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ISSN 0102-700-X
R E V I S T A D O A R Q U I V O N A C I O N A L
R E L I G I Ã O
Presidência da República
Arquivo Nacional
ACERVO
REVISTA DO ARQUIVO NACIONAL
Presidente da República
Luís Inácio Lula da Silva
Editora
Maria do Car mo Teixeira Rainho
Conselho Editorial
Adriana Cox Hollós, Alexandre Rodrigues, Clovis Molinari Júnior, Maria do Carmo Teixeira Rainho,
Maria Esperança de Rezende, Maria Izabel de Oliveira, Mauro Lerner Markowski e
Mônica Medrado da Costa.
Conselho Consultivo
Ana Maria Camargo, Angela Maria de Castro Gomes, Boris Kossoy, Célia Maria Leite Costa,
Elizabeth Carvalho, Francisco Falcon, Helena Ferrez, Helena Corrêa Machado, Heloísa Liberalli
Bellotto, Ilmar Rolohff de Mattos, Jaime Spinelli, Joaquim Marçal Ferreira de Andrade, José
Carlos Avelar, José Sebastião Witter, Léa de Aquino, Lena Vânia Pinheiro, Margarida de Souza
Neves, Maria Inez Turazzi, Marilena Leite Paes, Regina Maria M. P. Wanderley e Solange Zúñiga.
T radução da Entrevista
Carlos Brown e Maria do Carmo Teixeira Rainho
Projeto Gráfico
André Villas Boas
Secretaria
Ana Teresa de Oliveira Scheer
Apresentação
03
Entrevista com Ralph Della Cava
19
Religião e Espaço Público no Caso do Cristo no Júri
Rio de Janeiro, 1891
Emerson Giumbelli
43
A Sinagoga Ortodoxa
Novo espaço de sociabilidade para jovens judeus não-religiosos
Marcelo Gruman
63
Candomblé e Mídia
Breve histórico da tecnologização das religiões afro-brasileiras nos e pelos
meios de comunicação
Ricardo Oliveira de Freitas
89
A Crise da Civilização e o Cristo Terrestre
Iconografia cristã e arte moderna
Anna Paola P. Baptista
109
Uma Família Criptojudaizante nas Garras da Inquisição
Os Antunes, Macabeus do Recôncavo baiano
Angelo Adriano Faria de Assis
129
As Capelas de Minas no Século XVIII
Beatriz Catão Cruz Santos
147
Missionários Reais
A literatura religiosa e a disputa pelas almas devotas, séculos XVI-XVIII
Vivien Ishaq
173
Mediadores Culturais
Jesuítas e a missionação na Índia (1542-1656)
Célia Cristina da Silva Tavares
191
O Tribunal das Letras
Rafael Bluteau e a cultura portuguesa dos séculos XVII e XVIII
Cláudia Beatriz Heynemann
209
Perfil Institucional
Rogerio Dardeau
213
Bibliografia
A P R E S E N T A Ç Ã O
O Brasil, país oficialmente católico por pel da religião hoje nos países que inte-
quatro séculos, e que muitos ainda qua- gravam a ex-União Soviética.
lificam como a maior nação católica do
A seguir, dois interessantes artigos de
mundo, tem entre as suas característi-
antropólogos. Emerson Giumbelli discu-
cas mais marcantes uma forte religiosi-
te um episódio ocorrido em 1891 no júri
dade, a presença de um sincretismo re-
popular, no Rio de Janeiro, para uma
ligioso e grande variedade de crenças.
abordagem sobre a questão da separa-
Essas características fazem da religião
ção entre a Igreja Católica e o Estado,
um objeto saboroso para uma infinida-
após a proclamação da República. Já
de de pesquisas que vêm sendo produzi-
Marcelo Gruman analisa os motivos que
das fora do âmbito confessional e sob
levam jovens judeus não-religiosos a fre-
uma perspectiva multidisciplinar. É para
qüentarem uma sinagoga ortodoxa loca-
divulgar alguns desses trabalhos que
lizada na Zona Sul do Rio de Janeiro e
estamos lançando este número da revis-
que tipo de sociabilidade ela proporcio-
ta Acervo , esperando contribuir para a
na a essa camada específica da comuni-
reflexão sobre o tema e estimular a difu-
dade judaica.
são de novas fontes.
As religiões afro-brasileiras e mais dire-
Abre esta edição uma entrevista com
tamente o candomblé são o tema de
Ralph Della Cava, um dos brasilianistas
Ricardo Freitas. Em seu artigo, Ricardo
pioneiros no estudo das relações entre
analisa as transformações sofridas por
religião e política. Nela, o cientista soci-
essas religiões – fortemente vinculadas
al americano faz um balanço sobre os
a uma tradição oral –, desde o século XIX
assuntos que vêm balizando as suas pes-
até os dias atuais, enfocando, inclusive,
quisas por mais de trinta anos, desde
o seu processo de midiatização com o
aquela sobre Juazeiro na década de
advento da Internet.
1960 até as mais recentes dedicadas à
análise das relações entre o O texto da historiadora Anna Paola
fundamentalismo cristão e o Partido Re- Baptista analisa a iconografia sacra na
publicano nos Estados Unidos, sem es- primeira metade do século XX, abordan-
quecer do extenso trabalho sobre o pa- do as alterações sofridas pelos padrões
iconográficos tradicionais e as discus- dos jesuítas Henrique Henriques e
sões que envolveram a redefinição do Roberto de Nobili, Célia Tavares enfoca
papel da arte sacra na moder nidade. os trabalhos missionários desenvolvidos
pela Companhia de Jesus na Índia, no
Em seguida, cinco textos dedicados ao
período de 1542 a 1656, marcados por
período colonial. Angelo de Assis trata
trocas culturais entre o Ocidente e o
da família Antunes, do Recôncavo
Oriente.
baiano, for mada por cristãos-novos que
foram denunciados durante a primeira Cláudia Beatriz Heynemann analisa a
visitação do Santo Ofício ao Brasil. O obra do padre Rafael Bluteau. Tido como
autor toma esse grupo como um exem- um grande propagador do pensamento
plo privilegiado da resistência judaica em moder no no universo intelectual portu-
épocas de monopólio católico. Beatriz guês da corte de d. João V, Bluteau tem
Catão utiliza as petições referentes aos entre suas obras principais as Prosas por-
devotos de São Gonçalo, da comarca de tuguesas e o Vocabulário português e
Rio das Mortes, em Minas Gerais no sé- latino, editadas nas duas primeiras dé-
culo XVIII, para discutir o papel das ca- cadas do século XVIII.
pelas nas cidades coloniais. Vivien Ishaq
Finalizando este número, dedicamos o
faz uma incursão pela literatura dos
Perfil Institucional ao Centro de Estatís-
moralistas cristãos, abordando o papel
tica Religiosa e Investigações Sociais,
dos membros da Companhia de Jesus e
organismo ligado à CNBB que oferece às
da Congregação do Oratório, no mundo
camadas menos favorecidas perspectivas
luso-brasileiro, como porta-vozes privile-
de melhoria das suas condições de vida,
giados dos ideais da Igreja reformada.
além de estimular reflexões e práticas
A partir do estudo da ação missionária sociais transformadoras.
Entrevista com
Ralph Della Cava
Ralph Della Cava é pesquisador sênior análises sobre o papel das religiões nos
associado do Instituto de Estudos Lati- países do antigo bloco comunista.
no-Americanos da Universidade de
Nacional. Antes de tudo, gosta-
Arquivo Nacional
Columbia e professor emérito de histó-
ria que o senhor comentasse o que mo-
ria da Queens College da City University,
tivou o seu interesse em estudar o tema
de Nova Iorque. É especialista em histó-
religião e, especificamente, as relações
ria do Brasil contemporâneo, e autor de
entre religião e política.
Milagre em Juazeiro , de 1970, entre ou-
Ralph Della Cava
Cava. Eu posso pensar em
tros livros e artigos que tratam das rela-
outras poucas forças sociais que de ma-
ções entre religião e sociedade no Bra-
neira tão significativa moldam quem so-
sil, na Europa Central e nos países que
mos e o mundo em que vivemos, além
integravam a ex-União Soviética. Atual-
da religião e da política. O que tem me
mente, vem desenvolvendo pesquisas
mantido curioso e produtivo por mais
sobre o fundamentalismo cristão nos
décadas do que eu jamais teria imagina-
Estados Unidos. Nesta longa e rica en-
do é o interesse em analisar como estas
trevista, Ralph, que nunca perdeu seu
forças atuam.
vínculo com o Brasil, país que visita anu-
almente, descreve com detalhes como Olhando para trás, poderia atribuir meu
surgiu seu interesse pelo tema religião, interesse inicial a uma extensa família e
sua experiência no Ceará no início da dé- vizinhança italianas na qual eu cresci na
cada de 1960 – que gerou o trabalho so- cidade de Nova Iorque. Em ambas, reli-
bre Juazeiro – e as pesquisas realizadas gião e política não eram apenas uma
desde a década de 1990, que incluem questão de costume e tradição, mas tam-
bém de intenso debate, senão de devo- íssem por vieses e jargões parsonianos
ção e escárnio. Meu senso mais remoto ou por fór mulas próprias das ciências
de perplexidade e de polarização no que sociais. Mas, para o meu grande provei-
se refere à religião, e a consciência do to, em Columbia, Marx e We b e r
compromisso de nossos pais de pensar digladiariam-se com Maritain e Mounier,
e agir politicamente, ora contra o fascis- logo que as idéias sobre transformação
mo, ora em favor do nascente New Deal , social dos socialistas e comunistas lati-
ora em prol de um sindicalismo militan- no-americanos de antes da Seguda Guer-
te, nunca me abandonaram. ra tiveram que se confrontar com as da-
queles democratas-cristãos do pós-guer-
Essa explicação, porém, seria incomple-
ta se não reconhecesse a riqueza do pen- ra e a dos recém-chegados fidelistas.. Lá,
também, Immanuel Wallerstein e Terence
samento social católico e os insights dos
Hopkins elaboravam os fundamentos
movimentos de reforma radical católicos,
analíticos para uma crítica do sistema
principalmente vindos da França, que me
capitalista mundial, enquanto Juan Linz
influenciaram durante e após os qua-
delineava para a Espanha franquista e,
tro anos em que per maneci numa uni-
depois, a América Latina, sob o regime
versidade jesuíta durante a década de
militar, o seu inovador e largamente uti-
1950.
lizado modelo de “regime autoritário”.
E tampouco levasse em consideração
tudo o que me escapou uma década de- Nacional. O que levou o senhor
Arquivo Nacional
pois, durante os oito anos em que de- à pesquisa sobre o padre Cícero?
senvolvi meu doutorado em sociologia e Ralph Della Cava. Sorte e professores
história na Universidade de Columbia.
generosos têm muito mais a ver com isso
Naquela época, Columbia era singular-
do que você imagina. Apenas recente-
mente laica, secularizada e, apesar da mente eu pude perceber isto claramen-
presença de um célebre sociólogo cató-
te. Depois de finalizar a pós-graduação,
lico da religião, Thomas O’Dea, indife- eu pretendia partir para a Argentina, es-
rente à religião. Alguns responsáveis
tudar o movimento sindical socialista e
eram até bastante hostis e
fazer da América Latina meu principal,
preconceituosos, enquanto a universida-
senão único campo de pesquisa. Além
de como instituição se revelava incapaz
de meu avô ter viajado até lá, meus en-
– como mostram, entre outros eventos, contros dentro e fora dos Estados Uni-
as revoltas estudantis no campus em
dos com meus contemporâneos da re-
1968 – de fomentar qualquer tipo de
gião, heróicos oponentes da ditadura,
comunidade.
também me estimularam. Mas, ao con-
Apesar disso, era um espaço aberto e trário, em setembro de 1963, eis que
estimulante de livre e intenso debate, minha mulher, eu e nosso filho de pou-
mesmo que alguns departamentos se tra- co mais de um ano embarcamos num
nações que integravam o antigo bloco nha esposa havia passado a infância an-
comunista, na Europa Central e na União tes e durante a Segunda Guerra. Por con-
Soviética. Fale-nos como um brasilianista seqüência, passei os quatro meses se-
mudou tanto de rota. guintes no Columbia´s Harriman
Institute, centro de pesquisas dedicado
Ralph Della Cava. Bem, num certo senti-
ao estudo da antiga União Soviética, len-
do, eu não mudei de modo nenhum.
do tudo que estava disponível sobre re-
Como uma espécie de historiador de um
ligião e política na Europa Central duran-
“samba de uma nota só”, eu simplesmen-
te as duas décadas anteriores.
te me vi aplicando quase a mesma abor-
dagem utilizada para Juazeiro a uma No entanto, eu não estava sozinho na-
outra parte do mundo com quela jornada ao Leste. Meu colega e
especificidades distintas. Além do mais, amigo, também brasilianista, Alfred
em 1991 eu havia acabado de publicar Stepan e nosso antigo professor, Juan
um livro em co-autoria, sobre a Igreja Linz – renomado cientista político –, já
Católica e os meios de comunicação no haviam me precedido. A obra deles,
Brasil desde 1962. Essa investigação publicada posteriormente em 1996, com-
abordava a cultura moder na e quem a parando a transição democrática em três
moldava e, assim, fiquei bem municiado regiões do mundo – incluindo a ex-União
de questões para trabalhar com uma re- Soviética – é um monumento à
gião onde o tema central da época era engenhosidade e à originalidade, ao de-
(e ainda é incidentalmente) a reinvenção cifrar como aqueles sistemas políticos,
da nação, da economia, da religião e da aparentemente tão entranhados e imu-
sociedade. táveis, foram alterados.
vez a despeito de sete décadas de cam- acordos visando à ereção de duas admi-
panhas anti-religiosas patrocinados pelo nistrações apostólicas foram prontamen-
Estado. Mesmo que ela ainda não tenha te negociados, antigas paróquias e direi-
voltado a florescer (apenas 2 a 5% da tos de propriedade foram reconhecidos,
população são praticantes), a ortodoxia a entrada e a saída de pessoas e recur-
per manece cara e de capital importân- sos em todo o território nacional foram
cia aos povos da Bielorússia, Ucrânia, facilitadas e antigos seminários e insti-
Sérvia, Romênia, Moldávia, Bulgária, tuições educacionais reabertos.
Ar mênia, Geórgia e, principalmente, ao
Tudo isso aconteceu simultaneamente à
da Rússia, a maior nação nominalmente
busca de um objetivo transcendental: pôr
ortodoxa do mundo.
fim ao Grande Cisma de 1054 entre a
Mas, a simples proximidade geográfica cristandade latina e a de Bizâncio! Com
e uma antiga apreciação da literatura e esse propósito, o papa João Paulo II con-
da língua russa poderiam não me ter le- tinuou o diálogo iniciado por seus pre-
vado jamais a pesquisar sobre esta decessores com vários patriarcas orien-
homogênica “unidade histórica” religio- tais – que, em contraste com o papa,
sa e cultural. O que mais me intrigou e gover nam exclusivamente suas respec-
ainda me intriga foi a sua complexa “po- tivas igrejas, cada uma sediada, em ge-
lítica de religiões”. Eu vou poupar-lhe os ral, numa só nação – e seus fiéis
detalhes e assinalar apenas três amplas conterrâneos que moram no exterior.
áreas, que, desde 1994, têm sido os Entre eles, apenas o Patriarca
objetos principais do meu trabalho. Ecumênico, herdeiro da histórica Sé de
Constantinopla, é universalmente reco-
A primeira é o restabelecimento da Igre-
nhecido como o “primeiro entre iguais”.
ja Católica na Rússia, certamente uma
Uma espécie de papa, que desconhece a
continuidade do meu trabalho sobre a
infalibilidade e está sujeito ao consenso
Europa Central. 2 Além disso, como eu
dos bispos reunidos num conselho uni-
perceberia por meio de entrevistas em
versal em todos os assuntos relativos à
Roma e em outros lugares da Europa
doutrina e fé; ele sozinho, não obstante,
Ocidental, havia um ponto crucial na
possui o poder singular de criar igrejas
agenda do atual pontificado: nenhum
autônomas (chamadas autocéfalas). Con-
esforço ou gasto seria economizado no
finado territorialmente, contudo, a al-
sentido de restaurar a presença do cato-
guns quarteirões de Istambul, ele não
licismo e ir ao encontro das demandas
goza da proteção de nenhum Estado e
pastorais de aproximadamente um mi-
lidera fiéis ao redor do mundo, a maior
lhão e meio de fiéis. Roma não perdeu
parcela daqueles que são exclusivamen-
tempo. Durante os gover nos de
te da etnicidade grega.
Gorbachev e Yeltsin, relações diplomáti-
cas foram rapidamente restabelecidas, Em marcante contraste, o Patriarca de
Moscou e de toda a Rússia, não mais o de modo algum gregos, mas sobretudo
títere de regimes autoritários, mas, ao oriundos da Ucrânia, da Bielorússia,
contrário, o mais novo confidente do Romênia, Polônia e Hungria e das suas
novo Estado emergente (rápido em se respectivas diásporas após a Segunda
identificar com a fé histórica da nação), Guerra.
aparece para muitos observadores como
Mas essa reviravolta de maneira alguma
o mais poderoso dirigente do mundo or-
convenceu a Igreja Ortodoxa Russa! De
todoxo. Por isso mesmo o Patriarcado
fato, Roma e Moscou estão num impasse
ficou insatisfeito com a maneira como o
ainda hoje. Séculos de desconfiança rus-
Vaticano jogou suas cartas como um Es-
sa do Ocidente e da suspeição da Igreja
tado soberano, em vez de uma religião
Ortodoxa quanto às intenções da Igreja
coirmã para retornar ao solo russo. Aque-
Católica não são facilmente dissolvidos.
le solo, o Patriarcado declara, é seu ex-
Conflitos recentes envolvendo paróqui-
clusivo “território canônico”, fora dos li-
as e propriedades na Ucrânia Ocidental
mites dos proselitismos. Além do mais,
entre os “católicos gregos” e os muitos
sem a sua aquiescência, nem o fim do
ucranianos ortodoxos, que – a despeito
Grande Cisma nem a histórica primeira
da independência de seu país – ainda
visita de um pontífice romano à Rússia,
permanecem fiéis ao Patriarcado de Mos-
que o atual papa tão profundamente e
cou, amargaram as relações. Qualquer
publicamente deseja, podem ser conce-
perspectiva de reaproximação é altamen-
bidos.
te improvável num futuro próximo.3
Para alcançar esses objetivos, o Vaticano
não poupou esforços para reverter duas Nessas circunstâncias, a Igreja Ortodo-
políticas de longa duração. For malmen- xa Russa não podia deixar de emergir
te pôs um fim numa antiga ambição, in- como a minha segunda área de interes-
flamada pela Revolução Russa, de con- se. Mais uma vez, minhas pesquisas an-
verter a Rússia ortodoxa ao catolicismo teriores sobre o catolicismo brasileiro
romano. Declarou também que as igre- serviram para mim como um modelo que
jas do “catolicismo grego” (ou “rito ori- eu podia utilizar para entender o “não-
ental”) – que por razões históricas são familiar”.4 Uma grande diferença que en-
ortodoxas na liturgia e costumes, mas contrei inicialmente foi a falta de conta-
diferentemente dos ortodoxos, reconhe- tos e de acesso da Igreja Ortodoxa Rus-
cem a primazia e a infalibilidade do sa a recursos significativos de entidades
Papado – não eram mais um degrau viá- estrangeiras. Eu contrapus essa realida-
vel no caminho para a reunião completa de tanto às múltiplas conexões da Igreja
das Igrejas Ortodoxa e Católica. Não sur- Católica brasileira com as igrejas
preendentemente, essa reversão deixou coirmãs quanto aos benefícios obtidos
fortemente desconcertados os oito mi- junto a estas igrejas, especialmente as
lhões de “gregos católicos” que não são sediadas nas nações ricas da Europa e
União Européia, e dentro das suas na- gio e autoridade moral das instituições
ções-membro, a posição do Patriarcado e do pessoal eclesiástico.
de Moscou foi certamente acentuada gra-
Na Rússia, onde a Igreja Ortodoxa pre-
ças ao poder e influência do Estado rus-
domina, é o próprio Patriarcado de Mos-
so. A Turquia, uma nação muçulmana,
cou que levanta a bandeira do
ainda candidata a ingressar na União
fundamentalismo, de forma consistente
Européia, até o momento não demons-
com o passado e com a cultura da na-
trou nenhum interesse em promover os
ção. Seus sacerdotes mais jovens e os
objetivos do Patriarcado de
leigos, que abraçaram princípios da li-
Constantinopla. Mas essa posição não
berdade religiosa, da cooperação
está fechada.
ecumênica e da atualização da liturgia,
Nacional. Se o senhor me per-
Arquivo Nacional para atender às exigências dos tempos
mite, parece-me que esta pesquisa so- atuais, foram derrotados pela hierarquia
bre a Europa Central e a Europa do Les- tradicional. A cooperação estreita entre
te, envolvendo a Igreja Católica e a Or- a Igreja russa e o Estado, até mesmo en-
todoxia, tem pouco a ver com o seu tra- tre o Patriarcado e os remanescentes ain-
balho atual sobre a direita cristã e o Par- da poderosos do Partido Comunista, para
tido Republicano nos Estados Unidos. impedir a presença de credos “concor-
Ralph Della Cava.
Cava À primeira vista, as- rentes” e restringir o direito de expres-
as denominações históricas estão sendo últimos vinte e cinco anos, mais saga-
do-as como o novo “consenso” protes- mente radical em ação. No mesmo perí-
nas escolas e sua defesa da Lei Seca – Juntos, engendraram uma unicidade na
nham votado maciçamente, a sorte polí- Essa mudança de correntes não foi boa
tica da corrente mudou. O Partido Repu- para o país.
mesmo que isso signifique abrir mão in- situação atual dos Estados Unidos?
go atingiu o seu ponto mais alto de to- No caso dos fundamentalistas comuns,
dos os tempos. Dois milhões e setecen- em oposição a alguns de seus líderes,
tos mil empregos desapareceram. Os os mesmos têm recebido pouquíssimo
benefícios de saúde e pensões diminu- em troca de todo o apoio que investiram
em, enquanto que líderes empresariais no Partido Republicano. O recente decre-
corruptos ficam sem punição. A prote- to sobre “iniciativas baseadas na fé”, que
ção ambiental é abandonada. O daria às igrejas locais fundos federais
aconselhamento sensato de militares, para a promoção de serviços sociais, não
pessoal de inteligência e diplomatas que somente quebra a separação constituci-
se opuseram à guerra no Iraque é onal entre a Igreja e o Estado, como tam-
desconsiderado e denegrido. A ameaça bém efetivamente reforça a estratégia a
de uma corrida ar mamentista nuclear longo prazo dos republicanos, de des-
aumentou significativamente, ao mesmo mantelar a própria “rede social” que hoje
tempo em que a campanha cínica da protege, embora inadequadamente, os
administração, buscando aprovação do pobres, os idosos e a maioria da classe
Congresso para a utilização de “armas média. O declínio estrondoso da quali-
táticas nucleares” em futuros conflitos dade do ensino público no nível primá-
locais, colocaria um ponto final, se bem- rio e no secundário também os afeta di-
sucedida, ao consenso pós-guerra con- retamente. A “solução” da administração
tra o seu uso numa guerra “convencio- para colocar o governo “fora da educa-
nal”. Finalmente, há a bravata do “vou ção” através da privatização – como es-
em frente sozinho”, que tem marcado a tratégia avidamente promovida no Texas
política externa dos Estados Unidos des- pelo então governador Bush – já demons-
de que Bush assumiu a presidência e, trou ser um fracasso. De forma análoga,
como conseqüência, isolou o país do as faculdades e universidades de baixo
resto da comunidade mundial. custo, subvencionadas pelo poder públi-
co – historicamente entre os baluartes
Pode-se pensar que os norte-americanos mais importantes do progresso científi-
comuns, em especial os co e representando forma indubitável de
fundamentalistas religiosos, fossem os ascensão social –, vêm enfrentando uma
primeiros a elevar suas vozes. Estes crise financeira sem precedentes.
constituem exatamente os eleitores das
pequenas cidades, que têm mais a per- Assim, a América do início do século XXI
der à medida que o país se afunda em representa um caso clássico do que pode
divisões de classes cada vez mais rígi- certamente dar errado quando a religião
das e num estado de guerra potencial- e a política se cruzam tão agressivamen-
mente permanente que irá consumir a vida te em suas esferas, quando as teologias
de seus filhos – em sua maioria brancos e as ideologias, cegas à realidade e ao
pobres, negros, hispânicos e imigrantes. bem comum, ganham a dianteira.
Poderá tal “aliança profana” ser desfei- envolvê-los numa chamada guerra de
ta? Por um lado, o “choque e estupor” “opção” (e não de “necessidade”). No
das Torres Gêmeas proporcionaram um entanto, ainda é muito cedo para saber
manto de heroísmo ao atual mandatário até onde esse declínio significativo do
(como teria ocorrido com qualquer ou- apoio ao presidente Bush irá levar.
tro político que ocupasse o poder supre-
No meu caso específico, espero que, no
mo no país). Em nome da guerra “contra
futuro imediato, a América – e o mundo
o terrorismo”, esse estado de coisas tam-
que ela busca dominar – seja poupada
bém per mitiu que a campanha para a
de sofrimento ainda maior. Entretanto,
reeleição de Bush acumulasse um enor-
isso exigiria que a atual administração
me cabedal de recursos visando à cam-
enfrentasse algumas de suas opções
panha eleitoral presidencial e do Con-
mais difíceis – aumentar impostos, sair
gresso em 2004.
do Iraque –, nenhuma das quais poder-
Por outro lado, já ocorre uma mudança se-á esperar que assuma. Sendo este o
nas tendências da guerra – os iraquianos caso, existe uma passagem na Escritura
agora denunciam seus “libertadores” Sagrada, a respeito do “final dos tem-
como tropas de ocupação, isto quando pos”, em que os fundamentalistas encon-
não os estão a matar. Nesse meio tem- tram tal convicção, que deve servir para
po, a pesquisa de opinião pública no lembrá-los (e, de certo modo, nos alertar)
outono de 2003 sugere que, pela primei- sobre o que há possivelmente por vir:
ra vez, desde o 11 de setembro, os ame- um intenso “soluçar e o rilhar de dentes”.
ricanos estão começando a questionar a
capacidade do presidente em liderar a Entrevista concedida a Maria do Car mo
Carmo
nação e a sabedoria da “troika” em T. Rainho em setembro de 2003
2003..
N O T A S
1. A edição brasileira de Milagre em Juazeiro , Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1977, contou com a
excelente tradução da historiadora Maria Yedda Linhares.
2. Cf. Ralph Della Cava, The Roman Catholic Church in Russia, 1991-1996 – the Latin Rite, The
Harriman Review , v. 9, n. 4,1996, p. 46-57.
3. Ver Ralph Della Cava, Shall the T wain ever meet? On the cancellation of the june 1997 Meeting
of the Pope of Rome and the Patriarch of Moscow, Religion in Easter n Europe , v. XVIII, n. 1,
fev. 1998, p. 15-27; e Assessing Pope John Paul II’s visit to Ukraine, Religion in Eastern Europe,
v. XXI, n. 5, out. 2001, p. 1-7.
4. Ralph Della Cava, Religiões transnacionais: a igreja católica romana no Brasil e a igreja orto-
doxa na Rússia, Imaginário , n. 6, USP, 2000, p. 98-117. A versão em inglês, Transnational
religions: the Roman Catholic Church in Brazil and the Orthodox Church in Russia, foi publicada
em Sociology of Religion, v. 62, n. 4, 2001, p. 535-550.
Emerson Giumbelli
Professor do Departamento de Antropologia Cultural,
do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da UFRJ.
O texto analisa um episódio ocorrido em The article analyses a case that took place
1891 no Rio de Janeiro, envolvendo o in Rio de Janeiro, in 1891, envolving the
protesto de um pastor evangélico contra a protest of a reverend against the presence
presença de um crucifixo na sala do júri. A of a crucifix in the court room. This
polêmica mobilizou a imprensa e algumas controversy mobilized the press and some
autoridades. As questões que infor mam a análise authorities. The issues in the analysis lead to
remetem a uma discussão sobre a relação entre discussions about the relationship between
símbolos religiosos e espaço público, a religious symbols and public space, the
neutralidade do Estado em assuntos religiosos, State neutrality in religious affairs, the way
e a for ma pela qual maiorias e minorias society deals with religious majorities
religiosas se inserem na sociedade. and minorities.
Palavras-chave: secularização, relações Keywords: secularization, State–Church
Igreja–Estado, religião. relationship, religion.
E
bem reputado quis sustentar-me que
o ídolo deveria ser conservado naque- ncontrei-o meio que por acaso.
le tribunal e apresentou-me [...] este Foi durante a pesquisa para a
suposto argumento: “Em matemáticas, tese de doutorado em antropo-
a ausência de sinal já é um sinal; logo, logia. 2 Minha intenção era reunir elemen-
se no júri não houver crucifixo, que é tos que permitissem saber como se efe-
o sinal do católico romano [...], quem tivou a desvinculação entre Estado e Igre-
entrar na sala daquele tribunal pensa- ja Católica, na forma deter minada pelos
rá que ali são todos protestantes”. 1 primórdios do regime republicano. Um
N
que se pretendia inaugurar. Já fizera algo ão havia outra coisa a fazer
semelhante em relação à situação fran- senão “mergulhar nos arqui-
cesa, considerando a lei de 1905, que vos”. Foi nessa ocasião que
consolida a separação entre Estado e me deparei com o documento que trans-
cultos e instaura o regime válido até os formo no principal objeto deste texto.
dias de hoje. Vasculhava os fichários de assunto da
Duas das muitas diferenças entre o Bra- biblioteca do Instituto Histórico e Geo-
sil e a França nesse aspecto precisam ser gráfico Brasileiro em busca de referênci-
mencionadas para se entender o encon- as sobre “liberdade religiosa”. Ali encon-
tro a que me refiro. A lei francesa dedi- trei catalogado O Cristo no Júri : liberda-
ca vários de seus artigos a providenciar de de consciência, de autoria de um tal
a transição entre os dois regimes. Além Miguel Vieira Ferreira. Nunca tinha ouvi-
disso, ela se apóia em uma lei anterior, do falar dele e de seu livro. Solicitei o
de 1901, acerca das regras concernentes volume e o recebi amarrado por um cor-
às associações em geral, de que os cul- dão e marcado pelo tempo: um exem-
tos for mariam um caso específico. A lei plar da primeira edição, de 1891. Come-
brasileira não apenas é lacônica em re- cei a consultá-lo e percebi logo do que
lação às providências de transição, como se tratava: a compilação de textos publi-
não podia se remeter a uma legislação cados em jornais cariocas daquele ano,
geral das associações. O outro ponto diz que ocupava mais de 200 páginas e gi-
respeito às análises que se dedicaram ao rava em torno do protesto feito pelo au-
tema considerando os dois campos inte- tor depois que se deparou com um cru-
lectuais. Na França, a noção de cifixo pendurado em uma das paredes da
“laicidade” é um dos atributos centrais sala do júri popular, na capital da Repú-
E assim foi, quase quatro anos depois. É verdade que, além da etnografia, a
Porém, basta pensar um pouco para se noção de cultura ficou muito atrelada à
dar conta que não se trata de um reen- antropologia, e de tal modo que pode fi-
contro. Considerar o contrário equivale- car oculto que ao longo de sua história
ria a cair na mesma ar madilha que nos aquela noção sempre esteve em debate.
faz conceber como algo fixo e dado uma Assim, em vários momentos levantaram-
“cultura”. Acabo de invocar a palavra se perspectivas e procedimentos que
mágica da antropologia e, nesse caso, possibilitaram trabalhar com a noção de
não é por acaso. Pois, de fato, a análise cultura de um modo que a tornasse uma
que proponho sobre o episódio do cru- espécie de ficção séria. As culturas são
cifixo no júri pressupõe um olhar construções que existem e elas existem
etnográfico, olhar que embora não lhe enquanto construções. Imaginá-las como
seja restrito coube à antropologia culti- fixas e bem delimitadas significa, como
var e justificar. Em que consiste isso? É fica mais claro no cenário político atual,
o olhar etnográfico que permite conferir avalizar certas elaborações discursivas
relevância analítica àquilo que, segundo em detrimento de outras. O mesmo não
um outro ponto de vista, seria insignifi- se poderia dizer dos documentos em sua
cante. A antropologia se esmerou em relação com seus leitores? Nesse caso,
estudar insignificâncias para tentar de- as coisas parecem se complicar, pois,
monstrar o contrário. Elegeu, para fazer afinal, o documento “está lá”, guardado,
“o estudo do homem”, como seus obje- à disposição de muitas leituras, estas sim
tos privilegiados, povos que pareciam inevitavelmente mutantes e diversas.
estar destinados a desaparecer ou a se- Achamos então que são apenas as leitu-
rem assimilados. E quando se voltou para ras que variam, de acordo com os inte-
a sociedade na qual tinha se originado, resses e as trajetórias daqueles que pre-
tendeu a se dedicar a grupos e temas enchem esse lugar. Sugiro que devamos
considerados irrelevantes. Ao fazê-lo, sua reconhecer que também os documentos
mudam, pois, a rigor, apenas se realizam bora permaneça apenas implícito neste
plenamente nas suas diferentes leituras. texto) abrange agora a Índia e o modo
Há um sentido bem concreto nisso, pois como lá se tratou, em meio a casos que
quando os leitores não cuidam dos do- envolvem a relação entre hindus e mu-
cumentos, eles se extraviam ou se dete- çulmanos, a pluralidade religiosa. Assim,
rioram. Mas refiro-me, essencialmente, não há nada de casual em ter resolvido
ao fato de que documentos e leitores voltar ao livro de Ferreira, tor nando-o
interferem-se mutuamente e que cada parte de meus destinos.
encontro singular revela razões que fa-
Quanto ao documento, não reúno ele-
zem parte da trajetória de ambos.
mentos suficientes para fazer sua histó-
ria. Porém, havia mais de uma razão para
Meu próprio retor no a esse documento
colocar-me no seu caminho. De fato,
que me deparei há cerca de quatro anos
creio não existirem muitos pesquisado-
atrás decorre, na verdade, de um deslo-
res interessados em discutir as relações
camento quanto às questões nas quais
entre Estado, religião e sociedade toman-
estou interessado. Quando o encontrei
do-se por base casos obscuros como
pela primeira vez, meu foco, como já
esse de Ferreira – e é, então, significati-
disse, incidia sobre o processo de
vo que não tenha jamais encontrado uma
desvinculação do Estado em relação à
citação dele em trabalhos derivados da
religião, tendo como campo comparati-
história ou das ciências sociais.4 Além
vo as situações no Brasil e na França.
disso, como veremos, Ferreira é o fun-
Atualmente, meu interesse principal re-
dador da primeira igreja protestante cri-
side em pensar modos de pluralismo
ada no Brasil, a partir de uma dissidên-
cultural levando em conta as relações
cia de um grupo missionário.
entre Estado, religião e sociedade. An-
tes de retomar o episódio do crucifixo Uma das idéias centrais da minha tese é
no século XIX, dediquei uma análise ao que os evangélicos constituem o terreno
caso do “chute na santa”, que envolveu mais interessante para problematizar
um bispo da Igreja Universal e uma ima- certas mudanças no campo religioso bra-
gem de Nossa Senhora Aparecida, em sileiro. Por fim, ao procurar reunir maio-
1995. Nos dois casos, é possível reali- res informações sobre essa igreja, encon-
zar uma discussão que leve em conta a trei a indicação de que Ferreira repre-
relação entre símbolos e nacionalidade sentaria “o primeiro caso de influência
(e, ligada a ela, a neutralidade do Esta- de idéias espíritas sobre os fiéis protes-
do em assuntos religiosos), bem como a tantes”. 5 Ora, o espiritismo e sua histó-
for ma pela qual diferentes grupos religi- ria haviam sido o tema de minha pesqui-
osos são tratados pela sociedade. Além sa de mestrado. 6 Ou seja, havia, no mí-
disso, meu campo de comparação (em- nimo, três caminhos possíveis para esse
C
Supremo Tribunal de Justiça. Seu pai,
ontarei aqui o que sei sobre Fernando Luiz Ferreira, foi militar, car-
Miguel Vieira Ferreira. É bem reira também seguida pelo filho Miguel.
menos do que se poderia sa- Para tanto, transferiu-se para o Rio de
ber, considerando as posições que ocu- Janeiro, onde se formou na Escola Mili-
pou e as situações em que se envolveu. tar (depois transformada em Escola Poli-
Creio que os parcos elementos que con- técnica), e recebeu, em 1859, o grau de
segui reunir sirvam apenas como pistas mestre e, em 1863, o grau de doutor em
de um trabalho por fazer. De todo modo, ciências matemáticas e físicas. Permane-
não é meu objetivo, neste momento, re- ceu no Exército até 1864, quando era
alizar uma análise da biografia de segundo-tenente, exercendo funções de
Ferreira. Limito-me a discutir o episódio engenheiro e participando de missões de
em que ele foi o protagonista em 1891, demarcação territorial. Ainda em 1861,
uns quatro anos antes de morrer. Quan- publicou o Ensaio sobre a filosofia natu-
do cobriu o episódio, o jornal O País uti- ral , dedicado a assuntos que hoje atri-
lizou a expressão “O Cristo no Júri”, que buiríamos à astronomia. A partir de
Ferreira, mesmo vendo como uma pilhé- 1868, já de volta ao Maranhão, se en-
ria, transformaria no título de seu livro: volveu em atividades políticas, empresa-
“Fizeram-no por desprezo e irrisão, pen- riais e pedagógicas – fundou o jornal O
sando, assim, insultar-me e humilhar-me Liberal , expôs suas idéias em conferên-
com essa epígrafe que faz recordar que cias públicas e nas Considerações sobre
o povo, na sua completa cegueira e ig- o progresso material da província do
norância, me tem apontado com o dedo Maranhão, planejou instituições destina-
e perseguido durante anos e apedrejan- das a “educar pelo trabalho a infância
do, dia-a-dia, pelas ruas e praças desta desvalida”, colaborou com projetos na-
cidade [...], gritando: ‘Ó Cristo!... Olha o vais. Em 1870, migrou outra vez para o
Cristo!... Cristo!’”. Visando situar histo-
7
Rio, aparecendo como um dos signatári-
ricamente nosso personagem, passo en- os do Manifesto Republicano. Trabalhou
tão a apresentar para os leitores de hoje como engenheiro e criou escolas. Propa-
algumas informações sobre esse homem gou suas idéias: a libertação dos escra-
que, se estava longe de ser um anôni- vos mediante indenização a seus propri-
mo, não era – de acordo com seu bió- etários, a naturalização dos estrangeiros,
grafo – conhecido devidamente nem por a liberdade profissional.
