (40)
42,1-5 Quem reza aqui sente, em meio a seu 42,6 Surge, pela primeira vez, o refrão que
sofrimento, anseio por Deus (v. 2). A apa‑ divide os Salmos 42–43 em um canto for‑
rente ausência divina, porém, aumenta mado por três estrofes (vv. 6.12 e Sl 43,5).
ainda mais a saudade por ele. Lacrime‑ Ao sentir-se abatido, quem reza aqui ima‑
jando, o orante se lamenta esperando que gina ainda poder agradecer a Deus, jus‑
o sofrimento termine, embora não saiba tamente quando puder experimentar a
quando (v. 3b). Em meio à experiência da inversão de sua situação.
impotência, relembra os encontros festi‑
vos no templo (v. 5).
100
Sl 42 (41)
42,7-11 Em meio a seu sofrimento, o oran‑ abundantes do oceano (v. 8). O salmista se
te se lembra do Senhor, embora esteja lon‑ pergunta se Deus não estaria se esquecen‑
ge, no extremo norte, no Hermon, monte do de sua lealdade com quem anda depri‑
onde está uma das nascentes do rio Jordão. mido e está sendo hostilizado pelos outros
O monte Mizar, uma elevação geografica‑ (vv. 10-11). Enfim, o orante sente o desgas‑
mente desconhecida, está em contraste te de seus ossos, os quais simbolizam seu
com Sião, o monte da santidade do Deus atual estado de ruína (Sl 31,11; 32,3; 38,4;
de Israel (Sl 43,3). No mais, quem reza aqui 102,4).
enfrenta o caos, simbolizado pelas águas
101
Sl 43 (42)
Salmo 43 (42)
1 Julga-me, ó Deus,
e disputa minha disputa em meio a uma nação infiel!
Que me faças escapar do homem embusteiro e iníquo!
2 Porque tu és o Deus de minha fortaleza!
Por que me repudiaste?
Por que ando cabisbaixo
com a repressão do inimigo?
3 Envia tua luz e tua verdade!
Que elas me guiem!
Que me façam chegar ao monte de tua santidade
e às tuas moradas!
4 Quero chegar ao altar de Deus,
ao Deus da alegria de meu regozijo.
Com a cítara quero agradecer-te,
ó Deus, meu Deus.
43,1-4 Quem reza aqui é vítima de acusações no templo e a liturgia celebrada nessa oca‑
falsas e repressões por parte de opositores sião tornam-se expressão da solidariedade
que insistem na desigualdade (vv. 1c.2d). de Deus para com quem está sendo injusti‑
Essa situação se transforma em falta de âni‑ çado (vv. 3-4).
mo e depressão (v. 2c), levantando até a dú‑ 43,5 Enquanto o fiel não pode experimentar
vida sobre se Deus não estaria rejeitando o a proximidade e a presença da luz e da ver‑
fiel (v. 2b). O orante insiste na qualidade de dade divinas, continua valendo a insistên‑
Deus como juiz, a fim de que este assuma cia no cultivo da esperança como forma de
a disputa de quem se sente impotente (v. superar o abatimento (Sl 42,6.12).
1ab). Enfim, um novo encontro com Deus
102
Sl 44 (43)
Salmo 44 (43)
44,10-17 O orante relata a dramática expe‑ 12b) e a venda dos capturados como escra‑
riência religiosa de Deus não valorizar vos (v. 13). Além disso, o povo que se propõe
mais seu povo, em especial nos momentos louvar seu Deus (v. 9) é ridicularizado pu‑
de empreitadas militares (v. 10b). O resul‑ blicamente (vv. 14-15), visto que inimigos
tado disso são saques (v. 11b), dispersão (v. lhes tiram a honra (vv. 16-17).
104
Sl 44 (43)
44,18-23 Quem reza aqui insiste na inocên‑ pois ocupa as ruínas dos lugares abando‑
cia do povo. Este não teria se esquecido de nados pelo homem (v. 20). Além disso, o
seu Deus (vv. 18a.21a), mas acolhido de for‑ orante imagina que o povo está sendo vio‑
ma autêntica a aliança (v. 18b), pois o pen‑ lentado exatamente por causa de sua per‑
samento e o comportamento dos fiéis se tença a Deus (v. 23a).
mantiveram próximos a Deus (v. 19), sem 44,24-27 As preces finais insistem na aten‑
buscarem outros deuses (v. 21b). Mesmo as‑ ção de Deus a quem está sendo humilhado
sim o povo experimentou seu Deus como e levado à miséria. Enfim, o sofrimento
quem não lhe dá de forma imediata a vitó‑ perde sua dimensão mais dramática ao
ria. Pelo contrário, espírito abatido, solidão se cultivar a esperança de que, no final, a
e trevas se impõem. Nesse sentido, o cha‑ lealdade de Deus, ou seja, a graça de sua
cal simboliza o lamento, por causa de seus solidariedade para com os oprimidos, irá
uivos, e a exclusão da comunhão humana, prevalecer.
105
Sl 45 (44)
Salmo 45 (44)
1 Para o dirigente. Sobre os lírios. Dos filhos de Coré. Uma percepção. Canto de
amor.
45,1 Os lírios lembram a amada do Cântico 45,4-6 O rei tem a tarefa de defender a ordem
dos Cânticos (Ct 2,1s). O termo “amadas” (Is prevista por Deus. No caso de Israel, isso
5,1), por sua vez, realça ainda mais o fato de significa insistir na verdade, humildade
que se trata de um canto que pretende real‑ e justiça. Somente nesse sentido os outros
çar a força do amor. se encontram subjugados ao rei do povo de
45,2 O orante, após ter atribuído seu dis‑ Deus.
curso às amadas, avalia tal proferimento de 45,7-8b Fala-se aqui provavelmente do rei
apoio ao rei como palavra boa e habilidosa. como quem, em todo o Antigo Oriente,
45,3 A beleza do rei concentra-se, sobretudo, porta um título divino. Sua tarefa consiste
em suas palavras, capazes de promover a em fazer prevalecer a ordem divina na ter‑
graça e a misericórdia, posturas do próprio ra, defendendo a centralidade da justiça
Senhor. Nas culturas do Antigo Oriente, é e sentindo aversão à perversidade. Dessa
Deus quem transmite seus dons ao rei. forma, ele constrói um reino que permite
experimentar a presença de Deus.
106
Sl 45 (44)
45,8c-10 O orante imagina que o rei tenha mente à disposição do rei (Dt 6,4s). Todas
sido ungido por Deus. A bênção divina as outras mulheres reconhecem a posição
se manifesta na alegria e na riqueza que de quem pertence ao rei de Israel, da filha
acompanham o rei. Vestes cheirosas, mú‑ mais rica de Tiro, que traz sua oferta (v. 13;
sica, enfeites de marfim nas paredes e nos Ez 27) até todas as donzelas que a acom‑
móveis do palácio, um harém grande, no panham (v. 15bc). A figura do rei espelha a
qual a favorita está ornada com as joias fei‑ Deus, e a filha de Sião vai ao encontro do
tas do precioso ouro da Arábia, realçam a Senhor e do reino dele.
grandeza desse rei. 45,17-18 No final, o orante formula desejos
45,11-16 Quem reza aqui se dirige à mulher em relação ao rei e/ou à rainha. Se a filha
jovem que é levada ao rei. Esta pode ser uma de Sião for a destinatária dos desejos, ima‑
princesa estrangeira ou a filha de Sião, a ci‑ gina-se, então, Jerusalém como uma mãe
dade de Jerusalém. A noiva deve abandonar com muitos filhos e como um lugar privi‑
seu passado (v. 11b) a fim de estar exclusiva‑ legiado.
107
Sl 46 (45)
Salmo 46 (45)
5 Há uma correnteza;
seus canais alegram a cidade de Deus,
o santuário das moradas do Altíssimo.
6 Deus está em seu meio; nunca vacila.
Deus a auxilia, ao amanhecer.
7 Nações se agitaram, reinos vacilaram;
Soltou sua voz, a terra estremece.
8 O Senhor dos Exércitos está conosco;
o Deus de Jacó é um baluarte para nós. [Pausa]
46,1-4 Quem reza aqui recorda momentos cidade defendida por Deus. Sobretudo
em que o povo pôde experimentar a prote‑ em tempos de sítio, é importante que haja
ção divina, sobretudo ao se refugiar numa água à disposição. No caso de Jerusalém,
cidade fortificada em tempos de invasão existe a fonte de Gion, extramuros. Des‑
militar. Com base nessas experiências de de a época do rei Ezequias (727-698 a.C.),
sobrevivência por causa da presença de um canal escavado na rocha permitia que
Deus, é possível perder o medo de qualquer a água fosse da torrente até o interior da ci‑
outra situação caótica, simbolizada aqui dade (v. 5). Contudo, mais que a água, é a
pelas águas do mar. presença de Deus que se torna decisiva na
46,5-8 Ao mar como símbolo do caos, o resistência aos inimigos.
orante opõe a imagem contrastante da
108
Sl 46 (45)
46,9-12 Na última estrofe, quem reza aqui bélicos. A sobrevivência dos pequenos
se dirige, primeiramente, às diversas na‑ povos, em especial de Israel, é resultado
ções (vv. 9-11). Anuncia que o Senhor, Deus da vontade divina. No final, quem mora
de Israel, porá um fim a todas as guerras na cidade de Deus repete sua afirmação
através da destruição dos instrumentos (vv. 8.12).
109
Sl 47 (46)
Salmo 47 (46)
47,1-6 A humanidade toda, formada pelo tregue sempre de novo, o povo de Deus tem
conjunto dos povos, é convidada a reve‑ primazia sobre as demais nações (v. 5). No
renciar o Deus de Israel (v. 1). Para o oran‑ entanto, a submissão das nações a Israel ja‑
te, pois, o Senhor é, sobretudo, o Altíssimo mais culmina em opressão e exploração (v.
que ocupa, como rei, o lugar mais elevado 4), pelo contrário: as mais diversas etnias
no céu. Os atributos que nos panteões das serão integradas na ordem que o Senhor
culturas vizinhas pertencem ao deus que prevê para o mundo. A diferença consiste
está no topo da hierarquia celeste são trans‑ somente no fato de Israel já saber, como re‑
feridos para o Deus de Israel. Em segundo sultado da experiência do êxodo, que a or‑
lugar, o Senhor é descrito como temível (v. dem divina insiste na construção de uma
2). Ou seja, a dinâmica desse rei em direção sociedade mais igualitária, descentraliza‑
à terra merece respeito, e Israel faz parte da e não hierarquizada, na qual a liberdade
dessa ação divina. Amado e presenteado e a sobrevivência digna de todos se encon‑
pelo Senhor com uma terra que é motivo tram protegidas por quem está acima de
de orgulho e que tem caráter de herança en‑ toda a terra.
110
Sl 47 (46)
2 O Senhor é grande
e muito louvável,
na cidade de nosso Deus,
no monte de sua santidade.
3 Beleza de elevação, contentamento de toda a terra!
O monte Sião é o vértice do norte,
cidadela do rei superior.
4 Deus está em suas mansões;
como baluarte deu-se a conhecer.
48,1-4 O orante atribui inicialmente gran‑ si (v. 5). Parece que estes últimos se assusta‑
deza ao Senhor, a qual torna-se visível na ram com a presença do Senhor (vv. 6-7), o
cidade de Deus (v. 2). Duas impressões dão qual tem força suficiente para destruir até
destaque a esse lugar: a presença da santi‑ uma frota naval, como, por exemplo, os na‑
dade divina e a possibilidade de ali expe‑ vios mercantes dos fenícios que vão até Tár‑
rimentar a proteção oriunda de Deus (vv. sis, na Espanha.
2c.4). Com isso, Sião se torna um sinal de 48,9 A comunidade confirma agora a
esperança para toda a terra (v. 3). impressão de que Deus age constante‑
48,5-8 Olhando para a história, quem reza mente por sua cidade, pois experimenta
aqui destaca a sobrevivência surpreendente o Senhor como quem mantém o lugar de
do povo de Deus, por mais que os reis ini‑ modo firme.
migos tenham formado uma coalizão entre
112
Sl 48 (47)
48,10-12 Surge a verdadeira função da ci‑ chamadas de filhas de Judá. Mais ainda:
dade de Deus. O templo que nela existe parece tratar-se de um modelo de justiça
convida, pois, seus visitantes à meditação capaz de conquistar o mundo inteiro.
da graça ou lealdade do Senhor (v. 10). Esta 48,13-15 Os reis inimigos e os membros
consiste, sobretudo, na justiça divina (v. 11), do próprio povo de Deus são convidados a
a qual se concretiza nos julgamentos do contemplar a cidade sobre o monte Sião (vv.
Senhor, especialmente naqueles que com‑ 13-14), pois Jerusalém, ao se tornar símbolo
põem, em forma de leis casuísticas, o di‑ da firmeza de seu Deus, transmite a mensa‑
reito do antigo Israel. Afinal, é esta visão da gem de que o Senhor quer conduzir todos
justiça, atrelada ao nome de Deus, que cau‑ à vida.
sa alegria em Sião e nas cidades da região,
113
Sl 49 (48)
Salmo 49 (48)
49,1-5 O orante, dirigindo um apelo de escuta 49,6-10 Primeiro cita-se o que os ricos di‑
à humanidade inteira, destaca a transitorie‑ zem (v. 6), para logo depois se descrever os
dade opondo o homem, que é passageiro, autores de tal discurso (v. 7). Trata-se de
a seu ambiente de vida, que é duradouro. pessoas arrogantes e autossuficientes, as
Contudo, apesar da fragilidade do homem, quais consideram que seu comportamento
o leitor-ouvinte é convidado a compreender culposo não pode atingi-los. Acham-se va‑
algo proverbial e enigmático, capaz de tor‑ lentes por causa de seus bens materiais (v.
ná-lo mais sábio e entendido. E não importa 7). Contudo, o orante lhes mostra a reali‑
a posição social, pois se trata de uma verdade dade da morte, que restabelece o princípio
para todos, seja como membros da humani‑ da igualdade. Junto a Deus, a vida não tem
dade, seja como indivíduos. preço (vv. 8-10; Eclo 5,1-8).
114
Sl 49 (48)
49,21 Ao repetir o versículo 13, o refrão traz Apesar de a morte impor o silêncio a todos
uma variação. Além de os bens materiais os seres vivos, o orante cultiva a esperança
não evitarem a transitoriedade do homem, de que Deus redima sua vida (v. 16).
também não transmitem entendimento.
116
Sl 50 (49)
Salmo 50 (49)
1 Um salmo. De Asaf.
50,1a No total, doze Salmos são apresen‑ a um luzeiro celeste (v. 2; Dt 33,2). Fogo (Gn
tados como sendo de Asaf (Sl 50; 73–83), o 15,17; Ex 19,18; 24,17; Dt 4,11s.24; 5,25s; 9,3)
qual está entre os encarregados por Davi e ventania (Na 1,3; Ez 1,4) o antecedem e
de dirigir o canto no templo do Senhor acompanham (v. 3). O chamado do Senhor
(1Cr 6,24). atinge verticalmente todo o cosmo, a fim
50,1b-6 A teofania do Senhor, o Deus por de promover o tão esperado julgamento
excelência, inicia-se com um chamado em relação a seu povo (vv. 3a.4). A intenção
que se dirige à terra inteira, em sua exten‑ parece ser reunir os fiéis para que façam
são horizontal (v. 1). Imaginando o monte uma aliança com o Senhor (v. 5) e experi‑
Sião como lugar de partida, o Senhor apa‑ mentem o anúncio da justiça salvadora de
rece de forma resplandecente, semelhante Deus (v. 6; Ne 10,29s).
117
Sl 50 (49)
50,7-15 Na segunda estrofe, o orante apre‑ vale tanto para o gado grande mais pre‑
senta um discurso de Deus (v. 7). O con‑ cioso, o touro, quanto para o gado peque‑
texto é o culto por meio dos sacrifícios de no mais precioso, o bode (v. 9). Além disso,
animais celebrado no templo de Jerusalém. existe uma relação de reconhecimento
São mencionados inicialmente os sacri‑ entre Deus e todos os demais animais: os
fícios de comunhão. Os participantes co‑ do bosque, os da montanha e os do campo
mem a carne, deixando aos sacerdotes uma (v. 10s). De modo irônico, rejeita-se a ideia
parte dela (Lv 7,34). As partes gordurosas, de que Deus precisa ser alimentado com
por sua vez, são queimadas sobre o altar (Lv a carne e o sangue dos sacrifícios (v. 12s).
3,16). Além disso, são mencionados os ho‑ Pelo contrário: esse tipo de culto faz sen‑
locaustos, ofertas ao Senhor que preveem tido somente se o sacrifício unir as pes‑
a queima total do animal sobre o altar (Lv soas, por exemplo, no momento de uma
6,2-6). Segundo o Salmo, Deus não rejeita refeição, e expressar a gratidão a Deus (v.
totalmente tais sacrifícios (v. 8). Contudo, 14). Além disso, a ação de graças deve sur‑
fica claro também que é impossível oferecer gir, sobretudo, nos momentos em que o
algo a Deus, pois todas as coisas, desde sem‑ povo experimenta a ação salvadora de seu
pre, pertencem ao Criador de tudo. Isso Deus (v. 15).
118
Sl 50 (49)
50,16-23 Na segunda parte de seu discurso, mais disposto a guardar silêncio em vista
Deus fala, inicialmente, de forma indi‑ dos crimes, uma vez que sua paciência está
vidual ao perverso, acusando-o de ser re‑ sendo mal interpretada (v. 21). Finalmente,
ligioso somente da boca para fora (v. 16). o enfoque do discurso de Deus se torna co‑
Essa reflexão se refere à aliança, a qual munitário. Adverte-se que somente não se
não consiste na recitação dos mandamen‑ esquecendo de Deus o povo poderá experi‑
tos de Deus sem a prática efetiva deles. mentar as dimensões libertadoras da ação
Ou seja: em vez de deixar-se corrigir, con‑ divina (v. 22). Essa advertência é seguida
forme o conselho dos sábios (v. 17; Pr 5,12; por uma promessa. Quem adere ao cami‑
12,1), o perverso insiste até na transgressão nho proposto verá a salvação, desde que a
dos mandamentos presentes no Decálogo. aliança entre Deus e seu povo seja acom‑
Furto e adultério (v. 18), assim como o falso panhada pelo povo. Dessa forma, as coisas
testemunho (v. 19s), são favorecidos, trans‑ culminarão numa ação de graças, sendo
formando até os familiares em vítimas (Ex esta o sacrifício realmente capaz de realçar
20,14-16; Dt 5,18-20). Enfim, Deus não está a glória divina (vv. 23.14-15).
119
Sl 51 (50)
Salmo 51 (50)
51,1-2 O título lembra o adultério cometido nentemente (v. 5) e provoca o diálogo com
por Davi e Betsabeia, seguido pela repreen‑ Deus (v. 6). Aliás, o pecado acompanha
são do profeta Natã ao rei (2Sm 11–12). o homem desde seus primeiros momen‑
51,3-11 A súplica inicial (vv. 3-4) realça três tos (v. 7). Não se nasce num mundo mera‑
características de Deus: misericórdia, fide‑ mente bom, mas sempre numa realidade já
lidade e compaixão. Estas contrastam com marcada pela rebeldia do ser humano. Por
o comportamento do homem que se rebe‑ isso, quem reza aqui imagina que Deus se
la contra a ordem prevista por Deus para o interessa pelo homem enquanto este está
mundo, tornando-se culpado e pecador. A consciente de sua propensão ao pecado. A
solução é imaginada como uma limpeza ou sabedoria humana inclui o conhecimento
lavagem, favorecendo a remoção das sujei‑ da culpabilidade (v. 8). No terceiro mo‑
ras existentes. Num segundo momento, a mento, o orante volta a formular suas pre‑
prece por libertação do pecado é seguida ces que visam à libertação do pecado (vv.
por uma confissão de pecados (vv. 5-8). A 9-11). Nesse contexto, a planta do hissopo
confiança na misericórdia de Deus pos‑ simboliza a purificação ritual (Lv 14; Nm
sibilita a reflexão sobre os próprios erros. 19). A brancura, por sua vez, contrasta com
Afinal, o crime, uma vez cometido, é uma o vermelho escuro do sangue derramado
realidade que acompanha a pessoa perma‑ pelo violento (Is 1,18).
120
Sl 51 (50)
51,12-14 Quem reza aqui insiste, sobretu‑ divina, que afasta a pessoa do crime de san‑
do, na renovação de seu coração e espírito gue, querem convidar os demais pecadores
(vv. 12-14; Ez 36,24-28). O coração repre‑ a se voltarem para Deus. Por fim, quem reza
senta o raciocínio do homem: quando critica os sacrifícios de animais, oferecidos
a pessoa ouve a palavra de Deus, torna‑ comumente como resposta à salvação expe‑
-se capaz de compreender a estrutura do rimentada (vv. 18-19). Em seu lugar, propõe
mundo e o sentido da vida. O espírito, por uma postura humana que permite a Deus
sua vez, simboliza a força da vida e a von‑ tornar a pessoa mais humilde e receptiva,
tade. A partir do momento em que o ho‑ esmagando corações e espíritos altivos.
mem acolhe o espírito de Deus, torna-se 51,20-21 Os sacrifícios oferecidos por quem
um ser vivo. O espírito santo de Deus traz tem coração e espírito renovados tornam-se
consigo a nobreza, que se traduz em dis‑ símbolos públicos da prevalência da justiça
posição de auxiliar o próximo. de Deus. Além disso, os sacrifícios cele‑
51,15-19 Com o coração atento e o espírito brados no templo são acompanhados por
firme, o orante quer ensinar aqueles que festivas refeições comunitárias, que têm a
continuam a rebelar-se contra Deus (vv. 15- função de renovar as relações sociais.
17). Seu júbilo e louvor, por causa da justiça
121
Sl 52 (51)
Salmo 52 (51)
52,1-2 O título lembra o momento em que 4). O ideal de amar o bem e odiar o mal (Am
Davi, fugindo do rei Saul, recebeu em Nob 5,15) é invertido de forma perversa (Mq 3,2;
o apoio do sacerdote Aquimelec, sem que Is 5,20); a língua é usada como uma arma
este soubesse da situação do fugitivo (1Sm para insistir em mentira, falsidade e con‑
21,2-10). No entanto, o edomita Doeg, che‑ fusão, em vez de como um instrumento
fe dos pastores de Saul, após constatar a para falar a justiça (vv. 5-6). Contudo, o
presença de Davi em Nob, informou o fato orante imagina que Deus irá se opor com
ao rei Saul (1Sm 22,9-10). força a esse tipo de valente, provocando até
52,3-7 Um herói, identificado como quem sua morte prematura (v. 7).
confia em seu poder econômico (v. 9), é ques‑ 52,8-9 As vítimas, injustiçadas por quem
tionado a respeito de sua postura contradi‑ confia em sua riqueza, reagem com satisfa‑
tória de ver em sua maldade algo louvável. ção ao verem a ação de Deus. O destino de
Ele não leva em conta a solidariedade de quem quer ser forte sem Deus, desistindo
Deus para com os mais fracos (v. 3). No caso, da bondade e da justiça, revela, de forma
trata-se de uma maldade planejada, verbali‑ irônica, como o homem é capaz de se iludir
zada e, finalmente, colocada em prática (v. e de causar o infortúnio para si mesmo.
122
Sl 52 (51)
10 Eu, porém, sou como uma oliveira frondosa na casa de Deus;
confio na lealdade de Deus, para sempre e eternamente.
11 Quero agradecer-te para sempre, porque agiste;
e quero esperar em teu nome, porque és bom diante de teus leais.
123
Sl 53 (52)
Salmo 53 (52)
53,1-5 O orante começa com a descrição da dade mais corrupta (v. 4). Ou seja, a falta de
insensatez de quem pressupõe a ausência fé provoca uma ignorância que favorece a
de Deus. Trata-se de uma pessoa grossei‑ maldade. Com isso, a sobrevivência do povo
ra que falta com a solidariedade (1Sm 25,2- de Deus, formado pelos injustiçados e pelos
42). Tal postura parece ter sido adotada mais sofridos, se encontra ameaçada (v. 5).
por praticamente todos, pois prevalece a 53,6 O orante tem certeza de que os malfei‑
desigualdade e a recusa de fazer o bem. To‑ tores terão de enfrentar a oposição por par‑
dos se tornam destrutivos na convivência te de Deus. Quem devora o povo humilde
com os outros (v. 2). Quem reza aqui des‑ terá seus ossos espalhados (v. 6a-c). Quem
taca a relação entre a atitude de procurar a insiste na corrupção passará vergonha (v.
Deus e a possibilidade de perceber algo (v. 6d).
3), pois toda realidade encontrada e vivida 53,7 No final da oração, fica claro que o jul‑
pelo homem tem a ver com Deus. O orante gamento divino ainda está por acontecer.
também defende a ideia de que a distância Contudo, Sião quer simbolizar a esperança
entre Deus e o homem torna toda a socie‑ pela futura salvação do povo de Deus.
124
Sl 54 (53)
Salmo 54 (53)
54,1-2 O título lembra como os moradores de 54,7 O orante deseja que funcione a justiça
Zif, cidade na região desértica de Judá, qui‑ retributiva, que prevaleça quem insiste no
seram entregar Davi nas mãos de Saul, pois bem. Contudo, tem consciência de que isso
este o estava perseguindo (1Sm 23,14-28). depende da atuação de Deus, pois as forças
54,3-5 O orante enfrenta inimigos (v. 9b), do homem, no que se refere à erradicação
gente estranha e despreocupada com Deus do mal, são bastante limitadas.
(v. 3). Provavelmente enfrentando uma guer‑ 54,8-9 Da promessa de uma oferta futura, a
ra ou um processo no tribunal, pede a Deus qual deve expressar a gratidão pela preva‑
que este lhe faça justiça, promovendo uma lência da bondade, que é a marca principal
sentença que lhe seja favorável (v. 3b). do Senhor (v. 8), o orante, ao ter sua pre‑
54,6 Não há uma solidão total no confli‑ ce atendida, antecipa o resultado da ação
to, pois existe uma comunidade que reza. libertadora de Deus, apresentando esta
Mesmo assim o orante destaca, em espe‑ última como já ocorrida.
cial, o auxílio e o apoio de Deus.
125
Sl 55 (54)
Salmo 55 (54)
55,1-3a Com preces multiplicadas, o orante de quem se sente ameaçado em sua sobre‑
quer atrair a atenção e a reação de Deus. vivência (v. 5).
55,3b-6 Ao descrever sua situação de vida, 55,7-9 Em forma de monólogo, quem reza
o orante realça a inquietude e a confusão aqui imagina ser necessário afastar-se da
sentidas, sobretudo, por precisar enfrentar vida comunitária na cidade (v. 10) e viver
opositores hostis (vv. 3b-4b), os quais que‑ no deserto, onde, em princípio, não há ne‑
rem que ele seja atingido pela maldade do nhum tipo de segurança. O vento e a tem‑
homem, por algo contrário à graça divina pestade simbolizam a aproximação de um
(v. 4cd). Por isso, seu corpo revela os sinais julgamento divino (Ez 13,11.13).
126
Sl 55 (54)
55,10-12 Línguas e discursos transforma‑ 55,16 A morte deve alcançar os que insistem
ram a cidade em um espaço totalmente na maldade. Ameaçado em sua sobrevivên‑
corrompido. Brutalidade, crime e explora‑ cia, o orante, ao dialogar com Deus, não
ção ocupam todos os lugares, durante todo consegue imaginar outra solução.
o tempo. Dessa situação nasce a prece para 55,17-18b A lamentação constante do oran‑
que Deus aja contra quem confia na força de te é acompanhada pela confiança de que o
sua própria língua (Sl 12,5). Senhor pode inverter seu destino.
55,13-15 O orante lamenta que seu oposi‑ 55,18c-19 Quem reza aqui descreve ago‑
tor tenha surgido dentre os que estavam ra, de forma retrospectiva, como foi salvo
próximos a ele no templo. Trata-se de um por Deus, embora seus opositores, no mo‑
inimigo que, anteriormente, estava em co‑ mento do conflito, fossem maioria.
munhão religiosa com ele.
127
Sl 55 (54)
21 Lançou suas mãos contra os que estavam em paz com ele;
profanou sua aliança.
22 Sua boca é mais lisa do que manteiga,
mas há peleja em seu coração.
Suas palavras são mais suaves do que azeite;
contudo, elas são espadas desembainhadas.
23 “Lança teu fardo sobre o Senhor,
e ele te sustentará;
jamais permitirá que o justo vacile.”
