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ACERVO

ISSN 0102-700-X

R E V I S T A D O A R Q U I V O N A C I O N A L

VOLUME 16 • NÚMERO • 02 • JUL/DEZ • 2003

R E L I G I Ã O
Presidência da República
Arquivo Nacional

ACERVO
REVISTA DO ARQUIVO NACIONAL

R IO DE J ANEIRO, V .16, NÚMERO 2, JULHO / DEZEMBRO 2003


© 2003 by Arquivo Nacional
Rua Azeredo Coutinho, 77
CEP 20230-170 - Rio de Janeiro - RJ - Brasil

Presidente da República
Luís Inácio Lula da Silva

Ministro-Chefe da Casa Civil da Presidência da República


José Dirceu de Oliveira e Silva

Diretor-Geral do Arquivo Nacional


Jaime Antunes da Silva

Coordenador-Geral de Acesso e Difusão Documental


Alexandre Rodrigues

Editora
Maria do Car mo Teixeira Rainho

Conselho Editorial
Adriana Cox Hollós, Alexandre Rodrigues, Clovis Molinari Júnior, Maria do Carmo Teixeira Rainho,
Maria Esperança de Rezende, Maria Izabel de Oliveira, Mauro Lerner Markowski e
Mônica Medrado da Costa.

Conselho Consultivo
Ana Maria Camargo, Angela Maria de Castro Gomes, Boris Kossoy, Célia Maria Leite Costa,
Elizabeth Carvalho, Francisco Falcon, Helena Ferrez, Helena Corrêa Machado, Heloísa Liberalli
Bellotto, Ilmar Rolohff de Mattos, Jaime Spinelli, Joaquim Marçal Ferreira de Andrade, José
Carlos Avelar, José Sebastião Witter, Léa de Aquino, Lena Vânia Pinheiro, Margarida de Souza
Neves, Maria Inez Turazzi, Marilena Leite Paes, Regina Maria M. P. Wanderley e Solange Zúñiga.

Edição de Texto e Revisão


José Claudio Mattar

T radução da Entrevista
Carlos Brown e Maria do Carmo Teixeira Rainho

Projeto Gráfico
André Villas Boas

Editoração Eletrônica, Capa e Ilustração


Giselle Teixeira

Secretaria
Ana Teresa de Oliveira Scheer

Acervo: revista do Arquivo Nacional. —


v. 16, n. 2 (jul./dez. 2003). — Rio de Janeiro: Arquivo
Nacional, 2003.
v.16; 26 cm
Semestral
Cada número possui um tema distinto
ISSN 0102-700-X
1.Religião - Brasil - I. Arquivo Nacional
CDD 981
S U M Á R I O

Apresentação
03
Entrevista com Ralph Della Cava
19
Religião e Espaço Público no Caso do Cristo no Júri
Rio de Janeiro, 1891
Emerson Giumbelli

43
A Sinagoga Ortodoxa
Novo espaço de sociabilidade para jovens judeus não-religiosos
Marcelo Gruman

63
Candomblé e Mídia
Breve histórico da tecnologização das religiões afro-brasileiras nos e pelos
meios de comunicação
Ricardo Oliveira de Freitas

89
A Crise da Civilização e o Cristo Terrestre
Iconografia cristã e arte moderna
Anna Paola P. Baptista

109
Uma Família Criptojudaizante nas Garras da Inquisição
Os Antunes, Macabeus do Recôncavo baiano
Angelo Adriano Faria de Assis

129
As Capelas de Minas no Século XVIII
Beatriz Catão Cruz Santos
147
Missionários Reais
A literatura religiosa e a disputa pelas almas devotas, séculos XVI-XVIII
Vivien Ishaq

173
Mediadores Culturais
Jesuítas e a missionação na Índia (1542-1656)
Célia Cristina da Silva Tavares

191
O Tribunal das Letras
Rafael Bluteau e a cultura portuguesa dos séculos XVII e XVIII
Cláudia Beatriz Heynemann

209
Perfil Institucional
Rogerio Dardeau

213
Bibliografia
A P R E S E N T A Ç Ã O

O Brasil, país oficialmente católico por pel da religião hoje nos países que inte-
quatro séculos, e que muitos ainda qua- gravam a ex-União Soviética.
lificam como a maior nação católica do
A seguir, dois interessantes artigos de
mundo, tem entre as suas característi-
antropólogos. Emerson Giumbelli discu-
cas mais marcantes uma forte religiosi-
te um episódio ocorrido em 1891 no júri
dade, a presença de um sincretismo re-
popular, no Rio de Janeiro, para uma
ligioso e grande variedade de crenças.
abordagem sobre a questão da separa-
Essas características fazem da religião
ção entre a Igreja Católica e o Estado,
um objeto saboroso para uma infinida-
após a proclamação da República. Já
de de pesquisas que vêm sendo produzi-
Marcelo Gruman analisa os motivos que
das fora do âmbito confessional e sob
levam jovens judeus não-religiosos a fre-
uma perspectiva multidisciplinar. É para
qüentarem uma sinagoga ortodoxa loca-
divulgar alguns desses trabalhos que
lizada na Zona Sul do Rio de Janeiro e
estamos lançando este número da revis-
que tipo de sociabilidade ela proporcio-
ta Acervo , esperando contribuir para a
na a essa camada específica da comuni-
reflexão sobre o tema e estimular a difu-
dade judaica.
são de novas fontes.
As religiões afro-brasileiras e mais dire-
Abre esta edição uma entrevista com
tamente o candomblé são o tema de
Ralph Della Cava, um dos brasilianistas
Ricardo Freitas. Em seu artigo, Ricardo
pioneiros no estudo das relações entre
analisa as transformações sofridas por
religião e política. Nela, o cientista soci-
essas religiões – fortemente vinculadas
al americano faz um balanço sobre os
a uma tradição oral –, desde o século XIX
assuntos que vêm balizando as suas pes-
até os dias atuais, enfocando, inclusive,
quisas por mais de trinta anos, desde
o seu processo de midiatização com o
aquela sobre Juazeiro na década de
advento da Internet.
1960 até as mais recentes dedicadas à
análise das relações entre o O texto da historiadora Anna Paola
fundamentalismo cristão e o Partido Re- Baptista analisa a iconografia sacra na
publicano nos Estados Unidos, sem es- primeira metade do século XX, abordan-
quecer do extenso trabalho sobre o pa- do as alterações sofridas pelos padrões
iconográficos tradicionais e as discus- dos jesuítas Henrique Henriques e
sões que envolveram a redefinição do Roberto de Nobili, Célia Tavares enfoca
papel da arte sacra na moder nidade. os trabalhos missionários desenvolvidos
pela Companhia de Jesus na Índia, no
Em seguida, cinco textos dedicados ao
período de 1542 a 1656, marcados por
período colonial. Angelo de Assis trata
trocas culturais entre o Ocidente e o
da família Antunes, do Recôncavo
Oriente.
baiano, for mada por cristãos-novos que
foram denunciados durante a primeira Cláudia Beatriz Heynemann analisa a
visitação do Santo Ofício ao Brasil. O obra do padre Rafael Bluteau. Tido como
autor toma esse grupo como um exem- um grande propagador do pensamento
plo privilegiado da resistência judaica em moder no no universo intelectual portu-
épocas de monopólio católico. Beatriz guês da corte de d. João V, Bluteau tem
Catão utiliza as petições referentes aos entre suas obras principais as Prosas por-
devotos de São Gonçalo, da comarca de tuguesas e o Vocabulário português e
Rio das Mortes, em Minas Gerais no sé- latino, editadas nas duas primeiras dé-
culo XVIII, para discutir o papel das ca- cadas do século XVIII.
pelas nas cidades coloniais. Vivien Ishaq
Finalizando este número, dedicamos o
faz uma incursão pela literatura dos
Perfil Institucional ao Centro de Estatís-
moralistas cristãos, abordando o papel
tica Religiosa e Investigações Sociais,
dos membros da Companhia de Jesus e
organismo ligado à CNBB que oferece às
da Congregação do Oratório, no mundo
camadas menos favorecidas perspectivas
luso-brasileiro, como porta-vozes privile-
de melhoria das suas condições de vida,
giados dos ideais da Igreja reformada.
além de estimular reflexões e práticas
A partir do estudo da ação missionária sociais transformadoras.

Maria do Car mo Teixeira Rainho


Editora
R V O

Entrevista com
Ralph Della Cava

Ralph Della Cava é pesquisador sênior análises sobre o papel das religiões nos
associado do Instituto de Estudos Lati- países do antigo bloco comunista.
no-Americanos da Universidade de
Nacional. Antes de tudo, gosta-
Arquivo Nacional
Columbia e professor emérito de histó-
ria que o senhor comentasse o que mo-
ria da Queens College da City University,
tivou o seu interesse em estudar o tema
de Nova Iorque. É especialista em histó-
religião e, especificamente, as relações
ria do Brasil contemporâneo, e autor de
entre religião e política.
Milagre em Juazeiro , de 1970, entre ou-
Ralph Della Cava
Cava. Eu posso pensar em
tros livros e artigos que tratam das rela-
outras poucas forças sociais que de ma-
ções entre religião e sociedade no Bra-
neira tão significativa moldam quem so-
sil, na Europa Central e nos países que
mos e o mundo em que vivemos, além
integravam a ex-União Soviética. Atual-
da religião e da política. O que tem me
mente, vem desenvolvendo pesquisas
mantido curioso e produtivo por mais
sobre o fundamentalismo cristão nos
décadas do que eu jamais teria imagina-
Estados Unidos. Nesta longa e rica en-
do é o interesse em analisar como estas
trevista, Ralph, que nunca perdeu seu
forças atuam.
vínculo com o Brasil, país que visita anu-
almente, descreve com detalhes como Olhando para trás, poderia atribuir meu
surgiu seu interesse pelo tema religião, interesse inicial a uma extensa família e
sua experiência no Ceará no início da dé- vizinhança italianas na qual eu cresci na
cada de 1960 – que gerou o trabalho so- cidade de Nova Iorque. Em ambas, reli-
bre Juazeiro – e as pesquisas realizadas gião e política não eram apenas uma
desde a década de 1990, que incluem questão de costume e tradição, mas tam-

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bém de intenso debate, senão de devo- íssem por vieses e jargões parsonianos
ção e escárnio. Meu senso mais remoto ou por fór mulas próprias das ciências
de perplexidade e de polarização no que sociais. Mas, para o meu grande provei-
se refere à religião, e a consciência do to, em Columbia, Marx e We b e r
compromisso de nossos pais de pensar digladiariam-se com Maritain e Mounier,
e agir politicamente, ora contra o fascis- logo que as idéias sobre transformação
mo, ora em favor do nascente New Deal , social dos socialistas e comunistas lati-
ora em prol de um sindicalismo militan- no-americanos de antes da Seguda Guer-
te, nunca me abandonaram. ra tiveram que se confrontar com as da-
queles democratas-cristãos do pós-guer-
Essa explicação, porém, seria incomple-
ta se não reconhecesse a riqueza do pen- ra e a dos recém-chegados fidelistas.. Lá,
também, Immanuel Wallerstein e Terence
samento social católico e os insights dos
Hopkins elaboravam os fundamentos
movimentos de reforma radical católicos,
analíticos para uma crítica do sistema
principalmente vindos da França, que me
capitalista mundial, enquanto Juan Linz
influenciaram durante e após os qua-
delineava para a Espanha franquista e,
tro anos em que per maneci numa uni-
depois, a América Latina, sob o regime
versidade jesuíta durante a década de
militar, o seu inovador e largamente uti-
1950.
lizado modelo de “regime autoritário”.
E tampouco levasse em consideração
tudo o que me escapou uma década de- Nacional. O que levou o senhor
Arquivo Nacional
pois, durante os oito anos em que de- à pesquisa sobre o padre Cícero?
senvolvi meu doutorado em sociologia e Ralph Della Cava. Sorte e professores
história na Universidade de Columbia.
generosos têm muito mais a ver com isso
Naquela época, Columbia era singular-
do que você imagina. Apenas recente-
mente laica, secularizada e, apesar da mente eu pude perceber isto claramen-
presença de um célebre sociólogo cató-
te. Depois de finalizar a pós-graduação,
lico da religião, Thomas O’Dea, indife- eu pretendia partir para a Argentina, es-
rente à religião. Alguns responsáveis
tudar o movimento sindical socialista e
eram até bastante hostis e
fazer da América Latina meu principal,
preconceituosos, enquanto a universida-
senão único campo de pesquisa. Além
de como instituição se revelava incapaz
de meu avô ter viajado até lá, meus en-
– como mostram, entre outros eventos, contros dentro e fora dos Estados Uni-
as revoltas estudantis no campus em
dos com meus contemporâneos da re-
1968 – de fomentar qualquer tipo de
gião, heróicos oponentes da ditadura,
comunidade.
também me estimularam. Mas, ao con-
Apesar disso, era um espaço aberto e trário, em setembro de 1963, eis que
estimulante de livre e intenso debate, minha mulher, eu e nosso filho de pou-
mesmo que alguns departamentos se tra- co mais de um ano embarcamos num

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avião quadrimotor no Aeroporto Inter na- cista do revolucionário despertar rural


cional Idlewild (agora JFK) para o Ceará então ocorrendo em toda a região. Sua
(onde, devo acrescentar, não conhecía- descrição do líder político Francisco
mos ninguém!). Em alguns dias eu esta- Julião, que discursava em cima de um
va correndo pelo Cariri, numa “romaria” pau-de-arara, enquanto permanecia lado
própria (que duraria 14 meses) à procu- a lado a uma estátua do padre Cícero em
ra de documentos e arquivos para a mi- tamanho natural, era toda a evidência
nha tese sobre o padre Cícero. que necessitávamos para reforçar nossas
próprias expectativas políticas.
Uma mudança total no destino! No final,
meus orientadores tinham nas mãos car- As expectativas de Wagley, contudo, bem
tas mais fortes que as minhas. O faleci- longe de políticas, eram mais sentimen-
do Charles Wagley, então o antropólogo tais e institucionais. Eu compreendi aqui-
cultural preeminente da Universidade de lo apenas alguns anos depois quando ele
Columbia e, por uma década, decano dos confidenciou-me que, se pudesse reco-
incipientes ‘Estudos brasileiros’ nos Es- meçar a sua carreira, teria escrito sobre
tados Unidos, foi inicialmente responsá- Juazeiro, segundo episódio histórico em
vel pela minha mudança de interesse e, importância épica após Canudos, confor-
em função da sua afeição e contagiante me acreditava. Era aquela história que
entusiasmo pelo Brasil, também por uma ele me incentivava a escrever. “Apenas
mudança de sentimentos. A partir do conte a história!”, repetia ele, encorajan-
único curso oferecido então sobre o Bra- do-me. “Apenas conte a história!”.
sil na universidade, lecionado por ele,
Quanto às suas expectativas
suas aulas semanais acabaram sendo
institucionais, elas foram sistematica-
publicadas um ano depois como A n
mente empenhadas em criar um quadro
introduction to Brazil (1963), um manu-
de jovens especialistas dedicados ao
al que, por mais de uma década, se tor-
Brasil. As circunstâncias ajudaram: a re-
naria indispensável para uma hoste de
volução cubana e a pronta colaboração
nascentes brasilianistas.
da Social Science Research Council e da
Além disso, suas páginas dedicadas aos Fundação Ford, para financiar bolsistas
movimentos sociais no Nordeste, como que iam realizar pesquisas em América
Canudos e Juazeiro, logo tornaram al- Latina, facilitaram que Wagley enviasse
guns de nós entusiastas da política con- seus candidatos ao Brasil. Diana Brown,
temporânea e das lutas do Terceiro Mun- Peter Eisenberg, Kenneth Erickson,
do, levando-nos a perceber naquele es- Shepard Forman, Daniel Gross, Michael
pecífico passado brasileiro os precurso- Hall, Joseph Love, Riordan Roett, Stuart
res das mudanças que viriam. Aquela im- Schwartz e Alfred Stepan – para mencio-
pressão foi reforçada pelos relatos de An- nar apenas aqueles colegas com quem
tonio Callado, grande jornalista e roman- partilhei aquela aventura coletiva – esta-

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vam incluídos nas duas primeiras turmas adequado à sua natureza”.


da Universidade de Columbia que apro-
Confesso que naquela época eu não via
veitaram essa oportunidade.
as coisas daquela maneira e ainda hoje
Mas, minha inclusão no grupo não foi, fico surpreso do quanto ele vislumbrou.
de modo algum, uma certeza, como Então, sete anos depois, Milagre em
apontei anterior mente. De fato, meu Juazeiro 1 foi publicado e inúmeros cine-
mentor em história da América Latina, o astas produziram filmes a partir dele. Eu
falecido Lewis Hanke, quem mais tornou continuei escrevendo, não sobre o soci-
conhecidas a figura e a obra de alismo argentino, tampouco sobre as
Bartolomeu de las Casas e, posteriormen- minas de prata de Potosi, mas sobre re-
te, presidiu a Associação Americana de ligião, política e sociedade. O Brasil teve
História, sempre nutria a esperança que a preferência por mais de duas décadas,
eu escrevesse uma monografia sobre as mas desde 1991 meu foco voltou-se para
minas de prata de Potosi, durante o pe- a Europa Central e a Europa do Leste e,
ríodo da colonização espanhola. Mas, desde o ano passado, para os Estados
depois de ler o texto que produzi no iní- Unidos também.
cio de 1963 sobre Juazeiro, para o cur- Nacional. Como o senhor vê os
Arquivo Nacional
so de Wagley – que, aliás, não sei como estudos sobre religião desenvolvidos no
escrevi, uma vez que praticamente Brasil nas últimas décadas?
não sabia nada de português então, –
Ralph Della Cava
Cava. Para ser sincero, na
desistiu.
última década, eu tive muito menos tem-
Hanke não só desistiu, mas fez questão po de me manter atualizado com essa
mesmo que eu transfor masse o ensaio, produção. Mas, em pesquisas recentes
primeiro em um projeto de pesquisa e em bases de dados, três tendências apa-
logo depois em uma dissertação. Em recem com constância. Em primeiro lu-
suas sugestões posteriores – rascunha- gar, o catolicismo brasileiro não mantém
das a lápis numas folhas de papel o mesmo grau de interesse para os pes-
almaço, já amareladas pelo tempo e só quisadores que possuía durante os anos
recentemente redescobertas no meu ar- da ditadura, resistência e retorno à de-
quivo –, Hanke insistia que o tema me mocracia (1968-1985), embora existam
cabia bem, e à “especial combinação de alguns importantes trabalhos recentes
[meus] interesses (Brasil, religião, soci- sobre o tema. Indubitavelmente, naque-
ologia, política atual e futura)...”. Ele fi- la época o interesse foi muito bem
cou sonhando que eu até pudesse reali- direcionado. Afinal de contas, a Igreja,
zar também “um trabalho básico sobre junto com o movimento ecumênico, a
o Brasil moderno e talvez até o roteiro Ordem dos Advogados do Brasil e a As-
para um filme”. “Sortudo o historiador”, sociação Brasileira de Imprensa, denun-
concluía ele, “que encontrou um objeto ciava os opressores, defendia os direi-

pág. 6, jul/dez 2003


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tos humanos e abriu caminho para a não totalmente e nem sempre.


constituição de um amplo leque de no-
Daí, uma terceira tendência tem sido ine-
vos movimentos – sejam jurídicos, polí-
vitável, a tendência da “moda”. Assim
ticos ou de base – que vêm resistindo
como com a música e com a roupa, há
até hoje. Muitos dos que escreveram na
nas pesquisas uma ou outra abordagem
época, eu inclusive, foram considerados
que num determinado momento está na
simpatizantes da Igreja e insuficiente-
moda. Esta soma uma peculiar combina-
mente críticos. Talvez isso seja verdade,
ção de fatores: o momento histórico, as
mas, naquele momento, a Igreja era o
escolas de pensamento e os modelos
único pião em jogo e ela – e talvez nós
explicativos predominantes, a disponibi-
também – ajudou a alterar para melhor lidade de fundos para pesquisa e o po-
o curso da história brasileira.
der de convencimento e venda de uma
Desde então, tem havido uma prolifera- idéia. Tudo isso domina as opções de
ção de novos interesses. Nenhuma “mer- pesquisa, apesar de não controlar neces-
cadoria” no “mercado religioso” tem dei- sariamente os resultados das pesquisas.
xado de ser explorada. Umbanda, cren- Eu me recordo que quando cheguei ao
ças new age e cosmografias indígenas; Ceará, o milenarismo, o messianismo e
católicos carismáticos, comunidades o marxismo haviam, juntos ou separa-
eclesiais de base e os sem terra; dos, deixado pouco espaço para uma
pentecostalismo, neopentecostalismo e leitura alter nativa de Juazeiro. Até que
a Igreja Universal do Reino de Deus; as os próprios documentos e arquivos apon-
múltiplas faces do judaísmo e do tassem para outra direção.
islamismo no Brasil. Desde então, meus textos sobre religião
e política passaram a enfatizar a prima-
Esses resultados se encaixam perfeita-
mente com a segunda tendência: a ma- zia das instituições, sua capacidade e
maneira de deslocar as idéias, mão-de-
nutenção da predominância das univer-
sidades e instituições laicas na produção obra e os recursos, através da ordem
mundial e a sua inseparabilidade dessa
e na publicação de pesquisas. Em uma
mesma ordem. Essa direção – que devo
palavra, as confissões e instituições reli-
em parte à minha própria “redescoberta”
giosas não dominam mais as pesquisas,
de Juazeiro e aos primeiros trabalhos de
como faziam antes. Isso vale tanto para
o Brasil quanto para outros países. É cla- Wallerstein e Hopkins – foi um resultado
que mal pude prognosticar quando em-
ro que professores com uma afinidade
barquei na minha pesquisa há quatro
ou uma filiação a uma deter minada cren-
décadas.
ça encontram lugar na Academia. Entre-
tanto, para a maioria, é a Academia – por Arquivo Nacional. Na última década, no
causa de suas regras burocráticas e os entanto, o senhor realizou pesquisas
seus objetivos – que domina o jogo. Mas sobre as religiões contemporâneas nas

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nações que integravam o antigo bloco nha esposa havia passado a infância an-
comunista, na Europa Central e na União tes e durante a Segunda Guerra. Por con-
Soviética. Fale-nos como um brasilianista seqüência, passei os quatro meses se-
mudou tanto de rota. guintes no Columbia´s Harriman
Institute, centro de pesquisas dedicado
Ralph Della Cava. Bem, num certo senti-
ao estudo da antiga União Soviética, len-
do, eu não mudei de modo nenhum.
do tudo que estava disponível sobre re-
Como uma espécie de historiador de um
ligião e política na Europa Central duran-
“samba de uma nota só”, eu simplesmen-
te as duas décadas anteriores.
te me vi aplicando quase a mesma abor-
dagem utilizada para Juazeiro a uma No entanto, eu não estava sozinho na-
outra parte do mundo com quela jornada ao Leste. Meu colega e
especificidades distintas. Além do mais, amigo, também brasilianista, Alfred
em 1991 eu havia acabado de publicar Stepan e nosso antigo professor, Juan
um livro em co-autoria, sobre a Igreja Linz – renomado cientista político –, já
Católica e os meios de comunicação no haviam me precedido. A obra deles,
Brasil desde 1962. Essa investigação publicada posteriormente em 1996, com-
abordava a cultura moder na e quem a parando a transição democrática em três
moldava e, assim, fiquei bem municiado regiões do mundo – incluindo a ex-União
de questões para trabalhar com uma re- Soviética – é um monumento à
gião onde o tema central da época era engenhosidade e à originalidade, ao de-
(e ainda é incidentalmente) a reinvenção cifrar como aqueles sistemas políticos,
da nação, da economia, da religião e da aparentemente tão entranhados e imu-
sociedade. táveis, foram alterados.

Obviamente que o senso de oportunida- Nessa “mudança de lugar”, também se


de foi fundamental. Em primeiro lugar, o revelou o paradoxo de como estudiosos
muro de Berlim havia acabado de cair e como nós, vindos “de fora” da área, ja-
com ele todos os bloqueios que impedi- mais tiveram a chance de cruzar a “terra
am a viagem ao âmago do “socialismo incógnita”. O fato é que para muitos
real”. Por outro lado, uma conferência “sovietólogos” e “Kremlinólogos” o Les-
na Europa Ocidental da qual eu então te simplesmente havia permanecido exa-
participava custeou mais da metade da tamente assim, uma terra desconhecida.
minha passagem aérea até aquelas para- Poucos entre eles podem explicar, mes-
gens. Além disso, motivos sentimentais mo hoje de for ma convincente, uma
levaram-me em maio e junho de 1991 a mudança histórica daquele porte; sem
viajar com a minha mulher, por três se- falar que nenhum deles a prognosticou.
manas, a um enclave situado na região Repentinamente, brotaram grandes quan-
do antigo império austro-húngaro, onde tidades de recursos para qualquer um
seus avós haviam sido enterrados e mi- que tivesse um palpite – baseado em sua

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R V O

própria disciplina – sobre o passado re- declínio da participação na prática reli-


cente do Leste e o seu futuro. A partir giosa, a falta de vocações e a carência
dos meus estudos no Harriman Institute de pessoas leigas competentes revela-
e das respostas que obtive junto com ram-se os maiores obstáculos para fazer
minha esposa às perguntas que formu- avançar os interesses da instituição na
lei ao clero, jor nalistas televisivos e pro- sociedade como um todo. As estratégias
fessores – durante nossa rápida viagem para reverter as respectivas crises pare-
pela Polônia, Hungria e Áustria –, produ- ciam extraordinariamente similares tam-
zi uma igualmente rápida apreciação bém.
daquilo que eu pensei ter visto. A pers-
Entre os resultados, um longo ensaio
pectiva do trabalho, intitulado Thinking
intitulado “Roman Catholic philanthropy
about current Vatican policy in Central
in Central and East Europe, 1945-1990”,
and East Europe and the utility of the
que já é história como você pode dizer.
‘Brazilian paradigm’ , foi considerada útil
O método, eu acho, pode ser chamado
por Juan Linz, além de oportuna uma
de comparativo, e o meu ponto de parti-
pesquisa mais profunda sobre a restau-
da foi, sem dúvida, o primeiro quartel
ração do catolicismo na Europa Central.
do século, estudando religião e política
Quem melhor do que um “de fora” para
no Brasil.
se aventurar onde os “de dentro” deram
Nacional. Mas eu sei que o se-
Arquivo Nacional
tão poucos passos. Linz recomendou-me
nhor não parou lá. O que o levou a ex-
para o Ger man Marshall Fund, que me
plorar o cristianismo ortodoxo, em par-
possibilitou uma viagem de dez me-
ticular a Igreja Ortodoxa Russa?
ses por oito países e vinte e duas ci-
dades, entre setembro de 1992 e ju- Ralph Della Cava
Cava. Isso foi inevitável!
nho de 1993. Enquanto eu viajava por aquele eixo ima-
Por trás dessa nova pesquisa sobre a ginário Norte-Sul, que passa através das
reestruturação da Igreja na Europa Cen- margens orientais da Polônia,
tral – uma região onde ela esteve exclu- Eslováquia, Hungria e Croácia, fui instan-
ída ou limitada por várias décadas –, es- taneamente transportado para Bizâncio,
tava a imagem que eu possuía de uma seu legado, passado e presente. Para o
situação paralela, a da Igreja brasileira leste desse eixo, a liturgia latina da Igre-
se reposicionando na sociedade na es- ja Católica quase parou de ser celebra-
teira da Segunda Guerra. Em ambas cir- da, exceto entre os remanescentes dos
cunstâncias, “ameaças” semelhantes chamados católicos romanos “étnicos” –
pareciam estar em marcha. De fora da alemães, poloneses, lituanos – que fica-
instituição, o secularismo, a ideologia e ram há séculos espalhados ao longo das
os partidos marxistas e o sur gimento da fronteiras do antigo Império Czarista e
competição de outros credos religiosos da ex-União Soviética. Fora desse eixo,
estavam proliferando. Dentro dela, o a fé ortodoxa veio a prevalecer mais uma

