You are on page 1of 13

Imagens do negro na literatura infantil brasileira:

análise historiográfica*

Maria Cristina Soares de Gouvêa


Universidade Federal de Minas Gerais

Resumo

O artigo analisa as representações sociais sobre o negro presen-


tes na produção literária destinada à criança no Brasil, nas três
primeiras décadas do século XX. A definição de tal periodização
tem em vista a emergência, a partir da década de 1920, na pro-
dução artística e científica nacionais, da discussão em torno da
identidade brasileira. Destaca-se a construção de referências es-
téticas e científicas voltadas para compreensão dos significados
da composição racial da população, temática que ecoa nas obras
endereçadas ao público infantil.
Se nas obras produzidas até a década de 1920 os personagens
negros eram ausentes ou remetidos ao recente passado
escravocrata, observa-se um deslocamento: os personagens ne-
gros tornam-se freqüentes, descritos de maneira a caracterizar
uma suposta integração racial, hierarquicamente definida. Me-
diante a descrição das características físicas e cognitivas dos per-
sonagens negros, de sua relação com os personagens brancos,
sua inserção no espaço social, configura-se uma visão da
temática racial endereçada ao público infantil. Os negros apare-
cem como personagens estereotipados, descritos a partir de re-
ferências culturais marcadamente etnocêntricas que, se buscam
construir uma imagem de integração, o fazem a partir do em-
branquecimento de tais personagens.
Na verdade, mais que embranquecer os personagens, a literatura
infantil do período dirige-se e produz um leitor modelo identifi-
cado com os personagens e as referências culturais brancas,
marcando, portanto, um embranquecimento do leitor.

Palavras-chave
Correspondência:
Maria Cristina Soares de Gouvêa
História — Literatura — Infância — Raça.
Rua Grão Pará, 981 apto. 903
30150-341 – Belo Horizonte - MG
e-mail: cristi@fae.ufmg.br

* Texto apresentado no XXIII Congres-


so do ISCHE (International Society
Conference of History of Education) ,
Alcalá de Henares, Espanha, 2000.

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.31, n.1, p. 77-89, jan./abr. 2005 79


Images of the Black in children's literature in Brazil:
historiographical analysis*

Maria Cristina Soares de Gouvêa


Universidade Federal de Minas Gerais

Abstract

The article analyzes the social representations about the Black present
in the literary production for children in the first three decades of the
20th century in Brazil. The definition of such period takes into
account the emergence, from the 1920s, of the discussion around
the issue of the Brazilian identity in the national literary and artistic
production. Of special relevance is the construction of aesthetic and
scientific references aimed at understanding the meanings of the ra-
cial composition of the population, a theme that reverberates in the
works addressed to the children.
If in the works produced up to the 1920s black characters were
absent or referred to the then recent slavery past, a shift can now
be observed. Black characters become frequent, described in such
a manner as to characterize a supposed, hierarchically defined,
racial integration. Through the description of the physical and
cognitive features of the black characters, of their relation to white
characters, and their insertion in the social sphere, a vision of the
race issue addressed to children is composed. Blacks appear as
stereotyped characters, described from markedly ethnocentric cul-
tural perspectives that, even when trying to build an image of
integration, do it from the whitening of the characters.
Actually, more than whitening the characters, children's literature
of the period addresses and shapes a model reader identified with
the white characters and cultural references signaling, therefore, to
the whitening of the reader.

Keywords
Contact:
Maria Cristina Soares de Gouvêa History — Literature — Infancy — Race.
Rua Grão Pará, 981 apto. 903
30150-341 – Belo Horizonte - MG
e-mail: cristi@fae.ufmg.br

*The present work was presented


in the XXIII Congress do ISCHE
(International Society Conference of
History of Education) , Alcalá de
Henares, Espanha, 2000.

80 Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 31, n. 1, p. 79-91, jan./abr. 2005