55,20 Ao formular outra prece, o orante perigosas (v. 22). A citação de um discurso
avalia os moradores do oriente. Estando irônico do opositor, porém, revela a rela‑
provavelmente no meio deles, descreve‑ ção de proximidade entre o fiel e o Senhor
-os como indispostos a promover qualquer (v. 24).
mudança em seu próprio comportamento, 55,24 Quem confia em Deus volta a pedir,
revelando falta de respeito a Deus. com sua prece, a morte precoce daqueles
55,21-23 Em mais um lamento, o orante que insistem no crime violento e na men‑
apresenta os anteriormente aliados (v. 21) tira (v. 16).
como quem profere palavras vacilantes e
128
Sl 56 (55)
Salmo 56 (55)
56,1 O título lembra a fuga de Davi para lon‑ 56,6-10a O orante está sendo atacado com
ge de Saul. Ao se encontrar com Aquis, o rei palavras (v. 6a). Os opositores que esperam
de Gat, Davi percebe mais uma vez que sua por seu fim (v. 7c) não são visíveis, pois se
sobrevivência está ameaçada (1Sm 21,11-16). escondem (v. 7a). Contudo, a presença mal‑
56,2-3 Quem reza aqui, sentindo-se per‑ dosa e perseguidora deles é constante (vv.
seguido ora por um indivíduo (v. 2a), ora 6ab.7ab). Por isso, o orante é interpelado,
por uma multidão (v. 3), implora proteção de forma retórica, a escapar dos inimigos
divina. As metáforas bélicas lembram os (v. 8a). Israel sabe que o Senhor é capaz de
diversos momentos em que o Senhor, ven‑ se opor a todos os povos, a fim de salvar a
do Israel ser reprimido, combateu por seu comunidade dos fiéis (v. 8b). Todavia, ao
povo (Ex 14,14.25). perceber que o sofrimento do injustiçado se
56,4-5 A confiança em Deus e na palavra di‑ encontra guardado em Deus (v. 9), o orante
vina liberta a pessoa do medo e a encoraja a tem esperança de que o assédio dos oposito‑
se tornar resistente. Comparado a Deus, o res fracasse (v. 10a).
homem é como carne, símbolo da fragilida‑
de e da limitação (Is 31,3; Jr 17,5).
129
Sl 56 (55)
57,1 O título lembra outro momento da fuga lembrar a função do rei (Jz 9,15; Lm 4,20).
de Davi diante de Saul (1Sm 21,11; 22,1-2). No centro da primeira estrofe (vv. 3-5),
Dessa vez, ele se esconde numa caverna o orante fala sobre Deus, descrevendo-o
na região de Engádi, no lado oeste do mar como quem pode protegê-lo contra pes‑
Morto (1Sm 24). soas que, comportando-se como leões, es‑
57,2-6 De forma urgente, o orante dirige‑ tão dispostas a devorar o outro. Aparecem
-se inicialmente a Deus, implorando por armas mortíferas. Dentes e língua fazem
sua graça (v. 2). A metáfora combina dois imaginar ataques verbais; lança e espada
motivos, asas e sombra, sendo ambos sím‑ trazem a ideia de um conflito armado. A
bolos de proteção. Como um pássaro pro‑ tudo isso Deus deve opor seus instrumen‑
tege seus filhotes debaixo de suas asas tos de defesa, que consistem na lealdade e
ou afasta predadores perigosos ao bater na fidelidade. Ao encerrar a primeira par‑
suas asas, assim Deus deve se tornar um te, o orante volta a dirigir-se diretamente a
protetor móvel. No Antigo Oriente, di‑ Deus (v. 6). Como um juiz, este deve levan‑
versos deuses são imaginados de forma tar-se de seu trono a fim de assumir visi‑
alada. Também o sol é pensado dessa for‑ velmente seu reinado universal.
ma. Além disso, a sombra protetora faz
131
Sl 57 (56)
57,7-12 Mais uma vez o orante faz alusão te celebrada, aos ataques dos inimigos. Crê
à atuação de seus opositores. Estes, pois, que o malfeitor ficará preso na armadilha
como caçadores, estenderam a rede so‑ que arrumou para o outro. Espera que seu
bre um buraco cavado na terra, provavel‑ júbilo matutino suscite o reaparecimento
mente coberto de galhos. Contudo, quem da claridade da aurora, símbolo da luz do
reza aqui opõe sua firmeza, liturgicamen‑ Deus que tem poder sobre os céus e a terra.
132
Sl 58 (57)
Salmo 58 (57)
58,1-3 O orante dirige-se a seus ouvintes e os 58,8-10 O orante descreve a inversão do des‑
acusa de não defenderem a justiça com seus tino dos perversos. As metáforas realçam a
discursos. Pelo contrário, sua vontade e seu realidade dupla que acompanha estes últi‑
planejamento, simbolizados pelo coração, mos. São caóticos como águas abundantes,
favorecem a violência exercida pela mão. as quais, no entanto, escorrem. São peri‑
58,4-6 Ao analisar o comportamento dos gosos como uma flecha disparada, a qual,
perversos, o orante imagina um grave des‑ no entanto, já não tem mais resistência. Os
vio de tais pessoas, o qual já começou no re‑ leões jovens (v. 7b) se tornaram uma lesma,
gaço da mãe. A mentira proferida por eles e o nascituro (v. 4) virou um natimorto. En‑
é semelhante ao veneno de uma serpente, fim, os perversos são como uma panela sem
um animal não disposto a deixar-se encan‑ fogo (Ez 24,3), pois os galhos secos do espi‑
tar. O perverso não fica fascinado com a jus‑ nheiro são retirados pelo Deus vivo, que se
tiça. Por isso, nega-se a escutar. inflama diante da injustiça.
58,7 Formula-se aqui a prece pelo desarma‑
mento dos perversos.
133
Sl 58 (57)
58,11-12 No final, o orante foca a reação do violentado. Faz parte da fé do israelita que
justo diante da dramática inversão da rea‑ Deus, ao acompanhar a história do homem,
lidade. A imagem dos pés do perverso ba‑ garanta ao justo que o caos produzido pelo
nhados no sangue sublinha literariamente perverso seja superado.
a experiência e o desejo de quem está sendo
134
Sl 59 (58)
Salmo 59 (58)
59,1 O título faz referência a outro momento traidores, seja a vítima um indivíduo ou o
dramático na vida de Davi, em que este, povo de Deus assaltado pelas nações (vv.
ameaçado em sua sobrevivência por Saul, 5b-6). Em seguida, o orante continua sua
consegue escapar do perigo (1Sm 19,11-17). lamentação, descrevendo a brutalidade de
59,2-10 Dirigindo-se a Deus, o orante faz quem nega, através de uma pergunta irô‑
inicialmente um quádruplo pedido (vv. nica, que as malfeitorias sejam percebidas
2-3). Imagina que somente Deus possa por alguém disposto e capaz de defender a
salvá-lo de seus opositores maldosos e vio‑ justiça (vv. 7-8). No final da primeira par‑
lentos. Em seguida, justifica sua prece (vv. te de sua oração, quem reza opõe sua con‑
4-5a). Lamenta, de um lado, que os inimi‑ fiança no Senhor ao discurso do inimigo
gos o ataquem com toda a sua força; como (vv. 9-10). A ironia deste último receberá
numa guerra, espreitam e assediam-no, o riso de Deus como resposta. Os suposta‑
para depois correrem e se firmarem ao mente fortes (v. 4b) hão de enfrentar quem
redor dele. De outro lado, declara-se in‑ é experimentado pelo perseguido como
ocente. Por isso, continua pedindo com força salvífica.
insistência que o Senhor se concentre nos
135
Sl 59 (58)
59,11-18 O orante reinicia seu discurso com do orante continua a ser dramática, fazen‑
preces (vv. 11-14), insistindo no combate di‑ do-o repetir sua lamentação pelo compor‑
vino. Liderando seu exército celeste, Deus tamento de quem ameaça os outros, visto
deve fazer prevalecer sua lealdade com os que devoram tudo até ficarem totalmente
injustiçados, uma vez que as mentiras, saciados (vv. 15-16). Não obstante, quem
as maldições e o orgulho dos malfeitores reza aqui termina sua reflexão com uma
ameaçam os demais em sua sobrevivência. manifestação de sua confiança na força de
Nem sempre interessa a morte definitiva Deus (vv. 17-18). Por mais que se sinta aper‑
do inimigo, pois, com o agressor vivo e tado e aflito em meio à violência promovi‑
preso em seu próprio orgulho, a humani‑ da pelos opositores, prefere manter vivo o
dade inteira descobrirá o governo do Deus canto que insiste na lealdade de Deus às ví‑
de Israel (v. 12). Contudo, a situação atual timas de agressões.
136
Sl 60 (59)
Salmo 60 (59)
60,11-14 O oráculo de Deus ainda não se rea‑ sabe que se salva não por força própria, mas
lizou. Por enquanto, o povo ainda se sente somente quando Deus se opõe aos agresso‑
rejeitado por seu Deus, pois este não acom‑ res.
panha o exército de Israel. Contudo, o povo
138
Sl 61 (60)
Salmo 61 (60)
61,1-5 O orante dirige-se a Deus com um único espaço de uma tenda (v. 5a), prote‑
brado alto (v. 2), pois se encontra no extre‑ gendo-o debaixo de suas asas como um
mo da terra. E onde a terra, a casa habitada pássaro faz com seus filhotes (v. 5b).
pelos homens, termina, começa o caos (v. 61,6-9 O orante fez a promessa de ofere‑
3a). Quem reza aqui perdeu suas forças fí‑ cer louvores a Deus, pois, após ter sido
sicas e mentais, uma vez que seu coração escutado por Deus, teve seu destino inver‑
desfaleceu (v. 3b). Por isso, pede que Deus tido. Quem estava na margem da terra foi
o coloque sobre um rochedo alto, a fim de contemplado com a posse dela (v. 6). É jus‑
escapar do perigo (v. 3c). Contudo, o clamor tamente essa experiência salvífica que o
é acompanhado de uma manifestação de orante quer ver estendida ao rei, a fim de
confiança. Deus já se tornou um abrigo (v. que a vida longa deste último seja expres‑
4a) e oferece, como uma torre, proteção e são da lealdade e fidelidade de Deus para
possibilidade de defesa (v. 4b), permitindo com seu povo (vv. 7-8). O resultado disso
que o perseguido se hospede no mesmo e seria um eterno louvor (v. 9).
139
Sl 62 (61)
Salmo 62 (61)
62,1-8 Quem levanta sua voz nesta oração se outro se sinta amaldiçoado (v. 5b-d). Em
sente ameaçado em sua sobrevivência. Há meio a esses conflitos, o orante se volta
opositores dispostos a eliminá-lo (v. 4ab). para Deus (vv. 2a.6a), imaginando que este
O orante se vê como uma muralha que co‑ possa se tornar sua salvação, seu rochedo,
meça a desmoronar (v. 4cd), pois não falta seu baluarte e seu abrigo (vv. 2b-3b.7a-8c).
quem esteja disposto a empurrar a parede Enfim, a oração parte da ideia de que exis‑
(v. 5a). A situação ainda se torna mais com‑ tem conflitos. No entanto, quem reza cul‑
plicada pelo fato de os opositores agirem tiva a esperança de que possa participar da
de forma camuflada. Aparentemente, ben‑ firmeza de Deus. Sabe que o sentir-se sal‑
dizem os outros, invocando a bênção di‑ vo, sem perder a honra (v. 8a), é possível so‑
vina sobre o próximo. Na verdade, porém, mente a partir de Deus (v. 2b).
através de suas mentiras, fazem com que o
140
Sl 62 (61)
62,9-13 Ao se dirigir a seus ouvintes, no caso tem peso (v. 10c-d). O homem se ilude ain‑
a sociedade inteira, o orante convida-os à da mais caso queira garantir sua sobrevi‑
confiança em Deus. Tudo pode ser dito a vência insistindo na exploração e no roubo
este último (v. 9). O homem pode lamentar‑ dos outros (v. 11a-b). Também o aumento da
-se à vontade com Deus, pois, ao agir dessa capacidade militar, econômica ou de qual‑
forma, permite que nasça uma relação que quer outro tipo de influência é ilusório (v.
o tira da solidão. Ao mesmo tempo, o oran‑ 11c-d). Não é o mundo quem salva, mas sim
te anuncia sua consciência de que o homem Deus. E isso por ele ser forte e leal ao mesmo
se ilude ao pensar que, por si só, possa ga‑ tempo (vv. 12-13): forte para opor-se aos vio‑
rantir sua existência (v. 10a-b). Pelo contrá‑ lentos e leal por querer relacionar-se com o
rio: sem Deus, nem a humanidade inteira homem.
141
Sl 63 (62)
Salmo 63 (62)
63,1 O título faz referência ao momento em 63,6-8 O orante sacia sua alma com seu lou‑
que Davi, fugindo de Absalão, seu filho, vai vor, semelhantemente à pessoa que se sacia
para o deserto (2Sm 15,13-23). ao comer carnes mais gordurosas. Acredita‑
63,2-5 Ao passar por uma situação dramáti‑ va-se que o Senhor se satisfazia com a gor‑
ca, sentindo-se ameaçado em sua sobrevi‑ dura dos animais sacrificados, que lhe era
vência como quem está com sede em uma apresentada em forma de oferenda quei‑
região desértica, o orante realiza sua busca mada (v. 6; Lv 7,23-25). Todavia, o louvor se
de Deus (v. 2). Procura a força e a glória de baseia em experiências feitas no passado. O
Deus no templo (v. 3), as quais consistem na orante já verificou o auxílio de Deus em sua
lealdade divina (v. 4). Aliás, a solidariedade vida (vv. 7a-8a). Foi bom para ele lembrar-se
de Deus para com o homem, em especial de Deus, pois justamente essa lembrança já
para com quem sofre, é avaliada como mais pode se tornar uma ajuda preciosa. Enfim,
preciosa do que a própria vida. Descobrin‑ ao se sentir protegido por Deus, faz sentido
do isso, quem reza aqui se sente motivado a entoar o júbilo (v. 8b).
louvar a Deus com sua vida (vv. 4b-5b).
142
Sl 63 (62)
63,9-12 Apesar de ter-se entregado a Deus dique, em outros textos, a raposa. Enfim,
e de já ter experimentado seu apoio (v. 9), ao contemplar a ação de Deus em favor do
o orante continua a enfrentar pessoas que injustiçado, não se espera um fim tranqui‑
querem destruir-lhe a vida (v. 10a). Por isso, lo para quem promove a injustiça, embora
formula suas preces pelo aniquilamento esse julgamento pertença ao futuro. No fi‑
de seus opositores (v. 10b-11b). O chacal é nal de sua oração, quem reza aqui inclui o
conhecido como animal necrófago (v. 11b), rei em seu pensamento (v. 12).
embora o termo hebraico aqui presente in‑
143
Sl 64 (63)
Salmo 64 (63)
64,1-7 Quem reza aqui apresenta sua preo‑ ser humano. Trata-se de ações inventadas e
cupação a Deus (v. 2a). Contempla inimi‑ anunciadas, que se baseiam na capacidade
gos capazes de assustar os demais (v. 2b), humana de montar armadilhas (vv. 6-7). Os
malvados que formam conselhos, ou seja, malvados até se orgulham de suas maqui‑
organizações criminosas (v. 3a), e malfei‑ nações, destacando-as através de suas pala‑
tores inquietos (v. 3b). Correndo risco de vras, citadas por quem reza.
vida, o orante se dirige a Deus, pedindo que 64,8-9 O orante apresenta a ação de Deus
este o preserve e o esconda de quem se tor‑ como se esta já tivesse ocorrido. Imagina
nou uma ameaça à sua sobrevivência. Os que Deus oponha sua flecha à flecha dos
opositores não tementes a Deus atacam, malvados (vv. 4b.8a). Além disso, descreve
de repente, o íntegro com palavras amar‑ a língua destes últimos como autodestru‑
gas e afiadas, sem que a pessoa atingida tiva, pois se tornam vítimas de suas pala‑
esteja presente e possa se defender contra vras violentas (vv. 4a.9a). Quem vê a cena
as acusações (vv. 4-5). No mais, o orante lo‑ percebe algo que lamentavelmente se re‑
caliza a origem da maldade no coração do pete no mundo (v. 9b).
144
Sl 64 (63)
64,10-11 Após ter contemplado a ação de Sabe, pois, que, ao ser justo e íntegro, pode
Deus, quem se lamentou a respeito de contar com a proteção do Senhor.
quem insiste na maldade agora se alegra.
145
Sl 65 (64)
Salmo 65 (64)
6 Há coisas temíveis;
tu nos respondes com justiça,
Deus de nossa salvação,
confiança de todos os extremos da terra
e do mar distante,
7 quem firma montes com seu vigor,
cingido de valentia,
8 quem aplaca o bramido dos mares,
o bramido de suas ondas
e a agitação dos gentios.
9 Os moradores dos extremos temem teus sinais;
fazes os surgimentos da manhã e da tarde jubilarem.
65,10-14 O orante termina sua oração con‑ firmamento (Jó 38,25; Gn 7,11-12; Dt 11,11).
templando Deus como quem traz a chuva, a Finalmente, toda a produção agrícola, em
qual garante a fertilidade e a produtividade especial os grãos de que a humanidade tan‑
da terra. Conforme a cosmovisão do Antigo to precisa para sobreviver (v. 10d), se torna
Oriente, um ribeiro garante a vinda das expressão da bondade e da bênção divinas
águas celestes para a terra, perpassando o (vv. 11b.12a).
147
Sl 66 (65)
Salmo 66 (65)
66,1-4 Quem reza aqui convida a humani‑ maior exemplo concreto da atuação po‑
dade ao louvor do Deus de Israel, desta‑ derosa de Deus (v. 6a; Ex 13,17–14,31). Con‑
cando o nome, a glória ou honra, a força e tudo, tal milagre quer ser experimentado
a prática dele. Até os que insistem na inimi‑ sempre de novo. Cada geração deve voltar a
zade hão de se render a essa superioridade atravessar a correnteza (v. 6b), alegrando-se
absoluta de Deus, que se revela na criação e com seu caminho rumo à liberdade (v. 6c).
na história. Ninguém tem como se rebelar definitiva‑
66,5-7 As obras e a ação de Deus se esten‑ mente contra o governo de Deus (v. 7). As
dem à humanidade inteira (v. 5). O milagre nações que insistem na opressão já se en‑
no mar dos Juncos, ocorrido no êxodo, é o contram vigiadas.
148
Sl 66 (65)
67,1-3 A comunidade israelita pede que lizados pelo Deus que escolheu para si um
Deus seja misericordioso com seu povo, povo pequeno, muitas vezes ameaçado em
destacando que tudo depende da graça, ou sua sobrevivência por nações mais fortes e
seja, da dedicação pessoal de Deus à comu‑ poderosas. Contudo, também os gentios
nidade dos fiéis. Num segundo momento, experimentarão a retidão favorecida pelo
quem reza aqui deseja que a misericórdia Deus de Israel, que é capaz de garantir uma
de Deus se transforme em bênção. Deus autêntica alegria.
age continuamente, garantindo a seu povo 67,7-8 Deus está disposto a abençoar seu
tudo o que este precisa para sua sobrevivên‑ povo e isso pode ser experimentado no mo‑
cia digna (Lv 26,3-13; Dt 28,1-14). Iluminado mento em que a terra dá seu fruto. Agora,
por Deus, Israel pode se tornar um sinal todos podem se alimentar bem e experi‑
para os demais povos, a fim de que estes co‑ mentar a abundância dos bens, pois a terra
nheçam o caminho de Deus, o modelo de produziu. O orante insiste, aqui, na relação
comportamento proposto por ele e, conse‑ entre a bênção divina, presente na criação,
quentemente, sua salvação. e a insistência de Deus numa determinada
67,4-6 Na parte central de sua oração, o oran‑ ordem social e política, a qual valoriza a
te deseja que o Deus de Israel estabeleça no partilha igualitária. Israel, ao acolher essa
mundo uma ordem justa. Todos os povos relação, se torna o sinal que chama a aten‑
são julgados por ele e, com isso, responsabi‑ ção dos quatro cantos do mundo.
150
Sl 68 (67)
Salmo 68 (67)
2 Deus se levanta,
seus inimigos se dispersam;
fogem de sua face os que o odeiam.
3 Dissipas como o dissipar-se da fumaça;
como o derreter-se da cera diante do fogo,
perecem os perversos diante de Deus.
4 Os justos, porém, alegram-se;
exultam diante de Deus
e, na alegria, estão contentes.
68,1-4 O orante contempla inicialmen‑ e garante sua atuação em favor dos mais
te o destino dos justos e dos perversos. necessitados. Trata-se do Deus que liber‑
Enquanto estes últimos são vistos como tou seu povo da escravidão no Egito e que
transitórios, pois se desfazem como uma passou, junto com seu povo, pela estepe, a
nuvem ou a cera diante do calor, os justos fim de alcançar a terra prometida. Os mais
se alegram em Deus. necessitados são representados pelos sem
68,5-7 Quem reza aqui convida ao canto e à família (órfãos, viúvas e solitários) e pelos
celebração, pois o nome de Deus representa sem liberdade (prisioneiros).
151
Sl 68 (67)
152
Sl 68 (67)
68,29-32 O orante pede que Deus, a par‑ portar-se como Cuch (Etiópia), elevando as
tir do templo, seja forte para seu povo mãos para Deus (v. 32b).
(vv. 29.30a). Israel participa da realeza de 68,33-36 Os reinos da terra são convidados
Deus, recebendo tributos (v. 30b) e ves‑ a louvar o Deus de Israel. Inicialmente, este
tes (v. 32a), dominando a fera do caniço, foi apresentado como quem cavalga nas es‑
que é o Egito (v. 31a), e outras nações que tepes (v. 5). Agora, porém, cavalga nos céus
se mostram valentes como touros (v. 31b), (v. 14). Com isso, acompanha toda a huma‑
amantes das riquezas (v. 31c) e insistentes nidade, por mais que Israel se torne o sím‑
nas brigas (v. 31d). A alternativa seria com‑ bolo de sua força e de seu poder.
154
Sl 69 (68)
Salmo 69 (68)
2 Ó Deus, salva-me,
porque águas chegam até o pescoço!
3 Afundo-me no lodo do precipício, sem dar pé;
cheguei às profundezas das águas
e a correnteza me arrasta.
4 Canso-me de clamar;
minha garganta fica rouca.
Meus olhos se consomem,
aguardando por meu Deus.
5 Por nada, os que me odeiam
se multiplicam mais do que os cabelos em minha cabeça;
os que me silenciam são poderosos;
são falsos meus inimigos.
O que não roubei, pois, devo devolver!
69,1-5 O orante apresenta sua lamentação. roubou (v. 5e). O caos se faz presente em sua
Muitos insistem no ódio e na falsidade, fa‑ vida. A morte, ao se aproximar dele (vv. 2-3),
zendo-lhe oposição (v. 5a-d). Sem que o ou‑ o faz perder as forças para gritar a Deus (v.
vinte-leitor tenha detalhes, fica claro que se 4), o único que pode salvá-lo (v. 2a).
exige do orante a devolução de algo que não
155
Sl 69 (68)
69,6-14b Quem reza aqui é um entusiasta quer por seus parentes (v. 9). Mesmo assim,
que cultiva paixão pelo templo (v. 10a). Ao tornando-se alvo de sátiras e escárnio, pre‑
confessar sua ignorância e suas culpas, so‑ fere manter a esperança de que o Senhor,
bretudo em vista de uma pureza ligada ao sempre capaz de suscitar um tempo favorá‑
culto, apresenta-se, sem ser presunçoso, vel, atenda à sua oração (v. 14a-b).
como quem depende de Deus (v. 6). Em se‑ 69,14c-19 O orante formula suas pre‑
guida, reza por seus companheiros, não ces confiando na lealdade ou graça (vv.
querendo ser um obstáculo para quem põe 14c.17b), na verdade ou fidelidade (v. 14d) e
sua esperança em Deus (v. 7). Contudo, o na compaixão (v. 17d) do Senhor. Imagina
orante está sendo ridicularizado pelas au‑ que a ação salvífica de Deus causará sua li‑
toridades assentadas junto ao portão, onde bertação (v. 15), seu resgate e sua redenção
as questões econômicas, sociais e jurídicas (v. 19) de quem, insistindo no ódio (v. 15c) e
são discutidas (vv. 8.13). Seus gestos reli‑ na inimizade (v. 19b), provoca caos (v. 15a‑
giosos e simbólicos – jejum (v. 11a) e pano -16b), morte (v. 16c) e aflição (v. 18b) na vida
de saco (v. 12a) – não são compreendidos se‑ de quem sente paixão pela casa do Senhor.
156
Sl 69 (68)
69,20-30 Ao voltar a lamentar-se, o orante quem está sentado à mesa (vv. 24-26), pois
destaca como o escárnio, a vergonha e a in‑ pensa que Deus há de se opor a todos aque‑
fâmia lhe trouxeram até doença, sem que les que, dentro de sua religiosidade, não
encontrasse a ajuda de alguém (vv. 20-22). assumem um compromisso com a justiça
Enquanto isso, os opositores estão reuni‑ divina (vv. 27-29). O orante se apresenta
dos em torno de sua mesa, a qual pode re‑ como quem é oprimido e sente dor; con‑
presentar a celebração de ceias no templo tudo, ao ser difamado, espera sua salvação
(v. 23). Contudo, quem reza aqui formula por parte de Deus (v. 30).
desejos que preveem um fim abrupto para
157
Sl 69 (68)
69,31-34 O orante entoa louvor e ação de Deus de Israel, pois este último salva nova‑
graças, pois Deus está sendo experimen‑ mente o monte Sião e as cidades de Judá. O
tado como quem escuta os pobres. Seu orante tem em mente a experiência ante‑
nome, pois, representa e garante a inver‑ rior da destruição, a qual repercutiu na vida
são do destino dos miseráveis, os quais, ao de quem sente paixão pela casa de Deus
agradecer ao Senhor sua salvação, formam como escárnio e deboche (v. 10a). Contudo,
continuamente a verdadeira comunidade mais uma vez os descendentes dos servos
dos fiéis. Essa dinâmica supera o culto que de Deus devem tomar posse dessa região,
se baseia nos sacrifícios de animais. pois sua presença deve se tornar um sinal
69,35-37 No final de sua oração, quem reza da atuação do Senhor em favor da humani‑
aqui convida o cosmo inteiro a louvar o dade a partir de Sião.
158
Sl 70 (69)
Salmo 70 (69)
70,1-6 Quem reza aqui se apresenta como (v. 6c) e revelando sua grandeza (v. 5d) e sua
oprimido e pobre (v. 6a). Justamente esse capacidade de provocar a salvação tão ama‑
fato deve motivar o Senhor, Deus de Israel, da por quem está sendo curvado e humi‑
a agir, depressa, em favor do orante (vv. lhado (v. 5c). Quando isso acontecer, o grito
2b.6b). Há, pois, os que procuram a alma de júbilo (v. 4b) dos que procuram a vida do
do orante, deliciando-se com o seu mal‑ pobre será transformado em vergonha (vv.
-estar (v. 3ad). No entanto, quem se sente 3a.4a), frustração (v. 3a), infâmia (v. 3c) e re‑
ameaçado em sua sobrevivência cultiva a tirada (vv. 3c.4a). Já os libertos ficarão con‑
esperança de que Deus o liberte (v. 2a), fa‑ tentes e se alegrarão em Deus (v. 5a).
zendo-o escapar dessa situação de perigo
159
Sl 71 (70)
Salmo 71 (70)
1 Senhor, em ti me abrigo;
não quero me envergonhar para sempre!
2 Que me libertes com tua justiça e me faças escapar!
Inclina-me teu ouvido e salva-me!
3 Sê para mim um rochedo habitável,
para onde ir continuamente!
Deste ordem para me salvar,
porque tu és minha rocha e meu refúgio.
71,1-3 Declarando sua confiança no Senhor desigualdade e violência (v. 4). Diante dos
(vv. 1a.3d), quem reza aqui dirige suas pre‑ mecanismos opressivos presentes na socie‑
ces pedindo salvação a Deus. As visitas dade, quem reza aqui opta por colocar sua
constantes à morada do Senhor, ao templo esperança e confiança no Senhor (v. 5), real‑
(Sl 26,8; 68,6), confirmam que o Senhor já çando sua pertença ao Criador desde o útero
ordenou que o orante seja salvo (v. 3c). da mãe (v. 6; Sl 22,10-11). Dessa forma, o opri‑
71,4-8 O dilema do orante tem sua origem mido que louva o dia inteiro o Senhor torna‑
nas pessoas que insistem na perversidade, -se um sinal prodigioso para muitos (vv. 7-8).
160
Sl 71 (70)
71,9-16 O orante se apresenta como um realiza façanhas para fazer justiça a quem é
idoso (v. 9) que é perseguido por inimigos. injustiçado (vv. 15-16).
Estes, ao se juntarem, contemplam sua ví‑ 71,17-21 Por Deus ter tornado o orante
tima como abandonado por Deus e, por‑ aprendiz desde a juventude, este lhe respon‑
tanto, sem libertador (vv. 10-11). Por isso, deu até agora com o anúncio das maravilhas
quem reza aqui insiste que Deus lhe seja realizadas pelo Senhor (v. 17) e quer conti‑
um auxílio (v. 12) e que dê um fim inglório nuar anunciando-as também na velhice (vv.
a seus opositores (v. 14). O orante se propõe 18-19). No entanto, aflições abundantes es‑
aguardar a revelação da justiça divina, sen‑ tão sendo experimentadas seja pelo povo (v.
do que o movimento do louvor o fortalece 20ab), seja pelo orante (v. 20cd). Por isso, este
na espera (v. 14). Contudo, ele já sabe que último pede que Deus lhe aumente nova‑
futuramente poderá proclamar as inúme‑ mente a grandeza, para que sua dignidade
ras salvações realizadas pelo Senhor. Deus seja garantida e preservada (v. 21).
161
Sl 71 (70)
71,22-24 No final, o orante faz sua promessa 5,19.24; 10,20; 12,6). O motivo do louvor é
de louvor, destacando os instrumentos o fato de Deus ter mudado, mais uma vez,
musicais e os órgãos do corpo envolvidos o destino de quem lhe dirigiu pedidos e la‑
no salmodiar para o Santo de Israel (Is 1,4; mentações.