Miguel Vieira Ferreira passou a freqüen- também os fiéis atuais adotam para
tar a Igreja Presbiteriana do Rio de Ja- designá-lo. Creio que, por essas razões,
neiro a partir de 1873. Essa igreja fora se o chamássemos de “cristão esclareci-
instaurada por missionários vindos dos do”, ele não faria oposição.
Estados Unidos, o primeiro dos quais em
Até agora, o que se sabe acerca da Igre-
1859. Na década de 1870, quando é fre-
ja Evangélica Brasileira deriva dos co-
qüentada por Ferreira, já estava bem
mentários que lhe dedicou Émile
estabelecida. Um presbitério, reunindo
Leonard, um historiador do protestantis-
três paróquias, fora constituído, embora
mo. Baseada nesses comentários, é as-
se mantivesse o vínculo com um sínodo
sim descrita a conversão de Ferreira,
dos Estados Unidos, de onde vinha a
ocorrida no presbiterianismo:
maior parte dos recursos; pastores eram
terminado o culto do dia 5 de abril de
for mados em um seminário e as crian-
1874, o dr. Miguel permaneceu senta-
ças educadas em uma escola; iniciava-
do, por aproximadamente meia hora,
se a construção do templo em sede pró-
totalmente imóvel, de olhos fechados
pria; editavam-se folhetos e livros; e a
e, ao sair do aparente transe, anunciou
revista Imprensa Evangélica . 9 Ferreira
aceitar a Bíblia como livro inspirado e
chegou a ser presbítero nessa igreja,
querer professar a fé naquela igreja. O
antes de ter tido com ela uma relação
engenheiro já havia lido e ouvido falar
conflituosa, vindo a sofrer punições e
sobre o espiritismo e, poucos dias an-
sendo finalmente expulso da congrega-
tes da conversão relatada, havia pro-
ção. Em 1879, reunindo em tor no de si
curado o pastor a quem mostrou um
cerca de duas dezenas de pessoas origi-
caderno com rabiscos, garranchos, si-
nárias do presbiterianismo, Ferreira cria
nais e palavras ininteligíveis [atribuí-
a Igreja Evangélica Brasileira, da qual se
dos a um poder invisível e irresistível]
tor nou o único pastor, até sua morte em
mas que julgava poder interpretar
1895. Embora haja indicações de que
e l e r. 1 0
nutriu planos na vida política, seu bió-
grafo limita-se a registrar que suas últi- A razão que impulsionou a adesão de
mas décadas de vida foram dedicadas ao Ferreira à Igreja Presbiteriana, contudo,
pastorado, sem que exercesse quaisquer foi a mesma que levou à sua punição e
outras funções remuneradas. Todas as expulsão alguns anos depois, sob a acu-
vezes que se pronunciou no episódio do sação de “pregar e sustentar uma here-
crucifixo, Ferreira identificou-se como sia [...] que Deus ainda quer falar de viva
“pastor da Igreja Evangélica Brasileira”. voz aos homens”. 1 1 Este seria um dos
Mas as fotografias que o retratam nas pilares da doutrina defendida pela Igre-
publicações da igreja mostram-no com ja Evangélica Brasileira, juntamente com
os paramentos de “doutor”, título que a reabilitação dos sete sacramentos. Daí
a caracterização que se cristalizou entre tores não são eleitos, mas “revelados”. 13
os poucos comentaristas: “[Ferreira] Todos os pastores exerceram ofícios vi-
transfor mou-se no fundador da primeira talícios, na seguinte sucessão: Miguel
experiência sincrética envolvendo o pro- Vieira Ferreira (1879-1895), Luiz Vieira
testantismo no Brasil, ao criar a Igreja Ferreira (1898-1908), Israel Ferreira
Evangélica Brasileira, que misturava prin- Vieira (1911-1959) e Antônio Prado
cípios da fé católica, protestante e espí- (1974-1999). Note-se que durante os
rita”. 12
intervalos, como o que se vive atualmen-
te, a condução da Igreja passa ao pres-
É possível que essa não seja a melhor bitério, à espera de que um novo pastor
maneira de caracterizar a Igreja Evangé- seja “revelado”.
P
lica Brasileira, ao menos na medida (fun-
damental para um antropólogo...) em que or outro lado, nenhum dos es-
nada ou pouco considera da visão do critos propagados pela Igreja ou
próprio Ferreira e de seus correligionári- seus líderes traçam qualquer
os. O problema é que eu mesmo mal conexão com o espiritismo. Não parece
consegui avançar nesse sentido. Em seu que o estilo de culto da Igreja Evangéli-
livro, Ferreira é circunspeto sobre sua ca Brasileira, pouco afeito mesmo às ex-
congregação. Por conta de meu contato pressões típicas dos pentecostais, deva
com seus atuais fiéis, reuni mais algum algo aos rituais mediúnicos, nem que o
material, ainda insuficiente para tentar transe – se é que de transe se tratou –
uma reconstituição menos que precária. produzido em Miguel Ferreira tenha vol-
Os fragmentos, no entanto, per mitem tado a se repetir. Os escritos de Ferreira
dizer algo. É verdade que se aceita os que tratam de assuntos propriamente re-
sete sacramentos e que a idéia da atua- ligiosos – há capítulos inteiros em O Cris-
lidade da revelação divina aparece como to no Júri dedicados a temas tais como
um ponto central da doutrina. Além dis- idolatria, a situação do clero católico, as
so, a posição do pastor é elevada a um festas católicas – baseiam-se fundamen-
estatuto dificilmente aceitável para os talmente na Bíblia. Neles, são constan-
princípios protestantes. Ferreira é apre- tes os ataques ao catolicismo, creditan-
sentado como um “enviado” de Cristo e do às suas influências o lamentável “es-
é significativo que um dos artigos do tado de atraso religioso e moral deste
“decálogo” estabelecido em 1926 pela Brasil”. 14 Enfim, nada muito diferente do
Igreja Evangélica Brasileira refira-se a que encontraríamos nos posicionamentos
uma proibição a que seus pastores se de outros protestantes. Mesmo criando
tor nem objeto de “idolatria”, autorizan- uma dissidência, Vieira não parece ter
do, contudo, que sejam “reverenciados”. desprezado o ethos com o qual conviveu
Na Igreja Evangélica Brasileira, os pas- no presbiterianismo, marcado por uma
blia e um esforço de retidão e rigorismo a quem tenho crido” (2 Tim 1:12). Mas
moral. 15
Se for plausível que a insistên- só o conhecem de ouvido [...], por tra-
cia de Vieira sobre a atualidade da reve- dição falada ou escrita; outros somen-
lação tenha motivado sua expulsão, não te pela letra da Bíblia. Sabem verda-
se pode deixar de considerar outro fa- des a respeito do Senhor, mas nunca
tor, este nada doutrinário. O relativo êxi- receberam d’Ele a verdade; não têm
O
Depois disso, devemos reconhecer que
crucifixo que se tor nou o pivô
nos faltam muitas coisas para chegar a
do episódio discutido em O
um quadro mais claro da relação da Igre-
Cristo no Júri ficava pendura-
ja Evangélica Brasileira com outros com-
do na sala onde ocorriam as sessões do
ponentes do campo religioso, bem como
júri popular, em um prédio na Rua do
do conjunto de fatores e motivações que
Lavradio, região central da cidade do Rio
levaram à sua criação, a partir da Igreja
de Janeiro. Lá estava e lá ficou. 19 Mas
Presbiteriana do Rio de Janeiro. É certo,
para que de lá não saísse algo teve que
contudo, que para Ferreira a nova con-
se mover. Para que ele per manecesse
gregação representou uma tentativa de
como ícone de relações ocultas entre
se estabelecer uma relação menos res-
Estado e religião algo teve de ser revela-
trita com a divindade:
do. É isso que tor na a iniciativa de
Hoje, os homens em geral e até, ou Ferreira muito interessante para os que
principalmente, os próprios que se di- se importam em discutir as interações
zem ministros do Senhor, padres ou entre religião e política. Antes de nos
pastores , conhecem (?) a nosso Senhor deter mos sobre o jogo dos argumentos
Jesus Cristo, não como os apóstolos pró e contra a retirada do crucifixo da
requisitava providências para que se sil, Cidade do Rio , Correio do Povo e Di-
tor nassem efetivas as medidas da ário de Notícias . Alguns noticiaram o pri-
Constituição na parte que separa a meiro protesto de Ferreira, no dia 4.
Igreja do Estado. No epílogo de O Cris- Depois, além de publicarem textos “a
to no Júri , Ferreira nos dá o balanço pedido” do próprio Ferreira, pronuncia-
da situação: ram-se, diretamente ou através de seus
articulistas, sobre a questão. O assunto
É admirável que, pugnando eu pelo di-
ocupou a imprensa praticamente todos
reito e pela justiça, pedindo garantias
os dias, até 20 de maio; depois disso,
para o cidadão, o cumprimento e o res-
com exceção de uma notícia sobre a
peito à Constituição, não tenha sido
queixa de Ferreira contra o juiz e o pro-
atendido desde o júri e, no júri, pelo
motor publicada por O Paiz em 22 de
juiz, depois pelo ministro e, finalmen-
julho, apenas o Correio do Povo mantém
te, que, desde o dia 13 de julho próxi-
o assunto em pauta, abrindo suas pági-
mo findo, tendo pedido providência ao
nas para os artigos do pastor. O Brasil e
tribunal superior e dado queixa contra
O Apóstolo , periódicos católicos, tam-
o juiz, até hoje, 21 de setembro, mais
bém acompanharam o episódio. Foi por
de dois meses, não houvesse tempo,
meio de uma transcrição no último de-
sequer, de copiar algumas páginas de
les, edição de 6 de janeiro de 1892, que
papel! Pedi também ao Senado e à
encontrei o parecer do promotor do Tri-
Câmara dos Deputados uma providên-
bunal Civil e Criminal. Não duvido que
cia e o pedido foi, desde o dia 27 de
uma pesquisa mais detalhada sobre os
julho, à Comissão de Legislação e Jus-
jornais e, talvez, sobre os registros dos
tiça; e lá ficou. 22
D
trabalhos do Judiciário e das casas
o acompanhamento que fiz so-
legislativas trouxesse mais alguns dados.
bre a imprensa em período
Mas a consistência com que se repete a
posterior a setembro, descobri
condenação ao protesto de Ferreira faz
apenas o parecer que um promotor do
pensar que isso pouco influenciaria as
T ribunal Civil e Criminal dispensou à
condições da análise que aqui apresen-
queixa contra seu colega, datada de 21
to. De fato, o que encontramos é um
de dezembro. Nele, nega-se a conduzir a
embate no qual convergem várias vozes
denúncia, declarando não estar o crime
e posições contra os argumentos de
devidamente caracterizado; alonga-se,
Ferreira, os quais, por sua vez, apesar
contudo, para argumentar que, mesmo
do grande volume, suscitam
sem essa falha formal, não aceitaria as
pouquíssimos aliados. Daí minha opção
razões do reclamante.
de apresentá-los em dois grandes blocos,
Vários jornais registraram o episódio: O na tentativa de entender o que susten-
Paiz , Gazeta de Notícias , Jor nal do Bra- tam e implicam esses argumentos.
que, por vezes, as autoridades eram co- Conservam-se ídolos nos edifícios pú-
niventes ou até participavam das agres- blicos civis onde cidadãos de todas as
sões. 30
Ferreira, além de notar isso, crenças são obrigados a funcionar;
a seu ver, desmentiam a separação legal igrejas romanas em suas festas, o que
entre Estado e religião: a invocação de não se faz (e nem se deveria fazer) com
para assistirem atos religiosos, o custeio capital federal e outros padres [...];
dos funerais de um bispo pelos cofres conserva-se um padre servindo na Casa
públicos. 31
É por aí que Ferreira, em tom de Correção estipendiado pelo gover-
seu desapontamento vale a longa trans- tem funções aos de outras crenças; [...]
dizer-vos que tal requerimento não pas- afirma o Jor nal do Brasil de 8 de maio,
sa de um ato de fanática intolerância, “a um móvel, a um quadro, a qualquer
pois a presença daquela imagem, que coisa, enfim, de material que só tem o
para os católicos é divina e para os valor que lhe atribuímos”; ou, como es-
acatólicos é, pelo menos, a do fundador creve O Paiz de 6 de maio, “é como se
de uma religião, de um extraordinário [ali] não estivesse”. 37 Assim, a seguir a
filósofo, digno do respeito de todos os opinião de outra folha, o Correio do Povo
homens civilizados, não ofende as cren- de 8 de maio, “venera o crucifixo só
ças de quem quer que seja”. 35
quem o acha digno de veneração” e as
vontades de todos são respeitadas. 38
E
O texto do ministro, como se vê, consi-
ssa posição se fez acompanhar
dera que não há crença que possa ser
de outra e sem que se forjasse
ofendida com a presença do crucifixo,
qualquer contradição entre elas
pois a figura que ele representa é objeto
– podemos encontrá-las nos mesmos tex-
de devoção para os católicos e ao me-
tos. Haveria, segundo essa outra posição,
nos de respeito para os que não são. Eis
uma razão geral ou uma utilidade não
aí um ponto que encontraremos elabo-
propriamente religiosa na presença do
rado em outros pronunciamentos contrá-
crucifixo. Nesse caso, ser a sala das ses-
rios ao pedido de Ferreira e que nos ser-
sões do júri o lugar dessa presença é algo
virá de apoio para a sua apresentação. A
essencial ao argumento. Leiamos nova-
começar pelo promotor presente na ses-
mente o Jornal do Brasil , do dia 8:
são do dia 4, cujas opiniões foram
registradas por O Paiz do dia seguinte: Que mal faz aos acatólicos a imagem
gem não poderia ofender os não católi- misericórdia? [...] Se Cristo não pode
cos – e aqui importa não no que crêem e estar presente às sessões do júri na
sim no que deixam de crer – porque para qualidade de fundador de uma religião
eles nada representaria; ficaria reduzida que foi oficial, tem o direito de ali fi-
a um mero ador no, “como um enfeite car, ao menos como espectador e como
A transcrição a seguir, da Cidade do Rio Vejamos, por fim, como os vários argu-
do dia 6, nos apresentará ainda um ou- mentos que surgem nas páginas dos jor-
tro argumento: “O Estado não tem reli- nais se articulam na sentença do promo-
gião: mas a nação é católica, a principi- tor do Tribunal Criminal e Civil, elabora-
ar pelo presidente da República, que da em dezembro de 1891. Começando
ouve missa e comunga cercado da sua com a lembrança de que cabe ao Estado
casa militar e do seu estado-maior. Com- zelar para que cada cidadão respeite “as
preende bem o pastor evangélico que práticas e símbolos das religiões diver-
não há de o júri, que é católico, privar- sas às que professam”, o texto observa
se do hábito tradicional de ver as suas que a reivindicação do pastor poderia
sessões presididas convencionalmente servir também aos fiéis de outras religi-
pela presença, em efígie, de Cristo”. 44
ões para protestar contra o desacato aos
Na edição de O Paiz do mesmo dia, nota- seus símbolos. Assim, pondera o promo-
se também que o protesto parte de al- tor, sendo católica a religião da maioria
guém que “está divorciado da religião dos juízes, eles reclamariam a manuten-
que, pese embora a quem quiser, é a da ção de seu símbolo. Além disso, para o
maioria da sociedade brasileira”. 45
É as- réu, retirar o crucifixo seria privar-lhe “de
sociado a esse tipo de argumento que conforto à desgraça e de incentivo à
sur gem as reações mais ostensivas, esperança”. Ainda: levado ao extremo o
como aquela, publicada pelo Jornal do raciocínio de Ferreira, até nos cemitéri-
Brasil no dia 8, na qual se sugere que o os os símbolos religiosos deveriam ser
T
Retor nemos agora aos ar gumentos de
odos os argumentos apresenta- Ferreira, para ver como sua luta pela
dos – pelos jornais, articulistas separação pode ser interpretada pelo
e autoridades – convergem na fundamento que se produz a partir de
avaliação de que Ferreira pede demasia- uma certa articulação entre religião e
do. Seja porque reclama contra um ob- cidadania. Ao apresentar seu livro,
jeto que não deveria lhe atingir e que Ferreira confessa gratidão com a publi-
atingindo apenas aos demais só pode cação por “cumprir o sagrado dever reli-
constituir algo de útil. Seja porque pro- gioso e de consciência para com Deus e
cura levar um princípio aceito ao seu o meu próximo, em proveito especial de
paroxismo, deixando de considerar o fato nossa pátria comum”. 5 1 Mais adiante,
de que vive em um país cuja população, continua: “Fazendo esta publicação, te-
tempo e espaço são marcados pelo ca- nho em vista dar luz ao povo atualmente
tolicismo. Dito isso, é importante notar mergulhado em trevas muito espessas
que os periódicos católicos participam pela igreja romana e pelos maus gover-
da polêmica de maneira pouco ostensi- nos civis que, mais ou menos, têm sem-
va, uma vez que se limitam a entabular pre tolhido a liberdade de todo o gêne-
discussões propriamente religiosas (es- ro, principalmente a religiosa”. 52 A ava-
pecialmente, a validade do culto de ima- liação que faz sobre a situação social é
gens) e a congratular as autoridades e a bem negativa – “O pobre já está reduzi-
imprensa por suas respostas a Ferreira. 50
do à condição do antigo escravo” –, tan-
Posição curiosa, pois, se observar mos to quanto aquela que faz sobre a situa-
bem, autoridades e jor nalistas não esta- ção religiosa, dominada pela “ignorância
vam exatamente defendendo a necessi- e o embrutecimento”. 53 É claro que po-
dade da presença de símbolos católicos demos insistir em fazer o que o próprio
em espaços públicos. Em seus argumen- Ferreira reivindica, distinguindo os mo-
tos, havia algo de inercial: enquanto a mentos em que fala como cidadão dos
população for cristã e na medida em que momentos em que fala como fiel. No
a religião for útil à justiça, não há por- entanto, são muitas as indicações de que
que retirar o crucifixo da sala do júri. Ao o protesto mesmo por liberdade civil vin-
contrário da Igreja, ninguém pretendia cula-se a uma exigência religiosa e de
que Ferreira, embora saiba falar como sirva”, a necessidade de “uma reforma
um secularista, tem por ideal uma socie- completa nos corações”, “que só a ver-
dade cristã. dadeira religião poderá lhes dar”.55
se oculta e se revela em uma frase que mesmo objeto como simples adereço,
parece estar apenas a serviço de um ar- tornando-o indiferente. Ferreira perdeu
gumento genérico a favor da liberdade a batalha no final do século XIX, mas a
de consciência: “Funcionar diante do ído- for ma pela qual isso aconteceu torna
lo é reconhecer-lhe virtude; e isso nun- menos enigmática a expansão, inclusive
ca o farei, porque não a tem”. 59
Assim, sobre o espaço público, que a sua corren-
o mesmo espaço público que autorida- te religiosa (refiro-me aos evangélicos em
des e imprensa se recusam a esvaziar de geral) conquistaria no final do século XX.
um símbolo católico deve se tornar, no
argumento do protestante, uma paisagem
P AS SAGENS DOS SÉCULOS
N
que impossibilite a “idolatria”.
ada há de exclusivo, do pon-
Podemos resumir a controvérsia que to de vista das relações entre
acompanhamos imaginando a política e religião, nesse epi-
contraposição de dois conjuntos de apa- sódio que acompanhamos. Desde que se
rentes contradições, que, nesse caso, se procurou injetar “modernidade” nessas
alimentam mutuamente. De um lado, te- relações, pululam situações, em muitas
mos um ar gumento conjunturalmente épocas e lugares, que colocam em ques-
secularizante, que reclama uma distin- tão a presença de marcas religiosas em
ção mais clara entre o público e o re- espaços públicos. O fato de que elas
l i g i o s o . De outro, um argumento freqüentemente envolvam o embate de
conjunturalmente anti-secularizante, diferentes confissões e perspectivas re-
uma vez que per mite a permanência de ligiosas não parece ser casual. Sabe-se
um símbolo religioso em uma repartição que é com a aparição em cena de novos
pública. Ocorre que o primeiro argumen- grupos étnicos ou religiosos que o cam-
to é sustentado por um pastor que ima- po social é remexido, levando à
gina um futuro cristão para o país, en- explicitação de configurações que, exa-
quanto que o segundo é articulado pela tamente por estarem bem estabelecidas,
imprensa não religiosa e pelas autorida- pareciam “adequadas” e “justas”. Um dos
des do Estado laico, com o apoio de jor- grandes desafios de nosso tempo é con-
nais católicos, em consideração ao pas- seguir pensar a política considerando,
sado também cristão da nação. Ocorre, com todos os riscos que isso implica, as
ainda, que o argumento do pastor, mes- diferenças – tarefa na qual antropologia
mo sendo secularizante, leva a sério o e história estarão inexoravelmente envol-
objeto que vê como um “ídolo”, ao pas- vidas. A religião oferece um manancial
so que o argumento de jor nalistas e au- inesgotável de situações para efetivar
toridades, mesmo sendo anti- essa reflexão; e, no seu caso ao menos,
secularizante, é capaz de conceber o adotar a modernidade como quadro de
referência se mostra ainda produtivo, es- pública assumiram uma posição que re-
pecialmente quando se concorda em afirmava o princípio da separação. 60
entendê-la como algo plural e em cons-
Já o episódio do crucifixo no júri, como
trução.
vimos, mostra uma oposição maciça e
Partindo dessa perspectiva e aproveitan- praticamente consensual ao ímpeto
do a análise do episódio do crucifixo no secularizante do pastor Ferreira. Os ar-
júri, proponho que se considere a confi- gumentos vitoriosos naquele caso pode-
guração gerada no Brasil a propósito da riam servir como precedentes valiosos
relação entre religião e espaço público para a permanência e a instalação de
como uma “laicidade de presença”. símbolos religiosos em lugares públicos.
“Laicidade” porque a República represen- Pensemos nos cruzeiros e cristos espa-
ta a adoção aberta do regime da separa- lhados pelo território nacional, uns em
ção – regime, lembremos, associado à espaços abertos, outros em recintos fe-
moder nidade –, cujos princípios valem chados, todos igualmente públicos. No
para estruturar a relação entre religião e Rio de Janeiro, antiga capital nacional,
espaço público. “De presença” porque ao o Cristo pode ser visto quase de qual-
mesmo tempo esse regime não conta quer ponto da cidade no Corcovado e ser
para seu funcionamento, do ponto de encontrado em um crucifixo que compõe
vista do Estado, com a supressão da pre- a arquitetura do plenário da Assembléia
sença da religião no espaço público e Legislativa. No entanto, como essa pre-
comporta posições que, na sociedade sença da religião no espaço público não
civil, lutam pela atuação pública da reli- deixou de conviver com os princípios da
gião. O contraste pode ser feito com a laicidade, o que se produziu foi uma con-
situação na França, cujo Estado e socie- figuração apenas sustentável na medida
dade inclinam-se na direção de uma em que não se definia com precisão o
“laicidade de ausência”. Não que o Esta- lugar e os limites de expressão do “reli-
do francês, mesmo depois da separação gioso”. O que assistimos, portanto, é
operada com a lei de 1905, não mante- uma sucessão de conjunturas marcadas
nha certos vínculos com referências re- por distintas “manchas” de presença do
ligiosas. Lembremos das cerimônias que religioso no espaço público. O interes-
fizeram parte dos funerais do presiden- sante é que a conjuntura mais recente
te F. Mittérand em Notre Dame. Mas quan- tem como marca principal a investida dos
do, à mesma época, na passagem da evangélicos em esferas tais como a polí-
década de 80 para a de 90, começaram tica partidária, a mídia de massa e a as-
a ocorrer diversos casos por conta do uso sistência social. Certamente algo inusi-
de véus por estudantes muçulmanas em tado se olharmos para cem anos atrás,
escolas públicas, o Estado e a opinião mas, de certo modo, possibilitado pela
N O T A S
1. Miguel Vieira Ferreira, Liberdade de consciência : o Cristo no Júri, Rio de Janeiro, Igreja
Evangélica Brasileira, 2001, p. 155.
2. Para detalhes sobre os argumentos, ver minha tese, transformada em livro, Emerson Giumbelli,
O fim da religião : dilemas da liberdade religiosa no Brasil e na França, São Paulo, Attar,
2002.
3. Decreto n. 119A, de 7.1.1890, apud José Scampini, A liberdade religiosa nas constituições
brasileiras: estudo filosófico-jurídico comparado, Petrópolis, Vozes, 1978, p. 84.
4. Refiro-me à bibliografia geral sobre religião e Estado no Brasil e não especificamente à
historiografia do protestantismo, com a qual tive contato após me defrontar com o livro de
Ferreira.
5. Leila Duarte, Em busca de identidade social: a saga dos primeiros protestantes no Rio de
Janeiro (1859-1917), dissertação de mestrado em história, Rio de Janeiro, IFCS/UFRJ, 1996,
p. 168.
Marcelo Gruman
Doutorando em Antropologia Social pelo PPGAS/Museu Nacional/UFRJ.
A Sinagoga Ortodoxa
Novo espaço de sociabilidade
para jovens judeus não-religiosos
Este artigo trata da construção da identidade The article deals with the construction of
judaica por parte de um grupo de jovens jewish identity by a group of young middle-
judeus cariocas de classe média. A partir da class carioca jews. The lack of non-religious
entrada na faculdade, a falta de opções não- alter natives for expressing their ‘jewishness’
religiosas para o exercício da ‘judeidade’ leva in the university milieu induces many of them to
muitos deles a freqüentarem uma sinagoga frequent an orthodox synagogue. The article
ortodoxa, apesar de não serem religiosos. Tenta- analyzes the reasons for this apparently
se analisar o porquê deste fenômeno se, paradoxical phenomenon since, at first sight,
aparentemente, a ortodoxia desafia seu estilo de religious orthodoxy might be seen to challenge
vida moderno. their otherwise moder n life style.
Palavras-chave: identidade judaica, religião, Keywords: jewish identity, religion, modernity,
moder nidade, tradição. tradition.
O
que leva jovens não-religiosos dade brasileira e sem a sombra do anti-
a freqüentar uma sinagoga que semitismo, ao menos na forma
simboliza o que há de mais tra- institucionalizada que caracterizou uma
dicional na religião judaica? Essa pergun- parte da história européia e brasileira
ta surgiu durante meu trabalho de cam- anterior, pretendia revelar o significado
po para o mestrado, quando me interes- que esses jovens davam à sua judeidade
sava analisar os processos utilizados por – o porquê da importância de se afirma-
um grupo de jovens judeus cariocas na rem enquanto parte de uma minoria num
elaboração de sua identidade judaica. Le- país que tem na ideologia
vando em conta sua inserção na socie- assimilacionista a base de suas relações
sociais – e o valor dado à endogamia, Sua vida social tem início numa das es-
historicamente um importante colas judaicas da cidade do Rio de Ja-
deter minante na definição de quem é e neiro. Desde o mater nal até o terceiro
quem não é judeu. ano do ensino médio ou, ao menos, o
oitavo ano do ensino fundamental, estes
Os jovens entrevistados são parte das
jovens criam os primeiros vínculos de
chamadas camadas médias urbanas, cuja
amizade com os colegas de tur ma. Brin-
idade varia entre vinte e trinta anos;
cam na hora do recreio e estendem a
moradores da zona sul da cidade do Rio
diversão para além do horário escolar.
de Janeiro; estudaram em escolas judai-
Nos sábados à tarde freqüentam um dos
cas até a faculdade ou pelo menos até a
movimentos juvenis existentes, sionistas
8 a série do ensino fundamental; sociali-
ou não, em que, além das atividades
zaram-se em movimentos juvenis sionis-
voltadas para a conscientização política,
tas ou não e quase todos já viajaram a
passa-se o tempo jogando bola e pintan-
Israel num dos programas financiados
do as paredes da casa ou apenas baten-
por instituições judaicas ou com famili-
do papo com os amigos. No movimento
ares; realizaram os rituais de passagem
juvenil, além dos colegas da escola que
da religião judaica: o brit-milá (circunci-
eventualmente se encontram, brinca-se
são), o bar-mitzvá (maioridade religiosa
e diverte-se com aqueles que lá foram
aos 13 anos) para os rapazes e, muito
apresentados e que não estudam juntos.
mais raramente, o bat-mitzvá (maiorida-
Já na fase adolescente estes jovens,
de religiosa aos 12 anos) para as moças.
cujas amizades ultrapassam o espaço da
Não se consideram religiosos, ao contrá-
sala de aula, encontram no cinema, no
rio, não seguem os preceitos religiosos
teatro e nos piqueniques nos parques da
da alimentação (chamada kashrut) e das
cidade outras formas de entretenimen-
rezas diárias, nem fazem
to. A socialização se restringe, na gran-
o descanso
de maioria dos casos, à comunidade ju-
semanal (cha-
daica. Também durante a fase adolescen-
mado “guar-
te, e até a entrada na faculdade, viagens
dar o shabat ”),
a Israel, programadas por instituições
considerado
judaicas ou pelas próprias famílias, são
um dos principais man-
outra maneira de criar vínculos com o
damentos de Deus. Todos
judaísmo e expandir o círculo de amigos.
trabalham ou fazem al-
gum tipo de estágio na A entrada na faculdade marca o início
área em que pretendem de um novo momento nas relações soci-
seguir profissional- ais destes jovens. Agora, são partes de
mente. um universo completamente distinto da-
A
Lubavitch, especificamente, parece ex-
pressar, para muitos dos jovens, aquilo sinagoga é uma das institui-
que se chama de “judaísmo verdadeiro”, ções mais importantes da vida
sendo o rabino de chapéu negro e barba comunitária judaica, e sempre
seu maior símbolo. Alia-se a esse poder foi um espaço de convivência. Lá, ami-
simbólico o fato de a congregação acei- gos se encontravam (e se encontram)
tar estes jovens como eles são, ou seja, para bater papo e fechar negócios no
comércio, discutir o casamento dos fi- Hagadá, um relato da jor nada empreen-
lhos e apresentar problemas pessoais dida pelos antepassados.
para os rabinos. O surgimento da sina-
Quando, finalmente, o povo entrou na
goga confunde-se com a história do povo
Terra Prometida e expulsou os “intrusos”,
judeu e suas tragédias.
instituiu-se a monarquia como forma de
gover no. O primeiro rei foi Saul, sucedi-
Conta a tradição religiosa que Moisés, um
do por David, a quem se deve a consoli-
homem abençoado por Deus, liderou o
dação das fronteiras do reino e o esta-
povo judeu na fuga da escravidão do
belecimento de Jerusalém como a sua
Egito. Num certo momento da caminha-
capital. Após o reinado de David,
da pelo deserto, Ele entregou as Tábuas
Salomão assume o trono e constrói o
da Lei juntamente com uma série de de-
Templo de Jerusalém, importando cedro
terminações de caráter moral que, jun-
do Líbano e marfim da África.3 Diz-se que
tas, ficaram conhecidas como Fé
durante seu governo o reino de Israel
Mosaica. A caminhada pelo deserto de-
viveu grande prosperidade econômica, e
morou cerca de quarenta anos, “culpa”
que ele era um homem muito inteligente
dos próprios judeus, que se recusaram
e justo.
a lutar contra as outras tribos que, na
época, habitavam o que hoje é Israel. O Templo antecedeu a sinagoga. Era o
Uma outra versão conta que a mentali- edifício central para o culto divino em
dade escrava ainda prevalecia entre os Israel até o ano 70 d.C., situado no mon-
Filhos de Israel, e a jor nada até a Terra te Moriah, em Jerusalém, e consistia de
de Israel foi cheia de reclamações e des- um altar para a Arca Sagrada (dentro da
confiança por parte do povo, que algu- qual se colocam as escrituras sagradas),
mas vezes quis retor nar ao Egito e até os vasos sagrados e as oferendas, além
mesmo chegou a construir um bezerro de um pátio para os fiéis. 4 Os sacerdo-
de ouro para adorar. Ainda assim, o Povo tes eram os responsáveis pelos sacrifíci-
de Israel recebeu e aceitou a Torá no os, pela supervisão da “pureza higiêni-
Monte Sinai, com fidelidade e lealdade. ca” e pela passagem da Fé Mosaica ao
A caminhada levou cerca de quarenta povo judeu. A hierarquia colocava o
anos, até que toda a geração que havia sumo sacerdote no topo, auxiliado por
passado pelo Egito fosse substituída por outros considerados sábios e mesmo
uma geração mais preparada para viver profetas. Devido a conflitos internos, o
em liberdade, em sua própria terra. To- reino foi dividido em dois, o de Judá, ao
dos os anos a saída do Egito é comemo- sul, e o de Israel, ao norte, e, cercados
rada com uma festa, Pessach, a Festa da pelas grandes potências da época, logo
Libertação, a Páscoa judaica, quando os sucumbiram ao seu poderio econômico-
judeus comem o pão ázimo e lêem a militar. Foi no domínio babilônio, inicia-
do no ano 597 a.C, marcado pelo exílio mestre”. O rabino era um erudito da lei,
do povo judeu, que aconteceu a destrui- uma espécie de professor autorizado
ção do Templo erigido nos tempos de pelo Sinédrio, o conselho de 71 erudi-
Salomão. No ano de 536 a.C, Ciro, rei tos que funcionava como supremo tribu-
da Pérsia, que sucedeu os babilônios, nal e desaparecido por volta do século
per mitiu que o Templo fosse novamente IV d.C. Ao longo da história judaica, ho-
construído e consagrado, mas tempos mens de grande sabedoria e líderes es-
depois, quando os romanos conquista- pirituais foram chamados de rabinos. Nos
ram o território, encabeçados por tempos modernos, ele serve à congrega-
Antíoco, o Segundo Templo foi ção da qual faz parte, realizando os ser-
semidestruído sobrando apenas um muro mões e discursos nas cerimônias, como
que circundava o edifício (o Muro das veremos adiante.