O século XX foi insistentemente procla- Considerando que a literatura constitui
mado e celebrado como o “século da criança”. um campo de produção, circulação e apropria-
É inegável a centralidade que a infância assu- ção cultural, seu estudo tem sido fonte impor-
miu na cultura contemporânea, a ela sendo tante para a investigação histórica. No trabalho
direcionado todo um mercado de bens simbó- historiográfico, a literatura tem sido ferramen-
licos alicerçados na idéia da sua singularidade ta de apreensão da dinâmica sociocultural de
e distinção em relação ao adulto. Embora a diferentes momentos históricos. Porém, há que
afirmação da especificidade da infância resul- se destacar a especificidade da fonte e a impor-
te de uma longa construção histórica, foi no tância de o historiador tomar o texto literário
século passado que ganhou contornos mais não como descrição do real, mas como sua re-
precisos e definidos, tornando-se alvo de um presentação. Representação esta constituída no
conjunto de políticas de proteção e amparo e, diálogo com as demais práticas culturais, que
por outro, de uma maciça produção cultural. conferem à prática literária sua sustentação.
A literatura infantil, concebida como Com essa perspectiva de análise, tendo
diferenciada da produção destinada ao leitor como objeto compreender a representação da
adulto, funda-se em tal concepção. A constru- infância nas primeiras décadas do século XX,
ção do “gênero” só se fez possível em uma tomei a produção literária destinada à criança,
cultura que conferiu ao leitor infantil uma nesse período como fonte, de maneira a apre-
especificidade, a qual demandaria um texto ender os discursos sobre a infância em circu-
próprio. Ao longo do processo histórico de lação, naquele momento histórico. A definição
elaboração da literatura infantil, os autores não do recorte temporal alicerçou-se no fato de
apenas produziram a identidade do “gênero”,1 que, nesse momento, a produção literária
mas conformaram uma identidade do leitor. Ou dirigida ao leitor infantil experimentou não
seja, ao definir e qualificar a singularidade dessa apenas uma expansão significativa de títulos
produção literária, produziu-se também uma (Lajolo; Zilberman, 1985), mas também uma
representação de infância e leitor infantil. mudança nos cânones que regiam tal produção.
De maneira característica, a literatura Mudança esta produzida no diálogo com as
infantil definiu-se historicamente pela formula- transformações experimentadas nas práticas
ção e transmissão de visões de mundo, assim culturais mais amplas.
como modelos de gostos, ações, comportamen- Foram analisados dezessete títulos, se-
tos a serem reproduzidos pelo leitor. Construiu- lecionados a partir de sua circulação.2 Ou seja,
se a concepção de um texto literário em que o na definição do corpus da pesquisa foi usado
caráter pedagógico fez-se especialmente pre- como critério o estudo de obras que tiveram
sente. Ao mesmo tempo, à menoridade da in- mais de uma edição ao longo do período ana-
fância associou-se a menoridade da produção lisado e que eram referidas em estudos sobre a
literária, no interior desse campo cultural. história da literatura infantil brasileira (Coelho,
Para além de sua especificidade e à se- 1981; Lajolo; Zilberman, 1985; Fraccaroli,
melhança da literatura destinada ao público adul- 1953).
to, a escrita literária guarda com a realidade à qual Se meu intuito era investigar a produção
se refere uma relação, não de transparência, mas de modelos de infância nas obras, novas ques-
de reconstrução. O autor, no momento da produ- tões emergiram ao longo do estudo. Os textos
ção do texto, traduz na escrita a sua compreen- indicaram temáticas que dialogavam diretamente
são do real, como também o projeto de realida-
de que se quer conformar por meio da narrativa, 1. Para Marisa Lajolo e Regina Zilberman (1985) talvez a literatura infantil
defina-se nem tanto por uma especificidade literária propriamente dita, mas
ou como define Leila Perrone-Moysés (1990): “a pela construção de mecanismos próprios de produção e circulação dos textos.
reconstrução do mundo pelas palavras”. 2. Obras consultadas no final do texto.

Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 31, n. 1, p. 79-91, jan./abr. 2005 81


com as reflexões presentes nas práticas culturais Essa busca pelo popular, o tradicional, o
dirigidas ao adulto durante aquele período his- local e o histórico não era tida como me-
tórico. Destaca-se aí a discussão acerca da iden- nos moderna, indicando, muito ao contrá-
tidade brasileira, racialmente recortada. A partir rio, uma nova atitude de desprezo pelo
da constatação da centralidade da temática ra- europeísmo embevecido convencional e um
cial nas narrativas, em que o negro era constan- empenho para forjar uma consciência so-
temente referido, optei por contemplar também berana, nutrida em raízes próprias, ciente
no meu estudo as representações sobre o negro de sua originalidade virente e confiante
presentes nos textos analisados, tema sobre o num destino de expressão superior (...) in-
qual busco aqui refletir. troduzir novos laços, a pretexto de resgatar
elos, seria uma forma de forjar vínculos
A literatura infantil e a simbólicos que substituíssem nexos sociais
produção artística e científica e políticos que os novos tempos e suas
condições haviam corroído. (1992, p. 237)
No Brasil, é a partir das décadas de 20 e
30 do século XX, em consonância com o proces- Delineou-se um novo olhar para o país
so de modernização social, que a produção lite- que permitisse compreendê-lo como nação com
rária destinada a criança foi afirmada. A urbani- uma identidade própria, a chamada “brasilidade”.
zação crescente, a exigir uma população Destacam-se uma série de produções artísticas
identificada com os códigos citadinos, em que as e científicas do período, voltadas para compre-
práticas sociais de leitura se faziam necessárias, as ender o que é o brasileiro, o que o singulariza
reformas de ensino que tinham como um de seus e o define, e que marcas essa identidade impri-
pressupostos o desenvolvimento na criança do mia à cena social. Em formações discursivas
gosto pela leitura, a afirmação de uma família diferenciadas a discussão em torno da identida-
burguesa centrada nos cuidados à infância, em de brasileira ocupou a cena, assumindo contor-
termos gerais, tornaram possível a consolidação nos e leituras marcadas pela pluralidade. Obser-
de uma literatura voltada para o leitor infantil. va-se na produção simbólica do período, tan-
Tal produção trazia as marcas da inter- to a exaltação da brasilidade como a atribuição
locução com as práticas culturais mais amplas, em do atraso do país à sua composição étnico-
que ao processo de modernização da sociedade cultural. Ou seja, a temática da identidade bra-
brasileira aliava-se a construção de uma lingua- sileira assumiu contornos próprios em diferen-
gem que expressasse a complexidade da vida tes formações discursivas nos campos cultural
contemporânea. À medida que a sociedade bra- e científico e, mesmo em cada campo de pro-
sileira vivia, principalmente nos centros urbanos, dução simbólica, foi diversamente apreendida.
a transformação das estruturas sociais tradicionais Buscou-se, no interior do campo artís-
herdadas do regime monárquico, experimentava- tico-cultural, formular uma linguagem e refe-
se um sentimento de perplexidade e de ausência rências estéticas que simbolizassem a experi-
de referências culturais ante a uma nova ordem, ência de modernização da sociedade brasilei-
que então apenas se desenhava. A experiência de ra. O Movimento Modernista no Brasil consti-
desenraizamento do homem moderno fez brotar tuiu-se, por um lado, a partir do diálogo com
uma tentativa de compreensão e organização pe- as diversas expressões da vanguarda cultural
rante o novo. Nesse sentido, no Brasil, tomou for- européia. Por outro, tinha como fator aglu-
ma a investigação acerca da identidade brasilei- tinador buscar, nas origens e singularidades
ra, através da recuperação de suas raízes, de for- da cultura nacional, referências estéticas para
ma a situar-se num universo desprovido de refe- a produção de uma linguagem identificada
rências. Como afirma Sevcenko: com a brasilidade.