162
Sl 72 (71)
Salmo 72 (71)
1 De Salomão.
72,1 Ao se dirigir a Deus, o orante apresenta râneos. Nesse contexto, o direito, como
sua prece pelo rei e pelo filho do rei. Deus é um conjunto de normas, deve servir ao
contemplado como legislador. São os julga‑ rei como instrumento de defesa do pobre,
mentos dele que o rei deve acolher. O termo garantindo-lhe a legalidade de sua ação
“julgamentos” faz lembrar, sobretudo, as no processo de acusação e condenação dos
leis casuísticas presentes nas tradições do opressores. O termo “justiça”, por sua vez,
Pentateuco. Trata-se de julgamentos exem‑ indica a postura básica a ser adotada por
plares que querem nortear as mais diversas quem exerce o poder.
decisões jurídicas. Enfim, não é o rei que 72,5-7 Quem reza aqui indica a postura
define o que é justo, mas quem governa é marcada pelo respeito que os governados
chamado a promover a justiça que brota do devem ter por quem governa (v. 5). Metafo‑
direito de Israel, direito este que é formado ricamente, o orante mostra que a natureza
pelos mandamentos de Deus. espelha a atuação favorável aos mais neces‑
72,2-4 O orante continua a se dirigir a Deus. sitados (v. 6). Ele imagina que as dimensões
No entanto, concentra-se agora na descri‑ cósmicas (vv. 3.5), ecológicas (v. 6) e sociais
ção do que o rei deve fazer. Imagina que a (vv. 2.4) estejam interligadas, fazendo nas‑
tarefa de quem governa consista, por exce‑ cer, assim, uma visão de estabilidade e, no
lência, na defesa do povo de Deus, o qual caso do rei, de longevidade que oferece paz
é composto especialmente de oprimidos, abundante.
uma vez que há quem insista na explora‑
ção, curvando e humilhando os conter‑
163
Sl 72 (71)
72,8-11 Estendendo sua reflexão, o orante de gerar a paz que leva à adesão das nações
apresenta agora o governo universal do rei ao rei de Israel.
de Israel. Capaz de fazer a justiça prevale‑ 72,12-14 O orante volta a contemplar a atua‑
cer, o rei ideal pacifica as relações entre seu ção do rei em favor dos pobres. Fica claro ago‑
povo e as demais nações. Fascinados com ra que ele é sensível ao sofrimento dos mais
o governo dele, aproximam-se os repre‑ necessitados, sentindo compaixão. Não são
sentantes do extremo oeste – Társis, na re‑ somente o direito e o modelo de justiça pre‑
gião da Espanha – e do extremo sul – Sabá, visto pelas tradições jurídicas (vv. 2-4) que o
no sul de Cuch (Etiópia), e Sebá, na região motivam. Além disso, considera-se um pa‑
da Arábia Meridional, na altura do Iêmen. rente dos pobres, resgatando a vida deles
Surge, assim, a imagem da peregrinação como um familiar pode fazê-lo (Lv 25,47-49;
dos povos (Is 2,1-4; Mq 4,1-4), realizando-se Rt 2,20). E tudo ocorre por causa da preciosi‑
a promessa da bênção iniciada em Abraão dade do sangue de quem se encontra amea‑
(Gn 12,3; 15,18). Todavia, é sua capacidade çado em sua sobrevivência.
164
Sl 72 (71)
72,15-17 Quem reza aqui continua a con‑ símbolo de fartura e prosperidade (v. 16a-b).
templar o rei. Aclamado como quem deve Finalmente, o orante aplica a ideia do cres‑
viver, o rei se dedica aos pobres, fazendo‑ cimento e da fecundidade ao nome do rei (v.
-os participar das riquezas (v. 15a), rezan‑ 17), o qual, através de sua atuação justa em
do por eles (v. 15b) e bendizendo-os (v. 15c). favor de quem mais precisa ser auxiliado, se
Dessa forma, o orante imagina que tam‑ torna um intermediário da bênção divina.
bém a natureza colabore com o bem-estar 72,18-20 A doxologia encerra o segundo dos
do povo, realçando a metáfora de os cereais cinco livros que formam os Salmos (ver nota
crescidos serem movidos pelo vento, maior de Sl 41,14).
165
Sl 73 (72)
Salmo 73 (72)
1 Um salmo. De Asaf.
73,1-12 Quem reza aqui apresenta uma con‑ trário, seu corpo revela sua riqueza e seu
fissão: Deus é bom para Israel. Tal seria poder (vv. 4-5). Além disso, vestem-se de
a experiência de Israel, em especial, para soberba e de violência, apresentando-se de
os que insistem na integridade (v. 1). Con‑ forma arrogante e sem respeito aos demais
tudo, por mais que a criação e a história pu‑ (v. 6). A aparência externa corresponde ao
dessem justificar essa afirmação, o orante que há dentro dos perversos. A gordura re‑
questiona o mistério da bondade constante presenta sua insensibilidade, que provoca
e eterna de Deus. Olhando, pois, para sua fantasias, insultos, bem como insistência
experiência de vida, percebe que teve de na maldade e na exploração dos outros (vv.
confrontar-se com quem insiste na perver‑ 7-8). Parece que o poder de suas falas toma
sidade e, mesmo assim, vive em paz, gaban‑ conta de todo o espaço, da terra até o céu (v.
do-se de seu estilo de vida. Além do mais, 9). No mais, parece não haver quem lhes re‑
ao se irritar com eles, o orante tropeçou, por sista, pois os discursos criminosos dos per‑
desejar, para si, o bem-estar daqueles (vv. versos são absorvidos pelo povo (v. 10). Por
2-3). O orante demonstra o quanto conhece mais que revelem sua descrença, negam
a vida dos perversos através de uma descri‑ que Deus queira tomar conhecimento de
ção extensa. Aparentemente, eles não so‑ algo que acontece no mundo (v. 11). Enfim,
frem com as preocupações e limitações que, o orante registra o sossego de quem insiste
em geral, atingem o ser humano. Pelo con‑ na maldade e cujo poder e riqueza só au‑
mentam (v. 12).
166
Sl 73 (72)
73,13-17 A aparente sorte dos perversos le‑ isso seria uma traição aos demais fiéis (v.
vou o orante à crise. Ele se pergunta se a 15b). Restou-lhe, então, a tentativa de com‑
insistência na pureza e na inocência vale preender o conflito vivido (v. 16a), o que
a pena (v. 13), uma vez que se sentia casti‑ parecia ser um esforço em vão (v. 16b). Con‑
gado e repreendido por Deus toda manhã. tudo, ao mergulhar no mistério divino, o
Nas diversas culturas do Antigo Oriente, orante percebe que Deus é um santuário e
a manhã é contemplada como momento que o futuro dos perversos é diferente do
em que Deus atua (v. 14). O orante pode‑ que se mostra à primeira vista (v. 17).
ria se igualar a seus opositores (v. 15a), mas
167
Sl 73 (72)
73,18-28 A superação da crise se encaminha que o toma para si. Justamente por sofrer
de diversas formas. Ao contemplar as coi‑ com a aparente ausência de Deus em sua
sas a partir de Deus, nasce inicialmente a vida, o orante tem a esperança de ser ple‑
ideia de os perversos chegarem ao fim, se‑ nificado por iniciativa de Deus, no mundo
melhante a um sonho ruim que provoca e após a morte (Gn 5,24; 2Rs 2,1-13). Apesar
uma reação de desprezo (vv. 18-20). Sobre‑ de se sentir esgotado, basta ao orante estar
tudo as lisonjas contribuíram com a perda em comunhão com Deus. Finalmente, em
da estabilidade. No segundo momento, o
forma de resumo, quem reza aqui realça, de
orante se lembra de seu passado, quando fi‑
um lado, sua convicção de os infiéis serem
cava furioso com a sorte dos perversos (vv.
21-22). Contudo, agora sabe que, mesmo emudecidos e, do outro, sua esperança de o
no tempo da irritação, esteve com Deus, fiel poder experimentar, de forma mística,
apesar de não poder verificar sua bondade a proximidade salvífica de Deus (vv. 27-28).
no mundo. No terceiro momento, o orante Ao agir favoravelmente com o reto de cora‑
apresenta sua experiência mística mais de‑ ção, o Senhor revela que somente ele pró‑
cisiva (vv. 23-26): Deus era, é e será aquele prio é bom (v. 1bc).
168
Sl 74 (73)
Salmo 74 (73)
74,1-11 Na primeira estrofe, o orante apre‑ árvores no bosque, o inimigo destroça até
senta sua lamentação pela destruição do os entalhes preciosos, feitos de madeira
templo. No entanto, sua lamentação se tor‑ e de ouro (vv. 5-6). Finalmente, tudo é re‑
na uma acusação, pois questiona por que duzido a cinzas (v. 7). Entrementes, quem
Deus, o bom pastor, rejeitou seu rebanho, reza aqui deixa claro que, com isso, o nome
em vez de conduzi-lo (v. 1; Sl 80,2). A ima‑ de Deus também está sendo atingido, por
gem do nariz divino fumegando faz pensar mais que Deus em si não esteja sendo der‑
na ira de Deus (Sl 80,5), capaz de incendiar rubado. Citando os inimigos, fica claro que
o aprisco. É incompreensível o contraste a destruição não atingiu somente a capital,
entre o momento em que os babilônios des‑ Jerusalém, mas também os demais luga‑
res sagrados (v. 8). Além disso, não existem
truíram o templo de Jerusalém (587 a.C.) e
mais os profetas e sacerdotes ligados ao
o tempo em que o Senhor libertou seu povo
templo (v. 9). Com isso, a incerteza em re‑
da escravidão no Egito e o conduziu à terra lação ao futuro aumenta. O orante, por sua
prometida e, com isso, a Sião (v. 2). Parece vez, decide dirigir a pergunta sobre o fu‑
que Deus rejeitou seu povo. Mesmo assim turo a Deus mesmo (v. 10). Será que a força
o orante formula sua prece para que Deus do Deus de Israel é inferior ao poder dos
volte a ir ao encontro de sua habitação, que que conquistaram Jerusalém? A ira divina
foi reduzida a ruínas (v. 3). Todavia, as di‑ será para sempre? Mesmo assim o orante
mensões da catástrofe são gigantescas. Os cultiva a esperança de que Deus volte a se
opositores agressivos fazem, na morada opor aos que agridem seu povo, tirando
do Senhor, um barulho semelhante a ani‑ sua mão e seu braço poderosos do regaço
mais selvagens e estendem os sinais de seu de sua veste divina, a fim de salvar quem
poder (v. 4). Como um lenhador derruba as está sendo abusado (v. 11).
169
Sl 74 (73)
74,12-17 Por mais que Israel tenha sido atin‑ dos Juncos (Ex 14) para a passagem de seu
gido por uma catástrofe, o orante realça, povo, voltando a agitá-lo para destroçar e
em forma de um hino, a realeza do Senhor esmagar os egípcios (vv. 13-14; Ex 14). Mais
e as salvações por ele realizadas (v. 12). Isso tarde, fendeu e secou também o rio Jor‑
pode ser compreendido ao contemplar as dão (v. 15; Js 3–4). O domínio do rei celeste
origens da criação, quando Deus venceu também pode ser contemplado na ordem
as forças caóticas simbolizadas por mons‑ presente no cosmo, visto que dia e noite, as‑
tros marítimos e desérticos (vv. 13-15), ou ao sim como verão e inverno, continuam a se
meditar sobre as origens do povo de Israel, alternar (vv. 16-17), independentemente da
quando o Senhor, no êxodo, secou o mar catástrofe sofrida por Israel.
170
Sl 74 (73)
74,18-23 O orante pede que o Senhor enfren‑ tiça social (vv. 19-21), pois os que agridem os
te o inimigo que escarnece (v. 18), ou seja, os mais necessitados também provocam caos
babilônios que destruíram o templo. Eles e desordem. Enfim, Deus deve agir contra o
opuseram sua insensatez ao santuário, opressor e a favor do oprimido, a fim de que
que, para o israelita, é expressão da sabe‑ suba ao céu o louvor dos pobres (v. 21b), não
doria e da ordem divina. Ao mesmo tempo, o bramido dos escarnecedores (vv. 22-23).
quem reza aqui acrescenta o tema da jus‑
171
Sl 75 (74)
Salmo 75 (74)
75,10-11 Ao contrário dos perversos, o oran‑ afirma que o poder será tirado dos perver‑
te louva o Deus de Jacó (v. 10). Anunciando sos e dado aos justos (v. 11).
outro discurso de seu Deus, quem reza aqui
173
Sl 76 (75)
Salmo 76 (75)
5 Tu és luminoso; és magnífico,
mais do que montes de alimentos.
6 Valentes de coração se tornaram despojo.
Em seu sono, cochilaram;
e nenhum dos homens da tropa se valeu de suas mãos.
7 Diante de tua repreensão, ó Deus de Jacó,
carro e cavalo ficaram adormecidos.
76,1-4 O orante contempla o fato funda‑ para o combate a distância, assim como o
mental de Deus ter se tornado conhecido escudo e a espada, armas de luta corpo a
em Judá e Israel, ou seja, no sul e no norte corpo.
do território habitado por seu povo, a partir 76,5-7 Paralelamente à cultura religiosa
de Salém – forma antiga de Jerusalém – e de dos países vizinhos, Israel apresenta seu
Sião. Ali o Senhor estabeleceu sua cabana Deus como, além de leão, sol brilhante,
e morada, como se fosse um leão, animal o qual, ao nascer, restabelece sua ordem
que também tem seus covis e suas moradas no mundo, opondo-se aos malvados, que
(Jó 38,40; Jr 25,38; Am 3,4; Na 2,13; Sl 10,9; agem na escuridão, no caos. Nem sequer
104,22). Como um leão, pois, Deus se opõe, é preciso lutar, pois os opositores simples‑
com toda a sua força, à guerra, aniquilando mente estão dormindo e, portanto, ficam
os instrumentos bélicos usados pelos exér‑ sem ação. Os carros de guerra e os cavalos
citos invasores: as flechas incendiárias, estão sendo entorpecidos pela palavra re‑
chamadas de relâmpagos do arco e usadas preensiva de Deus.
174
Sl 76 (75)
76,8-11 Apesar de o povo ter experimen‑ a morte do homem mas sim sua transfor‑
tado a catástrofe (Sl 74; 75), o temor a Deus mação.
não mudou. Continua, pois, a ira de Deus, 76,12-13 No final de sua oração, quem reza
pois ele mantém sua paixão pela justiça aqui imagina as nações reunidas ao redor
(v. 8). Seu julgamento, desde as origens, do Deus de Israel. Os reis da terra agora
visa à salvação dos que são oprimidos. Em o reconhecem como quem precisa ser te‑
contrapartida, a fúria humana, que resul‑ mido. Acabou a tirania violenta, uma vez
ta na violência contra o irmão, será trans‑ que Deus revelou seu poder de salvar os
formada em celebração e agradecimento a oprimidos e de rebaixar o espírito ou cortar
Deus (v. 11). Enfim, a fúria divina quer não o alento de quem insiste na opressão.
175
Sl 77 (76)
Salmo 77 (76)
77,1-4 O orante se lamenta fortemente, po‑ Contudo, o silêncio noturno o leva a pen‑
rém, com a esperança de ser ouvido por sar no passado (v. 6) e a cultivar a esperança
Deus. Coloca sua dor para fora (v. 2), mas de que a lembrança dos dias de outrora o
também se volta para dentro (v. 4). Embora ajude a enfrentar um presente tão instável
sua busca por Deus seja constante, não vis‑ e sofrido (v. 7).
lumbra conforto para si, tamanha é sua 77,8-10 Incapaz de experimentar a leal‑
aflição (v. 3). dade, a misericórdia e a compaixão divi‑
77,5-7 Incapaz de dormir durante a noite (v. nas, o orante tem a impressão de que Deus,
5), o orante também não consegue gritar por ter ficado irado, mudou suas princi‑
ou suspirar, nem sequer consegue falar. pais características.
176
Sl 77 (76)
77,11-13 Por mais que testemunhe diferença Levi, o terceiro filho de Jacó, que ficou sem
no comportamento do Senhor, o orante não terra para se dedicar ao sacerdócio, e José,
desiste de sua reflexão sobre a atuação ma‑ penúltimo filho de Jacó. Para completar a
ravilhosa de Deus no passado, quando a di‑ lista dos doze, cujos nomes identificam as
reita divina salvava (Ex 15,6.12). doze tribos de Israel, entram os dois filhos
77,14-16 A santidade é uma das característi‑ de José: Manassés e Efraim (Gn 48,1–49,28).
cas de Deus, transcendendo a realidade que 77,17-20 O orante introduz uma teofania.
o homem conhece (Ex 15,11). Contudo, por Deus é imaginado como quem domina as
mais incomparável e por maior que seja o águas que representam o caos. Ele governa
Senhor, seu caminho se tornou conhecido, as águas subterrâneas dos abismos e as
sobretudo através do êxodo, quando reve‑ águas superiores nas nuvens, incluindo os
lou sua força e sua capacidade de provocar o diversos elementos que compõem as tem‑
milagre, ao resgatar os oprimidos com seu pestades. A roda lembra o trono móvel de
braço estendido (Ex 6,6). Os povos ficaram Deus nos céus (Ez 10,2.6.13). No final, as
sabendo disso, pois presenciaram o que águas trazem à memória o mar dos Juncos
aconteceu com o povo formado pelos filhos e o evento do êxodo (v. 20). Contudo, por
de Jacó e José. Aqui, o orante contempla dez mais que Deus se tenha revelado de forma
dos doze filhos do patriarca Jacó (Rúben, imponente, suas pegadas ficam misterio‑
Simeão, Judá, Dã, Neftali, Gad, Aser, Issa‑ samente ocultas.
car, Zabulon e Benjamim). Ficaram de fora
177
Sl 77 (76)
77,21 Finalmente, quem reza aqui faz uma guiou seu rebanho rumo à liberdade, tendo
referência explícita ao êxodo. Foi Deus que Moisés e Aarão como mediadores.
178
Sl 78 (77)
Salmo 78 (77)
78,1-2 Quem reza aqui se dirige ao povo, à geração futura (vv. 3-4). Contudo, com a
querendo apresentar uma instrução antiga experiência da libertação, nasceu também
que, embora tenha se tornado um provér‑ um projeto jurídico, a fim de que o povo
bio, agora é enigmática. O orante imagina nunca mais perdesse a liberdade, o grande
a atualidade dessa instrução para seu mo‑ fruto da graça divina. No entanto, ao povo
mento histórico. cabe a tarefa de tornar conhecido esse esta‑
78,3-8 Os pais transmitiram uma história tuto formado pelos mandamentos de Deus,
segundo a qual Deus havia revelado sua a fim de que ele sirva como instrução capaz
força quando libertara maravilhosamente de garantir a liberdade a todos. Seguir esse
o povo da escravidão no Egito. Eis o princi‑ ensino é a melhor forma de pôr a confiança
pal motivo dos louvores, e o orante afirma no Senhor (vv. 5-8).
que é necessário passar esse patrimônio
179
Sl 78 (77)
9 Os filhos de Efraim,
armados de arqueiros,
debandaram no dia da peleja.
10 Não guardaram a aliança de Deus
e rejeitaram andar conforme sua instrução.
11 Esqueceram as ações
e as maravilhas dele, que lhes fizera ver.
78,9-11 Ao olhar para Efraim – tribo que Egito, em especial no delta do rio Nilo, re‑
pode representar todo o povo israelita, em presentado pela cidade de Soã (Tânis), o
especial a população do norte –, o orante Senhor realizou milagres em forma de pra‑
lembra a verdade de a comunidade ter re‑ gas (v. 12). Seguiram-se as maravilhas das
jeitado tanto a história de Deus com seus passagens pelo mar (v. 13) e pelo deserto (vv.
antepassados como o projeto jurídico que 14-16), sendo que o povo, durante todo o tem‑
expressa essa história. po, foi conduzido por seu Deus. Este se fez
78,12-16 Quem reza aqui narra poeticamen‑ presente através das duas nuvens, parando
te a história do evento do êxodo. Ainda no as águas do mar e fornecendo água potável.
180
Sl 78 (77)
78,32-39 Apesar de uma atuação de Deus tíssimo e resgatador (vv. 34-35). Contudo,
altamente favorável ao seu povo, sempre o povo voltou a optar pela mentira e pelo
se insistiu no pecado e na falta de fé (v. 32). engano, sendo incapaz de manter sua fé na
Isso, segundo o orante, fez com que a co‑ aliança oferecida e estabelecida por Deus
munidade se iludisse e, portanto, ficasse (vv. 36-37). Mesmo assim, diante da fuga‑
apavorada (v. 33). Diante do perigo de mor‑ cidade da vida do homem, Deus insiste em
te, por sua vez, houve um retorno a Deus, ser compassivo, em vez de valorizar a culpa
o qual é contemplado como rochedo, Al‑ do homem (vv. 38-39).
182
Sl 78 (77)
78,40-51 O pensamento do orante volta-se 9,1-7) e a morte dos primogênitos (v. 51; Ex
para o comportamento errado de Israel, 11,1-10; 12,29-34).
tendo como referência o período em que 78,52-55 O orante reflete sobre a última
os libertos da escravidão no Egito atraves‑ etapa do projeto do êxodo. Após a saída do
saram o deserto (vv. 40-43). Eles andaram Egito e a passagem pelo deserto, Deus fez
esquecidos dos sinais realizados em forma seu povo chegar à terra prometida, garan‑
de pragas por Deus em meio aos egípcios. tindo aos anteriormente oprimidos a posse
Ao todo, o orante menciona sete das dez do bem imóvel necessário para a sobrevi‑
pragas narradas nas tradições do êxodo: a vência. Isso, porém, significa que as demais
transformação das águas em sangue (v. 44; nações precisaram abrir espaço para aque‑
Ex 7,14-25), as moscas (v. 45a; Ex 8,16-28), la que, até então, era escrava. Além disso,
as rãs (v. 45b; Ex 7,26–8,11), os gafanhotos o orante compreende o templo como lugar
(v. 46; Ex 10,1-20), o granizo (v. 47a-48a; Ex que Deus adquiriu para si (v. 54) a fim de
9,13-35), a peste febril dos animais perten‑ morar em meio a seu povo e de reuni-lo em
centes às manadas egípcias (vv. 48b.50c; Ex torno de si.
183
Sl 78 (77)
78,56-64 Embora favorecido pela posse da 60; 1Sm 4,1-11; Jr 7,12; 26,6), bem como a
terra, o povo de Israel continuou a ser revol‑ arca, força e esplendor do Senhor, que fi‑
toso, não acolhendo o projeto jurídico do cou com o inimigo (v. 61). Em seguida (vv.
êxodo (vv. 56-57). O orante menciona a ido‑ 62-64), quem reza aqui se lembra da que‑
latria, a presença de imagens de divindades da do Reino do Norte, o qual, após a morte
estrangeiras e a prestação de cultos a tais do rei Salomão, passou a ser formado por
deuses nos lugares altos (v. 58). Tudo isso, dez tribos israelitas (2Rs 9). Na segunda
segundo o orante, fez com que o Senhor, metade do século VIII a.C., por sua vez, o
Deus de Israel, não evitasse determinadas Reino do Norte sucumbiu diante dos ata‑
catástrofes na história de seu povo (v. 59). ques da Assíria (2Rs 17). Contudo, o povo
Como exemplo, menciona-se o santuário não morre por completo, pois as mulheres
de Silo, que caiu nas mãos dos filisteus (v. sobrevivem.
184
Sl 78 (77)
78,65-72 O orante insiste que Deus não to‑ José e Efraim (v. 67), pois Deus teria esco‑
lera para sempre a atuação dos agressores lhido Judá, Sião e Davi (vv. 68-72; 2Rs 17,18).
(v. 65). Pelo contrário, no momento decidido Percebe-se que o orante prestigia o santuá‑
por ele, combate os inimigos. É possível que rio, o templo de Jerusalém construído sobre
o orante se lembre aqui da desistência do Sião, bem como as origens da monarquia em
exército assírio de conquistar a cidade de Je‑ Davi. Contudo, trata-se de uma visão crítica.
rusalém no ano de 701 a.C. (v. 66). Todavia, A liderança cabe a Davi somente porque ele é
quem reza aqui imagina uma opção divina íntegro no pensamento e prudente no exer‑
contra o Reino do Norte, representado por cício de seu poder.
185
Sl 79 (78)
Salmo 79 (78)
1 Um salmo. De Asaf.
79,1-4 O orante lamenta a conquista de Je‑ o povo à catástrofe (vv. 6-7). No entanto,
rusalém por nações estrangeiras. Indepen‑ tendo experimentado novamente o desas‑
dentemente das razões da invasão, direitos tre, o orante insiste agora, junto a Deus,
fundamentais não são respeitados, pois os na necessidade da compaixão. Seria, pois,
inimigos simplesmente instalaram o caos. injusto que a nova geração fosse prejudi‑
A cidade foi transformada em ruínas, inclu‑ cada por causa dos erros cometidos pelos
sive o templo pertencente a Deus. Não houve antepassados (v. 8). Enfim, reconhecendo
respeito aos mortos. Quem reza aqui afirma a culpa do povo, quem reza aqui cultiva
que, para o Senhor, isso é inaceitável. a esperança de que a fúria do Senhor seja
79,5-9 A relação entre o Senhor e seu povo passageira, dando lugar a uma atuação
pressupõe exclusividade. Deus até pode salvífica, auxiliadora e libertadora (v. 9).
sentir um santo ciúme (v. 5; Ex 20,5; 34,14; É dessa forma que se manifesta o peso ou
Dt 4,24), um ciúme amoroso, motivado a glória do nome de Deus, invocado pelo
pela vontade de querer proteger o aliado, orante (v. 5a) e não invocado pelas nações
pois a história revelou continuamente que (v. 6d).
a infidelidade de Israel ao Senhor levava
186
Sl 79 (78)
79,10-13 Os crimes cometidos pelas na‑ povo (v. 12) negam as características prin‑
ções contradizem a ordem prevista pelo cipais e a presença de Deus (v. 10b). Diante
Senhor para o mundo, pois a insistência disso, o orante vê como única alternativa
no genocídio (v. 10d), o aprisionamento de a entrega permanente ao Senhor, na espe‑
capturados em guerra (v. 11a) e a humilha‑ rança de que Deus faça justiça diante da
ção conjunta e pública de um determinado brutalidade das nações (v. 13).
187
Sl 80 (79)
Salmo 80 (79)
80,1-4 Deus é invocado como pastor (Gn vor dos que lhe são subjugados. Quem reza
48,15; 49,24; Sl 23,1). Com isso, cultiva-se a aqui cultiva a esperança de que o Senhor,
esperança de que Deus conduza, alimente, Deus dos Exércitos celestes (v. 5), volte a
proteja e defenda seu povo. Este é apresen‑ caminhar com seu povo, fazendo resplan‑
tado como gado miúdo e representado por decer sua luz divina. A experiência histó‑
José, figura importante do êxodo. Com rica de sua comunidade, pois, voltou a se
José, pois, ocorreu a chegada dos descen‑ aproximar de um momento dramático.
dentes de Abraão ao Egito (Gn 37–50). Além A referência, provavelmente, diz respeito
disso, seus restos mortais marcaram tam‑ aos anos de 732 a 722 a.C., quando o terri‑
bém a saída do Egito, uma vez que Moisés tório do Reino do Norte, de início formado
levou consigo os ossos de José, a fim de que por dez tribos israelitas, foi reduzido pe‑
fossem enterrados em Siquém (Gn 50,25; los assírios às terras de Efraim, Benjamim
Ex 13,19; Js 24,32). No mais, Deus é imagi‑ e Manassés. Tal crise política chegou a pôr
nado como quem senta sobre querubins, em risco a existência do povo de Deus. No
seres compostos de cabeça de homem, final da primeira estrofe, o orante intro‑
asas de águia e corpo de fera selvagem. No duz o refrão (vv. 4.8.15.20). A face brilhante
imaginário do Antigo Oriente, é comum de Deus simboliza a presença salvífica, ou
os deuses e o rei estarem assentados num seja, bênção e proteção, graça e paz da parte
trono formado por querubins, mostrando do Senhor (Nm 6,24-26).
sua força e disponibilidade de lutar em fa‑
188
Sl 80 (79)
80,5-14 O orante lembra-se do Senhor como Por isso, segue a prece pela atuação salvífica
Deus dos Exércitos (v. 5a). Como um rei na do Senhor (v. 8). O momento atual se revela
terra, também o rei divino tem sua corte e ainda mais absurdo, sobretudo quando se
seu exército celestes. Contempla-se, por‑ lembra como outrora o Senhor atuou de um
tanto, a possibilidade de Deus exercer seu modo tão favorável a seu povo. Como viticul‑
poder. Contudo, quem se lamenta aqui re‑ tor, transferiu sua videira, que é Israel, do
vela sua impaciência, perguntando: “Até Egito para uma terra melhor. Cuidou dela
quando?” No momento, pois, uma nuvem e fez com que se desenvolvesse, estendendo
de fumaça parece impedir que a oração do sua presença, como nação, para além de seu
povo se encontre com a face iluminada do espaço habitual (vv. 9-12). Agora, porém, o
Senhor (v. 5b). Além disso, o orante acusa o mesmo viticultor é experimentado como
pastor divino de não oferecer verdes pas‑ quem derrubou os muros de proteção da vi‑
tagens e “águas em lugares de repouso” (Sl nha. Assim, os animais têm acesso, podendo
23,2), mas somente lágrimas, tanto para co‑ revolver a terra e, com isso, destruir as raízes
mer como para beber (v. 6). O resultado dis‑ da videira, ou acabar com a ramagem, as fo‑
so é desrespeito e humilhação por parte de lhas e os frutos da planta preciosa (vv. 13-14).
vizinhos que se tornaram inimigos (v. 7).