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vez a despeito de sete décadas de cam- acordos visando à ereção de duas admi-
panhas anti-religiosas patrocinados pelo nistrações apostólicas foram prontamen-
Estado. Mesmo que ela ainda não tenha te negociados, antigas paróquias e direi-
voltado a florescer (apenas 2 a 5% da tos de propriedade foram reconhecidos,
população são praticantes), a ortodoxia a entrada e a saída de pessoas e recur-
per manece cara e de capital importân- sos em todo o território nacional foram
cia aos povos da Bielorússia, Ucrânia, facilitadas e antigos seminários e insti-
Sérvia, Romênia, Moldávia, Bulgária, tuições educacionais reabertos.
Ar mênia, Geórgia e, principalmente, ao
Tudo isso aconteceu simultaneamente à
da Rússia, a maior nação nominalmente
busca de um objetivo transcendental: pôr
ortodoxa do mundo.
fim ao Grande Cisma de 1054 entre a
Mas, a simples proximidade geográfica cristandade latina e a de Bizâncio! Com
e uma antiga apreciação da literatura e esse propósito, o papa João Paulo II con-
da língua russa poderiam não me ter le- tinuou o diálogo iniciado por seus pre-
vado jamais a pesquisar sobre esta decessores com vários patriarcas orien-
homogênica “unidade histórica” religio- tais – que, em contraste com o papa,
sa e cultural. O que mais me intrigou e gover nam exclusivamente suas respec-
ainda me intriga foi a sua complexa “po- tivas igrejas, cada uma sediada, em ge-
lítica de religiões”. Eu vou poupar-lhe os ral, numa só nação – e seus fiéis
detalhes e assinalar apenas três amplas conterrâneos que moram no exterior.
áreas, que, desde 1994, têm sido os Entre eles, apenas o Patriarca
objetos principais do meu trabalho. Ecumênico, herdeiro da histórica Sé de
Constantinopla, é universalmente reco-
A primeira é o restabelecimento da Igre-
nhecido como o “primeiro entre iguais”.
ja Católica na Rússia, certamente uma
Uma espécie de papa, que desconhece a
continuidade do meu trabalho sobre a
infalibilidade e está sujeito ao consenso
Europa Central. 2 Além disso, como eu
dos bispos reunidos num conselho uni-
perceberia por meio de entrevistas em
versal em todos os assuntos relativos à
Roma e em outros lugares da Europa
doutrina e fé; ele sozinho, não obstante,
Ocidental, havia um ponto crucial na
possui o poder singular de criar igrejas
agenda do atual pontificado: nenhum
autônomas (chamadas autocéfalas). Con-
esforço ou gasto seria economizado no
finado territorialmente, contudo, a al-
sentido de restaurar a presença do cato-
guns quarteirões de Istambul, ele não
licismo e ir ao encontro das demandas
goza da proteção de nenhum Estado e
pastorais de aproximadamente um mi-
lidera fiéis ao redor do mundo, a maior
lhão e meio de fiéis. Roma não perdeu
parcela daqueles que são exclusivamen-
tempo. Durante os gover nos de
te da etnicidade grega.
Gorbachev e Yeltsin, relações diplomáti-
cas foram rapidamente restabelecidas, Em marcante contraste, o Patriarca de

pág. 10, jul/dez 2003


R V O

Moscou e de toda a Rússia, não mais o de modo algum gregos, mas sobretudo
títere de regimes autoritários, mas, ao oriundos da Ucrânia, da Bielorússia,
contrário, o mais novo confidente do Romênia, Polônia e Hungria e das suas
novo Estado emergente (rápido em se respectivas diásporas após a Segunda
identificar com a fé histórica da nação), Guerra.
aparece para muitos observadores como
Mas essa reviravolta de maneira alguma
o mais poderoso dirigente do mundo or-
convenceu a Igreja Ortodoxa Russa! De
todoxo. Por isso mesmo o Patriarcado
fato, Roma e Moscou estão num impasse
ficou insatisfeito com a maneira como o
ainda hoje. Séculos de desconfiança rus-
Vaticano jogou suas cartas como um Es-
sa do Ocidente e da suspeição da Igreja
tado soberano, em vez de uma religião
Ortodoxa quanto às intenções da Igreja
coirmã para retornar ao solo russo. Aque-
Católica não são facilmente dissolvidos.
le solo, o Patriarcado declara, é seu ex-
Conflitos recentes envolvendo paróqui-
clusivo “território canônico”, fora dos li-
as e propriedades na Ucrânia Ocidental
mites dos proselitismos. Além do mais,
entre os “católicos gregos” e os muitos
sem a sua aquiescência, nem o fim do
ucranianos ortodoxos, que – a despeito
Grande Cisma nem a histórica primeira
da independência de seu país – ainda
visita de um pontífice romano à Rússia,
permanecem fiéis ao Patriarcado de Mos-
que o atual papa tão profundamente e
cou, amargaram as relações. Qualquer
publicamente deseja, podem ser conce-
perspectiva de reaproximação é altamen-
bidos.
te improvável num futuro próximo.3
Para alcançar esses objetivos, o Vaticano
não poupou esforços para reverter duas Nessas circunstâncias, a Igreja Ortodo-
políticas de longa duração. For malmen- xa Russa não podia deixar de emergir
te pôs um fim numa antiga ambição, in- como a minha segunda área de interes-
flamada pela Revolução Russa, de con- se. Mais uma vez, minhas pesquisas an-
verter a Rússia ortodoxa ao catolicismo teriores sobre o catolicismo brasileiro
romano. Declarou também que as igre- serviram para mim como um modelo que
jas do “catolicismo grego” (ou “rito ori- eu podia utilizar para entender o “não-
ental”) – que por razões históricas são familiar”.4 Uma grande diferença que en-
ortodoxas na liturgia e costumes, mas contrei inicialmente foi a falta de conta-
diferentemente dos ortodoxos, reconhe- tos e de acesso da Igreja Ortodoxa Rus-
cem a primazia e a infalibilidade do sa a recursos significativos de entidades
Papado – não eram mais um degrau viá- estrangeiras. Eu contrapus essa realida-
vel no caminho para a reunião completa de tanto às múltiplas conexões da Igreja
das Igrejas Ortodoxa e Católica. Não sur- Católica brasileira com as igrejas
preendentemente, essa reversão deixou coirmãs quanto aos benefícios obtidos
fortemente desconcertados os oito mi- junto a estas igrejas, especialmente as
lhões de “gregos católicos” que não são sediadas nas nações ricas da Europa e

Acervo, Rio de Janeiro, v. 16, n o 2, p. 3-18, jul/dez 2003 - pág. 11


A C E

da América do Norte, e a uma eficiente nas Constantinopla pode conferir essa


instituição burocrática de projeção inter- independência, chamada de
nacional, a Cúria Romana, ou seja, ao “autocefalia”. Mas, suas recentes tenta-
célebre caráter transnacional do catoli- tivas de estabelecer isto nos casos cita-
cismo mundial. dos sofreram forte oposição de Moscou,
sob a jurisdição de quem essas nações
Mas, na última década, parece que o Pa-
ficaram durante a administração soviéti-
triarcado de Moscou vem seguindo, a
ca. Até o momento, contudo, um difícil
esse respeito, o exemplo do Vaticano.
entendimento foi alcançado com relação
Sendo ele próprio a força motriz, abriu
à Estônia, graças à intervenção do Esta-
uma série de novas igrejas ao redor do
do russo em benefício do seu “próprio”
mundo. Um dos motivos dessa estraté-
Patriarcado de Moscou. Mas, com rela-
gia foi igualar-se à expansão e à renova-
ção à Ucrânia ortodoxa, a mais rica das
ção do novo Estado russo; outro foi
duas nações, e cujos recursos financei-
acompanhar a imigração dos fiéis para
ros e vocações clericais ainda sustentam
as nações ricas da Europa Ocidental e
a Igreja russa, não há nenhuma resolu-
América do Norte. Em Roma, muito per-
ção à vista.
to do Vaticano, Moscou está rapidamen-
Uma implicação importante disso é que
te restaurando uma capela ortodoxa da
o prestígio de Constantinopla está agora
era czarista em um dos muitos templos
seriamente em risco. Seus recursos re-
do Patriarcado recentemente abertos na
duzidos, ameaçados por recentes recla-
Itália.
mações em favor da autocefalia por par-
Há, provavelmente, um outro aspecto te das igrejas ortodoxas mais ricas dos
dessa expansão, que se refere àquele Estados Unidos e Austrália, ajudaram a
mencionado anteriormente e que cons- desgastar sua influência nos círculos de
titui minha terceira e última área de in- igrejas internacionais. Isso é especial-
teresse relacionada à Ortodoxia: suas mente verdadeiro a respeito do Conse-
tensões internas e suas implicações com lho Mundial das Igrejas, a maior organi-
as religiões ocidentais. A principal ten- zação ecumênica do pós-guerra, basea-
são se refere à ascensão da rivalidade da em Genebra, e que o Patriarcado
entre o Patriarcado Ecumênico e o de Ecumênico ajudou a fundar. Nele, é a
Moscou, a qual se tem desenvolvido re- Igreja russa que tomou a liderança em
centemente de for ma agressiva na prol das igrejas-membro ortodoxas na
Estônia e na Ucrânia. Está em jogo se os busca, por decênios, para modificar as
fiéis ortodoxos e as suas igrejas dessas políticas do Conselho a respeito de atos
nações – uma minoria na Estônia, e uma de culto em comum, teologia, poder
maioria na Ucrânia – podem tor nar-se decisório, representação e finanças.
autônomos com relação ao Patriarcado Além disso, em várias instituições religi-
de Moscou. Por efeito de tradição, ape- osas estabelecidas recentemente pela

pág. 12, jul/dez 2003


R V O

União Européia, e dentro das suas na- gio e autoridade moral das instituições
ções-membro, a posição do Patriarcado e do pessoal eclesiástico.
de Moscou foi certamente acentuada gra-
Na Rússia, onde a Igreja Ortodoxa pre-
ças ao poder e influência do Estado rus-
domina, é o próprio Patriarcado de Mos-
so. A Turquia, uma nação muçulmana,
cou que levanta a bandeira do
ainda candidata a ingressar na União
fundamentalismo, de forma consistente
Européia, até o momento não demons-
com o passado e com a cultura da na-
trou nenhum interesse em promover os
ção. Seus sacerdotes mais jovens e os
objetivos do Patriarcado de
leigos, que abraçaram princípios da li-
Constantinopla. Mas essa posição não
berdade religiosa, da cooperação
está fechada.
ecumênica e da atualização da liturgia,
Nacional. Se o senhor me per-
Arquivo Nacional para atender às exigências dos tempos
mite, parece-me que esta pesquisa so- atuais, foram derrotados pela hierarquia
bre a Europa Central e a Europa do Les- tradicional. A cooperação estreita entre
te, envolvendo a Igreja Católica e a Or- a Igreja russa e o Estado, até mesmo en-
todoxia, tem pouco a ver com o seu tra- tre o Patriarcado e os remanescentes ain-
balho atual sobre a direita cristã e o Par- da poderosos do Partido Comunista, para
tido Republicano nos Estados Unidos. impedir a presença de credos “concor-
Ralph Della Cava.
Cava À primeira vista, as- rentes” e restringir o direito de expres-

sim o parece. são religiosa, constitui a ordem do dia.


Além disso, o apoio da Igreja ao partido
Entretanto, na Rússia, na Europa Ociden-
que está no poder e às novas elites rus-
tal e nos Estados Unidos – sem falar no
sas do mundo de negócios, foi-lhe muito
Oriente Médio, sobre o qual sei apenas
propício. Tendo enfrentado dificuldades
o que leio nos jor nais – o cenário da re-
financeiras, o Patriarcado vem obtendo,
ligião é marcado por um crescente
desde sua manifestação, êxito no finan-
fundamentalismo. Suas principais carac-
ciamento para construção de igrejas,
terísticas são uma resistência ao
conseguindo também acesso às escolas
secularismo (em suas muitas formas) e
públicas para o ensino da Ortodoxia e
um abraçar coletivo de algum tipo de
recebendo apoio governamental em mui-
missão divina autodefinida
tas de suas políticas internas e externas.
(freqüentemente imbuída de nacionalis-
mo ou de anticolonialismo abrangente Nos Estados Unidos, onde um essencial-
por toda a região). No caso do “Ociden- mente “livre mercado de produtos religi-
te cristão” é também uma reação a um osos” tem existido desde a criação do
rápido afastamento da Igreja, por parte país, o fundamentalismo protestante
de populações outrora praticantes do apresenta um centro de gravidade com-
catolicismo ou protestantismo, bem pletamente diferente. Entretanto, suas
como o declínio concorrente do prestí- várias expressões contemporâneas

Acervo, Rio de Janeiro, v. 16, n o 2, p. 3-18, jul/dez 2003 - pág. 13


A C E

(evangélicos, pentecostais e blicano, desejoso de retomar do Partido


carismáticos) somente se fizeram sentir Democrata o que fora no passado um
no início do século XX. Circunscrito por “bloco unificado do sul”, capitalizou com
classe aos brancos pobres, por seu o racismo persistente da região, com sua
confinamento principalmente no sul dos hostilidade à legislação igualitária sob os
Estados Unidos e por seu rígido código presidentes democratas e com o ressen-
moral de comportamento, o timento regionalista contra o Norte, exis-
fundamentalismo americano foi parcial- tente desde a Guerra Civil.
mente uma resposta ao “modernismo” e Em uma década, uma nova safra de líde-
à ciência. Foi também um protesto con- res religiosos politicamente talentosos e
tra as denominações protestantes histó- surpreendentemente pragmáticos teve
ricas (episcopais, presbiterianos, êxito em unir a renascença
metodistas e congregacionalistas) e con- fundamentalista à sorte do Partido Repu-
tra o seu abraçar do “Evangelho Social” blicano. Ambos marcharam de vitória em
(Social Gospel), uma crença na capaci- vitória, um mudando o caráter do outro.
dade de “construir socialmente” um
Nacional. O que o senhor quer
Arquivo Nacional
patrimônio moral. De acordo com os
dizer quando afirma que tanto o caráter
fundamentalistas, tal visão nega a “na-
do fundamentalismo quanto o do
tureza caída” do homem, sua tendência
republicanismo se alteraram?
ao pecado e a necessidade de “nascer
novamente” em Jesus Cristo para sua Ralph Della Cava
Cava. Dito de for ma simples,

redenção. (Hoje em dia, à medida que os fundamentalistas se tornaram, nos

as denominações históricas estão sendo últimos vinte e cinco anos, mais saga-

propelidas rumo ao declínio, o zes, pragmáticos e atuantes quanto a

fundamentalismo parece estar suplantan- colocar sua proposta religiosa extrema-

do-as como o novo “consenso” protes- mente radical em ação. No mesmo perí-

tante na América). odo, os republicanos em geral trocaram

Os fundamentalistas tinham se relegado o terno e a gravata dos políticos outrora

às margens da sociedade norte-america- sagazes, pragmáticos e racionais pela

na. Sua oposição ao ensino da evolução indumentária de guerreiros religiosos.

nas escolas e sua defesa da Lei Seca – Juntos, engendraram uma unicidade na

campanhas em que foram derrotados – presidência de George W. Bush. Este,

os mantinham em tal lugar. Porém, no também um cristão “renascido”, instilou

começo da década de 1970, com a vitó- uma visão maniqueísta do mundo na

ria, na campanha presidencial, de Jimmy política da nação – uma visão em que a

Carter, ele mesmo um cristão “renasci- América tem a responsabilidade divina

do”, em quem os fundamentalistas ti- de derrotar o Mal.

nham votado maciçamente, a sorte polí- Essa mudança de correntes não foi boa
tica da corrente mudou. O Partido Repu- para o país.

pág. 14, jul/dez 2003


R V O

Os fundamentalistas agora constituem atacado da América, a preços de barga-


cerca de um quinto do eleitorado votan- nha, de liquidação. Desde o mandato de
te nacional. Sem o seu apoio, a Casa Ronald Reagan, nos anos 80, os
Branca é hoje inatingível pelos republi- ideólogos republicanos buscam desmon-
canos. Aqueles possuem altos cargos na tar completamente os serviços sociais
administração atual e incluem, dentre patrocinados pela administração federal.
seus membros mais “radicais” e militan- Desejam reduzir o governo federal a uma
tes, o atual representante da maioria na mera sombra de si mesmo, tor nando
Câmara de Deputados e o procurador- paradigma vigente os direitos dos esta-
geral dos Estados Unidos. No Congresso dos e a efetiva descentralização políti-
são suficientemente numerosos para blo- ca. “Acabar com o governo grande e com
quear e aprovar legislação. Na burocra- os grandes gastos” é o seu mantra e seu
cia federal, possuem inúmeros cargos, grito de guerra (à medida que vem se
afetando todos os aspectos da política fazendo precisamente o contrário). Quan-
social, do meio ambiente à raça, da ge- to aos republicanos do estabelecimento
nética à saúde e daí em diante. Neste militar-industrial, desejam impostos mais
momento, estão se mobilizando para altos para a classe média, maiores isen-
obter o controle dos tribunais federais e ções fiscais para as empresas e para os
estaduais por meio das próximas indica- extremamente ricos, e uma transferên-
ções judiciárias. Além disso, muitos de- cia maciça da arrecadação de imposto
les são membros dos comitês executi- para os fabricantes de munição,
vos do Partido Republicano, em vários monopolistas de energia e outros grandes
estados. interesses corporativos envolvidos no
negócio de vender provisões de guerra.
Em resumo, os fundamentalistas nunca
tinham desfrutado de um poder político
Do seu lado, os fundamentalistas buscam
tão extraordinário quanto o que hoje
restaurar a “verdadeira América” – uma
possuem. Junto, por um lado, com os
comunidade essencialmente imaginada
ideólogos seculares – estes “falcões”
do passado, uma criação da imaginação
neoconservadores que elaboraram o ra-
nostálgica –, na qual a moralidade (sua
ciocínio mendaz para a guerra no Iraque
própria) irá novamente governar as rela-
–, e, por outro lado, com os lobistas todo-
ções humanas no país e no exterior. En-
poderosos do complexo industrial-mili-
tretanto, num nível mais prático, a his-
tar, liderados por não menos que o vice-
tória é outra. Acabar com o aborto, fa-
presidente do país, os fundamentalistas
zer retroceder o feminismo, opor-se ao
compõem o indispensável terceiro mo-
casamento entre homossexuais, tornar a
tor da “troika” que vem impelindo a má-
homossexualidade um crime (mas con-
quina cega, o jugger naut de Bush.
verter o homossexual), promover o ensi-
O que está em questão é a “venda” por no privado, reconhecer abertamente a

Acervo, Rio de Janeiro, v. 16, n o 2, p. 3-18, jul/dez 2003 - pág. 15


A C E

Lei Divina como base da Constituição e dos fundamentalistas enobreceram a


da nação americanas – são estas as ban- guerra contra o Iraque como uma cruza-
deiras que vêm erguendo de comício em da virtual contra a “religião de sarjeta”
comício. do Islã, enquanto que um número não
pequeno de crentes, apoiados na corren-
Na política externa, os fundamentalistas
te externa do literalismo bíblico, dá seu
vêm constantemente denunciando as
entusiástico apoio à guerra, como o fize-
Nações Unidas. Fazem-no agora “do lado
ram quanto ao conflito Israel-Palestina.
de dentro”, na condição de delegados
oficiais dos Estados Unidos às várias Numa aliança extremamente peculiar
agências especializadas. Anátemas são com algumas organizações judaico-ame-
as políticas da ONU para planejamento ricanas e grupos de planejamento estra-
familiar, que promovem o aborto e o uso tégico (os think tanks ) pró-Israel – alian-
de contraceptivos, como também o são ça essa que atendeu plenamente aos
seus programas para educação global, anseios dos “falcões” da guerra –, os
baseados – na opinião desses fundamentalistas apóiam, há décadas, a
fundamentalistas – nas frágeis doutrinas volta dos judeus do mundo inteiro à Ter-
de direitos humanos e da universalidade ra Santa e a guerra implacável de Israel
secular, ao invés de sê-lo nos valores contra os palestinos como o prelúdio
judaico-cristãos. Chegaram ao ponto de para o Ar magedon! Como profetizado
questionar o sr. Bush publicamente quan- pelas Escrituras, será em Israel que o
to à sua recente promessa de doar bi- Cristo e o Anticristo irão iminentemente
lhões de dólares para a erradicação da se defrontar em conflito. Com a vitória
AIDS na África; até o momento nenhum do Redentor, os bons serão conduzidos
centavo foi sequer apropriado, muito ao paraíso, enquanto que os pecadores
menos distribuído. – e todos os judeus que não aceitarem
Cristo como o verdadeiro messias – se-
A maior parte dos fundamentalistas acre-
rão varridos para as chamas do infer no,
dita – da mesma for ma que os norte-
em eterna maldição.
americanos – que a nação está engajada
Nacional. Mudando o nosso foco
Arquivo Nacional
numa guerra contra o terrorismo. (E da-
rão “suas vidas e seus tesouros” para
do passado para o presente, eu gostaria

tor nar a nação uma vez mais segura,


de saber a opinião do senhor sobre a

mesmo que isso signifique abrir mão in- situação atual dos Estados Unidos?

definidamente de suas liberdades, como Ralph Della Cava


Cava. Em minha opinião, a
as chamadas Leis Patriotas e outros atos “troika” que hoje dirige o país – e que o
legislativos pós-11 de setembro prevêem está enterrando – tem causado um mal
– erradamente, na minha opinião – que considerável à América. Basta observar
o farão). Da mesma for ma que alguns as conseqüências dos últimos três anos.
norte-americanos, vários líderes-chave A dívida pública disparou. O desempre-

pág. 16, jul/dez 2003


R V O

go atingiu o seu ponto mais alto de to- No caso dos fundamentalistas comuns,
dos os tempos. Dois milhões e setecen- em oposição a alguns de seus líderes,
tos mil empregos desapareceram. Os os mesmos têm recebido pouquíssimo
benefícios de saúde e pensões diminu- em troca de todo o apoio que investiram
em, enquanto que líderes empresariais no Partido Republicano. O recente decre-
corruptos ficam sem punição. A prote- to sobre “iniciativas baseadas na fé”, que
ção ambiental é abandonada. O daria às igrejas locais fundos federais
aconselhamento sensato de militares, para a promoção de serviços sociais, não
pessoal de inteligência e diplomatas que somente quebra a separação constituci-
se opuseram à guerra no Iraque é onal entre a Igreja e o Estado, como tam-
desconsiderado e denegrido. A ameaça bém efetivamente reforça a estratégia a
de uma corrida ar mamentista nuclear longo prazo dos republicanos, de des-
aumentou significativamente, ao mesmo mantelar a própria “rede social” que hoje
tempo em que a campanha cínica da protege, embora inadequadamente, os
administração, buscando aprovação do pobres, os idosos e a maioria da classe
Congresso para a utilização de “armas média. O declínio estrondoso da quali-
táticas nucleares” em futuros conflitos dade do ensino público no nível primá-
locais, colocaria um ponto final, se bem- rio e no secundário também os afeta di-
sucedida, ao consenso pós-guerra con- retamente. A “solução” da administração
tra o seu uso numa guerra “convencio- para colocar o governo “fora da educa-
nal”. Finalmente, há a bravata do “vou ção” através da privatização – como es-
em frente sozinho”, que tem marcado a tratégia avidamente promovida no Texas
política externa dos Estados Unidos des- pelo então governador Bush – já demons-
de que Bush assumiu a presidência e, trou ser um fracasso. De forma análoga,
como conseqüência, isolou o país do as faculdades e universidades de baixo
resto da comunidade mundial. custo, subvencionadas pelo poder públi-
co – historicamente entre os baluartes
Pode-se pensar que os norte-americanos mais importantes do progresso científi-
comuns, em especial os co e representando forma indubitável de
fundamentalistas religiosos, fossem os ascensão social –, vêm enfrentando uma
primeiros a elevar suas vozes. Estes crise financeira sem precedentes.
constituem exatamente os eleitores das
pequenas cidades, que têm mais a per- Assim, a América do início do século XXI
der à medida que o país se afunda em representa um caso clássico do que pode
divisões de classes cada vez mais rígi- certamente dar errado quando a religião
das e num estado de guerra potencial- e a política se cruzam tão agressivamen-
mente permanente que irá consumir a vida te em suas esferas, quando as teologias
de seus filhos – em sua maioria brancos e as ideologias, cegas à realidade e ao
pobres, negros, hispânicos e imigrantes. bem comum, ganham a dianteira.

Acervo, Rio de Janeiro, v. 16, n o 2, p. 3-18, jul/dez 2003 - pág. 17


A C E

Poderá tal “aliança profana” ser desfei- envolvê-los numa chamada guerra de
ta? Por um lado, o “choque e estupor” “opção” (e não de “necessidade”). No
das Torres Gêmeas proporcionaram um entanto, ainda é muito cedo para saber
manto de heroísmo ao atual mandatário até onde esse declínio significativo do
(como teria ocorrido com qualquer ou- apoio ao presidente Bush irá levar.
tro político que ocupasse o poder supre-
No meu caso específico, espero que, no
mo no país). Em nome da guerra “contra
futuro imediato, a América – e o mundo
o terrorismo”, esse estado de coisas tam-
que ela busca dominar – seja poupada
bém per mitiu que a campanha para a
de sofrimento ainda maior. Entretanto,
reeleição de Bush acumulasse um enor-
isso exigiria que a atual administração
me cabedal de recursos visando à cam-
enfrentasse algumas de suas opções
panha eleitoral presidencial e do Con-
mais difíceis – aumentar impostos, sair
gresso em 2004.
do Iraque –, nenhuma das quais poder-
Por outro lado, já ocorre uma mudança se-á esperar que assuma. Sendo este o
nas tendências da guerra – os iraquianos caso, existe uma passagem na Escritura
agora denunciam seus “libertadores” Sagrada, a respeito do “final dos tem-
como tropas de ocupação, isto quando pos”, em que os fundamentalistas encon-
não os estão a matar. Nesse meio tem- tram tal convicção, que deve servir para
po, a pesquisa de opinião pública no lembrá-los (e, de certo modo, nos alertar)
outono de 2003 sugere que, pela primei- sobre o que há possivelmente por vir:
ra vez, desde o 11 de setembro, os ame- um intenso “soluçar e o rilhar de dentes”.
ricanos estão começando a questionar a
capacidade do presidente em liderar a Entrevista concedida a Maria do Car mo
Carmo
nação e a sabedoria da “troika” em T. Rainho em setembro de 2003
2003..

N O T A S
1. A edição brasileira de Milagre em Juazeiro , Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1977, contou com a
excelente tradução da historiadora Maria Yedda Linhares.
2. Cf. Ralph Della Cava, The Roman Catholic Church in Russia, 1991-1996 – the Latin Rite, The
Harriman Review , v. 9, n. 4,1996, p. 46-57.
3. Ver Ralph Della Cava, Shall the T wain ever meet? On the cancellation of the june 1997 Meeting
of the Pope of Rome and the Patriarch of Moscow, Religion in Easter n Europe , v. XVIII, n. 1,
fev. 1998, p. 15-27; e Assessing Pope John Paul II’s visit to Ukraine, Religion in Eastern Europe,
v. XXI, n. 5, out. 2001, p. 1-7.
4. Ralph Della Cava, Religiões transnacionais: a igreja católica romana no Brasil e a igreja orto-
doxa na Rússia, Imaginário , n. 6, USP, 2000, p. 98-117. A versão em inglês, Transnational
religions: the Roman Catholic Church in Brazil and the Orthodox Church in Russia, foi publicada
em Sociology of Religion, v. 62, n. 4, 2001, p. 535-550.

pág. 18, jul/dez 2003


R V O

Emerson Giumbelli
Professor do Departamento de Antropologia Cultural,
do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da UFRJ.

Religião e Espaço Público


no Caso do Cristo no Júri
Rio de Janeiro, 1891

O texto analisa um episódio ocorrido em The article analyses a case that took place
1891 no Rio de Janeiro, envolvendo o in Rio de Janeiro, in 1891, envolving the
protesto de um pastor evangélico contra a protest of a reverend against the presence
presença de um crucifixo na sala do júri. A of a crucifix in the court room. This
polêmica mobilizou a imprensa e algumas controversy mobilized the press and some
autoridades. As questões que infor mam a análise authorities. The issues in the analysis lead to
remetem a uma discussão sobre a relação entre discussions about the relationship between
símbolos religiosos e espaço público, a religious symbols and public space, the
neutralidade do Estado em assuntos religiosos, State neutrality in religious affairs, the way
e a for ma pela qual maiorias e minorias society deals with religious majorities
religiosas se inserem na sociedade. and minorities.
Palavras-chave: secularização, relações Keywords: secularization, State–Church
Igreja–Estado, religião. relationship, religion.