Lamentações). Apesar de alguns grupos
A maior ou menor notoriedade e legiti-
de guerrilhas judaicos, cujo mais conhe-
midade de cada rabino depende do po-
cido foi o dos macabeus, tentarem im-
der simbólico exercido pela corrente da
pedir a helenização forçada do povo,
qual participa. Quanto mais influente ela
pouco depois todas as rebeliões foram
é na determinação do que é a religião
sufocadas. Jerusalém foi destruída e a
judaica e, mais ainda, do que é a identi-
fase diaspórica teve início por volta do
dade judaica, na medida em que, para
século I a.C. Também nessa época, a si-
os religiosos e mesmo para muitos des-
nagoga ganha grande importância para
tes jovens, o judaísmo está bem próxi-
a vida religiosa e espiritual dos judeus.
mo de uma definição religiosa, maiores
as chances de a sua sinagoga receber
A sinagoga pode ser definida como o
grande quantidade de fiéis nas cerimô-
espaço para orações públicas dos ju-
nias mais cotidianas, como o shabat . A
deus, onde se reza, estuda e participa-
freqüência da maioria dos entrevistados
se de reuniões sociais. Há indícios de que
a uma sinagoga cuja corrente é ortodo-
ela existe desde o exílio da Babilônia,
xa, apesar de não-religiosos, revela um
quando o Templo deixou de ser o local
dos paradoxos da constituição desta
para o culto a Deus. Nela, no entanto,
judeidade juvenil.
não se realizam sacrifícios animais, ape-
nas “espirituais”, por meio da elevação Diferentemente do que coloca Lewin, 5 a
das almas nas orações. Em cada uma sinagoga passa a ser um novo espaço de
delas, há um Ar mário Sagrado onde es- sociabilidade judaica, atraindo, não ape-
tão guardados alguns rolos da Torá, o nas nas festividades mais tradicionais,
Pentateuco. A autoridade religiosa res- tanto jovens religiosos quanto não-reli-
ponsável pelo serviço religioso é o rabi- giosos. A análise da preferência desta ou
no que, em hebraico, significa “meu daquela sinagoga está diretamente rela-
E
que criou as condições necessárias para
mbora correndo o risco de em- o surgimento de um judaísmo tipicamen-
pobrecer a riqueza das idéias e te norte-americano, o judaísmo conser-
valores, é possível dividir a re- vador, que depois se espalhou por ou-
ligião judaica em três grandes correntes tros cantos do mundo. O
de pensamento. conservadorismo faz a ligação entre uma
base social de imigrantes que vêm com
A primeira é a refor mista. O judaísmo
uma formação religiosa e a sociedade
refor mista, surgido na Alemanha, como
norte-americana liberal e moderna. Essa
conseqüência das modificações ocorri-
corrente acreditava que era preciso ali-
das no modo de conceber a religião ju-
ar a razão, base do reformismo, e a tra-
daica, está diretamente relacionado com
dição, escorada pelo ritual. Ela fortale-
o desenvolvimento da racionalidade e da
cia a religião utilizando argumentos mo-
secularização da sociedade, ou seja, o
dernos, históricos. Enquanto o reformis-
Iluminismo. A Alemanha foi o berço da
ta queria se incorporar à modernidade,
Haskalá , o Iluminismo judaico, e a reli-
o conservador queria incorporar a
gião vislumbrada pelos judeus alemães
modernidade ao judaísmo, o primeiro
era parte constituinte do processo de
enfatizando o caráter moderno do juda-
moder nização da sociedade. Seu objeti-
ísmo e o segundo o caráter judaico da
vo era adequar o discurso religioso aos
moder nidade. A ética, por exemplo, en-
valores universalistas que passaram a
quanto uma série de valores universais,
vigorar na Europa Ocidental. A tradição
chega, para o conservador, através da
foi englobada pela modernidade. O im-
religião judaica.
pacto da cultura ocidental sobre o servi-
ço religioso se expressa, por exemplo,
No extremo oposto dessas duas corren-
pelo fim de certos “orientalismos”, como
tes que dialogavam com a modernidade
o canto nasalado e a falta de decoro,
surgiu, em meados do século XVIII, pro-
além do uso da língua ver nacular duran-
vavelmente na Ucrânia, um movimento
te a reza, a abolição da circuncisão, do
que pretendia acabar com as influências
shabat (o descanso semanal) e da reza
iluministas naquela parte da Europa. Este
em hebraico.
movimento foi chamado de
Transportado para os Estados Unidos em “chassidismo” (em hebraico, “devoção”)
A
cia, mas o fracasso se devia ao caráter diversidade interna à religião
local e particularista da maioria. Uma judaica se espalhou. No Rio
delas, entretanto, chamada Habad, so- de Janeiro, por exemplo, há
breviveu. representantes das três correntes antes
descritas. Tomando as sinagogas citadas
Como todo grupo fundamentalista, o
nas entrevistas, temos a da ARI (Associ-
Habad, fundado na cidade de Lubavitch
ação Religiosa Israelita), localizada no
(Rússia), em 1813, acredita ter a chave
bairro de Botafogo, representando o ju-
para o entendimento das coisas “como
daísmo reformista; a CJB (Congregação
elas são” e não como elas “aparentam
Judaica do Brasil), na Barra da Tijuca,
ser”. Além disso, os seguidores acredi-
representando o judaísmo conservador;
tam na vinda do Messias e, diferentemen-
a Beit Lubavitch, no Leblon, representan-
te do que propunham os fundadores do
do o judaísmo ortodoxo.
“chassidismo”, dão grande importância
à leitura dos textos sagrados (a Torá). A Muitos dos jovens entrevistados freqüen-
missão dos estudantes das ieshivot (plu- tam a Beit Lubavitch, da corrente orto-
ral de ieshivá , escolas talmúdicas) da doxa Habad. À primeira vista é um para-
seita era difundir aquilo que chamavam doxo jovens não-religiosos, que não cum-
de “sementes divinas” do “chassidismo”, prem os preceitos da religião judaica e,
quer dizer, os ensinamentos dos sábios, por isso mesmo, retardam a vinda do
seguindo três princípios: o presente an- Messias, freqüentarem uma congregação
tecipa a vinda do Messias; ele virá com cujos seguidores modelam sua visão de
a dispersão das sementes divinas e esta mundo e seu comportamento social exa-
é a função tanto dos rabinos quanto dos tamente nas idéias de “missão” e “reden-
discípulos, os “soldados”. A seita Habad ção”. É na relação entre o mundo
foi a responsável pela introdução da no- chassídico, ortodoxo, e o mundo não-
ção de “missão” judaica através da dis- religioso, entre tradição e modernidade,
persão das sementes divinas para a vin- e na compreensão do que é a identidade
da do Messias. O movimento se expan- judaica hoje para estes jovens que en-
diu, assim, para além das fronteiras da tendemos o aparente paradoxo. Na ver-
O
(inter net, correio, telefone, fax etc.) processo de identificação com
for necida, ironicamente, pela o grupo étnico judaico envol-
moder nidade. Essa dinâmica do movi- ve, nos diferentes momentos
mento, percebida na cerimônia do históricos, uma série de formas culturais
shabat , supre as necessidades de uma características: a literatura, a música fol-
certa identidade judaica juvenil atual. clórica, a culinária, a dança, a religião,
a língua. Vimos que a sinagoga sempre
O aparente paradoxo também se explica
foi, em toda a história do povo judeu,
pelo fato da seita Habad, por ser
um ponto de encontro para o estudo, as
missionária, ter de, necessariamente,
orações e bate papo entre amigos. Ape-
fazer compromissos com a “pureza” da
sar de não-religiosos, estes jovens judeus
tradição. As estratégias utilizadas pela
cariocas encontraram nela um novo es-
congregação para atrair o maior número
paço de sociabilidade. Sua trajetória aju-
possível de jovens (não só, mas princi-
da a explicar o porquê da sua
palmente) tor nam menos rígida as bar-
centralidade para o estabelecimento de
reiras que separam os “de dentro” dos
relações sociais.
“de fora”. O que ocorre é uma troca sim-
bólica: pelo lado dos jovens, reconhecem Se, até a entrada na faculdade, sua vida
na sinagoga ortodoxa o “judaísmo autên- social gravitava em torno de instituições
tico” por meio de uma ligação simbólica judaicas, como a escola judaica e os
com seus ancestrais, um sentido de con- movimentos juvenis, a partir dali a quan-
tinuidade com o passado, sem que isso tidade de atividades para a faixa etária
ameace sua integração na vida moder- pós-escola, universitária, diminui consi-
na. A sinagoga pode ser encarada até deravelmente. A sinagoga, que nunca
como mais uma atividade de lazer, um deixou de ser um ponto de referência
símbolo religioso secularizado. Pelo lado para a identidade judaica, volta a ser
dos rabinos, há a percepção de que os uma fonte de sociabilidade e identifica-
jovens judeus cariocas não querem se- ção com o judaísmo, para muitos jovens
guir a teologia tradicional, mas que o sim- que a freqüentavam apenas nas festas
Yom Kipur, Dia do Perdão) e nas cerimô- dinheiro, com pressa de sair... tá ali pra
nias de bar-mitzvá . Ela passa a fornecer relaxar, pra mim hoje é fundamental.
os elementos que per mitem estabelecer to legal, até porque, hoje em dia, é
as fronteiras entre o “nós” e o “eles”. uma maneira de eu me manter ligado
à comunidade, ao judaísmo. A única
A importância da religião na definição do
coisa que me liga ao judaísmo, hoje, é
judaísmo e do que é ser judeu para eles
a sinagoga (R., estudante de adminis-
caminha junto com o caráter subjetivo e
tração).
sentimental tomado pela idéia de
pertencimento ao grupo. 6 Reunir-se na O pessoal gosta, se sente bem de ou-
sinagoga, com outras pessoas iguais a si vir o rabino falar, o pessoal reza, todo
espiritual, mesmo que por uma ou duas mundo canta junto, o ‘Shemá Israel’
horas, de sentir-se “em casa”. 7 Na “rua”, (Escuta, Israel) é voz forte (D.,
te. Se eu não vou, eu sinto falta, acho sinagoga tradicional, muitos jovens
que a pureza das pessoas que tão lá, não gostam de mudanças . Mesmo que
pensando no bem naquele momento, eles não pratica (sic) mas pode ser que
ninguém quer o mal de ninguém, nin- eles sabem que, se é pra ir, vamos num
lugar que é a mesma linha há três mil dadeira de se interpretar o texto sagra-
anos. Se pra não ir, tem muitos luga- do, ritualizando-o, a chamada “verdade
res pra ir. Se pra ir, eu vou num lugar formular”. 9 Os rabinos do Lubavitch pa-
que realmente minha avó, minha bisa- recem simbolizar o legítimo representan-
vó... uma linha tradicional (G., rabino te da religião judaica. São eles que de-
do Lubavitch). têm, com suas longas barbas negras, o
chapéu negro e as capotas negras de
O judaísmo, equivalente à religião, con-
“três mil anos atrás”, a autoridade para
siderado legítimo ou “verdadeiro”, forne-
definir o que é certo e o que é errado. A
ce os elementos da tradição a serem
existência dessa “verdade formular” con-
utilizados nesta ligação. Em primeiro lu-
fere estabilidade ao ritual, imprescindí-
gar, o ritual representa aquele judaísmo
vel na busca do referencial identitário, e
que era praticado nos pequenos vilarejos
é o que leva muitos jovens à sinagoga
da Europa Oriental. O jovem sente-se
ouvir o que o rabino tem a dizer. Reco-
“em Lodz de 1912”, como dito por uma
nhece-se, na sua figura, a sabedoria e
entrevistada. Em segundo lugar, a forma
inteligência necessárias para guiar suas
como é conduzido o ritual é mais ou
vidas do modo menos rígido possível.
menos legítimo de acordo com o reco-
nhecimento daquele que o leva adiante. A função simbólica da tradição, expres-
Admite-se que há uma maneira mais ver- sa no ritual, fornece um senso de conti-
dade, possível apenas na relação entre dele. Posso sentar do lado da minha
o rabino e o público que comparece ao mãe. [...] Eu gosto do que o rabino fala,
ritual. O primeiro inicia as canções em todo mundo fala que ele é inteligente
cido como o modo legítimo de agir, en- cei a ir quando a gente foi fazer a ‘Fes-
ritual, induz certas motivações, 1 2 o tal Além da tomada de decisão mais firme
“sentir-se bem” durante o shabat . O ca- dos que escolhem uma das três sinago-
ráter subjetivo desse judaísmo juvenil de gas, há aqueles que se vêem presos no
hoje tem sua maior expressão exatamen- dilema apresentado no início:
te na parte musical, em que é mais im- modernidade ou tradição? Nesses casos,
portante apreciar a melodia e a compa- não há consenso sobre qual judaísmo é
nhia de dezenas de outras vozes em con- o ideal, se o ortodoxo, o conservador ou
junto do que compreender o que se está o liberal. Não se está disposto a abando-
dizendo, segundo os entrevistados. A nar a tradição e sua simbologia, nem a
leitura em hebraico e o modo de cantar negar que as relações sociais no mundo
pode ser revista, moder nizada, por não precisar pegar carro, procurar
mesmo, porque era assim e não tem do falta de rezar, foi porque inaugura-
ram a sinagoga, eu fiquei curioso de
que mudar. Mas, ao mesmo tempo, se
for assim, pode ser que acabe, então conhecer, a maioria dos meus amigos
teve que ter mudanças porque se fos- tava freqüentando, e eu não via moti-
só com ‘goy’, não taria nem mais aí se nesse horário, pra eu não ir (R., estu-
muito importante todos eles que tra- Em segundo lugar, a reza está em har-
zem a comunidade, então o que o monia com o “social”, pelo encontro com
Bonder faz é judaísmo só que eu não os amigos, o que muitos jovens admitem
faço nada. Nem o que o Bonder faz eu quando vão à cerimônia do shabat às
faço, eu só vou lá e falo ‘amém’. O sextas-feiras. Seguindo o raciocínio do
Lubavitch seria mais parecido com o rabino-chefe da congregação, diria que
que era antigamente (B., estudante de tanto a parte material quanto a espiritu-
medicina). al são satisfeitas quando o jovem, cujo
A Beit Lubavitch não é a única represen- corpo seria dividido nas metades “de
certas diferenças que a colocam como a Agora, adoro esse negócio... hoje o
preferida. Em primeiro lugar, o fato de Beit Lubavitch tem muito jovem e isso
ser localizada num ponto de fácil aces- é muito bom, faz você ir, é um fato
so, visto que muitos moram no próprio positivo. Por exemplo, antigamente
bairro do Leblon ou em áreas limítrofes, quando eu ia, encontrava duas ou três
junta o útil ao agradável, pela praticidade pessoas e quando não iam era um
e rapidez de se chegar ao local e pela saco. Quando acabava a reza, eu vol-
possibilidade de sentirem-se num ambi- tava pra casa. Não que eu não goste...
ente amigo. acho que a reza faz bem pra caramba,
Sexta-feira ainda não é exatamente noi- você sentar lá, ouvir a reza... eu saio
te. De sete às oito, você se sente bem de lá muito feliz. Mas, você sai de lá e
você encontra com todo mundo, isso dos os jovens, recebendo-os com um sor-
é legal, combina de sair, sempre tô sa- riso no rosto e desejando-lhes shabat
indo depois com o pessoal de lá mes- shalom ( shabat em paz), passando calor
mo . É uma parada legal, é um fator a humano e perguntando como é que vão
mais, digamos assim (D., estudante de as coisas, é uma forma sedutora de re-
direito). crutamento. O cumprimento elimina, ou
atenua, a imagem da ortodoxia, em que
Em terceiro lugar, o tratamento dispen-
o rabino deve se portar de maneira sisu-
sado pelos rabinos da congregação a to-
da e os freqüentadores devem se con-
centrar apenas na leitura do sidur (livro
de rezas) e na união com Deus. Eliminar
a tensão, deixá-los à vontade é propa-
ganda positiva da sinagoga. “A equipe
dos rabinos daqui são rabinos jovens,
simpáticos, procuram falar com o jovem,
chegar até o jovem, não esperam o jo-
vem chegar até ele para falar shabat
shalom ” (G., rabino do Lubavitch).
ro ou não tem dinheiro, se você é reli- aceita [sic]... pelo contrário, eles cha-
gioso ou não-religioso , se você vai na mam quem não é, a maioria que tá lá...
sinagoga uma vez por ano ou três ve- são muito poucos. Eles são abertos
zes por ano, ou uma vez a cada dez para quem não é, eles acham melhor
anos, não faz a mínima diferença [...]. as pessoas irem... tá de carro, 1 3 vindo
Uma sinagoga que tá aberta, que tem do trabalho, mas vem (I., estudante de
o interesse de aproximar, que todos arquitetura).
Uma segunda concessão feita no senti- guindo a mesma linha [...]. Eles se sen-
do de aproximá-los da congregação é a tem num ambiente em que eles podem
permissão para usar vestimentas conven- se sentir à vontade, ninguém força eles
cionais, na moda entre esta parcela da a colocar chapéu e barba pra sentar na
juventude carioca que compartilha os sinagoga e, dessa forma, se aproximam
pessoal que vai à praia, que sai à noi- respostas rápidas para seus múltiplos
que eles tão tentando criar é um gru- vínculo a algum grupo, num mundo cada
[...] Até porque a juventude é o futuro los a tornarem-se religiosos, mas com a
rada, que eu quero casar com ela, suas premissas universais; pela ade-
quero ter filhos, quero passar a conti- quação do judaísmo aos diversos mo-
porém também rejeitam qualquer inicia- fortaleceu sua vertente mais subjetivista.
tiva de repensar a identidade judaica à A valorização do “emocional” em detri-
luz dos valores modernos universalistas, mento do “racional” fortaleceu a religio-
elaborando um discurso reflexivo e ob- sidade mais tradicionalista, como o
jetivo. O judaísmo desse grupo perdeu Lubavitch, que enfatiza mais o fato do
sua aura moder na, retor nando à situa- jovem sentir-se bem durante a cerimô-
hierárquicas, que tolhem sua liberdade Rio de Janeiro, se deva ao fato de a mai-
de escolha e o fluxo entre os diversos oria destes jovens não estar disposta a
domínios da vida social. Essa identida- formular, de modo discursivo, sua iden-
não são consideradas transgressões im- favor de uma corrente que forneça um
perdoáveis pelos rabinos da Beit outro significado legítimo à judeidade.
Lubavitch. Na verdade, segundo seu pon- Essa tensão entre a tradição e a
to de vista, deve-se sempre olhar pelo moder nidade demonstra o valor que a
lado positivo, ilustrado pelas inúmeras ortodoxia goza neste meio juvenil, que
fábulas típicas do movimento chassídico, não parece disposto a incorporá-lo nas
tendo em conta que “o que vale é a in- suas vidas. A sinagoga ortodoxa e seu
tenção”. Além disso, tem-se a esperança representante, o rabino de barba e cha-
de que a percepção de que aquele juda- péu, são importantes como referência a
ísmo é o verdadeiro possa atrair jovens um passado, que, contudo, não deve ser
para as fileiras de seguidores da ideolo- parte de seu presente, seu cotidiano.
gia fundamentalista messiânica do Essa identidade juvenil encontra, na si-
Habad. Fazer teshuvá , ou “retornar” ao nagoga ortodoxa, um referencial coleti-
judaísmo, via seus ensinamentos, é o vo, um sentimento de pertencimento, de
objetivo máximo da congregação, mes- estabilidade. Nela responde-se às pergun-
mo que se chegue nos últimos cinco mi- tas “quem sou eu?”, “de onde venho?”,
nutos da cerimônia, já que o processo “para onde vou?”.
de Redenção é lento, porém progressi-
Cada sinagoga do Habad está aberta a
vo. Até mesmo a separação dos sexos
qualquer judeu que queira envolver-se
deixa de ser um empecilho ao jovem, se
em trabalhos sociais, seja na preocupa-
esse elemento da tradição não estiver em
ção com os problemas individuais de
contradição com o que ele espera da si-
cada freqüentador, e o conseqüente
nagoga.
envolvimento na sua resolução, seja no
Se, por exemplo, meu pai fosse, eu
calor humano passado na recepção a
gostaria de estar junto dele. Só que
cada sexta-feira. Essa economia da tro-
meu pai não vai, então pra mim não
ca simbólica está inserida na concepção
faz diferença porque eu vou com a
de “missão” descrita anterior mente; o
minha avó. Eu gosto de estar com a
objetivo é alcançar a Redenção pelo res-
pessoa que eu fui. Eu não iria no
gate da identidade judaica de cada ju-
Lubavitch para ficar sozinha, se for pra
deu desgarrado do rebanho. Há duas ló-
sair de casa e chegar vinte, trinta mi-
gicas agindo ao mesmo tempo, a chama-
nutos atrasada, eu não vou (S., estu-
da “compartimentalização”, 1 5 uma inter-
dante de desenho industrial).
na e outra externa. A exter na envolve o
Por outro lado, a proibição de sentar-se convencimento, numa linguagem condi-
junto com a namorada ou com a mãe zente com o estilo de vida moderno, de
pode incomodar de modo tão profundo que aquele é o judaísmo a ser seguido e
que a tradição passa a ser rejeitada em que lhe dará a segurança ontológica
dade moder na, esses jovens cariocas, as baterias” para mais uma semana de
individualizados no seu cotidiano, encon- estudos e trabalho, até a próxima sexta-
tram na sinagoga uma contrapartida. Por feira.
algum tempo, renovam os laços de Artigo recebido para publicação em ju-
pertencimento ao grupo e “recarregam lho de 2003.
N O T A S
1. Roberto Cardoso de Oliveira, Identidade étnica, identificação e manipulação, in Identidade,
etnia e estrutura social , São Paulo, Pioneira, 1976.
2. Louis Dumont, Introdução, in Homo hierarchicus , São Paulo, EDUSP, 1995.
3. Moacyr Scliar, Judaísmo, Rio de Janeiro, Ática, 1994.
4. Enciclopédia conhecimento judaico, Rio de Janeiro, Editora Tradição, v.1 e 3, 1967.
5. Helena Lewin, O olhar do jovem sobre sua identidade judaica, in Judaísmo: memória e iden-
tidade, Rio de Janeiro, EDUERJ, 1997.
6. Numa pesquisa realizada com alunos do ensino médio do colégio judaico Eliezer Steinbarg,
no Rio de Janeiro, Grinberg (1997) afir ma que, também entre jovens de 15 e 16 anos, a
condição judaica passa mais pelo sentimento do que propriamente por uma compreensão
“racionalizante” dos rituais, por exemplo. Diz ela: “As pessoas demonstram dar mais impor-
tância à identificação emocional, não considerando preponderante o conhecimento acerca
da religião ou da história, nem mesmo a observância de práticas religiosas. Ter uma vaga
idéia de o que as festas [...] seria o suficiente para sentir-se judeu , como disseram muitos”.
(grifo meu)
7. Roberto Damatta, Carnavais, malandros e heróis , Rio de Janeiro, Zahar, 1979.
8. Émile Durkheim, Definição do fenômeno religioso e da religião, in As for mas elementares da
vida religiosa, São Paulo, Martins Fontes, 1996.
9. Anthony Giddens, A vida em uma sociedade pós-tradicional, in U. Beck; A. Giddens & S.
Lash, Moder nização reflexiva , São Paulo, UNESP, 1997.
10. Mary Douglas, The irish bog, in Natural symbols , Pennsylvania, Pantheon Books, 1970.
11. Claude Lévi-Strauss, O feiticeiro e sua magia, in Antropologia estrutural, Rio de Janeiro,
Tempo Brasileiro, 1975.
12. Clifford Geertz, A religião como sistema cultural, in A interpretação das culturas , Rio de
Janeiro, TLC, 1989.
13. Conta a tradição religiosa que durante o período em que os judeus per maneceram no deser-
to, quarenta anos, foi construído um tabernáculo. Para tal tarefa foram realizados 39 traba-
lhos, que durante o shabat , o descanso semanal, deviam ser abolidos. Um deles é fazer fogo,
daí a proibição de andar de carro, pois ao ligar a ignição, faz-se uma faísca. Não há relação
com o esforço físico, trabalho braçal.
14. Mônica Grin, Diáspora minimalista: a crise do judaísmo moderno no contexto brasileiro, in
Bila Sorj (org.), Identidades judaicas no Brasil contemporâneo , Rio de Janeiro, Imago, 1997.
15. Menahem Friedman, Habad as messianic fundamentalism: from local particularism to univer-
sal jewish mission, in E. Martin Marty & R. Scott Appleby (eds.), Accounting for
fundamentalisms : the fundamentalism project, Chicago, University of Chicago Press, 1994.
Candomblé e Mídia
Breve histórico da tecnologização das
religiões afro-brasileiras nos e pelos
meios de comunicação
O texto analisa o lugar ocupado pelos This paper analyzes the importance of
meios comunicacionais e pelas novas means of communication and new
tecnologias de comunicação para a communication technology for the
reconfiguração do campo religioso afro- reconfiguration of Afro-Brazilian
brasileiro – mais especificamente do religions, especially Candomblé. It
candomblé. Investiga as transformações investigates the transfor mations that have
ocorridas nas religiões de origem africana occurred in the religious traditions of African
no Brasil, centradas na tradição oral, após origin, which are centred in the oral tradition,
o processo de midiatização sofrido after the process of mediation endured by these
por essas religiões. religions.
Palavras-chave: meios de comunicação, Keywords: means of communication,
candomblé e mídia. candomblé, medium.
N
o Brasil, por volta do início do perpetuou por mais de três séculos. Tal
século XIX, foi criado um sis- sistema religioso foi denominado can-
tema de práticas religiosas domblé – a religião dos orixás no Brasil.
que reunia, num mesmo espaço físico
( egbé ou terreiro), uma pluralidade de Além de se caracterizar como agregador
cultos e for mas religiosas provenientes dos mais variados e distintos cultos de
da costa ocidental africana, por causa do matrizes africanas, o candomblé conso-
expressivo tráfico de escravos que se lidou-se como religião centrada na tradi-
ção oral, por conta da ausência de um Muitos autores lembram que a oralidade
livro revelado. Sem a presença do livro não somente foi necessária à dinâmica
revelação, sua liturgia foi promulgada interna dos terreiros, como também ao
por meio da transmissão oral dos mitos, seu posicionamento de defesa diante da
manifestando-se nas danças, nos cultura dominante, da sociedade
cânticos e rituais, que perpetuariam tra- abrangente, visto que além de servir
ços e formas (históricas, religiosas e so- como instrumento para a transmissão do
ciais) na consciência e na memória cole- conhecimento litúrgico e mítico, serviu,
tiva, no passado, dos descendentes de também, como reguladora da vida soci-
africanos no Brasil e, hoje, dos integran- al nos terreiros (com dinâmicas de soli-
tes das mais diversas origens das religi- dariedade, poder e hierarquização) e no
ões afro-brasileiras. mundo externo. Por isso, o terreiro tem
Sobre Davina Maria Pereira, Iyá Davina (1888-1964), há, desde 1997, um memorial instalado em
tradicional terreiro na Baixada Fluminense, Rio de Janeiro. Foto: autor desconhecido. Acervo do
Memorial Iyá Davina.
de escravos, mesmo que nos per mitam uma cultura literária e, em conseqüên-
ingressos e nos dêem uma idéia do seu De modo geral, dois são os traços e for-
número e do montante orçamentário que mas que regem os sistemas rituais nas
o sistema rendeu, não dão conta da am- religiões de origem africana no Brasil. O
plitude do sistema escravocrata, por con- primeiro, de origem nagô, diz respeito
ta do tráfico ilegal e paralelo aos muitos aos povos que têm o iorubá como língua
projetos de abolição da escravatura no comum e que formam o que se designa
Brasil. yourubaland – correspondendo, hoje, ao
A apreensão e destruição de materiais sul do Benin e ao sudoeste da Nigéria
de culto também foi outro importante (antigos reinos de Oyó, Ijexá, Ijebu, Ketu
fator para a quase desaparição de uma e Egbá). O segundo, de origem jeje, diz
hoje, reelaborada ou integrante dos acer- região do antigo Daomé (atuais Repúbli-
vos das polícias militares. Assim, mes- ca do Togo e Benin). Distingue-se do pri-
mo que a história afro-brasileira não te- meiro, por não cultuar divindades encon-
nha podido ser minuciosamente concre- tradas naquela região e que são, no Bra-
tizada através de uma história textual, sil, as mais populares divindades africa-
documental ou mesmo material, pode nas – Xangô, Oxum e Iemanjá, entre es-
ser, entretanto, elaborada por meio da tas. É a sincretização entre esses dois
oralidade – que é o elemento primordial sistemas – fon e yorubá – que deter mi-
isso, simbólica ou conceitual, que encon- cido sistema de práticas e tradições reli-
ação desse sistema durante o século XIX, Brasil como no exterior. A ordem de apa-
o início do século XX fez aparecer uma rição do candomblé, ou das religiões
onda de produções bibliográficas, que afro-brasileiras como um todo, seguiria
tomaria o candomblé e seu complexo uma sucessão cronológica determinada
sistema ritual como objetos de investi- pela história dos meios de comunicação
gação, provocando, senão a perda do no Brasil. Por isso, vale a pena
referencial da oralidade – devido à ex- remetermo-nos a cada um desses veícu-
pressiva importância que os adeptos do los, respeitando, assim, a ordem de ocor-
candomblé dariam a essas publicações rência dos avanços nesses meios.
–, ao menos uma reelaboração do acer-
vo memorialista e da narração mítica, I MPRESSÕES DO CANDOMBLÉ :
tradicionalista e metafórica afro- RELIGIÕES AFRO - BRASILEIRAS E
brasilera, anteriormente proporcionada MERCADO EDITORIAL
S
pela tradição oral. Dessa for ma, a reli-
gião atextual, centrada na oralidade, vai, ão os tratados da escola
que essas religiões têm para [re] formu- literatura científica, o candomblé. Nina
Lessengue (do Bate-Folha) –, foi funda- é somente na década de 1980 que seus
mental para a popularização do candom- trabalhos receberam publicações comer-
blé para além dos meios impressos. João ciais ou, quando não publicados, divul-
Lessengue difundiu um modelo de can- gação tanto entre pesquisadores como
domblé “mais chique”, com ogãs trajan- entre integrantes das religiões, que fa-
do paletó e gravata e com um serviço de rão desses autores referências nos estu-
comida estranho à cozinha dos orixás dos de uma antropologia das religiões
(como hoje se vê nos terreiros cariocas afro-brasileiras tanto quanto seus mes-
e paulistas: arroz, feijão, maionese, fa- tres. Hubert Fichte, 27 Vivaldo da Costa
rofa, assados). Esses líderes religiosos, Lima, 28 Claude Lépine,29 Jean Ziegler,30
sobretudo o babalorixá Joãozinho da Beatriz Góis Dantas,31 Márcio Goldman, 32
Goméia, também contribuiriam para Rita Segato, 33 Ordep Serra,34 José Jorge
promover a divulgação e a difusão do can- de Carvalho,35 José Flávio Pessoa de Bar-
domblé na mídia brasileira e internacional. ros, 3 6 Maria Lina Leão Teixeira,3 7 Patrí-
c i a B i r m a n , 3 8 Raul Lody, 3 9 Reginaldo
Mas é, sem dúvida, com a publicação, P r a n d i , 40 Júlio Braga, 4 1 Monique
por Pierre Verger, do livro Orixás : deu- Augras, 42
Vagner Gonçalves da Silva,4 3
ses iorubás na África e no Novo Mundo, Sérgio Ferreti, 44 Waldenir Araújo,45 Ma-
em 1981, 24 que a bibliografia sobre reli- ria do Carmo Brandão, 46 Mariza Soares,47
giões afro-brasileiras tomará impulso. Maria Amália Barreto,48 Ismael Giroto,49
Desde a década de 1970, um novo per- Stefania Capone, 50 entre outros, compo-
curso na produção literária científica rão vasta bibliografia sobre as religiões
sobre o universo religioso afro-brasilei- afro-brasileiras, dando o fôlego necessá-
ro, influenciado pela antropologia e pelo rio para que a literatura acerca dessas
estruturalismo franceses, vinha tomando religiões não se restringisse à fala de fora
tônica. Assim como Ver ger, que desde a para dentro, mas também à produção
década de 1950 produzia ensaios sobre dos próprios integrantes dos terreiros;
as relações entre for mas religiosas na nesse sentido, de dentro para fora, po-
África e no Brasil, muitos desses auto- rém, ainda assim, legitimada pela auto-
res começaram os seus estudos sobre as ridade acadêmica, através de uma peque-
religiões de origem africana no Brasil em na introdução, apresentação, resenha ou
tempo bastante anterior, no mais das qualquer outra sorte de texto.51 Nesse
vezes, através de uma aproximação (pes- caso, merece destaque a publicação dos
soal, profissional, acadêmica ou intelec- livros e artigos dos babalorixás e
tual) com autores tidos como referênci- ialorixás Stella de Azevedo, Beata de
as nos estudos das religiões afro-brasi- Yemonjá, Sandra Epega, Manuel Papai,
leiras. Esse é o caso de Juana Elbein dos Euclides Ferreira, Mestre Didi e do oluô
Santos 25 e Giselle Cossard Binon. 26 Mas (consultor do oráculo) Agenor Miranda. 52
Uma das imagens registradas por José Medeiros para a polêmica matéria publicada pela revista
O Cruzeiro. José Medeiros, Candomblé, Empresa Gráfica O Cruzeiro, Rio de Janeiro, 1957.
O primeiro livro sobre a umbanda data riódicos sobre a umbanda. Foram tantas
Artes e Ofícios, do Rio de Janeiro, sua declínio. O sucesso obtido com a publi-
jor nalísticas que havia iniciado em 1917. decretaria o declínio total da venda de
década de 1930, foi somente na de 1940 nesse momento, o candomblé como re-
Olinto 56 e Zora Seljan,57 dos artistas plás- mente o candomblé e a umbanda cario-
ticos Carybé, Mestre Didi e Rubem cas, data de 1946. Umbanda sagrada e
Valentim, e do fotógrafo Mário Cravo divina , de Paulo Gomes de Oliveira, vei-
Neto. culada pela Rádio Guanabara, no Rio de
Janeiro, era, na verdade, uma emissão
Mais recentemente, surgiram muitas pro-
destinada aos adeptos do kardecismo.
duções em impresso sobre o universo do
Por isso, o candomblé e a umbanda seri-
candomblé. Entre estas, os tablóides:
am modestamente tratados em meio aos
Orumilá, Orixás Africanos, Painel Cultu-
temas de interesse do programa. Em
ral . Mais que informativos sobre mode-
1950, na mesma emissora, surge o pro-
los religiosos, configuraram-se como in-
grama de J. B. de Carvalho, sob o título
formativos sobre eventos e acontecimen-
de Ronda da mata . Carvalho dirigirá um
tos religiosos e sociais relacionados à
programa radiofônico sobre MPB. Sendo
vida dos terreiros: festas, obrigações...
adepto da umbanda, infiltra na progra-
Além, é claro, do enor me espaço desti-
mação músicas e cânticos das religiões
nado à publicidade de artigos e serviços
afro-brasileiras, obtendo, já naquela oca-
religiosos. Por isso, foram vendidos e
sião, grande sucesso de audiência.
distribuídos tanto em bancas de jornais
como em casas de artigos religiosos. Átila Nunes criará por volta de 1948 uma
outra emissão radiofônica que, mesmo
N AS ONDAS DO RÁDIO
não sendo especificamente uma emissão
E
m 1937, à época do II Congres- de umbanda (era um rádio-baile), inse-
so Afro-Brasileiro, a Rádio PRF8, ria, vez por outra, uma cantiga de
de Salvador, realizou uma trans- umbanda acompanhada de cavaquinho
missão radiofônica, especialmente enco- e pandeiro, num momento em que ain-
mendada ao babalorixá Joãozinho da da não existiam discos de umbanda. É
Goméia, que, acompanhado de um gru- somente em 1952, com o programa Me-
po de filhas-de-santo, cantou, ao vivo, lodias de terreiro , que Átila Nunes criará
músicas religiosas dos terreiros. A trans- sua emissão radiofônica especialmente
missão alcançou grande sucesso e trou- dedicada à umbanda.
xe à tona o debate sobre a
O primeiro programa sobre candomblé
dessacralização dos cânticos sagrados –
veiculado por uma emissora de radiodi-
mal sabendo, seus interlocutores, que
fusão chamou-se A hora do candomblé ,
anos mais tarde esses mesmos cânticos
de Roiosan, filho do renomado
seriam registrados em discos em vinil e,
babalorixá Tata Fomotinho, na Rádio
tempo depois, em compact disc (CD).
Metropolitana do Rio de Janeiro, já em
A primeira emissão radiofônica tratando 1968. Esse programa veiculava mais can-
as religiões afro-brasileiras, especifica- tigas (pontos e toques) que propriamen-
te infor mações. Em 1970, José Beniste, ência do programa toma impulso. A po-
na Rádio Rio de Janeiro, inaugurou o lêmica em torno da sucessão do
programa Umbanda no seu lar . Propunha- babalorixá foi pauta da programação, o
se a quebrar a regra de veicular apenas que lhe deu uma audiência fenomenal.
pontos e cantigas e, assim, inaugurou um A inclusão de debates com babalorixás,
projeto de divulgação cultural sobre a ialorixás e personalidades do universo
religião através do rádio. Ocupando a religioso também foi importante fator
programação de uma rádio kardecista, para o sucesso do programa. Depois, em
Beniste não pôde utilizar a nomenclatu- 1973, a cargo do Programa cultural afro-
ra candomblé no título de seu programa. brasileiro, Beniste transfere-se, sucessi-
Nessa emissora, o programa sobreviveu vamente, para a Rádio Roquette Pinto,
por 16 anos. Com a morte do babalorixá Rádio Rio de Janeiro, Rádio Solimões e
Joãozinho da Goméia, em 1971, a audi- Rádio Tropical, onde permanece até hoje
Cartaz de divulgação da comemoração pelos 10 anos de um dos muitos programas radiofônicos sobre
candomblé.
com o mesmo programa. José Ribeiro candomblé carioca perder o seu mais
também inaugurará várias emissões controverso programa de rádio.
radiofônicas, que, contudo, terão vida
A compra de emissoras brasileiras de
curta, devido ao alto custo da permanên-
radiodifusão por grupos evangélicos,
cia da emissão e à baixa procura de
também colaboraria para o atual
anunciantes. Entretanto, sua ativa parti-
insucesso dos programas de rádio sobre
cipação em muitos programas
religiões afro-brasileiras.
radiofônicos, assim como em emissões
televisivas, o tor nará um dos mais con-
S OM , GRAVANDO : IMAGEM E SOM DO
ceituados “candomblecistas” nas déca-
CANDOMBLÉ NO CINEMA , NA TV E NA
das de 1960 e 1970.