189
Sl 80 (79)
80,15-20 Dirigindo-se mais uma vez ao à direita de Deus (v. 18a) e filho do ser hu‑
Deus dos Exércitos (vv. 5a.8a.15a.20a), o mano que, para si, Deus torna resistente
orante pede o fim da crise. O viticultor di‑ (vv. 16b.18b). Apesar de ter experimentado
vino deve voltar a cuidar da videira (v. 15c), o Senhor como pastor e viticultor que deixa
que, plantada pelo próprio Deus (v. 16a), de exercer suas funções de cuidado e zelo,
foi cortada e incendiada (v. 17a). Nesse con‑ o orante insiste na proximidade do povo a
texto, quem reza aqui imagina que a sal‑ seu Deus (v. 19a). Sabe, pois, que Israel so‑
vação do povo de Israel passe pelo rei. Por mente vive porque o Senhor o faz viver (v.
isso, lembra-se deste último como homem 19b), repreendendo seus inimigos (v. 17b).
190
Sl 81 (80)
Salmo 81 (80)
81,1-5 A comunidade é convidada a parti‑ vez ao povo antes da travessia do rio Jordão.
cipar ativamente de uma celebração fes‑ Para quem reza aqui, por sua vez, as tradi‑
tiva. Instrumentos rítmicos e melódicos ções jurídicas do antigo Israel são o resul‑
devem ser tocados. O brado jubiloso quer tado do êxodo como um todo. A primeira
espelhar a força do Deus de Jacó, uma vez etapa desse projeto de libertação se reali‑
que o nome do patriarca lembra as origens zou quando Deus combateu o poder opres‑
do povo de Israel. Além disso, a festa como sivo no Egito. A celebração ganha conteúdo
prescrição inegociável é fruto de um jul‑ quando é narrada a experiência histórica
gamento exemplar de Deus. Por isso, a da libertação dos trabalhos forçados, sendo
religião israelita encontra um de seus fun‑ que o participante da festa escuta uma voz
damentos nas reuniões festivas do povo. divina (v. 6c). Essa voz o lembra de como o
81,6-8 De forma surpreendente, o oran‑ Senhor esteve atento ao sofrimento de seu
te imagina que, ainda no Egito, Deus deu povo (v. 8a), de como o fez sair fisicamente
seu testemunho ou estatuto a Israel, repre‑ da sociedade escravista (v. 8b), dialogando
sentado por José (v. 6ab). Esse pensamento com sua comunidade (v. 8c) e examinando‑
completa a ideia de o Senhor ter dado seus -a para que voltasse a provar sua fidelidade
mandamentos ao povo no monte Sinai, vis‑ ao Senhor e ao projeto de libertação propor‑
to que Moisés os anunciou uma segunda cionado por ele (v. 8d; Ex 17,1-7; Nm 20,1-13).
191
Sl 81 (80)
81,9-11 Deus deu seu testemunho a seu 81,12-13 Quem reza aqui apresenta agora
povo, a afirmação fundamentada de sua um discurso divino sobre Israel. Ao rejei‑
vontade (v. 6a). Ao mesmo tempo, sabe tar a palavra de seu Deus, o povo, conse‑
testemunhar a favor ou contra sua comu‑ quentemente, teve de substituir a proposta
nidade (v. 9ab). Será que o povo estava aco‑ feita pelo Senhor por seus próprios planos.
lhendo a verdade e a moral reveladas pelo De forma indireta, fica claro com isso que
Senhor? A adesão exclusiva dos israelitas a o povo também é responsável pelo destino
seu Deus é uma proposta diametralmente que teve ou está para ter. Não é mais possí‑
contrária aos projetos presentes nas cultu‑ vel culpar a Deus por isso.
ras das nações vizinhas. O orante recorda 81,14-17 A oração termina com o desejo de
o discurso do Senhor, através do qual este que Israel ande nos caminhos de seu Deus
último se apresenta como quem deu a li‑ (v. 14). Tal aliança traria, como fruto, a su‑
berdade a seu povo (v. 11ab) e como quem in‑ peração dos inimigos (v. 15) e, com isso, a
siste num relacionamento exclusivo, a fim permanência perene na terra, visto que esta
de que possa alimentar sua comunidade última, de acordo com a vontade de Deus,
para sempre, seja com comida, seja com iria oferecer seus frutos aos moradores (vv.
sua palavra (v. 10; Ex 20,2-3; 34,14; Dt 5,6-7; 16b.17).
18,18; 31,19).
192
Sl 82 (81)
Salmo 82 (81)
1 Salmo de Asaf.
82,1-7 Quem reza aqui destaca o Deus de 3a). De outro lado, a cultura religiosa e
Israel e imagina a presença do Senhor jurídica de Israel, mais do que a dos po‑
em meio a uma assembleia divina, se‑ vos vizinhos, insiste na libertação de to‑
melhante às reuniões hierárquicas dos dos os indigentes e necessitados (vv. 3-4).
deuses previstas nas outras culturas vizi‑ Entende-se, pois, que o pobre é carecedor
nhas de Israel. O Deus de Israel, qual um em razão de sua condição de oprimido e
promotor de justiça, acusa, pois está de injustiçado pelo perverso. Por isso, uma
pé (v. 1b), mas também julga, função que visão mais profética inclui a mudança das
traz consigo a ideia de um juiz assentado estruturas de uma sociedade que insiste
sobre seu trono (v. 1c). A acusação do Deus na opressão da maioria de seus membros.
de Israel visa desmascarar a desigualdade No entanto, quem reza aqui lamenta a
promovida pelos deuses (v. 2a). Além dis‑ aparente incapacidade dos outros deuses
so, eles teriam favorecido quem insiste na de combater a injustiça no mundo, pois
perversidade (v. 2b). De acordo com a cul‑ eles não compreenderam sua tarefa e des‑
tura do Antigo Oriente, pressupõe-se que conhecem a luz da justiça. Pelo contrário,
existe uma ordem divina, a qual se torna andando nas trevas eles provocam abalos
visível no direito e precisa ser defendida contra a terra (v. 5). Segue-se, portanto, a
pelos deuses entre os povos subjugados a condenação dos deuses por parte do Deus
eles. Nesse contexto, quem reza aqui traz de Israel (vv. 6-7). Seguindo o princípio de
consigo a justiça promovida pelos julga‑ que a divindade deve atuar a favor de quem
mentos paradigmáticos que formam o é empobrecido e, portanto, a favor da jus‑
direito do antigo Israel, presente nas tra‑ tiça prevista pelo direito, os deuses das na‑
dições do Pentateuco. De um lado, visa‑ ções hão de morrer, semelhantemente a
-se ajudar as pessoas que correm maiores funcionários e nobres, que serão destituí‑
riscos de sobrevivência, como o órfão (v. dos de seus cargos e lideranças.
193
Sl 82 (81)
82,8 O orante, finalmente, formula a pre‑ tendendo à humanidade inteira sua ação
ce na qual deseja e espera que o Deus de libertadora em favor dos oprimidos, assu‑
Israel suplante todos os demais deuses, es‑ mindo, assim, a posse de todas as nações.
194
Sl 83 (82)
Salmo 83 (82)
83,1-9 O silêncio de Deus é compreendi‑ 6). No caso, nove nações pequenas fazem
do como um perigo (v. 2), pois é através de oposição a Israel, sendo elas incitadas e di‑
sua palavra que ele acompanha seu povo. rigidas pela Assíria, décima nação mencio‑
Se Deus ficar mudo, os inimigos de Israel nada pelo orante e a única grande (vv. 7-9).
podem levantar sua voz e, ao tumultuar É possível localizar Edom, Moab e Amon,
as coisas, provocar o caos (v. 3). Assim, o no leste de Israel, assim como a Filisteia
orante os compreende como inimigos do e Tiro, no oeste de Israel. Contudo, parte
Deus de Israel, pois destroem a ordem di‑ dessas nações vizinhas é parente de Israel.
vina prevista para o mundo. Israel, pois, Amon e Moab, pois, são os filhos de Ló, so‑
como povo de Deus, faz parte do plano di‑ brinho de Abraão (Gn 19,30-38). Edom, por
vino. Por ter a tarefa de se tornar o sinal da sua vez, é Esaú, que, junto com seu irmão
vontade de Deus para toda a humanidade, mais jovem, Jacó, é filho de Isaac (Gn 25,29-
ele é conservado de um modo especial (v. 34). Os ismaelitas, no entanto, são a descen‑
4). No entanto, justamente isso as nações dência de Ismael, filho que Abraão teve com
não querem aceitar. Declaram que Israel, a egípcia Agar, mãe dos agareus (Gn 16,15;
em vez de povo de Deus, seria uma nação 21,8-21). Contudo, apesar das relações fa‑
como as demais. Além disso, planejam o miliares, tornaram-se inimigos do povo de
extermínio de Israel, a fim de que seja es‑ Deus, assim como Amalec, que pertence à
quecido até seu nome (v. 5). Quem reza aqui região desértica no sul de Israel (Ex 17,8-16;
avalia tal plano como uma aliança contra 1Sm 15,1-9). Não é possível identificar Ge‑
o Deus que fez sua aliança com Israel (v. bal.
195
Sl 83 (82)
83,10-19 O orante formula seu desejo de ani‑ quistadas pelo próprio Deus (Is 9,3), ima‑
quilamento como justa retribuição contra ginando que quem cobiça as pastagens do
os inimigos, lembrando tradições que per‑ povo de Deus é transformado em esterco
tencem à época dos juízes, nos séculos XII (vv. 11b.13b). Enfim, quem reza aqui pede a
a XI a.C. Naquele tempo, Israel se viu en‑ Deus que se oponha aos inimigos com suas
tregue a Jabin, rei de Canaã que reinava em forças destruidoras (vv. 14-16). Contudo, a
Hasor, e a Sísara, o chefe do exército dele. ideia de que sejam atingidos por opróbrio,
Estes foram vencidos por Débora e Barac, vergonha, frustração, pavor e perecimento
na torrente do Quison (v. 10b; Jz 4–5). Israel (vv. 17a.18) resulta não no aniquilamento
também se viu ameaçado pelos madianitas; físico dos inimigos, mas sim no reconheci‑
foi Gedeão quem venceu seus chefes Oreb e mento do nome do Senhor por parte deles
Zeb, assim como seus reis Zebá e Sálmana (vv. 17b.19a). Tal saber inclui a insuperabili‑
(vv. 10a.12; Jz 6–8). Mais importante ainda dade do Deus de Israel (v. 19b).
é que Israel celebrou tais vitórias como con‑
196
Sl 84 (83)
Salmo 84 (83)
84,1-5 Quem reza aqui declara seu amor ao pássaros que constroem seus ninhos nas de‑
templo. Contempla o santuário como mora‑ pendências do santuário (v. 4).
das do Senhor (v. 2a) e casa de Deus (v. 5a), um 84,6-8 Encontrar-se com Deus no templo
espaço que inclui os átrios (v. 3b) e o altar (v. significa para muitos a necessidade de
4c). O orante até afirma que o templo ocupa peregrinar rumo ao santuário. O fato de
sua vida e seus desejos, seus pensamentos e as estradas rumo a Deus serem aplaina‑
sentimentos, representados por alma, co‑ das gera nas pessoas uma força que parece
ração e carne (v. 3). Contudo, não é somente vir do alto (v. 6). Além disso, com sua sau‑
a beleza do lugar que encanta, mas sobre‑ dade de Deus, os peregrinos parecem ser
tudo a proximidade de Deus que o templo capazes de transformar regiões mais se‑
favorece. A presença do Senhor é experi‑ cas, como o vale da Amoreira, em lugares
mentada, por excelência, quando são mani‑ cheios de vida (v. 7). Enfim, sem se cansar e
festados júbilo (v. 3d) e louvor (v. 5b) para o rei passando por muitos lugares fortificados,
celeste. Enfim, deseja-se uma permanência chegam a seu destino no monte Sião, onde
maior no templo, semelhante à presença dos podem ver seu Deus (v. 8).
197
Sl 84 (83)
84,9-13 Por fim, ao se encontrar nos átrios mais do que uma permanência prolonga‑
e no umbral da casa de Deus, os peregri‑ da em local onde impera a perversidade
nos lhe pedem que atenda à sua oração (v. (v. 11). Cultiva-se a esperança de que Deus
9). Como escudo protetor (vv. 10a.12a) e sol derrame sua graça e seus bens sobre quem
da justiça (v. 12a; Ml 3,20), Deus deve olhar insiste numa vida íntegra, de acordo com
para aquele que ele ungiu, a fim de que go‑ a justiça divina (v. 12). Tem-se, portanto,
verne o povo (v. 10). No mais, realça-se um consciência de que a confiança no Senhor
contraste. Uma estada curta no templo, há de incluir uma opção clara por um com‑
experimentando a presença de Deus, vale portamento ético.
198
Sl 85 (84)
Salmo 85 (84)
85,1-4 Ao inverter o destino de seu povo, consciência de que o povo somente voltará
provavelmente por dar fim ao cativeiro, a sentir alegria se for apoiado por Deus. O
o Senhor se revela favorável à sua comu‑ orante cultiva a fé de que a vida do povo de‑
nidade (v. 2). Acredita-se que a catástrofe pende da lealdade e da atuação salvífica do
sofrida tenha sido o resultado de um com‑ Senhor, características que podem se tor‑
portamento contrário à vontade de Deus. nar invisíveis quando se insiste numa pos‑
No entanto, agora o povo pode experimen‑ tura marcada pela oposição ou indiferença
tar o Senhor como quem está disposto a a Deus.
perdoar, possibilitando um processo de re‑ 85,9-10 A salvação não está longe, nem de‑
fundação. mora. Basta querer escutar a palavra de
85,5-8 A situação atual pressuposta na se‑ Deus, que fala da paz. Basta adotar uma
gunda estrofe (vv. 5-8) faz o ouvinte-leitor postura marcada pelo respeito a Deus, em
perceber que, na primeira estrofe (vv. 2-4), vez de voltar à estupidez. Enfim, os que se
embora se referindo ao passado, é apresen‑ abrem a Deus já podem experimentar a
tada uma visão profética que visa ao fu‑ proximidade da salvação, da glória de Deus
turo. Por isso, são formuladas preces (vv. na terra.
5.8) e perguntas (vv. 6-7), que partem da
199
Sl 85 (84)
85,11-14 A salvação já começou, pois a leal‑ sim, a terra volta a produzir os alimentos
dade, a verdade, a justiça e a paz já se uni‑ tão necessários a todos (vv. 12-13). Fica claro,
ram na terra, sendo que a justiça divina se porém, que não existe solução senão trilhar
manifestou a partir dos céus (v. 11). E, as‑ o caminho da justiça (v. 14).
200
Sl 86 (85)
Salmo 86 (85)
86,1-7 O orante se apresenta como oprimido 2.4.16), pois, experimenta a atuação favorá‑
e pobre (v. 1). Trata-se de uma miséria pro‑ vel de seu Senhor (vv. 3.4.5.8.9.12.15). Deus,
vocada por quem curva ou humilha o pró‑ por sua vez, é descrito como um senhor que
ximo. Além disso, o orante se apresenta ao protege o alento de seu servo (v. 2), como
Senhor como quem pertence ao grupo dos quem oferece, de forma misericordiosa,
humildes, os quais desenvolvem uma espi‑ sua graça (v. 3) e como quem, de forma soli‑
ritualidade ligada à sua experiência de hu‑ dária, é bondoso e disposto a perdoar (v. 5).
milhação. Quem reza aqui insiste em sua Enfim, o servo não perde a confiança de re‑
fidelidade confiante a Deus, adotando para ceber uma resposta salvífica de seu Senhor
si o termo “servo” (v. 2). Como servo (vv. (vv. 2.6-7).
201
Sl 86 (85)
86,8-13 Partindo do pensamento da incom‑ 86,14-17 O orante é oprimido e pobre (v. 1c),
parabilidade de seu Deus, na base de um porque precisa enfrentar um grupo orga‑
olhar para as obras da criação (v. 8), o oran‑ nizado de pessoas arrogantes e agressivas
te avalia também as nações como feitas que, na realidade, não levam Deus em con‑
pelo mesmo Deus. Além disso, imagina sideração (v. 14). Por isso, como servo, in‑
que estas, no futuro, também reconhe‑ siste nas qualidades de seu Senhor (v. 15; Ex
cerão aquele que é o senhor de toda a his‑ 34,6): a compaixão, estando atento ao sofri‑
tória, aceitando o reinado dele (v. 9). O mento do outro; a misericórdia, oferecendo
orante e as nações irão proclamar o hino sua graça ao miserável; a paciência, a soli‑
que confessa a grandiosidade do Senhor (v. dariedade e veracidade. Contudo, o oran‑
10). Contudo, quem reza aqui continua a te insiste na necessidade urgente de Deus
formular suas preces. Sabe que precisa ser dedicar-se a ele, dando-lhe forças, uma vez
instruído por Deus, para poder andar, de que os inimigos ameaçam sua sobrevivên‑
coração não dividido (Jr 32,39; Ez 11,19-20; cia (v. 16). Além disso, o orante, auxiliado e
36,26-27), no caminho da verdade (v. 11). confortado pelo Senhor, quer se tornar um
A promessa de agradecimento e de glória sinal vivo da ajuda divina aos mais necessi‑
a Deus (v. 12) é a consequência da lealdade tados. O opressor haverá de sentir vergonha
do Senhor, que liberta do mundo da morte por não ter reconhecido essa característica
(v. 13). principal de Deus (v. 17).
202
Sl 87 (86)
Salmo 87 (86)
87,1-3 O orante reflete sobre Sião e Jerusa‑ as grandes nações como o Egito – represen‑
lém, a cidade de Deus construída sobre tado por Raab, o monstro mítico do caos
esse monte. Além de ser de Deus, o lugar (Is 30,7) – e a Babilônia, mas também para
também foi fundado por Deus. O Senhor a Filisteia e Tiro, povos vizinhos de Israel,
ama os portões de Sião, que representam a como para Cuch, povo mais distante no sul
justiça, pois é no lugar de entrada e saída do Egito. Sião e Jerusalém ganham centra‑
que se estabelece o tribunal, que se reali‑ lidade e se tornam mãe de todos os povos,
zam os julgamentos e que se faz o direito pois ali a instrução – isto é, a Torá, formada
prevalecer. Além disso, é através dos por‑ pelos cinco livros do Pentateuco – e a pala‑
tões da justiça, ligados ao templo, que se vra do Senhor serão anunciadas pelos pro‑
caminha rumo ao Senhor (Sl 118,19-20). fetas (Is 2,2-5; Mq 4,1-5).
Imagina-se até que o próprio Senhor, 87,7 A oração termina com a visão de uma
como rei da glória, queira entrar por tais grande festa. O monte Sião e a cidade de
portões (Sl 24,7-10). Deus se revelam como lugar onde brota a
87,4-6 Os diversos povos renascem em Sião, vida para todos, pois o Senhor quer que to‑
lugar firmado pelo Senhor. Isso vale para dos os povos nasçam ali.
203
Sl 88 (87)
Salmo 88 (87)
88,1 Emã faz parte dos músicos levitas do mundo dos mortos. Além disso, imagina‑
templo de Jerusalém (1Cr 15,17.19). Sua sa‑ -se num lugar bem inferior na hierarquia
bedoria serve para descrever a sabedoria dos mortos, comparando-se a um alfor‑
do rei Salomão (1Rs 5,11). riado ou ao transpassado pela espada ou
88,2-10a O orante invoca o nome de Deus, o lança, enterrado numa vala comum, jun‑
tetragrama sagrado, traduzido aqui como to a outras vítimas numa guerra. Assim,
“Senhor”. Com isso, menciona também, imagina-se até esquecido por Deus (v. 6).
de forma esperançosa, a característica Num segundo momento de sua lamenta‑
principal de Deus, que consiste na capa‑ ção, o orante se queixa a respeito de Deus
cidade de salvar quem grita por socorro (vv. 7-9). De forma inexplicável, vê-se atin‑
(v. 2). A prece se torna um apelo a Deus, na gido pela fúria divina. Em especial, expe‑
expectativa de a oração chegar até ele e ser rimenta sua estada entre os mortos por ter
atendida (v. 3). Ao descrever sua miséria, sido isolado pelos conhecidos como algo
o orante se vê entregue à morte (vv. 4-5). abominável. Embora ainda esteja vivo, já
Saciado de males e sem força, já se vê no sofreu a morte social.
204
Sl 88 (87)
207
Sl 89 (88)
89,20-26 Quem reza aqui introduz agora pa do poder divino, tendo domínio sobre o
outro discurso de Deus (v. 20ab), para des‑ mar e os rios, os quais representam o caos e/
tacar como o Senhor encontrou, escolheu e ou as barreiras que precisam ser superadas
ungiu Davi (vv. 20cd.21; 1Sm 16,1-13), a fim para alcançar a terra prometida (v. 26; Ex
de o firmar e apoiar (v. 22). Consequente‑ 14; Js 3–4).
mente, os inimigos não têm como atingi-lo, 89,27-28 O orante, apresentando um diá‑
por mais que insistam, de forma agressiva, logo entre o eleito e Deus, imagina que o
na desigualdade (v. 23). Em vez de o eleito rei participe da alteza de Deus, assumindo
se defender, é Deus quem vence seus opo‑ junto ao povo eleito (Dt 26,18-19; 28,1) certa
sitores (v. 24). O poderio do ungido, repre‑ superioridade em relação aos demais reis.
sentado pela fronte ou, literalmente, pelo Contudo, isso somente vale se o eleito res‑
chifre, é ligado ao nome do Senhor. É esse peitar a paternidade de Deus, observando
nome, vinculado à história do êxodo, que a instrução do Senhor e colocando-se a ser‑
garante a prevalência da vontade liberta‑ viço de seu povo e do bem em geral (2Sm
dora de Deus (v. 25). Assim, o eleito partici‑ 7,14).
208
Sl 89 (88)
89,29-38 Continua o discurso direto de 89,39-46 Após ter recordado o projeto origi‑
Deus. O Senhor assegura ao rei sua leal‑ nal da aliança de Deus com Davi, o orante
dade e a fidedignidade de sua aliança (vv. se lamenta da situação atual. Deus mesmo
29-30). Contudo, exige-se de quem go‑ teria desfeito seu pacto que favorecia a di‑
verna a observância do projeto jurídico, nastia de Davi (vv. 39-40). Por isso, ocorre‑
nascido da experiência do êxodo (vv. 31-32). ram as devastações terríveis na terra (vv.
Caso contrário, Deus mesmo insistirá em 41-42). A realidade dura indica até que Deus
correções, uma vez que a oposição ao proje‑ apoiou o inimigo (v. 43). Enfim, sem êxito
to de salvação não tem como se tornar uma na guerra (v. 44), a realeza chega ao fim (v.
alternativa verdadeira (v. 33). Todavia, a re‑ 45). É possível que o orante tenha em mente
beldia e a culpa do rei não anularão as pro‑ a tragicidade de Josias (640-609 a.C.), mor‑
messas divinas (vv. 34-35). Faz parte de sua to ainda jovem, como também o destino do
santidade que Deus se mantenha solidário rei Joaquin, deportado para a Babilônia em
e fiel a seu eleito, pois ele mesmo é testemu‑ 597 a.C., quando tinha apenas dezoito anos
nha celeste do que prometeu (vv. 36-39). (2Rs 24,8-17).
209
Sl 89 (88)
90,1-2 Quem reza aqui parte da experiên‑ turas em sua sobrevivência. Por isso, faz-se
cia histórica de Deus ter se revelado como necessária a presença constante de Deus
quem ofereceu abrigo e proteção às diver‑ (v. 2c).
sas gerações (v. 1bc). Existe, portanto, uma 90,3-6 A presença constante e eterna de
relação pessoal com Deus, a qual vem do Deus é contrastada pela presença transi‑
passado. Em contrapartida, o orante reco‑ tória e fugaz do ser humano. Além dis‑
nhece que Deus é o totalmente outro. É o so, o orante tem a impressão de que Deus
Criador que existe desde sempre, mesmo mesmo ordenou a volta do homem ao pó
antes da criação (v. 2). Após ter criado as (Gn 3,19), pois o ser humano foi criado
montanhas subterrâneas, que carregam a como mortal. As comparações destacam
terra, e o cosmo como um todo, acompa‑ as limitações da vida humana, a qual é
nhou seu povo, tornando-se uma morada como o sono, que, com o despertar, deixa
para ele, uma vez que o mundo oferece de existir.
muitos perigos, os quais ameaçam as cria‑
211
Sl 90 (89)
90,7-10 O grupo que reza aqui se sente apa‑ deve contentar-se com uma vida limitada e
vorado por experimentar que sua vida se imaginar que Deus favorece a ira. Pelo con‑
esgota (v. 7). Além disso, acolhe o pensa‑ trário, o orante formula agora um apelo ao
mento tradicional de que o ser humano, ao Senhor, a fim de que este se compadeça de
tornar-se culpado – seja em público, seja seus servos, fazendo-os experimentar no‑
em segredo (v. 8) –, não tem como se manter vamente sua solidariedade graciosa. Ele es‑
diante de Deus. Sentindo-se, no entanto, pera, de fato, que Deus mesmo transforme
constantemente ameaçado pela ira divina a lógica da morte em júbilo e alegria.
e, portanto, pela morte, até uma vida de 90,15-16 A continuação do pedido visa a
oitenta anos pode ser somente de tormento, uma experiência da ação transformadora
vã fadiga e desgraça. de Deus por parte dos que foram atingidos
90,11-12 A lógica da morte e da imagem de pela opressão e, portanto, pelo mal, como
Deus provocada por ela leva o orante a for‑ também por parte da geração futura. As‑
mular seu pedido para que Deus ensine o sim, também os filhos verão o esplendor do
ser humano a contar seus dias. O resultado Senhor.
disso seria um coração sábio, capaz de aco‑ 90,17 O orante termina com um pedido de
lher a vida, por mais que esta se apresente, bênção divina. Cultiva a esperança de que
em muitos momentos, de forma fugaz e Deus, com sua generosidade e suavidade,
transitória. sustente aquilo que o ser humano, em meio
90,13-14 Quem reza aqui não opta por um à sua fragilidade, constrói.
conformismo segundo o qual o ser humano
212
Sl 91 (90)
Salmo 91 (90)
91,1-2 Quem reza aqui se propõe confiar no caído na rede do caçador ou enfrentando
Senhor, pois experimenta a proteção vinda flechas com pontas venenosas, refugia-se
de Deus. É de fundamental importância em Deus como se este fosse um pássaro‑
para o ser humano saber onde morar, per‑ -mãe (vv. 3a-4b). Atacado com flechas, tem
noitar, abrigar-se e refugiar-se. O templo em Deus uma couraça e muralha (vv. 4c-5).
dá a impressão de Deus ser uma fortaleza Nem as doenças que provocam a morte em
na qual o fiel pode se sentir seguro e até re‑ massa o atingem (vv. 6-7). Pelo contrário,
ceber asilo. quem confia no Senhor deve contemplar os
91,3-8 O orante se encontra num mundo que acontecimentos terríveis como resultado
lhe é adverso e o ameaça em sua sobrevivên‑ da justiça retributiva (v. 8).
cia. Perseguido como um pássaro jovem
213
Sl 91 (90)
91,9-13 Ao repetir sua confissão de con‑ combate contra o caos, representado por
fiança (vv. 2.9a), o orante reforça que mora animais selvagens e figuras mitológicas
em Deus (v. 9b) e que nenhum mal pode (v. 13).
atingi-lo em sua tenda (v. 10). Em vez de 91,14-16 O final da oração apresenta um dis‑
ser alvo de determinadas forças obscuras curso de Deus. Assegura-se ao orante aflito
– a peste e as epidemias como males perso‑ que a presença de Deus em sua vida não
nificados (v. 6) –, é carregado pelas forças significa somente proteção e salvação dos
protetoras de Deus (vv. 11-12). Além disso, perigos, mas plenitude e longevidade.
o protegido por Deus participa agora do
214
Sl 92 (91)
Salmo 92 (91)
92,1-4 A afirmação de que é bom agradecer 92,5-12 O orante agradece ao Senhor, pois
ou louvar o Senhor encontra três justifica‑ descobriu a atuação grandiosa de Deus em
tivas diferentes. Primeiro, porque torna sua vida (vv. 5-6). Já os insensíveis às obras
presente o nome de Deus (v. 2), o qual re‑ divinas e, portanto, estúpidos (v. 7) não per‑
presenta o projeto do êxodo de libertação cebem que o sucesso rápido e fácil dos per‑
dos oprimidos e de construção de uma so‑ versos terá seu fim definitivo (v. 8), porque
ciedade nova, mais justa e igualitária. Se‑ sempre irá prevalecer a soberania e o po‑
gundo, porque destaca que a lealdade e a derio do Senhor (v. 9). De acordo com essa
fidelidade de Deus como características lógica, o orante apresenta a seu Deus os
principais do Senhor favorecem a pessoa malvados imaginando que todos eles pere‑
ou o povo em sua sobrevivência (v. 3). Ter‑ cerão no futuro (v. 10). Revigorado por Deus
ceiro, porque possibilita a reunião festiva (v. 11), o orante agora olha para quem o per‑
no templo (v. 4). seguia e escuta o destino terrível de quem
insistia na maldade (v. 12).