82 Maria Cristina S. de GOUVÊA. Imagens do negro na literatura...


No campo científico, construíram-se trução de um texto dirigido à criança. Desse
diferentes discursos em torno da compreensão modo, a temática racial torna-se constante nas
das origens da sociedade brasileira, quer numa obras escritas entre as décadas de 1920 e 1940,
perspectiva de intervenção cientificista, quer de por meio da presença de personagens negros,
análise de sua singularidade. Ou seja, se a associados às raízes culturais do país.
questão definidora em ambos os campos era a
inserção na modernidade por meio da compre- O negro na literatura infantil: da
ensão da brasilidade, tal temática teve diferen- ausência à mitificação
tes traduções no interior de cada campo. Fala-
va-se sobre o mesmo tema, porém com diferen- Na produção literária das duas primei-
tes olhares e perspectivas de análise, levando a ras décadas do século XX já havia uma preocu-
produções diferenciadas, geradoras de discur- pação com a nacionalização da produção. Po-
sos e práticas singulares. rém, esta se traduzia em textos que falavam do
Época de intensa produção científica, na país numa perspectiva marcadamente ufanista,
década de 1930 publicaram-se obras clássicas que glorificavam as grandezas do nosso povo
voltadas para compreensão da identidade brasi- e da nossa terra, claramente identificados com
leira, com destaque para análise do significado a cultura européia. Tratava-se de desenvolver o
de sua composição racial. De um lado, Oliveira sentimento de amor à pátria e, ao mesmo tem-
Vianna, com seus estudos fundados numa pers- po, veicular um ideal civilizatório europeizado.
pectiva de desqualificação do negro e defenso- Porém, a partir da década de 1920, em
ra da miscigenação como estratégia para o consonância com as transformações experimen-
embranquecimento da população. De outro, tadas no campo cultural mais amplo, na produ-
Gilberto Freyre que, em Casa-grande & senzala, ção cultural destinada ao público infantil bus-
ressignificou os estudos sobre as relações raci- ca-se falar do país remetendo-se a sua identi-
ais brasileiras, apontando a positividade da cul- dade cultural. Procurava-se escrever à criança
tura negra, embora numa perspectiva mitifica- brasileira na sua linguagem, sobre sua gente,
dora. Ao utilizar o termo democracia racial, este suas raízes raciais e culturais. Tal temática tor-
tornaria-se referência para compreensão da pro- nou-se preocupação presente em grande parte
blemática racial no país, inclusive no sentido do dos autores voltados para esse público. A lite-
escamoteamento de suas tensões. ratura infantil do período dialogava com as
Nesse contexto, sob o signo da moder- diversas representações construídas acerca da
nidade, a literatura infantil buscou definir sua questão racial, estabelecendo uma interlocução
identidade no interior da produção artística com os discursos produzidos no campo cientí-
brasileira. As obras sustentavam-se no diálogo fico e artístico, incorporando tal temática no
com os temas presentes nas demais produções interior das narrativas.
culturais, como a identificação da brasilidade, Ao se analisarem as obras literárias volta-
embora, dada a especificidade de seu público, das para o público infantil a partir da década de
assumisse contornos próprios. 1920, e procedendo-se a um estudo comparati-
O ícone da brasilidade traduziu-se, na vo com a incipiente produção anterior, chama
literatura infantil brasileira, pela tentativa de atenção o aparecimento do negro na narrativa.
construção de personagens e temáticas que Nos textos pesquisados, produzidos
recuperassem uma tradição oral presente no entre 1900 e 1920, o negro era um personagem
imaginário social do país e que, ao mesmo quase ausente, ou referido ocasionalmente
tempo, falasse sobre seu patrimônio cultural. Os como parte da cena doméstica. Era personagem
autores buscaram no chamado folclore nacio- mudo, desprovido de uma caracterização que
nal referências temáticas e estéticas para cons- fosse além da referência racial. Ou então per-

Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 31, n. 1, p. 79-91, jan./abr. 2005 83