FONOGRAFIA
N
Em 1973, os babalorixás Guilher me
o cinema, as primeiras cita-
d’Ogum e Marcelo d’Oxossi criariam uma
ções às religiões afro-brasilei-
nova emissão radiofônica sobre o culto
ras, como tema central, item
dos orixás. Por dentro do candomblé ,
de assunto mais geral e abrangente ou
iniciado na Rádio de Janeiro, seguiu para
mesmo como cenário, foram verificadas
a Rádio Metropolitana e depois para a
a partir da década de 1940, por meio das
Rádio Bandeirantes. Anos mais tarde (na
produções da Atlântida carioca na bus-
década de 1980) transfor mou-se em
ca por temas e assuntos brasileiros. Sam-
emissão televisiva veiculada pela TV
ba em Berlim , 58 Berlim na batucada, 5 9
Record, mas não chegou a comemorar o
O cortiço , 60 Amei um bicheiro , 61 Terra
primeiro aniversário. Além dos muitos
violenta 62 (inspirada em obra de Jorge
festivais de cantigas de umbanda e das
Amado), Estrela da manhã 63 (com rotei-
premiações de radialistas e personalida-
ro de Jorge Amado) são produções que
des do candomblé, livros também seri-
podem ser citadas como instrumentos
am lançados pelos babalorixás radialis-
para a elevação do imaginário negro bra-
tas (entre esses, Elebó e Iansã do Balé).
sileiro pela produção cinematográfica na-
Em 1974, o babalorixá Luís de Jagun cional. Claro está que desse imaginário
criou um programa radiofônico, O des- fazia parte a exaltação às religiões afro-
pertar do candomblé, veiculado pela brasileiras e ao negro brasileiro como
Rádio Tamoio do Rio de Janeiro, que se sujeito místico. A inauguração de um mo-
centrava na vida ordinária dos terreiros, vimento cinematográfico que se propu-
nos acontecimentos sociais e festivida- nha a refletir o desenvolvimento indus-
des, com a popularíssima Xica Xoxa, que trial de São Paulo e equiparar-se às gran-
tratava as gafes e trivialidades do mun- de produtoras cinematográficas norte-
do do povo-do-santo. A morte do americanas, aos moldes dos estúdios de
babalorixá, em 1977, fez o universo do Hollywood, pela Companhia Vera Cruz,
fez produzir o longa Sinhá moça , 64 que negro , 75 As filhas de Yemanjá , 76 Feitiço
viria a se somar às produções cinemato- no Rio , 77 O prisioneiro do Rio , 78 Noite
gráficas que revelariam a história do ne- maldita , 79 O mistério da ilha de Vênus
gro no Brasil e, por extensão, a cultura e (que tem como título original Macumba
religiões afro-brasileiras. Na segunda love ), 80 Um dia a casa cai 81
e, finalmen-
metade da década de 1950, são produ- te, It’s all true , 82
o inacabado clássico
zidos Rio 40 graus, 65
Rio Zona Norte , 66
de Orson Welles, acusado de “abusar do
Ossos, amor e papagaio . 67
Mas é, sem uso de imagens de miséria nas favelas e
dúvida, a partir da década de 1960, com de rituais de macumba”, 83 Alô Amigos 84
a consolidação do Cinema Novo e o e Você já foi à Bahia? , 85 além, é claro,
surgimento do fenômeno cinematográfi- de toda a produção em que Car men
co baiano, caracterizado pela produção Miranda participa, com sua tradicional
de filmes que tomam a Bahia como ce- vestimenta de baiana – inspirada, em
nário (quer produzidos por baianos, quer parte, na indumentária dos terreiros.
produzidos por sulistas), que as religiões
Na onda de documentários, encontra-
afro-brasileiras tornar-se-ão tema central
mos: Ilê Aiyê : a casa da vida, produzido
nas produções cinematográficas brasilei-
por David Byrne, vocalista do grupo de
ras. O pagador de promessas , 68 inspira-
pop rock Talking Heads; O poder do
do em peça escrita por Dias Gomes e
machado de Xangô , realizado ainda na
ganhador da Palma de Ouro em Cannes,
década de 1970 por Pierre Verger e exi-
Bahia de todos os santos, 69 Barravento, 70
bido como produto do Globo Repórter da
que marca a estréia, em 1961, de
TV Globo; Yaô , de Geraldo Sar no; Espa-
Glauber Rocha no cinema brasileiro, A
ço sagrado, do mesmo diretor; Egungun ,
deusa negra , 71 O amuleto de Ogum , 72
de Carlos Brajsblat; Arte sacra negra I e
Tenda dos milagres , 73 Jubiabá, 74 retra-
II (Orixá Ninu Ilê e Iya Mi Agbá) , de Juana
tarão as religiões afro-brasileiras, suas
Elbein dos Santos; Bahia de todos os
práticas rituais, suas tradições e o estilo
santos , produzido pelo mesmo Globo
de vida do povo-do-santo, criando, nes-
Repórter.
se momento, a primeira quebra de
estranhamento da sociedade abrangente Na televisão, a presença do exu Seu Sete
Cartaz do filme O pagador de promessas, que tratava a sincretização entre o candomblé e o catolicismo,
baseado em peça teatral escrita ainda na década de 1950. Site pagadorpb.jpg.
Origem: http://www.adorocinemabrasileiro.com.br/filmes/pagador-de-promessas.
são, até mesmo religiosa ou mágica. babalorixá Ogum Jobi, foi uma dessas.
Após surgir como programa radiofônico,
Também no programa do Chacrinha, da
Reflexão foi, na década de 1990, trans-
TV Globo, assistiu-se a popularização da
formado em programa televisivo exibido
figura da ialorixá Menininha do Gantois,
pela TV Bandeirantes, sob a direção do
através da música Oração à Mãe Menini-
babalorixá Josemar d’Ogum. Até o ano
nha , composta por Dorival Caymmi e in-
de 2002, era exibido pela mesma emis-
terpretada por Gal Costa e Maria
sora sob o título de Alaketu .
Bethânia, e que, nas mãos de Chacrinha,
se transformará quase num jingle .
A simpatia de alguns autores de teleno-
Em 1976, surgiu o programa de Medeiros velas por essas religiões (criando perso-
do Vale, o primeiro programa sobre can- nagens freqüentadores de terreiros) tor-
domblé veiculado num canal de TV bra- na-se um fato corriqueiro, assumindo
sileiro. Nos caminhos da magia foi exibi- proporções aparentemente habituais, em
do pela TV Continental, com participa- um país com, ainda, inexpressivo núme-
ção de José Beniste e Átila Nunes. ro de pentecostais “eletrônicos”. Tais
fatos não somente revertiam-se num pro-
O Fantástico , revista semanal da TV Glo-
duto bastante lucrativo para seus produ-
bo, passaria a exibir, a partir da década
tores, pelo forte apelo popular junto à
de 1980, nos últimos programas de cada
classe média, como também tornavam-
ano, as previsões para o ano seguinte,
se convenientes para a criação de uma
sempre contando com a presença de um
identidade política impulsionada por um
babalorixá. Em 1985, a minissérie Ten-
fenômeno de reafricanização e
da dos milagres , da TV Globo, alcança
revalorização das manifestações cultu-
grande sucesso de público. Em 1990, é
rais afro-brasileiras, importante ponto
a vez de outra minissérie: Mãe-de-santo ,
para a validação do discurso do movi-
produzida pela TV Manchete.
mento negro organizado brasileiro. Em
O Domingão do Faustão, programa sema-
fevereiro de 2001, estréia, na TV Globo,
nal exibido pela mesma TV Globo, a par-
a telenovela Porto dos Milagres , 86 con-
tir da década de 1990, sempre teria,
tando a história de um pescador baiano,
entre vários consulentes que previam a
ogã num terreiro de um pequeno povoa-
vida de um artista ou cantor televisivo,
do litorâneo, e sua crença e fé em
a presença de um babalorixá ou ialorixá.
Iemanjá, a deusa do mar. Inspirada em
A partir dessa última década, surgem as duas obras literárias do escritor baiano
emissões televisivas que tratavam religi- Jorge Amado, Porto dos Milagres popu-
ões afro-brasileiras, apresentadas, cons- larizará a saudação à Iemanjá – Odô Iyá
tantemente, por babalorixás e ialorixás – através da canção Caminhos do mar ,
brasileiros. By Africa , apresentado pelo composta por Dorival Caymmi e interpre-
tada por Gal Costa. Porto dos Milagres gravação e lançamento das canções con-
promoverá, também, o debate em torno correntes em festivais de umbanda, as-
da participação de atores e personagens sim como a expressiva produção em vi-
negros na televisão brasileira, assim nil e fita cassete para comercialização em
como apresentará o acirrado veto das lojas de artigos religiosos (material para
religiões pentecostais tanto à atração umbanda e candomblé) também são for-
quanto a toda a programação da Rede tes contribuintes para a popularização
Globo de Televisão. 87
dessas religiões fora de seu círculo. Para
isso, contribuiria ainda: o LP gravado
A indústria fonográfica foi notadamente
pelo babalorixá Luís da Muriçoca; o LP
representada pela cantora Clara Nunes,
gravado por Joãozinho da Goméia; o LP
que imortalizou as religiões afro-brasilei-
gravado por Mãe Menininha, Ebômi Mar-
ras e suas divindades em seus discos e
garida e outras ebômis do Gantois; o LP
canções. Contudo, é a década de 1930
com a coletânea de cânticos do candom-
a demarcadora para o ingresso dos
blé organizada por Candeia; Odum Orím ,
cânticos religiosos afro-brasileiros em
CD do Grupo Ofá (composto por integran-
registros fonográficos. A Missão de Pes-
tes do Terreiro do Gantois) e produzido
quisas Folclóricas do Departamento de
por Caetano Veloso; o CD Ilê Omi Ojuarô
Cultura da Prefeitura de São Paulo, co-
(do Terreiro de Mãe Beata d’Iyemanjá);
ordenada por Mário de Andrade, em
o CD em fase de elaboração, produzido
1938, renderia uma série de gravações,
por integrantes do Ilê Omolu Oxum (ter-
que constituiriam as coleções
reiro dirigido por Mãe Meninazinha
etnográficas or ganizadas por Oneyda
d’Oxum); o CD gravado pelo ogan Luís
Alvarenga. João da Baiana e Sussu, em
Bambala (também em fase de produção);
1957, gravariam o long play (LP) Batu-
o CD Ipadê gravado por integrantes de
ques e pontos de macumba , com oito
um terreiro paulistano sob a direção do
músicas em homenagem às divindades
ogan Gilberto de Exu; o CD Candomblé
afro-brasileiras. Pixinguinha, no LP Gen-
de Angola: musique rituel afro-
te da antiga , gravado em 1970, em par-
brésilienne; o CD The yoruba-dahomean
ceira com Clementina de Jesus e o mes-
colllection: orishas across the ocean; o
mo João da Baiana, imortalizou a can-
CD Cânticos dos orixás de candomblé ,
ção Yaô . O cantor Rui Maurity, assim
do babalorixá Carlinhos d’Oxum.
como os cantores e compositores
Toquinho, Vinícius de Moraes e Gilberto A importância dos enredos de escolas de
Gil foram, também, importantes perso- samba, outro fator importante para a
nagens para a produção e popularização promoção e difusão das religiões de ori-
dos cânticos afro-brasileiros na produção gem africana no Brasil, merece destaque.
em vinil, ainda na década de 1970. A Mas foi, essencialmente, por meio da
A
aparição do candomblé na nar acesso à história dos terreiros e
grande rede mundial de com- das religiões a pesquisadores e inte-
putadores, a Internet, através ressados.
de suas comunidades virtuais ( sites , A democratização dos segredos e inter-
chats, 88 mailing lists89 sobre temas rela- ditos de culto ( orô e ewò ), através do
cionados ao universo religioso afro-bra- sistema ciberinformacional, não somen-
sileiro), propagou-se a partir da metade te contribuiu para a [re] elaboração das
da última década. Sob a égide da demo- redes de solidariedade e das relações de
cratização do conhecimento, proporcio- p o d e r, privilégio e prestígio,
nou uma real publicização e usurpação estruturantes do universo religioso afro-
dos segredos de culto, que já vinham brasileiro (o que pode ser visto como um
tomando vulto desde a invasão pelas in- problema). Mas proporcionou, também,
Imagem do “dia do nome”, uma das muitas divulgadas nos sites e nas mailing lists sobre candomblé na
Internet. O “dia do nome” é o ápice do complexo ritual de iniciação dos terreiros.
Foto: autor desconhecido.
Mãe Meninazinha d’Oxum é ialorixá de um dos tradicionais terreiros brasileiros que possuem sites na
Internet. Foto: Tiago Quiroga.
N O T A S
1. Cf. Muniz Sodré, A verdade seduzida , Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1983, p. 120.
3. Nina Rodrigues, L’animisme fetichiste des nègres de Bahia , Salvador, Reis & Comp., 1900.
4 Os africanos no Brasil teve a sua impressão iniciada em 1906, ano de falecimento do autor.
Mas foi somente em 1932 que sua primeira edição foi elaborada. Nina Rodrigues, Os africa-
nos no Brasil , São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1976.
5. Sílvio Romero, O evolucionismo e o positivismo no Brasil , Rio de Janeiro, Livraria Clássica
de Alvares & C., 1895.
6. Ver: Pierre Verger, Orixás : deuses iorubás na África e no Novo Mundo, Salvador, Corrupio,
1981; Nina Rodrigues, Os africanos no Brasil , op. cit.
7. Agradeço a valiosa contribuição do ogã do Ilê Axé Opô Afonjá, radialista, escritor e professor
José Beniste, que gentilmente me concedeu uma longa entrevista, em janeiro de 2002, além
de ter me revelado seu acervo sobre imprensa e religiões afro-brasileiras.
8. Cf. Mônica P. Velloso, As tradições populares na Belle Époque carioca , Rio de Janeiro, Funarte,
1988.
9. Cf. Nicolau Sevcenko, A revolta da vacina , São Paulo, Brasiliense, 1984, p. 69.
10. João do Rio (Paulo Barreto), As religiões no Rio, Rio de Janeiro, Editor Simões, 1951.
11. Cf. Nina Rodrigues, Os africanos no Brasil , op. cit., p. 239-250.
12. Arthur Ramos, As culturas negras no Novo Mundo , 4. ed., São Paulo, Companhia Editora
Nacional, 1979. A primeira edição data de 1934.
13. Manuel Querino, A raça africana e seus costumes, Salvador, Livraria Progresso, 1955.
14. Ruth Landes, The city of women , New York, Macmillan Company, 1947.
15. Donald Pierson, Negroes in Brazil : a study of race contact at Bahia, Chicago, University of
Chicago Press, 1942.
16. Edson Carneiro, Candomblés da Bahia , Salvador, Editora Museu do Estado da Bahia, 1948.
17. René Ribeiro, Religião e relações raciais , Rio de Janeiro, MEC/Departamento de Imprensa
Nacional, 1956.
18. Waldemar Valente, Sincretismo religioso afro-brasileiro , 3. ed., São Paulo, Companhia Edito-
ra Nacional, 1977.
19. Gilberto Freyre, Casa-grande e senzala , 18. ed., Rio de Janeiro, José Olympio, 1977.
20. Nunes Pereira, A casa das minas , 2. ed., Petrópolis, Vozes, 1979.
21. Melville J. Herskovits, Pesquisas etnológicas na Bahia, Afro-Ásia , n. 4-5, 1942.
22. Roger Bastide, O candomblé da Bahia , São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1978.
23. Para uma discussão sobre a mudança de tratamento dado a esse material, ver Fernando
Tacca, O feitiço abstrato, Cadernos da Pós-graduação , Campinas, Unicamp, Instituto de Ar-
tes, v. 3, n. 2, 1999.
24. Pierre Verger, op. cit.
25. O livro foi resultado da tese de doutorado em etnologia, apresentada pela autora em 1972,
na Sorbonne, onde foi aluna de Roger Bastide. Juana Elbein dos Santos, Os nagô e a morte,
Petrópolis, Vozes, 1988.
26. Giselle Cossard-Binon, além de pesquisadora, é, desde 1973, ialorixá (mãe-de-santo) no Rio
de Janeiro. Conclui em 1970 sua tese de doutorado na Sorbonne, intitulada Contribuition à
l’étude des candomblés au Brésil : la candomblé angola. Sobre a vida de Giselle, foi publica-
do, em 1998, Memoires de candomblé, de Michel Dion, Éditions L’Harmattan, Paris. O livro
foi editado no Brasil, em 2002, pela Pallas, do Rio de Janeiro. Giselle Cossard-Binon, A filha-
de-santo, in Carlos Eugênio M. Moura (org.), Olóòrìsà , São Paulo, Ágora, 1981.
27. Hubert Fichte, Etnopoesia : antropologia poética das religiões afro-americanas, São Paulo,
Brasiliense, 1987.
28. Vivaldo Costa Lima, A família-de-santo nos candomblés jeje-nagô da Bahia : um estudo de
relações intra-grupais, 1977, dissertação (mestrado em ciências humanas), Universidade Fe-
deral da Bahia, Salvador.
29. Claude Lépine, Contribuição ao estudo de classificação dos tipos psicológicos no candomblé
ketu de Salvador, 1978, tese (doutorado em antropologia social), Universidade de São Paulo,
São Paulo.
30. Jean Ziegler, Les vivants et les morts , Paris, Seuil, 1977.
31. Beatriz G. Dantas, Vovó nagô, papai branco : usos e abusos da África no Brasil, Rio de Janei-
ro, Graal, 1988.
32. Márcio Goldman, A possessão e a construção ritual da pessoa no candomblé, 1984, disserta-
ção (mestrado em antropologia social), Museu Nacional/UFRJ, Rio de Janeiro.
33. Rita L. Segato, Santos e daimones : o politeísmo afro-brasileiro e a tradição arquetipal, Brasília,
UNB, 1995.
34. Ordep Serra, Águas do rei , Petrópolis, Vozes, 1995.
35. José Jorge Carvalho, Nietzsche e xangô, in Meu sinal está no teu corpo, São Paulo, Edicon/
Edusp, 1989.
36. José Flávio P. Barros, O segredo das folhas , Rio de Janeiro, Pallas, 1993.
37. Maria Lina L. Teixeira, Transas de um povo-de-santo : identidades sexuais no candomblé,
1986, dissertação (mestrado em ciências sociais), Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Rio de Janeiro.
38. Patrícia Birman, Fazer estilo criando gênero , Rio de Janeiro, Relume Dumará e Editora UFRJ,
1995.
39. Raul Lody, Tem dendê, tem axé , Rio de Janeiro, Pallas, 1992.
40. Reginaldo Prandi, Os candomblés de São Paulo , São Paulo, USP/Hucitec, 1991.
41. Júlio Braga, O jogo dos búzios : um estudo da adivinhação no candomblé, São Paulo,
Brasiliense, 1988.
42. Monique Augras, O duplo e a metamorfose , Petrópolis, Vozes, 1983.
43. Vagner Gonçalves Silva, Orixás da metrópole , Petrópolis, Vozes, 1995.
44. Sérgio F. Ferreti, Querenbentan de zomadonu, São Luís, EDUFMA, 1986.
45. Waldenir Araújo, Parentesco religioso afro-brasileiro do Grande Recife , 1977, dissertação
(mestrado em antropologia social), Museu Nacional/UFRJ, Rio de Janeiro:
46. Maria do Carmo Brandão, Xangôs tradicionais e xangôs umbandizados do Recife , 1987, Tese
(doutorado em antropologia social), Universidade de São Paulo, São Paulo.
47. Mariza de C. Soares, O medo da vida e o medo da morte , 1990, dissertação (mestrado em
antropologia social), Museu Nacional/UFRJ, Rio de Janeiro.
48. Maria A. Barreto, A Casa Fanti-Ashanti em São Luís do Maranhão , 1987, tese (doutorado em
antropologia social), Museu Nacional/UFRJ, Rio de Janeiro.
49. Ismael Giroto, O candomblé do rei , 1980, dissertação (mestrado em antropologia social),
Universidade de São Paulo, São Paulo.
50. Stefania Capone, La quête de l’Afrique dans le candomblé, Paris, Karthala, 1999.
51. Aqui, abrimos mão das inúmeras e importantes coletâneas publicadas nessas mesmas déca-
das sobre o candomblé. As coletâneas organizadas por Carlos Eugênio M. Moura merecem
atenção: Olóòrisà , São Paulo, Ágora, 1981; Bandeira de alairá , São Paulo, Nobel, 1982; Meu
sinal está no teu corpo , São Paulo, Edicon/Edusp, 1989; etc. As publicações do ISER – Insti-
tuto de Estudos da Religião (Religião e Sociedade ; Cadernos do ISER ; Comunicações do ISER ),
do CEAO – Centro de Estudos Afro-Orientais ( Afro-Ásia ) e do CEAA – Centro de Estudos Afro-
Asiáticos, também merecem destaque.
52. Vale ressalvar que muitos desses autores são tanto pesquisadores como integrantes das reli-
giões afro-brasileiras – alguns mesmo ialorixás (mães-de-santo) e babalorixás (pais-de-san-
to). Sobre as relações e fronteiras estabelecidas entre os universos acadêmico e religioso,
ver: Vagner Gonçalves Silva, Reafricanização e sincretismo: interpretações acadêmicas e
experiências religiosas, in Faces da tradição afro-brasileira , Rio de Janeiro, CEAO/Pallas/
CNPq, 1999; o livro de Mãe Stella, Meu tempo é agora, editado pela Oduduwa, de São Paulo,
em 1993; o livro de Mãe Beata, Caroço de dendê , editado pela Pallas, do Rio de Janeiro, em
1997; o artigo de Mãe Sandra Medeiros Epega, A volta à África: na contramão do orixá , publi-
cado em Faces da tradição afro-brasileira , op. cit. Seu Manuel Papai, babalorixá do tradicio-
nal Sítio do Pai Adão, e Seu Euclides, babalorixá da Casa Fanti-Ashanti, em São Luís, também
publicaram artigos após o IV Congresso Afro-Brasileiro, ocorrido em 1994, em Recife. O oluô
Agenor Miranda Rocha publicou, em 1999, pela Editora Pallas, do Rio de Janeiro, o livro
Caminhos de odu – organizado pelo professor da USP e antropólogo Reginaldo Prandi, com
anotações por ele realizadas através de encontros com sua venerável ialorixá, Mãe Aninha
do Axé Opô Afonjá. Mestre Didi, alapini do Axé Opô Afonjá, chefe do terreiro Ilê Asipà e filho
biológico da respeitada Mãe Senhora, publicou, em 1962, seu História de um terreiro nagô
[São Paulo, Max Limonad, 2. ed., 1988].
53. Renato Ortiz, A morte branca do feiticeiro negro , Petrópolis, Vozes, 1977; Yvonne Maggie,
Guerra de orixá , Rio de Janeiro, Zahar, 1977; Diana Brown, Umbanda : politics of an urban
religious movement, New York, Columbia University Press, 1977; Liana Trindade, Exu : sím-
bolo e função, 1979, tese (doutorado em antropologia social), Universidade de São Paulo,
São Paulo; são bons exemplos.
54. Quase todas as suas obras retrataram situações do universo religioso afro-baiano. Contudo,
é Tenda dos milagres o seu maior tratado sobre o candomblé da Bahia e seus líderes religio-
sos [São Paulo, Livraria Matins Editora, 1969].
55. Odorico Tavares, Bahia : imagens da terra e do povo, Rio de Janeiro, José Olympio, 1951.
56. Antônio Olinto, A casa da água , Rio de Janeiro, Bloch Editores, 1969.
57. Zora Seljan, História de Oxalá : festa do Bonfim, Rio de Janeiro, Edições de Ouro, 1964.
58. Dir.: Luiz de Barros. Brasil. 1943.
59. Dir.: Luiz de Barros. Brasil. 1944.
60. Dir.: Luiz de Barros. Brasil. 1945.
61. Dir.: Jorge Lleli e Paulo Wanderley. Brasil. 1952.
62. Dir.: Eddie Bernoudy. Brasil. 1948.
63. Dir.: Jonald de Oliveira. Brasil. 1938.
64. Dir.: Tonn Payne. Brasil. 1953.
65. Dir.: Nelson Pereira dos Santos. Brasil. 1955.
66. Dir.: Nelson Pereira dos Santos. Brasil. 1957.
67. Dir.: Carlos Barros e Cesar Junior. Brasil. 1957.
68. Dir.: Anselmo Duarte. Brasil. 1962.
69. Dir.: Trigueirinho Neto. Brasil. 1961.
70. Dir.: Glauber Rocha. Brasil. 1961.
71. Dir.: Ola Balogun. Brasil. 1977.
72. Dir.: Nelson Pereira dos Santos. Brasil. 1974.
73. Dir.: Nelson Pereira dos Santos. Brasil. 1979.
74. Dir.: Nelson Pereira dos Santos. Brasil. 1987.
75. Dir.: Marcel Camus. França. 1958.
76. Dir.: Pia Tikka. Finlândia. 1996.
77. Dir.: Stanley Donen. EUA. 1984.
78. Dir.: Lech Majewski. 1988.
79. Dir.: Humberto Lenzi. Itália. 1984.
80. Dir.: Douglas Fowley. EUA. 1960.
81. Dir.: Richard Benjamin. EUA. 1986.
82. Dir.: Orson Welles. EUA. 1942.
83. Sobre a construção da brasilidade no cinema estrangeiro, ver: Tunico Amâncio, O Brasil dos
gringos : imagens no cinema, Niterói, Intertexto, 2000.
Anna Paola P
P.. Baptista
Doutora em História Social pela UFRJ.
Curadora dos Museus Castro Maya e Chácara do Céu.
A Crise da Civilização
e o Cristo Terrestre
Iconografia cristã e arte moderna
A
morte de uma concepção cen- conseguinte, os homens não dobrariam
tenária da arte como a expres- mais o joelho diante das imagens religi-
são finita do Absoluto arras- osas. 1 Em 1962, o arcebispo de Colô-
taria a arte sacra a uma profunda ten- nia, dom Joseph Frings, justificava as
são. Hegel antecipara o dilema da arte experiências alemãs de igrejas
religiosa moder na profetizando um mun- construídas com uma gramática moder-
do secularizado no qual a religião não na dizendo: “se pode orar também (grifo
mais ocuparia o centro da vida e, por meu) nessas igrejas”. 2 Sintomaticamen-
te, as igrejas moder nas não podiam ser claramente demarcado que seria o de
deixadas sem aval, precisando, ao con- criação de uma ambiência sagrada. Uma
trário, de abono, defesa, explicação. das possibilidades de justificativa para
Tentando convencer que a profecia de uma reaproximação da Igreja com os
Hegel não havia, afinal, se concretizado, artistas é dada por meio da construção
o arcebispo defendia a capacidade das de uma relação de analogia entre o ato
igrejas modernas de serem sacras ain- criador artístico e o divino, e de um elo
da, de conseguirem reunir os valores do entre a experiência estética e a Revela-
eter no e do moder no. ção. Criam-se, assim, condições – ainda
que temporárias – para uma nova parce-
Na primeira metade do século XX, o enor-
ria de artistas modernos com a Igreja,
me esforço de soerguimento da arte sa-
mas, concomitantemente, padrões
cra, levado a cabo sobretudo por teólo-
iconográficos tradicionais experimentam
gos e padres dominicanos franceses que
profundas alterações.
E
veiculavam suas idéias na revista L´Art
Sacré , procurou equacionar os cânones xcluindo-se uma arte litúrgica
da tradição com as novas exigências, passadista e pasteurizada, as
tendo o humanismo como um pano de opções restantes deixavam
fundo inspirador, tanto para as conside- aberta uma janela para manifestações do
rações teóricas a respeito da arte cristã tipo representado por uma arte de cu-
moder na, quanto para suas manifesta- nho predominantemente abstrato, em
ções artísticas concretas. que a própria espiritualidade pessoal do
artista se tornava soberana, ou para as
Na verdade, o processo de secularização
obras em que o conteúdo religioso pro-
e a mudança radical na relação dos ho-
cura uma ponte com as preocupações do
mens com os valores centrais da doutri-
tempo presente. Nelas estão contidas as
na católica, fundada na Encar nação e na
duas principais tendências da arte religi-
Eucaristia, não poderiam deixar de afe-
osa do período.
tar a estética religiosa, ao for mar um
quadro de transfor mações para o qual Colocando em segundo plano a função
os dramas da Guerra Mundial e do pós- didática da arte sacra, o padre Jean-Marie
guerra só viriam contribuir ainda mais. Alan Couturier – líder de um grupo de
Com a moder nidade alteram-se também renovação da arte sacra, diretor da L´Art
as definições acerca das funções da arte Sacré e responsável pelo surgimento de
religiosa, pelo menos para certas parce- várias igrejas modernas na Europa – se-
las da intelectualidade católica, sendo a guia ao encontro de novas possibilida-
função clássica, didática (“Bíblia dos des que incorporavam, dentro dos tem-
iletrados”), deslocada para um segundo plos, os resultados das pesquisas própri-
plano, em prol de um objetivo menos as ao movimento da arte moder na. Es-
sas idéias ficam claras em seu julgamen- tamente. Isso significava, para ele, uma
to da obra de Matisse, em Vence: “Sua concepção extremada dos paralelos en-
preocupação era a criação de um espa- tre a criação divina e a artística. Se bem
ço religioso [...] tomar um espaço fecha- que o artista partilhava com Deus os atri-
do de proporções bastante reduzidas e butos da criação, ele não era senão um
dar-lhe, unicamente pelo jogo das cores criador em segundo grau. A arte não po-
e das linhas , dimensões infinitas”. (gri-
3
deria existir em estado puro, livre de
fo meu) todo apego ao real, pois isso seria usur-
par para ela a condição divina. 5
Do outro lado da arena, o cardeal Celso
Costantini, autor de diversos artigos de Em seu trabalho Intuição criadora na arte
denúncia contra os excessos da arte e na poesia , Maritain traça o percurso do
moder na, denunciava os perigos do advento do Eu na arte: “A arte ocidental
exercício no interior dos templos católi- progressivamente deu ênfase ao Eu do
cos de uma arte inteiramente voltada artista e nas últimas fases mergulhou
para os jogos for mais. Ele temia, acima cada vez mais profundamente no univer-
de tudo, a abertura proporcionada pela so individual e incomunicável da subje-
corrente de “avançados” à arte abstrata. tividade criadora”. 6 Segundo o autor, é
Se na arte tout court do início da década somente com o advento do cristianismo,
de 1950 já era grande o embate entre a ou seja, a humanização da pessoa divi-
arte figurativa e a não-figurativa, na arte na e a divinização do homem por meio
sacra a chegada da abstração podia sig- da encarnação, que a arte ocidental pas-
nificar verdadeira comoção: “Hoje pare- sou a comportar a subjetividade criado-
ce que nossos artistas não têm nada a ra do artista. Depois do fim da Idade
dizer, fazendo apenas exercícios de rit- Média, o sentido da pessoa e da subjeti-
mos e cores; alguns pretendem inclusi- vidade humana entraria num processo de
ve substituir a representação dos santos interiorização cada vez mais acentuado,
com a chamada arte não-figurativa, feita enfatizando-se sobremaneira o caráter
só de combinações de linhas e cores. sublime da vocação do artista que im-
Esta modernidade é aberração”. 4 prime em tudo o que cria a marca de sua
individualidade:
Mesmo comentadores entusiasmados
com a arte moder na, não ficaram indife- Depois do nascimento de Cristo, a arte
atingindo o próprio ato criador. O senti- ções originais e alocar novas funções à
do interior das coisas passa a ser enig- arte religiosa, calcaram-se muitas vezes
daram em sua concepção da abstração, qualquer outra [...] As pessoas que cho-
não como mero recurso for mal, mas ram diante de meus quadros estão pas-
como uma progressão revolucionária na sando pela mesma experiência religiosa
direção de uma linguagem mais essenci- que eu tive quando os pintei. E se você,
al. Por meio desta, princípios e forças como disse, é tocado apenas pelas suas
que governam inter na e externamente o relações de cor, então você não enten-
cosmos, poderiam ser, pela primeira vez, deu nada”.12
diretamente expressados.11 Agora, o que
A Capela Rothko segue e aprimora a for-
é solicitado ao pintor é a experiência
te tendência de integração entre a arqui-
direta e a criação de formas, e não mais
tetura e pintura no século XX. As pintu-
o simples ilustrar de um evento.
ras, algumas monocromáticas, em tons
sombrios de violeta, marrom e preto,
Não deixa de ser intrigante a constatação
foram concebidas de forma inseparável
de uma profunda reemergência do espi-
de sua localização espacial. Como focos
ritual no mundo traumatizado do pós-
para meditação, as pinturas abstratas
guerra, trazendo uma nova dimensão
cromáticas de Rothko são definidas como
religiosa para a arte moder na, ela mes-
“anteparos de m i s t é r i o ” . 13 John
ma tão alheia à religião tradicional ou
Dillenberger destaca a capacidade de
mesmo, em certas instâncias, antagonis-
Rothko em expressar profundidades não
ta da religião organizada. A questão da
mais transmitidas pelos objetos reconhe-
espiritualidade, presente na maioria das
cíveis tanto da arte quanto da religião, o
primeiras teorias de arte abstrata, volta-
que explicaria a capacidade daquelas
ria a se manifestar com toda pujança no
imagens de induzir à meditação, visto
expressionismo abstrato americano após
que possuiriam o poder de alcançar o
a Segunda Guerra Mundial, ainda que
que símbolos tradicionais já não o fa-
sem as características de ocultismo que
zem.14
haviam assinalado as manifestações do
início do século. Nas obras de Mark É o mesmo ponto de vista de Mircea
Rothko, principalmente, o caminho para Eliade quando afirma que a “morte de
a abstração vem à tona marcado pela Deus” significa antes de tudo a impossi-
necessidade de imagens transcendentes, bilidade de expressão da experiência
culminando na sua última encomenda religiosa na linguagem religiosa tradicio-
nos anos 1960: a decoração da Capela nal. Segundo ele, o homem moderno te-
Rothko, na Universidade Rice, em ria se esquecido da religião apesar do
Houston, Texas. Tempos antes, o artista sagrado sobreviver. Na arte, o sagrado
havia respondido em carta a um amigo teria se camuflado em formas, propósi-
que comentara suas obras: “Não me in- tos e significados aparentemente profa-
teressam as relações de cor, forma ou nos. 15
A questão que ficava em aberto era a de doutrina católica está fundada no dogma
uma certa confusão entre os ter mos es- da encarnação como fenômeno históri-
piritual e religioso, não necessariamen- co. A encar nação define a relação da
te intercambiáveis no mundo moder no. segunda pessoa da Trindade com a or-
Na arte sacra, a aceitação radical dos dem criada, o mundo natural, e essa re-
pressupostos moder nos acabava dando lação será de parentesco do homem com
espaço a obras que escapavam do religi- Deus. A humanidade do Cristo seria, por
oso stricto sensu , contaminadas por um conseguinte, testemunha de que os gran-
espiritualismo difuso tal como na Cape- des exemplares de humanidade são ex-
la Rothko. Ao se afastar em demasia da pressões de Deus e aproximam os ho-
materialidade advinda da encarnação, a mens da divindade. “O trabalho do artis-
arte sacra perde de vista o que distingue ta nasce da sua comunhão com a ordem
o catolicismo. De fato, muito poucos clé- natural [...] Na ordem de sua arte ele
rigos ou fiéis seriam induzidos a associ- compreende a glória e o mistério da or-
ar, por exemplo, as imagens abstratas da dem criada”.16
A
Capela Rothko ao sacrifício do Cristo na o traçar um paralelo direto
cruz, que é a função litúrgica da imagem entre os atos criadores artís-
n o a l t a r. O e n o r m e p o t e n c i a l d e tico e divino, a Igreja assen-
espiritualidade presente na pintura mo- te na inevitavelmente crescente auto-
der na, principalmente em deter minadas nomia da esfera artística. Frei Bruno
correntes da abstração, não poderia ser Palma O. P. sintetiza desta forma algumas
associado direta e absolutamente com das idéias gestadas naquele período:
religiosidade.