215
Sl 92 (91)
92,13-16 Ao contrário dos perversos, que Enfim, cheios de vida até a velhice, os justos
irão desaparecer como a relva, o justo per‑ são chamados a promover o conhecimento
manece como as tamareiras ou os cedros, da retidão do Senhor e de sua opção divina
os quais têm uma vida longa e sempre são pela igualdade como fundamento da esta‑
viçosos (v. 13), pois participam da vitali‑ bilidade no mundo (vv. 15-16).
dade de Deus nos átrios do templo (v. 14).
216
Sl 93 (92)
Salmo 93 (92)
1 O Senhor é rei.
De majestade se vestiu.
O Senhor se vestiu;
de força se cingiu.
Por isso, o mundo está firme,
não vacila.
2 Desde outrora teu trono está firme;
desde sempre tu és.
93,1a Quem reza aqui apresenta inicial‑ o rei exerce também a função de juiz (Sl
mente um lema, formulando sua convic‑ 96,10.13).
ção de que o Senhor reina. Por mais que 93,3-4 As águas abundantes dos mares e dos
Deus sempre seja rei (v. 2), o povo experi‑ rios simbolizam, nas diversas culturas do
menta o governo divino de forma históri‑ Antigo Oriente, o caos, que se fez presente
ca, precisando estar atento aos momentos no passado (v. 3ab) e continua se fazendo no
de atualização do reinado do Senhor (Ex tempo atual (v. 3c). Contudo, a magnificên‑
15,18). cia do rei celeste supera o caos (v. 4). Assim,
93,1b-2 A vestimenta da majestade do há motivo para o homem ter mais espe‑
Senhor indica a superioridade de sua for‑ rança de que sobreviverá.
ça. Ele se revelou majestoso ao libertar, 93,5 No final de sua reflexão, o orante realça
no êxodo, os oprimidos, lançando no mar a estabilidade e a confiabilidade do projeto
cavalo e carro de guerra do opressor (Ex jurídico que acompanha o povo de Deus.
15,1-2.21). Deus combate o caos como um Os estatutos do Senhor se concretizam na
guerreiro, cingido de valentia (Sl 65,7), a instrução, ou seja, na Torá, a qual é o re‑
fim de que o mundo seja favorecido pela sultado, por excelência, da experiência do
estabilidade e firmeza de seu governo, êxodo (Sl 19,8-11). Quem os observa expe‑
assim como por sua insistência na reti‑ rimenta a santidade do Senhor, tarefa que
dão, na justiça e na lealdade, uma vez que cabe, sobretudo, ao templo.
217
Sl 94 (93)
Salmo 94 (93)
94,1-2 O orante apela ao Senhor para que veis que merecem proteção, uma vez que,
assuma sua função de juiz. Com isso, atri‑ por causa de sua situação específica, se en‑
bui-lhe a tarefa de investigar, julgar e pu‑ contram ameaçados em sua sobrevivên‑
nir. Prevalece a ideia da justiça retributiva, cia (v. 6; Dt 10,18). Os opressores, por sua
segundo a qual o comportamento do ser vez, simplesmente exibem sua indiferen‑
humano não fica sem consequências. Em ça para com Deus. Embora não neguem a
especial, o orante foca a atuação dos orgu‑ existência de Deus, não contam com sua a
lhosos, os quais, mais ricos e poderosos, se atuação (v. 7).
dão ao direito de passar por cima das pes‑ 94,8-11 Todos, mas em especial os malfei‑
soas com menos condições de vida. tores perversos, devem perceber (v. 8) que a
94,3-7 Quem reza aqui quer o fim de uma própria criação demonstra a preocupação
situação social inaceitável (v. 3). Há mal‑ do Criador (v. 9). Também a história da hu‑
dosos que promovem discursos des‑ manidade ensina algo sobre o juiz divino,
respeitosos (v. 4), além de humilhar ou pois as nações precisam de correções (v.
curvar outras pessoas, sendo que os opri‑ 10a). Deus, portanto, conhece integral‑
midos são considerados povo ou herança mente o ser humano (v. 10b-11a), inclusive
do Senhor (v. 5). Viúva, órfão e imigrante sua transitoriedade (v. 11b).
são os representantes clássicos dos miserá‑
218
Sl 94 (93)
94,12-15 O orante felicita a pessoa corrigi‑ presentes em sua vida (v. 19a), e as calami‑
da e instruída por Deus (v. 12), a qual tem dades e vãs fadigas o alcançam em abun‑
consciência da transitoriedade do mal pro‑ dância (v. 20). Embora ele seja inocente,
vocado pelos perversos (v. 13). Além disso, há quem queira derramar seu sangue (v.
Deus sempre irá restabelecer sua ordem 21). No entanto, por mais que se pergunte
no mundo, a qual se encontra fixada no di‑ sobre a eventual origem dos desastres em
reito e na justiça que as tradições jurídicas Deus (v. 20), quem reza aqui experimenta,
preveem e definem. É assim que Deus ga‑ em meio às infelicidades, os confortos do
rante a existência a seu povo, em especial Senhor (v. 19b).
aos mais sofridos, contando com a retidão 94,22-23 No final de sua oração, quem reza
dos que foram ensinados por ele (vv. 14-15). aqui descreve sua salvação, que já ocorreu.
94,16-21 Ao procurar um defensor (v. 16), o Agora, acompanha como o mal provocado
orante sabe que, sem a ajuda de Deus, já es‑ pelos perversos está recaindo sobre eles
taria entre os mortos (vv. 17-18). Sua situa‑ mesmos. Para o orante, trata-se de um si‑
ção é dramática. As preocupações se fazem nal da atuação do Senhor no mundo.
219
Sl 95 (94)
Salmo 95 (94)
95,1-5 A oração inicia-se com um convite a tência do povo de Deus. Feito pelo Senhor,
uma celebração festiva. O Senhor é home‑ ele pertence a seu Deus. Além disso, como
nageado como grande rei, a quem perten‑ gado pequeno, sobrevive porque se encontra
cem todas as partes da terra, uma vez que nos apriscos divinos, ou seja, na terra, que é
ele é o Criador dos vales mais profundos, contemplada como propriedade do Senhor.
dos montes com seus cumes altos, dos ma‑ 95,7d Com um clamor que tanto adverte
res e das regiões secas. quanto convida, quem reza aqui deixa cla‑
95,6-7c Dando continuidade ao convite à li‑ ro que o povo sobreviverá se escutar a pala‑
turgia no templo, o orante visa agora à exis‑ vra de Deus.
220
Sl 95 (94)
95,8-11 No final de sua oração, o orante Deus à prova, embora tivessem experimen‑
apresenta um discurso de Deus, que traz o tado a solidariedade ativa do Senhor. Des‑
êxodo à memória, em especial a passagem viaram seu coração, quando não estavam
pelo deserto, após a saída do Egito. Cami‑ mais dispostos a enfrentar certos sacrifí‑
nhando rumo à liberdade, com a tarefa de cios, como uma sobrevivência mais simples
formar uma sociedade mais igualitária e enquanto caminhavam rumo à liberdade.
justa em terra nova, o povo protestou em Da mesma forma, faltava-lhes confiança na
diversos momentos, sobretudo durante a promessa de Deus, sobretudo em relação à
falta de alimentos. Em Massa e Meriba fal‑ vontade do Senhor de colocar terra nova à
tava água, mas o Senhor ofereceu ao povo o disposição dos recém-libertos (Nm 13–14).
que este precisava para sobreviver (Ex 17,1-7; Enfim, o orante apresenta, como voz direta
Nm 20,2-13). Todavia, ao olhar para os qua‑ de Deus, a possibilidade de o povo não ex‑
renta anos no deserto (Dt 29,4), o compor‑ perimentar a paz, o bem-estar e o repouso
tamento do povo é avaliado aqui de forma na terra prometida e no templo (Sl 23,2),
negativa. Lembra-se de que os libertos da por falta de conhecimento dos caminhos
escravidão puseram repetidamente seu de Deus.
221
Sl 96 (95)
Salmo 96 (95)
96,1-6 O orante convida a humanidade in‑ quem estava sendo escravizado, o Senhor
teira a um canto novo, com a intenção de revelou sua glória.
serem reconhecidas as características do 96,7-10 Reconhecendo as estruturas tribais
Senhor. Em especial, quem reza aqui in‑ e os parentescos entre os povos, o orante
siste na superioridade do Deus de Israel em convida as nações a participarem do culto
relação aos demais deuses, avaliados como nos átrios do templo. Para tanto, porém,
sem valor ou, simplesmente, como nada. A devem atribuir glória e força ao Senhor, não
grandeza do Senhor, por sua vez, é justifi‑ a si mesmas. Quem reza aqui cultiva, pois,
cada inicialmente com dois argumentos. a esperança de que o Deus de Israel, reve‑
Por um lado, ele é lembrado como Criador lando sua realeza, provoque uma maior
dos céus. Por outro, o nome dele representa estabilidade no mundo, por promover jul‑
sua atuação histórica em favor do povo dos gamentos e sentenças baseados em sua reti‑
oprimidos, trazendo, por excelência, o pro‑ dão. Justamente assim, com sua capacidade
jeto do êxodo à memória. Quando, pois, de pacificar a terra inteira, revela sua supe‑
maravilhosamente colocou em liberdade rioridade.
222
Sl 96 (95)
96,11-13 O orante inclui agora as diversas divino, capaz de fazer prevalecer no mundo
partes do cosmo e da natureza no movi‑ inteiro uma justiça que encontra seu parâ‑
mento festivo do louvor ao Senhor. O mo‑ metro na fidelidade aos que precisam re‑
tivo continua sendo a presença desse juiz cuperar sua liberdade.
223
Sl 97 (96)
Salmo 97 (96)
97,1-6 A terra inteira – até as ilhas, como pareciam imóveis e invencíveis se derretem
representantes dos lugares mais distan‑ (v. 5). Enfim, o Senhor aparece para favo‑
tes – deve se alegrar com a manifestação recer sua justiça. Sua insistência na ordem
e a realeza do Senhor, Deus de Israel (v. 1). pode ser contemplada desde sempre com
O motivo do regozijo se encontra especial‑ um simples olhar para o céu (v. 6).
mente no poder desse rei, o qual tem como 97,7-9 A presença do Senhor causa conse‑
sua base a justiça e o direito (v. 2). Com isso, quências entre os que servem a outros deu‑
imagina-se uma atuação dinâmica e salví‑ ses, sendo estes últimos avaliados como
fica em favor de quem está sendo injustiça‑ meras imagens sem valor, inúteis ou in‑
do. A justiça faz o direito surgir e o corrige significantes. Para descrever a superiori‑
constantemente. O direito, por sua vez, é o dade do Senhor, Deus de Israel, os deuses
instrumento para pôr a justiça em prática. pertencentes às outras culturas agora o
No mais, o orante apresenta a revelação do reverenciam e confessam sua superiorida‑
Senhor em forma de uma teofania. Cercado de (vv. 7.9). Isso, por sua vez, é uma alegria
de nuvem e névoa escura, Deus aparece de para Judá e Jerusalém. Impondo, pois, seus
forma oculta, como no monte Sinai (Ex decretos, que são expressão de sua justiça e
24,15-18) ou no monte Sião, onde está o tem‑ permitem pô-la em prática, o Senhor tam‑
plo (1Rs 8,10-12). Mesmo assim, determina‑ bém afasta todos os inimigos dispostos
dos fenômenos revelam sua presença. Um a atacar o povo de Deus em nome de seus
fogo consome, de forma agressiva, a quem deuses (v. 8).
se opõe ao rei celeste (v. 3). Relâmpagos cla‑
reiam o mundo inteiro (v. 4). Montes que
224
Sl 97 (96)
97,10-12 Contrariamente aos servos dos ído‑ Senhor, pois ela se faz presente como uma
los, os que amam o Senhor são incumbidos semente lançada a partir da história da re‑
de se oporem ao mal, mesmo que enfren‑ velação de Deus (v. 11). Com isso, desde já
tem ainda uma situação adversa, marcada os justos são convidados a celebrar a lem‑
pela atuação de quem promove a perversi‑ brança ou o nome da santidade do Senhor
dade (v. 10). Todavia, os retos de coração já por intermédio da memória do êxodo (Lv
podem experimentar a luz da santidade do 22,31-33).
225
Sl 98 (97)
Salmo 98 (97)
1 Um salmo.
98,7-9 Além de Israel (v. 3b) e da comuni‑ verdadeira (Is 55,12) ou de desprezo diante
dade das nações de toda a terra (vv. 2b.4a), dos acontecimentos (Ez 25,6). Cultiva-se
o cosmo e a natureza – mar, mundo, rios e a expectativa de que a terra ainda seja jul‑
montes – são convidados a compor o júbilo gada, porque o Senhor, com sua vinda, irá
ao Senhor. Contudo, as raras batidas de pal‑ fazer prevalecer sua justiça e sua retidão.
mas podem ser expressão de uma alegria
227
Sl 99 (98)
Salmo 99 (98)
1 O Senhor é rei;
povos se agitam.
Entre querubins se assenta;
a terra treme.
2 O Senhor é grande em Sião
e ele é excelso sobre todos os povos.
3 Agradecerão a teu nome, grande e temível!
Ele é santo.
99,1-3 Assentado sobre querubins – tronos cia. Além disso, como legislador, o Senhor
ladeados por leões alados com face humana ofereceu seu direito a seu povo eleito, pon‑
–, o Senhor tornou-se rei a partir de Sião, ou do em prática a justiça prevista por esse
seja, a partir do templo em Jerusalém, a fim direito, a fim de que as leis não fiquem so‑
de exercer sua realeza de forma universal. mente na teoria. Imagina-se aqui que o di‑
Sua superioridade se estende sobre todos reito nas mãos de Israel seja a revelação e a
os povos, os quais reconhecerão, com grati‑ exemplificação da retidão como ordem bá‑
dão, o nome do Senhor. sica presente no mundo inteiro. O prostrar‑
99,4-5 A força do Senhor como rei se funda‑ -se ao escabelo, ao estrado, dos pés de quem
menta em seu amor histórico pelo direito. se assenta sobre os querubins indica simbo‑
Ele estabeleceu uma ordem básica no mun‑ licamente a disponibilidade de se subjugar
do, que prevê a retidão como princípio da à ordem e ao governo do rei celeste.
organização de qualquer tipo de convivên‑
228
Sl 99 (98)
99,6-9 Quem reza aqui ilustra agora como 34,5). No mais, Deus, disposto a perdoar, se
Israel recebeu o direito do Senhor. Moisés, revelou como quem continuamente carre‑
Aarão e Samuel, ao exercerem seu sacerdó‑ gou, suportou ou levantou seu povo. Con‑
cio e invocarem o nome de Deus (Ex 24,3-8; tudo, sua proximidade amorosa inclui sua
Lv 8,1; 1Sm 7,9-10), receberam o projeto jurí‑ séria oposição às ações pecadoras de seu
dico como resposta por parte do Senhor, o povo. Assim é que se descobre sua santi‑
qual, durante o êxodo, se fez repetidamen‑ dade, destacada três vezes pelo orante em
te presente na coluna de nuvem (Ex 33,7-11; sua oração (vv. 3.5.9; Is 6,3).
229
Sl 100 (99)
Salmo 100 (99)
100,1-5 Quem reza aqui convoca a humani‑ este Deus, por terem sido criadas por ele (v.
dade inteira a colocar-se diante do Senhor, 3bc; Dt 26,17-19). Além disso, como o povo
no templo de Jerusalém, a serviço do Deus eleito, a terra inteira é chamada a apresen‑
de Israel, não dos ídolos (v. 1b-2; Sl 97,7). tar seus louvores e suas ações de graças no
Como Israel, as nações estrangeiras são templo (v. 4), como reação à experiência da
convidadas a reconhecerem a divindade do bondade do Senhor, que, por ser leal e fiel,
Senhor (v. 3a), confessando sua pertença a oferece a todos sua salvação (v. 5).
230
Sl 101 (100)
Salmo 101 (100)
1 De Davi. Um salmo.
102,1-12 O orante, apresentado como opri‑ cia de relações sociais. O sofredor se sente
mido desfalecido (v. 1), busca o diálogo di‑ como uma gralha no deserto (v. 7a) ou como
reto com Deus. Em meio à sua aflição, quer uma coruja em meio às ruínas (v. 7b), pássa‑
ser escutado e atendido (vv. 2-3). Ele se la‑ ros vistos pelo antigo Israel como impuros,
menta da transitoriedade de sua vida (vv. pois habitam lugares que representam a
4-6). Passageiro como a fumaça ou a relva, morte. Enfim, o orante se lamenta de Deus
sente sua transitoriedade. Com o desgaste (vv. 10-12), pois, com a proximidade da mor‑
do coração e dos ossos, falta-lhe apetite e te, representada pelas cinzas e pela sombra
definha. Quem reza aqui se lamenta de ini‑ estendida, compreende seu destino como
migos que o hostilizam (vv. 7-9) e que são a resultado da irritação divina.
causa de sua solidão, falta de sono e ausên‑
232
Sl 102 (101)
102,13-23 No segundo trecho da reflexão, Jerusalém, louvar e servir ao Senhor (vv. 22-
o orante parte da imagem do Senhor como 23). A razão disso é a atuação libertadora de
rei celeste assentado sobre seu trono (v. 13), Deus, pois ele manifesta sua glória ao re‑
imaginando que Deus esteja atuando nova‑ construir o que foi destruído (v. 17). Porque,
mente em favor de Sião (v. 14). Para os que misericordiosamente atento às orações e ao
sofrem com o estado atual de Jerusalém, já soluço dos mais sofridos, inverte o destino
é tempo de o Senhor mudar mais uma vez dos desnudados, dos prisioneiros e de quem
o destino da cidade, visto que as pedras já tinha sido condenado à morte (vv. 18.21).
foram reduzidas a pó (v. 15). Para o futuro, Aliás, é acolhendo os demais povos (v. 19)
prevê-se o respeito universal ao nome do que Deus cria um novo povo para si, capaz
Deus de Israel, promovido pelas nações e de louvá-lo.
por seus reis (v. 16). Estas irão se reunir em
233
Sl 102 (101)
102,24-29 O orante volta a refletir sobre seu perecível (vv. 26-27), pois o mundo pode ser
sofrimento individual. Segundo sua expe‑ esvaziado por Deus (Is 24,18-23; Jr 4,23-28).
riência, Deus reduziu sua força e seu tempo Contudo, o Senhor permanece para sem‑
de vida (v. 24). Por isso, agora pede que seu pre (v. 28). Parece ser justamente essa refle‑
sopro de vida não suba antecipadamente xão que provoca no orante a esperança de
aos céus, que seu alento não lhe seja tirado que haja também um futuro para o povo
para voltar ao Criador (v. 25ab; Sl 104,29; Jó de Deus em Sião e em Jerusalém. Após o
34,14; Ecl 3,21; 12,7). Com isso, a eternidade Senhor ter renovado o mundo, seus servos
de Deus contrasta com a transitoriedade da voltarão a receber o direito de residência, a
vida humana, pois os anos do Senhor per‑ fim de se estabelecerem diante dele (v. 29).
passam as gerações (v. 25c). Até o cosmo é
234
Sl 103 (102)
Salmo 103 (102)
1 De Davi.
103,1-2 A alma – ligada à respiração, à ali‑ atrelada à promoção do perdão. Deus é des‑
mentação e à fala – e os demais órgãos inte‑ crito como solidário, disposto a resgatar o
riores são convidados a bendizer o Senhor, outro de sua situação fatal e a renovar sua
o qual, em sua santidade representada por dignidade real. Dessa forma, o ser humano
seu nome, ofereceu seus benefícios. se torna semelhante ao abutre, que, após
103,3-5 Na visão do antigo Israel, é Deus ter-se alimentado, caminha como um ve‑
quem cura (Ex 15,26). Somente num pe‑ lho, mas, voltando a levantar voo, paira de
ríodo mais tardio se pensa no médico, por forma majestosa. Além disso, na cultura re‑
mais que a “cura” sempre venha do Altís‑ ligiosa do Antigo Oriente, o abutre, tendo,
simo (Eclo 38,1-15). O orante parece ima‑ como pássaro necrófago, contato íntimo
ginar uma doença que tem sua causa no com os mortos, também é ligado à simbolo‑
sentimento de culpa. A cura, portanto, é gia do renascimento e da vida.
235
Sl 103 (102)
103,19-22 O orante termina sua reflexão dade terrestre, não há nenhum limite para
pensando na realeza e no governo univer‑ sua soberania, exaltada por todas as suas
sais do Senhor. Assentado sobre seu trono criaturas.
celeste e, portanto, acima de toda a reali‑
237
Sl 104 (103)
Salmo 104 (103)
104,10-18 Deus não apenas criou o mundo, mundo antigo, os perfumes são produzi‑
mas também o mantém de forma cons‑ dos com base no azeite, não no álcool. Por
tante. Essa percepção se torna a terceira isso, em hebraico, para dizer azeite ou per‑
justificativa para bendizer o Senhor. Por fume, usa-se a mesma palavra.
excelência, Deus providencia água; seja de 104,19-23 Deus organizou também o tem‑
baixo, dos mananciais, seja de cima, das sa‑ po, outra justificativa para bendizer o
las superiores nos céus. Além disso, Deus Senhor. A lua rege as datas das festas da
garante espaço e alimentação aos animais religião do antigo Israel. O poente do sol
– o capim – e ao ser humano. Este último, determina o início do dia. Além disso, exis‑
pois, tem condições de fazer a terra produ‑ tem animais que são ativos durante a noite,
zir, tirando das plantas cultiváveis seus ali‑ contrariamente ao ser humano, que traba‑
mentos básicos, que na região do Oriente lha durante o dia.
Próximo são pão, vinho e azeite. Aliás, no
239
Sl 104 (103)
104,24 Olhando para o conjunto da criação, Deus domina e até brinca com o Leviatã, o
o orante destaca sua admiração. A comple‑ mítico monstro marinho.
xidade, ligada à quantidade das obras do 104,27-30 Quem reza aqui chega agora ao
Senhor (v. 24ac), e a qualidade (v. 24b) ex‑ auge de sua reflexão. Toda a criação de‑
pressam a sabedoria divina. pende do Criador para se alimentar. So‑
mente quando o Senhor providencia os
104,25-26 Deus precisa ser bendito também
bens é que os animais e o ser humano têm
quando se contempla o mar, com sua apa‑ como recolher o alimento e saciar-se. O
rente infinidade de seres vivos. Entre estes mesmo vale para a vida em si. É somente
são contados também os navios, por causa com o sopro divino que o animal e o ser
de seus acabamentos na proa, os quais apre‑ humano se tornam seres vivos (Gn 2,7). O
sentam imagens de animais. Além disso, o Senhor é contemplado aqui como quem, re‑
mar pode ser ocupado pelo homem, pois novando sua criação, conserva-a.
240
Sl 104 (103)
104,31-35 No final, o orante discursa sobre dade pecadores e perversos (v. 35ab), o que
o Senhor e sobre si mesmo. Sua alegria com justifica o olhar contemplativo e crítico de
a criação motiva o louvor do Criador. Con‑ Deus (v. 32). Mas eles ficarão estremecidos,
tudo, a relação harmônica de um se alegrar ao passo que o orante simplesmente se pro‑
com o outro – o Senhor com sua obra (v. 31b) põe continuar seu canto (v. 33) e sua medi‑
e o ser humano com o Senhor (v. 34b) – sofre tação (v. 34a).
contratempos. Existem, pois, na humani‑
241
Sl 105 (104)
Salmo 105 (104)
105,1-3 Quem reza aqui convida um grupo 105,8-11 A relação entre o Senhor e seu
ao louvor. Os mais diversos povos devem povo se deu em torno de uma aliança, a
conhecer a atuação do Senhor. Para os que qual Deus estabeleceu com os patriar‑
procuram a Deus, esse movimento será cas Abraão, Isaac e Jacó (Gn 15,18; 17,19.21;
uma alegria. Em vez de se orgulharem da 26,3; Ex 2,24). Tal pacto consiste em um
maldade (Sl 52,3) ou da riqueza (Sl 49,7), são juramento por parte de Deus, marcado
louvados ou se louvam no nome do Senhor. por uma prescrição ou uma palavra que o
Este nome lhes representa e proporciona a Senhor ordena a seus eleitos. Destaca-se a
liberdade. promessa divina que assegura aos patriar‑
105,4-7 O orante convida o grupo formado cas e seus descendentes a posse da terra.
pelos descendentes dos patriarcas Abraão Por mais que o Senhor assuma o compro‑
e Jacó a se perguntar pelo Senhor, por sua misso de forma unilateral, espera-se do
atuação maravilhosa em meio à história, es‑ parceiro que ande na presença de Deus e
pecialmente o êxodo, e pelo projeto jurídico seja íntegro (Gn 17,1), acolhendo as instru‑
que nasceu com esse evento. Afirma-se aqui ções do projeto jurídico que norteia o ca‑
a importância universal de tais decretos. minho da descendência de Abraão (v. 45).
242
Sl 105 (104)
105,12-15 O orante apresenta o período dos o primeiro a ser chamado de profeta, pois
patriarcas. Estes, com seus clãs pequenos, comunicou a palavra de Deus e tornou-se
viviam como pastores migrantes entre os intercessor (Gn 20,7), semelhante a um rei
centros urbanos cananeus. Sua sobrevivên‑ ungido por Deus (Gn 14; 17,6).
cia dependia de diversos fatores. Além da 105,16-23 Após os patriarcas, o orante lem‑
necessidade de ter uma descendência, era bra a história de José (Gn 37,2–50,26). A fal‑
necessário encontrar terras com pastos e ta de chuva, que podia ocorrer nas terras
água, a fim de poder trabalhar com o gado. de Canaã, causava de tempos em tempos
O intercâmbio pacífico com as populações períodos de fome, o que motivava os mora‑
dores da região a descer ao Egito, onde o rio
sedentárias, formadas sobretudo por agri‑
Nilo, com suas abundantes águas, garantia
cultores, tornava-se importante para a tro‑
a produção de grãos (v. 14; Gn 12,10; 42,1-2).
ca de mercadoria. Contudo, percebe-se que
José, por ter sido vendido pelos irmãos,
os patriarcas não tinham como se defender chegou ao Egito (v. 15; Gn 37,12-36; 45,5).
contra quem era organizado militarmente. Lá ficou preso (v. 18; Gn 39,20). No entanto,
Mesmo assim não foram explorados por com a interpretação dos sonhos do faraó
outros, pois Deus se tornou o defensor des‑ (v. 19; Gn 41,16), o destino de José no Egito
ses pastores migrantes ameaçados em sua mudou. Solto da prisão (v. 20; Gn 41,14),
sobrevivência (Gn 11,27–37,1). Isso aconte‑ tornou-se administrador de toda a terra
ceu também com as mulheres dos patriar‑ (v. 21; Gn 41,40-41), governando com sabe‑
cas (Gn 12,10-20; 20,1-18; 26,1-14). Por fim, doria até os príncipes e anciãos do Egito (v.
Deus elegeu os patriarcas e as matriarcas 22). No final, também Jacó, seu pai, desceu
para darem origem a seu povo. Abraão foi à terra de Cam (v. 23; Gn 10,6; 46,1-7).
243
Sl 105 (104)
105,24-38 Quem reza aqui se concentra ago‑ 7,14-25). Seguem-se as pragas das rãs (v. 30;
ra na história do povo de Israel, também Ex 7,26–8,11), das moscas (v. 31a; Ex 8,16-28)
chamado de Jacó, que se tornou fecundo no e dos mosquitos (v. 31b; Ex 8,12-15). Passa-se
Egito, quando os setenta descendentes de à praga do granizo, aumentada pela chuva
Jacó tornaram-se numerosos (v. 24; Ex 1,7). e pelo fogo como fenômenos de uma tem‑
Isso, por sua vez, motivou o faraó a maldosa‑ pestade (vv. 32-33; Ex 9,13-35), e à praga dos
mente mudar sua política, impondo opres‑ gafanhotos, acrescentando-se os grilos (vv.
são aos israelitas (v. 25; Ex 1,10). Contudo, a 34-35; Ex 10,1-20). Como na narrativa do
resposta do Senhor veio através do envio de êxodo, a última praga mencionada é a mor‑
Moisés e Aarão (v. 26; Ex 3,10; 4,14-16). Pro‑ te dos primogênitos (v. 36; Ex 11; 12,29-30).
feticamente, os dois irmãos transmitiram Assim, o opressor foi forçado, por aconte‑
as palavras de Deus, as quais provocavam cimentos da natureza, a concordar com o
os sinais e prodígios entre os egípcios (v. 27; projeto divino de libertação dos oprimidos.