Em público, na porta do edifício em UM DOCUMENTO E SEU LEITOR ,


que funciona o júri, [...] um professor DESTINOS E ACASOS

E
bem reputado quis sustentar-me que

o ídolo deveria ser conservado naque- ncontrei-o meio que por acaso.
le tribunal e apresentou-me [...] este Foi durante a pesquisa para a
suposto argumento: “Em matemáticas, tese de doutorado em antropo-
a ausência de sinal já é um sinal; logo, logia. 2 Minha intenção era reunir elemen-
se no júri não houver crucifixo, que é tos que permitissem saber como se efe-
o sinal do católico romano [...], quem tivou a desvinculação entre Estado e Igre-
entrar na sala daquele tribunal pensa- ja Católica, na forma deter minada pelos
rá que ali são todos protestantes”. 1 primórdios do regime republicano. Um

Acervo, Rio de Janeiro, v. 16, n o 2, p. 19-42, jul/dez 2003 - pág. 19


A C E

decreto de 7 de janeiro de 1890, ainda do Estado e isso explica em boa parte a


durante o gover no provisório, proibia às existência de uma extensa literatura so-
autoridades qualquer ato “estabelecen- bre a for mulação e as implicações da lei
do alguma religião, ou vedando-a”. 3
O de 1905. No Brasil, ao contrário, não são
mesmo texto extinguia o “padroado” – muitos os textos que se dedicam a acom-
nome pelo qual se designava o regime panhar esse processo, acrescentando-se
que oficializava o catolicismo –, além de o fato de que a maioria daqueles que o
reconhecer “liberdade” e de prometer fazem se interessam pelo modo como a
“igualdade” no tratamento às igrejas e Igreja Católica lidou com a questão. Per-
associações religiosas. Queria eu saber cebi aos poucos que estava diante de
sobre algo a que o decreto pouco se re- uma questão com limites históricos mal
fere: como, na prática, ocorreu a transi- definidos e pouco analisada como pro-
ção a partir do velho regime e quais as blema político e intelectual.
características que marcaram o modelo

N
que se pretendia inaugurar. Já fizera algo ão havia outra coisa a fazer
semelhante em relação à situação fran- senão “mergulhar nos arqui-
cesa, considerando a lei de 1905, que vos”. Foi nessa ocasião que
consolida a separação entre Estado e me deparei com o documento que trans-
cultos e instaura o regime válido até os formo no principal objeto deste texto.
dias de hoje. Vasculhava os fichários de assunto da
Duas das muitas diferenças entre o Bra- biblioteca do Instituto Histórico e Geo-
sil e a França nesse aspecto precisam ser gráfico Brasileiro em busca de referênci-
mencionadas para se entender o encon- as sobre “liberdade religiosa”. Ali encon-
tro a que me refiro. A lei francesa dedi- trei catalogado O Cristo no Júri : liberda-
ca vários de seus artigos a providenciar de de consciência, de autoria de um tal
a transição entre os dois regimes. Além Miguel Vieira Ferreira. Nunca tinha ouvi-
disso, ela se apóia em uma lei anterior, do falar dele e de seu livro. Solicitei o
de 1901, acerca das regras concernentes volume e o recebi amarrado por um cor-
às associações em geral, de que os cul- dão e marcado pelo tempo: um exem-
tos for mariam um caso específico. A lei plar da primeira edição, de 1891. Come-
brasileira não apenas é lacônica em re- cei a consultá-lo e percebi logo do que
lação às providências de transição, como se tratava: a compilação de textos publi-
não podia se remeter a uma legislação cados em jornais cariocas daquele ano,
geral das associações. O outro ponto diz que ocupava mais de 200 páginas e gi-
respeito às análises que se dedicaram ao rava em torno do protesto feito pelo au-
tema considerando os dois campos inte- tor depois que se deparou com um cru-
lectuais. Na França, a noção de cifixo pendurado em uma das paredes da
“laicidade” é um dos atributos centrais sala do júri popular, na capital da Repú-

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R V O

blica recém-proclamada. Avaliando que pretensão reside em revelar o que se


precisava continuar a buscar documen- pode saber sobre o centro ao nos inte-
tos tão ou mesmo mais importantes e ressar mos por suas margens. No caso
que o caso, se fosse bem analisado, to- que será aqui analisado, a idéia é exata-
maria um tempo que não dispunha na- mente mostrar como uma discussão so-
quele momento, li apenas algumas pági- bre a natureza do Estado, o lugar da reli-
nas e delas escrevi quatro ou cinco fra- gião e a definição de nação se
ses em minha tese. Mas como achava a depreendem de um episódio praticamen-
situação interessante demais, imaginei te esquecido e com o qual me deparei
um dia reencontrar aquele documento. quase por acaso.

E assim foi, quase quatro anos depois. É verdade que, além da etnografia, a
Porém, basta pensar um pouco para se noção de cultura ficou muito atrelada à
dar conta que não se trata de um reen- antropologia, e de tal modo que pode fi-
contro. Considerar o contrário equivale- car oculto que ao longo de sua história
ria a cair na mesma ar madilha que nos aquela noção sempre esteve em debate.
faz conceber como algo fixo e dado uma Assim, em vários momentos levantaram-
“cultura”. Acabo de invocar a palavra se perspectivas e procedimentos que
mágica da antropologia e, nesse caso, possibilitaram trabalhar com a noção de
não é por acaso. Pois, de fato, a análise cultura de um modo que a tornasse uma
que proponho sobre o episódio do cru- espécie de ficção séria. As culturas são
cifixo no júri pressupõe um olhar construções que existem e elas existem
etnográfico, olhar que embora não lhe enquanto construções. Imaginá-las como
seja restrito coube à antropologia culti- fixas e bem delimitadas significa, como
var e justificar. Em que consiste isso? É fica mais claro no cenário político atual,
o olhar etnográfico que permite conferir avalizar certas elaborações discursivas
relevância analítica àquilo que, segundo em detrimento de outras. O mesmo não
um outro ponto de vista, seria insignifi- se poderia dizer dos documentos em sua
cante. A antropologia se esmerou em relação com seus leitores? Nesse caso,
estudar insignificâncias para tentar de- as coisas parecem se complicar, pois,
monstrar o contrário. Elegeu, para fazer afinal, o documento “está lá”, guardado,
“o estudo do homem”, como seus obje- à disposição de muitas leituras, estas sim
tos privilegiados, povos que pareciam inevitavelmente mutantes e diversas.
estar destinados a desaparecer ou a se- Achamos então que são apenas as leitu-
rem assimilados. E quando se voltou para ras que variam, de acordo com os inte-
a sociedade na qual tinha se originado, resses e as trajetórias daqueles que pre-
tendeu a se dedicar a grupos e temas enchem esse lugar. Sugiro que devamos
considerados irrelevantes. Ao fazê-lo, sua reconhecer que também os documentos

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mudam, pois, a rigor, apenas se realizam bora permaneça apenas implícito neste
plenamente nas suas diferentes leituras. texto) abrange agora a Índia e o modo
Há um sentido bem concreto nisso, pois como lá se tratou, em meio a casos que
quando os leitores não cuidam dos do- envolvem a relação entre hindus e mu-
cumentos, eles se extraviam ou se dete- çulmanos, a pluralidade religiosa. Assim,
rioram. Mas refiro-me, essencialmente, não há nada de casual em ter resolvido
ao fato de que documentos e leitores voltar ao livro de Ferreira, tor nando-o
interferem-se mutuamente e que cada parte de meus destinos.
encontro singular revela razões que fa-
Quanto ao documento, não reúno ele-
zem parte da trajetória de ambos.
mentos suficientes para fazer sua histó-
ria. Porém, havia mais de uma razão para
Meu próprio retor no a esse documento
colocar-me no seu caminho. De fato,
que me deparei há cerca de quatro anos
creio não existirem muitos pesquisado-
atrás decorre, na verdade, de um deslo-
res interessados em discutir as relações
camento quanto às questões nas quais
entre Estado, religião e sociedade toman-
estou interessado. Quando o encontrei
do-se por base casos obscuros como
pela primeira vez, meu foco, como já
esse de Ferreira – e é, então, significati-
disse, incidia sobre o processo de
vo que não tenha jamais encontrado uma
desvinculação do Estado em relação à
citação dele em trabalhos derivados da
religião, tendo como campo comparati-
história ou das ciências sociais.4 Além
vo as situações no Brasil e na França.
disso, como veremos, Ferreira é o fun-
Atualmente, meu interesse principal re-
dador da primeira igreja protestante cri-
side em pensar modos de pluralismo
ada no Brasil, a partir de uma dissidên-
cultural levando em conta as relações
cia de um grupo missionário.
entre Estado, religião e sociedade. An-
tes de retomar o episódio do crucifixo Uma das idéias centrais da minha tese é
no século XIX, dediquei uma análise ao que os evangélicos constituem o terreno
caso do “chute na santa”, que envolveu mais interessante para problematizar
um bispo da Igreja Universal e uma ima- certas mudanças no campo religioso bra-
gem de Nossa Senhora Aparecida, em sileiro. Por fim, ao procurar reunir maio-
1995. Nos dois casos, é possível reali- res informações sobre essa igreja, encon-
zar uma discussão que leve em conta a trei a indicação de que Ferreira repre-
relação entre símbolos e nacionalidade sentaria “o primeiro caso de influência
(e, ligada a ela, a neutralidade do Esta- de idéias espíritas sobre os fiéis protes-
do em assuntos religiosos), bem como a tantes”. 5 Ora, o espiritismo e sua histó-
for ma pela qual diferentes grupos religi- ria haviam sido o tema de minha pesqui-
osos são tratados pela sociedade. Além sa de mestrado. 6 Ou seja, havia, no mí-
disso, meu campo de comparação (em- nimo, três caminhos possíveis para esse

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R V O

encontro. Fazendo parte do trajeto do seus contemporâneos.8


documento, achei que esse acaso deve- Ferreira é maranhense, nascido em
ria render novos destinos. 1837, de uma família renomada de São
Luiz. Seu tio materno, Joaquim Vieira de
D R . M IGUEL , PASTOR DA I GREJA
Silva e Souza, chegou a ser membro do
E VANGÉLICA B RASILEIRA

C
Supremo Tribunal de Justiça. Seu pai,
ontarei aqui o que sei sobre Fernando Luiz Ferreira, foi militar, car-
Miguel Vieira Ferreira. É bem reira também seguida pelo filho Miguel.
menos do que se poderia sa- Para tanto, transferiu-se para o Rio de
ber, considerando as posições que ocu- Janeiro, onde se formou na Escola Mili-
pou e as situações em que se envolveu. tar (depois transformada em Escola Poli-
Creio que os parcos elementos que con- técnica), e recebeu, em 1859, o grau de
segui reunir sirvam apenas como pistas mestre e, em 1863, o grau de doutor em
de um trabalho por fazer. De todo modo, ciências matemáticas e físicas. Permane-
não é meu objetivo, neste momento, re- ceu no Exército até 1864, quando era
alizar uma análise da biografia de segundo-tenente, exercendo funções de
Ferreira. Limito-me a discutir o episódio engenheiro e participando de missões de
em que ele foi o protagonista em 1891, demarcação territorial. Ainda em 1861,
uns quatro anos antes de morrer. Quan- publicou o Ensaio sobre a filosofia natu-
do cobriu o episódio, o jornal O País uti- ral , dedicado a assuntos que hoje atri-
lizou a expressão “O Cristo no Júri”, que buiríamos à astronomia. A partir de
Ferreira, mesmo vendo como uma pilhé- 1868, já de volta ao Maranhão, se en-
ria, transformaria no título de seu livro: volveu em atividades políticas, empresa-
“Fizeram-no por desprezo e irrisão, pen- riais e pedagógicas – fundou o jornal O
sando, assim, insultar-me e humilhar-me Liberal , expôs suas idéias em conferên-
com essa epígrafe que faz recordar que cias públicas e nas Considerações sobre
o povo, na sua completa cegueira e ig- o progresso material da província do
norância, me tem apontado com o dedo Maranhão, planejou instituições destina-
e perseguido durante anos e apedrejan- das a “educar pelo trabalho a infância
do, dia-a-dia, pelas ruas e praças desta desvalida”, colaborou com projetos na-
cidade [...], gritando: ‘Ó Cristo!... Olha o vais. Em 1870, migrou outra vez para o
Cristo!... Cristo!’”. Visando situar histo-
7
Rio, aparecendo como um dos signatári-
ricamente nosso personagem, passo en- os do Manifesto Republicano. Trabalhou
tão a apresentar para os leitores de hoje como engenheiro e criou escolas. Propa-
algumas informações sobre esse homem gou suas idéias: a libertação dos escra-
que, se estava longe de ser um anôni- vos mediante indenização a seus propri-
mo, não era – de acordo com seu bió- etários, a naturalização dos estrangeiros,
grafo – conhecido devidamente nem por a liberdade profissional.

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Miguel Vieira Ferreira passou a freqüen- também os fiéis atuais adotam para
tar a Igreja Presbiteriana do Rio de Ja- designá-lo. Creio que, por essas razões,
neiro a partir de 1873. Essa igreja fora se o chamássemos de “cristão esclareci-
instaurada por missionários vindos dos do”, ele não faria oposição.
Estados Unidos, o primeiro dos quais em
Até agora, o que se sabe acerca da Igre-
1859. Na década de 1870, quando é fre-
ja Evangélica Brasileira deriva dos co-
qüentada por Ferreira, já estava bem
mentários que lhe dedicou Émile
estabelecida. Um presbitério, reunindo
Leonard, um historiador do protestantis-
três paróquias, fora constituído, embora
mo. Baseada nesses comentários, é as-
se mantivesse o vínculo com um sínodo
sim descrita a conversão de Ferreira,
dos Estados Unidos, de onde vinha a
ocorrida no presbiterianismo:
maior parte dos recursos; pastores eram
terminado o culto do dia 5 de abril de
for mados em um seminário e as crian-
1874, o dr. Miguel permaneceu senta-
ças educadas em uma escola; iniciava-
do, por aproximadamente meia hora,
se a construção do templo em sede pró-
totalmente imóvel, de olhos fechados
pria; editavam-se folhetos e livros; e a
e, ao sair do aparente transe, anunciou
revista Imprensa Evangélica . 9 Ferreira
aceitar a Bíblia como livro inspirado e
chegou a ser presbítero nessa igreja,
querer professar a fé naquela igreja. O
antes de ter tido com ela uma relação
engenheiro já havia lido e ouvido falar
conflituosa, vindo a sofrer punições e
sobre o espiritismo e, poucos dias an-
sendo finalmente expulso da congrega-
tes da conversão relatada, havia pro-
ção. Em 1879, reunindo em tor no de si
curado o pastor a quem mostrou um
cerca de duas dezenas de pessoas origi-
caderno com rabiscos, garranchos, si-
nárias do presbiterianismo, Ferreira cria
nais e palavras ininteligíveis [atribuí-
a Igreja Evangélica Brasileira, da qual se
dos a um poder invisível e irresistível]
tor nou o único pastor, até sua morte em
mas que julgava poder interpretar
1895. Embora haja indicações de que
e l e r. 1 0
nutriu planos na vida política, seu bió-
grafo limita-se a registrar que suas últi- A razão que impulsionou a adesão de
mas décadas de vida foram dedicadas ao Ferreira à Igreja Presbiteriana, contudo,
pastorado, sem que exercesse quaisquer foi a mesma que levou à sua punição e
outras funções remuneradas. Todas as expulsão alguns anos depois, sob a acu-
vezes que se pronunciou no episódio do sação de “pregar e sustentar uma here-
crucifixo, Ferreira identificou-se como sia [...] que Deus ainda quer falar de viva
“pastor da Igreja Evangélica Brasileira”. voz aos homens”. 1 1 Este seria um dos
Mas as fotografias que o retratam nas pilares da doutrina defendida pela Igre-
publicações da igreja mostram-no com ja Evangélica Brasileira, juntamente com
os paramentos de “doutor”, título que a reabilitação dos sete sacramentos. Daí

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a caracterização que se cristalizou entre tores não são eleitos, mas “revelados”. 13
os poucos comentaristas: “[Ferreira] Todos os pastores exerceram ofícios vi-
transfor mou-se no fundador da primeira talícios, na seguinte sucessão: Miguel
experiência sincrética envolvendo o pro- Vieira Ferreira (1879-1895), Luiz Vieira
testantismo no Brasil, ao criar a Igreja Ferreira (1898-1908), Israel Ferreira
Evangélica Brasileira, que misturava prin- Vieira (1911-1959) e Antônio Prado
cípios da fé católica, protestante e espí- (1974-1999). Note-se que durante os
rita”. 12
intervalos, como o que se vive atualmen-
te, a condução da Igreja passa ao pres-
É possível que essa não seja a melhor bitério, à espera de que um novo pastor
maneira de caracterizar a Igreja Evangé- seja “revelado”.

P
lica Brasileira, ao menos na medida (fun-
damental para um antropólogo...) em que or outro lado, nenhum dos es-
nada ou pouco considera da visão do critos propagados pela Igreja ou
próprio Ferreira e de seus correligionári- seus líderes traçam qualquer
os. O problema é que eu mesmo mal conexão com o espiritismo. Não parece
consegui avançar nesse sentido. Em seu que o estilo de culto da Igreja Evangéli-
livro, Ferreira é circunspeto sobre sua ca Brasileira, pouco afeito mesmo às ex-
congregação. Por conta de meu contato pressões típicas dos pentecostais, deva
com seus atuais fiéis, reuni mais algum algo aos rituais mediúnicos, nem que o
material, ainda insuficiente para tentar transe – se é que de transe se tratou –
uma reconstituição menos que precária. produzido em Miguel Ferreira tenha vol-
Os fragmentos, no entanto, per mitem tado a se repetir. Os escritos de Ferreira
dizer algo. É verdade que se aceita os que tratam de assuntos propriamente re-
sete sacramentos e que a idéia da atua- ligiosos – há capítulos inteiros em O Cris-
lidade da revelação divina aparece como to no Júri dedicados a temas tais como
um ponto central da doutrina. Além dis- idolatria, a situação do clero católico, as
so, a posição do pastor é elevada a um festas católicas – baseiam-se fundamen-
estatuto dificilmente aceitável para os talmente na Bíblia. Neles, são constan-
princípios protestantes. Ferreira é apre- tes os ataques ao catolicismo, creditan-
sentado como um “enviado” de Cristo e do às suas influências o lamentável “es-
é significativo que um dos artigos do tado de atraso religioso e moral deste
“decálogo” estabelecido em 1926 pela Brasil”. 14 Enfim, nada muito diferente do
Igreja Evangélica Brasileira refira-se a que encontraríamos nos posicionamentos
uma proibição a que seus pastores se de outros protestantes. Mesmo criando
tor nem objeto de “idolatria”, autorizan- uma dissidência, Vieira não parece ter
do, contudo, que sejam “reverenciados”. desprezado o ethos com o qual conviveu
Na Igreja Evangélica Brasileira, os pas- no presbiterianismo, marcado por uma

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ênfase na compreensão racional da Bí- ou S. Paulo O conheceram [...]: “Eu sei

blia e um esforço de retidão e rigorismo a quem tenho crido” (2 Tim 1:12). Mas
moral. 15
Se for plausível que a insistên- só o conhecem de ouvido [...], por tra-

cia de Vieira sobre a atualidade da reve- dição falada ou escrita; outros somen-

lação tenha motivado sua expulsão, não te pela letra da Bíblia. Sabem verda-
se pode deixar de considerar outro fa- des a respeito do Senhor, mas nunca

tor, este nada doutrinário. O relativo êxi- receberam d’Ele a verdade; não têm

to da implantação da Igreja Presbiteriana em si a imagem de Deus, pois nunca o


trouxe consigo o surgimento de uma ten- viram. 18

são entre estrangeiros e nativos. 16 Na


Pouco mais de dez anos depois de ter
década de 1880, tal tensão ficou explí-
criado a Igreja Evangélica Brasileira em
cita nas iniciativas do pastor Eduardo
busca dessa visão direta de Deus, Vieira
Carlos Pereira, que pleiteava o auto-sus-
se envolveria em outra luta pela defini-
tento do clero nacional. A mesma ten-
ção de uma relação; desta vez, sob o
são geraria o cisma de 1903, data da
lamento de que a República recém-cria-
fundação da Igreja Presbiteriana Inde-
da não era suficientemente abrangente
pendente do Brasil. 17 É bem provável que
para conter os que pensavam diferente
a “brasilidade” da congregação fundada
da maioria religiosa.
por Ferreira tenha alguma dívida com
essa tensão.
O JÚRI DO C RISTO

O
Depois disso, devemos reconhecer que
crucifixo que se tor nou o pivô
nos faltam muitas coisas para chegar a
do episódio discutido em O
um quadro mais claro da relação da Igre-
Cristo no Júri ficava pendura-
ja Evangélica Brasileira com outros com-
do na sala onde ocorriam as sessões do
ponentes do campo religioso, bem como
júri popular, em um prédio na Rua do
do conjunto de fatores e motivações que
Lavradio, região central da cidade do Rio
levaram à sua criação, a partir da Igreja
de Janeiro. Lá estava e lá ficou. 19 Mas
Presbiteriana do Rio de Janeiro. É certo,
para que de lá não saísse algo teve que
contudo, que para Ferreira a nova con-
se mover. Para que ele per manecesse
gregação representou uma tentativa de
como ícone de relações ocultas entre
se estabelecer uma relação menos res-
Estado e religião algo teve de ser revela-
trita com a divindade:
do. É isso que tor na a iniciativa de
Hoje, os homens em geral e até, ou Ferreira muito interessante para os que
principalmente, os próprios que se di- se importam em discutir as interações
zem ministros do Senhor, padres ou entre religião e política. Antes de nos
pastores , conhecem (?) a nosso Senhor deter mos sobre o jogo dos argumentos
Jesus Cristo, não como os apóstolos pró e contra a retirada do crucifixo da

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R V O

sala do júri, reconstruamos rapidamen- bolo religioso. Assim, o juiz, em acordo


te a situação criada pelo protesto de com o promotor, infor mou que remete-
Ferreira. As sessões do júri eram normal- ria a petição ao ministro da Justiça. No
mente noticiadas nos jornais cariocas e dia seguinte, é expedido um aviso do
foi neles que se desenrolou a maior par- Ministério da Justiça, então interinamen-
te da polêmica. Porém, ela envolveu tam- te conduzido pelo barão de Lucena, que
bém a imprensa católica e autoridades considera descabido o requerimento de
estatais, uma vez que foi a estas, e não Ferreira. Ele, longe de se conformar, con-
apenas aos jornais, que Ferreira dirigiu tinuou a comparecer às sessões por qua-
seu protesto. O Cristo no Júri , concluí- se todos os próximos dez dias. Apresen-
do em setembro de 1891 (portanto, cin- tou outras três declarações ao juiz, in-
co meses após a ocorrência que detona sistindo no que considerava seus direi-
o episódio), procura reunir todo esse tos: a primeira, no dia 8; a segunda, no
material e nos oferece um excelente ata- dia 11; a terceira, no dia 15. Nesse perí-
lho para a consulta das diversas fontes – odo, Ferreira fez questão de responder
embora algumas delas tenham sido à chamada, mas sempre se recusando a
verificadas diretamente. O que narro a funcionar quando sorteado para partici-
seguir, por conseguinte, embora não seja par efetivamente de um julgamento. Isso
contrariado por essas outras fontes, con- ocorreu por três vezes e resultou em três
sidera a posição de Ferreira em meio ao multas para Ferreira. A última de suas
episódio. 20
declarações ao juiz solicitava que cons-
tasse dos registros do tribunal a razão
Intimado para comparecer como jurado
pela qual era indevidamente multado.
nas reuniões da quarta sessão ordinária
do júri, Ferreira lá esteve no dia 4 de Durante todo esse período, Ferreira pe-
maio de 1891. “Enquanto esperava”, re- diu a publicação de vários escritos em
lata ele, “reparei que, sobre a cabeça do jornais cariocas, incluindo suas declara-
juiz, pregado à parede dentro de um ni- ções ao juiz. Em julho, redigiu uma quei-
cho, achava-se instalado um crucifixo”. 21
xa dirigida à Corte de Apelação contra o
De imediato, Ferreira prepara uma peti- juiz e o promotor envolvidos no episó-
ção que foi lida e entregue ao juiz, dio, pedindo a punição dessas autorida-
condicionando sua presença à retirada des por falhas na suas funções de servi-
do crucifixo; diante disso, o juiz concor- dores públicos: além de se recusarem a
dou dispensar Ferreira das funções de retirar o crucifixo e aplicarem uma mul-
jurado; este, no entanto, insistiu que ta descabida, aceitaram o aviso do mi-
desejava servir e que considerava direi- nistro, rebaixando a Constituição. Ao
to seu fazê-lo em um recinto público que mesmo tempo, enviou ao Senado e à
não estivesse marcado por qualquer sím- Câmara dos Deputados uma petição que

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requisitava providências para que se sil, Cidade do Rio , Correio do Povo e Di-
tor nassem efetivas as medidas da ário de Notícias . Alguns noticiaram o pri-
Constituição na parte que separa a meiro protesto de Ferreira, no dia 4.
Igreja do Estado. No epílogo de O Cris- Depois, além de publicarem textos “a
to no Júri , Ferreira nos dá o balanço pedido” do próprio Ferreira, pronuncia-
da situação: ram-se, diretamente ou através de seus
articulistas, sobre a questão. O assunto
É admirável que, pugnando eu pelo di-
ocupou a imprensa praticamente todos
reito e pela justiça, pedindo garantias
os dias, até 20 de maio; depois disso,
para o cidadão, o cumprimento e o res-
com exceção de uma notícia sobre a
peito à Constituição, não tenha sido
queixa de Ferreira contra o juiz e o pro-
atendido desde o júri e, no júri, pelo
motor publicada por O Paiz em 22 de
juiz, depois pelo ministro e, finalmen-
julho, apenas o Correio do Povo mantém
te, que, desde o dia 13 de julho próxi-
o assunto em pauta, abrindo suas pági-
mo findo, tendo pedido providência ao
nas para os artigos do pastor. O Brasil e
tribunal superior e dado queixa contra
O Apóstolo , periódicos católicos, tam-
o juiz, até hoje, 21 de setembro, mais
bém acompanharam o episódio. Foi por
de dois meses, não houvesse tempo,
meio de uma transcrição no último de-
sequer, de copiar algumas páginas de
les, edição de 6 de janeiro de 1892, que
papel! Pedi também ao Senado e à
encontrei o parecer do promotor do Tri-
Câmara dos Deputados uma providên-
bunal Civil e Criminal. Não duvido que
cia e o pedido foi, desde o dia 27 de
uma pesquisa mais detalhada sobre os
julho, à Comissão de Legislação e Jus-
jornais e, talvez, sobre os registros dos
tiça; e lá ficou. 22

D
trabalhos do Judiciário e das casas
o acompanhamento que fiz so-
legislativas trouxesse mais alguns dados.
bre a imprensa em período
Mas a consistência com que se repete a
posterior a setembro, descobri
condenação ao protesto de Ferreira faz
apenas o parecer que um promotor do
pensar que isso pouco influenciaria as
T ribunal Civil e Criminal dispensou à
condições da análise que aqui apresen-
queixa contra seu colega, datada de 21
to. De fato, o que encontramos é um
de dezembro. Nele, nega-se a conduzir a
embate no qual convergem várias vozes
denúncia, declarando não estar o crime
e posições contra os argumentos de
devidamente caracterizado; alonga-se,
Ferreira, os quais, por sua vez, apesar
contudo, para argumentar que, mesmo
do grande volume, suscitam
sem essa falha formal, não aceitaria as
pouquíssimos aliados. Daí minha opção
razões do reclamante.
de apresentá-los em dois grandes blocos,
Vários jornais registraram o episódio: O na tentativa de entender o que susten-
Paiz , Gazeta de Notícias , Jor nal do Bra- tam e implicam esses argumentos.

pág. 28, jul/dez 2003


R V O

Iniciemos pelo começo, o requerimento de quanto ao lugar da religião em uma soci-


Ferreira do dia 4 de maio, cuja motivação edade e à sua relação com o espaço pú-
geral é “o cumprimento da lei constitucio- blico. Em um artigo publicado em O Paiz ,
nal que separou a Igreja do Estado”: no dia 8, o pastor defende a “liberdade
de consciência”, a “liberdade religiosa”
Obedecendo à sua consciência, dese-
e a “liberdade de culto”, todas garanti-
ja ele que nosso Senhor Jesus Cristo,
das pela Constituição, remetendo-as a
presente a esta sessão, seja conosco
uma separação entre o “foro íntimo” e a
e em todos nós para o restrito cumpri-
“vida social”. Cada um crê no que lhe
mento da justiça e do nosso dever co-
aprouver e, “para evitar conflitos, a lei
mum; mas, por isso mesmo, não pode,
garante os direitos e discrimina os terre-
nem deve, funcionar em ato público
nos, para que um não invada o campo
algum em que se instale um ídolo,
de outrem. Cada um tem, pois, liberda-
como acontece neste salão e tribunal.
de plena, certa ou errada, de adorar o
Respeitando as crenças de todos, não
que quiser, contanto que não prejudique
ataca ele crença alguma e nem pertur-
nem imponha à força a sua crença a ou-
ba cultos ou quebra ídolos, quaisquer
trem”. E no quê Ferreira afirma crer? Por
que sejam, onde estiverem instalados
obediência à Bíblia, de que transcreve
para adoração; mas, tendo direito a
trechos, condena o uso de “qualquer fi-
que seja respeitada a sua crença e o
gura, estátua, representando a divinda-
dever cívico de manter a integridade
de” como “idolatria”. “Entendo, portan-
da lei, requer que façais retirar o ídolo
to, que não devo exercer função pública
presente e instalado nessa sala, por-
alguma perante ídolos, que o são para
que o civil está legalmente separado
mim e para milhões de pessoas (que
do religioso. 23
podem ser juízes de fato e de direito,
Note-se que Ferreira se pronuncia aí ao
mesmo tendo crenças diversas)”. E arre-
mesmo tempo como crente e como cida-
mata: “Onde fica a minha liberdade e a
dão e que seu protesto articula argumen-
desses milhões de homens, que se quer
tos e vocabulários em que religioso e
chamar para o Brasil e que são em mui-
secular se intercalam e se sobrepõem.
to maior número do que os católicos ro-
No entanto, deixemos para adiante a
manos? Querem naturalizar à força e
problematização dessa articulação e si-
impor multas a quem exigir, em nome
gamos o próprio reclamante, quando
da lei e da sua religião, a retirada dos
acredita estar pedindo meramente o cum-
ídolos dos lugares públicos em que de-
primento de uma separação.
vam funcionar!”. 24
De fato, em muitas vezes vemos Ferreira
enunciando um discurso que remete a Em outras ocasiões, Ferreira preocupou-
uma perspectiva considerada “moderna” se em detalhar os fundamentos de sua

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reivindicação. A um artigo que procura- público e do privado. O lugar próprio das


va esclarecer a doutrina católica sobre crenças é o “foro íntimo”; sua expressão
o uso de imagens, achando-a mal com- pública não deve suprimir a liberdade
preendida pelo pastor, este respondeu: dos que dela divergem; idealmente, o
“Eu requeri o cumprimento da lei que espaço público seria uma região onde as
separa a Igreja do Estado e que, por con- diferenças não imprimem suas marcas.
seguinte, manda que não haja símbolo Procura esclarecer Ferreira: “Não peço
algum religioso em lugar em que possa que proíbam a entrada no júri de homem
tolher ou oprimir a liberdade e a consci- que traga consigo rosário, escapulário,
ência do cidadão, qualquer que seja a ou um crucifixo oculto ou descoberto;
sua crença. A paz e a harmonia fixam o com isso nada tenho. Peço a retirada do
fim da lei, garantindo a liberdade para crucifixo do tribunal, porque, ali, ele é
todos”. 25
A outro artigo que o acusava opressivo a quem não for católico roma-
de querer extirpar crenças com decretos no e acha-se ilegalmente”. 2 8 O pastor
e de recorrer à lei para escravizar as aciona o mesmo critério a propósito de
consciências, retrucou: “não se trata de um outro assunto, embora notemos que
arrancar crença alguma e, sim, de res- a fronteira entre privado e público se
peitar a todos, e deste todos faço parte desloca. Mas o que importa é exatamen-
eu, vós e eles, todos os que não são ca- te a insistência na eterna possibilidade
tólicos romanos e são a maior parte da de traçá-la. O assunto são as procissões:
humanidade”. 26
Isso não significa que
Saiam os católicos romanos em procis-
importem maiorias ou minorias nesse
são como e quando quiserem, mas
caso: “nem de leve se trata de não ‘dar
cada um seja livre de não acompanhá-
o braço a torcer’ e nem de maiorias; tra-
los, nem ajoelhar e garanta-se a todos
ta-se da verdade, da justiça, do bem pú-
o direito de poderem ser indiferentes.
blico”. 27 Como se percebe, o argumento
[...] Assim, também, o protestante [...]
pauta-se por um fundamento
tem a liberdade de levantar um púlpi-
universalista – a liberdade religiosa vale
to em qualquer praça pública para pre-
para cada um porque vale para todos –
gar a sua doutrina [...]. Quem quiser
que pressupõe que cada um possa crer
ouvir, pare e ouça. Estando aborreci-
no que quiser e por motivos totalmente
do, se retire; e, se não quiser, passe
distintos e, ao mesmo tempo, que todos
de largo. 29
sejam respeitados pela mesma razão não
importa no que creiam. Entende-se a preocupação em virtude das
procissões serem ocasiões em que se
A contrapartida desse argumento sucediam agressões verbais e físicas por
universalista é o estabelecimento de uma conta do suposto desacato à passagem
separação necessária entre as esferas do dos cortejos. Os acatólicos reclamavam

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que, por vezes, as autoridades eram co- Conservam-se ídolos nos edifícios pú-

niventes ou até participavam das agres- blicos civis onde cidadãos de todas as
sões. 30
Ferreira, além de notar isso, crenças são obrigados a funcionar;

menciona uma série de ocorrências que, obrigam-se os militares dar guarda às

a seu ver, desmentiam a separação legal igrejas romanas em suas festas, o que
entre Estado e religião: a invocação de não se faz (e nem se deveria fazer) com

Deus no texto da Constituição estadual, os cultos de outras crenças; conserva-

a realização de cerimônias religiosas com se uma legação junto ao papa, que já


a presença oficial de políticos eleitos, perdeu há muito o poder temporal;

ordens dadas aos batalhões militares manda-se pagar côngrua ao bispo da

para assistirem atos religiosos, o custeio capital federal e outros padres [...];
dos funerais de um bispo pelos cofres conserva-se um padre servindo na Casa

públicos. 31
É por aí que Ferreira, em tom de Correção estipendiado pelo gover-

de lamento, encerra seu livro e o núme- no e em outros estabelecimentos pú-


ro de fatos que encontra para sustentar blicos, onde nem de graça se permi-

seu desapontamento vale a longa trans- tem funções aos de outras crenças; [...]

crição: ministros de Estado recebem diploma-

Miguel Vieira Ferreira, pastor da Igreja Evangélica Brasileira.