O que faz religiosa uma obra de arte
Um caminho alter nativo a esse foi tam- é, antes de tudo, ser bela e realizada
bém trilhado levando a arte sacra mo- como obra de arte, ser de tal modo
der na a experimentar um contato mais verdadeira e densa [...] que nos comu-
próximo com a dimensão social, em de- nicaria e seria, indubitavelmente, a seu
trimento do caráter místico. modo – fosse ou não religioso o artista
consciência humana do mundo dos sen- lhar no seu mistério, ainda que obscu-
radical : é religiosa toda obra que, pela na Salvação foi um exercício constante
sua densidade e força, nos fala do ho- nas formulações de teólogos, filósofos e
mem, dos seus dilemas, sonhos e inqui- historiadores do período. A máxima de
etações. É lá, nessa profundeza, que se Couturier – “as causas da decadência da
pode encontrar o religioso , porque se arte sacra não devem ser procuradas na
encontra o humano”. 18
(grifos do autor) ordem artística e sim na religiosa” –
que o teor das obras sofresse variações parte da intelectualidade católica que
humanização não poderia se fazer sem uma crise de valores da própria civiliza-
Em 1958, monsenhor Robert Dwyer re- tória humana se desenrola sem a inter-
dominara a cristandade por tantos sécu- passou a idade moderna teria produzido
los. Ele concluía que a catedral não mais um homem isolado em si mesmo, que
a cidade porque a religião deixara de ser dava do cristianismo apenas uma con-
mento religioso e nas crenças humanas seus sistemas, uma dignidade e uma
sofridas”. 24
sem instrução prévia.26
A Igreja afir mava que o verdadeiro e ge- Maritain foi um grande defensor da liber-
nuíno conceito da liturgia não excluía o dade da arte e do artista, e não deixou
Cristo histórico: de enfatizar a absoluta dependência da
arte sacra à sabedoria teológica, abali-
Alguns, [...] chegam a ponto de querer
zada pela Igreja Católica. Segundo ele,
tirar das igrejas as imagens do Divino
mesmo obras inspiradas por um legíti-
Redentor que sofre na cruz. Mas essas
mo sentimento religioso por vezes não
falsas opiniões são de todo contrárias
poderiam ter assegurado seu lugar no
à sagrada doutrina tradicional [...] E
interior dos templos em virtude de não
assim como suas acerbas dores cons-
obedecerem às convenções próprias da
tituem o mistério principal de que pro-
arte sacra. Um exemplo seriam as obras
vém a nossa salvação , é conforme as
do pintor flamengo Servaes, condenadas
exigências da fé católica colocar isto
pelo Santo Ofício em 1921. O autor, um
na sua máxima luz, porque isso é como
homem “cristão e talentoso”, estaria tra-
o centro do culto divino, sendo o Sa-
indo certas verdades teológicas ao con-
crifício Eucarístico a sua cotidiana re-
ceber o Caminho da Cruz como vertigem
presentação e renovação, e estando
de dor. Sua grande falha era esquecer
todos os Sacramentos unidos com
que é a dor de uma pessoa divina. 27
estreitíssimo vínculo à Cruz. 25 (grifo
É
física externa que sugerem o triunfo
no motivo da Crucificação que
sobre a morte são importantes notas
esse ideal deveria realizar-se
de verdadeira representação. 32
mais plenamente. Em geral,
porém, as figuras da Crucificação tendem Entretanto, a história da arte cristã já
a sofrer as marcas de um distanciamento demonstrou as dificuldades na obtenção
da exposição explícita das chagas, ou de desse ideal de equilíbrio. Nas artes, a
uma radicalização do paradigma de ago- representação da figura do Cristo cruci-
nia estabelecido por Matthias Grünewald ficado se faria esperar por cinco sécu-
no retábulo Isenheim do século XVI; em los. Ainda assim, em suas primeiras apa-
ambos os casos, o que está sendo cele- rições, mostrava um Jesus vivo, de olhos
brado é o Cristo terrestre. Joseph Pichard bem abertos. Quando finalmente sua
constatou a raridade com que o Cristo morte passou a ser representada, isso
triunfante foi abordado na época moder- era feito, geralmente, de uma forma plá-
na e concluiu: “Encontra-se plenamente cida, sem sinais aparentes de sofrimen-
estabelecido que o tema do Cristo tortu- to. A partir da Idade Média tor nou-se
rado e agonizante assim como o da Mãe mais comum a exibição do sangue ver-
sofredora sobrevivem nos temas atuais, tendo das feridas de Cristo. No
símbolos permanentes e exemplares do Renascimento, conviveram tendências
destino do homem”. 30 diversas que podem, de certa maneira,
ser associadas a tradições artísticas di-
É fato, porém, que uma evocação do
ferentes. Enquanto na Itália predomina-
mistério da cruz que não se reduza à re-
va um tipo de Cristo mais sereno, a es-
presentação de um suplício espantoso
cola flamenga tendia a enfatizar o sofri-
evocativo dos píncaros do sofrimento
mento torturante.
humano nem a uma referência abstrata
da vitória do amor de Deus pelos homens Tais modelos poderiam ser
não é tarefa simples. 31
A Igreja postula exemplificados em suas formas mais ra-
parâmetros de representação do moti- dicais por dois artistas do século XVI:
vo calcados nessa solução de compro- Miguelangelo e Grünewald. Duas obras
misso. desses autores, ambas da década de
Matthias Grünewald, retábulo Isenheim, óleo s/madeira, 1515, (Musée d´Unterlinden, Colmar).
Salvador Dalí, Crucificação, óleo s/tela, 1954, (Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque).
José Clemente Orozco, American civilization – modern migration of the Spirit , fresco, 1932,
(Baker Library, Darthmouth College, New Hampshire).
N O T A S
1. Nas Preleções sobre a estética , apud Edgar Wind, A eloqüência dos símbolos , São Paulo,
Edusp, 1997, p. 168. Ver também Gerard Bras, Hegel e a arte : uma apresentação à estética,
Rio de Janeiro, Zahar, 1990.
2. Dom Joseph Frings, Experiências pastorais e as novas igrejas de Colônia, in Juan Plazaola, El
arte sacro actual : estúdio, panorama, documentos, Madri, La Editorial Católica, 1965, p.
605-608. Todas as fontes provenientes deste livro são citadas com traduções minhas.
3. Apud Pie-Raymond Régamey, Arte sacra contemporânea , São Paulo, Herder, 1965, p. 285.
4. Celso Costantini, Modernidade e tradição, in Juan Plazaola, op. cit., p. 601-605.
5. J. Guimarães Vieira, Maritain e o problema da arte, A Ordem , Rio de Janeiro, v. 26, n. 35,
jan./jun. 1946, p. 520-528.
6. Jacques Maritain, A intuição criadora na arte e na poesia , Belo Horizonte, Laboratório de
Estética, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, UFMG, 1982.
7. idem.
8. idem.
9. Dom Paolo Marella, A arte sacra nas normas diretivas da Santa Sé, in Juan Plazaola, op. cit.,
p. 657-667.
10. Gabrielle Langdon, A spiritual space: Matisse´s chapel of the Dominicans at Vence, Zeitschriff
für Kunstgeschichte , v. 51, n. 4, 1988, p. 557-558.
11. Ver Mike King, Concerning the spiritual in twentieth-century art & science, Leonardo, v. 31,
n. 1, 1998; Sheldon Nodelman, The Rothko Chapel paintings : origins, structure, meaning,
Austin, University of Texas Press, 1997, p. 310.
12. Apud Henk van Os, Sienese altarpieces 1215-1460 : form, content, function, volume II: 1344-
1460, Groningen, Egbert Forsten, 1990, p. 27. Tradução minha.
13. Geraldo de Souza Dias Filho, O expressionismo abstrato: a pintura norte-americana nos anos
40 e 50, in Annateresa Fabris (org.), Arte e política : algumas possibilidades de leitura, São
Paulo; Belo Horizonte, Fapesp; C/ARTE, 1998, p. 107-161.
14. John Dillenberger, Artists and church commissions: Rubin´s The Church at Assy revisited, in
Diane Apostolos-Cappadona (ed.), Art, creativity and the sacred : an anthology in religious
and art, New York, Continuum, 1995, p. 204.
15. Mircea Eliade, The sacred and the modern artist, in Diane Apostolos-Cappadona (ed.), op.
cit., p. 179-181.
16. John W. Dixon Jr., The sensibility of the Church and the sensibility of the artist, in Finley
Eversole (ed.), Christian faith and the contemporary arts , New York, Abingdon, 1957, p. 87.
Tradução minha.
17. Alceu Amoroso Lima e Frei Bruno Palma, Arte sacra Portinari , Rio de Janeiro, Alumbramento,
1982, p. 91.
18. idem.
19. Mons. Robert J. Dwyer, Arte e arquitetura para a Igreja de nossos dias, in Juan Plazaola, op.
cit., p. 636-643.
20. Jacques Maritain, A crise da civilização, A Ordem , Rio de Janeiro, v. 23, n. 29, jan./jun.
1943, p. 95-114.
21. ibidem, p. 97.
22. ibidem, p. 99.
23. Edgar Wind, op. cit., p. 174.
24. Pio XII, Mediator Dei : encíclica sobre a sagrada liturgia, A Ordem , Rio de Janeiro, v. 28, n.
39, jan./jun. 1948.
25. idem.
26. Mons. Joseph J. Annabring, Diretrizes diocesanas para a construção de igrejas, in Juan
Plazaola, op. cit., p. 686-693.
27. Jacques Maritain, Art et scolastique , Paris, Louis Rouart et Fils, 1935, p. 175-177.
28. Juan Plazaola, op. cit., p. 15-17.
29. ibidem, p. 18.
30. Joseph Pichard, L´art sacré moderne , Paris; Grenoble, B. Arthaud, 1953, p. 126.
31. Comissão Nacional de Ensino Religioso em França / Comissão de Meios Audiovisuais, Diretri-
zes referentes à imaginária religiosa destinada às crianças, in Juan Plazaola, op. cit., p. 577-
581.
32. Mons. Joseph J. Annabring, op. cit.
33. Richard Egenter, O mau gosto e a piedade cristã , Lisboa, Editorial Áster, 1960, p. 194 e 232.
34. Ver F. Rouault Peixoto Filho e Luiz Orlando Carneiro, Georges Rouault: o pintor do Miserere ,
A Ordem , Rio de Janeiro, v. 38, n. 60, jul./dez. 1958, p. 103-106 e 219-222.
35. Jacques Maritain, Georges Rouault , New York, Harry N. Abrams & Pocket Books, 1954.
36. Edgar Wind, op. cit., p. 174.
37. Ver Anna Paola P. Baptista, Paraíso e inferno na terra: ecos da II Guerra Mundial na pintura
religiosa brasileira, 1940-50, História Social , Campinas, n. 7, 2000, p. 49-65.
38. Mons. Jean-Jullien Weber, Diretório de arte sacra para a diocese de Estrasburgo, in Juan
Plazaola, op. cit., p. 702-714.
39. Pie-Raymond Régamey, op. cit., p. 222.
40. Apud Crucifixion , London, Phaidon, 2000, p. 228.
Após a proibição do judaísmo no reino em After the prohibition of jewish in the kingdon
1497, e a criação da Inquisição portuguesa during 1497 and the creation of the Inquisition
em 1536, muitos cristãos-novos optaram in Portugal in 1536, a lot of new-christians
por começar vida nova longe dos rigores choose to start a new life far away from the
que encontravam em Portugal, e as capitanias do rigourism that they find in Portugal, and the sugar
Nordeste açucareiro faziam-se umas das areas of the Northeast were one of the
principais escolhas. Entre os cristãos-novos que main choices of them. Between the new-christians
se dirigiam ao Brasil, recebeu a Colônia, that went to Brazil, some of them were
presumivelmente, algumas famílias de “criptojudeus” – hidden jewish – those that
criptojudeus – aqueles que, não aceitando a don’t agree with the forced convertion of
conversão forçada dos antigos judeus ao christianism and maintained in secret the
cristianismo, mantinham em secreto as práticas religions’practice that couldn’t be sustained
da religião que não podiam seguir abertamente. in liberty. The Antunes, from Bahia, denounced
Os Antunes, do Recôncavo baiano, denunciados during the first visitation of the Holy
durante a primeira visitação do Santo Ofício ao Office in Brazil, between 1591 and 1595,
Brasil, entre 1591 e 1595, são exemplo are privileged examples of the jewish
privilegiado da resistência judaica em épocas de resitance during the time of catholic
monopólio católico. monopoly in the portuguese world.
Palavras-chave: Inquisição, criptojudaísmo, Keywords: Inquisition, hidden jewish, jewish
resistência judaica. resistance.
nhor que por sua morte nos remiu, têm maldição, enquanto na dureza de seus
A
eles, longe dos olhares da população,
ssim justificava o monarca
esforçavam-se por manter, malgrado os
português d. Manuel I (1495-
impedimentos, as crenças e rituais de
1521) a publicação do édito
seus antepassados, sendo, por isso, de-
de expulsão dos judeus de Portugal, em
signados judaizantes ocultos, ou seja,
fins do século XV. Mal havia inaugurado
criptojudeus . A intensa presença eclesi-
a Modernidade, vivendo os lusitanos o
ástica e a crescente organização do San-
período áureo da expansão marítima e
to Ofício português durante o Quinhen-
dos descobrimentos, tinha início um lon-
tos tornavam ainda maiores as pressões
go período de domínio católico sobre
contra os neoconversos. Buscando fugir
Portugal. Desde a implantação na última
da pressão social e da ameaça
década do século XV das leis de dom
inquisitorial, considerável parcela dos
Manuel, que puseram fim ao longo con-
cristãos-novos procuraria refúgio em ter-
vívio entre judeus e cristãos no reino, a
ras distantes, como a América portugue-
resistência dos agora denominados cris-
sa, um dos locais preferidos para os que
tãos-novos se fez sentir fortemente, in-
deixavam o reino, visto o próprio desta-
tensificando-se em grande escala após a
que que a economia açucareira ganhava
instauração do Tribunal do Santo Ofício
para os interesses reinóis. De fato, mui-
da Inquisição no ano de 1536, durante
tos neoconversos conseguiriam, em cer-
o reinado de d. João III. Dessa for ma, o
ta medida, recompor suas vidas no qua-
tribunal inquisitorial português encontra-
se anonimato de uma sociedade em for-
ria nos neoconversos não apenas a jus-
mação e, portanto, pouco disposta a pre-
tificativa para sua criação, mas também
ocupações mais sofisticadas, sobrema-
suas principais vítimas, apontados como
neira no campo religioso, posto que a
maiores ameaças à pureza da fé cristã
enorme distância da sisuda moral ecle-
no reino. O fato é que, malgrado os exa-
siástica européia refletiria num confor-
geros e generalizações, muitos dos anti-
tável despojar no viver colonial, uma vez
gos adeptos da religião de Israel conver-
que se encontravam todos – cristãos-no-
tidos à força ao catolicismo, reuniriam
vos e cristãos-velhos – mais preocupa-
forças e encontrariam for mas de burlar
dos com a própria (e imediata) sobrevi-
a lei para continuar a comungar a fé do
vência em ambiente inóspito. O quadro
coração.
de relativa tranqüilidade no convívio en-
Embora os cristãos-novos procurassem tre cristãos-velhos e cristãos-novos, con-
escapar às desconfianças e perseguições tudo, seria modificado pelas visitações
populares, esforçando-se por demonstrar do Santo Ofício à América lusa.
Aspecto contemporâneo do Engenho Freguesia, em Matoim, Recôncavo Baiano, que pertenceu à família
Antunes. Foto: arquivo pessoal do autor.
de fé, interpretações teológicas e dificul- cutado pelo Santo Ofício na última déca-
dades no comportamento do dia-a-dia. d a d o s q u i n h e n t o s ” , 6 as primeiras
visitações inquisitoriais ao Brasil ressal-
A fama da “esnoga dos Antunes” iria lon-
tam o novo momento político vivido por
ge, ultrapassando em muito a vida de seu
Portugal: ocorrem durante o domínio
próprio fundador: o rabi macabeu do
Filipino (1580-1640), bem mais rigoro-
Recôncavo faleceria por volta de 1575-
so e atento no tocante ao controle admi-
1577, momento em que Ana Rodrigues
nistrativo, político e religioso dos espa-
toma a frente da família e o controle dos
ços coloniais do que a dinastia dos Avis.
negócios, auxiliada pelos filhos e genros.
Por mais que nas cortes de Tomar o
Mesmo com a ausência do patriarca dos
monarca Felipe II tenha se comprometi-
Antunes, a sinagoga de Matoim continu-
do a respeitar a autonomia das institui-
aria sua atividade, presumivelmente, ten-
ções portuguesas, foi justamente sob o
do um de seus filhos como responsável.
domínio dos Habsburgo que a Inquisição
Deter minados denunciantes que citam a
esticou seu braço até a América portu-
“casinha” de Matoim ao inquisidor dizi-
guesa, como já o fizera sobre a parte his-
am ter conhecimento da sua existência
pânica.
há mais de vinte ou trinta anos, o que a
transformava na mais antiga sinagoga em
A estada da Inquisição nas capitanias do
funcionamento de que se tinha notícia
açúcar significaria o fim da relativa har-
na Bahia e uma das mais tradicionais da
monia existente no convívio entre os cris-
região colonial àquela época. Nem mes-
tãos diferentes pelo sangue, refletindo o
mo a chegada da visitação inquisitorial
ambiente de conflitos há muito vivido em
às capitanias açucareiras do Nordeste
Portugal. Se, a princípio, as dificuldades
(Bahia, Per nambuco, Itamaracá e
maiores que se colocavam à ocupação
Paraíba), entre 1591 e 1595, a espalhar
do espaço colonial permitiam que cris-
o medo por todos os lados, teria sido
tãos-velhos e neoconversos vivessem
motivo suficiente para que cessassem as
sem maiores problemas, a presença da
reuniões judaicas em Matoim, num cla-
máquina repressora do Santo Ofício se
ro sinal de enfrentamento ao Santo Ofí-
mostraria como oportunidade única para
cio e à religião dominante.
tornar público o descontentamento com
Fruto do que Anita Novinsky definiu como o comportamento irregrado de deter mi-
importância do aumento da vigilância nados indivíduos. Era também o momen-
sobre áreas economicamente próspe- to apropriado para que a sociedade co-
ras, 4
Sonia Siqueira caracterizou como lonial aproveitasse o clima de caça aos
necessidade de vigilância das crenças na hereges para cuidar de ódios ocultos,
Colônia 5
e Ronaldo Vainfas denominou desavenças e vinganças pessoais, fazen-
de “vasto programa expansionista exe- do acusações dos inimigos ao Tribunal –
for ma oficial de resolver antigos proble- único espaço que julgava seguro: o lar.
mas, livrando-se dos desafetos com o Também tinha a fama de per manecer
respaldo oficial e institucional do Santo trancada com as filhas na sexta-feira à
Ofício. Os cristãos-novos, vistos como tarde, a fazerem jejuns e orações, de
ameaça ao bom andamento da fé católi- onde só saíam no fim do sábado, de rou-
ca no trópico, seriam, uma vez mais, os pa limpa e banho tomado. Nem a casa,
alvos preferidos do fervilhar de denúnci- contudo, se mostraria como locus ideal
as à mesa do visitador. para a manutenção desses segredos, 8 e
o comportamento de Ana e seus filhos
A população colonial receberia em pâni-
acabaria público, chegando ao conheci-
co os representantes da Inquisição, e o
mento do visitador. A restrita privacida-
dia-a-dia dos Antunes começaria a sofrer
de dos ambientes coloniais se encarre-
maiores revezes pelo medo de possíveis
garia de divulgar o que ocorria entre as
denúncias. O destaque que possuíam e
paredes da residência dos Antunes: ou-
a negativa fama de que desfrutavam agra-
vidos e olhos permaneciam atentos para
vavam ainda mais os temores de alguns
saber detalhes e novidades da vida pri-
membros da família em sofrerem acusa-
vada, tornada pública a todo instante.
ções por suas variadas heresias. “Jesus,
estávamos quietos”, já lamentava a cris-
A vida dos Antunes seria exposta aos gu-
tã-velha Isabel Ribeiro, esposa de Álva-
losos olhos do visitador desde o primei-
ro Lopes Antunes, prevendo consciente
ro dia dos trabalhos inquisitoriais na
as sombrias conseqüências para o mari-
Colônia, constando este rol de denúnci-
do e os demais parentes das denúncias
as entre os de maior volume perante o
que chegariam aos ouvidos atentos do
Santo Tribunal. Ao todo, seriam dezenas
licenciado Heitor Furtado de Mendonça.
de acusações contra vários membros do
A família Antunes seria acusada, princi- clã. Só a matriarca Ana Rodrigues soma-
palmente, de pouco ou nenhum cuidado ria 23 denúncias envolvendo seu estra-
na prática da fé cristã. De Ana Rodrigues, nho comportamento, o que a coloca
dizia-se que “nunca vai à igreja, senão como a terceira pessoa mais delatada da
mui raramente, nem se confessa, senão primeira visitação, atrás apenas do cris-
pela obrigação da quaresma”. Não bas-
7
tão-novo João Nunes Correia, poderoso
tassem os comentários que davam con- homem de negócios em Per nambuco,
ta da existência de uma sinagoga em acusado 47 vezes, entre outras heresi-
Matoim, a própria residência dos Antunes as, de possuir um crucifixo em um quar-
era transformada, aos olhos populares, to imundo, próximo a um servidor onde
em verdadeiro templo judaico, onde a fazia as suas necessidades corporais, e
matriarca do clã mantinha as tradições de ofendê-lo física e moralmente 9 , e do
da antiga lei, ensinando a fé proibida no cristão-velho Fer não Cabral de Taíde,
J
freqüentadores costumeiros da residên-
á no primeiro dia destinado às con-
cia, indivíduos chocados com os
fissões e denúncias durante a eta-
desregramentos da “gente de Matoim”,
pa baiana da visitação, Nicolau
antigos desafetos, desconhecidos e cu-
Faleiro de Vasconcelos procuraria Heitor
riosos que ouviam as histórias sobre a
Furtado de Mendonça para confessar
velha senhora e corriam para contá-las
seus erros e contar o que sabia. A seu
ao visitador, procurando mostrar boa
modo, procurava explicar as práticas da
vontade com o Tribunal. Na grande mai-
esposa e dos parentes desta antes que o
oria das vezes, as denúncias partiam de
inquisidor soubesse delas por outros de-
cristãos-velhos, chocados com os segui-
nunciantes: tentava remediar o
dos desrespeitos à fé cristã praticados
injustificável. Casado com Ana
pelos Antunes. Alguns dos próprios mem-
Alcoforado, afirmava no depoimento que
bros da família, preocupados em escla-
sua mulher lhe havia dito “que era bom
recer as dúvidas sobre a sinceridade cris-
vazar fora a água dos cântaros” quando
tã dos demais membros, compareceriam
do falecimento de alguém em casa, e que
às sessões de confissão perante o
ele próprio consentira nisso certa vez,
visitador, dando versões diversas para o
mas sem nenhuma intenção de judaís-
pouco apego católico do clã.
mo. Desculpava-se: só com a publicação
A presença dos Antunes na mesa do édito da Fé e leitura em voz alta do
monitório nas igrejas no dia anterior, é que ele faleceu, nunca mais comera em
que soubera ser aquilo cerimônia dos mesa, nem carne, e que se punha detrás
judeus, motivo pelo qual apressava-se da porta e derramava água no chão, e
em esclarecer a involuntária falta. levantava a saia e se sentava no chão”.
Nicolau ainda defenderia o apego religi- Concluía com um alerta: “quanto risco
oso de sua esposa, que “nunca lhe dis- corriam os genros do dito Heitor Antunes
se, nem fez coisa em que entendesse ficarem desonrados”, 13 referindo-se aos
dela má intenção contra nossa santa fé laços que mantinham estes cristãos-ve-
católica, rezando a Nossa Senhora e fa- lhos, dos principais da terra, com a fa-
zendo romarias e devoção, e jejuando mília de judaizantes.
às vésperas de Nossa Senhora e fazendo
Algumas denúncias diziam ser de conhe-
esmolas e obras de que teme a Deus, e
cimento geral que Ana Rodrigues enter-
a tem por muito boa cristã e venturosa”.
rara seu esposo ao modo judaico, numa
Prova disso, queria fazer crer, é que “sua
ermida em terra virgem, e que fizera o
mulher e as primas e tias delas são ca-
pranto diferente do que usam os cristãos,
sadas com homens fidalgos e cristão-ve-
“sabadeando-se toda, abaixando a cabe-
lhos e que, por virtuosas, casaram tão
ça toda até o chão e tornando a levantar
bem”. 11
e tor nando a abaixar”,14 “levantando as
Não tardaria a avalanche de acusações fraudas e assentando-se com as carnes
contra a família. No dia seguinte ao de- no chão, guajando com a cabeça”, nun-
poimento de Nicolau de Vasconcelos co- ca mais voltando ao local onde o marido
meçariam as denúncias contra a foi enterrado. 15 O local escolhido para o
matriarca. O alfaiate cristão-velho Gaspar repouso eterno do patriarca dos Antunes,
Fer nandes inauguraria a avalanche de ao mesmo tempo em que deixa clara a
acusações afir mando que Ana Rodrigues herança judaica defendida pela família,
e suas filhas Beatriz e Leonor eram co- aponta para o receio de desconfianças
nhecidas publicamente como “as sobre o criptojudaísmo do clã que, te-
Macabéias”, 12
sinal de que a história do mendo ser denunciado à Inquisição, pro-
famoso parentesco contada por Heitor curava demonstrar uma sinceridade ca-
Antunes ainda ecoava e era causa de tólica que, na prática, era inexistente:
orgulho para os descendentes e de es- Heitor descansaria “em terra
cárnio para a sociedade colonial. Tam- catolicamente benta e judaicamente vir-
bém cristão-velho, o senhor de engenho gem”, 1 6 fato comum entre os cristãos-
Pero Novais, ao relatar ao inquisidor o novos judaizantes da época, numa ten-
período da morte de Heitor Antunes, de- tativa de velar a fé proibida que segui-
talhava o luto adotado pela viúva: “a dita am. Detrás da ermida que servia de últi-
velha mulher de Heitor Antunes, depois mo descanso para o esposo, mandara a
viúva colocar as roupas e o par de botas da, por sua vez, de também seguir o luto
usados por Heitor: repreendida e acon- judaico na morte do marido: “deixou de
selhada a doar os trajes aos mais neces- vestir camisa lavada até que morreu”.17
sitados, respondia que “deixasse estar, Ao morrer Violante, agiria Ana da mes-
pois estava com seu dono”. Depois de ma forma que fizera com o esposo, ve-
certo tempo, a ermida, derrubada, seria lando-a de acordo com a fé que seguia.
substituída por nova igreja. Um dos fi- Preparava-se, enfim, para o futuro encon-
lhos de Heitor, Jorge Antunes, desejoso tro com o companheiro já falecido: o
de transferir os restos do pai para o novo cristão-velho Antônio Dias ouvira dizer
local, seria impedido pela mãe, que ale- “não lhe lembra a quem que a dita Ana
gava já estar ele sepultado em terra vir- Rodrigues de Matoim tem guardado as
gem e que ninguém deveria de lá tirá-lo. jóias de quando se casou para se enter-
Outra filha, Violante Antunes, era acusa- rar com elas quando morrer”. 18 Outra
Mapa do Recôncavo baiano em 1630, com a localização geográfica de Matoim e de seus engenhos. W.
Pinho, História social da cidade do Salvador , p. 264. Apud Luís Henrique Dias Tavares, História da Bahia ,
10ª ed., São Paulo/Salvador, Unesp/EDUFBA, 2001, p. 137.
para confir mar a desviada religiosidade depor. Confessaria ter derramado toda a
do colega de estudos: “ele denunciante água de casa quando da morte de um
molhou o dedo no tinteiro e tocou por escravo, o que fez por lhe haver ensina-
detrás, sem ser sentido, no filete da ca- do sua mãe que, por sua vez, aprendera
misa ao dito Manuel de Faria, para co- o costume com Ana Rodrigues, mas “que
nhecer se a trazia também hoje, que é sua mãe não lhe nomeou lei de Moisés,
sábado. E que hoje que é sábado, viu ao nem suas cerimônias”, assim agindo
dito Manuel de Faria com outra camisa “sem entender que era cerimônia de ju-
lavada”. Querendo evitar qualquer dúvi- deus e sem má intenção”. Também lem-
da, infor mava ao visitador que realizara brava do falecimento da tia Violante
a experiência por mais de uma vez, e o Antunes: no dia da morte desta, “havia
resultado se repetira. 27
em casa de sua mãe, Beatriz Antunes,
panela de carne para jantar, de vaca e
A desbocada senhora e sua prole iam,
galinhas e leitões assados, porque havia
assim, acumulando críticos aos seus
em casa hóspedes”. Chegando a notícia
comportamentos destemperados enquan-
da morte de Violante e de “como a trazi-
to tentavam manter as aparências de
am morta para a enterrar, sua mãe,
bons cristãos, disfarçando o judaísmo e
Beatriz Antunes, não quis comer nada de
freqüentando as missas, procurando abo-
carne aquele dia ao jantar, nem quis co-
lir as desconfianças e fugir às pressões
mer nada, senão somente quando que-
e cobranças da sociedade colonial. Eram
ria pôr-se o sol, a fizeram comer, e co-
judeus em casa, longe dos olhos popu-
meu então peixe”. Admoestada pelo
lares, e faziam-se cristãos nas ruas, fin-
visitador das fortes suspeitas sobre ela,
gindo integrar a religião dominante.
a mãe e a avó, “que são todas judias e
Conscientes do sem-número de acusa-
vivem afastadas da lei de Jesus Cristo, e
ções que deveriam pesar sobre as cos-
têm a lei de Moisés”, Custódia respon-
tas, sobretudo da velha matriarca, esten-
deu ser boa cristã e que somente depois
dendo-se as denúncias a todos do clã,
de publicado o édito da Fé é que enten-
não tardariam a perceber a ur gência em
deu ser cerimônia judaica, vindo por isso
c o n f e s s a r, à sua maneira, os
se acusar. 28
desregramentos da família, repetindo o
caminho trilhado por Nicolau de Vascon-
Beatriz repetiria, com outras palavras, o
celos desde o primeiro dia dos trabalhos
depoimento da filha: por dezessete ou
inquisitoriais no trópico.
dezoito vezes lançara fora a água de casa
Quase ao fim do período da graça, uma quando da morte de alguém e “manda
outra Custódia de Faria, esta filha de amortalhar em lençol inteiro, sem lhe ti-
Beatriz Antunes e casada com Ber nardo rar ramo, nem pedaço algum”; sendo o
Pimentel de Almeida, compareceria para morto seu parente, “por nojo, nos pri-
meiros oito dias não comia car ne”; ao gava a água fora quando da morte de al-
afirmar alguma coisa, jurava “pelo mun- guém em casa “porque lavavam a espa-
do que tem a alma de meu pai”; ao assar da do sangue nela”. Tudo infor mava ter
em casa “quarto de car neiro, lhe manda aprendido ainda na Sertã, em Portugal,
tirar a landoa por ter ouvido que não se por volta de trinta e cinco anos antes,
assa bem com ela, e também não come com “uma sua comadre cristã-velha, Inês
lampreia [...] porque lhe tomou nojo, mas Rodrigues, parteira, viúva, [...] a qual ora
come os mais peixes sem escama, salvo já é defunta” e, “cuidando ela ser isto
os d’água doce, e não come coelho”. bom, o ensinou também neste Brasil a
Tudo fazia por lhe haver ensinado sua suas filhas”. Na morte do marido, conti-
mãe, “dizendo-lhe que era bom fazê-las, nuava, teria ficado assentada atrás da
assim, sem lhe declarar mais alguma porta “por desastre, por acontecer ficar
outra razão, nem causa”. Ter minaria o ali assim a jeito o assento”. Quanto ao
depoimento dizendo que “nunca teve período em que esteve doente e foi acu-
intenção de judia e nunca soube nem sada de expulsar o crucifixo de perto da
entendeu que as ditas coisas eram ceri- cama, afirmou a Heitor Furtado que “che-
mônias judaicas, nem que nelas ofendia gou a tresvaliar, e dizem que falava de-
a Jesus Cristo, senão depois que nesta satinos, mas não lembrava se nesse tem-
terra entrou a Santa Inquisição”. 29
po falou ou fez alguma coisa com ofen-
sa de Deus”. O depoimento tornava ain-
No dia seguinte, querendo mostrar boa
da mais evidentes os desregramentos da
vontade com o Santo Ofício, seria a vez
velha confidente, desmascarada pelo
da matriarca Ana Rodrigues acusar-se
visitador, que assim explicava a conclu-
perante o visitador em longo depoimen-
são a que chegara:
to. Depois de desfilar suas origens, da-
ria vários exemplos de seu comporta- está mui forte a presunção contra ela
mento judaico, mas para tudo apresen- que é judia e vive na lei de Moisés, e
fresco “porque lhe faz mal ao estômago, ditas cerimônias de judeus, tão conhe-
mas que o come salgado, assado, e ou- cidas e sabidas serem cerimônias de
trossim, não come arraia, mas que nos judeus, como botar água fora quando
outros tempos atrás comia arraia e alguém morre, e não comer oito dias
cação”. Ao abençoar os netos, dizendo carne no nojo, e jurar pelo mundo que
a bênção de Deus e minha te cubra , “lhes tem a alma do defunto, e não comer
põe a mão estendida sobre a cabeça, cação nem arraia, e pôr a mão na ca-
depois que lhe acaba de lançar a bên- beça aos netos quando lhes lançava a
ção”, o que faz por descuido, e que jo- bênção, tudo isto são cerimônias ma-
nifestamente judaicas e que ela não dou lançar fora água quando da morte
pode negar, e que por isso fica claro de filho, filha ou escravos; que, “de
que é judia e que as fez como judia. 30
dezessete anos a esta parte”, jura “pelo
mundo que tem a alma de seu pai, e des-
Conhecedor dos indícios reveladores de
ta jura usava pela ouvir jurar a sua mãe”;
judaísmo, Heitor Furtado de Mendonça
que amortalhava os mortos “sem coser
agruparia as peças processuais para en-
com agulha e linha a mortalha do len-
caminhar o caso à sede da Inquisição de
çol”; que ouviu dizer “que é bom tirar as
Lisboa.
landoas aos quartos traseiros das reses
A confissão de Leonor Antunes daria con- miúdas”, assim fazendo sempre; que não
tinuidade à ladainha: que lançou e man- come lampreia por nojo, mas “come os
Nicholas Turner e Carol Plazzotta. Drawnings by Guercino from British collections (catálogo da
exposição). Londres/Milão/Roma, British Museum Press/Leonardo/De Luca, 1991, p. 220. Apud Francisco
Bethencourt, História das Inquisições : Portugal, Espanha e Itália – séculos XVI-XIX, São Paulo,
Companhia das Letras, 2000.
usando-o “muitas vezes, perante suas parte, dona Ana; rezar orações judaicas
parentas e outras pessoas”, “sem ruim contra a parede, sabadeando, abaixan-
intenção”. Advertida pelo inquisidor da do e levantando a cabeça; no luto, co-
gravidade de seus atos, afinados com as mer em mesa baixa, ou comer peixe,
práticas dos judeus, “que costumam ju- ovos e azeitonas por amargura, ou ficar
rar pelo Orlon de mi padre , que quer di- atrás da porta por tristeza; enterrar o
zer o mesmo pelo mundo que tem a alma defunto em terra virgem e em covas
de meu pai ”, respondeu ser boa cristã, muito fundas, do que foi acusada
“mas que fez as ditas coisas sem enten- Violante Antunes, quando da morte do
der que eram judaicas”, e que “depois esposo, e Ana Rodrigues, durante o luto
que se publicou a Santa Inquisição nes- do marido e da própria filha Violante;
ta cidade [...] nunca mais as fez, e da derramar fora a água dos potes quando
culpa que tem em as fazer exterior men- alguém morre em casa, o que pratica-
te, sem ter no coração erro algum da fé mente todos os membros da família afir-
católica, pede perdão e misericórdia”. 35
maram ter feito; abençoar os filhos pon-
do-lhes as mãos sobre a cabeça e bai-
Das heresias confessadas pelos Antunes,
xando-as pelo rosto, sem fazer o sinal
muitas faziam parte do monitório
da cruz, o que fez Ana e ensinou às fi-
inquisitorial usado pelo visitador para
lhas para que repetissem. Outras práti-
classificar os erros que lhe eram relata-
cas, embora não aparecessem citadas no
dos, e eram classificadas como sinal evi-
monitório, agravavam as desconfianças
dente de judaísmo: 36 seguir ou aprovar
sobre o clã, como, por exemplo, o feste-
ritos ou cerimônias judaicas, o que to-
jado parentesco com os Macabeus da
dos confessaram, afirmando desconhe-
Antigüidade, as ofensas contra o crucifi-
cer suas origens; guardar o sábado, sem
xo e o batismo, ou a negativa da
trabalhar, enfeitando-se e vestindo-se
matriarca em freqüentar a igreja onde
bem neste dia, o que confessou Nuno
enterrara o esposo.
Fer nandes, e foram acusadas Ana
Rodrigues e suas filhas; cobrir o sangue O inquisidor tomaria as providências que
de animais mortos, costume confessado julgava necessárias para apurar as res-
por Leonor Antunes; não comer ponsabilidades. Entre denunciados e
toucinho, lebre, coelho ou aves afoga- confessantes, as evidências cairiam mais
das, enguia, polvo, congro, arraia, nem fortemente sobre Ana Rodrigues. Presa
peixe sem escamas, do que foram acu- pelo visitador, seria enviada a Lisboa
sadas e confessaram a matriarca e as fi- numa jaula, tendo apenas a companhia
lhas; solenizar a Páscoa do Pão Ázimo de uma escrava para aquecê-la durante
comendo pão ázimo em bacias e a viagem, e seria encarcerada nos Estaus,
escudelas novas, do que foi acusada, em sede do Santo Ofício na cidade, enquan-
to aguardava o desenrolar do processo. como havia sido preso por um falso fa-
miliar do Santo Ofício, acabara solto por
Temendo as conseqüências de uma pro-
provas insuficientes.
vável condenação, os descendentes de
Ana Rodrigues tentariam, a todo custo, Durante a segunda visitação inquisitorial
matriarca de Matoim morreria no cárce- tórias sobre Ana Rodrigues e seus des-
re, fato que não impediria que fosse con- cendentes ainda permaneciam vivas na
inquisidores – não eram dignos de per- a velha macabéia a arder no infer no:
mais cárcere e hábito com fogos. Já Ana vas gerações de neoconversos, contudo,
Alcoforado, neta da matriarca, permane- não seria apagado por seu destino trági-
ceria presa no reino com seqüestro de co: a matriarca assim como outros repre-
bens até o breve papal, que decretou per- sentantes dos Antunes alcançados pelas
em que possivelmente sofreria penas se- o mundo português viveu – por cerca de
melhantes às de que foram vítimas suas três séculos! – a longa noite da intole-
N O T A S
1. Édito de expulsão dos judeus de Portugal, em 5/12/1496. Apud David Augusto Canelo, Os
últimos criptojudeus em Portugal , Belmonte, Câmara Municipal de Belmonte / Marques &
Pereira Ltda., 2001, p. 206-207.
2. Antônio de Aguiar Daltro contra Adão Gonçalves e Antônio Mendes Beiju, em 16/9/1618.
Livro das Denunciações que se fizerão na visitação do Santo Ofício à cidade do Salvador da
Bahia de Todos os Santos do Estado do Brasil, no ano de 1618 – inquisidor e visitador o
licenciado Marcos Teixeira, Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro , 1927, vol. XLIX,
Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional, 1936.
3. “Um dos conceitos centrais do judaísmo, que pode se referir ao ensinamento judaico do
Pentateuco, ou da Bíblia hebraica, ou, em seu sentido mais amplo, a toda a tradição judai-
ca”. Alan Unter man, Dicionário judaico de lendas e tradições , Rio de Janeiro, Jorge Zahar,
1992, p. 264.