sonagem presente nos contos que relatavam o rativas destinadas à criança do período, o negro
período escravocrata, como na obra: Contos surgia revestido de uma estereotipia que se re-
pátrios, de Olavo Bilac e Coelho Neto, de 1906, pete basicamente em todos os textos analisados.
em que os autores descrevem com ternura a O negro constituía personagem quase mítico,
figura submissa de Mãe Maria. cuja inserção ao longo da narrativa destaca-se e
Essa ausência do negro nas cenas so- diferencia-se dos demais personagens.
ciais descritas no período remete à sua Na verdade, a questão da raça emerge
marginalização após a abolição. O apagamen- de forma ambígua ao longo de tais narrativas.
to do negro nos textos da época reflete uma Por um lado, o negro vinha reafirmar a identi-
mentalidade dominante voltada para os ideais dade nacional, associado ao folclore brasileiro
de progresso e civilização. Procuravam-se eli- e marcando com suas histórias, práticas reli-
minar os antigos hábitos urbanos, assim como giosas e valores, a infância dos personagens.
afastar dos grandes centros os grupos popula- Por outro, esses mesmos valores não encontra-
res, concebidos como focos de agitação e re- vam lugar no seio de uma sociedade que se
sistência à nova ordem social. Nesse quadro, o pretendia moderna, fazendo-o ocupar um espa-
negro era percebido como herdeiro de uma ço social à parte. Enquanto a modernidade, as-
ordem social arcaica e ultrapassada, ligada ao sociada à urbanidade, ao progresso, à técnica,
tradicionalismo, à ignorância, ordem a ser subs- e à ruptura, era representada pelos personagens
tituída por um modelo europeizante, calcado brancos adultos, os negros era relacionados a
na idéia de progresso. A escravidão era repre- significantes opostos, como tradição e ignorân-
sentada como marca vexatória do passado de cia, universo rural e passado.
um país atrasado. Assim, a figura do negro, Excluído do projeto de modernização
com seu corpo, suas práticas e sua história do país, e afirmado estereotipicamente em sua
constituiria a presença incômoda da antiga identidade cultural constituidora da brasilidade,
ordem escravocrata, incompatível com o proje- o negro assumia um espaço mítico ao longo da
to de um país “civilizado”. narrativa, negado em sua concretude, mas
À medida que nas práticas culturais reificado e folclorizado no imaginário literário.
mais amplas desloca-se a discussão em torno É principalmente a partir da década de
da brasilidade, não mais de negação, mas de 1930 que torna-se maciça a presença, na produ-
afirmação de sua composição racial, a repre- ção literária destinada à criança, de personagens
sentação do negro na literatura infantil altera- negros, sobretudo como contadores de histórias,
se. O negro emergia nas narrativas, de manei- demonstrando a forte presença de traços associa-
ra mitificada, identificado com as raízes do dos à cultura negra, como a oralidade, a transmis-
país. Cabe agora analisar as imagens construídas são de histórias de origem africana. Tais histórias
sobre o negro na produção analisada, a fim de eram representadas como carregadas de valor
compreender a representação que as relações afetivo, contadas por pretas velhas, associadas à
raciais assumiam na literatura infantil. ingenuidade, ao primitivismo, apresentando uma
estereotipia e simplificação características.
Contadores de histórias É na perspectiva de resgate folclorizado
das raízes nacionais que os contadores de his-
A negra e o negro velho transformaram- tória negros eram recuperados nas narrativas,
se em personagem constantes, como agentes como depositários de uma tradição situada no
socializadores das crianças brancas, numa posi- passado, a ser registrada e resgatada através da
ção de servidão que revela a continuidade com literatura infantil.
o modelo escravocrata. Personagem sempre pre- É interessante observar que Lobato em
sente, mesmo que como coadjuvante, nas nar- Histórias de Tia Nastácia ironizava impiedo-

84 Maria Cristina S. de GOUVÊA. Imagens do negro na literatura...


samente tal produção. Tia Nastácia foi convida- A perspectiva de resgate de contos da
da a contar suas histórias, porque: tradição oral de diversos povos já aparecia em
1919, na coleção Biblioteca Infantil, quando
— Tia Nastácia é o povo. Tudo que o povo Tales de Andrade lançou um volume com con-
sabe e vai contando de um para o outro tos atribuídos ao folclore africano Flor encarna-
ela deve saber. Estou com idéia de espremer da. Neste conto, esta era uma princesa africana:
Tia Nastácia para tirar o leite do folclore
que há nela, afirma Pedrinho. (...) tão inteligente e tão instruída que to-
das as pessoas vinham lhe pedir conselhos
Ao ouvir essas histórias, as crianças Ela sabia qual o remédio a dar aos doentes,
reagiram, apontando as incoerências das narra- conhecia todas as espécies de plantas. (...)
tivas orais. Na fala de Emília, esta explicitava: Um dia Flor Encarnada ao passear encon-
trou uma linda moça, sentada junto de um
— Só aturo estas histórias como estudo da algodoeiro. Era um jovem branca, de estra-
ignorância e burrice do povo. Prazer não nha beleza...
sinto nenhum. Não são engraçadas, não — Quem é você? perguntou Flor Encarnada
têm humorismo. Parecem-me muito gros- cheia de admiração. Eu nunca a vi em nos-
seiras e bárbaras — coisa mesmo de negra sas cabanas...
beiçuda, como Tia Nastácia. Não gosto, não — É verdade, respondeu a moça, sorrindo.
gosto e não gosto. (1937, p. 31) Embora você não me visse, era eu quem
segredava aos seus ouvidos tudo o que
Ante a reação das crianças diante de suas você sabe em relação à floresta. Quem jul-
histórias, Tia Nastácia perdeu o posto de conta- ga você que lhe tenha ensinado as coisas
dora, reassumindo seu lugar de cozinheira, sen- que você conhece das plantas e dos ani-
do substituída por Dona Benta, que com auxílio mais? Era eu quem lhe ensinava, menina...
dos livros, “sabe contar histórias de verdade”. (Andrade, 1919, p. 7-8)
Lobato apontava a contradição entre o
projeto de resgate da tradição oral e sua Nota-se aí que se por um lado a publi-
inadequação ao presente, na medida em que era cação de histórias africanas revela uma supos-
associada à ignorância e à falta de criatividade. ta valorização daquela cultura, por outro, na
Lobato falava do fim de uma tradição, sepulta- história analisada, o saber do negro foi nega-
da pelos valores da modernidade, que, ambigua- do e atribuído a um personagem branco. Mes-
mente, de um lado buscava recuperar as raízes mo o conhecimento não letrado de práticas
nacionais e, de outro, enxergava nessas raízes as geralmente atribuídas ao saber africano foram,
origens da ignorância que impediriam a constru- no texto, remetidas a personagem branco, des-
ção de um Brasil moderno. tituindo-se o negro de um elemento fundamen-
Na visão de Dona Benta: tal de sua identidade.
No mesmo volume, o autor relatava a
Nós não podemos exigir do povo o apuro ar- história de “Pérola da Manhã”, a qual desejava
tístico dos grandes escritores. O povo... Que é atravessar um rio que a tornaria branca:
o povo? São essas pobres tias velhas, como
Nastácia, sem cultura nenhuma, que nem ler Tamil disse-nos que os primeiros homens
sabem e que outra coisa não fazem senão que foram criados viviam à margem de um
ouvir as histórias de outras criaturas igualmente grande rio, que fica para lá!, disse Pérola da
ignorantes, e passá-las para outros ouvidos, Manhã, apontando para o norte. Eram todos
mais adulteradas ainda. (Lobato, 1937, p. 30) pretos. Mas, alguns deles que sabiam nadar,

Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 31, n. 1, p. 79-91, jan./abr. 2005 85


atravessaram o rio para o outro lado. A água agitação, insubordinação ou vagabundagem. O
lavou-os e eles ficaram brancos. Desde en- resgate que se pretendia nas narrativas, tanto
tão, os homens brancos estão sempre a es- endereçadas ao público infantil quanto ao
tender os braços, convidando os homens adulto, não era o do negro concreto, margina-
pretos a também atravessarem o rio (...) eu lizado do processo de modernização. Situado
também desejava atravessá-lo nado, a fim de no passado, o negro era representante de uma
tornar-me branca. (Andrade, 1919, p. 32) relação marcada por subserviência e docilidade.
Novamente é Lobato quem, de maneira
O conto foi atribuído pelo autor ao fol- “cruel”, fez referência a essa representação em
clore africano, mas tinha como temática o de- seu texto. Em Memórias da Emília, esta ao relatar
sejo de embranquecimento, de purificação do ao Anjinho caído do céu que a vaca era um
personagem através da negação de seu “perten- animal precioso para o homem e que, no entan-
cimento” racial. Ao atravessar o rio, os negros to, o termo “vaca” era usado de forma depre-
seriam lavados, ou seja, despojados e limpos de ciativa, na linguagem cotidiana, comentava:
seu fardo racial. Percebe-se assim a visão racis-
ta e etnocêntrica do conto, atribuindo à natu- Pois muito bem. A vaca é tudo isso que aca-
reza do negro um sentimento de inferioridade bo de dizer e muito mais. No entanto, se
racial e um desejo de embranquecimento, que você comparar a mais suja negra de rua com
estariam presentes na própria cultura africana e uma vaca dizendo: “Você é uma vaca”, a
não seriam fonte da desqualificação vivida no negra rompe num escândalo medonho e se
contato com a cultura branca. Assim, o negro estiver armada de revólver, dá tiro. (1936, p.
seria naturalmente inferior, almejando sempre 14 – grifo meu)
embranquecer-se para aprimorar-se. O projeto
de resgate da cultura africana foi construído a Nos textos analisados, esta constituiu a
partir do olhar do narrador branco, cujos valo- única referência ao negro da cidade, situado no
res estavam impressos na narrativa. Tal texto presente – a negra suja de rua, armada de re-
exemplifica a contradição presente nas demais vólver, pronta a fazer um escândalo. Revela-se
produções dirigidas à criança, em que a carac- aí a descontinuidade entre a representação da
terização da cultura negra era focalizada a par- negra velha, afetiva e subserviente, e a negra
tir de um referencial etnocêntrico, o qual toma- de rua, escandalosa e insolente. Estabelece-se
va a cultura branca européia como intrínse- uma oposição semanticamente expressa entre a
camente superior. negra de rua versus a negra velha da roça. O
resgate mitificado do passado aliava-se à nega-
Pretos e pretas velhas ção e exclusão no presente, no retrato do ne-
gro na literatura infantil.
Nos textos analisados, os personagens O negro e a negra velha da roça eram
negros presentes nas narrativas do período remetidos na literatura infantil a um espaço
eram invariavelmente descritos como: a negra geograficamente situado à margem, não inse-
velha, a preta velha, o preto velho, ou crianças ridos nas relações urbanas, mas habitantes de
negras que partilhavam, mesmo que numa um locus simbólico distante, remanescente de
posição social servil, o cotidiano das crianças um Brasil agrário que se queria ora resgatar, ora
brancas. De todas as narrativas investigadas, o sepultar. Os negros habitavam as tocas nos
negro ou negra jovem eram absolutamente confins do mato onde persistiam com suas
ausentes, revelando uma exclusão social carac- crenças, enquanto viviam e faziam sobreviver
terística do período. O negro jovem era perce- suas tradições, como as práticas religiosas, vis-
bido como potencialmente perigoso, fonte de tas como feitiçaria pelos personagens brancos.