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tas papais; governadores comunicam ta do mesmo motivo, ou seja, a presen-


oficialmente aos padres que se acham ça do crucifixo na sala do júri. No caso
investidos desse cargo e vêm oficial- de Thomaz Nogueira da Gama, ao que
mente à ponte das barcas receber um tudo aponta outro evangélico, o protes-
bispo e levá-lo para o palácio civil, e to foi feito por duas vezes, ainda no Im-
tudo em caráter oficial; o ministro da pério, em 1884, e já na República, em
guerra, com uma banda de música mi- outubro de 1890. Na última, o caso pa-
litar, saúda um bispo num colégio; o rece ter terminado com um despacho do
generalíssimo, em ato público, dobra- próprio juiz, indicando a impossibilida-
se humildemente a um vigário-geral de de atender a demanda de Gama. Hou-
para lhe beijar a mão [...]; manda-se, ve alguma cobertura pela imprensa, mas
dia por dia, uma guarda militar postar- com menores repercussões do que aque-
se na Igreja da Cruz dos Militares; em las geradas pelo protesto, seis meses
repartições públicas guardam-se ofici- depois, de Ferreira.
almente dias santificados pela igreja
Para fazer a discussão de como o caso
romana; etc., etc. 32
foi tratado pela imprensa e pelas autori-
Outro lamento quanto à for ma como as dades, começo por transcrever o essen-
relações entre Estado e religião estavam cial do aviso do ministro da Justiça, da-
sendo conduzidas na prática pela Repú- tado de 5 de maio. Dias depois, uma pla-
blica veio dos positivistas ligados ao ca contendo a íntegra do texto foi pre-
Apostolado. Em 1892, eles enfrentaram s e n t e a d a a o s e u a u t o r, o b a r ã o d e
dificuldades ao fazer uma homenagem Lucena, por um grupo de amigos.
póstuma a Benjamin Constant, dificulda- Divulgada por vários jornais, a decisão
des que atribuíram ao fato de o cemité- foi lida no dia 6 na sala de sessões do
rio, embora público, estar ainda sob os júri e recebida com aplausos dos presen-
auspícios de uma ir mandade católica. 33
tes – embora não haja registros de pro-
No episódio protagonizado por Ferreira, testos na ocasião em que Ferreira apre-
os mesmos positivistas lhe deram apoio, sentou seu primeiro requerimento dois
com argumentos que concordavam com dias antes. Sempre baseada nela, O Paiz
o princípio da separação: “os símbolos noticiava os esforços insistentes do pas-
religiosos, especiais a esta ou àquela tor observando estar “vencida a ques-
crença, não podem figurar nos estabele- tão”. No aviso, o ministro concedia ao
cimentos oficiais, salvo como objetos de juiz autonomia para resolver o assunto,
estudo e de observação artística nos ratificando a pertinência das multas. De
museus e bibliotecas”. 34
E, por fim, é o todo modo, para ele, não havia dificul-
próprio Ferreira que registra em seu li- dade quanto ao que pensar diante de “tão
vro o protesto de outro cidadão por con- fútil e extravagante escusa”: “cabe-me

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dizer-vos que tal requerimento não pas- afirma o Jor nal do Brasil de 8 de maio,
sa de um ato de fanática intolerância, “a um móvel, a um quadro, a qualquer
pois a presença daquela imagem, que coisa, enfim, de material que só tem o
para os católicos é divina e para os valor que lhe atribuímos”; ou, como es-
acatólicos é, pelo menos, a do fundador creve O Paiz de 6 de maio, “é como se
de uma religião, de um extraordinário [ali] não estivesse”. 37 Assim, a seguir a
filósofo, digno do respeito de todos os opinião de outra folha, o Correio do Povo
homens civilizados, não ofende as cren- de 8 de maio, “venera o crucifixo só
ças de quem quer que seja”. 35
quem o acha digno de veneração” e as
vontades de todos são respeitadas. 38

E
O texto do ministro, como se vê, consi-
ssa posição se fez acompanhar
dera que não há crença que possa ser
de outra e sem que se forjasse
ofendida com a presença do crucifixo,
qualquer contradição entre elas
pois a figura que ele representa é objeto
– podemos encontrá-las nos mesmos tex-
de devoção para os católicos e ao me-
tos. Haveria, segundo essa outra posição,
nos de respeito para os que não são. Eis
uma razão geral ou uma utilidade não
aí um ponto que encontraremos elabo-
propriamente religiosa na presença do
rado em outros pronunciamentos contrá-
crucifixo. Nesse caso, ser a sala das ses-
rios ao pedido de Ferreira e que nos ser-
sões do júri o lugar dessa presença é algo
virá de apoio para a sua apresentação. A
essencial ao argumento. Leiamos nova-
começar pelo promotor presente na ses-
mente o Jornal do Brasil , do dia 8:
são do dia 4, cujas opiniões foram
registradas por O Paiz do dia seguinte: Que mal faz aos acatólicos a imagem

“mostrou-se adepto intransigente da li- de Cristo no júri? Já desviou alguns

berdade de pensamento e de crenças, desses senhores do caminho da probi-

entendendo que, para aqueles que não dade e da justiça? Já perturbou-lhes a

as têm, não havia ofensa alguma na per- consciência, falando-lhes de perdão,

manência do crucifixo na sala do júri”. 36 ou induzindo-os a sacrificarem a lei, a

Segundo uma opinião como essa, a ima- ordem e a moral, e sentimentos de

gem não poderia ofender os não católi- misericórdia? [...] Se Cristo não pode

cos – e aqui importa não no que crêem e estar presente às sessões do júri na

sim no que deixam de crer – porque para qualidade de fundador de uma religião

eles nada representaria; ficaria reduzida que foi oficial, tem o direito de ali fi-

a um mero ador no, “como um enfeite car, ao menos como espectador e como

qualquer, como um objeto de arte”, es- símbolo da justiça que ninguém, no

pecifica o Correio do Povo do dia 6; “ele- mundo, representou melhor do que

mento decorativo”, concorda a Gazeta de ele. 39

Notícias do dia 7; “equivalerá”, como A imagem, portanto, serviria ao funcio-

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namento da Justiça. Especialmente, é pastor mude de terra, “porque aqui [...]


claro, para aqueles que nela crêem, em quase todas as casas, em muitas vi-
como concordam os pronunciamentos de trinas, e até nos armarinhos dos turcos,
vários jornais: para o réu católico, trata- encontra-se a figura que tanto o aflige”.46
se do “melhor advogado” e representa a Três dias depois, no entanto, no mesmo
“consolação extrema”; 40
para os jurados jornal, leríamos um elogio ao espírito de
católicos, emana “sentimentos de justi- tolerância presente nos costumes nacio-
ça e de bondade” e “é a suprema inspi- nais. Depois de procurar justificar por-
ração”; 41
para uns e outros, “uma alta que é de Cristo e não de outros vultos a
simbolização do dever”. 42
São argumen- imagem presente na sala do júri – é a
tos da mesma ordem – ou seja, nada única reconhecível por todos e aquela
parecidos com os de Ferreira – que mo- que serve de advertência aos juízes –,
tivam os únicos que sugerem que o cru- oferece uma razão de “ordem pública”
cifixo lá não deveria ficar: onde os jul- para lá mantê-la: não ferir “as
gamentos são freqüentemente injustos suscetibilidades de muitos, de quase to-
profana-se a imagem religiosa. 43
dos neste país cristão e católico”. 47

A transcrição a seguir, da Cidade do Rio Vejamos, por fim, como os vários argu-
do dia 6, nos apresentará ainda um ou- mentos que surgem nas páginas dos jor-
tro argumento: “O Estado não tem reli- nais se articulam na sentença do promo-
gião: mas a nação é católica, a principi- tor do Tribunal Criminal e Civil, elabora-
ar pelo presidente da República, que da em dezembro de 1891. Começando
ouve missa e comunga cercado da sua com a lembrança de que cabe ao Estado
casa militar e do seu estado-maior. Com- zelar para que cada cidadão respeite “as
preende bem o pastor evangélico que práticas e símbolos das religiões diver-
não há de o júri, que é católico, privar- sas às que professam”, o texto observa
se do hábito tradicional de ver as suas que a reivindicação do pastor poderia
sessões presididas convencionalmente servir também aos fiéis de outras religi-
pela presença, em efígie, de Cristo”. 44
ões para protestar contra o desacato aos
Na edição de O Paiz do mesmo dia, nota- seus símbolos. Assim, pondera o promo-
se também que o protesto parte de al- tor, sendo católica a religião da maioria
guém que “está divorciado da religião dos juízes, eles reclamariam a manuten-
que, pese embora a quem quiser, é a da ção de seu símbolo. Além disso, para o
maioria da sociedade brasileira”. 45
É as- réu, retirar o crucifixo seria privar-lhe “de
sociado a esse tipo de argumento que conforto à desgraça e de incentivo à
sur gem as reações mais ostensivas, esperança”. Ainda: levado ao extremo o
como aquela, publicada pelo Jornal do raciocínio de Ferreira, até nos cemitéri-
Brasil no dia 8, na qual se sugere que o os os símbolos religiosos deveriam ser

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demolidos, o que seria inexeqüível. 48 O questionar a separação; isso, no entan-


texto termina negando que a imagem do to, não significava que o espaço público
Cristo constitua coação de consciência: tivesse de ser despido de marcas religi-
“A virtude propriamente religiosa só pode osas; sendo o catolicismo a religião do-
atuar no ânimo dos crentes; para os minante, nada de estranho que fossem
quais não o fizer, ela será somente de os seus os símbolos expostos.
um salutar efeito estético”. 49

T
Retor nemos agora aos ar gumentos de
odos os argumentos apresenta- Ferreira, para ver como sua luta pela
dos – pelos jornais, articulistas separação pode ser interpretada pelo
e autoridades – convergem na fundamento que se produz a partir de
avaliação de que Ferreira pede demasia- uma certa articulação entre religião e
do. Seja porque reclama contra um ob- cidadania. Ao apresentar seu livro,
jeto que não deveria lhe atingir e que Ferreira confessa gratidão com a publi-
atingindo apenas aos demais só pode cação por “cumprir o sagrado dever reli-
constituir algo de útil. Seja porque pro- gioso e de consciência para com Deus e
cura levar um princípio aceito ao seu o meu próximo, em proveito especial de
paroxismo, deixando de considerar o fato nossa pátria comum”. 5 1 Mais adiante,
de que vive em um país cuja população, continua: “Fazendo esta publicação, te-
tempo e espaço são marcados pelo ca- nho em vista dar luz ao povo atualmente
tolicismo. Dito isso, é importante notar mergulhado em trevas muito espessas
que os periódicos católicos participam pela igreja romana e pelos maus gover-
da polêmica de maneira pouco ostensi- nos civis que, mais ou menos, têm sem-
va, uma vez que se limitam a entabular pre tolhido a liberdade de todo o gêne-
discussões propriamente religiosas (es- ro, principalmente a religiosa”. 52 A ava-
pecialmente, a validade do culto de ima- liação que faz sobre a situação social é
gens) e a congratular as autoridades e a bem negativa – “O pobre já está reduzi-
imprensa por suas respostas a Ferreira. 50
do à condição do antigo escravo” –, tan-
Posição curiosa, pois, se observar mos to quanto aquela que faz sobre a situa-
bem, autoridades e jor nalistas não esta- ção religiosa, dominada pela “ignorância
vam exatamente defendendo a necessi- e o embrutecimento”. 53 É claro que po-
dade da presença de símbolos católicos demos insistir em fazer o que o próprio
em espaços públicos. Em seus argumen- Ferreira reivindica, distinguindo os mo-
tos, havia algo de inercial: enquanto a mentos em que fala como cidadão dos
população for cristã e na medida em que momentos em que fala como fiel. No
a religião for útil à justiça, não há por- entanto, são muitas as indicações de que
que retirar o crucifixo da sala do júri. Ao o protesto mesmo por liberdade civil vin-
contrário da Igreja, ninguém pretendia cula-se a uma exigência religiosa e de

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que Ferreira, embora saiba falar como sirva”, a necessidade de “uma reforma
um secularista, tem por ideal uma socie- completa nos corações”, “que só a ver-
dade cristã. dadeira religião poderá lhes dar”.55

O Cristo no Júri está repleto de citações Na intervenção que realizou no episódio,


e argumentações bíblicas. Muitas vezes, o positivista Miguel Lemos não poupou
elas estão lá para fundamentar e situar críticas ao ministro da Justiça por ele ter
as crenças de Ferreira. Até aí, pode-se afirmado, em seu aviso, que para os ca-
dizer que o pastor se pronuncia ao modo tólicos o crucifixo era uma imagem “di-
do teólogo e é assim que eventualmente vina”. Baseando-se nas decisões
entra em combate com os autores que tridentinas, Lemos dispara: “O cidadão
fazem o mesmo do lado do catolicismo. ministro não só decide assim sobre coi-
Mas chama a atenção que Ferreira insira sas em que não é, nem pode ser autori-
o versículo de um salmo na queixa que dade, como até patenteia nem sequer
apresentou à Corte de Apelação. Pois, de conhecer a doutrina católica”.56 O que
fato, a Bíblia surge também como texto para o positivista é produto de um ex-
profético, a indicar a situação que o pas- cesso de pretensões, para o evangélico
tor vislumbra para todo um país. Veja- converte-se em algo que deriva de uma
mos uma das passagens mais eloqüen- falta de religiosidade. Vejamos: “O ex-
tes de seu livro: ministro [...], proclamando em seu aviso
a idolatria há de vir a ser abolida com- a existência de divindade nos ídolos ro-
pletamente. Os de Deus hão de manos, a de uma ‘imagem divina’ no júri,
conhecê-lo; mas esta obra será feita proferindo essa blasfêmia, tornou-se so-
pelos seus aqui na terra. [...] É preciso lidário com o erro do povo”. E ainda ou-
primeiro libertar o povo da escravidão tra vez: “Esse ministro e a imprensa pug-
do Egito e só depois será libertado da nam a favor do ídolo, vão contra o Con-
de Babilônia. Também o Brasil já liber- cílio de Trento reunido pela igreja roma-
tou os pretos, agora é preciso que se na a que pertencem, blasfemam contra
libertem os brancos; e devemos come- Deus e contra essa igreja que deviam res-
çar pela libertação da consciência e peitar [...] e, depois de tudo isso, deno-
pela pancada essencial sobre toda e minam-se cristãos!”. Em se tratando de
qualquer idolatria. 54 falta de religiosidade, cabia perguntar:
“Como podem ser juízes nesta matéria
Para Ferreira, a “idolatria” é a principal
homens que nunca leram a Bíblia?”. 57
fonte não apenas da falta de esclareci-
mento religioso, mas também das desi- Portanto, Ferreira enxergava na idolatria
gualdades sociais, já que o povo se acos- o grande problema nacional e o episó-
tumou a “adular os grandes”. Daí ser dio de que se tornou o protagonista ser-
“preciso que o povo conheça a Deus e O viria para mostrar que o povo, os juízes

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e a imprensa eram todos cúmplices no para se referir ao crucifixo: “símbolo” e


mesmo erro. Daí a for ma pela qual apre- “ídolo”. Ao operar essa sinonímia – ali-
senta sua compilação: “Peço ao Brasil ás, com predileção evidente pelo segun-
uma leitura atenciosa, despreocupada e do termo –, ele se refere não apenas à
imparcial destes escritos, pró e contra a presença de um símbolo religioso, mas
idolatria”. 58
No entanto, isso ainda seria também à relação de culto que haveria
insuficiente para descrever a posição do entre ele e os presentes no recinto. Em
pastor. O crucial está no próprio modo outras palavras, Ferreira atribui aos “idó-
como for mula o problema com que se latras” uma relação com o crucifixo que
depara. Ferreira, ao longo de seus escri- só é concebível para aquele que sabe do
tos, utiliza como sinônimos dois termos que se trata a “idolatria”. É esse jogo que

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se oculta e se revela em uma frase que mesmo objeto como simples adereço,
parece estar apenas a serviço de um ar- tornando-o indiferente. Ferreira perdeu
gumento genérico a favor da liberdade a batalha no final do século XIX, mas a
de consciência: “Funcionar diante do ído- for ma pela qual isso aconteceu torna
lo é reconhecer-lhe virtude; e isso nun- menos enigmática a expansão, inclusive
ca o farei, porque não a tem”. 59
Assim, sobre o espaço público, que a sua corren-
o mesmo espaço público que autorida- te religiosa (refiro-me aos evangélicos em
des e imprensa se recusam a esvaziar de geral) conquistaria no final do século XX.
um símbolo católico deve se tornar, no
argumento do protestante, uma paisagem
P AS SAGENS DOS SÉCULOS

N
que impossibilite a “idolatria”.
ada há de exclusivo, do pon-
Podemos resumir a controvérsia que to de vista das relações entre
acompanhamos imaginando a política e religião, nesse epi-
contraposição de dois conjuntos de apa- sódio que acompanhamos. Desde que se
rentes contradições, que, nesse caso, se procurou injetar “modernidade” nessas
alimentam mutuamente. De um lado, te- relações, pululam situações, em muitas
mos um ar gumento conjunturalmente épocas e lugares, que colocam em ques-
secularizante, que reclama uma distin- tão a presença de marcas religiosas em
ção mais clara entre o público e o re- espaços públicos. O fato de que elas
l i g i o s o . De outro, um argumento freqüentemente envolvam o embate de
conjunturalmente anti-secularizante, diferentes confissões e perspectivas re-
uma vez que per mite a permanência de ligiosas não parece ser casual. Sabe-se
um símbolo religioso em uma repartição que é com a aparição em cena de novos
pública. Ocorre que o primeiro argumen- grupos étnicos ou religiosos que o cam-
to é sustentado por um pastor que ima- po social é remexido, levando à
gina um futuro cristão para o país, en- explicitação de configurações que, exa-
quanto que o segundo é articulado pela tamente por estarem bem estabelecidas,
imprensa não religiosa e pelas autorida- pareciam “adequadas” e “justas”. Um dos
des do Estado laico, com o apoio de jor- grandes desafios de nosso tempo é con-
nais católicos, em consideração ao pas- seguir pensar a política considerando,
sado também cristão da nação. Ocorre, com todos os riscos que isso implica, as
ainda, que o argumento do pastor, mes- diferenças – tarefa na qual antropologia
mo sendo secularizante, leva a sério o e história estarão inexoravelmente envol-
objeto que vê como um “ídolo”, ao pas- vidas. A religião oferece um manancial
so que o argumento de jor nalistas e au- inesgotável de situações para efetivar
toridades, mesmo sendo anti- essa reflexão; e, no seu caso ao menos,
secularizante, é capaz de conceber o adotar a modernidade como quadro de

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referência se mostra ainda produtivo, es- pública assumiram uma posição que re-
pecialmente quando se concorda em afirmava o princípio da separação. 60
entendê-la como algo plural e em cons-
Já o episódio do crucifixo no júri, como
trução.
vimos, mostra uma oposição maciça e
Partindo dessa perspectiva e aproveitan- praticamente consensual ao ímpeto
do a análise do episódio do crucifixo no secularizante do pastor Ferreira. Os ar-
júri, proponho que se considere a confi- gumentos vitoriosos naquele caso pode-
guração gerada no Brasil a propósito da riam servir como precedentes valiosos
relação entre religião e espaço público para a permanência e a instalação de
como uma “laicidade de presença”. símbolos religiosos em lugares públicos.
“Laicidade” porque a República represen- Pensemos nos cruzeiros e cristos espa-
ta a adoção aberta do regime da separa- lhados pelo território nacional, uns em
ção – regime, lembremos, associado à espaços abertos, outros em recintos fe-
moder nidade –, cujos princípios valem chados, todos igualmente públicos. No
para estruturar a relação entre religião e Rio de Janeiro, antiga capital nacional,
espaço público. “De presença” porque ao o Cristo pode ser visto quase de qual-
mesmo tempo esse regime não conta quer ponto da cidade no Corcovado e ser
para seu funcionamento, do ponto de encontrado em um crucifixo que compõe
vista do Estado, com a supressão da pre- a arquitetura do plenário da Assembléia
sença da religião no espaço público e Legislativa. No entanto, como essa pre-
comporta posições que, na sociedade sença da religião no espaço público não
civil, lutam pela atuação pública da reli- deixou de conviver com os princípios da
gião. O contraste pode ser feito com a laicidade, o que se produziu foi uma con-
situação na França, cujo Estado e socie- figuração apenas sustentável na medida
dade inclinam-se na direção de uma em que não se definia com precisão o
“laicidade de ausência”. Não que o Esta- lugar e os limites de expressão do “reli-
do francês, mesmo depois da separação gioso”. O que assistimos, portanto, é
operada com a lei de 1905, não mante- uma sucessão de conjunturas marcadas
nha certos vínculos com referências re- por distintas “manchas” de presença do
ligiosas. Lembremos das cerimônias que religioso no espaço público. O interes-
fizeram parte dos funerais do presiden- sante é que a conjuntura mais recente
te F. Mittérand em Notre Dame. Mas quan- tem como marca principal a investida dos
do, à mesma época, na passagem da evangélicos em esferas tais como a polí-
década de 80 para a de 90, começaram tica partidária, a mídia de massa e a as-
a ocorrer diversos casos por conta do uso sistência social. Certamente algo inusi-
de véus por estudantes muçulmanas em tado se olharmos para cem anos atrás,
escolas públicas, o Estado e a opinião mas, de certo modo, possibilitado pela

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configuração então estabelecida. as. Mas não parece inoportuno e despro-


positado fazer ressurgir esse caso do fim
Cem anos, de todos os modos, impõem
do século XIX, protagonizado por
sempre alguma diferença. Talvez a prin-
Ferreira e registrado em seu livro. Seus
cipal delas seja uma mudança de hori-
paradoxos, longe de terem se tornado
zontes. Se o final do século XIX desen-
extemporâneos, mostram que o espaço
rola-se sob a perspectiva do desapareci-
público sofre de horror ao vácuo. Agra-
mento da religião, o século XX termina
da-nos, compreensivelmente, pensar que
sob o signo do “retorno do religioso”.
ele possa ser o lugar onde se forja o con-
Mesmo que concordássemos, com mui-
senso entre interlocutores que aprendem
tas razões, em considerar ambos os ho-
a deixar em um canto qualquer aquilo
rizontes ilusórios, não poderíamos dei-
que constitui suas especificidades. Mas
xar de notar que os Estados e socieda-
quando olhamos para o que efetivamen-
des contemporâneos lidam com o futuro
te o engendra, encontraremos sempre a
dessas ilusões. A França se debate com
disputa de perspectivas que representam
os desafios colocados pelo islamismo e
distintas possibilidades de articular o
pelas chamadas “seitas”; no Brasil, são
público e o privado – no caso analisado,
especialmente os evangélicos que mobi-
o secular e o religioso. Nesse, como em
lizam preocupações, tal como demons-
todos os casos, a “ausência de sinal já é
traram as controvérsias em torno da Igre-
sinal”.
ja Universal do Reino de Deus na última
d é c a d a . 6 1 Enfim, as situações atuais Artigo recebido para publicação em se-
apresentam feições e resultantes própri- tembro de 2003.

N O T A S
1. Miguel Vieira Ferreira, Liberdade de consciência : o Cristo no Júri, Rio de Janeiro, Igreja
Evangélica Brasileira, 2001, p. 155.
2. Para detalhes sobre os argumentos, ver minha tese, transformada em livro, Emerson Giumbelli,
O fim da religião : dilemas da liberdade religiosa no Brasil e na França, São Paulo, Attar,
2002.
3. Decreto n. 119A, de 7.1.1890, apud José Scampini, A liberdade religiosa nas constituições
brasileiras: estudo filosófico-jurídico comparado, Petrópolis, Vozes, 1978, p. 84.
4. Refiro-me à bibliografia geral sobre religião e Estado no Brasil e não especificamente à
historiografia do protestantismo, com a qual tive contato após me defrontar com o livro de
Ferreira.
5. Leila Duarte, Em busca de identidade social: a saga dos primeiros protestantes no Rio de
Janeiro (1859-1917), dissertação de mestrado em história, Rio de Janeiro, IFCS/UFRJ, 1996,
p. 168.