4. Anita Novinsky, Cristãos-novos na Bahia: 1624-1654 , São Paulo, Perspectiva/Edusp, 1972.
5. Sonia Siqueira, A Inquisição portuguesa e a sociedade colonial , São Paulo, Ática, 1978.
6. Ronaldo Vainfas, A heresia dos índios : catolicismo e rebeldia no Brasil colonial, São Paulo,
Companhia das Letras, 1995, p. 166.
7. [João Álvares Pereira] contra Pedro Homem, Nuno Fernandes, Álvaro Lopes Antunes e irmãs,
Ana Roiz, Violante Antunes, em 31/7/1591. Primeira visitação do Santo Ofício às partes do
Brasil pelo licenciado Heitor Furtado de Mendonça capelão fidalgo del rey nosso senhor e do
seu desembargo, deputado do Santo Ofício. Denunciações da Bahia 1591-1593 , São Paulo,
Paulo Prado, 1925, p. 256-259.
8. Como bem salienta Vainfas, “faz-se necessário, portanto, divorciar, no caso da América por-
tuguesa, a idéia de privacidade da idéia de domesticidade. As casas coloniais, fossem gran-
des ou pequenas, estavam abertas aos olhares e ouvidos alheios, e os assuntos particulares
eram ou podiam ser, com freqüência, assuntos de conhecimento geral”. Ronaldo Vainfas,
Moralidades brasílicas: deleites sexuais e linguagem erótica na sociedade escravista, in Laura
de Mello e Souza (org.), História da vida privada no Brasil : cotidiano e vida privada na Amé-
rica portuguesa, São Paulo, Companhia das Letras, 1997, p. 227.
9. Elias Lipiner, João Nunes, o rabi da lei dos judeus em Pernambuco, in Os judaizantes nas
capitanias de cima : estudos sobre os cristãos-novos do Brasil nos séculos XVI e XVII, São
Paulo, Brasiliense, 1969; Sonia Siqueira, O comerciante João Nunes, in Eurípedes Simões de
Paula (org.), Portos, rotas e comércio , Anais do V Simpósio Nacional dos Professores de
História – Campinas, São Paulo, USP, 1971; José Antônio Gonçalves de Mello, Um ‘capitalis-
ta’ cristão-novo: João Nunes Correia, in Gente da nação : cristãos-novos e judeus em
Pernambuco, 1542-1654, 2. ed., Recife, Fundaj, Massangana, 1996; Angelo A. F. de Assis,
Um ‘rabi’ escatológico na Nova Lusitânia : sociedade colonial e Inquisição no Nordeste qui-
nhentista – o caso João Nunes, 1998, Dissertação (Mestrado em História), Universidade Fe-
deral Fluminense, Niterói.
10. O período da graça, segundo o édito da Inquisição de outubro de 1536, corresponde ao
prazo de trinta dias concedido, “em que os culpados seriam absolvidos das censuras e penas
de excomunho maior, com penitências saudáveis para as suas almas”, dependendo da since-
ridade do depoimento prestado, julgada pelos inquisidores encarregados dos serviços. Apud
Elias Lipiner, Santa Inquisição : terror e linguagem, Rio de Janeiro, Documentário, 1977, p.
130.
11. Confissão de Nicolau Faleiro de Vasconcelos, cristão-velho, na qual diz contra sua mulher
dona Ana (Alcoforado), cristã-nova, no tempo da graça, em 29 de julho de 1591. In Ronaldo
Vainfas (org.), Santo Ofício da Inquisição de Lisboa : confissões da Bahia, São Paulo, Compa-
nhia das Letras, 1997.
12. [Gaspar Fernandes] contra dona Lianor, Britis Antunes e a mãe delas cristãs-novas, em 30/7/
1591. Denunciações da Bahia 1591-1593 , op. cit., p. 247-248.
13. [Pero Novais] contra Fernão Cabral, cristão-velho, e Manuel de Paredes, cristão-novo, e a
mulher e filhas de Heitor Antunes, de Matoim, cristãos-novos, em 30/7/1591. Ibidem, p.
253-256.
14. [Margarida Pacheca, mulher de Antônio da Fonseca] contra Ana Roiz, Violante Antunes, Caterina
Mendes, Maria Lopes, Mécia Rodrigues, Fernão Cabral, em 21/8/1591. Ibidem, p. 392-394.
15. [Antônio da Fonseca] contra Ana Roiz e Fernão Cabral, em 6/8/1591. Ibidem, p. 275-276.
16. Elias Lipiner, Os judaizantes nas capitanias de cima , op. cit., p. 127.
17. [Victoria de Bairros, que não sabia assinar] contra Álvaro Sanches, Manuel de Paredes, Ana
Roiz, em 24/8/1591. Denunciações da Bahia 1591-1593 , op. cit., p. 437-438.
18. [Antônio Dias, da Companhia de Jesus] contra Ana Roiz, Henrique Mendes, Phelipe de Guillem,
em 16/8/1591. Ibidem, p. 337-338.
19. [Custódia de Faria] contra Heitor Antunes, Ana Roiz etc., em 27/8/1591; [Pero de Aguiar
d’Altero] contra Ana Rodrigues, cristã-nova de Matoim, em 30/7/1591; [Isabel de Sandales]
contra Ana Roiz etc., em 23/10/1591. Ibidem, respectivamente, p. 477-481; p. 250-251; p.
539-540.
20. [Ines Roiz, que não sabia assinar] contra Álvaro Lopes Antunes, em 30/10/1591. Ibidem, p.
549.
21. [Pero de Aguiar d’Altero] contra Ana Rodrigues, cristã-nova de Matoim, em 30/7/1591. Ibidem,
p. 250-251.
22. [Custódia de Faria] contra Heitor Antunes, Ana Roiz etc., em 27/8/1591. Ibidem, p. 477-481.
23. [Gracia de Siqueira, que não sabia assinar] contra Beatriz Antunes e Fernão Gomes, em 7/9/
1592. Ibidem, p.493-494.
24. Elias Lipiner, Os judaizantes nas capitanias de cima , op. cit., p. 127.
25. [Antônio da Fonseca] contra Ana Roiz e Fernão Cabral, em 6/8/1591. Denunciações da Bahia
1591-1593 , op. cit., p. 275-276.
26. Antônio José Saraiva, Inquisição e cristãos-novos , 6. ed., Lisboa, Estampa, 1994.
27. [Fer não Garcia, estudante que já denunciou] contra Manuel de Faria, em 7/9/1591.
Denunciações da Bahia 1591-1593 , op. cit., p. 494-495.
28. Confissão de dona Custódia de Faria, cristã-nova, em 31/1/1592. In Ronaldo Vainfas (org.),
Santo Ofício da Inquisição de Lisboa : confissões da Bahia, op. cit., p. 271-274.
29. Confissão de Beatriz Antunes, cristã-nova, no tempo da graça, em 31/1/1592. Ibidem, p.
275-278.
30. Confissão de Ana Rodrigues, cristã-nova, no tempo da graça, em 1/2/1592. Ibidem, p. 281-
286.
31. Confissão de dona Leonor, cristã-nova, no tempo da graça, em 1/2/1592. Ibidem, p. 288-
293.
32. Segundo Vainfas, “trata-se de Metamorfoses , de Ovídio (43 a.C. – 18 d.C.), de que havia
edição em português proibida pela Inquisição no século XVI” e “da comédia Eufrozina , de
Jorge Ferreira de Vasconcelos, publicada em 1555 e depois proibida pela Inquisição”. Ibidem,
p. 300, nota.
33. Confissão de Nuno Fernandes, cristão-novo, no tempo da graça, em 1/2/1592. Ibidem, p.
299-300.
34. Confissão de Nuno Fernandes, cristão-novo, no tempo da graça, em 9/2/1592. Ibidem, p.
343-344.
35. Confissão de dona Ana Alcoforada, cristã-nova, no tempo da graça do recôncavo, no último
dia dele, em 11/2/1592. Ibidem, p. 358-361.
36. “O monitório utilizado foi, provavelmente, o baseado no Regimento de 1552 ou no Edital da
Fé de 1571, elaborados no tempo em que o cardeal d. Henrique, ir mão de d. João III e tio-
avô de d. Sebastião, era o inquisidor-mor do Santo Ofício português. Monitório muito calca-
do, é verdade, no de 1536, porém acrescido das culpas que, nesse intermezzo , passaram à
jurisdição inquisitorial”. Ronaldo Vainfas (org.), Santo Ofício da Inquisição de Lisboa : confis-
sões da Bahia, op. cit., p. 21.
As Capelas de Minas no
Século XVIII
O texto faz um breve histórico do culto de The text is a short historical note on the
São Gonçalo do Amarante na América worship of Saint Gonçalo from Amarante,
portuguesa e tem por objetivo central analisar Portugal, in the Portuguese America, and the
um conjunto de petições que envolvem os main purpose is to analyse a series of petitions
devotos de São Gonçalo, em sua maioria, da that are related to the devotees, the
comarca de Rio das Mortes, capitania de Minas majority of them from comarca do Rio das
Gerais no século XVIII. Através da leitura dessas Mortes (Death River Judicial District), located in
representações dirigidas ao rei, que demandam a the Minas Gerais Captaincy, 18th century. From
ampliação da assistência espiritual aos moradores reading these representations to the King that
da região e do diálogo com a historiografia request the spiritual assistance enlargement to
sobre a cidade e as ir mandades na América the region dwellers, and by the dialogue on the
portuguesa, este ensaio afirma que as historiografy of the town and of the brotherhoods
capelas se definem como um lugar in Portuguese America, this paper affirms that the
a meio caminho entre o sertão chapels are defined as places in between the
e a cidade colonial. backlands and the colonial town.
Palavras-chave: santos, ir mandades, sertão, Keywords: saints, brotherhoods, sertão, colonial
cidade colonial, Minas Gerais. town, Minas Gerais.
P
or que as edificações religiosas santos? Por que os agrupamentos urba-
estão quase sempre registradas nos se davam em torno das capelas? Por
nas plantas e paisagens das ci- que, passado muito tempo, com a diver-
dades da América portuguesa? Por que sificação da malha urbana, as igrejas e
as cidades coloniais recebiam nomes de suas paróquias continuam a marcar o
I
gundo João da Silva Campos, a festa “era
númeras dúvidas rondam a biogra- celebrada com muito arrojo pelos pes-
fia de São Gonçalo do Amarante. O cadores”, que a sustentavam na década
santo teria nascido em Portugal, fa- de 30 do século XIX, com uma missa
lecendo a 10 de janeiro, cerca de 1284, festiva durante a chamada “festa das jan-
em Amarante. São Gonçalo não foi ca- gadas”. 8 Por ora, pode-se apenas dizer
nonizado, mas o que importa assinalar, que o santo fora introduzido na América
a meu ver, é que foi historicamente for- durante a colonização, encontrando de-
jado como santo, guardando forte rela-
3
votos ou trazendo para a sua festividade
ção com a identidade nacional portugue- elementos oriundos de diversos grupos
Ponte entre a vila da Cachoeira e a povoação de São Félix, 1818. Arquivo Nacional.
lugar , que não tenha levantado templos, gião e que distavam das cidades por ra-
ou altares a São Gonçalo, só com a invo- zões de ordem natural – o número de
cação de seu nome, como se nele se ti- léguas, as chuvas, os despenhadeiros –,
vera sacramentado, pelo efeito maravi- mas, fundamentalmente, pelas dificulda-
lhoso de suas graças de tão longe o ex- des interpostas à manutenção do culto
perimentam, e têm presente”. 13
Ou seja, divino.
onde a Igreja está ausente como institui-
ção, o poder, a eficácia de São Gonçalo Evidentemente, o critério “pobreza” re-
Planta da cidade de São Salvador, capital do estado federado da Bahia, 1894. Arquivo Nacional.
festa religiosa apropriada pela monarquia aglomeração de gentes que a festa im-
pela limpeza das ruas, a convocação dos monarquia. Ademais, o referido docu-
res do pálio etc. 24 Quando uma cidade entre outros, produzidos por colonos e
mara cobrar o devido. Foi o que ocorreu cissão lisboeta é repertório de práticas,
1748: reino.
diferente Senado, diversa paróquia, nu- vam petições ao rei para evitar “viver
meroso povo, com dilatada extensão gentilicamente”, “esquecendo-se de Deus
de fogos e pessoas de graduação, por e do Evangelho”.
cuja razão se tem apresentado a dita
AS PETIÇÕES
D
procissão com o declarado fausto, pre-
sentemente é falta para a maior suntu- e maneira geral, todas as repre-
osidade a presença de tão nobre Se- sentações que selecionei de-
nado, o que os suplicantes represen- mandam a ampliação da assis-
tam a Vossa Majestade praticarem no tência espiritual dos moradores de Minas,
dia destinado, a exemplo das mais vi- contribuindo direta ou indiretamente
las do reino . 27
(grifos meus) para a formação de núcleos de povoa-
mento. A maior parte delas foi realizada
Como se observa, a petição é não somen-
pelos próprios devotos, que se organiza-
te um indicativo da autonomia de Recife
vam através de irmandades ou se reuni-
em relação a Olinda, mas, fundamental-
am com representantes de diversas ca-
mente, uma afirmação de identidade da
pelas do mesmo povoado. A
primeira como cidade colonial. Se tiver-
historiografia há muito é sensível ao pa-
mos em mente a história particular de
pel das ir mandades, a começar por
Recife, cujo núcleo inicial é português,
Scarano que, ao analisar a Irmandade de
mas que cresce com os holandeses, po-
Nossa Senhora do Rosário dos pretos no
deremos nela identificar características
distrito Diamantino, considera que
próprias do projeto colonizador e urba-
nístico batavo. 28 E interpretar a necessi- em todas as Minas Gerais, será o sete-
dade da vila do Recife de registrar sua centos o período áureo das irmanda-
entrada no reino português, por meio da des, a época da construção das igre-
realização da festa do Corpo de Deus, jas, quando aquelas se tornaram real-
com participação do Senado e na mes- mente o centro dos encontros da po-
ma data celebrada pelo conjunto das ci- pulação local, que assim podia satis-
dades coloniais do reino. fazer suas tendências gregárias e
zer, dos interesses dos arraiais e das fre- dem fora dela se vem a experimentar
partes da capitania”. 31
Segundo ele, a dito arraial, e do novo povoado, e em
presença das irmandades inclusive pre- Sertão bravo, e de gente pouco culta e
cede o Estado português, que a posteriori com a dita falta de esmolas, virá a fal-
assegurava a posse dos antigos arraiais tar a dita igreja e ficarão aqueles mo-
por meio de medidas administrativas. Se radores vivendo gentilicamente, sem
ter “espontâneo” 32
dos agrupamentos cendo-se da doutrina evangélica, o que
urbanos, é inegável a presença simultâ- é muito fácil naqueles países pela sua
nea das irmandades à ocupação da re- extensão e longetude que é das igre-
gião de Minas, dando importante supor- jas. Para se evitar estes perniciosos
te nas funções urbanas. danos recorrem os suplicantes a Vos-
igreja ao dito santo para nela se cele- A representação citada demanda ao rei,
brar o culto divino e poderem os supli- d. José I, uma provisão para que os ir-
cantes acorrer a ela e ouvirem missa mãos de São Gonçalo e de Nossa Senho-
em razão desse ficar distante três lé- ra do Rosário pudessem pedir esmolas
guas a dita freguesia [de Santo Antô- “livremente”, “por todas as comarcas das
nio de Itaverava] e se lhe fazer impos- Minas” 34 com seus nichos e imagens. O
sível irem a ela ao dito e feito. Feita recurso fazia-se necessário, em poucas
foi a dita igreja estabeleceram nela ir- palavras, para conservar o arraial e o
mandade do dito santo, e outra de culto divino. Em ter mos gerais, repete-
Nossa Senhora do Rosário dos homens se o pedido e os argumentos encaminha-
pretos em ordem a poderem suportar dos ao Conselho Ultramarino em 8 de
e conservar a dita igreja; e despesa do julho de 1754. Contudo, dessa vez, pode-
divino culto, pedindo esmolas com se perceber que o documento faz um
seus nichos para isso; e como só na histórico da Igreja e Irmandade do Rosá-
dita comarca os deixam pedir e impe- rio, apresentando uma densa localização
dos moradores, alguns dos quais subs- em missão ao dito bispado os padres
ção ao menos daqueles homens não era com os seus sermões, práticas e dou-
“eram impedidos”. 35
Nesse ponto, vale sego espiritual as suas consciências,
lembrar a ameaça vivida pelas autorida- por meio das confissões gerais e parti-
des da região mineradora diante do con- culares, que fazem os ditos padres
tingente vário de desclassificados ali reu- missionários de que todo resulta mui-
nidos, instando a conversão deste ônus to serviço a Deus e utilidade a
em utilidade. 36
Mesmo se considerarmos Respublica [...]. 38
que a vadiagem apareça nos domínios
De certa maneira, a demanda coincide
portugueses significando ausência de tra-
com a dos devotos de São Gonçalo, que
balho, certamente ela vem associada à
falavam dos “per niciosos danos” 39 cau-
“gente volante ou, como lhe chamam, de
sados pela falta do culto divino. Contu-
pé ligeiro”, 37 segundo informa um con-
do, aqueles temiam perder-se no Sertão.
temporâneo.
Estes indicam as “liberdades” que se ti-
Entre as representações enviadas ao rei
nham introduzido no bispado, e falam em
que clamavam pela assistência espiritu-
razão do “serviço de Deus e utilidade da
al dos moradores de Minas, encontra-se
Respublica”. Não temos acesso à respos-
uma dos oficiais da Câmara de Mariana,
ta do Conselho Ultramarino nos dois ca-
“em seu nome e de todos os seus mora-
sos. Todavia, a representação da Câma-
dores”, para que os auxiliasse na cons-
ra recebe parecer positivo pelo bispo de
trução de um hospício, junto à capela de
Mariana, ou seja, Câmara e bispo se re-
São Gonçalo desta cidade, que servisse
únem “resignificando” a cidade coloni-
de dor mitório para os padres
al, como ponto de partida de missão, de
capuchinhos italianos. Argumentavam
colonização religiosa. Segundo o docu-
que por
mento, que indica a presença intermiten-
não haver nela [cidade], nem em todo te dos capuchinhos, os missionários re-
seu bispado, convento algum de reli- cebem acolhida dos moradores; “conser-
giosos que por instituto saiam em mis- vando um inexplicável desejo de que os
são se tem introduzido grandes liber- ditos padres missionários venham assis-
dades para as ofensas de Deus, e da- tir nesta cidade, e nela tenham um hos-
nos dos próximos, tem mostrado a ex- pício donde saiam em missão, e aonde
periência que vindo do Rio de Janeiro se busquem para diretores, e confesso-
Em 1749, uma representação dos mora- paróquia, sumaria a função das paróqui-
dores devotos das capelas de Nossa Se- as e redefine párocos, à diferença dos
Nazaré, São Gonçalo do Brumado e San- ralelo que ele estabelece entre a cristan-
solicita a d. João V a mercê de lhes cons- aquele que distribui, que administra aos
ceição. Dizem “não ser de razão” que particular mente aos moribundos, que
despenderem com os párocos, que ain- Em 1774, vinte e cinco anos depois, uma
da que queiram os não pode governar,
nova representação é encaminhada por
reger, como Deus manda, nem os su-
Manuel Ferreira de Oliveira, entre outros
plicantes obedecem [...]. 41 devotos das três capelas de São Gonça-
Pode-se notar, nessa ocasião como em lo de Ibituruna, Nossa Senhora de Nazaré
outras, que os argumentos da “distân- e da Conceição da Barra, solicitando a
cia”, “pobreza” e “perigos de vida” ex- nomeação do reverendo Manuel Ferreira
perimentados pelos moradores da região Godinho como vigário de uma nova fre-
reaparecem. E, também, que o documen- guesia a ser criada no arraial da Concei-
to em questão, por meio do qual os su- ção da Barra. 44
mesmas três capelas poderem ter sem- ternamente, a cidade era composta de
pre pároco próprio que lhes administre grupos étnicos e ocupacionais também
o pasto espiritual”. 45
Isso aponta, por um unidos por critérios hierárquicos impre-
lado, para um deter minado tempo admi- cisos. A unidade urbana era um
N O T A S
1. Vale consultar a minuciosa pesquisa de plantas e ilustrações das cidades coloniais: Nestor
Goulart Reis Filho, Imagens de vilas e cidades do Brasil colonial , São Paulo, Edusp, Imprensa
Oficial de São Paulo, 2000. E o trabalho de Murillo Marx, Nosso chão : do sagrado ao profano,
São Paulo, Edusp, 1988, uma história da arquitetura e do urbanismo, que analisa a presença
persistente da Igreja no espaço urbano público brasileiro entre os séculos XVI e XX. O autor
anota que “à existência do foro privilegiado para o clero somava-se ainda sua prerrogativa de
conceder ou não licença para o erguimento e a freqüência dos templos de toda espécie.
Como estes constituíam o ponto alto duma rua, dum setor, representavam a casa comum de
congregações de religiosos ou de irmandades de leigos ou eram a própria ‘matriz’ duma
freguesia ou paróquia, torna-se compreensível a influência que tiveram sobre o tecido urba-
no – influência dos critérios para a concessão de determinada categoria ao povoado, para a
localização de capelas, igrejas, clausuras, para definir a orientação dos templos e a
abrangência de seus adros”. Ibidem, p. 31 – grifos meus.
2. Desde março de 2002, desenvolvo o projeto “ Corpus Christi , entre outras festas da América
portuguesa” junto ao Departamento de História do IFCS/UFRJ, através de uma bolsa de re-
cém-doutor do CNPq. A pesquisa tem uma perspectiva comparativa entre a festa de São
Gonçalo do Amarante e a festa de Corpus Christi na América portuguesa, no século XVIII, e
está em andamento. Por isso, algumas questões relacionadas, sobretudo, à devoção e festa
de São Gonçalo podem estar inconclusas.
3. São Gonçalo pode ser definido como um santo se tivermos em mente que foi historicamente
construído através de múltiplas ações da Igreja, do Estado português e dos fiéis. Para expli-
car “como esta devoção estritamente local durante três séculos [XII ao XV], tenha explodido
no período pré-tridentido”, o trabalho de Arlindo Cunha sobre o culto de São Gonçalo faz uso
das reflexões de Georges Duby e considera o santo como uma construção, que tem uma
história (Arlindo de Magalhães Ribeiro da Cunha, São Gonçalo de Amarante : um vulto e um
culto, Vila Nova de Gaia, Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia, 1996, p.xvi). Para uma
definição de “santos” populares no Brasil, vale consultar o trabalho de Luiz Mott. Aqueles,
segundo o autor, muitas vezes não contam com processos de beatificação. Contudo, apesar
da ausência de reconhecimento oficial, são acreditados pelo povo como “beneficiados dos
céus e portadores de poderes sobrenaturais”, sendo dignos de santidade (Luiz R. B. Mott,
Santos e santas no Brasil colonial, Fortaleza, Fundação Waldemar Alcântara, 1994, p. 3-4).
São Gonçalo é definido como santo, a partir do entendimento de Mott, por Rui Aniceto (Rui
Aniceto Nascimento Fernandes, Um santo nome : histórias de São Gonçalo do Amarante,
monografia de licenciatura pela Faculdade de Formação de Professores da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro, 2000). Sobre as dúvidas quanto à existência histórica de São
Gonçalo e quanto a informações da sua biografia (Antônio Vieira, Sermão de São Gonçalo, in
Sermões , Porto, Lello & Irmão, 1959, v. 2, tomo IV, p. 291-333; Maria Clara Lucas, Hagiografia
medieval portuguesa , Lisboa, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1994; Arlindo de
Magalhães Ribeiro da Cunha, op. cit.; Rui Aniceto Nascimento Fernandes, op. cit.).
4. Gonçalves Guimarães considera que o culto a São Gonçalo tem um cunho patriótico identifi-
cado em diversos momentos da sua história em Portugal, desde a União Ibérica. Quando
Felipe II expede a provisão régia para a canonização de São Pero Gonçalves, tradicionalmen-
te relacionado aos pescadores e mareantes portugueses, estes substituem o santo galego
por São Gonçalo do Amarante, o que é interpretado pelo autor como uma reação à iniciativa
régia e opção pelo santo nacional. A inscrição evocativa ao santo associada ao escudo naci-
onal e com coroa numa pedra de calcáreo, que data dos séculos XVII ou XVIII e se localiza
nos jardins da Câmara Municipal de Loulé, é tida como registro do simbolismo patriótico em
torno do culto a São Gonçalo. Gonçalves Guimarães, A festa de São Gonçalo em Vila Nova de
Gaia: origens e evoluções de um culto de mareantes, Revista de Ciências Históricas , Univer-
sidade Portucalense, v. 7, 1993, p.146, 141,149.
5. Milagre de São Gonçalo de Amarante. 1744. Apud Comissão Nacional para as Comemorações
dos Descobrimentos Portugueses, Estórias de dor, esperança e festa: o Brasil em ex-votos
portugueses (séculos XVII-XIX), Lisboa, 1998, p. 50. Há um outro ex-voto destinado a São
Gonçalo do Amarante, sem legenda, de meados do século XVIII, produzido em Minas Gerais
(Marcia de Moura Castro, Ex-votos mineiros : as tábuas votivas no ciclo do ouro, Rio de Janei-
ro, Expressão e Cultura, 1994, p. 33).
6. Câmara Cascudo refaz a história do culto de São Gonçalo desde a colonização, singularizan-
do a dança de São Gonçalo. Ponto alto da celebração, que é definida como popular pela
presença dos “humildes”, desde aquela época até meados do século XX e por sua capacida-
de de difusão entre diversos grupos sociais e por diferentes regiões (Luís da Câmara Cascudo,
Dicionário do folclore brasileiro , Brasília, Instituto Nacional do Livro, 1972, p. 414-418). A
partir de Canclini é possível desconfiar da continuidade apresentada por Cascudo da dança
de São Gonçalo, como tradição que se repete , e compreender o popular, levando-se em
conta também a sua apreensão pelo filtro dos estudos folclóricos (Néstor Garcia Canclini,
Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade, São Paulo, Edusp, 1997).
Gonçalves Guimarães faz referência ao caráter “pouco ortodoxo” da festa na visão de algu-
mas autoridades civis e religiosas. Ele diz respeito à presença de um acentuado erotismo na
festa, que se coloca, por exemplo, na dança das mulheres (Gonçalves Guimarães, op. cit., p.
150). Tomarei o sentido de “heterodoxo” utilizado por Ricardo Benzaquen de Araújo, que
caracteriza o catolicismo da Casa Grande , a partir da análise da obra de Gilberto Freyre
como uma vertente “semi-herética e heterodoxa”, “sensual e mágica” do catolicismo portu-
guês. Em sua abordagem, essa concepção que predomina naquele espaço estaria marcada
pela hybris. Entre os diversos argumentos recuperados por Araújo para propor sua interpre-
tação, estariam a sensibilidade de Gilberto permeável ao “império das paixões”; o destaque
dado às “paixões da carne”, que adviriam sobretudo da influência do maometanismo e o
lugar subordinado da Igreja ao ethos senhorial, gerando um culto eminentemente domésti-
co. Essa versão se apresenta como um catolicismo da festa, da guerra e do sexo e se distin-
gue de um catolicismo mais racional, disciplinado, ou seja, do ortodoxo representado pelos
jesuítas. A partir das colocações de Araújo, pode-se pensar que essas duas concepções di-
versas convivem, contrastam sob mais uma forma de “antagonismos em equilíbrio” nos es-
paços sociais diversos da colonização portuguesa, e que a festa de São Gonçalo é apenas
uma das manifestações daquela primeira vertente (Ricardo Benzaquen de Araújo, Os anjos
da terra, in Guerra e paz: Casa-Grande & Senzala e a obra de Gilberto Freyre nos anos 30, Rio
de Janeiro, Editora 34, 1994).
7. Luís da Câmara Cascudo, op. cit., p. 414-418.
8. João da Silva Campos, Tradições baianas, Revista do Instituto Histórico e Geográfico , Bahia,
n. 56.
9. Antônio Vieira, op. cit. A participação de diferentes grupos sociais na celebração de São
Gonçalo também pode ser localizada em: Le Gentil de la Barbinais, Lettre Quinziéme, in
Nouveau voyage autour du monde , Paris, Chez Briasson, 1728, p. 216-217, v. 3; Nuno Mar-
ques Pereyra, Compêndio narrativo do peregrino da América, Rio de Janeiro, Publicações da
Academia Brasileira, 1932, p. 113-114, v. 2. O primeiro volume foi publicado cinco vezes,
ainda no século XVIII. Contudo, o segundo per manecera manuscrito até esta edição.
26. Faço uso dos conceitos de colono, colonizador, colonizado e região colonial de: Ilmar Rohloff
de Mattos, op. cit .
27. Discuto com mais vagar a questão em: Beatriz Catão Cruz Santos, Unidade e diversidade
através da festa de Corpus Christi , op. cit., p. 68-72. O documento é AHU, Pernambuco,
1770, março, 28, cuja referência é diversa porque não tinha sido trabalhada pelo Projeto
Resgate até o momento em que o pesquisei.
28. O texto de Catalá fornece indicações ricas acerca da concepção de cidade que prevalecia
entre os holandeses, à diferença dos portugueses. Uma concepção civilizadora e pragmática,
marcada pela valorização dos conhecimentos técnicos científicos e que era reforçada por
motivações religiosas. Faz uma rápida, mas elucidativa história da cidade Maurícia, projeto
da colonização holandesa durante o governo de Nassau (José Sala Catalá, El paraíso
urbanizado: ciência y ciudad en el Brasil holandês, Quipu , México, v. 6, 1989, p. 331-363).
Vale consultar Heloísa Meireles Gesteira, Cidade Maurícia : a colonização neerlandesa no Bra-
sil, 1637-1645, Rio de Janeiro, PUC, dissertação de mestrado, 1996, no qual se encontram
os diferentes significados e funções da cidade na colonização holandesa.
29. Julita Scarano, op. cit . , p . 2.
30. Mariza de Carvalho Soares, Devotos da cor: identidade étnica, religiosidade e escravidão no
Rio de Janeiro, século XVIII, Civilização Brasileira, 2001.Ver também referências indicadas
na nota 19.
31. Caio César Boschi, Os leigos e o poder : irmandades leigas e política colonizadora em Minas
Gerais, São Paulo, Ática, 1986, p. 30. (grifos meus)
32. ibidem, p. 31.
33. AHU, Brasil/MG, cx. 68, doc. 64. Projeto Resgate cd n. 20.
34. AHU, Brasil/MG, cx. 65, doc. 23. Projeto Resgate cd n. 18.
35. AHU, Brasil/MG, cx. 65, doc. 23. Projeto Resgate cd n. 18; cx. 68, doc. 64. Projeto Resgate cd
n. 20.
36. Laura de Mello e Souza, Desclassificados do ouro : a pobreza mineira no século XVIII, Rio de
Janeiro, Graal, 1986. No capítulo “Da utilidade dos vadios” a autora parte de uma reflexão
mais geral sobre os desclassificados até centrar o foco sobre os mesmos em Minas, no sécu-
lo XVIII. Procura identificar as condições que geraram a pobreza mineira e mapeia a emer-
gência, os significados, as funções e a visão das autoridades em relação aos desclassifica-
dos. O argumento central do capítulo é que este contingente, vário e ameaçador da ordem
social, é controlado e utilizado em prol da manutenção do sistema colonial. Hoje, a
historiografia tem uma leitura mais complexa da estrutura econômica da América portuguesa
que envolve a região de Minas, contudo sua leitura a respeito dos vadios, em sua
heterogeneidade e funções, permanece uma referência da maior importância.
37. Apud Joaquim José da Rocha, Memória da capitania de Minas Gerais (fim do século XVIII),
Revista do Arquivo Público Mineiro , v. II, 1987; Laura de Mello e Souza, Desclassificados do
ouro , op. cit., p. 89.
38. AHU, Brasil/MG, cx. 63, doc. 48. Projeto Resgate cd n. 18.
39. AHU, Brasil/MG, cx. 68, doc. 64. Projeto Resgate cd n. 20.
40. idem.
41. AHU, Brasil/MG, cx. 54, doc. 31. Projeto Resgate cd n. 16.
42. De acordo com Rafael Bluteau, ‘paróquia’ “deriva-se do grego Parochos , que quer dizer
repartidor , ou hospedeiro de embaixadores . Antigamente havia um costume, que nas casas
em que se hospedava embaixador, ou enviado romano, lhe haviam de dar de graça quanta
lenha pudesse queimar, & quanto sal pudesse comer ele, & a sua gente. Então não amassa-
vam o pão com sal como agora pelo que folgavam cada bocado de pão, que comiam, com as
talhadas de carne, especialmente, que o sal não era simples, se não composto como cá sal
& pimenta. O que tinha cuidado de dar aos ministros romanos a lenha, & o sal, se chamava
parochus , que vai o mesmo que repartidor [...] A imitação disso chamamos a igreja de uma
colação paróquia [...] pela lenha entenderemos a matéria do sacramentos, e pelo sal, a gra-
ça, que sempre acompanha os sacramentos, dão-se estes romanos que caminham nesta vida
debaixo da obediência do Romano Pontífice [...]. E parochus era aquele, que tinha a seu
cargo dar a lenha, & sal aos que o Senado mandava as províncias para os negócios públicos.
Pároco pois na cristandade também é aquele [...]”, tal como transcrevi no corpo do texto.
Rafael Bluteau, Vocabulário português e latino , Lisboa, Oficina Pascoal da Silva, 1720, p.
180-181,v-2.
43. Antônio de Morais e Silva, Dicionário da língua portuguesa , 6. ed., Lisboa, Tipografia Antônio
José, 1948, tomo II. ‘paróchia’. s.f. (do lat. parochia; do gr. paroikia ), que se encontra em
alguns concílios, e que significa propriamente morada vizinha, de para próximo, e oikos ,
morada. Igreja matriz, em que há parocho .
44. AHU, Brasil/MG, cx. 106, doc. 27. Projeto Resgate cd n. 30.
45. idem.
46. A observação é de Maria Fernanda Bicalho, que analisa no capítulo 11 o conjunto das insti-
tuições político-administrativas portuguesas na época moderna, para a compreensão da or-
dem política e social na Colônia e dos princípios sobre os quais se assentou a soberania
régia no ultramar. E reafirma, como Boxer, a importância das petições e representações das
Câmaras como canais de comunicação direta entre estas e o monarca, que delas se utilizava
para controlar a política ultramarina. Nesse sentido, relê a idéia de distância e tempo admi-
nistrativo entre a Colônia e a Metrópole, tal como vêm sendo interpretados pela historiografia.
Maria Fernanda Bicalho, A cidade e o Império : o Rio de Janeiro no século XVIII, Rio de Janei-
ro, Civilização Brasileira, 2003, p. 352-359. Acredito que suas reflexões podem ser aplica-
das ao caso destes devotos, povoadores que demandam a criação de nova paróquia.
47 . ibidem, p. 353.
48. AHU, Brasil/MG, cx. 106, doc. 27. Projeto Resgate cd n. 30.
49. Richard Morse, O desenvolvimento urbano da América espanhola colonial, in Leslie Bethell
(org.), História da América Latina : a América Latina, São Paulo, Editora da Universidade de
São Paulo, Brasília, Fundação Alexandre de Gusmão, 1999, p. 61-62, v-2.
50. AHU, Brasil/MG, cx. 106, doc. 27. Projeto Resgate cd n. 30.
51. Sérgio Buarque chamou a atenção para a primazia da vida rural sobre a urbana (Sérgio Buarque
de Holanda, Raízes do Brasil , Rio de Janeiro, José Olympio, 1984, p. 18, 41, 61). Todavia,
em “O semeador e o ladrilhador”, enfocou as cidades coloniais, a partir das quais caracteri-
zou a colonização portuguesa à diferença da colonização castelhana (ibidem, p. 61-85). Fez
ainda observações sobre a experiência holandesa na América. É interessante também rever
a periodização que o autor estabelece na história da urbanização: nos séculos XVI e XVII, a
débil cena citadina só ganhava vida por ocasião dos festejos e solenidades. Já no XVIII, a
vida urbana “em certos lugares, parece adquirir mais caráter, com a prosperidade dos comer-
ciantes reinóis, instalados na cidade” (ibidem, p. 58-59).
52. No capítulo “Natureza e urbanismo”, Fernanda Bicalho analisa alguns aspectos do urbanismo
português no ultramar e, relendo Sérgio Buarque de Holanda, questiona a falta de ordem e
regularidade no seu ato construtor. A partir de Stuart Schwartz reafirma o papel da cidade,
sobretudo as cidades litorâneas, como pontos de partida da colonização e domínio no além-
mar. Explora a historiografia luso-brasileira mais recente, de modo a indicar, por exemplo,
uma atividade construtora e regulamentadora das cidades portuguesas por parte da Coroa,
que não se supunha anteriormente. Maria Fernanda Bicalho, op. cit . , p. 165-176.
V ivien Ishaq
Doutoranda em História pela UFF.
Pesquisadora do Arquivo Nacional.