86 Maria Cristina S. de GOUVÊA. Imagens do negro na literatura...


A representação da feitiçaria associada Ora, disse Adolfo, você não vê logo que ela
ao negro repete-se ao longo de todas as nar- deixava passar do ponto o doce e que só
rativas. A feitiçaria não se mostrava uma práti- por isso ele queimava? Jovita: – Credo,
ca presente, mas remanescente nas figuras menino! Você não acredita em nada! Pois
daqueles pretos e pretas velhas que habitavam, eu me lembro dessa pequena; ela chorava
isolados, suas taperas. Menotti Del Pichia, em que fazia pena, dizia que a borboleta tinha
O país das formigas, e Lobato, em O saci, as- vindo botar quebranto nela. Adolfo não
sim afirmavam: quis brigar com a velha e calou-se, as me-
ninas piscaram um olho e abafaram uma
Havia uma cabana escondida numa porção risadinha, mas Vera e Marcelo estavam um
de árvores. Todos os que passavam por lá tanto assombrados. Vera: – Ó Jovita, ainda
se benziam. É que corria a fama por toda a há encantos? Jovita: – Se há! Se ainda há
redondeza que ali morava um feiticeiro. De feitiçaria? Oh! gente! Não é tão longe as-
fato, o dono daquela cabana era um preto sim! Ali mesmo no caminho do córrego
velho, muito feio, muito misterioso. (Del mora a Tia Eva. Dizem que ela é uma bru-
Pichia, 1932, p. 7) xa... A mulata afastou-se resmungando. Fi-
cando sós, os pequenos começaram a rir.
— Pois seu Pedrinho é uma coisa que Sabiam bem que os feitiços só existem na
branco da cidade nega, diz que não há, cabeça de algumas pessoas, mas mesmo
mas há. Não existe negro velho por aí, assim deu-lhes vontade de ir passear por
desses que nascem e morrem no meio do perto do casebre encantado. Os dois pe-
mato, que não jure ter visto Saci. Nunca vi, quenos não sabiam o que pensar, nem o
mas sei de quem viu... o Tio Barnabé, fale que havia de certo naquilo tudo! Vera prin-
com ele. Negro sabido tá aí! Entende de cipalmente que gostava tanto de histórias
todas as feitiçarias – disse Tia Nastácia. de fadas!... (Velloso, 1932, p. 147)
(Lobato, 1921, p. 23)
É interessante como no texto faz-se
Verifica-se aí a incorporação, no espa- presente uma representação que associava o
ço da literatura infantil, de uma representação negro à criança pequena, como se ambos es-
do negro relacionado a práticas religiosas tivessem no mesmo nível de desenvolvimento
“primitivas”, “pagãs”. A cultura e a tradição cognitivo. O negro seria como uma criança
negras eram compreendidas como manifesta- grande, com uma mentalidade infantil que a
ção de uma cultura inferior, pré-científica, criança branca pequena demonstraria. Tal visão
corpori-ficada nos pretos e pretas velhas, os traduz uma produção científica do final do
assim chamados feiticeiros. Esses eram descri- século XIX e início do século XX, que associa-
tos como possuidores de um saber que não va o raciocínio dos povos ditos primitivos ao
encontrava lugar numa sociedade que busca- pensamento infantil, ambos marcados por uma
va modernizar-se, sob a égide de uma lógica incapacidade de acesso ao raciocínio lógico
científica que recusava tais manifestações. formal, característico do adulto civilizado (Nina
Os brancos, nas narrativas, não eram Rodrigues, 1935; Gerken; Gouvea, 2000). Na
descritos reprimindo ou temendo tais práticas, narrativa analisada, eram as crianças pequenas
mas percebiam-nas como manifestações de um que impressionavam-se com a fala de Jovita,
primitivismo cognitivo. No livro Férias com a visto que ambas possuiriam o mesmo nível de
vovó de Maria Velloso, lê-se o seguinte diálogo desenvolvimento mental. A estas se oporiam as
entre a negra cozinheira Jovita e as crianças crianças brancas maiores, representantes de
brancas: uma lógica que recusava a idéia de encanto e

Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 31, n. 1, p. 79-91, jan./abr. 2005 87