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R V O

6. Emerson Giumbelli, O cuidado dos mortos : uma história da condenação e legitimação do


espiritismo, Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 1997.
7. Miguel Vieira Ferreira, op. cit., p. 46.
8. Biografia do doutor Miguel Vieira Ferreira [...] editada em Lisboa, respectivamente nos anos
de 1891 e 1892, pela Empresa do Álbum de Portugueses e Brasileiros Eminentes, em seus
fascículos XVII e XVIII, impressos na Tipografia Portuense. A edição que consultei é uma
espécie de separata impressa pela Igreja Evangélica Brasileira em 1994. Aproveito para agra-
decer o cordial atendimento que me deu o sr. Paulo Novo, presbítero da Igreja, que me
agraciou com três publicações.
9. Sobre a Igreja Presbiteriana, ver Leila Duarte, op. cit.
10. ibidem, p. 168-169.
11. Cf. Livro de atas da Igreja Presbiteriana do Rio de Janeiro, apud ibidem, p. 74.
12. ibidem, p. 74-75. Ver também Clara Mafra, Os evangélicos , Rio de Janeiro, Jorge Zahar,
2001, p. 21; e H. B. Cavalcanti, O projeto missionário protestante no Brasil do século 19:
comparando a experiência presbiteriana e batista, Rever , n. 4, 2001 (www.pucsp.br/rever/
rv4_2001, acessado em 7.8.2003).
13. Cf. Igreja Evangélica Brasileira, fascículo I, 7. ed., Rio de Janeiro, 1987.
14. Miguel Vieira Ferreira, op. cit., p. 177.
15. Ferreira em um de seus artigos definiu-se como “extremamente tolerante com os outros,
embora austero comigo” (ibidem, p. 82). Registre-se ainda que o reverendo Simonton, o
missionário que criou a Igreja Presbiteriana do Rio Janeiro, chegou a publicar um pequeno
tratado sobre a idolatria, em 1869.
16. Segundo Leila Duarte, op. cit., os primeiros missionários estavam fortemente imbuídos de
valores da cultura americana, inclusive aqueles que creditavam aos Estados Unidos um pa-
pel decisivo na condução dos destinos mundiais. Havia ainda a dependência financeira por
parte das igrejas brasileiras.
17. Cf. Leila Duarte, op. cit.; e H. B. Cavalcanti, op. cit.
18. Miguel Vieira Ferreira, op. cit., p. 166.
19. Na verdade, com relação ao destino do crucifixo, há informações desencontradas. Ferreira
afir ma que o crucifixo chegou a ser retirado, baseando-se em notícia do jornal católico O
Apóstolo, datada de 10.5.1891 (ibidem, p. 23). Tarsier ( História das perseguições religiosas
no Brasil , São Paulo, Cultura Moderna, 1936), remetendo apenas a Ferreira, também menci-
ona que o crucifixo foi retirado. É, aliás, nesse livro apologético, destinado a divulgar os
constrangimentos que pesavam sobre a vida dos protestantes no Brasil, que encontrei a
única referência a Ferreira. No entanto, nenhuma outra fonte jornalística confir ma essa in-
formação. Além disso, o próprio Ferreira, em uma queixa datada de 13.7.1891, afir ma que o
crucifixo “continua a estar” na sala (Miguel Vieira Ferreira, op. cit., p. 244).
20. O livro de Ferreira, publicado originalmente em 1891 (Rio de Janeiro, Imp. Montenegro),
ganhou mais três edições, em 1957, em 1991 e em 2001. As referências neste texto
correspondem à mais recente dessas edições.
21. Miguel Vieira Ferreira, op. cit., p. 238.
22. ibidem, p. 277.
23. ibidem, p. 51.
24. ibidem, p. 84-86. A definição de “ídolo” como “figura, estátua, representando a divindade e
exposta a culto ou adoração” é de outro escrito de Ferreira, publicado no Jor nal do Comér-
cio , em 20.5.1891 (ibidem, p.148). Por diversas vezes Ferreira menciona a questão da imi-
gração, um argumento decisivo, desde o Império, para a criação dos registros civis.
25. ibidem, p. 146. Originalmente, Jor nal do Comércio , de 20.5.1891.
26. ibidem, p. 83. Originalmente, Cidade do Rio , de 8.5.1891.
27. ibidem, p. 156. Originalmente, Correio do Povo, de 7.6.1891. Na mesma lógica, Ferreira não
via razão para que um católico não assumisse seu argumento; deveria ele concordar que se
retirasse o crucifixo da repartição pública, dizendo: “[...] ‘O meu espírito de justiça e obedi-
ência à lei leva-me a respeitar a crença de todos, porque isso não desprestigia, antes, pelo

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A C E

contrário, fortalece e garante a minha’” (ibidem, p. 91).


28. ibidem, p. 94. Originalmente, Correio do Povo , de 9.5.1891. Ver também p. 90.
29. ibidem, p. 262.
30. Ver Tarsier, op. cit.
31. Cf. Miguel Vieira Ferreira, op. cit., p. 254, 255, 257, 258, 261, 271-273.
32. ibidem, p. 278.
33. Ver, para o caso, Emerson Giumbelli, O fim da religião , op. cit., p. 245.
34. Trata-se de um pronunciamento de Miguel Lemos em nome do Apostolado Positivista do
Brasil, datado de 6.5.1891, transcrito em Miguel Vieira Ferreira, op. cit., p. 68-71.
35. Aviso do ministro da Justiça, de 5.5.1891, apud ibidem, p. 56.
36. ibidem, p. 55.
37. ibidem, p. 61, 64, 77 e 57.
38. ibidem, p. 81.
39. ibidem, p. 76.
40. O Paiz, respectivamente 6 de maio e 4 de maio de 1891, apud ibidem, p. 58 e 54.
41. Respectivamente, Gazeta de Notícias , de 7.5.1891, e Jornal do Brasil , de 8.5.1891, apud
ibidem, p. 64 e 77.
42. Correio do Povo , de 8.5.1891, apud ibidem, p. 80.
43. O Paiz, de 9.5.1891, e Correio do Povo , de 10.5.1891, apud ibidem, p. 96 e 98.
44. ibidem, p. 60-61. Ver também artigo de Caliban, em Correio do Povo, de 7.5.1891, apud
ibidem, p. 67.
45. ibidem, p. 58.
46. ibidem, p. 78.
47. ibidem, p. 106.
48. Esse argumento é encontrado também em Correio do Povo , de 8.5.1891, que se refere às
cruzes nas torres das igrejas (apud ibidem, p. 80).
49. Parecer de Antonio Pitinga, de 21.12.1891, apud O Apóstolo , op. cit., de 6.1.1892.
50. O Apóstolo (10.5; 13.5; 15.5; 17.5; 20.5.1891 e 6.1.1892) contenta-se, sempre demons-
trando regozijo, em transcrever pronunciamentos de autoridades e de jornais. O Brasil , mais
virulento, preferiu a discussão apologética (apud Miguel Vieira Ferreira, op. cit., p. 125ss.).
51. Miguel Vieira Ferreira, op. cit., p. 23.
52. ibidem, p. 24.
53. ibidem, respectivamente p. 198 e 25.
54. ibidem, p. 40.
55. ibidem, p. 83 e 198.
56. apud ibidem, p. 70.
57. ibidem, p. 178 e 26.
58. ibidem, p. 24.
59. ibidem, p. 91. Originalmente Jornal do Comércio , de 9.5.1891.
60. Sobre as providências oficiais nos casos do véu muçulmano, ver Koubi, Circulaires
administratives entre incertitudes socio-politiques et indécisions juridiques, Revue de la
Recherche Juridique , n. 3, 1996, p. 785-794; sobre religião, Estado e sociedade na França,
ver Hervieu-Léger, Le pèlerin et le converti : la religion en mouvement, Paris, Flammarion,
1999; e Guy Bedouelle e Jean-Paul Costa, Les laïcités à la française , Paris, PUF, 1998.
61. Ver Emerson Giumbelli, O fim da religião , op. cit.

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Marcelo Gruman
Doutorando em Antropologia Social pelo PPGAS/Museu Nacional/UFRJ.

A Sinagoga Ortodoxa
Novo espaço de sociabilidade
para jovens judeus não-religiosos

Este artigo trata da construção da identidade The article deals with the construction of
judaica por parte de um grupo de jovens jewish identity by a group of young middle-
judeus cariocas de classe média. A partir da class carioca jews. The lack of non-religious
entrada na faculdade, a falta de opções não- alter natives for expressing their ‘jewishness’
religiosas para o exercício da ‘judeidade’ leva in the university milieu induces many of them to
muitos deles a freqüentarem uma sinagoga frequent an orthodox synagogue. The article
ortodoxa, apesar de não serem religiosos. Tenta- analyzes the reasons for this apparently
se analisar o porquê deste fenômeno se, paradoxical phenomenon since, at first sight,
aparentemente, a ortodoxia desafia seu estilo de religious orthodoxy might be seen to challenge
vida moderno. their otherwise moder n life style.
Palavras-chave: identidade judaica, religião, Keywords: jewish identity, religion, modernity,
moder nidade, tradição. tradition.

O
que leva jovens não-religiosos dade brasileira e sem a sombra do anti-
a freqüentar uma sinagoga que semitismo, ao menos na forma
simboliza o que há de mais tra- institucionalizada que caracterizou uma
dicional na religião judaica? Essa pergun- parte da história européia e brasileira
ta surgiu durante meu trabalho de cam- anterior, pretendia revelar o significado
po para o mestrado, quando me interes- que esses jovens davam à sua judeidade
sava analisar os processos utilizados por – o porquê da importância de se afirma-
um grupo de jovens judeus cariocas na rem enquanto parte de uma minoria num
elaboração de sua identidade judaica. Le- país que tem na ideologia
vando em conta sua inserção na socie- assimilacionista a base de suas relações

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sociais – e o valor dado à endogamia, Sua vida social tem início numa das es-
historicamente um importante colas judaicas da cidade do Rio de Ja-
deter minante na definição de quem é e neiro. Desde o mater nal até o terceiro
quem não é judeu. ano do ensino médio ou, ao menos, o
oitavo ano do ensino fundamental, estes
Os jovens entrevistados são parte das
jovens criam os primeiros vínculos de
chamadas camadas médias urbanas, cuja
amizade com os colegas de tur ma. Brin-
idade varia entre vinte e trinta anos;
cam na hora do recreio e estendem a
moradores da zona sul da cidade do Rio
diversão para além do horário escolar.
de Janeiro; estudaram em escolas judai-
Nos sábados à tarde freqüentam um dos
cas até a faculdade ou pelo menos até a
movimentos juvenis existentes, sionistas
8 a série do ensino fundamental; sociali-
ou não, em que, além das atividades
zaram-se em movimentos juvenis sionis-
voltadas para a conscientização política,
tas ou não e quase todos já viajaram a
passa-se o tempo jogando bola e pintan-
Israel num dos programas financiados
do as paredes da casa ou apenas baten-
por instituições judaicas ou com famili-
do papo com os amigos. No movimento
ares; realizaram os rituais de passagem
juvenil, além dos colegas da escola que
da religião judaica: o brit-milá (circunci-
eventualmente se encontram, brinca-se
são), o bar-mitzvá (maioridade religiosa
e diverte-se com aqueles que lá foram
aos 13 anos) para os rapazes e, muito
apresentados e que não estudam juntos.
mais raramente, o bat-mitzvá (maiorida-
Já na fase adolescente estes jovens,
de religiosa aos 12 anos) para as moças.
cujas amizades ultrapassam o espaço da
Não se consideram religiosos, ao contrá-
sala de aula, encontram no cinema, no
rio, não seguem os preceitos religiosos
teatro e nos piqueniques nos parques da
da alimentação (chamada kashrut) e das
cidade outras formas de entretenimen-
rezas diárias, nem fazem
to. A socialização se restringe, na gran-
o descanso
de maioria dos casos, à comunidade ju-
semanal (cha-
daica. Também durante a fase adolescen-
mado “guar-
te, e até a entrada na faculdade, viagens
dar o shabat ”),
a Israel, programadas por instituições
considerado
judaicas ou pelas próprias famílias, são
um dos principais man-
outra maneira de criar vínculos com o
damentos de Deus. Todos
judaísmo e expandir o círculo de amigos.
trabalham ou fazem al-
gum tipo de estágio na A entrada na faculdade marca o início
área em que pretendem de um novo momento nas relações soci-
seguir profissional- ais destes jovens. Agora, são partes de
mente. um universo completamente distinto da-

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quele existente na escola judaica. Em vez para que se desenvolva a sociabilidade


do contato mediado pelo sobrenome “tí- juvenil: a falta de opções. A reclamação
pico”, o que impera é a relação impes- mais comum relaciona-se à falta de es-
soal do número de inscrição. É na facul- paços que possam reunir a juventude
dade, também, que a maioria deles toma judaica carioca no intuito de fortalecer
consciência de sua condição judaica, laços de amizade e per mitir que moças
surgindo aquilo que Cardoso de Olivei- e rapazes se conheçam para o início de
ra 1
chamou de “identidade contrastiva”, um relacionamento estável, namoro e,
quando a separação entre o “nós” e o quem sabe, casamento. O Clube da Bar-
“eles” tor na-se evidente. Creio que a ra, por exemplo, é considerado muito
entrada na faculdade deve ser lida como afastado (no final da Barra da Tijuca) e o
o primeiro desafio à manutenção das Hebraica (em Laranjeiras) é classificado
fronteiras étnicas; é o momento de deci- como “decadente” e “feio”. É nesse con-
dir quem vai ser amigo e quem vai ser texto que entendemos o surgimento da
apenas colega de tur ma, cujo contato sinagoga Beit Lubavitch como espaço de
maior se dá na época de provas e traba- convivência social para a maioria dos
lhos pela troca de infor mações, ajuda entrevistados.
nas matérias em que se é deficiente, tra-
A sinagoga passou a ser um ponto de en-
balhos em grupos etc. Aqui, o jovem ju-
contro de amigos. Além disso, jantares
deu depara-se com questões do tipo
japoneses, na moda entre essa parcela
“continuo sendo judeu se tenho amigos
das camadas médias, preparados segun-
não-judeus?”, “devo afirmar minha iden-
do os preceitos religiosos da religião ju-
tidade judaica para meus amigos não-
daica (a chamada kashrut ), servidos ex-
judeus?”, ou ainda “quem são meus ami-
clusivamente para o público juvenil após
gos verdadeiros?”. Fora isso, há a possi-
a cerimônia do shabat , o início do des-
bilidade de se sentir atraído por um (a)
canso semanal na sexta-feira à noite,
colega não-judeu, criando um conflito de
servem como chamariz, tendo como ob-
valores relativos à endogamia, princípio
jetivo principal a oportunidade de colo-
considerado muito importante para a
car em contato judeus e judias com vis-
manutenção da identidade judaica nas
tas ao casamento endogâmico.
futuras gerações.
A pergunta a ser feita é por que exata-
Contudo, tanto para os jovens que cons- mente a sinagoga Beit Lubavitch, que
truíram bases sólidas de amizade no pe- segue a ortodoxia, se estes jovens não
ríodo escolar e nos movimentos juvenis, são religiosos? Alguns pontos devem ser
quanto para aqueles que se afastaram do levados em consideração. No que diz
convívio comunitário e que desejam respeito à “demanda”, aos jovens, a pri-
manter vínculos, sur ge um problema meira observação refere-se à falta de al-

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ternativas do mundo não-religioso na afir- jovens judeus e cariocas. O sushi , o top


mação desta identidade, incapaz de de- (peça de roupa sensual, usada pelas mo-
senvolver atividades no sentido de esta- ças) e a informalidade do serviço religi-
belecer laços de solidariedade inter na, oso são uma adaptação da tradição reli-
sobretudo a partir da entrada na facul- giosa aos tempos modernos.
dade; a segunda é que a identidade ju-
Meu objetivo aqui é analisar este aparen-
daica destes jovens está baseada mais
te paradoxo, a freqüência de jovens não-
na subjetividade, no “sentir-se judeu”, do
religiosos a uma sinagoga que segue uma
que na obediência a um código religioso
linha ortodoxa e que, ao menos na teo-
de conduta; o terceiro ponto é a prepon-
ria, desafiaria o estilo de vida moderno
derância da religião na definição de
característico dessa parcela da juventu-
quem é judeu, o que nos ajuda a enten-
de carioca, cuja valorização da liberda-
der a proximidade deles com a institui-
de opõe-se às regras de conduta estrita-
ção religiosa. Em relação à “oferta”, à
mente determinadas para homens e mu-
sinagoga, observa-se que a ortodoxia
lheres seguidores da teologia dessa cor-
parece conferir maior autenticidade ao
rente da ortodoxia. Talvez fosse produti-
judaísmo. Nela, os jovens podem sentir-
vo estabelecer um diálogo entre duas
se judeus sem ter que elaborar uma
concepções de mundo distintas, como
transfor mação do judaísmo à luz de seu
coloca Dumont, 2 uma individualista, em
estilo de vida moderno. É, como dito por
que é dado ao “indivíduo” o direito de
um de seus rabinos, o judaísmo que exis-
expressar a cada situação uma identida-
te “há três mil anos”. Um segundo ponto
de social, e outra hierárquica, em que
diz respeito ao caráter missionário da
sua existência só é possível enquanto
seita Habad, da qual a sinagoga Beit
membro do grupo. A ida à sinagoga or-
Lubavitch faz parte, tendo, por isso, de
todoxa, como veremos, é uma nova for-
se adaptar às aspirações de seu público
ma de expressar sua identidade judaica
alvo, sua “clientela”.
sem abdicar, contudo, da liberdade de
se movimentar pelos diversos domínios
A religião passa a ser um dos poucos
da vida social.
caminhos legítimos no alcance deste sen-
timento de pertencer ao grupo. A Beit
A SINAGOGA

A
Lubavitch, especificamente, parece ex-
pressar, para muitos dos jovens, aquilo sinagoga é uma das institui-
que se chama de “judaísmo verdadeiro”, ções mais importantes da vida
sendo o rabino de chapéu negro e barba comunitária judaica, e sempre
seu maior símbolo. Alia-se a esse poder foi um espaço de convivência. Lá, ami-
simbólico o fato de a congregação acei- gos se encontravam (e se encontram)
tar estes jovens como eles são, ou seja, para bater papo e fechar negócios no

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R V O

comércio, discutir o casamento dos fi- Hagadá, um relato da jor nada empreen-
lhos e apresentar problemas pessoais dida pelos antepassados.
para os rabinos. O surgimento da sina-
Quando, finalmente, o povo entrou na
goga confunde-se com a história do povo
Terra Prometida e expulsou os “intrusos”,
judeu e suas tragédias.
instituiu-se a monarquia como forma de
gover no. O primeiro rei foi Saul, sucedi-
Conta a tradição religiosa que Moisés, um
do por David, a quem se deve a consoli-
homem abençoado por Deus, liderou o
dação das fronteiras do reino e o esta-
povo judeu na fuga da escravidão do
belecimento de Jerusalém como a sua
Egito. Num certo momento da caminha-
capital. Após o reinado de David,
da pelo deserto, Ele entregou as Tábuas
Salomão assume o trono e constrói o
da Lei juntamente com uma série de de-
Templo de Jerusalém, importando cedro
terminações de caráter moral que, jun-
do Líbano e marfim da África.3 Diz-se que
tas, ficaram conhecidas como Fé
durante seu governo o reino de Israel
Mosaica. A caminhada pelo deserto de-
viveu grande prosperidade econômica, e
morou cerca de quarenta anos, “culpa”
que ele era um homem muito inteligente
dos próprios judeus, que se recusaram
e justo.
a lutar contra as outras tribos que, na
época, habitavam o que hoje é Israel. O Templo antecedeu a sinagoga. Era o
Uma outra versão conta que a mentali- edifício central para o culto divino em
dade escrava ainda prevalecia entre os Israel até o ano 70 d.C., situado no mon-
Filhos de Israel, e a jor nada até a Terra te Moriah, em Jerusalém, e consistia de
de Israel foi cheia de reclamações e des- um altar para a Arca Sagrada (dentro da
confiança por parte do povo, que algu- qual se colocam as escrituras sagradas),
mas vezes quis retor nar ao Egito e até os vasos sagrados e as oferendas, além
mesmo chegou a construir um bezerro de um pátio para os fiéis. 4 Os sacerdo-
de ouro para adorar. Ainda assim, o Povo tes eram os responsáveis pelos sacrifíci-
de Israel recebeu e aceitou a Torá no os, pela supervisão da “pureza higiêni-
Monte Sinai, com fidelidade e lealdade. ca” e pela passagem da Fé Mosaica ao
A caminhada levou cerca de quarenta povo judeu. A hierarquia colocava o
anos, até que toda a geração que havia sumo sacerdote no topo, auxiliado por
passado pelo Egito fosse substituída por outros considerados sábios e mesmo
uma geração mais preparada para viver profetas. Devido a conflitos internos, o
em liberdade, em sua própria terra. To- reino foi dividido em dois, o de Judá, ao
dos os anos a saída do Egito é comemo- sul, e o de Israel, ao norte, e, cercados
rada com uma festa, Pessach, a Festa da pelas grandes potências da época, logo
Libertação, a Páscoa judaica, quando os sucumbiram ao seu poderio econômico-
judeus comem o pão ázimo e lêem a militar. Foi no domínio babilônio, inicia-

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do no ano 597 a.C, marcado pelo exílio mestre”. O rabino era um erudito da lei,
do povo judeu, que aconteceu a destrui- uma espécie de professor autorizado
ção do Templo erigido nos tempos de pelo Sinédrio, o conselho de 71 erudi-
Salomão. No ano de 536 a.C, Ciro, rei tos que funcionava como supremo tribu-
da Pérsia, que sucedeu os babilônios, nal e desaparecido por volta do século
per mitiu que o Templo fosse novamente IV d.C. Ao longo da história judaica, ho-
construído e consagrado, mas tempos mens de grande sabedoria e líderes es-
depois, quando os romanos conquista- pirituais foram chamados de rabinos. Nos
ram o território, encabeçados por tempos modernos, ele serve à congrega-
Antíoco, o Segundo Templo foi ção da qual faz parte, realizando os ser-
semidestruído sobrando apenas um muro mões e discursos nas cerimônias, como
que circundava o edifício (o Muro das veremos adiante.
Lamentações). Apesar de alguns grupos
A maior ou menor notoriedade e legiti-
de guerrilhas judaicos, cujo mais conhe-
midade de cada rabino depende do po-
cido foi o dos macabeus, tentarem im-
der simbólico exercido pela corrente da
pedir a helenização forçada do povo,
qual participa. Quanto mais influente ela
pouco depois todas as rebeliões foram
é na determinação do que é a religião
sufocadas. Jerusalém foi destruída e a
judaica e, mais ainda, do que é a identi-
fase diaspórica teve início por volta do
dade judaica, na medida em que, para
século I a.C. Também nessa época, a si-
os religiosos e mesmo para muitos des-
nagoga ganha grande importância para
tes jovens, o judaísmo está bem próxi-
a vida religiosa e espiritual dos judeus.
mo de uma definição religiosa, maiores
as chances de a sua sinagoga receber
A sinagoga pode ser definida como o
grande quantidade de fiéis nas cerimô-
espaço para orações públicas dos ju-
nias mais cotidianas, como o shabat . A
deus, onde se reza, estuda e participa-
freqüência da maioria dos entrevistados
se de reuniões sociais. Há indícios de que
a uma sinagoga cuja corrente é ortodo-
ela existe desde o exílio da Babilônia,
xa, apesar de não-religiosos, revela um
quando o Templo deixou de ser o local
dos paradoxos da constituição desta
para o culto a Deus. Nela, no entanto,
judeidade juvenil.
não se realizam sacrifícios animais, ape-
nas “espirituais”, por meio da elevação Diferentemente do que coloca Lewin, 5 a
das almas nas orações. Em cada uma sinagoga passa a ser um novo espaço de
delas, há um Ar mário Sagrado onde es- sociabilidade judaica, atraindo, não ape-
tão guardados alguns rolos da Torá, o nas nas festividades mais tradicionais,
Pentateuco. A autoridade religiosa res- tanto jovens religiosos quanto não-reli-
ponsável pelo serviço religioso é o rabi- giosos. A análise da preferência desta ou
no que, em hebraico, significa “meu daquela sinagoga está diretamente rela-

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R V O

cionada ao modo como encaram seu meados do século XVIII, o reformismo


pertencimento à etnia judaica, o que es- declinou. O declínio se deveu sobretudo
peram de cada uma das correntes religi- à não-adaptação dos imigrantes da Eu-
osas para o preenchimento do “sentir-se ropa Oriental, escorados pela tradição
judeu”. rabínica, aos ideais iluministas trazidos
pelos judeus alemães. Foi esse vácuo
AS CORRENTES RELIGIOSAS

E
que criou as condições necessárias para
mbora correndo o risco de em- o surgimento de um judaísmo tipicamen-
pobrecer a riqueza das idéias e te norte-americano, o judaísmo conser-
valores, é possível dividir a re- vador, que depois se espalhou por ou-
ligião judaica em três grandes correntes tros cantos do mundo. O
de pensamento. conservadorismo faz a ligação entre uma
base social de imigrantes que vêm com
A primeira é a refor mista. O judaísmo
uma formação religiosa e a sociedade
refor mista, surgido na Alemanha, como
norte-americana liberal e moderna. Essa
conseqüência das modificações ocorri-
corrente acreditava que era preciso ali-
das no modo de conceber a religião ju-
ar a razão, base do reformismo, e a tra-
daica, está diretamente relacionado com
dição, escorada pelo ritual. Ela fortale-
o desenvolvimento da racionalidade e da
cia a religião utilizando argumentos mo-
secularização da sociedade, ou seja, o
dernos, históricos. Enquanto o reformis-
Iluminismo. A Alemanha foi o berço da
ta queria se incorporar à modernidade,
Haskalá , o Iluminismo judaico, e a reli-
o conservador queria incorporar a
gião vislumbrada pelos judeus alemães
modernidade ao judaísmo, o primeiro
era parte constituinte do processo de
enfatizando o caráter moderno do juda-
moder nização da sociedade. Seu objeti-
ísmo e o segundo o caráter judaico da
vo era adequar o discurso religioso aos
moder nidade. A ética, por exemplo, en-
valores universalistas que passaram a
quanto uma série de valores universais,
vigorar na Europa Ocidental. A tradição
chega, para o conservador, através da
foi englobada pela modernidade. O im-
religião judaica.
pacto da cultura ocidental sobre o servi-
ço religioso se expressa, por exemplo,
No extremo oposto dessas duas corren-
pelo fim de certos “orientalismos”, como
tes que dialogavam com a modernidade
o canto nasalado e a falta de decoro,
surgiu, em meados do século XVIII, pro-
além do uso da língua ver nacular duran-
vavelmente na Ucrânia, um movimento
te a reza, a abolição da circuncisão, do
que pretendia acabar com as influências
shabat (o descanso semanal) e da reza
iluministas naquela parte da Europa. Este
em hebraico.
movimento foi chamado de
Transportado para os Estados Unidos em “chassidismo” (em hebraico, “devoção”)

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e se propunha a defender as estruturas comunidade, estando presente hoje nos


tradicionais da comunidade judaica. quatro cantos do planeta, seja no Brasil,
Enfatizava-se a alegria e a emoção na Austrália, África do Sul ou EUA. O uso
aliança com Deus, valores bem aceitos intercambiável dos termos Lubavitch e
por uma população, no geral, miserável Habad para falar do movimento revela a
e privada de educação for mal. As diver- tensão entre o particular e o universal.
sas seitas que compunham a corrente
lutavam pela expansão de sua influên- A SINAGOGA BEIT L UBAVITCH

A
cia, mas o fracasso se devia ao caráter diversidade interna à religião
local e particularista da maioria. Uma judaica se espalhou. No Rio
delas, entretanto, chamada Habad, so- de Janeiro, por exemplo, há
breviveu. representantes das três correntes antes
descritas. Tomando as sinagogas citadas
Como todo grupo fundamentalista, o
nas entrevistas, temos a da ARI (Associ-
Habad, fundado na cidade de Lubavitch
ação Religiosa Israelita), localizada no
(Rússia), em 1813, acredita ter a chave
bairro de Botafogo, representando o ju-
para o entendimento das coisas “como
daísmo reformista; a CJB (Congregação
elas são” e não como elas “aparentam
Judaica do Brasil), na Barra da Tijuca,
ser”. Além disso, os seguidores acredi-
representando o judaísmo conservador;
tam na vinda do Messias e, diferentemen-
a Beit Lubavitch, no Leblon, representan-
te do que propunham os fundadores do
do o judaísmo ortodoxo.
“chassidismo”, dão grande importância
à leitura dos textos sagrados (a Torá). A Muitos dos jovens entrevistados freqüen-
missão dos estudantes das ieshivot (plu- tam a Beit Lubavitch, da corrente orto-
ral de ieshivá , escolas talmúdicas) da doxa Habad. À primeira vista é um para-
seita era difundir aquilo que chamavam doxo jovens não-religiosos, que não cum-
de “sementes divinas” do “chassidismo”, prem os preceitos da religião judaica e,
quer dizer, os ensinamentos dos sábios, por isso mesmo, retardam a vinda do
seguindo três princípios: o presente an- Messias, freqüentarem uma congregação
tecipa a vinda do Messias; ele virá com cujos seguidores modelam sua visão de
a dispersão das sementes divinas e esta mundo e seu comportamento social exa-
é a função tanto dos rabinos quanto dos tamente nas idéias de “missão” e “reden-
discípulos, os “soldados”. A seita Habad ção”. É na relação entre o mundo
foi a responsável pela introdução da no- chassídico, ortodoxo, e o mundo não-
ção de “missão” judaica através da dis- religioso, entre tradição e modernidade,
persão das sementes divinas para a vin- e na compreensão do que é a identidade
da do Messias. O movimento se expan- judaica hoje para estes jovens que en-
diu, assim, para além das fronteiras da tendemos o aparente paradoxo. Na ver-