Ex 7,1-3). Das dez pragas, o orante mencio‑ Enfim, a saída dos escravos ocorreu com su‑
na oito. Começa com a presença das trevas, cesso e de forma organizada, invertendo‑
invertendo a atuação do Criador, que no iní‑ -se radicalmente a posse dos bens (v. 37; Ex
cio criou a luz (v. 28; Ex 10,21-23; Gn 1,3-5). 3,21-22; 11,2-3; 12,35-36). Como os aconteci‑
Naquele momento, o faraó, por um ins‑ mentos demonstraram o apoio do Senhor
tante, nem se opôs mais à palavra divina (Ex ao povo oprimido, os opressores se assusta‑
10,24). A segunda praga mencionada lem‑ ram (v. 38; Ex 15,16), a ponto de se alegrarem
bra a transformação das águas em sangue com a saída dos amigos de Deus.
e a consequente morte dos peixes (v. 29; Ex
244
Sl 105 (104)
Aleluia!
105,42-45 No final de sua oração, quem reza quistado no passado com muita fadiga (v.
aqui realça que toda a atuação do Senhor 44). Mesmo assim Deus quis que Israel se
no êxodo ocorreu por fidelidade à eleição estabelecesse entre os demais povos, a fim
de Abraão e à aliança que Deus havia con‑ de que a mesma terra permitisse a sobre‑
cluído com seu servo (vv. 6.8.42). Deus se vivência de todos. Todavia, os benefícios
lembrou do que assegurara ao patriarca, recebidos no êxodo incluíram um projeto
fazendo isso valer também para seus des‑ jurídico preocupado com o futuro, para que
cendentes. Por isso, seu povo podia cami‑ o povo nunca mais perdesse sua liberdade e
nhar rumo à liberdade, fazendo festa (v. 43). seu bem-estar (v. 45). Enfim, os oprimidos
Além disso, experimentou que o Senhor o foram libertados para acolher a proposta
beneficiou também com o acesso à terra, moral que o Senhor revelara no momento
por mais que outras nações se vissem como em que fizera seu povo sair do Egito.
donas legítimas dela, porque a tinham con‑
246
Sl 106 (105)
Salmo 106 (105)
1 Aleluia!
Agradecei ao Senhor, porque é bom;
porque sua lealdade é para sempre.
106,1 De forma litúrgica, o orante convida 106,4-5 Quem reza aqui apresenta a prece
a comunidade ao louvor do Senhor. A ele se de quem busca, junto ao Senhor, sua par‑
deve gratidão, porque revelou sua bondade ticipação na ação salvífica de Deus em prol
(Ex 33,19) e lealdade (Ex 34,6-7). de seus eleitos (Sl 105,6). Estes últimos, por
106,2-3 A apresentação da história de Deus terem sido favorecidos pelo Senhor, têm
com seu povo e o consequente movimento motivos suficientes para ser bondosos e ale‑
de louvor cabem aos justos. Realça-se, com gres.
isso, a necessária colaboração entre o com‑
portamento humano e a graça divina.
247
Sl 106 (105)
106,6-12 Segue-se uma confissão dos peca‑ 106,13-15 Os pais pecaram no mar dos Jun‑
dos (v. 6). Como a geração dos pais, o grupo cos e no deserto. Contrariamente aos pla‑
dos que dialogam aqui com Deus se tornou nos do Senhor, não queriam se contentar
culpado. Assim, a responsabilidade pelos com uma alimentação mais simples en‑
pecados se divide. Os pais tinham-se revol‑ quanto caminhavam rumo à terra prome‑
tado no mar dos Juncos, ao se verem entre‑ tida, mas desejaram comer carne (Nm 11,4).
gues às mãos de seus perseguidores e ao se Deus atendeu à cobiça de seu povo, mas
esquecerem da manifestação do poder do também o puniu (Nm 11,33).
106,16-18 Datã e Abiram, com Coré e outros
Senhor sobre os egípcios, em especial na
duzentos e cinquenta homens, promove‑
ocasião das pragas (v. 7; Ex 14,10-12). Mes‑
ram uma revolta no deserto, reclamando
mo assim foram salvos porque o Senhor in‑ para si a posição de homens santos, a fim
sistiu na prevalência de seu nome e de sua de se igualarem a Moisés e Aarão, os eleitos
valentia (v. 8), provocando o milagre do mar pelo Senhor (Nm 16). No entanto, conforme
(vv. 9-11; Ex 14). Após a experiência de sua a tradição israelita, o Senhor considerou
salvação, a primeira resposta dos pais foi esse tipo de inveja uma perversidade. O cas‑
positiva, pois puseram sua fé nas palavras tigo infligido aos que se revoltaram ensina,
de Deus e cantaram (v. 12; Ex 15,1-21). Con‑ por sua vez, que a inveja é como um fogo
tudo, esse comportamento não durou mui‑ que pode consumir as lideranças existentes
to. numa comunidade.
248
Sl 106 (105)
106,19-23 O orante lembra outra cena do de‑ à disposição dos que saíram da sociedade
serto. O povo, no monte de Deus, chamado opressiva e escravista. Assim, os resmun‑
de Sinai ou Horeb (Ex 3,1; 19,1; Dt 5,2; 9,8), gos apenas favoreceram o castigo que fez
fez, para representar o Senhor, um deus de com que os descrentes não chegassem até a
ouro para si (Ex 32; Dt 9,12.16). Com isso, terra prometida. Isso valeu para os pais no
ocorreu uma significativa troca da glória. deserto (Nm 14,29-32), mas também, em
Embora disposto a caminhar com seu povo épocas posteriores, para os israelitas dis‑
e a conduzi-lo rumo à terra prometida para persos, pois foram deportados pelos impé‑
construir uma sociedade nova, fraterna e rios sucessores do antigo Egito.
justa, o Deus de Israel foi comparado ao 106,28-31 Outro pecado no deserto ocor‑
deus cananeu de Baal, cuja representação reu quando os israelitas, ao se prostituírem
era um bezerro de ouro, uma imagem fa‑ com as moabitas, começaram a comer os
bricada de metal fundido. Contudo, o oran‑ sacrifícios dedicados a Baal de Fegor, um
te, cultivando a memória do êxodo, realça deus considerado mortal e, portanto, não
a atuação poderosa do Senhor, visto que o divino. Na ocasião, Fineias, neto de Aarão,
outro deus não passa de um boi que come aplacou com suas mãos a ira do Senhor e,
feno. dessa forma, protegeu Israel, que estava se
106,24-27 Os pecados cometidos pelos pais dividindo, dando lugar a uma brecha (Nm
no deserto incluíram a rejeição da terra pro‑ 25,1-13). Por causa de sua ação, Fineias tor‑
metida (Nm 13–14). Não queriam escutar a nou-se semelhante a Abraão (v. 31; Gn 15,6).
palavra de Deus, nem confiar na promessa
divina de que terras em Canaã estariam
249
Sl 106 (105)
106,32-33 Outra revolta dos pais se deu nas prometida. Também nesta fase os pais pe‑
águas de Meriba (Nm 20,1-13.24; 27,14; Dt caram, não observando o mandamento de
32,51). Quando Moisés, por sua vez, orde‑ Deus que queria impedir alianças com os
nado pelo Senhor, tinha feito a rocha jorrar moradores ali presentes (Ex 23,31-33; 34,
a água, apresentou a dádiva da água como 12-15; Dt 7,2.24). Pelo contrário, quando se
resultado de sua ação, em vez de manifestar misturaram, adotaram as práticas deles (Dt
a santidade de Deus à comunidade. O resul‑ 18,9). Idolatria e derramamento de sangue
tado disso foi o anúncio de sua morte. inocente foram as consequências (Dt 7,16;
106,34-39 O orante ultrapassa o período 18,10; 19,10). O povo de Deus, como noiva ou
narrado no Pentateuco, que termina com a esposa do Senhor, se prostituiu (Nm 25,1-2),
morte de Moisés, e começa a refletir sobre profanando a terra (Nm 35,33) que o povo ti‑
o processo da instalação de Israel na terra nha recebido como graça divina.
250
Sl 106 (105)
106,40-43 Quem reza aqui cultiva a fé de vorecendo uma vivência em liberdade (vv.
que a liberdade de Israel e uma sobrevi‑ 2-3). A outra possibilidade consiste na atua‑
vência mais digna dependem da ação do ção misericordiosa do Senhor, quando este,
Senhor em favor de seu povo. A insistên‑ ao estar atento ao sofrimento de seu povo,
cia nos planos próprios, fazendo oposição a restabelece a antiga aliança, ainda que de
Deus, somente traria a submissão às nações forma unilateral. Dessa forma, os que le‑
estrangeiras e às políticas opressivas de‑ varam Israel ao cativeiro se surpreenderão
las. Contudo, apesar de ter experimentado com a compaixão do Senhor por seu povo
esse contexto humilhante por diversas ve‑ (v. 46).
zes em sua história, assim como a ação li‑ 106,47 A prece final se concentra na recu‑
bertadora de seu Deus, os pais negaram o peração da união após a dispersão. Talvez
Senhor. Consequentemente, o pecado fez o orante pense na volta dos israelitas exila‑
com que o povo passasse a correr o risco de dos à sua terra. Contudo, também é possí‑
se afundar na própria culpa. vel imaginar uma junção de israelitas e não
106,44-46 Há duas possibilidades de ocor‑ israelitas (vv. 4-5), para que essa nova comu‑
rer uma mudança na história do povo. A nidade se una agora no louvor ao Senhor.
primeira é Israel se converter e acolher o 106,48 A doxologia termina a quarta parte
modelo de justiça proposto por Deus, fa‑ do livro dos Salmos (ver nota de Sl 41,14).
251
Sl 107 (106)
Salmo 107 (106)
107,1-3 O orante convida liturgicamente o 107,4-9 Quem reza aqui apresenta quatro
povo a agradecer ao Senhor (v. 1; Sl 105,1; salvações exemplares (vv. 4-9.10-16.17-22.
106,1; 118,1; 136,1). Segue-se a argumenta‑ 23-32) que apresentam uma mesma estru‑
ção sobre a realização do que está sendo pe‑ tura: situação de miséria, grito de socorro,
dido. Realmente, o Senhor é bom, seja como salvação e ação de graças (vv. 8a.15a.21a.31a).
Criador (Gn 1), seja como aquele que salva Na primeira cena, um grupo se encontra
dos perigos no decorrer da história, ma‑ numa região desértica, sem água e sem ali‑
nifestando, dessa forma, seu eterno amor, mentos. Andam errantes, sem avistar um
que se concretiza na lealdade ou na soli‑ lugar habitado (vv. 4-5). Contemplando a
dariedade para com seu povo (Ex 34,6-7). história do antigo Israel, pode-se pensar na
Quem reza aqui reinicia o convite à cele‑ história do êxodo (Ex 15,22), mas também
bração de agradecimento pensando na na volta do exílio babilônico (Is 49,10). Con‑
reunião dos que foram exilados (vv. 2-3). tudo, o grito ao Senhor resulta na liberta‑
Resgatando das garras do opressor (Is 35,9; ção, pois este conduz seu povo no caminho
51,10), o resgatador divino (Is 41,14; 44,6.24; reto, rumo a um lugar civilizado, onde sede
47,4; 48,17; 49,7.26; 54,5.8; 59,20; 60,16; e fome podem ser superadas, uma vez que
63,16) conduziu os deportados, dos mais o desvio faz a pessoa sentir-se em aperto e
diversos lugares, de volta provavelmente aflita (vv. 6-7). Onde a fome e a sede são pro‑
a Sião, recuperando a união familiar. O digiosamente vencidas, Deus é experimen‑
perigo que sofriam é ilustrado pelo nor‑ tado como quem ama os seres humanos e
te, de onde Israel é invadido (Jr 50,41-42), como quem é capaz de realizar maravilhas
e pelo mar, que representa o caos. No en‑ (vv. 8-9).
tanto, no êxodo o mar revelou também a
força salvífica do Senhor.
252
Sl 107 (106)
107,10-16 Na segunda cena, o orante apre‑ sa de seus portões fortificados, são conside‑
senta o sofrimento de encarcerados por radas invencíveis (v. 16).
terem insistido na oposição à palavra de 107,17-22 Também na terceira cena o orante
Deus (vv. 10-11). Quem reza aqui chega até a relata a salvação de uma doença que foi pro‑
imaginar que Deus, com fins pedagógicos, vocada pela ignorância e rebeldia de uma
tenha causado tal situação, a fim de que o pessoa ou de um grupo (v. 17). Rejeitando
povo experimentasse a ausência da liber‑ até a comida, aproximou-se da morte (v.
dade e do auxílio divino (v. 12). Todavia, ao 18). Contudo, a palavra de Deus revelou sua
terem gritado ao Senhor, foram novamente força terapêutica, capaz de curar a igno‑
salvos por ele, pois ele é leal (vv. 13-15). Aliás, rância que insiste no crime (v. 20). Enfim,
a experiência de sair de trevas e escuridão a insistência na lealdade ou solidariedade
pode ser experimentada de forma indivi‑ por parte do Senhor é a maravilha que quer
dual, como no caso de Jó (Jó 3,5), ou de for‑ resultar numa postura humana marcada
ma coletiva, sendo necessário que o poder pela gratidão (vv. 21-22).
de Deus se oponha às cidades que, por cau‑
253
Sl 107 (106)
107,23-32 Na quarta cena, o orante apre‑ ato criador de Deus (Jn 1,4). Em contrapar‑
senta a experiência dos navegantes. Estes, tida, o mesmo Deus se propõe salvar quem,
ao viajarem pelo mar, conhecem a imen‑ em meio aos perigos presentes na natureza,
sidão e o lado fascinante da natureza (vv. por ele grita (v. 28), pois ele jamais perde o
23-24; Eclo 43,24-25). Ao mesmo tempo, domínio sobre o que criou. Pelo contrário,
sabem das forças gigantescas no meio dela, guia a pessoa rumo ao porto da felicidade,
capazes de ameaçar a sobrevivência do permitindo que a paz volte (v. 30). Essa
ser humano. Tempestades podem provo‑ experiência de salvação, por sua vez, susci‑
car ondas altíssimas, que assustam quem ta ação de graças e louvor (vv. 31-32).
percorre o mar, deixando-o perplexo (vv. 107,33-35 O orante destaca o poder trans‑
25-27). Entrementes, o orante está cons‑ formador de Deus como Criador e Sobe‑
ciente de que também as forças que o ho‑ rano em relação à morte e à vida.
mem não consegue dominar resultam do
254
Sl 107 (106)
108,1-5 O orante declara que seu pensamento futuro, sonhando-se com uma nova organi‑
e sua vontade, habitantes do coração, conti‑ zação política. Ao subjugar as regiões a seu
nuam a buscar o Senhor, embora sua situa‑ poder, o Senhor promoverá uma medição
ção seja marcada por agressões (vv. 13-14) em vista de Siquém, no território da tribo
e uma vida longe da própria terra (v. 7). O de Efraim, na Cisjordânia, e de Sucot, nas
Senhor, porém, continua a ser o glorioso rei terras da tribo de Gad, na Transjordânia, a
divino. Seu amor e sua fidelidade não di‑ fim de voltar a repartir essas cidades na re‑
minuíram, mas continuam a preencher o gião norte (v. 8). Quando Jacó voltou do en‑
cosmo (v. 5). Portanto, a cada nascer do sol, contro com Esaú à terra prometida, chegou
fenômeno visível à humanidade inteira (v. 3), primeiro a esses dois lugares (Gn 33,17-18).
os fiéis a ele elevam, em meio aos povos e às Deus declara seu direito de propriedade (v. 9)
etnias, o canto dos salmos, cultivando a es‑ da região transjordânica de Galaad, onde se
perança de que a glória do Senhor se mani‑ situavam os territórios das tribos israelitas
feste (Sl 57,8-12). de Rúben e de Gad, bem como metade da tri‑
108,6-7, A prece insiste na atuação do rei glo‑ bo de Manassés, que também se faz presente
rioso, que se levanta e age com sua destra. no lado oeste do Jordão. Efraim, tribo que
Deus deve voltar a salvar seu povo, como no representa o antigo Reino do Norte, e Judá,
êxodo (Ex 15,6.12), como no tempo da con‑ representante do Reino do Sul, devem servir
quista da terra (Sl 44,4) ou quando Israel es‑ ao Senhor, para favorecer o exercício de seu
capou da opressão e do cativeiro promovidos poder. Efraim deve atuar como defensor no
pelas nações vizinhas (Sl 118,15-16; 138,7). En‑ momento de ataques, e Judá deve ser como
fim, a expectativa se concentra em uma pa‑ um cetro para golpear os inimigos e para go‑
lavra ou resposta salvadora do Senhor. vernar (v. 9). Restam os três vizinhos estran‑
108,8-10 O pedido do orante (vv. 6-7) recebe geiros de Judá: Moab no leste, Edom no sul e
uma resposta em forma de um oráculo di‑ a Filisteia no oeste (v. 10). Todos eles hão de
vino, semelhante aos oráculos que reis re‑ servir ao Senhor.
cebiam antes de uma batalha. Visa-se ao
256
Sl 108 (107)
108,11-14 No final de sua oração, quem 12). Contudo, prevalece a esperança de que
reza aqui se refere à situação política de seu essa postura divina não dure para sempre.
tempo. Israel foi vencido e experimentou O orante declara sua fé de que a salvação so‑
a destruição. Os agressores, cujo represen‑ mente poderá vir do Senhor. Qualquer con‑
tante é Edom (Sl 137,7), venceram. Com isso, fiança em pactos humanos estará fadada ao
tornou-se claro que Deus não estava mais fracasso (vv. 13-14). Israel não tem como en‑
saindo com os exércitos de seu povo e, por‑ frentar seus inimigos, mas Deus combaterá
tanto, parecia estar repudiando-o (vv. 11- em seu lugar.
257
Sl 109 (108)
Salmo 109 (108)
109,1-5 O orante enfrenta difamações per‑ 4.6.20.29), os quais, como animais ferozes,
versas, acusações falsas (Ex 20,16), ódios e escancaram agora suas bocas para devorá‑
maldades. É provável que tudo ocorra no -lo. Diante disso, insiste na oração (v. 4),
contexto forense. Por mais que ele tenha continuando a louvar o Deus que, por exce‑
insistido no bem, sobretudo em relação aos lência, é o defensor dos oprimidos e injus‑
pobres, é atacado por seus opositores (vv. tiçados (v. 1).
258
Sl 109 (108)
109,6-20 Quem reza aqui apresenta agora, qualquer tipo de perpetuação de quem está
em forma de citação, as verdadeiras inten‑ sendo acusado, seja mediante sua descen‑
ções de seus inimigos (vv. 6-19). A imagem dência, seja mediante sua obra de vida (v.
é de um julgamento no qual o acusador, 13). Até o Senhor é envolvido na estratégia
as testemunhas e o presidente do tribunal de destruir totalmente o acusado, desejan‑
agem de forma perversa (v. 6). O resultado do-se que Deus junte à culpa dele a de seus
do processo deve revelar a ausência da ino‑ antepassados (vv. 14-15). A acusação, por sua
cência e o pecado do acusado (v. 7). Enfim, vez, consiste num suposto comportamento
os opositores estão interessados na morte desleal do acusado em relação aos pobres
daquele que acusam, para que também o (v. 16). Ele teria amado a maldição de tal
cargo dele possa ser transferido (v. 8). Eles forma que acabou por internalizá-la (vv. 17-
querem que a família do acusado experi‑ 18). Quem acusa, por sua vez, deseja final‑
mente a falta de proteção e a miséria (vv. mente que a maldição seja a veste constante
9-10), perca seus bens, provavelmente por do acusado (v. 19). Após a citação longa de
não conseguir pagar suas dívidas ou por seus opositores, o orante volta a se manifes‑
ser assaltada por estrangeiros (v. 11). Nem tar. Destaca, sobretudo, a intenção de seus
as tradicionais formas de ajuda ao pró‑ inimigos violentos em eliminá-lo supondo
ximo devem estar à disposição do acusado a aprovação de Deus (v. 20).
(v. 12). Além disso, prevê-se a eliminação de
259
Sl 109 (108)
109,21-25 O orante dirige-se agora direta‑ 109,26-29 O orante formula uma prece para
mente ao Senhor. De acordo com o nome que o Senhor revele sua capacidade de agir.
de Deus, que insiste na solidariedade com Os inimigos devem experimentar a força de
o oprimido, o Senhor deve libertar o orante Deus que transforma a insistência na mal‑
de seus inimigos oferecendo seus cuidados, dição em bênção a quem está sendo mal‑
pois este último não consegue mais esca‑ dito. Por mais que opositores quisessem
par da violência promovida pelos outros. que o orante vestisse a maldição como seu
Afinal, a humilhação e a miséria material traje, eles perdem agora sua honra, vestin‑
já atingiram o orante por dentro (v. 22). A do-se de infâmia e vergonha, por terem cri‑
morte se aproxima como a noite no final minosamente acusado um inocente.
da tarde, quando as sombras se estendem; 109,30-31 Enquanto os perversos usam a
a vida é afugentada como se afugenta um boca para promover a traição (v. 2), o orante
gafanhoto que pulou em uma pessoa (v. a usa para agradecer e louvar ao Senhor, por‑
23). Enfim, o corpo está perdendo sua for‑ que é este quem salva o pobre inclusive de
ça, pois faltam alimentos nutritivos (v. 24). juízes e detentores de poder que, através de
Além disso, quem reza aqui está sendo es‑ seus julgamentos, querem tirar-lhe a vida.
carnecido por seus opositores (v. 25).
260
Sl 110 (109)
Salmo 110 (109)
1 De Davi. Um salmo.
110,1-3 O orante introduz, semelhante‑ coloca-se, com todo o seu esplendor, à dis‑
mente aos profetas, um oráculo do Senhor, posição de quem o governa (v. 3a-c), pois
Deus de Israel, o qual se dirige a seu senhor. percebe que Deus está oferecendo a seu rei
Aparentemente, quem reza aqui parece es‑ a força vital da juventude (v. 3de).
tar a serviço desse senhor, possivelmente 110,4-7 Introduz-se aqui outro discurso de
o rei. Tal senhor torna-se destinatário de Deus (v. 4). Visa-se à fidelidade do Senhor,
uma palavra de Deus (v. 1bc), que o convida para que ele mantenha a instituição da rea‑
a sentar-se à direita dele, significando uma leza em Sião (2Sm 7,13-15; Sl 89,36-38.50;
valorização honrosa. O eleito deve partici‑ 132,11). A menção do rei-sacerdote de Sa‑
par do exercício do poder do rei celeste, o lém – Melquisedec, que em hebraico signi‑
qual se estende a todo o cosmo. Os inimi‑ fica meu rei é justiça – realça, sobretudo,
gos, representantes do caos e da desordem, que Deus é o Criador e aquele que garante
são-lhe subjugados por Deus, enquanto os a vitória a quem luta por sua sobrevivência,
dois governam simultaneamente. O trono opondo-se aos que se propõem invadir as
simboliza a realeza divina, e os pés apoia‑ terras dos outros (Gn 14,17-24). Enfim, Deus
dos num estrado expressam o domínio ab‑ insiste em sua ordem, agindo, através do
soluto sobre os opositores (Sl 99,5; 132,7; Is rei de Israel, contra aqueles que ameaçam
66,1). Outro símbolo do poder real é o bas‑ o modelo divino de justiça (v. 5). O Senhor,
tão, isto é, o cetro (Ex 14,16). O Senhor, Deus estendendo seu senhorio, promove julga‑
de Israel, propõe-se estendê-lo, a fim de que mentos na terra inteira (v. 6). As imagens
seja revelada, a partir de Sião, a força do rei finais parecem insistir primeiramente na
de Israel e de que este último exerça um do‑ atividade infatigável do Senhor, sendo que
mínio correspondente ao reinado do rei ce‑ bebe da torrente na beira do caminho para
leste e à vocação do ser humano em geral (v. não deter sua ação (v. 7a; Jz 7,4-6). Além dis‑
2; Gn 1,26.28). O povo, por sua vez, tão favo‑ so, a cabeça elevada parece simbolizar a vi‑
recido por seu rei que governa junto a Deus, tória sobre os inimigos opressores (v. 7b).
261
Sl 110 (109)
6 Sentencia nações,
enche de cadáveres,
destroça cabeças
sobre a terra imensa.
7 No caminho, bebe da torrente;
por isso eleva a cabeça.
262
Sl 111 (110)
Salmo 111 (110)
1 Aleluia!
111,1-3 Quem reza aqui quer agradecer ao 2,24; 34,10). Contudo, o Senhor revelou seu
Senhor em público, seja no grupo mais res‑ poder, sobretudo, quando Israel conseguiu
trito dos que formam o conselho de quem se instalar nas terras de Canaã (v. 6).
insiste na retidão, seja diante de toda a co‑ 111,7-9 Não somente a libertação – saída
munidade (v. 1). O agradecimento se refere do Egito, passagem pelo deserto e instala‑
a obras divinas, visíveis tanto na criação ção em terras novas – deverá ser avaliada
quanto na história (v. 2). No final, serão des‑ como obra do Senhor, mas também a dádi‑
cobertas a realeza e a justiça que pertencem va do projeto jurídico contido na Torá, que
a Deus (v. 3). é o direito do antigo Israel (v. 7). Os manda‑
111,4-6 Cultiva-se aqui a memória do êxo‑ mentos de Deus, pois, são confiáveis. Neles
do, quando o Senhor, segundo seu amor, o Senhor oferece estabilidade a seu povo,
realizou maravilhas, ao ferir os egípcios desde que sejam colocados em prática (v.
através das pragas, a fim de libertar os 8). Além disso, é através desse projeto jurí‑
oprimidos das mãos do opressor (Ex 3,20; dico que Deus oferece sua redenção e sua
34,10). Além disso, o Senhor alimentou seu aliança, para todos viverem em liberdade
povo no deserto (Ex 16; Nm 11,4-35), por ser de acordo com a representatividade de seu
fiel à aliança selada com os patriarcas (Ex nome (v. 9c).
263
Sl 111 (110)
111,10 Praticar os mandamentos (v. 8b) quanto essa lógica prevalece e beneficia os
significa temer o Senhor e nesse comporta‑ justos, estes últimos não deixarão de lou‑
mento se encontra o auge da sabedoria. En‑ var aquele que ofereceu o direito a seu povo.
264
Sl 112 (111)
Salmo 112 (111)
1 Aleluia!
1 Aleluia!
Louvai, ó servos do Senhor,
louvai o nome do Senhor!
2 Bendito seja o nome do Senhor,
desde agora e para sempre!
3 Do levante do sol até seu poente,
seja louvado o nome do Senhor!
7 Do pó ergue o necessitado;
do esterco eleva o pobre,
8 para fazê-lo assentar-se junto aos nobres,
junto aos nobres de seu povo.
9 A estéril da casa faz assentar-se
como alegre mãe de filhos.
Aleluia!
114,1-2 Através da experiência de libertação 114,7-8 A dança está presente na vida do an‑
no Egito é que se deu a eleição de Israel. O tigo Israel, como, por exemplo, na vitória do
povo que saiu da sociedade opressiva foi cha‑ Senhor sobre o faraó e seu exército, no mar
mado a tornar-se um santuário vivo e a aco‑ dos Juncos, quando Miriam e todas as mulhe‑
lher o governo de Deus em seu meio. De um res saíram com pandeiros e danças (Ex 15,20).
modo amplo, ele se afastou de quem falava Quem saía vitorioso de um combate bélico
uma língua incompreensível, a qual repre‑ era saudado com canto, batuque e dança (Jz
sentava, muitas vezes, inimizades políticas 11,34; 1Sm 18,6; 21,12; 29,5). Existiam também
e invasões ou deportações promovidas por festas para o Senhor, nas quais as moças dan‑
estrangeiros (Dt 28,49; Is 28,11; 33,19; Jr 5,15; çavam (Jz 21,19.21.23; Ct 7,1). A dança expres‑
Ez 3,5-6). sava a recuperação da alegria, a volta da vida
114,3-4 No êxodo, ocorreram reações contrá‑ e a renovação da comunhão com Deus e com
rias à libertação dos oprimidos. Mar e rio, os demais participantes da festa (Jr 31,4.13).
com suas águas acumuladas, representantes O antigo Israel experimentou um Deus que
clássicos do caos e da desordem nas culturas inverteu o sofrimento do povo, transfor‑
do Antigo Oriente, retrocederam, dando pas‑ mando luto e lamentação em dança (Jr 31,13;
sagem a quem caminhava rumo à liberdade. Sl 30,12). Este mesmo Deus, porém, também
Montes e colinas, por sua vez, representantes podia provocar a experiência contrária (Lm
da terra prometida, expressaram sua alegria 5,15). Enfim, religiosamente motivado, o an‑
com a chegada dos que foram libertados pelo tigo Israel e, por intermédio dele, toda a hu‑
Senhor. manidade devem dançar diante do Deus de
114,5-6 Questiona-se agora a reação à dinâmi‑ Jacó, pois Deus, por sua graça, oferece a liber‑
ca libertadora favorecida por Deus no tem‑ dade a todos os oprimidos. Por isso, há não
po presente. Afinal, o governo exercido pelo somente cantores, mas também dançarinos
Senhor em meio a seu povo provoca ainda res‑ nos portões de Sião, onde estão as nascentes
postas contrárias nas pessoas. do Senhor (v. 8b; Sl 87,7; 149,3; 150,4).