Missionários Reais
A literatura religiosa e a disputa pelas
almas devotas, séculos XVI-XVIII
que falem com estilo or nado e pala- ca de semelhantes livros é uma foguei-
vras compostas, sempre inculcam ra, ou chaminé acesa. 1
O
cousas torpes e geram fantasia, e no
Antônio José da Silva Pinto, Bíblia sacra : vulgatae editionis..., apud Nicolaum Pezzana, 1742.
sentido edificante dessas obras era dado cinto e claro, para que aproveite a mui-
por sua leitura repetida, intensiva e la- tos)”, em que “se apontam os meios e
boriosa, ou seja, por meio da árdua de- diligências para evitar, ou remediar os
dicação do leitor, pretendia-se remode- danos da luxúria e adquirir e conservar
lar a consciência privada e a sua experi- as riquezas da castidade”. 36 Aqui o au-
ência temporal. Podemos ler o universo tor remete-nos ao conceito de socieda-
da literatura edificante como um conjun- de cristã perfeita, inspirado na refor ma
to coerente que ao mesmo tempo cons- tridentina, que ao tentar estabelecer a
trói a doutrina cristã e tenta difundi-la, e divisão do mundo entre almas santas e
que integra um circuito de comunicação pecadoras, fixou-se nos temas da moral
que opera segundo o modelo individual, colocando em segundo plano
hegemônico concebido pela Coroa por- os assuntos relativos à moral social.37
tuguesa. Nesse sentido, esses “livros não Ou seja, o palco para o desenrolar das
se destinam a relatar a história: eles a angústias religiosas situava-se, a partir
fazem”. 33
A idéia de que a leitura pode de então, no interior da consciência de
alterar o destino do leitor foi expressa- cada indivíduo, e a esperança de uma
da por Antônio Vieira no seu sermão so- salvação coletiva cedia espaço à preo-
bre o fundador da Companhia de Jesus: cupação com a salvação individual, res-
saltando-se, assim, a importância da fé
[Inácio de Loyola] pediu um livro de ca-
pessoal em Deus.
valarias para passar o tempo; mas, oh
e, por isso, capaz de reafirmar a valida- te da Sagrada Escritura para que esta
de do pacto colonial. “servisse para fundar ou autorizar as
trinas católicas podem ainda ser compre- vro], ou de pegar-lhes calor da palavra
endidos, de acordo com Michel Vovelle, divina, que como ela mesmo diz é fogo
como parte integrante dos mecanismos muito ativo”. 4 4 Tanto a imagem que o
de controle social que tornam os fiéis autor faz dos livros proibidos como a que
objeto de uma política, 41 e como um dos faz das palavras divinas remetem-nos
nar homens e mulheres e a treinar seus fogo na tradição bíblica. Um dos signifi-
corpos e suas almas para que juntos for- cados refere-se à idéia de que Deus é
conversão das populações nativas. Cou- for mada dentro e fora do continen-
be à Companhia propor à ascese cristã te europeu.
o alicerce racional e a estrutura sist e -
mática necessários para a Com base na experiência nos colégios,
i m p l e m e n t a ç ã o d a I g r e j a Ca t ó l i c a r e - os jesuítas dedicaram-se a produzir tra-
ver a ser cumprido pelo conjunto dos dormir, façais exame de consciência,
de que havia muito a ser feito em vida as estrelas. As estrelas são muito dis-
para se obter a graça de Deus. Segundo tintas e muito claras. Assim há de ser
muito claro. E nem por isso temais que tã no início do século XVI, 65 reafirman-
pareça o estilo baixo; as estrelas são do a validade da religião e a credibilidade
muito distintas, e muito claras e de suas palavras, que passaram a ser
altíssimas. O estilo pode ser muito cla- divulgadas também pela imprensa. Os
ro e muito alto; tão claro que o enten- reformadores protestantes moveram-se
dam os que não sabem, e tão alto que pela convicção religiosa de que o texto
tenham muito que entender nele os escrito, sobretudo o sagrado, como apon-
que sabem. 63
ta Michel de Certeau, tem o poder de
modificar a história de uma sociedade
No século XVII, a perspectiva de persua-
tida como corrompida e de restaurar uma
são presente no texto de Vieira, escrito
Igreja Católica considerada decadente; “a
fundamentalmente para os sermões fa-
ambição dos reformadores é refazer a
lados, pode ser entendida como um mo-
história a partir de um texto, eis o mito
delo ideal para as palavras impressas que
de Refor ma”.66
compõem os livros de devoção e de
espiritualidade. É a literatura edificante,
A Igreja romana combateu os infiéis tam-
seja como objeto de leituras em públi-
bém por meio das palavras de Deus. Os
co, seja como objeto de leitura íntima,
Exercícios espirituais de Inácio de
que pretende dirigir os corações e men-
Loyola, escritos em 1526, apresentam-
tes da população. Pregar – seja do púlpi-
se como resultado de uma revelação,
to, seja por meio da palavra impressa –
ditada pelo próprio Senhor ao jesuíta,
para persuadir e conquistar, continuava
reafirmando a transcedência de Deus em
a ser uma tarefa indispensável no inces-
função do sentido de inspiração contido
sante esforço não só de recompor as fra-
em sua obra.67 A credibilidade dos Exer-
turas sofridas pela Igreja ocidental, mas
cícios é dada pela sacralização da pala-
de manter seu rebanho sempre em cres-
vra escrita, e fundamentalmente não se
cimento, como já haviam preconizado os
destinam à leitura e sim à prática.68 O
antigos críticos da Igreja romana como
termo é categórico, exercício é o ato de
João Huss, no quatrocentos, e Lutero e
exercer, praticar, e tem também o senti-
Calvino, um século mais tarde. A Igreja
do de treinamento e adestramento. É a
romana também só poderia ser transfor-
credibilidade do texto que produz prati-
mada pela palavra de Deus. 64
cantes, relacionando-se assim o fazer
Os livros religiosos impressos e, mais crer à prática da devoção, à ação que
precisamente, as traduções da Bíblia inclui uma disciplina física e mental dos
começaram a se difundir na Europa cris- exercitantes. 69
Oralidade e escrita, para Certeau, não fusão das novas exigências da religião
devem ser separados como pertencentes reformada e para a confor mação espiri-
a campos opostos, nem tampouco enten- tual dos fiéis.70
didos como iguais ou comparáveis, es-
Nobert Elias, em sua análise sobre os
tando apenas com sinais invertidos. A
mecanismos de implantação e reprodu-
memória cultural adquirida pela tradição
ção das normas da sociedade de corte
oral per mite e enriquece gradativamente
do Antigo Regime, o modelo de civilité ,
as “estratégias de decifração semântica
sublinha que é a interiorização da regra
cujas expectativas a decifração de um
que lhe confere maior eficiência. 71 As-
escrito afina, precisa ou corrige”. Assim,
sim, a disciplina coletiva torna-se “obje-
fala e escrita são fios que interminavel-
to de uma gestão pessoal e privada”.72
mente tecem a mesma trama, a palavra
Os livros espirituais divulgam os compor-
escrita retorna como voz ouvida, ou, in-
tamentos lícitos, em que o ato individu-
versamente, uma palavra falada se fixa
al está irremediavelmente sob o vigilan-
na escrita. Os textos da literatura de de-
te olhar de todos e de Deus. As duas re-
voção – como aqueles que orientam os
formas, apesar de suas diferenças de
fiéis a se preparar para a morte e para
ordem teológica, desejavam encerrar os
os exercícios religiosos – pretendem dar
fiéis numa teia de práticas e
forma às práticas religiosas. Essas obras
ensinamentos obrigatórios e, ao mesmo
aspiravam a produzir a educação dos es-
tempo, dotar os religiosos de uma for-
píritos para moldar as condutas, incor-
mação compatível com as novas exigên-
porando gestos necessários ou apropri-
cias da Igreja pós-tridentina, sujeitando-
ados às nor mas religiosas.
os à pressão dos mecanismos disciplina-
A literatura de devoção filia-se, também, res que visavam à interiorização das nor-
à tradição dos tratados de civilidade e mas inculcadas no seminário para o cor-
de divulgação de modelos de comporta- reto exercício de suas funções. Francis-
mento que fundaram uma linguagem co- co Falcon, ao analisar a direção e o con-
mum e novos pontos de referência soci- trole da cultura empreendidos pelo Es-
al e cultural para o homem moder no. tado português no Renascimento, alerta
Esse movimento de divulgação de mode- para o fato de que o “terror intelectual
los de civilidade acompanhou as refor- contaminava como verdadeira peste as
mas protestante e católica, fazendo do obras e as consciências; a autocensura
livro e, em particular, da literatura de funcionava com maior eficácia talvez que
devoção um dos instrumentos para a di- a própria censura. Para sobreviver era
qüentemente, errar sobre quem era preende para crer, crê para compreen-
Deus, assim a instrução do catecismo e der”.82 Por que para ser salvo, era preci-
o conhecimento dos dogmas e preceitos so, antes, saber.
da religião católica tornavam-se funda-
mentais na era moder na. Voltava-se para Artigo recebido para publicação em ou-
as palavras de Santo Agostinho: “com- tubro de 2003.
N O T A S
1. Biblioteca Nacional. Seção de Obras Raras. Manuel Bernardes, Armas da castidade , Lisboa,
Na Oficina de Miguel Deslandes, 1699.
2. Arquivo Nacional. Apud Simão de Vasconcelos, Crônica da Companhia de Jesus nesta parte
do Novo Mundo, Lisboa, Editor J. Fer nandes Lopes, 1875, p. 50.
3. Édouard Jeauneau, A filosofia medieval , Lisboa, Edições 70, 1980, p. 13.
4. N. S. Davidson, A Contra-reforma , São Paulo, Martins Fontes, 1991, p. 7.
5. Jean Delumeau, A civilização do Renascimento , v. I, Lisboa, Editorial Estampa, p. 141.
6. Inácio de Loyola, Autobiografia , São Paulo, Edições Loyola, 1991, p. 19.
7. Henri Marc-Bonnet, Histoire dês ordres religieux , Paris, PUF, 1949, p. 90.
8. Cf. Krumenacker Y., L´école française de spiritualité, Paris, Cerf, 1998.
9. L. J. Rogier e J. De Bertier de Sauviny, Nova história da Igreja , Petrópolis, Vozes, p. 207.
10. Henri Bremond, Histoire littéraire du sentiment religieux en France , Paris, Bloud et Gay, 1921,
p. 3.
11. Raymond Deville, L´école française de spiritualité , Paris, Desclée, s.d.
12. L. J. Rogier e J. De Bertier de Sauviny, op. cit., p. 211.
13. Biblioteca Nacional. Seção de Manuscritos. Cf. Estatutos da Congregação dos Clérigos do
Oratório de Nossa Senhora da Assunção, 1670.
14. Arquivo Nacional. Companhia de Jesus, Regras da Companhia , Évora, 1603.
15. Raymond Deville, op. cit.
16. Francisco Contente Domingos, Ilustração e catolicismo – Teodoro de Almeida , Lisboa, Coli-
bri, 1994, p. 28.
17. Eduardo Hoornaert, A Igreja Católica no Brasil colonial, in Leslie Bethell (or g.), História da
América Latina: América Latina colonial, v. 1, São Paulo, Editora da Universidade de São
Paulo, 1997, p. 558.
18. Charles Boxer, O império marítimo português 1415-1825, Lisboa, Edições 70, 1977, p. 84.
19. José Barnadas, A Igreja Católica na América espanhola colonial, in Leslie Bethell (org.), op.
cit., p. 525.
20. José Barnadas, op. cit., p. 577.
21. Cf. Vivien Ishaq, O padroado real, in Compromisso das almas : irmandades leigas na cidade
do Rio de Janeiro do século XVIII, dissertação de mestrado em história social da cultura, Rio
de Janeiro, PUC-Rio, 1996.
22. Keith Thomas, Religião e o declínio da magia : crenças populares na Inglaterra, séculos XVI e
XVII, São Paulo, Companhia das Letras, 1991, p. 55-56.
23. idem.
24. Renato Berbert de Castro, Notícia do catálogo de livros, que se acham à venda em casa de
Manuel Antônio da Silva Serva, in Maria Beatriz Nizza da Silva, Cultura e sociedade no Rio de
Janeiro (1808-1821) , São Paulo, Ed. Nacional, 1978, p. 81.
25. Biblioteca Nacional. Seção de Obras Raras. Antônio das Chagas, Obras espirituais , Lisboa,
Na Oficina de Miguel Deslandes, 1684; Sermões genuínos e práticas espirituais , Lisboa, Na
Oficina de Miguel Deslandes, 1690.
26. Segundo Francisco Contente Domingos, op. cit., p. 84, “pretende harmonizar o cristianismo
com a filosofia das luzes, tal como se propunha fazer no domínio científico-filosófico”.
27. Foi realizada pesquisa nos processos de inventários post-mortem sob a guarda do Arquivo
Nacional.
28. Michel de Certeau, A invenção do cotidiano , 1- A arte do fazer, Petrópolis, Vozes, 1998, p.
228.
29. Gugliemo Cavallo e Roger Chartier, História da leitura no mundo ocidental , São Paulo, Ática,
1998, p. 35.
30. Arquivo Nacional. Inventários, caixa 1.827, processo 9.263, ano de 1794, de Maria Joaquina
de Oliveira.
31. Jean Delumeau, O pecado e o medo : a culpabilização no Ocidente (séculos 13-18), São
Paulo, Edusc, 2003, v. 1, p. 46.
32. Cf. Thomas de Kempis [1420], Imitação de Cristo , São Paulo, José Olympio Editora, 1948.
33. Robert Darnton, A palavra impressa, in O beijo de Lamourette : mídia, cultura e revolução,
São Paulo, Companhia das Letras, 1990, p. 131.
34. Antônio Vieira, Ser mões , organização e introdução de Alcir Pécora, São Paulo, Hedra, 2000,
p. 122.
35. Manuel Bernardes, op. cit.
36. idem.
37. Cf. Eduardo Hoornaert, História geral da Igreja na América Latina , História da Igreja no Brasil,
tomo 2, Petrópolis, Vozes, 1970.
38. Arquivo Nacional. Inventários, maço 491, processo 597, de 1799.
39. L. J. Rogier chama a atenção para a vulgarização no terreno particular da piedade, que se
torna uma especialidade do século XVIII. Cf. L. J. Rogier e J. de Bertier de Sauviny, op. cit.
40. Maria Beatriz Nizza da Silva, Nova história da expansão portuguesa (1620-1750) , Lisboa,
1991, p. 382.
41. Cf. Michel Vovelle (coord.), L’homme des Lumières , Paris, Seuil, 1996.
42. Biblioteca Nacional. Seção de Obras Raras. Manuel Bernardes, Armas da castidade , op. cit.,
p. 271.
43. Biblioteca Nacional. Seção de Obras Raras. Manuel Bernardes, Exercícios espirituais e medi-
tações da vida purgativa , Lisboa, Na Oficina de Antônio Pedroso Galram, 1731.
44. idem.
45. Cf. Maurice Cocagnac, Les symboles bibliques : lexique théologique, Paris, Cerf, 1994, p. 35-50.
46. idem.
47. As regras ou instruções que acompanham o Index librorum prohibitorum foram impressas
em Lisboa, em 1564, e reproduzidas em língua portuguesa no Catálogo dos livros que se
proíbem nestes reinos , publicado em 1581. José Sebastião da Silva Dias, Os descobrimen-
tos e a problemática cultural do século XVI , Lisboa, Editorial Presença, 1982, p. 265-267.
48. A censura é exercida no Reino e no espaço colonial pelas duas instâncias eclesiásticas –
Santo Ofício e prelados diocesanos – e soma-se a elas o controle do Desembargo do Paço até
a criação, no âmbito das reformas pombalinas, da Real Mesa Censória (1768) e da Real Mesa
da Comissão Geral sobre o Exame e Censura de Livros (1787).
49. Auto de inventário e avaliação dos livros achados no colégio dos jesuítas do Rio de Janeiro e
seqüestrados em 1775, RIHGB , v. 301, Rio de Janeiro, Departamento de Imprensa Nacional,
1973, p. 259.
50. Jorge Benci, Economia cristã dos senhores no governo dos escravos , São Paulo, Editorial
Grijalbo, 1977 (1. ed., Roma, Antônio Rossi, 1705).
51. Cf. Eduardo Hoornaert, História geral da Igreja na América Latina , op. cit., p. 52.
52. Do mesmo grupo de Jorge Benci é o italiano João Antônio Andreoni, que escreveu Opulência
e cultura do Brasil por suas drogas e Minas , publicada em Lisboa, sob o pseudônimo de
Antonil.
53. Jorge Benci, op. cit., p. 84-85.
54. Arquivo Nacional. Constituições primeiras do arcebispado da Bahia , São Paulo, Tipografia 2
de Dezembro, 1853, livro primeiro, título II, cânon, p. 2.
55. Louis Châtelier, La religion des pauvres: les sources du christianisme moderne XVIe – XIXe
siècles, Paris, Aubier, 1993, p. 31.
56. Arquivo Nacional. Nuno Marques Pereira, Compêndio narrativo do peregrino da América : em
que se tratam vários discursos espirituais e morais, com muitas advertências, e documentos
contra os abusos, que se acham introduzidas pela malícia diabólica do Estado do Brasil,
Lisboa, Na Oficina de Manuel Fernandes da Costa, Impressor do Santo Ofício, 1731.
57. Cf. Eduardo Hoornaert, História geral da Igreja na América Latina , op. cit, p. 52.
58. Arquivo Nacional. Nuno Marques Pereira, op. cit., p. 4.
59. ibidem, p. 1.
60. ibidem, p. 103.
61. Jean Lacouture, Os jesuítas , 1: os conquistadores, Porto Alegre, L&PM, 1994, p. 350.
62. Manuel Bernardes, Exercícios espirituais e meditações da vida purgativa , op. cit.
63. Antônio Vieira, Sermão da Sexagésima, in Obras completas. Ser mões , Lisboa, Tipografia Mi-
neral Central, 1889.
64. Cf. Jean Delumeau, A civilização do Renascimento , v. 1, Lisboa, Editorial Estampa, 1983.
65. A Bíblia foi o primeiro livro impresso na Europa, e a primeira obra publicada em língua
portuguesa foi a tradução da Vita Christi, em 1495, de Rudolfo Cartusiano. A Imitação de
Jesus Cristo, escrita na década de 1420 por Thomas A. Kempis, foi, segundo Delumeau, a
obra mais lida na Europa Ocidental, sendo impressa em diversas línguas, cerca de 60 vezes,
antes do ano de 1500. Jean Delumeau, A civilização do Renascimento , op. cit., p. 141.
66. Michel de Certeau, A invenção do cotidiano, 1- A arte do fazer, op. cit., p. 263.
67. Diferente do sentido fechado ou estático da Bíblia que é dado pelo protestantismo, pois nela
está escrito tudo aquilo que o homem deve saber sobre Deus. Nesse sentido, para a Igreja
protestante as revelações são energicamente recusadas, como qualquer autoridade exterior
ao texto bíblico.
68. Jean Lacouture, op. cit., p. 32.
69. Jean Delumeau ressalta a influência da Devotio moderna nos Exercícios de Loyola, que se
constitui em uma nova forma de espiritualidade que privilegia a meditação pessoal e, em
conseqüência, enfatiza a fé individual em relação à liturgia. Essa meditação deveria ser me-
tódica, apoiada em exercícios e, fundamentalmente, ser dirigida, introduzindo assim um
novo modo de expressão da devoção no Ocidente. Jean Delumeau, A civilização do
Renascimento , v. 2., op. cit., p. 262.
70. Jacques Revel, Os usos da civilidade, in Philippe Ariès e Roger Chartier (orgs.), História da
vida privada. Da Renascença ao século das Luzes , v. 3, São Paulo, Companhia das Letras,
1991, p. 170.
71. Cf. Nobert Elias, O processo civilizador , Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1990.
72. Jacques Revel, op. cit., p. 170.
73. Francisco Falcon, A cultura renascentista portuguesa, Semear , Rio de Janeiro, v. 1, n. 1,
1997, p. 38.
74. Por exemplo, o best-seller dessa literatura na França é o L’ange conducteur dans la dévotion
chrétienne ou pratique pieuse en faveur des âmes dévotes , escrito pelo jesuíta Jacques Coret
em 1683, reeditado 51 vezes entre os anos de 1770 e 1789, atingindo numa única reedição
cerca de cem mil exemplares. Dominique Julia, La pesée d’un phénomène, in Jacques Le
Goff e René Rémond, Histoire de la France religieuse, XVIIIe-XIXe siècle, Paris, Seuil, 1991.
75. Apud Renato Berbert de Castro, op. cit., p. 88.
76. Michel de Certeau, op. cit., p. 236.
77. Roger Chartier, Textos, impressões e leituras, in Lynn Hunt, A nova história cultural , São
Paulo, Martins Fontes, p. 226.
78. Luiz Felipe Baêta, Vieira e a imaginação social jesuítica : Maranhão e Grão-Pará no século
XVII, Rio de Janeiro, Topbooks, 1977, p. 75.
79. Cf. Michel Vovelle, A longa duração, in Ideologias e mentalidades , São Paulo, Brasiliense,
1991, p. 259-298.
80. Angel Rama, A cidade das letras , São Paulo, Brasiliense, 1985, p. 36.
81. Cf. Dominique Julia, Le prête, in Michel Vovelle (coord.), L’homme des Lumiéres , op. cit.
82. Apud Édouard Jeauneau, op. cit., p. 14.
Mediadores Culturais
Jesuítas e a missionação na
Índia (1542-1656)
A
preocupação com a missão e ação, e local privilegiado para a
os cuidados com a educação concretização do princípio do contato
foram as marcas mais conhe- mais cristão com o mundo. 1
cidas da Companhia de Jesus, desde sua
for mação por iniciativa de Inácio de Ao discutir o conceito de “império”,
Loyola, em 1537, sendo a Fór mula do Anthony Pagden explora a associação da
Instituto aprovada pelo papa Paulo III na definição romana para civitas – que
bula Regimini Militantis Ecclesiae , em corresponde à comunidade ideal, ao lo-
1540. Para os jesuítas, a missão era o cal de humanidade, ao lugar de
caminho da consolidação da Igreja, vis- florescimento – à noção de “civilizar”, ou
to que a conversão tinha o destacado seja, transferir a civitas para outros lu-
papel de alargamento da sua área de atu- gares, o que significa dizer dominar ou-
tras regiões para levar a sua própria cul- a propagação do catolicismo nessas re-
tura. Com os imperadores cristãos, o giões, que refletiu importante ponto de
antigo sonho de universalidade e a am- tensão nos séculos XVII e XVIII.3
bição pagã de civilizar foram transforma- No entanto, tal procedimento em relação
dos em um objetivo análogo de conver- a outras culturas não era algo novo para
são na cristandade – christianitas . Deri- a Igreja, nem se configurava como práti-
va daí a noção de “império cristão”, que ca evangelizadora exclusiva da Compa-
apoiou a transposição do conceito de nhia de Jesus. Muito antes, a “adapta-
civitas para o de “missão”. 2 Dessa for- ção” foi proposta por São Paulo como
ma, a ordem per feita só poderia ser método para conduzir infiéis a Cristo, e
alcançada no trabalho de cristianização, os jesuítas apenas levaram essa propos-
no trabalho em prol do domínio da fé, ta a limites extremos. 4
princípio que foi amplamente assumido
Apesar do esforço de aproximação, deve-
pela Companhia de Jesus.
se ter bem claro que, mesmo quando os
É importante destacar que o espírito prá- inacianos aparentemente toleraram ou
tico dos jesuítas, que marcou a ordem conformaram-se com a realidade cultu-
inaciana sobretudo no trabalho missio- ral e religiosa daqueles que pretendiam
nário, iria conduzir a um esforço de apro- evangelizar, o postulado básico de sua
ximação cultural com os grupos sociais ação era o de transformar, ou seja, sub-
e étnicos a serem evangelizados, que meter o outro à sua própria lógica, ao
pode ser exemplificado na catequese catolicismo, pois o que acreditavam que
feita nas línguas dos povos submetidos devia ser feito era promover a salvação
à missionação da Companhia de Jesus. das almas daqueles que estavam longe
Porém, tal aproximação não significou, da fé. 5
ao menos inicialmente, uma ampla com-
O historiador português João Paulo de
preensão das diferenças do outro, mas
Oliveira e Costa observou que as ações
sim uma tática de identificação para fa-
de evangelização dos jesuítas, fossem
cilitar o processo de conversão.
elas no Oriente, na América ou na Áfri-
Algumas vezes o procedimento dos je- ca, não se desenvolviam de maneira uni-
suítas em relação aos povos “não euro- forme. Onde a presença das autoridades
peus” se tornou alvo de críticas do clero régias portuguesas era marcante e ine-
mais ortodoxo, que via no tipo de abor- quívoca, o modelo de conversão tendia
dagem desenvolvido por eles ameaças à a ser “excessivamente ocidentalizador”,
integridade da fé. A questão do laxismo mas nas regiões fora do domínio direto
dos inacianos pode ter como exemplo a do Império português “foram ensaiadas
discussão sobre a utilização de práticas numerosas abordagens inovadoras”. 6 O
religiosas dos chineses e dos hindus para autor usa o conceito de “acomodação
Representação de pagode hindu – templo religioso – feita pelo holandês Linschoten no final do
século XVI, que evidencia a demonização que os cristãos faziam das práticas religiosas indianas.
“ligações entre mundos, povos e cultu- turas, o mediador cultural pode utilizar-
ras, aqueles que efetivaram a passagem, se de sistemas de significados com dife-
o salto ou a transferência de um univer- rentes chaves de interpretação e irá ob-
so intelectual, material ou religioso para ter mais resultados na medida em que
outro”. 7
conseguir transmitir sentido e ser legí-
vel e interpretado por todos. 9
Por meio do estudo dos mediadores cul-
turais e de suas trajetórias, Gruzinski Vivendo na fronteira de civilizações, nos
considera possível definir a limites de cada cultura, muitos jesuítas
impermeabilidade ou a porosidade das puderam construir pontes, conexões en-
fronteiras culturais, a referenciação das tre esses mundos, tornando-se, portan-
circunstâncias, das condições e das mo- to, mediadores culturais na concepção
dalidades da passagem feita por eles definida por Gruzinski. É verdade que
(amálgama, transferência, síntese, tradu- isso deve ser entendido como uma das
ção). 8 Ao colocar em contato duas cul- tendências desenvolvidas pela Compa-
çosa, Portugal, no ano de 1520, descen- que aos domingos todos venham à igre-
dente de cristãos-novos, 12
primeiramen- ja [...]. Os careás do lugar pequeno e
te entrou na ordem dos capuchos, mas os palevilís [...] têm também cada um
não lhe foi permitido nela professar, por- sua igreja pequena, para ensinarem as
Brâmane – a principal casta da Índia – retratado pelo holandês Linschoten, no final do século XVI.
está no domínio da língua tâmil, além do divulgar a doutrina por meio de catecis-
malaiala e do telugu. Produziu dois cate- mos e outros manuais. O dedicado tra-
dos por Henriques foi a forma por ele que na costa da Pescaria em finais do
encontrada de direcionar a sua ener gia século XVI não se falava português na
por ser o “menos político de todos, era estabelecida pelo próprio Henrique
cer seus talentos”, pois sua condição de Outro nome de destaque na inovação de
descendente de cristãos-novos seria sem- métodos de conversão na Índia foi o de
pre um impedimento para outras aspira- Roberto Nobili. Nascido em Roma no ano
ções. 15
de 1577, de uma família nobre de
O próprio Francisco Xavier ordenou que Montepulciano, na Toscana, foi noviço da
Henriques aprendesse o tâmil. A princí- Companhia de Jesus em Nápoles, em
pio ele enfrentou grandes dificuldades, 1596. Solicitou aos superiores fazer mis-
mas ao fim de pouco tempo conseguiu são no Oriente, saindo de Lisboa para a
produzir um manual básico para a apren- Índia em 1604, e chegando a Goa em
dizagem. No entanto, à medida que 1605. Esteve brevemente em Cochim e
aprofundava seu conhecimento, verificou na costa da Pescaria.
que existiam muitos problemas a enfren- Ao contrário de Francisco Xavier e de
tar: “havia uma língua que era usada muitos jesuítas que viveram na Índia na
pelos ‘sábios’ e outra pelo povo comum; segunda metade do século XVI, Nobili
que o tâmul escrito e o tâmul falado não identificou na casta dos brâmanes 18 a
coincidiam [...]; e evidentemente, que chave das conversões na Índia, avalian-
havia diferenças regionais e de casta”. 16 do que se fosse possível cristianizar esse
Outra grande dificuldade era a pronún- grupo, as outras castas, historicamente
cia da língua. submetidas aos brâmanes, os acompa-
Dominar a língua da região serviu para nhariam, criando um efeito multiplicador
dois modos de ação: for mar missionári- do número de convertidos. Opôs-se, as-
conta como fazia para comunicar-se com postura de Nobili não feria dois concei-
Nobili: tos básicos da formação dos jesuítas –
“adaptação de normas e tolerância das
nem eu, nem meus moços, nem portu-
violações que não fossem extremamen-
gueses, nem cristãos vão à sua igreja,
te ofensivas” 23 –, que caracterizavam o
nem casa, e se é necessário ir algum
pragmatismo tão peculiar à ordem
moço à sua casa há de ser de noite, e
inaciana.
quando o padre para nos confessarmos
há de vir a esta casa, há de ser em tem- Fer não Guerreiro relata a experiência
po de escuro, e muito de noite, de de Nobili em livro publicado em
modo que se não saiba quem é ele a 1609:
esta casa para nos confessarmos: por-
o padre Roberto Nobili, italiano de na-
que nos trajes em que ele anda não é
ção e sobrinho do ilustríssimo cardeal
conhecido e eu se for, logo me conhe-
Sforza [...] começando a aprender a lín-
cerão. Quanto aos seus cristãos não
gua e os costumes da terra e conside-
hão de vir ouvir missa a esta igreja nem
rando que o maior impedimento que
prática, posto que por alguma ocasião
havia para a conversão era o baixo con-
aconteça não estar o padre para dizer
ceito que os badagás tinham dos por-
missa ao domingo ou santo. 22
tugueses e de nossa lei [...] determi-
Pode-se perceber nesse relato a preocu- nou de os levar por seu humor. 24
pação de Nobili em desvincular-se de
Guerreiro informa ainda que Nobili agiu
qualquer conexão com elementos que
inspirado pelo sucesso da missão na
pudessem quebrar a lógica da pureza de
China do italiano Ricci, que já obtivera
sua condição aos olhos dos brâmanes.
bons resultados, a partir do uso, por
Com tudo isso, Nobili gradativamente
parte dos padres jesuítas, do hábito usa-
conseguiu promover a conversão de al-
do pelos letrados chineses, pois passa-
guns brâmanes por volta de 1608. Pro-
ram a ser respeitados como os sábios
curava sempre respeitar os costumes
locais. 25 O autor afirma que a repercus-
indianos que não considerasse supersti-
são da apresentação de Nobili foi gran-
ção. Dessa for ma, não reprimia o uso da
de e que até o naique de Maduré queria
linha bramânica (tríplice cordão de algo-
que ele fosse conhecê-lo:
dão que os brâmanes traziam a tiracolo
da esquerda para direita), do kudumi ao que respondeu um dos seus gran-
(tufo na cabeça), o uso do sândalo nas des que o padre era tão casto que só
fricções corporais dos banhos rituais, a por não ver mulheres nem saía de casa:
continuação de sinais na testa que fazi- a qual virtude tanto eles mais veneram,
am as distinções das castas, entre ou- quanto menos a guardam pela dificul-
tros costumes. É importante notar que a dade que nisso experimentam. É ver-
dade que o padre com haver mais de vem sem se lavarem e porem o
Roberto Nobili, jesuíta italiano de origem nobre que desenvolveu no início do século XVII,
na missão de Maduré, no Malabar, um modelo de conversão específico para a casta brâmane.
Goa que, após analisarem a questão, texto conhecido como “Primeira apolo-
condenaram como supersticiosas, escan- gia”, ou simplesmente “Resposta do pa-
dalosas e ilícitas as tentativas de aproxi- dre Roberto Nobili às censuras de
mação desenvolvidas por Nobili, no Goa”. 32 O documento foi escrito com a
Malabar. urgência que a situação exigia e ilustra
a alta formação intelectual do missioná-
Por outro lado, o jesuíta italiano também rio italiano, que não tendo textos teoló-
recebia apoio entre seus colegas gicos disponíveis, viu-se forçado a ela-
inacianos, e seus maiores aliados eram borar seus argumentos com o auxílio da
um companheiro da missão de Maduré, memória de suas antigas leituras. O je-
o padre Antônio Vico, e o arcebispo de suíta defendia-se das acusações alegan-
Cranganor, o jesuíta Francisco Roz. Di- do que esses costumes locais – o uso da
ante das acusações, Nobili escreveu um linha bramânica, os banhos rituais, as
vestimentas, entre outros – tinham sig- 1618, outro breve do mesmo papa orde-
nificado social, eram sinais exteriores e nou que o arcebispo e os inquisidores
não de superstição, portanto poderiam de Goa organizassem uma junta para
e deveriam ser tolerados. Antônio Vico analisar as práticas de Nobili.
e Francisco Roz também fizeram consi-
As considerações dessa junta foram re-
derações escritas sobre os métodos pra-
metidas ao inquisidor-geral em Lisboa,
ticados em Maduré, além dos três terem
d. Fernão Martins de Mascarenhas, para
participado de debates sobre a questão
dar uma sentença, o qual por sua vez a
tanto em Cochim como em Goa.
enviou a Roma, onde a questão foi exa-
A discussão acabou por extrapolar os li- minada por três teólogos que deram ra-
mites da ordem jesuítica e começou a zão a Nobili. Baseado em todas essas
envolver outras autoridades eclesiásticas considerações, o papa Gregório XV, na
do Oriente. O bispo de Cochim, d. André bula Romanae sedis antiste , de 1623,
de Santa Maria, opunha-se de for ma ve- permitiu a continuidade dos trabalhos do
emente ao método de Nobili. Por sua vez, jesuíta italiano, fazendo, porém, algumas
o arcebispo de Goa, d. Aleixo de recomendações para que a superstição
Menezes, tinha simpatia pelos argumen- e o escândalo fossem sempre evitados.
tos do jesuíta italiano. No entanto, a par- Além disso, aprovou a separação das
tir de 1611, o seu sucessor, d. Cristovão castas, mas recomendou que nada fosse
de Sá, não manteve a mesma posição, feito em prejuízo dos mais pobres e hu-
polarizando ainda mais o debate. Em mildes.33
1613, o provincial da Companhia de Je-
Nobili continuou seus trabalhos missio-
sus, Pero Francisco, chegou a ordenar
nários na região, por vezes enfrentando
que Nobili e Vico não fizessem mais ba-
tensões locais. De 1639 a 1641, por
tismos na região.
exemplo, permaneceu preso por ordem
O problema finalmente chegou a Roma. do naique de Maduré. Posteriormente, al-
A princípio, os métodos de Nobili causa- guns outros jesuítas reproduziram os
ram escândalo, mas logo outras interpre- métodos do italiano na região, com vari-
tações dos acontecimentos foram apre- ações: os padres Baltazar da Costa, Leo-
sentadas e o debate também lá se esta- nardo Cinnani e João de Brito são os
beleceu. Em 1615, o geral da Companhia melhores exemplos.34 Já muito doente,
de Jesus, Claudio Aquaviva, deu sua quase cego, e apesar de ter expressado
aprovação a Roberto Nobili. No ano se- o desejo de morrer em Maduré, Nobili
guinte, no breve Cum sicut frater nitas, o foi mandado para Meliapor, onde veio a
papa Paulo V demonstrou consideração falecer em 1656. 35 O legado de seu es-
ao método de Nobili e recomendou um forço missionário na região pode-se re-
exame mais cuidadoso da questão. Em sumir em cerca de alguns milhares de
N O T A S
1. José Sebastião Silva Dias, Correntes de sentimento religioso em Portugal , Coimbra, s.ed.,
1960, v. 1, p. 170.
2. Anthony Pagden, Lords of all the world : ideologies of Empire in Spain, Britain and France (c.
1500- c. 1800), New Haven/ London, Yale University Press, 1995, principalmente o capítulo II.
3. Ver C. R. Boxer, O Império colonial português, trad. Inês Silva Duarte, Lisboa, Edições 70,
1977, p. 267; e Jonathan D. Spence, O palácio da memória de Matteo Ricci : (a história de
uma viagem: da Europa da contra-refor ma à China da dinastia Ming), trad. Denise Bottmann,
São Paulo, Companhia das Letras, 1986.
4. Maria de Deus Beites Manso, A Companhia de Jesus na Índia: 1542-1622 : aspectos da sua
ação missionária e cultural, 1999, mimeo., p. 86-87, 2 v., tese (doutorado em história),
Universidade de Évora, Évora.
5. Para a discussão sobre a questão das alteridades em conflito ver: Tzvetan Todorov, A con-
quista da América : a questão do outro, Lisboa, Martins Fontes, 1983; Maria Regina Celestino
de Almeida, Os vassalos d’ el rey nos confins da Amazônia : a colonização da Amazônia Oci-
dental (1750-1798), 1990, mimeo., p. 63-66, dissertação (mestrado em história), Universi-
dade Federal Fluminense, Niterói; e Luís Felipe Baêta Neves, O combate dos soldados de
Cristo na terra dos papagaios : colonialismo e repressão cultural, Rio de Janeiro, Forense
Universitária, 1978.
6. João Paulo de Oliveira e Costa, A diáspora missionária, in João Francisco Marques e Antônio
Camões Gouveia (coords.), História religiosa de Portugal : humanismo e reformas, Lisboa,
Círculo de Leitores, 2000, v. 2, p. 279.