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R V O

dade, descobre-se que os ortodoxos uti- ples fato de comparecerem ao serviço


lizam as lacunas deixadas tanto pela so- religioso do shabat já é um símbolo de
ciedade moderna ocidental, representa- pertencimento ao povo judeu. Ambos os
da pelo crescente individualismo, quan- lados fazem “concessões” quanto ao
to pela própria comunidade judaica, in- modo de encarar o pertencimento ao gru-
capaz de for necer alter nativas à identi- po, nenhum dos dois se coloca além do
dade judaica religiosa, para reforçar a debate “tradição x modernidade”.
tradição e penetrar nos círculos não-re-
ligiosos por inter médio da tecnologia A ESCOLHA DA ORTODOXIA

O
(inter net, correio, telefone, fax etc.) processo de identificação com
for necida, ironicamente, pela o grupo étnico judaico envol-
moder nidade. Essa dinâmica do movi- ve, nos diferentes momentos
mento, percebida na cerimônia do históricos, uma série de formas culturais
shabat , supre as necessidades de uma características: a literatura, a música fol-
certa identidade judaica juvenil atual. clórica, a culinária, a dança, a religião,
a língua. Vimos que a sinagoga sempre
O aparente paradoxo também se explica
foi, em toda a história do povo judeu,
pelo fato da seita Habad, por ser
um ponto de encontro para o estudo, as
missionária, ter de, necessariamente,
orações e bate papo entre amigos. Ape-
fazer compromissos com a “pureza” da
sar de não-religiosos, estes jovens judeus
tradição. As estratégias utilizadas pela
cariocas encontraram nela um novo es-
congregação para atrair o maior número
paço de sociabilidade. Sua trajetória aju-
possível de jovens (não só, mas princi-
da a explicar o porquê da sua
palmente) tor nam menos rígida as bar-
centralidade para o estabelecimento de
reiras que separam os “de dentro” dos
relações sociais.
“de fora”. O que ocorre é uma troca sim-
bólica: pelo lado dos jovens, reconhecem Se, até a entrada na faculdade, sua vida
na sinagoga ortodoxa o “judaísmo autên- social gravitava em torno de instituições
tico” por meio de uma ligação simbólica judaicas, como a escola judaica e os
com seus ancestrais, um sentido de con- movimentos juvenis, a partir dali a quan-
tinuidade com o passado, sem que isso tidade de atividades para a faixa etária
ameace sua integração na vida moder- pós-escola, universitária, diminui consi-
na. A sinagoga pode ser encarada até deravelmente. A sinagoga, que nunca
como mais uma atividade de lazer, um deixou de ser um ponto de referência
símbolo religioso secularizado. Pelo lado para a identidade judaica, volta a ser
dos rabinos, há a percepção de que os uma fonte de sociabilidade e identifica-
jovens judeus cariocas não querem se- ção com o judaísmo, para muitos jovens
guir a teologia tradicional, mas que o sim- que a freqüentavam apenas nas festas

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tradicionais (Rosh Hashaná, Ano Novo e guém tá pensando em trabalho, em

Yom Kipur, Dia do Perdão) e nas cerimô- dinheiro, com pressa de sair... tá ali pra
nias de bar-mitzvá . Ela passa a fornecer relaxar, pra mim hoje é fundamental.

o sentido de continuidade com passado, Eu vou porque eu respeito, acho mui-

os elementos que per mitem estabelecer to legal, até porque, hoje em dia, é
as fronteiras entre o “nós” e o “eles”. uma maneira de eu me manter ligado
à comunidade, ao judaísmo. A única
A importância da religião na definição do
coisa que me liga ao judaísmo, hoje, é
judaísmo e do que é ser judeu para eles
a sinagoga (R., estudante de adminis-
caminha junto com o caráter subjetivo e
tração).
sentimental tomado pela idéia de
pertencimento ao grupo. 6 Reunir-se na O pessoal gosta, se sente bem de ou-

sinagoga, com outras pessoas iguais a si vir o rabino falar, o pessoal reza, todo

mesmo, e participar coletivamente nas mundo com o sidur (livro de rezas) na

orações, dá uma sensação de conforto mão. O Lubavitch é muito bonito, todo

espiritual, mesmo que por uma ou duas mundo canta junto, o ‘Shemá Israel’

horas, de sentir-se “em casa”. 7 Na “rua”, (Escuta, Israel) é voz forte (D.,

ao contrário, onde o indivíduo está per- “promoter”).

manentemente concorrendo pelo pro- Partindo do princípio de que a religião é


gresso material, “passando por cima” dos um “sistema solidário de crenças e de
outros e seu valor é quantificado pelo práticas relativas a coisas sagradas, isto
que tem e não pelo que é, o jovem sen- é, separadas, proibidas” e que é um fe-
te-se desamparado. Na sinagoga, ele en- nômeno coletivo, visto que reúne “numa
contra uma série de produtos simbólicos, mesma comunidade moral todos aque-
apropriados com a necessidade de mo- les que a ela aderem”, 8 a escolha da si-
mento: respeito, compreensão, solidari- nagoga (a comunidade moral) será pre-
edade e um “sentido” para sua vida, além cedida pela definição do que é, para es-
das prédicas da autoridade religiosa da tes jovens, o fenômeno religioso. Para
congregação, o rabino. os jovens freqüentadores da Beit
Lubavitch, a religião mais verdadeira é
Eu saio leve da sinagoga, é o único mo-
aquela que dá continuidade às práticas
mento da semana que eu me desligo,
dos antepassados, à tradição, opinião
desligo o celular, desligo mentalmen-
compartilhada pelos rabinos ortodoxos.
te de tudo, realmente deleto tudo que
aconteceu na semana, relaxo totalmen- Muitos jovens gostam de ir para uma

te. Se eu não vou, eu sinto falta, acho sinagoga tradicional, muitos jovens

que a pureza das pessoas que tão lá, não gostam de mudanças . Mesmo que
pensando no bem naquele momento, eles não pratica (sic) mas pode ser que

ninguém quer o mal de ninguém, nin- eles sabem que, se é pra ir, vamos num

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R V O

lugar que é a mesma linha há três mil dadeira de se interpretar o texto sagra-
anos. Se pra não ir, tem muitos luga- do, ritualizando-o, a chamada “verdade
res pra ir. Se pra ir, eu vou num lugar formular”. 9 Os rabinos do Lubavitch pa-
que realmente minha avó, minha bisa- recem simbolizar o legítimo representan-
vó... uma linha tradicional (G., rabino te da religião judaica. São eles que de-
do Lubavitch). têm, com suas longas barbas negras, o
chapéu negro e as capotas negras de
O judaísmo, equivalente à religião, con-
“três mil anos atrás”, a autoridade para
siderado legítimo ou “verdadeiro”, forne-
definir o que é certo e o que é errado. A
ce os elementos da tradição a serem
existência dessa “verdade formular” con-
utilizados nesta ligação. Em primeiro lu-
fere estabilidade ao ritual, imprescindí-
gar, o ritual representa aquele judaísmo
vel na busca do referencial identitário, e
que era praticado nos pequenos vilarejos
é o que leva muitos jovens à sinagoga
da Europa Oriental. O jovem sente-se
ouvir o que o rabino tem a dizer. Reco-
“em Lodz de 1912”, como dito por uma
nhece-se, na sua figura, a sabedoria e
entrevistada. Em segundo lugar, a forma
inteligência necessárias para guiar suas
como é conduzido o ritual é mais ou
vidas do modo menos rígido possível.
menos legítimo de acordo com o reco-
nhecimento daquele que o leva adiante. A função simbólica da tradição, expres-
Admite-se que há uma maneira mais ver- sa no ritual, fornece um senso de conti-

Detalhe da sinagoga Beit Lubavitch, no Leblon, Rio de Janeiro.

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nuidade, de solidariedade entre a gera- de “tempos imemoriais” faz a ligação


ção passada e a presente. O problema entre o passado e o presente, ao passo
colocado pelo judaísmo conservador, que o português seria a deturpação da
concorrente do ortodoxo no mercado de “verdadeira” religião.
fiéis, está na sua expressão simbólica, Há uma diferença na forma de conceber
sua eficácia parece estar ligada a uma a participação de homens e mulheres na
“economia da mediação”, 1 0 em que o ra- cerimônia, envolvendo, de um lado, a
bino deve ter barba e vestir o terno ne- ortodoxia da Beit Lubavitch e, de outro,
gro. O sistema simbólico que organiza a o caráter mais “liberal” ou “moderno”
experiência humana, a nível individual, das sinagogas ARI ou CJB, sobretudo a
também se faz presente nos rituais pú- segunda, personificada na figura do ra-
blicos, como o shabat , organizando a so- bino Nilton Bonder. Vale a pena citar o
ciedade, em que temos a Beit Lubavitch depoimento de um jovem que prefere
como símbolo da fronteira entre a reli- esta outra sinagoga para efeito de com-
gião judaica “verdadeira” e a “desviante”. paração.

Há uma espécie de “complexo A gente vai no Bonder, que não é tão

rabínico” 1 1 na manutenção desta identi- religioso, mas que eu gosto do jeito

dade, possível apenas na relação entre dele. Posso sentar do lado da minha

o rabino e o público que comparece ao mãe. [...] Eu gosto do que o rabino fala,

ritual. O primeiro inicia as canções em todo mundo fala que ele é inteligente

hebraico, sendo imediatamente reconhe- e realmente é, fala muito bem. Come-

cido como o modo legítimo de agir, en- cei a ir quando a gente foi fazer a ‘Fes-

tão o segundo passa a acompanhá-lo ta do Sol Nascente’ no Clube da Barra,

har monicamente e um sentimento de que a gente foi divulgar no Bonder e

bem-estar toma conta de todos, porque eu adorei; na outra sexta-feira eu vol-

é um fenômeno coletivo. O tei e, a partir daí [...] (R., estudante de

compartilhamento cultural, por meio do administração).

ritual, induz certas motivações, 1 2 o tal Além da tomada de decisão mais firme
“sentir-se bem” durante o shabat . O ca- dos que escolhem uma das três sinago-
ráter subjetivo desse judaísmo juvenil de gas, há aqueles que se vêem presos no
hoje tem sua maior expressão exatamen- dilema apresentado no início:
te na parte musical, em que é mais im- modernidade ou tradição? Nesses casos,
portante apreciar a melodia e a compa- não há consenso sobre qual judaísmo é
nhia de dezenas de outras vozes em con- o ideal, se o ortodoxo, o conservador ou
junto do que compreender o que se está o liberal. Não se está disposto a abando-
dizendo, segundo os entrevistados. A nar a tradição e sua simbologia, nem a
leitura em hebraico e o modo de cantar negar que as relações sociais no mundo

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R V O

moder no se modificaram (a relação ho- de jovens da comunidade, que você

mem/mulher, por exemplo). O problema não perde nada, é só uma hora . O


maior parece ser: até onde a tradição Lubavitch por ser mais perto de casa,

pode ser revista, moder nizada, por não precisar pegar carro, procurar

reinventada? vaga, normalmente sinagoga não tem


estacionamento, dá pra ir a pé. Não foi
Eu acho que a religião é essa religiosa
mesmo, eu acho que tem que ser isso por busca espiritual, não tava sentin-

mesmo, porque era assim e não tem do falta de rezar, foi porque inaugura-
ram a sinagoga, eu fiquei curioso de
que mudar. Mas, ao mesmo tempo, se
for assim, pode ser que acabe, então conhecer, a maioria dos meus amigos

teve que ter mudanças porque se fos- tava freqüentando, e eu não via moti-

se só aquilo... De repente eu já taria


vo pra, se eu não tava fazendo nada

só com ‘goy’, não taria nem mais aí se nesse horário, pra eu não ir (R., estu-

não fosse um Bonder da vida. Acho dante de administração).

muito importante todos eles que tra- Em segundo lugar, a reza está em har-
zem a comunidade, então o que o monia com o “social”, pelo encontro com
Bonder faz é judaísmo só que eu não os amigos, o que muitos jovens admitem
faço nada. Nem o que o Bonder faz eu quando vão à cerimônia do shabat às
faço, eu só vou lá e falo ‘amém’. O sextas-feiras. Seguindo o raciocínio do
Lubavitch seria mais parecido com o rabino-chefe da congregação, diria que
que era antigamente (B., estudante de tanto a parte material quanto a espiritu-
medicina). al são satisfeitas quando o jovem, cujo

A Beit Lubavitch não é a única represen- corpo seria dividido nas metades “de

tante da corrente ortodoxa no Rio de cima” (o intelecto) e “de baixo” (instin-

Janeiro nem a mais antiga, porém há tos), comparece.

certas diferenças que a colocam como a Agora, adoro esse negócio... hoje o
preferida. Em primeiro lugar, o fato de Beit Lubavitch tem muito jovem e isso
ser localizada num ponto de fácil aces- é muito bom, faz você ir, é um fato
so, visto que muitos moram no próprio positivo. Por exemplo, antigamente
bairro do Leblon ou em áreas limítrofes, quando eu ia, encontrava duas ou três
junta o útil ao agradável, pela praticidade pessoas e quando não iam era um
e rapidez de se chegar ao local e pela saco. Quando acabava a reza, eu vol-
possibilidade de sentirem-se num ambi- tava pra casa. Não que eu não goste...
ente amigo. acho que a reza faz bem pra caramba,

Sexta-feira ainda não é exatamente noi- você sentar lá, ouvir a reza... eu saio

te. De sete às oito, você se sente bem de lá muito feliz. Mas, você sai de lá e

no lugar, é até um ponto de encontro acabou? Hoje em dia, no Lubavitch,

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você encontra com todo mundo, isso dos os jovens, recebendo-os com um sor-
é legal, combina de sair, sempre tô sa- riso no rosto e desejando-lhes shabat
indo depois com o pessoal de lá mes- shalom ( shabat em paz), passando calor
mo . É uma parada legal, é um fator a humano e perguntando como é que vão
mais, digamos assim (D., estudante de as coisas, é uma forma sedutora de re-
direito). crutamento. O cumprimento elimina, ou
atenua, a imagem da ortodoxia, em que
Em terceiro lugar, o tratamento dispen-
o rabino deve se portar de maneira sisu-
sado pelos rabinos da congregação a to-
da e os freqüentadores devem se con-
centrar apenas na leitura do sidur (livro
de rezas) e na união com Deus. Eliminar
a tensão, deixá-los à vontade é propa-
ganda positiva da sinagoga. “A equipe
dos rabinos daqui são rabinos jovens,
simpáticos, procuram falar com o jovem,
chegar até o jovem, não esperam o jo-
vem chegar até ele para falar shabat
shalom ” (G., rabino do Lubavitch).

O objetivo é claro: evitar que jovens ju-


deus, de ambos os sexos, assimilem o
mundo não-judeu através dos casamen-
tos exogâmicos ou mistos. Para que esse
processo seja interrompido, as estraté-
gias utilizadas devem estar de acordo
com as necessidades e estilos de vida
do público alvo, esta parcela da juven-
tude judaica carioca. Assim, determina-
dos comportamentos exigidos àqueles
que seguem a teologia ortodoxa são
minimizados quando se trata de não-re-
ligiosos. Uma primeira diferença se refe-
re à assiduidade à sinagoga, já que a
recepção calorosa a qualquer um deles
independe da freqüência, se todas as
sextas-feiras ou uma vez ao mês.

Todos são recebidos independente de


Fachada da sinagoga Beit Lubavitch. que família você é, se você tem dinhei-

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R V O

ro ou não tem dinheiro, se você é reli- aceita [sic]... pelo contrário, eles cha-

gioso ou não-religioso , se você vai na mam quem não é, a maioria que tá lá...
sinagoga uma vez por ano ou três ve- são muito poucos. Eles são abertos

zes por ano, ou uma vez a cada dez para quem não é, eles acham melhor
anos, não faz a mínima diferença [...]. as pessoas irem... tá de carro, 1 3 vindo
Uma sinagoga que tá aberta, que tem do trabalho, mas vem (I., estudante de
o interesse de aproximar, que todos arquitetura).

possam vir, entender e participar é uma


A sinagoga está aberta para todos, nós
coisa que o Lubavitch tá fazendo no
estamos interessados que todos os ju-
mundo inteiro há 50 anos (C., rabino
deus possam vir e participar da sina-
do Lubavitch).
goga, independente dele não estar se-

Uma segunda concessão feita no senti- guindo a mesma linha [...]. Eles se sen-
do de aproximá-los da congregação é a tem num ambiente em que eles podem

permissão para usar vestimentas conven- se sentir à vontade, ninguém força eles

cionais, na moda entre esta parcela da a colocar chapéu e barba pra sentar na
juventude carioca que compartilha os sinagoga e, dessa forma, se aproximam

mesmos valores de classe média, dife- (C., rabino do Lubavitch).

rentemente das roupas negras e das lon-


O “fenômeno Lubavitch” está diretamen-
gas barbas dos homens ortodoxos, e dos
te ligado ao caráter subjetivo, provisó-
longos vestidos e perucas das mulheres
rio, e baseado em múltiplos referenciais
ortodoxas. A filosofia da congregação é
que esta identidade judaica juvenil re-
a de que as pessoas devem ser aceitas
vela (sendo mesmo uma de suas conse-
como elas são, independente da corren-
qüências). Comparecer ao serviço religi-
te de pensamento seguida, contanto que
oso às sextas-feiras e comer comida
se disponham a comparecer às cerimô-
kosher são práticas inseridas numa pro-
nias respeitando o modo de agir dos or-
gramação muito mais ampla, que inclui
todoxos. Tor nando mais flexível o “tipo”
desde a academia de musculação até a
de judeu que é bem-vindo ao shabat , a
praia. Por alguns momentos, num dia da
sinagoga, por inter médio dos seus rabi-
semana, esse jovem lembra-se que faz
nos, atrai muitos jovens não-religiosos
parte de uma coletividade particular sem,
que procuram a religião esporadicamen-
contudo, atrapalhar as outras atividades
te para afir mar sua identidade judaica.
que fazem parte de seu cotidiano. Como
Ambos os lados fazem concessões, ten-
cada uma das outras atividades, a ida à
tando tirar o máximo de proveito sem
sinagoga também está condicionada ao
agredir moralmente um ao outro.
tempo gasto, à relação custo-benefício,
Eles são religiosos, são ortodoxos, mas àquela preocupação de “quanto tempo é
não são aqueles ortodoxos que não necessário para renovar os laços de so-

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A C E

lidariedade com o meu grupo?”. ção pré-moderna em que o discurso era

De repente, ele (o Lubavitch) chamou menos baseado numa “razão”

um grupo de judeus que tava um pou-


universalista do que na subjetividade. A

co afastado, ótimo, é no Leblon, é um identidade desses jovens necessita de

pessoal que vai à praia, que sai à noi- respostas rápidas para seus múltiplos

te e vai no Lubavitch. Muitas vezes o


referenciais, para sua necessidade de

que eles tão tentando criar é um gru- vínculo a algum grupo, num mundo cada

po e um vínculo, até porque eles sa- vez mais individualista, fragmentado. O

bem que, no Rio de Janeiro, 2% da co-


Lubavitch oferece uma solução a todas

munidade judaica, se isso, é ortodoxa. as questões que os afligem, sem obrigá-

[...] Até porque a juventude é o futuro los a tornarem-se religiosos, mas com a

da comunidade (B., estudante de jor-


esperança de que isso venha a aconte-

nalismo). cer algum dia.

O jewish way of life, pra mim, é o meu.


A crise do judaísmo moderno, baseada

Às vezes ir à sinagoga, às vezes ou re- nas

gular mente ir à Hebraica (clube judai- diferentes estratégias de assimilação

co no bairro de Laranjeiras), pensar desenvolvidas através de justificativas


no futuro próximo com a minha namo- coerentes com as idéias iluministas e

rada, que eu quero casar com ela, suas premissas universais; pela ade-
quero ter filhos, quero passar a conti- quação do judaísmo aos diversos mo-

nuidade, quero fazer trabalho comu- vimentos político-ideológicos da

nitário quando der (M., estudante de modernidade tais como: liberalismo,


jor nalismo). socialismo e nacionalismo; pela defi-

nição plural da identidade judaica; pelo


Esse grupo não se encaixa, grosso modo,
em nenhuma das três correntes descri- crescente enfraquecimento do judaís-
mo rabínico; pela tensão entre os pó-
tas anteriormente, mas realiza uma cons-
los tradição/modernidade, etnicidade/
tante bricolagem de elementos próprios
de cada uma delas. No caso da cidadania nacional, público/privado,
sentimento/razão e pelo caráter
Lubavitch, especificamente, os jovens
autojustificatório associando judaísmo
não compartilham a noção de “Redenção
messiânica”, característica da ortodoxia, à ética humanitária e à justiça, 1 4

porém também rejeitam qualquer inicia- fortaleceu sua vertente mais subjetivista.
tiva de repensar a identidade judaica à A valorização do “emocional” em detri-
luz dos valores modernos universalistas, mento do “racional” fortaleceu a religio-
elaborando um discurso reflexivo e ob- sidade mais tradicionalista, como o
jetivo. O judaísmo desse grupo perdeu Lubavitch, que enfatiza mais o fato do
sua aura moder na, retor nando à situa- jovem sentir-se bem durante a cerimô-

pág. 58, jul/dez 2003


R V O

nia do que propriamente a aceitação de dades deve fornecer inúmeros atributos


suas premissas teológicas. passíveis de escolha, de acordo com a

A demanda dessa identidade jovem ju- situação, associando o mundo secular da

daica exige que a satisfação individual, juventude carioca ao mundo religioso da

ao ser encaixada na coletividade, seja sinagoga. T alvez as críticas severas

eficiente sem tornar-se dependente de dirigidas ao rabino Nilton Bonder, repre-

for mas per manentes de identificação, sentante da corrente conservadora no

hierárquicas, que tolhem sua liberdade Rio de Janeiro, se deva ao fato de a mai-

de escolha e o fluxo entre os diversos oria destes jovens não estar disposta a

domínios da vida social. Essa identida- formular, de modo discursivo, sua iden-

de é menos substantiva e mais calcada tidade judaica. Aqueles que aderem a

no simbolismo e no ritual. esta outra concepção do judaísmo devem


aprofundar-se nas problemáticas levan-
Se o judaísmo é identificado com a reli-
tadas pelas mudanças trazidas pela
gião, a sinagoga, que é o espaço onde a
moder nidade, como a permissão às mu-
crença toma corpo através do ritual, vai
lheres de “subir à Torá” (fazer a leitura
funcionar como catalisadora da sensação
de trechos do Pentateuco). Tendo em vis-
de pertencimento. É fundamental que a
ta essa demanda, o Habad conseguiu
sinagoga faça com que o jovem sinta-se
preencher a lacuna deixada tanto por
bem durante sua permanência e isso é
reformistas quanto por conservadores,
conseguido, por exemplo, com o confor-
estabelecendo um diálogo entre a vida
to das poltronas, pelo sistema de ar-con-
urbana dessa juventude judaica carioca
dicionado central, pela moder na arqui-
com as carências produzidas por esse
tetura do edifício, pela simpatia dos ra-
mesmo estilo de vida moderno e indivi-
binos, pelo sentimento de que aquele é
dualista.
o judaísmo “verdadeiro”. O conforto
material faz parte, então, das exigências É preciso compreender até que
de uma juventude de classe média, que ponto eles estão dispostos a
compartilha um certo estilo de vida e incorporar a tradição a suas
uma concepção de mundo, cujo maior vidas, e a partir de que mo-
exemplo foi uma sexta-feira em que o mento ela passa a ser um em-
sistema de refrigeração central da sina- pecilho ao seu estilo de vida
goga quebrou, levando uma enor me moder no. Chegar na hora que
quantidade de jovens para o lado de fora. bem entender, vestir-se “à pai-
A cerimônia, inclusive, estava ainda na sana”, sem as exigências im-
metade. postas aos ortodoxos, e prati-
O judaísmo/religião compatível com seu car deter minações divinas,
estilo de vida e fragmentação de identi- como comer comida kosher ,

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não são consideradas transgressões im- favor de uma corrente que forneça um
perdoáveis pelos rabinos da Beit outro significado legítimo à judeidade.
Lubavitch. Na verdade, segundo seu pon- Essa tensão entre a tradição e a
to de vista, deve-se sempre olhar pelo moder nidade demonstra o valor que a
lado positivo, ilustrado pelas inúmeras ortodoxia goza neste meio juvenil, que
fábulas típicas do movimento chassídico, não parece disposto a incorporá-lo nas
tendo em conta que “o que vale é a in- suas vidas. A sinagoga ortodoxa e seu
tenção”. Além disso, tem-se a esperança representante, o rabino de barba e cha-
de que a percepção de que aquele juda- péu, são importantes como referência a
ísmo é o verdadeiro possa atrair jovens um passado, que, contudo, não deve ser
para as fileiras de seguidores da ideolo- parte de seu presente, seu cotidiano.
gia fundamentalista messiânica do Essa identidade juvenil encontra, na si-
Habad. Fazer teshuvá , ou “retornar” ao nagoga ortodoxa, um referencial coleti-
judaísmo, via seus ensinamentos, é o vo, um sentimento de pertencimento, de
objetivo máximo da congregação, mes- estabilidade. Nela responde-se às pergun-
mo que se chegue nos últimos cinco mi- tas “quem sou eu?”, “de onde venho?”,
nutos da cerimônia, já que o processo “para onde vou?”.
de Redenção é lento, porém progressi-
Cada sinagoga do Habad está aberta a
vo. Até mesmo a separação dos sexos
qualquer judeu que queira envolver-se
deixa de ser um empecilho ao jovem, se
em trabalhos sociais, seja na preocupa-
esse elemento da tradição não estiver em
ção com os problemas individuais de
contradição com o que ele espera da si-
cada freqüentador, e o conseqüente
nagoga.
envolvimento na sua resolução, seja no
Se, por exemplo, meu pai fosse, eu
calor humano passado na recepção a
gostaria de estar junto dele. Só que
cada sexta-feira. Essa economia da tro-
meu pai não vai, então pra mim não
ca simbólica está inserida na concepção
faz diferença porque eu vou com a
de “missão” descrita anterior mente; o
minha avó. Eu gosto de estar com a
objetivo é alcançar a Redenção pelo res-
pessoa que eu fui. Eu não iria no
gate da identidade judaica de cada ju-
Lubavitch para ficar sozinha, se for pra
deu desgarrado do rebanho. Há duas ló-
sair de casa e chegar vinte, trinta mi-
gicas agindo ao mesmo tempo, a chama-
nutos atrasada, eu não vou (S., estu-
da “compartimentalização”, 1 5 uma inter-
dante de desenho industrial).
na e outra externa. A exter na envolve o
Por outro lado, a proibição de sentar-se convencimento, numa linguagem condi-
junto com a namorada ou com a mãe zente com o estilo de vida moderno, de
pode incomodar de modo tão profundo que aquele é o judaísmo a ser seguido e
que a tradição passa a ser rejeitada em que lhe dará a segurança ontológica

pág. 60, jul/dez 2003


R V O

necessária para continuar vivendo em a religião, deixando a cargo dos


paz; a inter na diz que a “missão” é puri- freqüentadores da cerimônia do shabat
ficar a alma judaica imersa a escolha do que será incorporado à sua
no ambiente não-ju- judeidade, a atração exercida pelos ra-
daico. binos se deve exatamente à adaptação
da ortodoxia ao estilo de vida moder no.
Os rabinos da congre-
Não se importar que se chegue à sinago-
gação têm consciência
ga de carro ou com calças coladas ao
de que a falta de regu-
corpo, realçando a sensualidade femini-
laridade na freqüência à cerimô-
na, por exemplo, faz parte do processo
nia do shabat está relacionada ao cará-
de negociação de identidades, tanto da
ter provisório e à importância dada à par-
sinagoga quanto dessa parcela de jovens
te subjetiva do culto, à representação
judeus da zona sul. O direito que é dado
tida por legítima. Contudo, tentam incu-
a cada um de escolher aquilo que será
tir a idéia de que é necessário absorver
levado para casa dentre os inúmeros sím-
o verdadeiro significado daquilo que está
bolos presentes no ritual é conseqüên-
sendo feito naquele momento e de to-
cia de uma nova forma de afirmar a iden-
dos os preceitos divinos. Numa das
tidade étnica judaica.
prédicas, um dos rabinos da congrega-
ção, logo que se colocou de frente para
A modernidade trouxe a noção de “indi-
o público, disse: “enxergar o invisível é
víduo”, segundo a qual cada ser huma-
alcançar o impossível”. Fez uma crítica
no é responsável por seus atos, e seus
àqueles que só vêem a aparência e se
desejos individuais têm prioridade sobre
esquecem que todo judeu tem uma es-
os desejos da coletividade. O “indivíduo”
sência (palavras dele) que lhe diz “você
tem o direito de escolha, tem a liberda-
é judeu”. Afirmou, ainda, que o cumpri-
de de tomar o caminho que achar me-
mento de uma mitzvá (preceitos divinos),
lhor para sua vida, seja no lado profissi-
por mais esporádico que seja, deve ser
onal ou pessoal, na medida em que seu
lido pelo lado positivo (como vimos an-
mundo está pautado pelo princípio da
tes, em relação à ideologia do Habad),
igualdade. Contudo, como parte da soci-
mas que é de fundamental importância
edade, este “indivíduo” sente necessida-
entender o que cada um desses atos sig-
de de relacionar-se com outros “indiví-
nifica, em ter mos religiosos obviamen-
duos”, criar laços de solidariedade e
te. É a disponibilidade de cada jovem que
afetividade, compartilhar valores, expe-
irá dizer se a intenção desse rabino, e
riências e símbolos. Transforma-se numa
de todos os outros da congregação, terá
“pessoa”, um membro do grupo, e se
uma resposta positiva ou negativa.
sente bem nele pois tem o suporte emo-
Apesar de afirmarem que não modificam cional dos outros. Integrados na socie-

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A C E

dade moder na, esses jovens cariocas, as baterias” para mais uma semana de
individualizados no seu cotidiano, encon- estudos e trabalho, até a próxima sexta-
tram na sinagoga uma contrapartida. Por feira.
algum tempo, renovam os laços de Artigo recebido para publicação em ju-
pertencimento ao grupo e “recarregam lho de 2003.