268
Sl 115 (113B)
Salmo 115 (113B)
115,1-3 O orante pede que o Senhor engran‑ 115,4-8 De forma polêmica, os deuses das
deça seu nome. Este último representa a outras nações são descritos como ídolos,
ação libertadora e a solidariedade verda‑ pois foram fabricados por mãos humanas
deira de Deus em favor de seu povo, como (v. 4b) e acabarão decepcionando quem
no êxodo (v. 1). No entanto, as nações vizi‑ confia neles. Em princípio, os ídolos pre‑
nhas de Israel tiveram a impressão de que cisam ser limitados a seu valor material (v.
o Senhor havia abandonado seu povo (v. 2). 4a). Por mais que o homem lhes proporcio‑
Além disso, a pergunta dos outros povos ne boca, olhos, ouvidos, nariz, mãos, pés e
ganha uma dramaticidade ainda maior garganta, não se tornam deuses vivos (vv.
pelo fato de Israel não fabricar represen‑ 5-7). O homem, pois, não cria deuses. Por‑
tações plásticas de seu Deus e, assim, não tanto, se tais ídolos são inúteis, também o
poder apontar para uma imagem, a fim são aqueles que os criam ou depositam ne‑
de indicar a presença do Senhor. Contudo, les sua esperança (v. 8).
quem reza aqui afirma que Deus está nos 115,9-11 O povo de Israel, seus sacerdotes
céus, o que sublinha sua soberania (v. 3a). descendentes de Aarão mas também os não
Além do mais, um olhar para o passado re‑ israelitas que querem abandonar seus ído‑
vela como a vontade do Senhor prevaleceu los, é convidado a confiar no Senhor como o
sobre os soberbos (v. 3b). Deus vivo, que é capaz de auxiliar e oferecer
proteção.
269
Sl 115 (113B)
115,12-15 A história de Israel revela a atua‑ fica vida, ao contrário dos ídolos, que são
ção salvífica do Senhor (v. 12a). Por isso, é feitos por mãos humanas (v. 4).
possível afirmar que esse Deus, de forma 115,16-18 Os céus pertencem ao Senhor (v.
poderosa, tem como atuar em favor de seu 3a), enquanto a terra e a vida foram e estão
povo, da casa de Aarão e de quem o teme. sendo entregues continuamente à huma‑
Aliás, ao contemplar o Senhor como Cria‑ nidade (v. 16). A resposta adequada a quem
dor que mantém sua criação constante‑ oferece esse presente consiste, por sua vez,
mente e assim oferece o espaço de vida tão no louvor e na bendição, sendo que essa di‑
necessário a todos, percebe-se que a huma‑ nâmica é o verdadeiro sinal da vida, pois so‑
nidade já se encontra abençoada por ele (v. mente alguém vivo pode louvar o Senhor.
15). Afinal, a criação feita pelo Senhor signi‑
270
Sl 116 (114–115)
Salmo 116 (114–115)
1 Amo o Senhor,
porque escuta minha voz e minhas súplicas.
2 Realmente, inclinou seu ouvido para mim;
em meus dias o invoco.
116,1-2 O orante declara seu amor ao ção, o repouso em lugares adequados (v. 7).
Senhor, pois este, sempre de novo, aten‑ Voltando a dialogar com o Senhor, recorda
deu a seus pedidos. Trata-se de uma rela‑ sua salvação. Da cabeça, representada pelos
ção positiva, que deve perdurar no futuro. olhos, aos pés sentiu sua vida preservada
116,3-6 Quem reza aqui foi e continua sen‑ da morte (v. 8). Por isso, agora repousa an‑
do entregue ao perigo da morte (v. 3). Por dando diante do Senhor (v. 9).
isso, busca constantemente o diálogo com o 116,10-11 O orante continuou com sua fé,
Senhor, apresentando-se como um justo (v. mesmo tendo repetidamente experimen‑
4). No entanto, de forma indireta, o orante tado a opressão e a humilhação. Portanto,
reconhece também que a falta de sabedoria é um pobre que reza aqui. Ele tem a impres‑
e prudência possa ter contribuído com sua são de que todas as pessoas insistem na
necessidade (v. 6). mentira ou são uma mentira. Por isso, só
116,7-9 Quem reza aqui convoca a si mes‑ pode confiar em Deus.
mo para experimentar, após toda a agita‑
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Sl 116 (114–115)
Aleluia!
Aleluia!
118,1-4 A criação e a história revelam a bon‑ Com eles, porém, também qualquer outra
dade e a lealdade do Senhor. O povo de pessoa que não é do povo eleito pode se jun‑
Israel e, em especial, os sacerdotes descen‑ tar à comunidade dos que reconhecem o
dentes de Aarão são convidados a reconhe‑ Senhor como seu Deus e lhe agradecem.
cer a solidariedade ou o amor de seu Deus.
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Sl 118 (117)
118,5-18 Resumindo sua experiência pes‑ defender, por mais difícil que seja (vv. 10-
soal ou a do povo, o orante destaca que a si‑ 12). Enfim, quem reza aqui experimentou
tuação marcada pela estreiteza e pelo medo o sofrimento e acredita que os aconteci‑
foi transformada em largueza e, portanto, mentos tenham sido causados pelo Senhor
num espaço de proteção e liberdade (v. 5). (v. 13). A intenção de Deus, porém, era ape‑
Existem ameaças por parte dos que insis‑ nas corrigi-lo (v. 18), pois, por mais que o
tem no ódio, mas a experiência do auxílio Senhor tenha aproximado o orante da mor‑
divino permite um olhar sereno para os te, salvou-o de forma poderosa, para que se
opositores (vv. 6-7). Aliás, somente a con‑ sentisse vivo (v. 17). Historicamente, Israel
fiança no Senhor garante a sobrevivência, interpretou dessa forma a experiência do
uma vez que o ser humano em geral e as exílio babilônico. Toda vez que se repetir
lideranças ricas e poderosas em especial a atuação salvífica do Senhor em prol da li‑
decepcionam quando precisam oferecer berdade, o canto mosaico da vitória deverá
auxílio (vv. 8-9). O Senhor faz com que a voltar a ser entoado (vv. 14-16; Ex 15,1-18).
pessoa cercada pelos inimigos consiga se
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Sl 118 (117)
118,19-28 A pessoa ou o povo que experi‑ ganha caráter de milagre e torna-se motivo
mentou a salvação do Senhor apresenta-se de festa (vv. 23-24). Contudo, a prece formu‑
nos portões do templo pedindo para en‑ lada revela que a salvação está em curso (v.
trar (v. 19). Outra voz, talvez dos sacerdo‑ 25). Mesmo assim o justo, não valorizado
tes, alerta que, para participar do culto, é pelos outros mas salvo pelo Senhor, entra
preciso fazer parte dos justos (v. 20). Quem agora no templo e é bendito por represen‑
se aproximou declara agora que foi salvo e, tar a atuação poderosa de Deus (v. 26). Sua
portanto, justificado pelo Senhor; por isso, presença já se torna bênção aos outros, pois
propõe-se oferecer no templo o sacrifício de nele a luz divina ganhou visibilidade (v.
agradecimento (v. 21). Contudo, a salvação 27a; Ex 13,21; 14,20). Enfim, a descoberta da
deu-se de forma surpreendente. Uma pedra ação salvífica do Senhor se transforma em
descartada pelos construtores foi valoriza‑ expressão litúrgica em forma de procissão
da pelo construtor divino, para que servisse (v. 27bc; Lv 23,40-41), que culmina no agra‑
à finalização da construção, por exemplo, decimento (vv. 28-29).
como um merlão em cima de um muro 118,29 O orante termina sua meditação
de defesa (v. 22). Percebe-se a insistência como a iniciou, convidando a comunidade
do Senhor na reorganização da sociedade a agradecer a Deus sua solidariedade amo‑
através daqueles que foram recuperados de rosa (v. 1).
uma situação na qual pareciam ser inúteis.
Essa experiência de salvação, por sua vez,
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Sl 119 (118)
Salmo 119 (118)
119,1-8 O orante declara felizes os que in‑ Moisés (Pentateuco: Gênesis, Êxodo, Leví‑
sistem na integridade (v. 1), rejeitando um tico, Números e Deuteronômio), ou seja,
comportamento que favorece a desigual‑ numa instrução composta de narrativas e
dade (v. 3). Tal proposta tem suas origens leis. Todavia, o caminho da integridade é
na lei do Senhor. Trata-se da tentativa de exigente. Por isso, quem reza aqui solici‑
transformar a experiência da libertação, ta a Deus firmeza e proximidade, a fim de
narrada nas tradições do êxodo, em um conseguir aprender e observar o que cor‑
projeto jurídico (vv. 2.4). Esse processo re‑ responde à justiça divina (vv. 5-8).
sultou na Torá contida nos cinco livros de
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Sl 119 (118)
119,9-16 Desde a juventude, o ser humano do contar com a proteção de seu senhor e
corre o risco de perder-se através das injus‑ senhor da terra. Sobretudo, insiste para que
tiças. Contudo, acolhendo as palavras do Deus lhe abra os olhos, a fim de enxergar o
Senhor, sua conduta se encontra direcio‑ poder salvífico das leis divinas que tanto
nada. O orante manifesta aqui o prazer de lhe causam prazer. Mas há opositores arro‑
ter a Deus como quem o instrui a respeito gantes que menosprezam o fiel. Trata-se
de um modelo de comportamento juridica‑ de lideranças que favorecem a ilegalidade,
mente organizado (vv. 14.16a). atraindo, dessa forma, a maldição para si
119,17-24 Quem reza aqui se apresenta a (Dt 27,15-26).
Deus como servo ou imigrante, queren‑
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Sl 119 (118)
119,41-48 O fiel à Torá, que é amante dos (v. 51a). Mesmo assim ele se manteve fiel
mandamentos de Deus, enfrenta oposição. à instrução do Senhor, pois, ao praticá‑
Outros zombam dele. Diante disso, ele for‑ -la, interiorizou a Torá (v. 56). Assim, en‑
mula sua prece. Quer que o Senhor o salve controu segurança em sua vida, apesar
e assim revele a prevalência de sua ordem daqueles a seu redor que insistiram na
justa no mundo, proporcionando um es‑ perversidade, abandonando a Lei. Além
paço que possibilita a sobrevivência digna disso, os mandamentos de Deus se trans‑
e o bem-estar. formaram em salmos, que o orante can‑
119,49-56 O orante experimentou a misé‑ tou quando sentiu raiva dos opositores
ria (v. 50a) e o menosprezo dos arrogantes (vv. 53-54).
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Sl 119 (118)
119,57-64 O orante compara a Torá à sua meio da noite, quando faz memória da ação
parte ou parcela de terra, na qual vive e pela libertadora de Deus em favor dos oprimi‑
qual é sustentado. Como acolheu a von‑ dos (Ex 11,4).
tade de Deus em seu comportamento, es‑ 119,65-72 Quem reza aqui medita sobre a
pera verificar a palavra favorável do Senhor bondade do Senhor, pois estava no cami‑
em seus dias. Quanto ao ambiente de vida, nho do pecado (v. 67a). Contudo, ao expe‑
quem reza aqui enfrenta os perversos, mas rimentar humilhação (v. 67a) e falsidade (v.
também experimenta a comunhão que a 69a) da parte de quem se tornou insensível
instrução divina proporciona com os de‑ à palavra de Deus (v. 70), o orante descobriu
mais fiéis. Justamente assim percebe que o valor da Lei do Senhor. Enfim, Deus o ree‑
o Senhor plenifica o mundo com seu amor. ducou em seu projeto por intermédio do so‑
A resposta do orante insiste no louvor no frimento.
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Sl 119 (118)
119,73-80 Além de ter criado o ser humano necessitado. Contudo, o sofrimento tinha
(v. 73a), Deus lhe deu a habilidade de en‑ como objetivo não a desolação mas sim
tender a Torá (v. 73b). O orante aprendeu uma compreensão mais ampla e real dos
com o sofrimento, o qual também atri‑ objetivos dos mandamentos de Deus, pois
bui ao Senhor (v. 75b). Quando, pois, se estes insistem na vida. Assim, a humil‑
viu oprimido, compreendeu a importân‑ dade nasce da humilhação.
cia da solidariedade divina para com o
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Sl 119 (118)
119,81-88 O orante revela sua saudade do 119,89-96 A palavra de Deus está sempre
consolo de Deus, uma vez que cultivou disponível (v. 89). Através dela, o cosmo pas‑
as esperanças transmitidas pela Torá (vv. sou a existir (v. 90b). Nela tudo permanece.
81-82). Contudo, ele se tornou como um Por dependerem da fidelidade da palavra do
odre de vinho, que, vazio, é pendurado no Senhor, todos hão de colocar-se a serviço dela
fumeiro, até voltar a ser usado após a pró‑ (v. 91b). Sobretudo os miseráveis conhecem a
xima colheita (v. 83a). Todavia, quem reza dependência do ser humano em relação aos
aqui, perseguido pelos inimigos, tem a mandamentos de Deus, pois estes garantem
impressão de que não lhe restam muitos àqueles uma sobrevivência digna (vv. 92-93).
dias. Há urgência e, por isso, pede auxílio Vale, portanto, a busca da Torá, porque so‑
a Deus. mente ela oferece liberdade (v. 96b).
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Sl 119 (118)
119,153-160 O Senhor é visto como defen‑ assim optou pelo amor à Torá, acreditando
sor de quem está sendo agredido, conforme na salvação provinda das decisões justas do
o anunciado na Torá. Dessa forma, o orante Senhor. Quem reza aqui cultiva a esperança
espera recuperar sua vida junto a Deus. de que a Torá, com sua visão da justiça, seja
119,161-168 O orante, ao que parece, ex‑ a fonte que jorra paz, protegendo de quedas
perimentou a perseguição por parte de provocadas pelo erro.
funcionários nobres e poderosos. Mesmo
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Sl 119 (118)
120,1a Os Salmos 120–134 formam uma uni‑ Sozinho não consegue se defender con‑
dade literária. Cada um dos quinze poe‑ tra os mentirosos e corruptos, que querem
mas inicia-se com a expressão “Canto das tirar-lhe a vida. Por isso, invoca o Senhor
subidas”. É provável que a expressão se re‑ como libertador.
fira às subidas até Jerusalém (Sl 122,2.3.6; 120,3-4 O orante se dirige agora a seus
125,2; 128,5) ou, mais exatamente, até a opositores. Apresenta-lhes as consequên‑
casa do Senhor (Sl 122,1.9; 134,1), construída cias do comportamento deles, pressupon‑
no ponto mais alto do monte Sião (Sl 125,1; do que o Senhor não tolere a fraude, uma
126,1; 128,5; 129,5; 132,13; 133,3; 134,3). Ou‑ vez que esta provoca sofrimento e morte
tras expressões usadas para o mesmo lo‑ na vida dos injustiçados. Com duas metá‑
cal são “santuário” (Sl 134,2), “lugar para o foras bélicas, descreve a oposição decidi‑
Senhor” (Sl 132,5), “moradia para o Forte de da de Deus. Primeiro, recorda as flechas
Jacó”. Ali se encontra o estrado dos pés do afiadas, armas mortais. Em seguida,
Senhor (Sl 132,5.7) ou o lugar que escolheu menciona a brasa feita com a raiz dura
e desejou como seu assento (Sl 132,13) ou re‑ da giesta, que mantém o fogo por muito
pouso (Sl 132,8.14). tempo e serve para incendiar a casa do
120,1bc Olhando para o passado, o orante inimigo. Ambas as armas têm caracterís‑
inicia sua oração declarando que o Senhor, ticas semelhantes à falsidade e à traição.
Deus de Israel, responde à pessoa e ao povo O orante, ao experimentar sua impotên‑
em meio às angústias deles e os salva. Dessa cia diante dos ataques dos traidores, in‑
forma, o resumo antecipado motiva os afli‑ siste em que o Senhor faz prevalecer o
tos a procurar sempre esse Deus. princípio jurídico da igualdade.
120,2 Quem reza aqui se sente ameaçado
pelos que insistem em falsidade e fraude.
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Sl 120 (119)
120,5-7 Por mais que esteja em Israel, o valentes flecheiros no sudeste de Israel, na
orante se sente como se estivesse em Mosoc região norte da península arábica (Is 21,17).
ou Cedar. Mosoc é o nome de um dos filhos Quem reza aqui se encontra num mundo
de Jafé, portanto neto de Noé (Gn 10,2); os caótico, no qual prevalecem agressão e des‑
descendentes de Jafé representam os po‑ truição. Contudo, ao subir como peregri‑
vos que ocupam a região norte do mundo no a Jerusalém, cultivando a memória do
da época; além disso, Mosoc simboliza um Senhor que liberta, o orante procura iniciar
povo poderoso de guerreiros, o qual, do ex‑ uma nova etapa em sua vida. Em meio aos
tremo norte, pode se aproximar de Israel e que favorecem conflitos violentos, propõe‑
ameaçá-lo em sua sobrevivência (Ez 39,1- -se promover a paz.
3). Cedar, por sua vez, indica uma tribo de
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Sl 121 (120)
Salmo 121 (120)
121,1-2 As montanhas que circundam o (Is 56,10), o guardião, que não dorme, pro‑
monte Sião representam, como metáfora, tege quem sobe o monte Sião, mas também
dificuldades e perigos que a pessoa enfrenta Israel como um todo (v. 4a).
em sua vida. Contudo, o orante ultrapas‑ 121,5-6 Sol e lua são benéficos, mas também
sa esse horizonte, dirigindo seu olhar para podem danificar, seja por insolação (2Rs
além do que, à primeira vista, parece ser um 4,18-19), seja por tornar a pessoa lunática,
obstáculo. Com isso, vislumbra aquele que segundo a visão da época. O Senhor, por
lhe pode oferecer proteção. Quem criou o sua vez, é como uma sombra protetora (Os
cosmo e o sustenta também tem poder para 14,8; Sl 91,1).
oferecer um auxílio salvífico. 121,7-8 Males podem ameaçar a pessoa em
121,3-4 Uma voz anônima apresenta o sua sobrevivência. Além disso, a vida é mar‑
Senhor como guardião (vv. 3b.4a.5a.7ab.8a) cada por um constante vaivém. Contudo,
ao orante. Diferentemente dos líderes da so‑ em meio a todas essas alternâncias, o Senhor
ciedade israelita, que são cães adormentados oferece constantemente seu auxílio.
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Sl 122 (121)
Salmo 122 (121)
122,1-2 Quem reza aqui lembra o diálogo que ção da sociedade. O segundo traço de Jeru‑
o motivou a subir ao santuário (v. 1bc). Em salém consiste em sua força de congregar
seguida, apresenta o momento da chegada os diversos grupos populacionais de Israel,
em Jerusalém (v. 2). Dois lugares concretos visto que todos pertencem ao Senhor (v. 4).
são mencionados na exposição inicial: a casa O terceiro traço refere-se à tarefa mais su‑
do Senhor e os portões de acesso, que fazem blime de Jerusalém, que é servir à promoção
parte dos muros de fortificação. A ideia é que da justiça. As autoridades, assentadas sobre
tais portões somente se abram para os justos seus tronos, hão de realizar os julgamentos
(Sl 118,19-20). O templo é contemplado não necessários, pondo o direito em prática (v. 5;
de forma isolada mas sim junto aos demais Sl 72,1-2).
lugares de Jerusalém. Aliás, o nome da ci‑ 122,6-9 Finalmente, o orante pede que Jeru‑
dade pode ser compreendido como “funda‑ salém possa beneficiar seus visitantes com
ção da paz”. a paz nela gerada (v. 6). Além disso, para
122,3-5 O orante destaca três traços urbanos que a cidade possa cumprir sua tarefa de
de Jerusalém. O primeiro é que as constru‑ promover a justiça, é importante que nela
ções adjacentes revelam maior harmonia, mesma reine a paz (v. 7). Dessa forma, a
visto que as pedras apreciadas (Sl 102,15) capital tem como promover a convivência
transmitem a obra do construtor divino (Sl pacífica entre as pessoas no país inteiro (v.
147,2) e sua insistência na união (v. 3), a qual 8). Além disso, se Jerusalém estiver bem, o
também deve se fazer presente na constru‑ templo também estará (v. 9).
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Sl 123 (122)
Salmo 123 (122)
123,1-2 O gesto de levantar os olhos pode in‑ 123,3-4 O orante insiste na misericórdia do
dicar preocupação, medo e desespero, mas Senhor como resposta a quem está sendo
também expectativa de receber o apoio ne‑ desprezado por causa de sua posição social
cessário. O servo e a criada ilustram essa e pobreza. No cotidiano prevalecem postu‑
dupla perspectiva: de um lado são depen‑ ras marcadas pela soberba, autossuficiên‑
dentes de seus senhores e até violentados cia e caçoada contra o mais necessitado.
por eles; do outro são libertados por Deus, Defende-se aqui que, quando se atinge o
tornando-se capazes de uma sociedade miserável, atinge-se também o Senhor.
mais igualitária. Portanto, quem reza aqui
espera que a mão divina favoreça, proteja e
inverta sua situação.
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Sl 124 (123)
Salmo 124 (123)
124,1-5 Quem reza aqui reconhece o amparo 124,6-8 A bênção destaca a experiência de
do Senhor. Imagina o que poderia ter acon‑ uma libertação surpreendente. O captu‑
tecido sem a ajuda de Deus, sem mencionar, rado recuperou sua liberdade e sabe agora
porém, um perigo concreto. Contudo, o a quem deve gratidão. Por isso, propõe-se
povo já se viu ameaçado em sua sobrevivên‑ pôr sua confiança no Deus que revelou seu
cia, sobretudo quando sofreu com invasões nome no êxodo, Deus este que também é o
militares (v. 2b). Não obstante, são justa‑ Criador do cosmo, desde suas origens até o
mente a fraqueza e a impotência humanas tempo presente (v. 8).
que tornam evidente o poder divino.
295
Sl 125 (124)
Salmo 125 (124)
125,1-2 O monte Sião e os montes circunvi‑ optar pela maldade e tornar-se criminoso,
zinhos de Jerusalém causam no visitante a uma vez que tem sua sobrevivência amea‑
impressão de firmeza e perpetuidade. Da çada.
mesma forma, o fiel é convidado a crer que 125,4-5 Dentro de sua fé, quem reza aqui
o Senhor é inabalável e, portanto, digno de quer que bondade e retidão prevaleçam em
confiança. Sião. A paz nasce não de caminhos tortos
125,3 No momento de ser lançada a sorte, ou malfeitorias mas sim da insistência na
poderosos – sejam eles dominadores es‑ justiça,. Enfim, basta que o Senhor favo‑
trangeiros ou conterrâneos – pegaram para reça os bons e não os que vacilam por causa
si a porção de terra atribuída a outro (Js da maldade.
18–21). Com isso, aumenta o risco de o justo
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Sl 126 (125)
Salmo 126 (125)
127,1-2 O homem recebe a tarefa de traba‑ forças, pois o repouso tranquilo é fruto e si‑
lhar (Gn 2,15; 3,19; Pr 6,6-11; 10,4s; 24,30-34). nal da presença de Deus (Pr 3,24; 19,23).
Caso contrário, corre o risco de cair na po‑ 127,3-5 Além do sono, o Senhor oferece a
breza. No entanto, quem reza aqui defende fertilidade humana e a descendência como
a compreensão de que o trabalho do ho‑ recompensa. Cada nascimento indica que
mem somente dá certo se o Senhor concluir tudo provém de Deus como uma dádiva
a obra do trabalhador. Seja na cidade, seja constante (v. 3). Além disso, os filhos têm a
no campo, o povo se afadiga com sua luta tarefa de insistir na justiça conforme o di‑
pela sobrevivência. Contudo, o Senhor se reito, sobretudo ao defenderem, no portão
propõe acompanhar e abençoar tal esforço. da cidade, os mais fracos quando estes são
Oferece, por amor, o sono que revigora as atacados por seus inimigos (Pr 22,22).
298
Sl 128 (127)
Salmo 128 (127)
128,1-4 A felicitação inicial (v. 1) convida bem-estar proporcionado pelo trabalho (v.
o ouvinte a adotar uma postura marcada 2) e a felicidade de um lar com mulher e fi‑
pelo temor ao Senhor, reconhecendo o lhos (v. 3). Assim, a bênção divina quer se fa‑
caminho indicado por Deus na Torá (Sl zer presente no dia a dia do povo (v. 4).
119,1-3). Ao descobrir, pois, que ninguém 128,5-6 Com a menção de Sião, Jerusalém e
sobrevive opondo-se a essa proposta, o te‑ Israel, o horizonte se amplia. De um lado,
mor ao Senhor torna-se o fundamento e a afirma-se que o Senhor, a partir de Sião,
expressão máxima de qualquer tipo de sa‑ atua em favor de quem o visita. Do outro,
bedoria, conhecimento e inteligência (Pr estabelece-se uma relação entre o bem-es‑
1,7; 9,10; Jó 28,28). Enfim, ao contemplar a tar individual (v. 2b) e o bem-estar da socie‑
vida do povo, quem reza aqui afirma que dade, sendo esta última representada pela
o respeito pelo Senhor garante ao varão o capital, Jerusalém (v. 5b).
299
Sl 129 (128)
Salmo 129 (128)
5 Espero, Senhor,
minha alma espera;
por sua palavra, aguardo.
6 Minha alma espera pelo Senhor,
mais do que os vigias pelo amanhecer,
do que os vigias pelo amanhecer.
131,1-2b Quem reza aqui relata seu esforço. giene e carinho. Uma vez bem cuidado, não
No passado, desistiu de empenhos pessoais grita, mas repousa na mais profunda paz e
e da busca de realidades que, em sua opi‑ segurança. Aqui, Deus dedica-se como uma
nião, ultrapassavam os limites de sua exis‑ mãe a seu povo, satisfazendo as necessida‑
tência. Em meio aos conflitos que a vida lhe des básicas de quem depende dele. Para re‑
apresentou, manteve a calma. Em vez de forçar a imagem, as palavras dessa oração
correr atrás do extraordinário, procurou o são pronunciadas da perspectiva de uma
equilíbrio de vida e a moderação dos dese‑ mulher (v. 2d).
jos que lhe permitissem o diálogo esperan‑ 131,3 Em tom litúrgico, pede-se que Israel
çoso com o Senhor. mantenha-se na expectativa da ação favo‑
131,2ce O bebê somente exige a satisfação rável de seu Deus.
das necessidades básicas: alimentação, hi‑
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Sl 132 (131)
Salmo 132 (131)
132,1-10 O orante inicia com um pedido: construiu o templo para o Senhor, o Forte
Deus deve se recordar das humilhações so‑ de Jacó (Gn 49,24; Is 1,24; 49,26; 60,16), foi
fridas por Davi (v. 1). Israel já tinha sido hu‑ seu filho Salomão. Após a apresentação do
milhado e oprimido no Egito, assim como juramento de Davi, o orante lembra a histó‑
no período dos juízes, quando nasceu como ria da transferência da arca para Jerusalém
sociedade nas terras de Canaã, durante os (v. 6). Éfrata é identificada com Belém (Gn
séculos XII a XI a.C. Com Davi, esse pe‑ 35,16.19; 48,7; 1Sm 17,12; Rt 1,2; Mq 5,1). Nos
ríodo, porém, chegou ao fim (2Sm 7,10). campos de Jaar, a arca tinha sido instalada
Contudo, as humilhações não pararam. após sua recuperação das mãos dos filis‑
Em vez de serem provocadas pelo inimigo teus (1Sm 6,21–7,2). Agora, celebra-se a arca
exterior, passaram a ser produzidas pelo como o estrado dos pés do Senhor (1Cr 28,2;
próprio comportamento político. Por isso, Sl 99,5; Lm 2,1), e o templo, por hospedar a
o profeta Aías, de Silo, anunciou a humilha‑ arca, como a morada de Deus (2Cr 6,11). Ao
ção da descendência de Davi por parte de chegar a esse lugar, a comunidade pede ao
Deus no momento do cisma (1Rs 11,39). No Senhor que se levante, junto à arca, e se di‑
entanto, quem reza aqui pede que Deus vol‑ rija à sua nova morada (vv. 7-8). A arca da
te a se lembrar de Davi ou de seu sucessor, o força, que serviu como salvaguarda e pro‑
rei ungido (vv. 1.10). Davi fez um juramento teção militar (Nm 10,35-36), é transladada
(vv. 2-5) e armou uma tenda para a arca em com solenidade para seu repouso. Além
Jerusalém (2Sm 6,17), na eira do jebuseu disso, insiste-se na importância de os sacer‑
Ornã (1Cr 21,22), onde mais tarde Salomão dotes vestirem-se com a justiça, pois nela
construiu o templo (2Cr 3,1; 7,12). Seguin‑ está a salvação (vv. 9.16). Assim, o povo dos
do a visão do cronista, Davi fez os planos fiéis terá motivo de júbilo.
e ajuntou os materiais, mas quem de fato
303
Sl 132 (131)
133,1 O Gênesis destaca o projeto da convi‑ vém do óleo aromático da unção do sumo
vência entre irmãos: Caim e Abel, Abraão sacerdote, feito de mirra, cinamomo e
e Ló, que são tio e sobrinho, Ismael e Isaac, acácia, diluídos com azeite de oliva. É um
Jacó e Esaú, José e seus irmãos. Mais tar‑ perfume exclusivo, usado também para
de, o povo de Deus existe em forma de dois consagrar a tenda, a arca, o altar, o candela‑
estados: o Reino do Norte, que é Israel, e bro e os utensílios do culto (Ex 30,22-33). A
o Reino do Sul, chamado de Judá. Após o outra imagem lembra o orvalho, que, para
exílio babilônico, no período de Neemias, quem vive no calor, é uma fonte preciosa de
tem-se a oposição entre samaritanos e ju‑ umidade, pois devolve a maciez à pele e a
deus. Todavia, em todas as épocas, Israel flexibilidade dos músculos. Como o mon‑
deve buscar a irmandade, tanto no plano te Sião, cujo nome significa “sequidão” ou
familiar como no nível comunitário, social, “aridez”, é beneficiado pelo orvalho do dis‑
nacional e internacional. tante Hermon, assim também os membros
133,2-3b A união entre irmãos é algo praze‑ de uma família ou comunidade podem be‑
roso e, ao mesmo tempo, misterioso. Como neficiar-se das boas relações fraternas.
um perfume, expande seu aroma, sem con‑ 133,3cd Por ordem do Criador, a bênção,
torno preciso. Quem respira envolvido por disponível em Sião, se transforma em vida
seu bom odor sente prazer. O cheiro pro‑ para quem a recebe.