7. Ver a introdução de Rui Manoel Loureiro e Serge Gruzinski (coords.), Passar as fronteiras , II
Colóquio Internacional sobre Mediadores Culturais. Séculos XV a XVIII, Lagos, Centro de
Estudos Gil Eanes, 1999, p. 5. Os autores pertencem ao Centre de Recherches sur les mon-
des Américains, da École des Hautes Études en Sciences Sociales, e pretendem questionar a
figura do “mediador cultural” no mundo ibérico entre os séculos XV e XVIII. Os trabalhos
apresentados no Colóquio, no entanto, têm uma abrangência geográfica maior, pois existem
estudos sobre o Oriente também.
8. ibidem, p. 6.
9. Beatriz Moncó Rebollo, Mediación cultural y fronteras ideológicas, in Rui Manoel Loureiro e
Serge Gruzinski (coords.), op. cit., p. 342-343.
10. A província de Goa, da Companhia de Jesus, estava submetida à Assistência de Portugal e
era responsável, de 1542 até 1601, pela administração da presença jesuítica em áreas que
iam do litoral da Índia até o Japão e a China. A partir de 1601, foram criadas outras provín-
cias no Oriente: a do Japão e do Malabar (região ao sul de Goa), e ainda a vice-província da
China. Em Goa concentrava-se todo o movimento de chegada dos jesuítas e sua posterior
distribuição em função das tarefas deter minadas pelo provincial. Ali também se encontrava
o Colégio de São Paulo, que não foi fundado pelos jesuítas, mas que passou a ser administra-
do por eles, após instâncias das autoridades civis e eclesiásticas de Goa. Havia, ainda, na
capital do Estado da Índia, pertencentes à ordem jesuítica, a Casa Professa, a igreja de Bom
Jesus e a Casa de Provação, com o noviciado. Os jesuítas eram também responsáveis pela
administração do Hospital Real de Goa. Os inacianos possuíam uma tipografia na cidade e
isso possibilitou muitas publicações que serviram para a divulgação e realização dos traba-
lhos de evangelização.
11. O início da atuação da Companhia de Jesus no Oriente está associado ao nome de Francisco
Xavier, que partira de Lisboa, em abril de 1541, na nau que transportava também o novo
governador do Estado da Índia, Martim Afonso de Sousa, só chegando a Goa em maio de
1542. Foi acompanhado por Francisco de Mansilha e Paulo Camarte, ou Micer Paulo, como é
chamado nas cartas jesuíticas, que tinham entrado na ordem recentemente. Xavier estava
investido do cargo de superior das missões no Oriente e no de legado do papa, o que lhe
granjeava grande autoridade. Nos dez anos em que viveu no Oriente, foi responsável por
grande número de batismos, pela estruturação administrativa inicial da Companhia de Jesus
e por um número impressionante de viagens, além da própria amplitude delas: costa da
Pescaria, Cochim, Meliapor, Malaca, Molucas, Japão, chegando próximo à China, que estava
fechada à entrada de estrangeiros, onde aliás veio a falecer, em 2 de dezembro de 1552.
Dessa forma, pode-se perceber que o tempo que passou na cidade de Goa, propriamente
dita, foi diminuto. Mas, através de uma freqüente correspondência ficava a par dos proble-
mas e questões pertinentes à sua função e tomava as decisões necessárias.
12. Dauril Alden, The making of an enterprise: the Society of Jesus in Portugal, its empire and
beyond, 1540-1750, Stanford, Stanford University Press, 1996, p. 50. Segundo o autor, sua
ascendência era tanto de judeus quanto de mouros convertidos ao cristianismo.
13. Antônio Lourenço Farinha, Vultos missionários da Índia quinhentista , Cucujães, Editorial Mis-
sões, 1955, p. 73-74. Quando Henrique Henriques entrou para a Companhia ainda não havia
sido feita a redação final das constituições da ordem, que vieram a proibir a admissão dos
descendentes dos judeus entre os jesuítas. Depois de promulgadas, Henriques solicitou ao
papa dispensa de impedimento, mas, em carta de 27 de janeiro de 1552, Loyola informou
que quem já estava na Companhia que continuasse. Além disso, não criou nenhum impedi-
mento para os três votos solenes aos cristãos-novos. Cf. José Wicki, Documenta Indica, Roma,
Monumenta Historica Societatis Iesu, 1950, v. 2., p. 312. Dessa forma, Henriques pode fazer
profissão em 1560. Mas é notável que, ao longo de 52 anos de trabalhos missionários na
costa da Pescaria, nunca tenha subido na hierarquia da Companhia de Jesus no Oriente. Para
conhecer as listas de jesuítas que foram para o Oriente, ver Jerônimo P. A. da Câmara Manu-
el, Missões jesuíticas no Oriente nos séculos XVI e XVII , Lisboa, Imprensa Nacional, 1894.
14. José Wicki, op. cit., v. 5, p. 380. Carta de 19 de dezembro de 1561 ao geral Lainez e aos
companheiros do colégio de Coimbra.
15. Ines Zupanov, Do sinal da cruz à confissão em tâmul: gramáticas, catecismos e manuais de
confissão missionários na Índia meridional (séculos XVI-XVII), in Antônio Manuel Hespanha,
Os construtores do Oriente português , Porto, Comissão Nacional para as Comemorações dos
Descobrimentos Portugueses, 1998, p. 160.
16. ibidem, p. 161.
17. idem. O uso das línguas locais pelos jesuítas parece ter se tornado um padrão, assim como
as críticas a essa prática por parte dos colonos em geral. Pode-se inclusive comparar com a
questão da “língua geral” utilizada pelos jesuítas na evangelização dos indígenas e que fo-
mentou duras críticas dos colonos no Estado do Brasil e no Estado do Maranhão e Grão-Pará.
18. Os varnas fundamentais na tradição védica eram quatro: os brâmanes (espécie de sacerdo-
tes e letrados); os kxátrias (guerreiros); os váixias (comerciantes) e os sudras (trabalhadores
braçais). Os homens das três primeiras castas são dvijas , “duas vezes nascido”, pois se con-
sidera que receberam o upanayana (iniciação). Os párias ou intocáveis não pertencem a
nenhum varna e não podem ter contato com nenhum deles. Os brâmanes não se alimentam
de carne de vaca, cebola, alho, vinagre e não podem beber vinho. Sua vida está dividida em
quatro estágios: brahmachari (iniciação – não basta ser brâmane por nascimento, deve-se
ser iniciado no conhecimento dos livros sagrados); grihastha (vida de casado); vanaprastha
(renúncia à sociedade e isolamento na floresta); saniassa (completa renúncia). Ver Mircea
Eliade e I. P. Couliano, Dicionário das religiões , São Paulo, Martins Fontes, 1995, p. 177.
19. Para o caso da América, ver Luís Felipe Baêta Neves, op. cit.; e Maxime Haubert, Índios e
jesuítas no tempo das missões , trad. Maria Appenzeller, São Paulo, Companhia das Letras/
Círculo do Livro, 1990.
20. Carta de Nobili para o papa Paulo V, por volta de 1620, apud Dauril Alden, op. cit., p. 151.
21. O padre Gonçalo Fernandes nasceu em Lisboa, em 1541. No ano de 1561 entrou para a
Companhia de Jesus como noviço, após ter participado da armada de d. Constantino de
Bragança. Recebeu a aprovação do padre Henrique Henriques, que o recomendou em carta
ao geral Laínez. Em 1583, foi sacerdote e procurador da missão da costa da Pescaria. Em
1588, foi admitido como coadjutor. Em 1595, construiu uma igreja em Maduré com aprova-
ção do naique. Depois de voltar à costa da Pescaria em 1596, retornou ao Maduré e em
1599, além da igreja, já tinha edificado uma escola e um hospício para enfermos. Em 1618,
foi para o colégio de Cochim. Em 1621, pediu ao provincial para retornar à costa da Pescaria
para que fosse enterrado aos pés do padre Henrique Henriques. Morreu no dia 6 de abril de
1621. José Wicki, Tratado do padre Gonçalo Fernandes Trancoso sobre o hinduísmo (Maduré,
1616), Lisboa, Centro de Estudos Históricos Ultramarinos, 1973, p. XI-XVII.
22. Carta ao padre visitador de Maduré, de 7 de maio de 1610, apud Maria de Deus Beites Manso,
A Companhia de Jesus na Índia: 1542-1622 : aspectos da sua ação missionária e cultural, op.
cit., p. 251-252.
23. José Eisenberg, As missões jesuíticas e o pensamento político moderno : encontros cultu-
rais, aventuras teóricas, Belo Horizonte, Ed. UFMG, 2000, p. 45.
24. Fernão Guerreiro, Relaçam anual que fizeram os padres da Companhia de Jesus nas partes
da Índia Oriental & em algumas outras partes da conquista deste reino no ano de 606 & 607
& do processo de conversão da cristandade daquelas partes , Lisboa, Pedro Crasbeeck, 1609,
p. 112.
25. A missão na China do padre Matteo Ricci começou em 1582 quando de sua chegada a Macau.
Até sua morte, em 1610, este jesuíta desenvolveu um método denominado oficialmente de
accommodatio , que utilizava os elementos culturais locais e exteriores, tais como vestimentas
e hábitos cotidianos, como for ma de aproximação para desenvolver o trabalho de
evangelização. Ver Jonathan D. Spence, O palácio da memória de Matteo Ricci , op. cit.
26. Fernão Guerreiro, op. cit., p. 112-113.
27. Carta para o padre visitador de Maduré, de 7 de maio de 1610, apud Maria de Deus Beites
Manso, op. cit., p. 250.
28. ibidem, p. 253.
29. ibidem, p. 254.
30. Na costa da Pescaria, localizava-se uma comunidade hindu denominada de Paravás, uma
casta marítima que vivia da pesca e da exploração de pérolas.
31. Augusto Truzzi, P. Roberto de Nobili e la sua apologia, in Enrico Fasana e Giuseppe Sorge,
Civiltà indiana ed impatto europeo nei secoli XVI-XVIII : l’apporto dei viaggiatori e missionari
italiani, Milão, Jaca Book, 1988, p. 104.
32. O texto completo encontra-se na Biblioteca da Ajuda. Resposta do padre Roberto Nobili às
censuras de Goa . Jesuítas na Ásia. Códice 49-V-7, fls. 334-345v. Esse texto datado de 1611
foi enviado a autoridades eclesiásticas em Goa, Lisboa e Roma.
33. Apesar dessa decisão do papa, a questão não foi definitivamente superada. O maior proble-
ma foi a reação de outras ordens rivais que, no final do século XVII, acabaram denunciando
os jesuítas de permitirem a prática de “usos gentílicos”, conhecida como a querela dos ritos
malabares, sempre associada à questão dos ritos chineses. A polêmica continuou e só teve
fim no século XVIII, quando Bento XIV, em 1742, publicou a bula Ex quo singulari , em que
condenou os ritos chineses como supersticiosos, e, em 1744, publicou a bula Omnium
sollicitudinum , que resolve o mesmo sobre os ritos malabares.
34. O destaque maior é João de Brito, que ao tentar penetrar no Maravá acabou preso e degola-
do em 1693, a mando das autoridades hindus, e por isso foi canonizado em 1947. Ver João
Paulo A. de Oliveira e Costa, A missão de João de Brito , Lisboa, Secretariado Nacional das
Comemorações dos 5 Séculos, 1992.
35. Augusto Truzzi, op. cit., p. 106.
36. William V. Bangert, História da Companhia de Jesus , Porto/São Paulo, Apostolado da Impren-
sa/Edições Loyola, 1985, p. 290. Indica o número de 4.183 conversões. Já Dauril Alden, op.
cit., p. 152, fornece o número de trinta mil conversões atribuídas a Nobili.
37. A biografia do religioso encontra-se em J. Castets, Roberto de Nobili, in New Advent Catholic
Encyclopedia, on line edition, disponível em www.newadvent.ogr/cathen/11086a.htm.
38. Utiliza-se aqui a definição de religião de Clifford Geertz, A interpretação das culturas , Rio de
Janeiro, Guanabara-Koogan, 1989, p. 104-105: “um sistema de símbolos que atua para esta-
belecer poderosas, penetrantes e duradouras disposições e motivações nos homens através
da formulação de conceitos de uma ordem de existência geral e vestindo essas concepções
com tal aura de fatualidade que as disposições e motivações parecem singularmente realis-
tas”.
39. Maria de Deus Beites Manso, op. cit., p. 206. Para a autora, os missionários italianos mos-
tram sempre preocupação em relação aos programas e aos métodos a seguir, p. 86-87.
40. Cf. João Paulo de Oliveira e Costa, op. cit., p. 279.
O padre Rafael Bluteau, de origem francesa, Father Rafael Bluteau, of French descent, is
é considerado um dos mais importantes considered as one of the most important
propagadores do pensamento moder no no disseminators of moder n thought in the
universo intelectual português da corte de d. Portuguese intellectual universe of the court of
João V. Classificado como um estrangeirado , King D. João V. Rated as an estrangeirado
tem entre seus principais títulos as Prosas (imitator of foreigners), among his chief work
portuguesas e o célebre Vocabulário português e titles are Prosas portuguesas and the famous
latino , editados nas duas primeiras décadas do Vocabulário português e latino, published in the
século XVIII. Os traços moder nos de sua obra first two decades of the 18 th century. Herein, the
são aqui analisados perante o processo de moder n traits of his work are analyzed in respect
for mação do Estado moder no, o sistema of the modern State for mation process, the
filosófico da revolução científica e, sobretudo, philosophical system of the scientific Revolution
a relação entre o pensamento racionalista e sua and above all, the relation between rationalist
representação no discurso, explorando sob thought and its representation in the discourse,
esse aspecto os ecos dos port-royalistas thus exploring under this aspect, the echoes of
na obra de Rafael Bluteau. the Port-Royalists in the work of Rafael Bluteau.
Palavras-chave: ciência moderna; refor mismo Keywords: modern science; Enlightenment;
ilustrado; Estado absolutista; filosofia escolástica. absolutism; scholasticism.
T
odos os homens são mortais, fecundidade das palavras, que a força
mas nem todos são indoutos. das nações confunde-se com a da língua.
Na apresentação de seu Voca- A única ar ma contra a mortalidade é,
bulário português e latino , 1 o padre assim, o conhecimento, manifesto em
Rafael Bluteau procurará mostrar que a muitas instâncias, entre elas, os dicio-
riqueza das monarquias está também na nários ou vocabulários. Exemplificando
E
Bluteau, o recurso aos autores clássicos
ssa gênese dos dicionários, vo-
adquire múltiplos sentidos em uma lei-
cabulários, catálogos e enciclo-
tura que se faça a partir da busca de in-
pédias, enunciando os
fluências e diálogos com o debate inte-
conflituosos, e mesmo paradoxais,
lectual que marca a virada do século XVII
binômios memória e escrita, memória e
para o XVIII. Aqui, referimo-nos, especi-
história, conhecerá pontos de inflexão na
ficamente, à Querelle , à polêmica Anti-
presença fundadora do Liceu de
gos e Modernos que ecoaria, ainda, além
Aristóteles, no nominalismo, nas cole-
dos marcos cronológicos habituais, per-
ções e bibliotecas for madas ou conser-
durando pelo setecentos. Mas, não se
vadas entre os séculos XVI e XVIII. Em
trata de delimitar um certo “contexto” em
Portugal, o Vocabulário pode apresentar
que se move o autor. As definições de
antecedentes em seu gênero, tais como
Bluteau, os exemplos a que recorre, os
o Dicionário lusitano , de Agostinho Bar-
autores citados, compõem, internamen-
bosa, de 1611, ou o Tesouro da língua
te ao texto, uma história das idéias que
portuguesa , de Bento Pereira, de 1666,
se encontra com a ambiência intelectual
mas há uma tendência a se perceber no
de Portugal das cortes de d. Pedro II e d.
Vocabulário uma ruptura, que se confun-
João V, mas que também a ultrapassa.
de com o perfil do religioso no âmbito
Investindo um pouco mais no exemplo do regime intelectual português. É certo
de Hesíodo, retiramos o caráter possivel- que a idéia de obras “anteriores” pres-
mente fortuito da escolha de Bluteau, da supõe uma genealogia a ser verificada,
narrativa do bosque percorrido pelo po- devendo-se supor que boa parte de obras
eta, bosque das musas, únicas detento- congêneres editadas em Portugal ao lon-
ras do saber absoluto, conhecedoras de go do século XVII estivesse compreendi-
todos os lugares, dos grandes feitos he- da nos parâmetros da escolástica
róicos, e dos nomes, se nos lembrarmos seiscentista. Por outro lado, tal como
que as musas são aquelas que desenvolveremos neste artigo, podemos
Possuem os princípios de ordenação perceber alguns outros vínculos, exem-
desse saber e ensinam a arte de enu- plar mente com as gramáticas gerais,
meração metódica, esse fio da memó- racionalistas. O Vocabulário perpetuou-
ria que se desenrola para percorrer as se por inter médio de Morais e Silva, pri-
listas, [...] percurso temporal da meiro em uma revisão da obra de
damos [...]. Mas interessa pôr a pergun- Analisar o lugar de Bluteau na cultura
ta: quais as per manências e como se portuguesa implica enfrentarmos a ima-
mantêm? Quais as alterações e como se gem de um século barroco e de uma épo-
integram?”. 11
ca clássica. Uma conceituação histórica
proposta por José Antonio Maravall para
A combinação entre aquilo que perma- o barroco espanhol, para quem, mesmo
nece e as transformações ensaiadas no sem datas definidas, pode-se partir de
meio cultural e científico português tal- 1600 até 1670-1680. Reforçam-se aqui
vez esteja na fór mula “retórica alguns nexos históricos que, forçosamen-
farfalhante e ciência incipiente”. Mas re- te, levam à Itália e à conseqüente articu-
levante, acrescenta Francisco Falcon, um lação entre o barroco e o classicismo,
início. 12
O reinado joanino seria marca- associados por meio da reforma católi-
do por contrastes: entre o reino ca, do fortalecimento da autoridade pa-
cadaveroso e as iniciativas de rompimen- pal, da expansão da Companhia de Je-
to com a hegemonia sufocante da Com- sus, o que levou o crítico Hatzfeld a afir-
panhia de Jesus, que, ainda assim, edi- mar que “onde surge o problema do bar-
ta os quatro primeiros tomos do Vocabu- roco, está implícita a existência do
lário . 13
Uma ruptura com o universo bar- c l a s s i c i s m o ” . 1 6 A definição do século
roco, visível nas três frentes enumera- XVII como uma época barroca significa,
das por Falcon: ericeirense, oratoriana ainda, que o barroco qualifica todas as
e régia, tal é a tônica do fenômeno do “manifestações da civilização do século
estrangeiramento, 14
assinalando a sua XVII”. No caso espanhol, ibérico,
diferença em relação aos castiços, repre- Maravall tem como horizonte certos ele-
sentantes do pensamento tradicional e mentos de ruptura o que, muito mais do
que compõe um dos traços de identida- que um traço temporal, significa uma
de lusa. O tema da ruptura, adiado ou passagem para o setecentos que se dá
antecipado em relação ao período pelo rompimento com aquilo que quali-
pombalino, faz com que se vislumbre na ficaria o barroco, a idéia de uma crise
leitura dos moder nos, na adesão ao geral européia.
cartesianismo, na produção de memóri-
as como a Instrução sobre a cultura das O que essa crise geral expressaria seria
amoreiras e a criação dos bichos da a fragmentação do mundo então garanti-
seda , que Bluteau publica pela primeira do pela ordem escolástica e abalado pela
vez em 1679, 15
a retomada de algo in- lógica racionalista e matemática, pelo
terrompido na história portuguesa: o espaço euclidiano. É nesse sentido que
desenvolvimento prenunciador da revo- o que unifica o barroco é o seu compro-
lução científica seiscentista que estava misso com a renovação do sentido reli-
na expansão marítima portuguesa. gioso da vida e do mundo: “a sensibili-
damental que se delineia, que vai fun- Bacon, se torna no pensamento moder-
dar toda a ciência ocidental, é que no, por seu rigor e suas referências, o
atrás da complicação visível do mun- lugar mesmo da demonstração. 20
N
moder no na corte de d. João V, a obra
a tradição das academias lite- de Bluteau nos convida também a pen-
rárias, históricas e científicas sar, por meio de seu Tribunal das letras
do XVII, Bluteau participa das e do exercício da “arte de falar”, 26 o pro-
Conferências e da Academia dos Gene- cesso histórico que encaminha a
rosos, renovada em 1717, também na estruturação dos estados absolutistas,
casa do conde da Ericeira. Nas lições que a constituição de um campo científi-
compõem as prosas, nas referências aos co, a associação entre palavra, razão
temas e autores moder nos, entendidos e política.
no âmbito da Revolução científica,
Iniciando essa reflexão, vemos como no
Bluteau deixaria entrever suas filiações,
verbete ‘dicionário’ Bluteau dedica-se
seu cartesianismo, a adesão a Gassendi,
antes à impropriedade da palavra do que
como procura sublinhar Silva Dias, es-
à sua definição, bastante sucinta, mas,
pecialmente no que se refere às teses
ainda assim, significativa:
sobre o vazio, a existência do vácuo. Na
Livro, em que as palavras de uma ou
urgência de demonstrar o caráter moder-
mais línguas estão impressas por or-
no, antiescolástico do clérigo, Silva Dias
dem alfabética. De ordinário lhe cha-
o aproxima da “orientação gassendo-
mamos Dictionarium , que é palavra
cartesiana”, encobrindo que foi exata-
novamente forjada, e de tão pouco la-
mente em torno da querela do vazio que
tina, que se deriva de Dictio, que em
se opuseram as idéias de Gassendi e
latim, [...] não significa uma dicção ou
Descartes, acusado pelo primeiro de ter
uma palavra. Outros lhe chamam
permanecido, quanto ao método e ao seu
Vocabularium, e tem este nome a van-
dogmatismo metafísico, “fundamental-
tagem de ter derivado de Vocabulu , de
mente um escolástico”. 25 Mais do que
que Cícero usa para significar uma pa-
nos guiarmos por essa disputa, quere-
lavra. 27
mos destacar que ao se classificar
Bluteau como um moder no deve-se con- O termo dicionário foi utilizado recorren-
siderar a convivência na sociedade por- temente, como indica, por exemplo, o
tuguesa do início do setecentos e tam- Dictionarium seu Linguae latinae
bém em outros círculos intelectuais eu- thesaurus , de Robert Etienne, datado de
ropeus, de diferentes tradições do pen- 1531, 2 8 mas Bluteau insistirá no termo
samento, a partir das duas maiores do ‘vocabulário’, para definição desse gê-
são política. Assim, Koselleck expressa- mos porque suas figuras e conceitos
Trata-se de fazer uma genealogia do Es- A revolução dos filhos do Livro, daque-
tado; os homens são criadores do po- les que reúnem os poderes da imita-
lítico a quem o texto revela a sua cria- ção e da profecia. Revolução da pape-
ção. Seremos súditos leais porque so- lada pela qual a legitimidade real e o
mos os sujeitos que instituíram; obe- princípio da legitimidade política en-
multiplicidade das falas e dos falado- parte de uma origem, indicando uma
res que vêm atualizar outra legitimida- oposição à escolástica e ao aristotelismo,
de, a legitimidade do povo surgida nas às memórias do passado e da Antigüida-
entrelinhas da escrita testamentária ou de, ao tempo e espaço do que será con-
da de Tácito. Tal é no tempo de Felipe cebido como Antigüidade; e o Vocabulá-
II e de Hobbes, a papelada dos rio de Bluteau, “homem do verbo encar-
monarcomacas, dos soldados de Deus nado”, que se inscreve em uma tradição
e dos apaixonados pela Antigüidade. de obras que nomeiam, definem e siste-
Assim multiplicam-se os focos de pa- matizam. A temporalidade que o Voca-
lavra ‘legítima’ e, ao mesmo tempo, os bulário exibe é múltipla, comportando a
repertórios e os dicionários que per- tensão e a complexidade histórica dos
mitem mudar os nomes, construir ar- sistemas de pensamento que estão aqui
gumentações e figurações que fazem investidos. Assim, podemos ler o século
aparecer em tal ou tal lugar, sob tais XVII, clássico e barroco, século de
ou tais traços o despotismo ou a liber- Hobbes, de Descartes e do Estado abso-
dade. 35
luto, como aquele que conheceu a críti-
ca aos Antigos, a Revolução científica, o
A desordem da política coincidiria, por-
confronto entre os sistemas dedutivos,
tanto, com a desordem do saber, 36 algo
racionalistas e o pensamento indutivo e
que Hobbes detectaria, ainda que não a
experimental. Os dicionários e repertó-
tenha nomeado. Uma produção e deslo-
rios, obras que designam e recolhem o
camento de sentido que brota das pala-
significado das coisas, localizam-se, fi-
vras nos repertórios e dicionários, dos
losoficamente, em Aristóteles, como nos
textos dos antigos, textos da retórica, os
conduzem, também, à tradição
relatos da “história profana”, como defi-
nominalista e pela qual Bluteau parece
ne Bluteau, convocando a ‘memória pú-
haver se decidido. Como produto da
blica’, como a chama Cícero, “porque na
‘questão dos universais’, nascida no in-
História perseveram memórias do passa-
terior do aristotelismo do apogeu góti-
do”, e ainda Cícero, na clássica passa-
co, a vitalidade do nominalismo na épo-
gem “a história é a testemunha do tem-
ca moderna é reveladora da crítica ao
po, a luz da verdade, a vida da memó-
caráter especulativo do Renascimento e,
ria, a mestra da vida e a mensageira da
também, ao racionalismo seiscentista,
Antigüidade”. 37
em favor da eleição dos sentidos como
Nesse momento várias genealogias po- meio para percepção do real, procuran-
dem ser percorridas: a da história profa- do manter a “integridade do pensamen-
na que só se torna verídica com a funda- to racional e da observação empírica”,
ção de Roma; a recorrência a Cícero, sem escapar ao que Erwin Panofsky cha-
reafirmado ao longo da obra, refazendo mará “o eter no problema do
Paolo Rossi, 39 para quem Bacon e Des- De autoria de Ar nauld e Lancelot, é tam-
cartes não disputam com os Antigos, re- bém a famosa Gramática de Port-Royal
cusando sim o próprio campo da dispu- ou Gramática geral e razoada contendo
ta. Por outro lado, além dos dilemas pró- os fundamentos da arte de falar, 41 expli-
prios a alguns campos do saber, como o cados de modo claro e natural; as razões
da história natural, estão as diversas daquilo que é comum a todas as línguas
apropriações, releituras, das heranças e das principais diferenças ali encontra-
platônica e aristotélica no Ocidente, as- das , 4 2 de 1660, que é, para muitos, a
sumindo novas configurações a cada fundadora das gramáticas gerais. Os se-
questão que se enuncia. nhores de Port-Royal eram, em sua voca-
ção agostiniana, platônicos e identifica-
Um momento importante desse confron-
dos com o cartesianismo. Haviam desen-
to estará na doutrina jansenista, do bis-
volvido, no interior da filosofia
po Cornélio Jansênio, que projeta no re-
cartesiana, um ramo ainda não aborda-
tor no às teses de Santo Agostinho uma
do, o da linguagem, compreendendo as
refor ma católica, tendo sido condenado
palavras como “uma das grandes provas
pelo papa Inocêncio X. Com a adesão de
da razão: é o uso que dela fazemos para
Pascal e dos chamados senhores de Port-
expressar nossos pensamentos”. 43 Pala-
Royal, o jansenismo francês prospera
vra, na definição de Rafael Bluteau, é
após a morte do cardeal Richelieu, em
“dicção articulada, que consta de uma
1642, tendo a frente aquele que seria o
ou mais sílabas e com que entre todos
“doutor” do movimento por quase meio
os animais só o homem se declara. A
século: Antoine Arnauld. O funcionamen-
palavra foi dada ao homem para intér-
to de escolas junto ao austero convento
prete de seus pensamentos, imagem de
abre as portas, mais do que para a teo-
sua alma e espelho de seu espírito”.44
S
logia, para um ensino e um pensamento
que se deseja à frente dos jesuítas, na ão perceptíveis em Bluteau os
eficácia do método, no rigorismo, no ecos da gramática de Ar nauld.
ensino em francês, abrindo espaço às Nela também se afirmará que a
‘novas ciências’, incentivando a publica- palavra, mais do que em seu aspecto
ção, pelos mestres, de obras de pedago- material, o som (comum a alguns ani-
gia ou de filosofia geral “que tiveram um mais, como o papagaio), devia ser con-
lugar em primeiro plano no desenvolvi- siderada em sua parte espiritual, o que
mento da vida francesa: a Logique de a tornava uma das maiores vantagens
Port-Royal, a meio caminho entre o que o homem tinha sobre os animais.45
Discours de la méthode e a Recherche A palavra como evidência da razão, das
de la vérité de Malebranche, é a mais operações do espírito – conceber, julgar,
bela ilustração”. 40
raciocinar –, como definem os
cia assim instaurada, reconstitui os usos às coisas e com esse nome nomear o
particulares dos princípios universalmen- seu ser. Durante dois séculos, o discur-
te válidos”, estabelecendo, em outro ní- so ocidental foi o lugar da ontologia.
Quando ele nomeava o ser de toda re- pacto histórico avaliado pelas rupturas
presentação em geral, era filosofia: ou acomodações que o reformismo
teoria do conhecimento e análise das pombalino anunciava: esplendor barro-
idéias. Quando atribuía a cada coisa co e fanatismo devoto, nas palavras de
representada o nome que convinha e, Francisco Falcon, precedem a época das
sobre todo o campo da representação, reformas, tendo em sua outra face os
dispunha a rede de uma língua bem estrangeirados e oratorianos.51
feita era ciência – nomenclatura e
Há também um tempo que existe na rea-
taxinomia. 50
lidade das palavras e das definições for-
Compreender a obra de Bluteau signifi- muladas no Tribunal das letras , tempo
ca compreender o lugar das palavras no profundo que dialoga com a tradição
século XVII e início do XVIII, fundando clássica, discurso que se dá no presente
uma epistemologia própria, uma repre- da sua escrita. A historicidade que se
sentação pelas palavras e pelo nome, configura, manifesta-se nas referências
marcando uma profunda relação entre a à ordem régia e eclesiástica, por meio
linguagem analítica e a classificação – de verbetes como “Estado”, em que são
taxinomia –, em um modelo em que ci- evocados os três estados e as ordens dos
ência, política, retórica, gramática e fi- mecânicos na sociedade portuguesa, ou
losofia são pensadas a partir de regimes nas variadas definições de “razão”, como
de racionalidade distintos daquele que faculdade, em sua dimensão divina, e
infor mara o comentário e a ordem como razão de estado, ratio politica , em
escolástica. Mas, consideramos que em seu tributo a Cícero, no reconhecimento
um mesmo movimento e aqui, em uma de um vocabulário das colônias ultrama-
perspectiva distinta da arqueologia rinas, nos verbetes dedicados à medici-
foucaultiana, dialoga-se com a tradição, na, à astronomia, aos sistemas. Está,
retomando os temas do Renascimento, também, no investimento historiográfico
da Antigüidade, reclamando anteceden- em Rafael Bluteau como um moder no;
tes históricos e filosóficos nessa escrita, no conteúdo crítico das lições proferidas
nesse relato racional. A obra de Bluteau na biblioteca seiscentista do Bairro Alto
traça a dupla dimensão da história por- lisboeta; em sua principal obra, o Voca-
tuguesa e da relação entre ciência, polí- bulário português e latino ; e, essencial-
tica e cultura na época moderna, descre- mente, na tarefa que se exige, no proje-
vendo, implicitamente, o gesto da escri- to de travar, de for ma sistemática, esta
ta como instância da história. A tradu- relação entre a língua e o mundo.
ção do pensamento e da cultura france-
sa das academias e das tensões intelec- Artigo recebido para publicação em ou-
tuais que esta comportava, tem seu im- tubro de 2003.
N O T A S
1. Rafael Bluteau, Ao muito alto e muito poderoso rei d. João o Quinto, XXI dos naturais reis de
Portugal, in Vocabulário português e latino , v. I, Coimbra, Colégio das Artes da Companhia
de Jesus, 1712. Publicado entre 1712 e 1727, integra o acervo de obras raras do Arquivo
Nacional.
2. Christian Jacob, Athènes-Alexandrie, in Roland Schaer, Tous les savoirs du monde :
encyclopédies et bibliothèques, du Sumer au XXIe siècle, Paris, Bibliothèque Nationale de
France/Flammarion, 1996, p. 44.
3. Rafael Bluteau, Dicionário da língua portuguesa , refor mado e acrescentado por Antônio Moraes
e Silva, Lisboa, Na Oficina de Simão Tadeo Ferreira, 1789, 2v.
4. Antônio de Moraes Silva, Dicionário da língua portuguesa , Lisboa, Tipografia de Antônio José
da Rocha, 1813.
5. Francisco José Falcon, A época pombalina : política econômica e monarquia ilustrada, 2. ed.,
São Paulo, Martins Fontes, 1993, p. 206.
6. Antônio Camões Gouveia, Estratégias de interiorização da disciplina, in Antônio Manuel
Hespanha (org.), História de Portugal : o Antigo Regime, Lisboa, Editorial Estampa, 1993, p.
425.
7. Rafael Bluteau, Vocabulário português e latino , apud Antônio Camões Gouveia, op. cit., p.
426.
8. Autoridade aqui pode ter o sentido que assume na filosofia medieval, na qual auctoritas é
uma opinião inspirada pela graça divina, podendo ser a decisão de um concílio, uma máxima
bíblica, a sententia de um padre da Igreja. Como instância superior à razão, o recurso à
autoridade é típico da filosofia escolástica. Cf. autoridade e escolástica em Nicola Abbagnano,
Dicionário de filosofia , 4. ed., São Paulo, Martins Fontes, 2000.
9. Sergio Buarque de Holanda, Visão do paraíso , 6. ed., São Paulo, Brasiliense, 1994, p. 5.
10. Cf. Pierre Chaunnu, A civilização da Europa das Luzes, v. I, Lisboa, Estampa, 1985, p. 218-220.
11. Antônio Camões Gouveia, op. cit., p. 424.
12. Francisco José Falcon, op. cit., p. 206.
13. A partir do tomo 5 o editor passa a ser a Oficina de Pascoal da Silva.
14. Francisco José Falcon, op. cit., p. 204-205.
15. Também publicadas nas Prosas portuguesas como Prosa econômica, dedicada a d. Pedro.
16. José Antônio Maravall, A cultura do barroco : análise de uma estrutura histórica, São Paulo,
Edusp, 1997, p. 42.
17. Cf. Rubem Barboza Filho, Tradição e artifício : iberismo e barroco na formação americana,
Belo Horizonte, Ed. UFMG, Rio de Janeiro, IUPERJ, 2000.
18. Paul Hazard, La crise de la conscience européenne , Paris, Fayard, 1994, p. 226.
19. Alexandre Koyré, Estudos de história do pensamento científico , Rio de Janeiro, Forense Uni-
versitária, 1991, p. 53.
20. François Châtelet, Une histoire de la raison , Paris, Éditions du Seuil, 1992, p. 13.
21. A querela do vazio marcou, no século XVII, a polêmica de Gassendi e Pascal contra a máxi-
ma, dita aristotélica, mais claramente tomista, de que a natureza tem horror ao vazio. A
negação da vacuidade envolvia também Descartes, que será criticado e apontado por Gassendi
como um ‘escolástico’. Cf. Simone Mazauric, Gassendi, Pascal et la querelle du vide , Paris,
PUF, 1998.
22. Ver Eduardo d’Oliveira França, Portugal na época da Restauração , São Paulo, Hucitec, 1997.
23. J. S. S. Dias, Portugal e a cultura européia (séculos XVI a XVIII), Biblos , revista da Faculdade
de Letras da Universidade de Coimbra, v. XXVIII, 1952. Agradeço a Beatriz Catão a indicação
desse artigo.
24. Rafael Bluteau, Prosas portuguesas recitadas em diferentes congressos acadêmicos , Lisboa
Ocidental, Na Oficina de José Antônio da Silva, 1728. Esse título integra o acervo de obras
P E R F I L I N S T I T U C I O N A L
Centro de Estatística
Religiosa e Investigações
Sociais – CERIS
Rogerio Dardeau
Secretário-Executivo Adjunto.
Fundado em 1962, como ato conjunto da Established in 1962, due to a decision of the
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) National Conference of Catholic Bishops of Brazil
e da Conferência dos Religiosos do Brasil (CRB), o (CNBB) and the Conference of Religious of Brazil
CERIS tem como missão propiciar aos setores (CRB), CERIS is a NGO and its mission is to
mais pobres e excluídos da sociedade a obtenção contribute with the acquisition of better
de melhoria das próprias condições de vida, conditions of life, by the poorest and excluded
estimulando reflexões e práticas sociais human being in the society, encouraging them to
transfor madoras, sobretudo aquelas de caráter use transfor ming social practices, mainly local
local, realizadas pelas próprias comunidades. experiences, done by their own groups.
Palavras-chave: práticas transfor madoras; Keywords: transfor ming social practices;
melhoria das condições de vida. better conditions of life.
O
CERIS foi criado em 1962, cessidade de compreender melhor a so-
como ato conjunto da Confe- ciedade para ter uma ação pastoral efi-
rência Nacional dos Bispos do caz. A V Assembléia Ordinária da CNBB
Brasil (CNBB) e da Conferência dos Reli- fir mou o “compromisso de procurar ba-
giosos do Brasil (CRB), para atender a sear nossa atividade pastoral em sonda-
uma exigência bem precisa da ação pas- gens objetivas e estudos sociológicos”.
toral e social da Igreja. Era um momen- Naquela assembléia, a CNBB completa-
to em que a Igreja Católica sentia a ne- va dez anos e se dava conta da impor-
B I B L I O G R A F I A
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