N O T A S
1. Roberto Cardoso de Oliveira, Identidade étnica, identificação e manipulação, in Identidade,
etnia e estrutura social , São Paulo, Pioneira, 1976.
2. Louis Dumont, Introdução, in Homo hierarchicus , São Paulo, EDUSP, 1995.
3. Moacyr Scliar, Judaísmo, Rio de Janeiro, Ática, 1994.
4. Enciclopédia conhecimento judaico, Rio de Janeiro, Editora Tradição, v.1 e 3, 1967.
5. Helena Lewin, O olhar do jovem sobre sua identidade judaica, in Judaísmo: memória e iden-
tidade, Rio de Janeiro, EDUERJ, 1997.
6. Numa pesquisa realizada com alunos do ensino médio do colégio judaico Eliezer Steinbarg,
no Rio de Janeiro, Grinberg (1997) afir ma que, também entre jovens de 15 e 16 anos, a
condição judaica passa mais pelo sentimento do que propriamente por uma compreensão
“racionalizante” dos rituais, por exemplo. Diz ela: “As pessoas demonstram dar mais impor-
tância à identificação emocional, não considerando preponderante o conhecimento acerca
da religião ou da história, nem mesmo a observância de práticas religiosas. Ter uma vaga
idéia de o que as festas [...] seria o suficiente para sentir-se judeu , como disseram muitos”.
(grifo meu)
7. Roberto Damatta, Carnavais, malandros e heróis , Rio de Janeiro, Zahar, 1979.
8. Émile Durkheim, Definição do fenômeno religioso e da religião, in As for mas elementares da
vida religiosa, São Paulo, Martins Fontes, 1996.
9. Anthony Giddens, A vida em uma sociedade pós-tradicional, in U. Beck; A. Giddens & S.
Lash, Moder nização reflexiva , São Paulo, UNESP, 1997.
10. Mary Douglas, The irish bog, in Natural symbols , Pennsylvania, Pantheon Books, 1970.
11. Claude Lévi-Strauss, O feiticeiro e sua magia, in Antropologia estrutural, Rio de Janeiro,
Tempo Brasileiro, 1975.
12. Clifford Geertz, A religião como sistema cultural, in A interpretação das culturas , Rio de
Janeiro, TLC, 1989.
13. Conta a tradição religiosa que durante o período em que os judeus per maneceram no deser-
to, quarenta anos, foi construído um tabernáculo. Para tal tarefa foram realizados 39 traba-
lhos, que durante o shabat , o descanso semanal, deviam ser abolidos. Um deles é fazer fogo,
daí a proibição de andar de carro, pois ao ligar a ignição, faz-se uma faísca. Não há relação
com o esforço físico, trabalho braçal.
14. Mônica Grin, Diáspora minimalista: a crise do judaísmo moderno no contexto brasileiro, in
Bila Sorj (org.), Identidades judaicas no Brasil contemporâneo , Rio de Janeiro, Imago, 1997.
15. Menahem Friedman, Habad as messianic fundamentalism: from local particularism to univer-
sal jewish mission, in E. Martin Marty & R. Scott Appleby (eds.), Accounting for
fundamentalisms : the fundamentalism project, Chicago, University of Chicago Press, 1994.

pág. 62, jul/dez 2003


R V O

Ricardo Oliveira de Freitas


Doutor em Comunicação e Cultura – UFRJ.
Bolsista do Programa de Pós-Graduação em Comunicação – UFF/CNPq,
Núcleo de Mídia e Etnicidade.

Candomblé e Mídia
Breve histórico da tecnologização das
religiões afro-brasileiras nos e pelos
meios de comunicação

O texto analisa o lugar ocupado pelos This paper analyzes the importance of
meios comunicacionais e pelas novas means of communication and new
tecnologias de comunicação para a communication technology for the
reconfiguração do campo religioso afro- reconfiguration of Afro-Brazilian
brasileiro – mais especificamente do religions, especially Candomblé. It
candomblé. Investiga as transformações investigates the transfor mations that have
ocorridas nas religiões de origem africana occurred in the religious traditions of African
no Brasil, centradas na tradição oral, após origin, which are centred in the oral tradition,
o processo de midiatização sofrido after the process of mediation endured by these
por essas religiões. religions.
Palavras-chave: meios de comunicação, Keywords: means of communication,
candomblé e mídia. candomblé, medium.

N
o Brasil, por volta do início do perpetuou por mais de três séculos. Tal
século XIX, foi criado um sis- sistema religioso foi denominado can-
tema de práticas religiosas domblé – a religião dos orixás no Brasil.
que reunia, num mesmo espaço físico
( egbé ou terreiro), uma pluralidade de Além de se caracterizar como agregador
cultos e for mas religiosas provenientes dos mais variados e distintos cultos de
da costa ocidental africana, por causa do matrizes africanas, o candomblé conso-
expressivo tráfico de escravos que se lidou-se como religião centrada na tradi-

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ção oral, por conta da ausência de um Muitos autores lembram que a oralidade
livro revelado. Sem a presença do livro não somente foi necessária à dinâmica
revelação, sua liturgia foi promulgada interna dos terreiros, como também ao
por meio da transmissão oral dos mitos, seu posicionamento de defesa diante da
manifestando-se nas danças, nos cultura dominante, da sociedade
cânticos e rituais, que perpetuariam tra- abrangente, visto que além de servir
ços e formas (históricas, religiosas e so- como instrumento para a transmissão do
ciais) na consciência e na memória cole- conhecimento litúrgico e mítico, serviu,
tiva, no passado, dos descendentes de também, como reguladora da vida soci-
africanos no Brasil e, hoje, dos integran- al nos terreiros (com dinâmicas de soli-
tes das mais diversas origens das religi- dariedade, poder e hierarquização) e no
ões afro-brasileiras. mundo externo. Por isso, o terreiro tem

Sobre Davina Maria Pereira, Iyá Davina (1888-1964), há, desde 1997, um memorial instalado em
tradicional terreiro na Baixada Fluminense, Rio de Janeiro. Foto: autor desconhecido. Acervo do
Memorial Iyá Davina.

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sido, ainda hoje, tratado como espaço texto ou de um documento regulador de


de resistência à opressão elitizante e às normas e regras de comportamento (já
pressões homogeneizadoras das classes que o candomblé apresentava-se como
dominantes pelas populações religião atextual).
subalternizadas. Em vista disso, a
A memória coletiva, eter namente elabo-
oralidade foi, sem precendentes, o sub-
rada pela ritualística religiosa, contribuía
sídio fundamental do processo
para organizar a vida social dos descen-
civilizatório e identitário afro-brasileiro.
dentes de africanos no Brasil, através das
Era necessário criar uma singularização recordações, ou mesmo da invenção, de
entre os descendentes de africanos no práticas oriundas das terras originárias
Brasil. Tal singularidade determinava não em composição com a realidade
somente o pertencimento dos afro-des- sociopolítica e ecológica brasileiras, por
cendentes no Brasil a uma identidade conta da incisiva transmissão oral
afro-brasileira, como, também, criava transgeracional e transtemporal. Contri-
acervo e patrimônio necessários a uma buía, também, para proporcionar a no-
população ex-escravizada, atribuindo- ção de pertencimento a uma identidade
lhes traços de civilização, passado his- afro-brasileira, por meio da pertença re-
tórico e pertença sociocultural. Tais tra- ligiosa, opondo-se, pois, às identidades
ços geraram signos constitutivos de uma construídas através de formas clássicas
consciência coletiva baseada numa he- de transmissão histórica,
rança ancestral (transnacional e trans-his- disponibilizadas pelas instituições soci-
tórica), que proporcionaria a permanên- ais for mais (família, escola, trabalho).
cia no Brasil moder no de uma religião Nesse último caso, passado, presente e
estritamente hierarquizada e complexa- futuro são construídos por intermédio de
mente ritualizada, mesmo com a ausên- instrumentos conceituais e concretos,
cia de um texto litúr gico edificante e dos quais o texto – documento datável
instituinte. Elaboraram uma nova forma (referente ao passado e presente) e
de vida para as populações ex-escravi- arquivável (referente ao futuro) – terá
zadas, proporcionando a manutenção de papel fundamental. Para os afro-brasilei-
suas identidades étnicas (aí incluído suas ros, destituídos da literalidade, a noção
línguas, hábitos alimentares, reorganiza- de historicidade identitária (tradição) efe-
ção política e social, reelaboração da tuaria-se, única e exclusivamente, atra-
estrutura familiar, reestruturação de sua vés do relato e da narrativa mítica – ele-
ecologia), que caracterizaria os terreiros mento primórdio para a construção de
como for mas paralelas de organização uma narrativa histórica afro-brasileira.
social, econômica, política e mesmo lin- Por isso, o terreiro ocuparia tanto o pa-
güística, 1
obtidas sem o auxílio de um pel da igreja como da família, da escola

Acervo, Rio de Janeiro, v. 16, n o 2, p. 63-88, jul/dez 2003 - pág. 65


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e do trabalho, o que per mitiu a brasileiras serviriam como ins-


reelaboração do acervo de quadros trumento para ilustrar a causa do atraso
identificários (formuladores de identida- sociocultural brasileiro, atribuído à exu-
des), por meio de traços patrimoniais, berância, ao exotismo e ao primitivismo
que situaram num tempo e espaço mítico (à barbárie e à selvageria) de seus ritu-
(histórico) as pertenças ancestrais, con- ais de sacrifício, possessão e magia – que
figurando a realidade e a projeção do têm no corpo (corporeidade) e na fala
futuro dos afro-brasileiros. (oralidade) seus suportes mais eficazes

Os documentos referentes ao comércio (o que, radicalmente, se opõe à idéia de

de escravos, mesmo que nos per mitam uma cultura literária e, em conseqüên-

deter minar a procedência de escravos cia, erudita e dita civilizada).

ingressos e nos dêem uma idéia do seu De modo geral, dois são os traços e for-
número e do montante orçamentário que mas que regem os sistemas rituais nas
o sistema rendeu, não dão conta da am- religiões de origem africana no Brasil. O
plitude do sistema escravocrata, por con- primeiro, de origem nagô, diz respeito
ta do tráfico ilegal e paralelo aos muitos aos povos que têm o iorubá como língua
projetos de abolição da escravatura no comum e que formam o que se designa
Brasil. yourubaland – correspondendo, hoje, ao
A apreensão e destruição de materiais sul do Benin e ao sudoeste da Nigéria

de culto também foi outro importante (antigos reinos de Oyó, Ijexá, Ijebu, Ketu

fator para a quase desaparição de uma e Egbá). O segundo, de origem jeje, diz

história material africana no Brasil – respeito aos povos fon, provenientes da

hoje, reelaborada ou integrante dos acer- região do antigo Daomé (atuais Repúbli-

vos das polícias militares. Assim, mes- ca do Togo e Benin). Distingue-se do pri-

mo que a história afro-brasileira não te- meiro, por não cultuar divindades encon-

nha podido ser minuciosamente concre- tradas naquela região e que são, no Bra-

tizada através de uma história textual, sil, as mais populares divindades africa-

documental ou mesmo material, pode nas – Xangô, Oxum e Iemanjá, entre es-

ser, entretanto, elaborada por meio da tas. É a sincretização entre esses dois

oralidade – que é o elemento primordial sistemas – fon e yorubá – que deter mi-

para a realização do saber afro-brasilei- nará o modelo de culto jeje-nagô, que

ro, através da legitimação de uma me- compreende o que denominamos can-

mória não-escrita, não-documental e, por domblé e é o mais popularmente conhe-

isso, simbólica ou conceitual, que encon- cido sistema de práticas e tradições reli-

trará no corpo e na narrativa mítica seus giosas de origem africana no Brasil. 2

instrumentos mais valiosos. Se a tradição oral foi, de fato, o instru-


Por tudo isso, as religiões afro- mento para a implementação e perpetu-

pág. 66, jul/dez 2003


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ação desse sistema durante o século XIX, Brasil como no exterior. A ordem de apa-
o início do século XX fez aparecer uma rição do candomblé, ou das religiões
onda de produções bibliográficas, que afro-brasileiras como um todo, seguiria
tomaria o candomblé e seu complexo uma sucessão cronológica determinada
sistema ritual como objetos de investi- pela história dos meios de comunicação
gação, provocando, senão a perda do no Brasil. Por isso, vale a pena
referencial da oralidade – devido à ex- remetermo-nos a cada um desses veícu-
pressiva importância que os adeptos do los, respeitando, assim, a ordem de ocor-
candomblé dariam a essas publicações rência dos avanços nesses meios.
–, ao menos uma reelaboração do acer-
vo memorialista e da narração mítica, I MPRESSÕES DO CANDOMBLÉ :
tradicionalista e metafórica afro- RELIGIÕES AFRO - BRASILEIRAS E
brasilera, anteriormente proporcionada MERCADO EDITORIAL

S
pela tradição oral. Dessa for ma, a reli-
gião atextual, centrada na oralidade, vai, ão os tratados da escola

aos poucos, transfor mando-se numa re- evolucionista no Brasil, tentan-

ligião textual, tecnologizada e, por fim, do relacionar a causa dos ma-

digital [izada] ou hipertextual [izada] – les do Brasil à caracterização do seu pro-

por conta da pressão e sedução causada cesso civilizatório e à sua constituição

pela forças midiáticas e da inclinação miscigenada, que primeiro tratarão, na

que essas religiões têm para [re] formu- literatura científica, o candomblé. Nina

lar processos de fusão, [re] adaptação e Rodrigues, com O animismo fetichista

[re] articulação. dos negros bahianos , 3 em 1900, e, um


pouco mais tarde, com Os africanos no
Dessa for ma, após a aparição do can- Brasil, 4 foi seu principal interlocutor. Síl-
domblé na produção editorial (literatura vio Romero lembrava que “o negro, [...]
científica e ficcional, jornais e revistas), malgrado sua ignorância, é um excelen-
a partir da seqüência de transfor mações te objeto de ciência”.5 Contudo, já des-
empreendidas pela evolução dos meios de a segunda metade do século XIX, o
de comunicação, o candomblé passaria termo candomblé apareceria na impren-
a constar, mesmo com expressivo atra- sa e nos registros policiais para desig-
so, de produções radiofônicas, nar a reunião ou religião de “pretos e
audiovisuais (cinema, TV e discografia) desordeiros”. Na imprensa, nesse perío-
e, por fim, ciberinformacional (Internet) do, foi recorrente a utilização do termo
– o que, mesmo deter minando uma re- em meio aos noticiários policiais, como
organização das formas tradicionais de tentativa de coibir e reprimir crenças
culto, possibilitaria maior visibilidade e indesejadas pela lei, pela rejeição e pela
popularização dessas religiões, tanto no desestima 6 – não propriamente por seu

Acervo, Rio de Janeiro, v. 16, n o 2, p. 63-88, jul/dez 2003 - pág. 67


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valor religioso, mas, sobretudo, pela tacular apreensão de pertences do culto


possibilidade de ilustrar o exemplar in- afro-brasileiro de um terreiro instalado
dício de degenerescência da raça negra no centro da cidade. 8 O Jor nal do Co-
no Brasil. mércio publicou carta de um leitor des-
contente com a existência de um terrei-
A literatura sobre candomblé, até a dé-
ro de candomblé próximo à praça
cada de 1960, mesmo que importante
Tiradentes: “mais alguns dias e teremos
para fundamentar uma bibliografia acer-
um candomblé na avenida!”. 9 João do
ca do universo religioso afro-brasileiro,
Rio, em suas crônicas nos jornais cario-
era incipiente. Por outro lado, até essa
cas do início do século XX, descreve os
década, tudo o que se publicava sobre
babalorixás, babalaôs e feiticeiros como
umbanda era vendido. O que comprova-
indesejáveis habitantes da “cidade de
va que a pouca visibilidade dada ao can-
alma encantadora” do Rio de Janeiro.10
domblé, até quase os anos de 1970, foi
Também o Diário de Notícias, o Diário
de fato uma estruturação política, estri-
da Bahia , o Jor nal de Notícias , o Correio
tamente relacionada a um modelo de
da Bahia , O Republicano , A Bahia, o Cor-
evolução e civilidade europeizante. Vale
reio da Tarde , a Gazeta do Povo , todos
lembrar que isso não significa que o can-
publicações da Bahia, noticiaram, ainda
domblé e outros modelos religiosos va-
em finais do século XIX, a prisão de sa-
riantes deste não tenham jamais sidos
cerdotes, a apreensão de materiais de
citados na imprensa anterior a essa épo-
culto, o resgate de noviços, engrossan-
ca. Pelo contrário. No jornal Oito Horas
do, assim, o número de publicações em
– Jornal da Noite, numa matéria
impresso que viam o candomblé como
intitulada “No mundo misterioso da man-
coisa imprópria e passível de repreen-
dinga e do feitiço”, de autoria de
são. 11
Vagalume, publicada em 11 de janeiro
de 1932, no Rio de Janeiro, o renomado As décadas de 1930 e 1940 foram
babalorixá Cipriano Abedé ocupava meia marcadas pelos auspícios da escola so-
página daquela publicação para falar ciológica brasileira, influenciada pelos
sobre os cultos afro-cariocas. No Estatu- ideais moder nistas brasileiros e pela te-
to do culto africano , publicado em 25 de oria culturalista norte-americana (antro-
abril de 1913, também há referência ao pologia urbana), assim como pela entra-
candomblé praticado no Rio de Janeiro da definitiva de ideais psicologistas na
do começo do século XX. Na Revista da
7
ciência e literatura. Esse período, deter-
Semana de 1º de setembro de 1907, sob minado pela divisão de um Brasil indus-
o título de “Um feiticeiro mal afamado, trializado, urbanizado e, por isso, moder-
notícia de prisão de Horácio José no em contraposição a um Brasil agrário
Pacheco” , seção policial, via-se a espe- e oligárquico, traz à tona a efervescência

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R V O

do debate sobre tradição versus iniciação, causou muita polêmica no


moder nidade, que terá como resultado meio religioso afro-brasileiro, por conta
o incremento das investidas de persegui- da exposição dos segredos e interditos
ção aos templos religiosos afro-brasilei- do culto massificados pela e na mídia.
ros. Por isso, para além do candomblé Uma das recém-iniciadas se suicidaria
despontar nos registros e noticiários po- um ano mais tarde, outra seria interna-
liciais, mais uma vez constará da produ- da num hospital psiquiátrico e a mãe-de-
ção literária científica, que ora estabele- santo, de nome Risa, seria apedrejada e
ce métodos de investigação para delimi- assassinada, também um ano depois.
tar um genuíno campo religioso afro-bra- Seis anos mais tarde, a Empresa Gráfica
sileiro; ora busca fundamentar uma teo- O Cruzeiro resolveu publicar a matéria,
ria que estabeleça métodos comparati- agora, em forma de livro. Intitulado Can-
vos entre os dicotômicos elementos e domblé , contou com sessenta fotografi-
sistemas rituais que compõem esse cam- as e eximiu-se do impacto do título da
po em oposição aos ideais de matéria originária. Para tanto, dispôs-se
moder nidade (bantus versus nagôs, ma- a trocar o sensacionalismo e o
gia versus religião, sincretismo versus popularesco da matéria publicada na re-
hegemonia, degeneração versus supre- vista por um tratamento etnográfico e
macia); ora tenta legitimar uma teoria c l á s s i c o . 2 3 Tal fato revela que, já nos
explanatória e interpretativa acerca do idos de 1950, a vulgarização e
original e complexo sistema religioso clicherização de temas relacionados ao
afro-brasileiro. Nessa esfera, incluem-se candomblé – corroborando uma visão
os trabalhos de Artur Ramos, 12
Manuel pejorativa e preconceituosa desde há
Querino, 13
Ruth Landes, 14
Donald muito tempo utilizada – passaria a ser
Pierson, 15
Édison Carneiro, 16
René Ribei- combatida em prol de um discurso em
ro, 17
Waldemar Valente, 18
Gilberto benefício das religiões afro-brasileiras,
Freyre, 19
Nunes Pereira, 20
Melville que deveria ser configurado por meio de
Herskovits 21
e Roger Bastide, 22
alguns, uma linguagem etnográfica, científica e
mesmo, realizados em período anterior, erudita, demovendo essas religiões de
mas somente publicados após a década um lugar vulgarizado e atribuindo-lhes o
de 1930. estatuto de objetos de ciência, tema
merecedor de rigor e respeito.
Em 1951, a revista O Cruzeiro publicou
uma matéria intitulada “As noivas dos A vinda de respeitados iyalorixás e
deuses sangüinários”. Realizada por José babalorixás, ainda na década de 1940,
Medeiros, um dos fotógrafos mais respei- da Bahia para o Rio de Janeiro – entre
tados à época, a matéria, composta por estes, Iyá Davina (do Ilê Ogunjá), Seu
38 chocantes fotografias do processo de Joãozinho (da Goméia) e Seu João

Acervo, Rio de Janeiro, v. 16, n o 2, p. 63-88, jul/dez 2003 - pág. 69


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Lessengue (do Bate-Folha) –, foi funda- é somente na década de 1980 que seus
mental para a popularização do candom- trabalhos receberam publicações comer-
blé para além dos meios impressos. João ciais ou, quando não publicados, divul-
Lessengue difundiu um modelo de can- gação tanto entre pesquisadores como
domblé “mais chique”, com ogãs trajan- entre integrantes das religiões, que fa-
do paletó e gravata e com um serviço de rão desses autores referências nos estu-
comida estranho à cozinha dos orixás dos de uma antropologia das religiões
(como hoje se vê nos terreiros cariocas afro-brasileiras tanto quanto seus mes-
e paulistas: arroz, feijão, maionese, fa- tres. Hubert Fichte, 27 Vivaldo da Costa
rofa, assados). Esses líderes religiosos, Lima, 28 Claude Lépine,29 Jean Ziegler,30
sobretudo o babalorixá Joãozinho da Beatriz Góis Dantas,31 Márcio Goldman, 32
Goméia, também contribuiriam para Rita Segato, 33 Ordep Serra,34 José Jorge
promover a divulgação e a difusão do can- de Carvalho,35 José Flávio Pessoa de Bar-
domblé na mídia brasileira e internacional. ros, 3 6 Maria Lina Leão Teixeira,3 7 Patrí-
c i a B i r m a n , 3 8 Raul Lody, 3 9 Reginaldo
Mas é, sem dúvida, com a publicação, P r a n d i , 40 Júlio Braga, 4 1 Monique
por Pierre Verger, do livro Orixás : deu- Augras, 42
Vagner Gonçalves da Silva,4 3
ses iorubás na África e no Novo Mundo, Sérgio Ferreti, 44 Waldenir Araújo,45 Ma-
em 1981, 24 que a bibliografia sobre reli- ria do Carmo Brandão, 46 Mariza Soares,47
giões afro-brasileiras tomará impulso. Maria Amália Barreto,48 Ismael Giroto,49
Desde a década de 1970, um novo per- Stefania Capone, 50 entre outros, compo-
curso na produção literária científica rão vasta bibliografia sobre as religiões
sobre o universo religioso afro-brasilei- afro-brasileiras, dando o fôlego necessá-
ro, influenciado pela antropologia e pelo rio para que a literatura acerca dessas
estruturalismo franceses, vinha tomando religiões não se restringisse à fala de fora
tônica. Assim como Ver ger, que desde a para dentro, mas também à produção
década de 1950 produzia ensaios sobre dos próprios integrantes dos terreiros;
as relações entre for mas religiosas na nesse sentido, de dentro para fora, po-
África e no Brasil, muitos desses auto- rém, ainda assim, legitimada pela auto-
res começaram os seus estudos sobre as ridade acadêmica, através de uma peque-
religiões de origem africana no Brasil em na introdução, apresentação, resenha ou
tempo bastante anterior, no mais das qualquer outra sorte de texto.51 Nesse
vezes, através de uma aproximação (pes- caso, merece destaque a publicação dos
soal, profissional, acadêmica ou intelec- livros e artigos dos babalorixás e
tual) com autores tidos como referênci- ialorixás Stella de Azevedo, Beata de
as nos estudos das religiões afro-brasi- Yemonjá, Sandra Epega, Manuel Papai,
leiras. Esse é o caso de Juana Elbein dos Euclides Ferreira, Mestre Didi e do oluô
Santos 25 e Giselle Cossard Binon. 26 Mas (consultor do oráculo) Agenor Miranda. 52

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A umbanda, por sua vez, nem precisaria os ideais de um projeto de moderniza-


da academia e de sua produção científi- ção, industrialização e nacionalização
ca para legitimar-se como religião, de brasileira. Com isso, constituiu-se como
fato, nacional. Devido à íntima similari- religião moderna e brasileira em
dade com as práticas kardecistas (que contraposição à “selvageria”, ao “barba-
teve nos livros O livro dos espíritos , O rismo” e ao “atraso” embutidos nas reli-
livro dos médiuns e O evangelho segun- giões africanas cultuadas no Brasil, o
do o espiritismo , suas leis e princípios), candomblé. Significou, assim, o branque-
caracterizar-se-ia pela estrita familiarida- amento e a purificação, com doses de
de com a produção textual. Surge na civilidade, das religiões negras, tidas
década de 1920, no Rio de Janeiro, sob como crenças inferiores. Vale lembrar

Uma das imagens registradas por José Medeiros para a polêmica matéria publicada pela revista
O Cruzeiro. José Medeiros, Candomblé, Empresa Gráfica O Cruzeiro, Rio de Janeiro, 1957.