305
Sl 134 (133)
Salmo 134 (133)
134,1-2 Os peregrinos que subiram até o 134,3 No final dos Cantos das subidas (Sl 120–
templo de Jerusalém parecem se dirigir 134), o peregrino e, com ele, toda a comuni‑
aos servos que pernoitam no santuário (Is dade são convidados a receber a bênção do
30,29; 1Cr 9,33; Sl 135,2). Convidam os sa‑ Senhor, que criou e mantém o cosmo (Nm
cerdotes ou levitas nos átrios a levantar 6,24-26).
suas mãos ao santuário central, a fim de
bendizer o Senhor e favorecer a salvação
do povo.
306
Sl 135 (134)
Salmo 135 (134)
1 Aleluia!
Aleluia!
135,8-14 O orante traz à memória a atuação Mesmo assim tais imagens de deuses, que
histórica do Senhor contra o faraó (vv. 8-9). no fundo nem deuses são, destacaram-se
No momento da morte dos primogênitos, o no contexto histórico-cultural do orante e
líder egípcio foi forçado a reconhecer o se‑ se tornaram atraentes também para o povo
nhorio do Deus de Israel (Ex 11; 12,29-34). de Deus. Contudo, quem os segue se torna,
Além do faraó, o Senhor também feriu os como eles, incapaz de respirar (v. 17b-18).
reis na Transjordânia (v. 11ab; Nm 21,21-35) 135,19-21 São apresentados aqui diversos
e da Cisjordânia (v. 11c; Js 1-12), a fim de pro‑ grupos. A casa de Israel é o povo; a casa de
porcionar terra ao povo hebreu (v. 12), mes‑ Aarão são os sacerdotes; a casa dos levitas
mo quando este se tornou infiel (vv. 13-14). são os cantores do templo (1Cr 23,30); e to‑
Por isso, o povo deve fazer memória contí‑ dos os que temem o Senhor representam
nua de seu Deus. a humanidade inteira. Todos eles devem,
135,15-18 Enquanto o Senhor, Deus de porém, se reunir para bendizer, na cidade
Israel, faz o que deseja (v. 6), os outros deu‑ de Jerusalém, ao Deus que se faz presente
ses são feitos pelo homem (v. 15; Sl 115,4-8). em Sião.
308
Sl 136 (135)
Salmo 136 (135)
136,1-3 Quem reza aqui convida os ouvin‑ 136,4-9 Ao meditar sobre o cosmo, formado
tes e leitores a agradecerem ao Senhor. Sua por céus e terra e provido de luzeiros, o
motivação são a bondade e a solidariedade orante enfoca o Senhor como Criador e
amorosa do Deus de Israel, soberano no mantenedor de toda a realidade. A criação
mundo dos deuses e no mundo dos que se é o primeiro gesto de amor eterno pela hu‑
apresentam ou são vistos como senhores na manidade. Por isso, é justo agradecer ao
terra. Senhor.
309
Sl 136 (135)
137,1-4 A comunidade que reza aqui olha tado significava desprezar e ofender o Deus
para o passado. No exílio babilônico (587- de Israel. Por isso, o silêncio dos cantores,
538 a.C.), a lembrança de Sião causava dor com as cítaras penduradas, representava
e sofrimento aos deportados. Estes, pois, bem mais o sentimento e a esperança dos
foram provocados por seus opressores. deportados.
137,5-6 Fazendo referência ao tempo pre‑
Em terra estrangeira, onde outros deuses
sente, alguém, talvez repatriado após o exí‑
eram adorados, os exilados eram obriga‑ lio babilônico, destaca como a lembrança
dos a entoar os cânticos de Sião justamente de Jerusalém lhe causa alegria. Trata-se
no centro do poder que tinha destruído de uma alegria que vem de dentro, não de
Sião. Fazer isso na frente de quem imagi‑ uma alegria exigida pelo inimigo (v. 3). Je‑
nava que, com a destruição de Jerusalém, rusalém motiva tanto o fazer (mão direita)
o Senhor tinha sido definitivamente derro‑ quanto o falar (língua).
311
Sl 137 (136)
137,7-9 Quem estava falando a Jerusalém lidade: quem destrói deve sofrer a destrui‑
(vv. 5-6) dirige-se agora ao Senhor e o con‑ ção. A filha de Babel, que é mãe, perde seus
vida a também lembrar-se de Jerusalém, filhos. É o grito de socorro de quem está
mais especificamente do dia em que a ci‑ com medo e politicamente ameaçado em
dade foi destruída (v. 7). Os edomitas, povo sua sobrevivência. O orante deseja que a
vizinho de Israel a sudeste do mar Morto, brutalidade contra os absolutamente inde‑
são apresentados como responsáveis pela fesos (2Rs 8,12; Is 13,15-18; Jr 51,2-24; Os 14,1;
destruição de Jerusalém, pois incitaram Na 3,10) e a violência experimentada pelo
os babilônios a agir. Talvez se trate de edo‑ agredido caiam sobre o agressor, segundo
mitas que atuaram como soldados merce‑ o princípio da lei do talião. Na oração, o
nários no exército babilônio. Em seguida, fiel pode dizer tudo a Deus, inclusive pa‑
o orante se dirige à filha de Babel, que é a lavras tão fortes como as finais. Contudo,
capital do Império Babilônio e que repre‑ o Senhor tem seus próprios critérios para
senta todos os impérios opressivos (vv. 8-9). agir e proíbe ao fiel vingar-se (Lv 19,18).
O orante deseja uma inversão total da rea‑
312
Sl 138 (137)
Salmo 138 (137)
1 De Davi.
138,1-3 O orante agradece ao Senhor, con‑ tado da escuta das palavras do Deus de
fessando publicamente a atuação salvífica Israel. Tais palavras são, por excelência, as
de seu Deus num ambiente marcado pelo tradições da Torá. A verdade contida nessa
sincretismo (v. 1). Voltando-se para o tem‑ Lei se revela superior a todas as outras sa‑
plo de Jerusalém, agradece o nome do Deus bedorias (Dt 4,5-8). Acolhendo o modelo de
de Israel, o qual representa a solidariedade justiça apresentado pela Torá, os conflitos
verdadeira do Senhor, revelada no êxodo (v. entre as nações podem ser superados (Is 2,1-
2). Além disso, a palavra de Deus no decor‑ 5; Mq 4,1-5). Portanto, ao aceitar os cami‑
rer da história parece ter superado ainda as nhos, ou seja, a moral revelada pelo Senhor,
expectativas ligadas ao nome divino. Ao há motivo para cantar a glória de Deus. O
oferecer repetidamente força a quem cla‑ orante descobre, sobretudo, que o Senhor,
ma por socorro (v. 3), Deus engrandece seu embora infinitamente elevado, conhece o
nome de forma ininterrupta. soberbo e participa da vida de quem está
138,4-6 Quem reza aqui formula seu desejo sendo humilhado e levado à pobreza (Is
de que todos os reis da terra sejam unidos 57,15; Sl 113,4-9).
no agradecimento ao Senhor, como resul‑
313
Sl 138 (137)
138,7-8 O orante confessa sua confiança de prevalece a esperança de que Deus, por seu
que o Senhor o faça sobreviver em meio à amor, jamais desista de sua criação, pois ela
sua situação de vida delicada, estando ex‑ é obra de suas mãos (v. 8).
posto a opositores raivosos (v. 7). Afinal,
314
Sl 139 (138)
Salmo 139 (138)
139,19-24 No final de sua oração, o oran‑ inimigos do Senhor passam a ser também
te expõe as consequências da comunhão seus inimigos (vv. 21-22). O fim da oração
com Deus. Existem, pois, além de Deus e de é marcado por uma série de pedidos (vv.
quem reza aqui, os perversos. São homens 23-24). O orante quer ser conhecido por
sanguinários que ameaçam o orante em Deus, inclusive em suas preocupações,
sua sobrevivência. Por isso, é necessário pe‑ para que Deus possa guiá-lo no caminho
dir que Deus aja contra os violentos (v. 19). da perenidade e ajudá-lo a acolher os anti‑
Os perversos até falam de Deus, mas usam gos e testados modelos de fé e de compor‑
a religião somente para favorecer suas in‑ tamento, agarrando-o de modo salvífico (v.
trigas, prejudicando as cidades de Deus (v. 10). Do contrário, o ser humano se perde no
20). Em vista dessa realidade, o orante acha caminho da idolatria, acolhendo propostas
importante tomar uma decisão radical: os que contradizem a vontade do Senhor.
317
Sl 140 (139)
Salmo 140 (139)
140,1-4 O orante se dirige a Deus porque 140,7-9 Quem reza aqui confia em sua re‑
enfrenta opositores maldosos e violentos. lação pessoal com Deus, acreditando que
Estes se mostram dispostos a brigar, sobre‑ o Senhor seja sua força e seu protetor, so‑
tudo através de discursos maldosos conce‑ bretudo nos dias mais conflituosos. Além
bidos no coração. disso, o orante pede que Deus impeça a
140,5-6 De forma planejada, quem insiste concepção e o planejamento da violên‑
na perversidade quer caçar o orante. Em cia, a fim de que os malvados não cresçam
seu orgulho, os violentos se imaginam em poder.
como senhores da história, desconsideran‑
do a ação de Deus.
318
Sl 140 (139)
140,10-12 Com sua cabeça protegida por 140,13-14 Quem reza aqui faz parte dos
Deus, o orante enfrenta uma quadrilha e que estão sendo curvados e empobrecidos.
seu líder. Diante das palavras venenosas de Contudo, crê no Senhor como seu defen‑
seus adversários, quem reza aqui cultiva a sor, insistindo na justiça divina.
esperança de que Deus monitore a atuação
dos malvados.
319
Sl 141 (140)
Salmo 141 (140)
1 Um salmo. De Davi.
141,1-4 A súplica formulada aqui insiste reza em meio a um contexto marcado pelas
na urgência de que o Senhor se aproxime maldades promovidas por seus opositores
do orante (v. 1). Além disso, busca o ideal (v. 5d). Há também dois grupos: o dos sábios
do silêncio (v. 3), uma vez que os discursos e justos, do qual o orante faz parte, e o gru‑
maldosos dos malfeitores se tornam uma po dos maldosos, composto de juízes que
tentação para quem reza aqui (v. 4a). Caso deturpam o direito, formando um tribunal
a lógica da perversidade entre no coração criminoso (v. 6; Sl 94,15.20-21). No entanto,
ou no pensamento da pessoa, haverá falas
quem reza aqui prevê que tais juízes serão
maldosas e ações malfeitoras.
141,5-7 Duas posturas marcam o compor‑ abalados e descobrirão a verdade contida
tamento do orante. Ao saber de suas fra‑ no discurso do orante. Por enquanto, po‑
quezas, ele não rejeita a correção fraterna, rém, a situação é dramática. Os ossos dos
mas a acolhe como um bom perfume para justos são espalhados semelhantemente a
a cabeça ou um óleo de unção (v. 5a-c). Por pedras que o agricultor descarta enquanto
outro lado, sempre se manteve como quem prepara a terra para o plantio (v. 7).
320
Sl 141 (140)
141,8-10 No final, o orante se concentra no caçado de forma perversa pode dizer que
Senhor como aquele que é capaz de salvar avança, pois tem seus olhos voltados para
sua vida das armadilhas preparadas pe‑ o Senhor.
los malfeitores. Assim, quem estava sendo
321
Sl 142 (141)
Salmo 142 (141)
142,1-5 Quem implora aqui derrama sua fessa, na parte central de sua oração, que,
lamentação como se fosse um sacrifício de há tempo, decidiu abrigar-se em Deus, sua
libertação. Manifestando sua fé no Senhor parcela de terra que lhe garante a sobrevi‑
que presta atenção a quem experimenta o vência.
desfalecimento de seu espírito, o orante in‑ 142,7-8 Aqui reza um pobre necessitado
siste na ação salvífica de seu Deus, pedindo (v. 7b) que imagina merecer a atenção do
que este volte a se posicionar como defen‑ Senhor. Perseguido e aprisionado pelo mais
sor a seu lado direito (Sl 16,8; 63,9; 109,6.31; forte, quer que Deus o liberte, para, assim,
110,5; 121,5). poder louvar o nome do Deus de Israel. Em
142,6 Sem a possibilidade de encontrar um torno dessa libertação do orante os justos se
refúgio entre os homens (v. 5), o orante con‑ reunirão.
322
Sl 143 (142)
Salmo 143 (142)
1 Um salmo. De Davi.
143,1-2 O orante insiste na fidelidade con‑ 143,3-6 Quem reza aqui se sente esmagado
fiante e na justiça do Senhor, estando e, portanto, próximo da morte (v. 3). A per‑
consciente das limitações do ser humano. seguição mexeu com suas emoções e com
Pensando, pois, na justiça de Deus, todos seu raciocínio (v. 4). Contudo, o sofrimento
hão de reconhecer sua dependência da mi‑ levou o orante à contemplação da história
sericórdia divina. Por isso, o homem deve da salvação (v. 5) e à oração (v. 6a). Seme‑
dar-se conta de que é servo do Senhor, de lhante à terra seca, ele espera que a salvação
que é objeto de sua benevolência. venha do alto.
323
Sl 143 (142)
143,7-10b O orante roga por uma reação rá‑ pelo Senhor. Quem se via com espírito
pida do Senhor, porque se sente ameaçado exaurido (v. 7c) sente-se agora guiado pelo
em sua sobrevivência. Deseja que a leal‑ bom espírito de Deus (v. 10c; Ne 9,20). Con‑
dade, o caminho, a ação libertadora e a von‑ tudo, o espírito divino está ligado ao nome,
tade de Deus se tornem mais presentes em à justiça e à lealdade do Senhor. No êxodo,
sua vida. Confiou no Senhor (v. 8b) e essa Deus revelou tais características de forma
postura se transforma em confissão de fé exemplar. Além disso, a defesa de seu ser‑
(v. 10b). vo inclui o fim de quem insiste na agressão,
143,10c-12 Após as preces urgentes, o provocando no próximo o sentimento da
orante formula a certeza de que será salvo aflição.
324
Sl 144 (143)
Salmo 144 (143)
1 De Davi.
144,1-2 O orante parece ser o rei, o qual pode que o homem é passageiro, reconhecendo,
estar exposto a conflitos em meio ao povo assim, seus próprios limites.
(Sl 18,44). Contudo, se de um lado o Senhor 144,5-8 Quem reza aqui pede uma interven‑
permite que ele governe o povo, do outro o ção do Senhor com fumaça e relâmpagos.
governante atribui o verdadeiro domínio a Deus precisa salvar o orante do caos, das
Deus, seu defensor. águas abundantes. Na realidade, porém, o
144,3-4 Ao fazer a pergunta sobre a essência caos são estrangeiros que, na terra do oran‑
ou a característica fundamental do ser hu‑ te, insistem no que é inútil e na mentira.
mano, o orante real surpreende ao afirmar
325
Sl 144 (143)
144,9-11 O orante imagina que Deus es‑ 144,12-14 Quem reza aqui descreve o bem‑
tenda sua ação salvífica aos mais diversos -estar da sociedade. Os filhos crescidos e
reis da terra, pois se trata do senhor de toda as filhas bonitas são o orgulho dos pais; os
a história e do Criador de toda a criação. grãos estocados e o gado multiplicado e pre‑
Paralelamente, salva também Davi, que é nhe representam a riqueza que aumenta.
o modelo do rei, e seus sucessores. O rei de Assim, não há motivo para o lamento.
Israel é servo do Senhor. Por isso, é Deus 144,15 Existe uma relação entre o bem‑
quem o livra da espada, mesmo quando -estar do povo e sua relação com seu Deus.
está sem arma na mão (1Sm 17,47). A situação atual, portanto, é contemplada
como fruto da bênção do Senhor.
326
Sl 145 (144)
Salmo 145 (144)
1 Um louvor. De Davi.
145,1 Deus é apresentado como rei por exce‑ 145,4-6 A atuação do Senhor perpassa a his‑
lência, e o rei de Israel se compreende como tória e toda a criação. Por isso, todas as gera‑
seu servo (Sl 144,10). O nome de Deus repre‑ ções hão de louvar esse Deus, tornando-se,
senta, de acordo com a história do êxodo, suas assim, uma comunidade litúrgica unida às
características principais. Esse nome merece gerações passadas, presentes e futuras.
um louvor que perdura ao longo do tempo. 145,7-9 O louvor de Deus é motivado pelas
145,2-3 Louvar sempre o nome de Deus características do Senhor. Ele é bondoso
significa louvar diariamente. Além disso, (Ex 33,19), mas também justo, pois salva o
destaca-se a insondabilidade de Deus, o que oprimido e castiga o opressor, conforme se
não significa que o Senhor não possa ser co‑ manifestou a Moisés (v. 8; Ex 34,5-7).
nhecido.
327
Sl 145 (144)
12 para dar a conhecer, aos filhos do ser humano, tuas valentias
e a glória do esplendor de teu reino!
13 Teu reino é um reino para todas as épocas,
e teu governo, para todas as gerações.
145,10-13 O reino e o governo do Senhor de‑ básicas de todos os seres vivos (vv. 15-16), o
vem ser reconhecidos mundialmente, pois Senhor aproxima-se mais daqueles que o
as obras de Deus são universais e todos os respeitam verdadeiramente (v. 18). Por in‑
seres humanos são sua criação. Existe, no sistir na justiça e no caminho ético (v. 17),
entanto, o grupo dos fiéis, ou seja, o grupo ele é experimentado como salvador e prote‑
dos que são leais ao Senhor. Estes têm a ta‑ tor de quem o respeita (vv. 19-20a). Quem,
refa de falar das façanhas e do governo uni‑ por sua vez, opta pela perversidade não tem
versal de seu Deus, pois estão conscientes como ficar diante do Senhor (v. 20b).
de que no futuro também os reis não israe‑ 145,21 O louvor do orante deve se estender
litas confessarão essa fé (Dn 3,33; 4,31; 6,27). à humanidade inteira. O conteúdo do lou‑
145,14-20 O Senhor é apresentado como vor está estreitamente atrelado ao nome de
quem oferece sua ajuda, preferencialmente Deus, o qual ganhou seu sentido com o êxo‑
a todos os necessitados (v. 14). É o Deus dos do, quando o Senhor libertou da escravidão
pobres. Embora satisfaça as necessidades egípcia o povo dos oprimidos.
328
Sl 146 (145)
Salmo 146 (145)
1 Aleluia!
146,1-2 O orante insiste na conexão entre a para a humanidade, seja para o povo eleito,
vida, representada pela alma, e o louvor ao seja para o indivíduo. Feliz quem cultiva
Senhor. Ele quer viver para salmodiar e lou‑ essa esperança (v. 5). Para realçar a força do
var com toda a vida, ou seja, através da vida e Senhor, o orante destaca primeiramente a
enquanto estiver vivo, uma vez que os mor‑ ação criadora de Deus, referente aos céus, à
tos não louvam a Deus (Sl 6,6; 30,10; 88,11-13). terra e ao mar, ou seja, às três partes do cos‑
146,3-4 De forma decidida, o orante rejeita mo. Ao governar o mundo, Deus está cons‑
uma postura marcada pela confiança nos tantemente criando (v. 6ab). Além disso, o
nobres, ou seja, em quem está com o poder Criador insiste em sua verdade (v. 6c), que se
em suas mãos. Como seres humanos e, por‑ manifesta por excelência quando o Senhor
tanto, mortais (v. 4; Gn 2,7; 3,19), não sal‑ insiste no direito favorável aos explorados
vam ninguém. Por mais que façam planos, (v. 7a), preocupando-se com as necessidades
muitos deles contrários à ordem prevista dos que se encontram ameaçados em sua so‑
por Deus, seus projetos não terão o sucesso brevivência (vv. 7b-9). Ao querer envolver o
que imaginam. homem nessa dinâmica, Deus ama o justo e
146,5-9 A felicitação realça a capacidade do se opõe ao perverso (vv. 8c.9c).
Deus de Jacó de se tornar um auxílio, seja
329
Sl 146 (145)
Aleluia!
146,10 O orante formula uma prece pelo rei‑ do Senhor (Ex 15,18), o Deus que habita em
nado e, portanto, pelo reino permanente Sião.
330
Sl 147 (146–147)
Salmo 147 (146–147)
1 Aleluia!
147,1-6 Salmodiar, no sentido de rezar de combater o caos provocado por quem opri‑
forma musicada, faz bem à pessoa, pois me o próximo (v. 6).
transmite alegria e beleza (v. 1). Olhando 147,7-11 O agradecimento ao Senhor encon‑
para Deus, o orante destaca o Senhor como tra-se motivado pelo fato de Deus, em sua
quem está construindo Jerusalém e como bondade, oferecer o necessário, como a chu‑
quem volta a juntar o povo disperso (v. 2). va, que faz o capim crescer e ser alimento
para o gado. Em especial, o Senhor se preo‑
Talvez se trate de uma alusão ao período
cupa com os mais fracos, representados
após o exílio babilônico, a partir de 538
aqui pelo corvo (Jó 38,39-41). Em contra‑
a.C. Porque se afastou do Senhor, Israel foi partida, não simpatiza com o poder opres‑
assaltado, machucado e disperso. Contudo, sivo e imperial, simbolizado pelo cavalo e
Deus se propõe salvar novamente seu povo, o soldado com sua armadura, em especial
sendo seu médico (v. 3). Afinal, o poder do a bota e os demais apetrechos que prote‑
Deus de Israel é ilimitado (vv. 4-5). O orante gem a coxa (v. 10). Pelo contrário, o Senhor
imagina que o comandante das estrelas, ao se propõe favorecer os que o respeitam e o
impor sua ordem no cosmo, possa também aguardam por seu amor.
331
Sl 147 (146–147)
Aleluia!
147,12-20 O orante convida Sião ao lou‑ metáforas indicam também que a palavra
vor do Senhor (v. 13), pois contempla a re‑ de Deus pode se tornar tanto castigo como
construção de Jerusalém – provavelmente salvação para o homem. Mesmo assim o
no período de Neemias e Esdras, nos sé‑ Senhor escolheu Israel e lhe anunciou sua
culos V e IV a.C. – e o bem-estar recupe‑ palavra, a qual inclui um projeto jurídico
rado como resultados da bênção divina. (vv. 19-20). Nasce, assim, a missão ao povo
Há segurança, paz e alimentos (vv. 13-14), de Deus de transmitir às demais nações o
de acordo com as promessas e a eficácia da patrimônio da palavra de Deus (Is 2,1-5;
palavra do Senhor (vv. 15-18). Contudo, as Mq 4,1-5).
332
Sl 148
Salmo 148
1 Aleluia!
148,1-6 O orante convida os céus e os mem‑ 7). Por mais que sejam representantes do
bros do exército celeste a entoar o louvor perigo que ameaça o homem em sua sobre‑
(vv. 1-2). Também os luminares celestes vivência, são incluídos no coral que louva
– sol, lua e estrelas – devem participar do o Senhor, pois o domínio do rei do cosmo
louvor, assim como as águas superiores do se estende também até eles. Em seguida,
oceano celeste, o qual, segundo a cosmolo‑ os fenômenos meteorológicos fazem coro:
gia antiga, está acima do firmamento (vv. o fogo celeste, o relâmpago, o granizo, a
3-4; Gn 1,7). A razão do louvor se encontra neve e a neblina (v. 8). Logo após, vêm a ter‑
no nome do Senhor, que se relaciona com ra, com suas elevações grandes e pequenas
o ser humano, em especial com quem está (v. 9a), as árvores cultivadas pelo homem e
sendo injustiçado (Ex 3,14). Além disso, as demais árvores (v. 9b), as feras e os ani‑
esse mesmo Deus também criou o cosmo e mais domesticados (v. 10a), os animais que
garante sua estabilidade. Embora possam se arrastam no chão e que voam (v. 10b). Por
ocorrer catástrofes, a ordem que Deus esta‑ fim, nomeia-se toda a humanidade, a co‑
beleceu para o mundo prevalecerá, pois a lei meçar pelos gentios e seus reis (vv. 11-12).
divina é eterna (vv. 5-6). O louvor é feito mais uma vez em nome
148,7-13 No segundo momento, o orante do Senhor, nome este que espelha sua ma‑
convida a terra a entoar o louvor dirigido jestade e seu reino. Deus não faz parte dos
ao Senhor. Começa com as profundezas céus nem da terra, mas é seu Criador e Man‑
dos mares e com os monstros marinhos (v. tenedor, impondo sua ordem no mundo.
333
Sl 148
Aleluia!
148,14 Finalmente, quem reza aqui se de‑ tornar motivo e conteúdo de um louvor que
dica a Israel. O povo de Deus parece ter re‑ o cosmo e a humanidade também cantam
cuperado sua força, pois o Senhor agiu em (v. 11bc).
seu favor (v. 11a). Isso, por sua vez, deve se
334
Sl 149
Salmo 149
1 Aleluia!
Aleluia!
149,1-4 A comunidade dos que são leais ao 149,5-9 O povo dos fiéis ao Senhor é convi‑
Senhor é incumbida de entoar um canto dado a participar da glória de seu Deus, du‑
novo (v. 1), pois o fato de ser criada constan‑ rante o dia e, deitado, durante a noite (v. 5;
temente por Deus e de ter o Senhor como Dt 6,7; Sl 1,2). Assim, os louvores se tornam
seu rei provoca gritos de alegria (v. 2). A uma arma (v. 6), pois insistem nas reivin‑
dança, animada por instrumentos rítmi‑ dicações dos oprimidos e, consequente‑
cos, é a resposta à experiência de libertação mente, nas repreensões aos opressores (v.
da opressão (Sl 114,7). É o Senhor quem sal‑ 7), conduzindo estes ao direito estabeleci‑
va seu povo de quem o oprime (v. 4). do pelo Deus de Israel (vv. 8-9a). Afinal, o
Senhor é o esplendor de seu povo (v. 9b).
335
Sl 150
Salmo 150
1 Aleluia!
Aleluia!
150,1-2 Em dois lugares o louvor de Deus dos pelos músicos levitas no templo, a fim de
deve ser entoado. Primeiro, nos céus, onde acompanhar os salmos (1Cr 15,16; 16,5; 25,6;
se situa o firmamento, que segura as águas 2Cr 5,12-14); na harpa, as cordas encontram‑
do oceano celeste e onde se movem os luzei‑ -se fixadas num arco, aberto em um dos la‑
ros celestes, como o sol, a lua e as estrelas dos; a cítara é mais simples; suas cordas são
(Gn 1,6-8). Segundo, no santuário, sendo fixadas em uma moldura em forma de re‑
que este pode ser o santuário celeste, mas tângulo. Sacerdotes e levitas estão dentro do
também o templo de Jerusalém. Imagina‑ templo. Na praça, por sua vez, está a multi‑
-se que Deus desça até seu santuário ter‑ dão dançante com o pandeiro, para indicar
restre e atue a partir dele, que é a morada o ritmo (v. 4a), e com outros instrumentos de
de seu nome. Nasce um eixo vertical entre cordas e de sopro para a melodia (v. 4b). Toca‑
os dois santuários, o qual dá estabilidade dos de duas formas, os címbalos (v. 5), peque‑
ao cosmo inteiro. O motivo do louvor se en‑ nos e grandes, transformam tudo, com seu
contra na atuação valente de Deus, a qual som alto, em júbilo. Há, portanto, um movi‑
pode ser contemplada na criação e na histó‑ mento que se estende de dentro para fora do
ria. Sendo infinitamente grande, ele é o rei templo e que vai dos sacerdotes e levitas para
do mundo. o povo. Até as nações entram na dança, a fim
150,3-5 O chofar (v. 3a) é um chifre curvado de celebrar a realeza universal do Senhor (Sl
do cabrito do deserto. Ao ser soprado, esse 96,9; 114,7).
instrumento permite uma única nota; era 150,6 O ser humano é um ser vivente en‑
usado na guerra (Js 6), no momento da pro‑ quanto respira (Gn 2,7). Além disso, para
clamação de um novo rei (2Sm 15,10; 1Rs falar e cantar, é necessário determinada
1,34.39.41; 2Rs 9,13) ou no início de uma fes‑ respiração. Aproveitando essa sua habi‑
ta (Lv 25,9; Sl 81,4; Jl 2,15); quando soprado lidade, a humanidade é convidada a pro‑
pelo sacerdote, o chofar anuncia a realeza do nunciar suas palavras mais dignas, que
Senhor (Sl 47,6; 98,6; Ex 19,16.19). Harpa e cí‑ consistem no louvor do Senhor, em espe‑
tara (v. 3b) são instrumentos de cordas, toca‑ cial quando se cantam salmos.
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