feitiçaria, e olhavam com desdém e benevolên- gro, na medida em que a descrição do seu
cia a manifestação dessas concepções, tanto na corpo colocava-o entre o corpo animal e o
negra adulta quanto nas crianças menores. corpo do homem branco. Os textos, na verda-
de, reproduziam uma representação que, histo-
Um corpo animalizado ricamente, fez-se presente no campo científico,
ao final do século XIX, que situava o negro, no
Outra característica presente em prati- interior da cadeia evolutiva, num patamar en-
camente todos os textos referentes ao negro era tre o homem branco e as demais espécies
a constante referência à raça, definidora dos (Rodrigues, 1935; Vianna, 1938).
personagens. Assim é que, invariavelmente, o É interessante observar que Lobato fa-
nome dos personagens negros era substituído zia referência, em diversos textos, ao beiço de
por vocábulos como: o negro, o negrinho, o Tia Nastácia, animalizando-a. Assim, por exem-
preto, o pretinho, a negra, a negrinha, o preto plo, dizia Emília, em Reinações de Narizinho:
velho, a negra velha.
Era o “pertencimento” racial que si- (...) eu cortava um pedaço desse beiço.
tuava os personagens na narrativa, ao contrário (1931, p.36)
dos personagens brancos, cujas marcas raciais
não eram nomeadas ao longo dos textos anali- Na mesma obra, num diálogo entre as
sados. Pode-se analisar que a referência racial é crianças, Emília retruca Pedrinho:
que conferia identidade ao personagem, distin-
guindo-o dos demais, definindo uma alteridade. (...) melado com rapadura é uma coisa de
A descrição dos personagens negros lamber os beiços, disse Pedrinho – Beiço é
em seus atributos físicos chama atenção ao de boi, protestou Emília. Gente tem lábios.
longo das narrativas. Se, por um lado, os tex- (1931, p. 36)
tos buscavam marcar um ideal “integracionista”
em que negros e brancos partilhavam o mesmo Na verdade, a uma suposta inferiorida-
espaço (em posições sociais hierarquizadas), de estética corresponderia uma desqualificação
por outro, os atributos físicos dos personagens cognitiva. Ao animalizar os personagens negros,
eram descritos de forma diferenciada ao se re- os autores reproduziam uma representação que
ferir a negros e a brancos. Existe quase um associava tal inferioridade a uma menor capa-
paralelismo nos textos em que as mesmas par- cidade cognitiva.
tes do corpo sofriam denominações diferen-
ciadas de acordo com o “pertencimento” raci- Tornar-se branco
al dos personagens. Assim é que, enquanto o
branco tinha “cabeça”, o negro “carapinha, ou Nos textos analisados nos quais apareci-
carapinha dura”, o branco tinha “cabelo” e o am crianças brancas e negras, buscava-se marcar
negro “pixaim”, o branco possuía “lábios” e o um ideal de integração entre os personagens, em
negro “beiço”, “é beiçudo, tem gengivada ver- que estes participavam das mesmas aventuras,
melha”. O branco tinha “nariz” e o negro “ven- estabelecendo-se uma suposta igualdade, apesar
tas”. O branco tinha “pele” e o negro era “lus- das diferenças étnico-sociais. Em Um passeio em
troso”. Da mesma forma, a branca “se sentava” Petizópolis, Max Yantock narrava a seguinte cena:
a negra “se escarrapachava”.
Tal paralelismo denota uma diferencia- O Lambuza e o Milton Almofadinha desce-
ção desqualificante do negro. Ambos eram re- ram apressados do bonde e foram oferecer o
presentados como corporalmente diferentes, braço à menina que continuava a agitar o
distintos. Fica clara uma animalização do ne- lenço. Mas a menina, com um muxoxo, re-

88 Maria Cristina S. de GOUVÊA. Imagens do negro na literatura...


cusou o braço de um e de outro. Deste ca- Joãozinho que se divertia com os apuros do
valheiro não gosto – disse ela, apontando o companheiro. Quem sabe se você sai branco
Milton – é um almofadinha e deste outro daí de dentro. Depois de algum tempo, com
(apontou o Lambuza) ainda pior, não tira o pena do companheiro, João Peralta ajudou a
dedo do nariz nem que o cortem. Apressou- safar-se. Desta vez o garoto apareceu branco...
se um terceiro cavalheiro, o pretinho Alca- enormes pedaços de nata cobriam-lhe a cara e
çuz. — Este, sim — disse a menina, oferecen- somente a ponta do nariz continuava preta. —
do graciosamente o braço ao cavalheiro de Você parece mágico Pé de Moleque... você há
chocolate — é preto por fora, mas deve ter a pouco estava mais preto que o gato preto do
alma branca. (Yantock, 1935, p.17) tio Moçamba, e agora está mais branco que
minha camisa. (1932, p. 103)
A fala da personagem é inequívoca. Ape-
sar de preto, Alcaçuz tinha alma branca, o que lhe Ou Lobato em Reinações de Narizinho:
permitia ser aceito como companheiro pela crian-
ça branca. Fica clara a desqualificação das raízes Tia Nastácia não sei se vem. Está com vergo-
raciais do personagem, sendo que a referência nha, coitada, por ser preta. — Que não seja
racial aparecia como um fardo compensado por boba e venha — disse Narizinho — eu dou
seu caráter, que o “igualaria” às demais crianças uma explicação ao respeitável público... —
brancas. É interessante observar que a pretensão do Respeitável público, tenho a honra de apre-
autor parecia ser transmitir a idéia de convivência, sentar (...) a Princesa Anastácia. Não reparem
integração interracial. Mas, ao fazê-lo, despojava o ser preta. É preta só por fora, e não de nas-
personagem de sua identidade étnica, marca cença. Foi uma fada que um dia a pretejou,
vexatória compensada pelo caráter moral branco. condenando-a a ficar assim até que encontre
Os negros eram destituídos de sua iden- um certo anel na barriga de um certo peixe.
tidade étnico-cultural, reduzida a diferenciações Então, o encanto quebrar-se-á e ela virará
físico-raciais. A possibilidade de tal convivência uma linda princesa loura. (1931, p. 206)
dava-se por meio do embranquecimento dos
personagens negros, do despojamento de sua Lobato aproxima sua narrativa da história
identidade racial. de Pérola da Manhã, reproduzindo mitos presentes
Na verdade, faz-se presente em quase na cultura oral, também presentes em Macunaíma
todos os textos um ideal de embranquecimento de Mário de Andrade, do mesmo período. Porém, se
tão característico na análise sociológica das rela- o autor modernista buscava retratar os mitos funda-
ções interraciais no Brasil. Se, no campo científi- dores da brasilidade, numa perspectiva crítica, Tales
co, o ideal de embranquecimento era analisado de Andrade e Lobato apresentavam a herança raci-
como solução para o país, ante a miscigenação al africana como um fardo, a desqualificar os per-
característica (Oliveira Vianna, 1932), nos textos sonagens. A literatura infantil espelhava a represen-
tal embranquecimento perdia seu caráter metafó- tação social das relações interraciais no Brasil, repre-
rico e tornava-se literal. Reproduzia-se nas diver- sentação em que uma visão racista e etnocên-trica
sas narrativas o embranquecimento físico dos fazia-se presente, escapando à idealização preten-
personagens negros. Como apresenta Menotti Del dida pelos autores das obras infantis.
Picchia no já citado No país das formigas:
O embranquecimento do leitor
Tal qual uma mosca muito preta, Pé de Mole- infantil
que nadava e debatia-se num lago muito
branco. A terrina estava cheia de leite (...) — A ambiguidade e a ambivalência presen-
Banho de leite faz bem pra pele, disse o tes nos textos que tratavam da questão racial

Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 31, n. 1, p. 79-91, jan./abr. 2005 89


demonstram o caráter que esta tomava no Brasil, Por meio da análise dos diferentes re-
no período analisado. O fim da escravidão não tratos dos personagens negros nas obras é pos-
significou a ruptura com um modelo de submis- sível aprender a construção de uma represen-
são e subserviência, mas, ao mesmo tempo, a tação do negro na literatura destinada à criança.
construção de um Brasil moderno significou a Representação essa construída no diálogo com
incorporação mitificada do negro como parte outras formações discursivas, como o discurso
constitutiva da cultura nacional, representante de científico, que apontava, ao mesmo tempo, a
tradições e costumes que confeririam identidade visão sobre o negro na sociedade brasileira no
ao país. O resgate de tais tradições não significa- período analisado, como indicava os modelos
va, na produção literária analisada, a incorpora- que se buscavam desenvolver na criança leito-
ção do negro ao cenário da época, mas o reme- ra. O leitor que os textos produziam era marca-
timento de sua cultura ao passado. O lugar do do pela identificação com a cultura e estética
negro no projeto de nação que se desenhava no brancas, ao mesmo tempo que desqualificador
período analisado e que era apresentado na lite- da cultura e estética negra. Negro ou branco,
ratura só era possível mediante a negação de suas os textos acabavam por embranquecer o leitor,
marcas raciais, pelo embranquecimento reitera- ao reiteradamente representar a raça branca
damente descrito nas narrativas. como superior.

Obras analisadas

ALMEIDA, P. Pág inas infantis


Páginas infantis. São Paulo: Typografia Brasil, 1909.

ANDRADE, T. Saudade
Saudade. São Paulo: Melhoramentos, 1919a.

______. Pérola da manhã


manhã. São Paulo: Melhoramentos, 1919b.

______. Bela, a verdureira


verdureira. São Paulo: Melhoramentos, 1926.

BILAC, O.; NETTO, C. Contos pátrios. Rio de Janeiro: Alves, 1904.

BRAHE, T. Histórias brasileiras


brasileiras. Rio de Janeiro: Quaresma, 1914.

BRANCO, L. O Brasil das creanças


creanças. São Paulo: [s.n.], 1927.

LOBATO, M. O Saci. São Paulo: Editora Nacional, 1921.

______. Reinações de Narizinho


Narizinho. São Paulo: Ed. Nacional, 1931.

______. Caçadas de Pedrinho


Pedrinho. São Paulo: Ed. Nacional, 1933.

______. Aritmética da Emília


Emília. São Paulo: Ed. Nacional, 1935.

______. Memórias da Emília


Emília. São Paulo: Ed. Nacional, 1936.

______. Histórias de Tia Nastácia


Nastácia. São Paulo: Ed. Nacional, 1937.

PICCHIA, M. No país das formigas. São Paulo: Melhoramentos, 1932.

VELLOSO, M. As férias com a vovó


vovó. Rio de Janeiro: Alves, 1932.

YANTOCK, M. O lombrigoplano do professor Pipoca


Pipoca. São Paulo: Melhoramentos, 1935a.

______. Um passeio em Petizópolis


Petizópolis. São Paulo: Melhoramentos, 1935b.

90 Maria Cristina S. de GOUVÊA. Imagens do negro na literatura...


Referências bibliográficas

BOURDIEU, P. As reg ras da arte. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
regras

BRADBURY, M.; Mc FARLANR, J. Modernismo


Modernismo: guia geral. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

CHARTIER, R. A história cultural. Lisboa: Difel, 1990.

COELHO, N. Dicionário crítico de literatura infantil e juvenil brasileira


brasileira. São Paulo: Quiron, 1981.

ECO, U. Lector in fábula


fábula. São Paulo: Perspectiva, 1986.

FRACCAROLI, L. Bibliografia de literatura infantil em língua portuguesa


portuguesa. São Paulo: Prefeitura de São Paulo, 1953.

FREYRE, G. Casa-grande & senzala


senzala. Rio de Janeiro: José Olympio, 1933.

GERKEN, C. H.; GOUVEA, M. C. Imagens do outro: a criança e o primitivo nas ciências humanas. Educação em Revista
Revista. Belo
Horizonte: UFMG, n. esp., set. 2000.

GOUVEA, M. C. S. O mundo da criança


criança: a construção do infantil na literatura brasileira. Bragança: São Francisco, 2004.

LAJOLO, M.; ZILBERMAN, R. Literatura infantil brasileira. São Paulo: Ática, 1985.

PERRONE-MOYSÉS, L. Flores da escrivaninha


escrivaninha. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

RODRIGUES, N. Os africanos no Brasil. 2. ed.São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1935.

SEVCENKO, N. Orfeu extático na metrópole. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

VIANNA, O. Evolução do povo brasileiro. 2. ed.. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1938.

Recebido em 02.03.04
Modificado em 10.02.05
Aprovado em 03.03.05

Maria Cristina Soares de Gouvêa é professora da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em


Educação da UFMG, pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisas em História da Educação (GEPHE) e bolsista de
produtividade do CNPq.

Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 31, n. 1, p. 79-91, jan./abr. 2005 91

You might also like