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A C E

que os muitos projetos de formulação de Umbanda , publicado pelo Órgão Notici-


uma identidade nacional, nesse momen- oso e Doutrinário da União Espírita de
to proposto pelo movimento moder nista Umbanda, órgão oficial da União
no Brasil, encontrarão eco na boa acei- Espiritista do Brasil, que, desde a déca-
tação da umbanda, com seus modelos da de 1930, já publicava pequenos im-
europeizados – práticas kardecistas, per- pressos, sob a presidência do sr. Jayme
sonagens europeus (as pombagiras espa- Madrugada. Já recheado de anúncios re-
nholas, as ciganas romenas...) – e seus ligiosos, o candomblé, aqui, ainda não
traços de brasilidade, com a valorização era referido. Magia negra, macumba e
de elementos estritamente nacionais – os quimbanda eram, até esse momento, os
caboclos, os sertanejos (boiadeiros), os ter mos mais recorrentes na literatura
ex-escravos (pretos-velhos) e as crianças sobre religiões afro-brasileiras.
(mariazinhas e pedrinhos) – aberta à toda Tanto como o candomblé, a umbanda, a
sorte de fiéis, dispersos por todo o terri- partir da década de 1970, também terá
tório nacional. Para eficácia desse em- seu apogeu como objeto de investigação
preendedor projeto de expansão e no círculo acadêmico.53
universalização da umbanda, impressos
Para José Beniste, é a “invenção de enti-
(jor nal e livro), radiofonia e discografia
dades” (a criação de novas divindades)
foram veículos essenciais.
que provocará a queda na venda de pe-

O primeiro livro sobre a umbanda data riódicos sobre a umbanda. Foram tantas

de 1933. Sob o título de A magia e as entidades e tantas publicações que, em

sete linhas de umbanda , Leal de Sousa analogia à efemeridade dos produtos

publicava, pela Oficina Gráfica Liceu de midiáticos, o êxito da umbanda entra em

Artes e Ofícios, do Rio de Janeiro, sua declínio. O sucesso obtido com a publi-

coletânea de uma série de matérias cação do livro Orixás , de Pierre Verger,

jor nalísticas que havia iniciado em 1917. decretaria o declínio total da venda de

Se os livros já eram registrados nessa impressos sobre umbanda e colocaria,

década de 1930, foi somente na de 1940 nesse momento, o candomblé como re-

que encontraríamos revistas ligião de fato nacional e, portanto, pas-

especializadas em umbanda. Mas já em sível de boa vendagem em material im-

1893, com a publicação do Dicionário presso.

quimbundo, ocorre a primeira menção da Vale, também, ressaltar a importância do


nomenclatura umbanda (relacionado à universo artístico (literatura ficcional,
arte ou magia de curar). Por volta de artes plásticas e fotografia) para a visibi-
1950, encontram-se expressivos regis- lidade das religiões afro-brasileiras. Aqui,
tros sobre a umbanda na imprensa bra- destacam-se as obras dos escritores Jor-
sileira. Entre estes, o Jornal da ge Amado, 54 Odorico Tavares, 55 Antônio

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R V O

Olinto 56 e Zora Seljan,57 dos artistas plás- mente o candomblé e a umbanda cario-
ticos Carybé, Mestre Didi e Rubem cas, data de 1946. Umbanda sagrada e
Valentim, e do fotógrafo Mário Cravo divina , de Paulo Gomes de Oliveira, vei-
Neto. culada pela Rádio Guanabara, no Rio de
Janeiro, era, na verdade, uma emissão
Mais recentemente, surgiram muitas pro-
destinada aos adeptos do kardecismo.
duções em impresso sobre o universo do
Por isso, o candomblé e a umbanda seri-
candomblé. Entre estas, os tablóides:
am modestamente tratados em meio aos
Orumilá, Orixás Africanos, Painel Cultu-
temas de interesse do programa. Em
ral . Mais que informativos sobre mode-
1950, na mesma emissora, surge o pro-
los religiosos, configuraram-se como in-
grama de J. B. de Carvalho, sob o título
formativos sobre eventos e acontecimen-
de Ronda da mata . Carvalho dirigirá um
tos religiosos e sociais relacionados à
programa radiofônico sobre MPB. Sendo
vida dos terreiros: festas, obrigações...
adepto da umbanda, infiltra na progra-
Além, é claro, do enor me espaço desti-
mação músicas e cânticos das religiões
nado à publicidade de artigos e serviços
afro-brasileiras, obtendo, já naquela oca-
religiosos. Por isso, foram vendidos e
sião, grande sucesso de audiência.
distribuídos tanto em bancas de jornais
como em casas de artigos religiosos. Átila Nunes criará por volta de 1948 uma
outra emissão radiofônica que, mesmo
N AS ONDAS DO RÁDIO
não sendo especificamente uma emissão

E
m 1937, à época do II Congres- de umbanda (era um rádio-baile), inse-
so Afro-Brasileiro, a Rádio PRF8, ria, vez por outra, uma cantiga de
de Salvador, realizou uma trans- umbanda acompanhada de cavaquinho
missão radiofônica, especialmente enco- e pandeiro, num momento em que ain-
mendada ao babalorixá Joãozinho da da não existiam discos de umbanda. É
Goméia, que, acompanhado de um gru- somente em 1952, com o programa Me-
po de filhas-de-santo, cantou, ao vivo, lodias de terreiro , que Átila Nunes criará
músicas religiosas dos terreiros. A trans- sua emissão radiofônica especialmente
missão alcançou grande sucesso e trou- dedicada à umbanda.
xe à tona o debate sobre a
O primeiro programa sobre candomblé
dessacralização dos cânticos sagrados –
veiculado por uma emissora de radiodi-
mal sabendo, seus interlocutores, que
fusão chamou-se A hora do candomblé ,
anos mais tarde esses mesmos cânticos
de Roiosan, filho do renomado
seriam registrados em discos em vinil e,
babalorixá Tata Fomotinho, na Rádio
tempo depois, em compact disc (CD).
Metropolitana do Rio de Janeiro, já em
A primeira emissão radiofônica tratando 1968. Esse programa veiculava mais can-
as religiões afro-brasileiras, especifica- tigas (pontos e toques) que propriamen-

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te infor mações. Em 1970, José Beniste, ência do programa toma impulso. A po-
na Rádio Rio de Janeiro, inaugurou o lêmica em torno da sucessão do
programa Umbanda no seu lar . Propunha- babalorixá foi pauta da programação, o
se a quebrar a regra de veicular apenas que lhe deu uma audiência fenomenal.
pontos e cantigas e, assim, inaugurou um A inclusão de debates com babalorixás,
projeto de divulgação cultural sobre a ialorixás e personalidades do universo
religião através do rádio. Ocupando a religioso também foi importante fator
programação de uma rádio kardecista, para o sucesso do programa. Depois, em
Beniste não pôde utilizar a nomenclatu- 1973, a cargo do Programa cultural afro-
ra candomblé no título de seu programa. brasileiro, Beniste transfere-se, sucessi-
Nessa emissora, o programa sobreviveu vamente, para a Rádio Roquette Pinto,
por 16 anos. Com a morte do babalorixá Rádio Rio de Janeiro, Rádio Solimões e
Joãozinho da Goméia, em 1971, a audi- Rádio Tropical, onde permanece até hoje

Cartaz de divulgação da comemoração pelos 10 anos de um dos muitos programas radiofônicos sobre
candomblé.

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com o mesmo programa. José Ribeiro candomblé carioca perder o seu mais
também inaugurará várias emissões controverso programa de rádio.
radiofônicas, que, contudo, terão vida
A compra de emissoras brasileiras de
curta, devido ao alto custo da permanên-
radiodifusão por grupos evangélicos,
cia da emissão e à baixa procura de
também colaboraria para o atual
anunciantes. Entretanto, sua ativa parti-
insucesso dos programas de rádio sobre
cipação em muitos programas
religiões afro-brasileiras.
radiofônicos, assim como em emissões
televisivas, o tor nará um dos mais con-
S OM , GRAVANDO : IMAGEM E SOM DO
ceituados “candomblecistas” nas déca-
CANDOMBLÉ NO CINEMA , NA TV E NA
das de 1960 e 1970.
FONOGRAFIA

N
Em 1973, os babalorixás Guilher me
o cinema, as primeiras cita-
d’Ogum e Marcelo d’Oxossi criariam uma
ções às religiões afro-brasilei-
nova emissão radiofônica sobre o culto
ras, como tema central, item
dos orixás. Por dentro do candomblé ,
de assunto mais geral e abrangente ou
iniciado na Rádio de Janeiro, seguiu para
mesmo como cenário, foram verificadas
a Rádio Metropolitana e depois para a
a partir da década de 1940, por meio das
Rádio Bandeirantes. Anos mais tarde (na
produções da Atlântida carioca na bus-
década de 1980) transfor mou-se em
ca por temas e assuntos brasileiros. Sam-
emissão televisiva veiculada pela TV
ba em Berlim , 58 Berlim na batucada, 5 9
Record, mas não chegou a comemorar o
O cortiço , 60 Amei um bicheiro , 61 Terra
primeiro aniversário. Além dos muitos
violenta 62 (inspirada em obra de Jorge
festivais de cantigas de umbanda e das
Amado), Estrela da manhã 63 (com rotei-
premiações de radialistas e personalida-
ro de Jorge Amado) são produções que
des do candomblé, livros também seri-
podem ser citadas como instrumentos
am lançados pelos babalorixás radialis-
para a elevação do imaginário negro bra-
tas (entre esses, Elebó e Iansã do Balé).
sileiro pela produção cinematográfica na-
Em 1974, o babalorixá Luís de Jagun cional. Claro está que desse imaginário
criou um programa radiofônico, O des- fazia parte a exaltação às religiões afro-
pertar do candomblé, veiculado pela brasileiras e ao negro brasileiro como
Rádio Tamoio do Rio de Janeiro, que se sujeito místico. A inauguração de um mo-
centrava na vida ordinária dos terreiros, vimento cinematográfico que se propu-
nos acontecimentos sociais e festivida- nha a refletir o desenvolvimento indus-
des, com a popularíssima Xica Xoxa, que trial de São Paulo e equiparar-se às gran-
tratava as gafes e trivialidades do mun- de produtoras cinematográficas norte-
do do povo-do-santo. A morte do americanas, aos moldes dos estúdios de
babalorixá, em 1977, fez o universo do Hollywood, pela Companhia Vera Cruz,

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fez produzir o longa Sinhá moça , 64 que negro , 75 As filhas de Yemanjá , 76 Feitiço
viria a se somar às produções cinemato- no Rio , 77 O prisioneiro do Rio , 78 Noite
gráficas que revelariam a história do ne- maldita , 79 O mistério da ilha de Vênus
gro no Brasil e, por extensão, a cultura e (que tem como título original Macumba
religiões afro-brasileiras. Na segunda love ), 80 Um dia a casa cai 81
e, finalmen-
metade da década de 1950, são produ- te, It’s all true , 82
o inacabado clássico
zidos Rio 40 graus, 65
Rio Zona Norte , 66
de Orson Welles, acusado de “abusar do
Ossos, amor e papagaio . 67
Mas é, sem uso de imagens de miséria nas favelas e
dúvida, a partir da década de 1960, com de rituais de macumba”, 83 Alô Amigos 84
a consolidação do Cinema Novo e o e Você já foi à Bahia? , 85 além, é claro,
surgimento do fenômeno cinematográfi- de toda a produção em que Car men
co baiano, caracterizado pela produção Miranda participa, com sua tradicional
de filmes que tomam a Bahia como ce- vestimenta de baiana – inspirada, em
nário (quer produzidos por baianos, quer parte, na indumentária dos terreiros.
produzidos por sulistas), que as religiões
Na onda de documentários, encontra-
afro-brasileiras tornar-se-ão tema central
mos: Ilê Aiyê : a casa da vida, produzido
nas produções cinematográficas brasilei-
por David Byrne, vocalista do grupo de
ras. O pagador de promessas , 68 inspira-
pop rock Talking Heads; O poder do
do em peça escrita por Dias Gomes e
machado de Xangô , realizado ainda na
ganhador da Palma de Ouro em Cannes,
década de 1970 por Pierre Verger e exi-
Bahia de todos os santos, 69 Barravento, 70
bido como produto do Globo Repórter da
que marca a estréia, em 1961, de
TV Globo; Yaô , de Geraldo Sar no; Espa-
Glauber Rocha no cinema brasileiro, A
ço sagrado, do mesmo diretor; Egungun ,
deusa negra , 71 O amuleto de Ogum , 72
de Carlos Brajsblat; Arte sacra negra I e
Tenda dos milagres , 73 Jubiabá, 74 retra-
II (Orixá Ninu Ilê e Iya Mi Agbá) , de Juana
tarão as religiões afro-brasileiras, suas
Elbein dos Santos; Bahia de todos os
práticas rituais, suas tradições e o estilo
santos , produzido pelo mesmo Globo
de vida do povo-do-santo, criando, nes-
Repórter.
se momento, a primeira quebra de
estranhamento da sociedade abrangente Na televisão, a presença do exu Seu Sete

para com essas religiões. Rei da Lira, incorporado pela mãe-de-san-


to Cacilda de Assis, nos programas do
Expressiva produção cinematográfica in- Chacrinha, da TV Globo, e de Flávio Ca-
ternacional, baseada em apelos do exó- valcante, da TV Tupi, os dois mais popu-
tico, primitivo, selvagem e erótico, dire- lares programas de auditório na década
tamente atrelados às relações de 1970 e, por isso, concorrentes, mar-
interétnicas e transnacionais (entre ca a aparição das religiões afro-brasilei-
“gringos” e brasileiros), realizará Or feu ras através de uma mídia de veiculação,

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de fato, nacional. A ditadura militar, na umbandistas, presidentes de federações,


época, chegou a suspender os dois pro- a se reunir para fundar um órgão central
gramas por conta da incorporação pelo de umbanda no Brasil, intitulado Conse-
Exu, levada ao ar em 1974. Foi o primei- lho Nacional Deliberativo da Umbanda.
ro grande escândalo envolvendo as reli- Propunha-se a repelir as oposições à
giões afro-brasileiras em meio televisivo. umbanda. O exu Seu Sete, lançando ca-
Por isso, foi implantada a censura na te- chaça no vídeo, paradoxalmente popu-
levisão à aparição das religiões afro-bra- larizaria essas religiões por meio do veto
sileiras, o que levou um grupo de ditatorial (militar) à liberdade de expres-

Cartaz do filme O pagador de promessas, que tratava a sincretização entre o candomblé e o catolicismo,
baseado em peça teatral escrita ainda na década de 1950. Site pagadorpb.jpg.
Origem: http://www.adorocinemabrasileiro.com.br/filmes/pagador-de-promessas.

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são, até mesmo religiosa ou mágica. babalorixá Ogum Jobi, foi uma dessas.
Após surgir como programa radiofônico,
Também no programa do Chacrinha, da
Reflexão foi, na década de 1990, trans-
TV Globo, assistiu-se a popularização da
formado em programa televisivo exibido
figura da ialorixá Menininha do Gantois,
pela TV Bandeirantes, sob a direção do
através da música Oração à Mãe Menini-
babalorixá Josemar d’Ogum. Até o ano
nha , composta por Dorival Caymmi e in-
de 2002, era exibido pela mesma emis-
terpretada por Gal Costa e Maria
sora sob o título de Alaketu .
Bethânia, e que, nas mãos de Chacrinha,
se transformará quase num jingle .
A simpatia de alguns autores de teleno-
Em 1976, surgiu o programa de Medeiros velas por essas religiões (criando perso-
do Vale, o primeiro programa sobre can- nagens freqüentadores de terreiros) tor-
domblé veiculado num canal de TV bra- na-se um fato corriqueiro, assumindo
sileiro. Nos caminhos da magia foi exibi- proporções aparentemente habituais, em
do pela TV Continental, com participa- um país com, ainda, inexpressivo núme-
ção de José Beniste e Átila Nunes. ro de pentecostais “eletrônicos”. Tais
fatos não somente revertiam-se num pro-
O Fantástico , revista semanal da TV Glo-
duto bastante lucrativo para seus produ-
bo, passaria a exibir, a partir da década
tores, pelo forte apelo popular junto à
de 1980, nos últimos programas de cada
classe média, como também tornavam-
ano, as previsões para o ano seguinte,
se convenientes para a criação de uma
sempre contando com a presença de um
identidade política impulsionada por um
babalorixá. Em 1985, a minissérie Ten-
fenômeno de reafricanização e
da dos milagres , da TV Globo, alcança
revalorização das manifestações cultu-
grande sucesso de público. Em 1990, é
rais afro-brasileiras, importante ponto
a vez de outra minissérie: Mãe-de-santo ,
para a validação do discurso do movi-
produzida pela TV Manchete.
mento negro organizado brasileiro. Em
O Domingão do Faustão, programa sema-
fevereiro de 2001, estréia, na TV Globo,
nal exibido pela mesma TV Globo, a par-
a telenovela Porto dos Milagres , 86 con-
tir da década de 1990, sempre teria,
tando a história de um pescador baiano,
entre vários consulentes que previam a
ogã num terreiro de um pequeno povoa-
vida de um artista ou cantor televisivo,
do litorâneo, e sua crença e fé em
a presença de um babalorixá ou ialorixá.
Iemanjá, a deusa do mar. Inspirada em
A partir dessa última década, surgem as duas obras literárias do escritor baiano
emissões televisivas que tratavam religi- Jorge Amado, Porto dos Milagres popu-
ões afro-brasileiras, apresentadas, cons- larizará a saudação à Iemanjá – Odô Iyá
tantemente, por babalorixás e ialorixás – através da canção Caminhos do mar ,
brasileiros. By Africa , apresentado pelo composta por Dorival Caymmi e interpre-

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tada por Gal Costa. Porto dos Milagres gravação e lançamento das canções con-
promoverá, também, o debate em torno correntes em festivais de umbanda, as-
da participação de atores e personagens sim como a expressiva produção em vi-
negros na televisão brasileira, assim nil e fita cassete para comercialização em
como apresentará o acirrado veto das lojas de artigos religiosos (material para
religiões pentecostais tanto à atração umbanda e candomblé) também são for-
quanto a toda a programação da Rede tes contribuintes para a popularização
Globo de Televisão. 87
dessas religiões fora de seu círculo. Para
isso, contribuiria ainda: o LP gravado
A indústria fonográfica foi notadamente
pelo babalorixá Luís da Muriçoca; o LP
representada pela cantora Clara Nunes,
gravado por Joãozinho da Goméia; o LP
que imortalizou as religiões afro-brasilei-
gravado por Mãe Menininha, Ebômi Mar-
ras e suas divindades em seus discos e
garida e outras ebômis do Gantois; o LP
canções. Contudo, é a década de 1930
com a coletânea de cânticos do candom-
a demarcadora para o ingresso dos
blé organizada por Candeia; Odum Orím ,
cânticos religiosos afro-brasileiros em
CD do Grupo Ofá (composto por integran-
registros fonográficos. A Missão de Pes-
tes do Terreiro do Gantois) e produzido
quisas Folclóricas do Departamento de
por Caetano Veloso; o CD Ilê Omi Ojuarô
Cultura da Prefeitura de São Paulo, co-
(do Terreiro de Mãe Beata d’Iyemanjá);
ordenada por Mário de Andrade, em
o CD em fase de elaboração, produzido
1938, renderia uma série de gravações,
por integrantes do Ilê Omolu Oxum (ter-
que constituiriam as coleções
reiro dirigido por Mãe Meninazinha
etnográficas or ganizadas por Oneyda
d’Oxum); o CD gravado pelo ogan Luís
Alvarenga. João da Baiana e Sussu, em
Bambala (também em fase de produção);
1957, gravariam o long play (LP) Batu-
o CD Ipadê gravado por integrantes de
ques e pontos de macumba , com oito
um terreiro paulistano sob a direção do
músicas em homenagem às divindades
ogan Gilberto de Exu; o CD Candomblé
afro-brasileiras. Pixinguinha, no LP Gen-
de Angola: musique rituel afro-
te da antiga , gravado em 1970, em par-
brésilienne; o CD The yoruba-dahomean
ceira com Clementina de Jesus e o mes-
colllection: orishas across the ocean; o
mo João da Baiana, imortalizou a can-
CD Cânticos dos orixás de candomblé ,
ção Yaô . O cantor Rui Maurity, assim
do babalorixá Carlinhos d’Oxum.
como os cantores e compositores
Toquinho, Vinícius de Moraes e Gilberto A importância dos enredos de escolas de
Gil foram, também, importantes perso- samba, outro fator importante para a
nagens para a produção e popularização promoção e difusão das religiões de ori-
dos cânticos afro-brasileiros na produção gem africana no Brasil, merece destaque.
em vinil, ainda na década de 1970. A Mas foi, essencialmente, por meio da

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fenomenal vendagem dos discos de sam- dústrias editorial, radiofônica, cinemato-


ba de enredo que, de fato, a gráfica e televisiva das religiões afro-bra-
popularização dessas religiões e de suas sileiras. Contribuiu, também, para a
divindades ocorrerá. A MPB, aliás, foi reelaboração do universo religioso afro-
importante instrumento para essa divul- brasileiro, no momento em que a
gação. Mais recentemente, vale lembrar veiculação de infor mações sobre méto-
o sucesso alcançado com Milagres do dos de culto, indispensáveis à boa reali-
povo , de Caetano Veloso, e, pouco mais zação dos eventos rituais e estruturantes
tarde, Caminhos do mar , composta por do sistema hierárquico dos terreiros, pro-
Dorival Caymmi e interpretada por Gal porcionou novas possibilidades de apren-
Costa. Temas de abertura de uma dizado litúrgico e de transmissão e ar-
minissérie e de uma telenovela, respec- quivo (agora, digital) das tradições reli-
tivamente, exibidas pela maior emisso- giosas afro-brasileiras. Bom exemplo dis-
ra do país, tais músicas estiveram entre so é a construção dos sites de quatro tra-
as cinco mais tocadas pelas emissoras dicionais terreiros de candomblé: o Ilê
de rádio no Brasil. O tímido sucesso das Omolu Oxum, o Ilê Axé Opô Afonjá, o
cantoras Vir gínia Rodrigues, com o CD Gantois e a Casa de Oxumarê. Todos com
Nós, e Inaicyra Falcão dos Santos, a finalidade de divulgar o patrimônio his-
com o CD Okan Owa , que deram nova tórico e a tradição daqueles terreiros (fo-
roupagem (lírica) para os cânticos re- tografias de antigos integrantes, esclare-
ligiosos dos terreiros, de tradição cimentos sobre a religião, textos com a
bantu e iorubá, foi outro acontecimen- história dos terreiros, descrição de mi-
to da atual década. tos). Os três primeiros terreiros construi-
riam pequenos museus memoriais, ten-
W EB - TERREIROS , ORIXÁS ON LINE : O
tando preservar objetos da cultura ma-
CANDOMBLÉ DIGITAL E VIRTUALIZADO
terial dos terreiros, além de proporcio-

A
aparição do candomblé na nar acesso à história dos terreiros e
grande rede mundial de com- das religiões a pesquisadores e inte-
putadores, a Internet, através ressados.
de suas comunidades virtuais ( sites , A democratização dos segredos e inter-
chats, 88 mailing lists89 sobre temas rela- ditos de culto ( orô e ewò ), através do
cionados ao universo religioso afro-bra- sistema ciberinformacional, não somen-
sileiro), propagou-se a partir da metade te contribuiu para a [re] elaboração das
da última década. Sob a égide da demo- redes de solidariedade e das relações de
cratização do conhecimento, proporcio- p o d e r, privilégio e prestígio,
nou uma real publicização e usurpação estruturantes do universo religioso afro-
dos segredos de culto, que já vinham brasileiro (o que pode ser visto como um
tomando vulto desde a invasão pelas in- problema). Mas proporcionou, também,

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a criação de uma nova rede de sociabili- pobres, excluídos, desprivilegiados e


dade, construída através da substituição minorias (e, por isso, religiões de exclu-
do terreiro real pelo terreiro virtual (tan- são), transformam-se em religiões para
to no Brasil como no exterior) e da arti- todos, religiões para o mundo, religiões
culação entre as mais diversas religiões universais (e, portanto, religiões de in-
afro-derivadas espalhadas pelo mundo – clusão).
caracterizando uma rede de solidarieda- Se, nos terreiros, quer entre adeptos,
de, agora, conectada entre “gringos” e pesquisadores ou simpatizantes, o espa-
minorias (americanos, italianos, france- ço para a discussão dos assuntos relaci-
ses, brasileiros, cubanos, nigerianos, onados ao culto era interditado aos lei-
haitianos...), religiões afro-brasileiras e gos (não-sacerdotes), na academia esse
religiões afro-derivadas (candomblé, espaço circunscrevia-se à rede de inte-
umbanda, lukumi, santeria, vodu, ifá, lectuais e profissionais do conhecimen-
palo, gaga...). Dessa for ma, religiões to – o que, quer num caso, quer noutro,
antes tidas como religiões de negros, excluía curiosos e interessados leigos do

Imagem do “dia do nome”, uma das muitas divulgadas nos sites e nas mailing lists sobre candomblé na
Internet. O “dia do nome” é o ápice do complexo ritual de iniciação dos terreiros.
Foto: autor desconhecido.

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campo de discussão. A Inter net, pois, permanente estágio de experimentação


proporcionou a construção de um espa- e de aprendizado sistemático, apreendi-
ço aberto à discussão e debate, antes dos no cotidiano dos terreiros, além de
restrito, única e exclusivamente, ao es- extinguir a noção de pertencimento a
paço do terreiro ou da academia. Per mi- uma rede real solidária, edificante da
tiu à “elite excluída” (for mada por um estruturação da religião e culto de orixás
seleto grupo de usuários que podem ter no Brasil.
acesso às novas tecnologias de comuni-
Dessa for ma, a idéia de uma rede real
cação e infor mação) espaço e tempo
solidária, instauradora das comunidades-
para se organizarem em tor no do secre-
terreiro reais, vai sendo substituída por
to debate sobre as formas religiosas afro-
uma rede virtual ( net ), dando origem às
brasileiras. Exclui, contudo, os que não
puderam arcar com as despesas do aces-
web-terreiro communities ou, ainda, às
comunidades-terreiro virtuais. A substi-
so ou do conhecimento para acesso (do-
tuição do terreiro real pelo terreiro vir-
mínio da tecnologia e de língua estran-
tual contribui para eliminar o enfadonho
geira) – parcela essa representativa da
deslocamento até os terreiros reais, si-
maioria dos integrantes dos terreiros re-
tuados, majoritariamente, nas periferias
ais. Nesse sentido, o debate em torno
das grandes metrópoles brasileiras (fato
da democratização versus a elitização do
fundamentalmente importante para os
saber ritual, apregoado desde os
adeptos fora do Brasil), assim como para
primórdios da indústria editorial voltada
anular o tempo para aprendizado das or-
para o universo religioso afro-brasileiro
todoxias, eliminando o rígido sistema hi-
(que se destinava, apenas, aos que sabi-
erárquico dos terreiros reais (o número
am ler ou detinham o poder de consu-
de não-iniciados é bastante expressivo
mo, o que no caso das religiões afro-bra-
nas mailing lists ). Essa rede ( net ) possi-
sileiras eram a minoria), é, mais uma vez,
bilita o surgimento de novas for mas de
retomado.
religiosidade e conteúdos, caracterizadas
Caracterizada como um espaço autôno- por um novo mercado de bens simbóli-
mo, a Inter net transforma-se em campo cos e materiais, por meio dos inúmeros
privilegiado para o exercício de poder, sites para compra de produtos necessá-
privilégio e prestígio, estruturantes das rios ao culto e da oferta dos serviços
hierarquias religiosas – antes restritos mágico-religiosos. Contribui, também,
aos altos cargos dentro da ordem para diferenciar os integrantes dos ter-
postulante do terreiro ou da academia, reiros virtuais dos integrantes dos terrei-
mas, agora, sob a égide do sentimento ros reais, formando uma rede “segura”
de pertença a uma rede virtual. O que de sociabilidade, concretizada por afini-
nos permite entender a desaparição do dades econômicas e intelectuais.

pág. 82, jul/dez 2003


R V O

A ciberinfor matização do candomblé é tária, turística e fonográfica), mas tam-


importante, outrossim, para a [re] bém virtualizada, através da
territorialização das diásporas brasilei- espetacularização e melodramatização
ras, assim como para a publicização de dessas religiões e de seus rituais de tran-
uma imagem identitária do Brasil no ex- se, sacrifício e magia. O que faz com que
terior – agora não somente midiatizada religiões centradas na tradição oral, após
e fortalecida pelos atributos do exótico, conhecerem os benefícios da literatura,
místico, exuberante e primitivo (através da radiofonia e do audiovisual, possam
das indústrias cinematográfica, publici- conhecer os benefícios do espaço virtu-

Mãe Meninazinha d’Oxum é ialorixá de um dos tradicionais terreiros brasileiros que possuem sites na
Internet. Foto: Tiago Quiroga.

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A C E

al, espaço da imagem-texto, espaço do transforma religiões antes tidas como


hipertexto, indicando-nos uma nova ex- brasileiras em religiões universais.
pressão religiosa – agora, não mais afro-
brasileira, mas afro-braso-diaspórica ou, Artigo recebido para publicação em
como prefiro, afro-brasileira global, que agosto de 2003.

N O T A S
1. Cf. Muniz Sodré, A verdade seduzida , Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1983, p. 120.

2. São os terreiros de candomblé ketu (nagô) os mais numerosos e populares no Brasil. Os


candomblés jeje (representados pelo jeje mina e o jeje mahi), menos numerosos, têm nos
últimos anos tido evidência. Os candomblés angola (bantu) já foram mais numerosos. Há
ainda os candomblés efon (nagô), ijexá (nagô), egbá (nagô) e outras tantas tradições, hoje
quase inexistentes. Mas pelo fato do candomblé ketu (nagô) ser a mais popular tradição de
matriz africana no Brasil, fala-se mesmo sobre uma possível “nagocracia” em detrimento das
tradições bantu e jeje. O sistema de práticas religiosas de origem africana, que, aqui, deno-
minamos candomblé, recebe diversas designações: xangô, tambor-de-mina, babaçuê, batu-
que etc. Por isso, por religiões afro-brasileiras, entendemos, aqui, toda a diversidade desse
complexo sistema ritual. A umbanda será, sempre que mencionada dentro do que designa-
mos religiões afro-brasileiras, exemplificada como caso à parte.

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3. Nina Rodrigues, L’animisme fetichiste des nègres de Bahia , Salvador, Reis & Comp., 1900.
4 Os africanos no Brasil teve a sua impressão iniciada em 1906, ano de falecimento do autor.
Mas foi somente em 1932 que sua primeira edição foi elaborada. Nina Rodrigues, Os africa-
nos no Brasil , São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1976.
5. Sílvio Romero, O evolucionismo e o positivismo no Brasil , Rio de Janeiro, Livraria Clássica
de Alvares & C., 1895.
6. Ver: Pierre Verger, Orixás : deuses iorubás na África e no Novo Mundo, Salvador, Corrupio,
1981; Nina Rodrigues, Os africanos no Brasil , op. cit.
7. Agradeço a valiosa contribuição do ogã do Ilê Axé Opô Afonjá, radialista, escritor e professor
José Beniste, que gentilmente me concedeu uma longa entrevista, em janeiro de 2002, além
de ter me revelado seu acervo sobre imprensa e religiões afro-brasileiras.
8. Cf. Mônica P. Velloso, As tradições populares na Belle Époque carioca , Rio de Janeiro, Funarte,
1988.
9. Cf. Nicolau Sevcenko, A revolta da vacina , São Paulo, Brasiliense, 1984, p. 69.
10. João do Rio (Paulo Barreto), As religiões no Rio, Rio de Janeiro, Editor Simões, 1951.
11. Cf. Nina Rodrigues, Os africanos no Brasil , op. cit., p. 239-250.
12. Arthur Ramos, As culturas negras no Novo Mundo , 4. ed., São Paulo, Companhia Editora
Nacional, 1979. A primeira edição data de 1934.
13. Manuel Querino, A raça africana e seus costumes, Salvador, Livraria Progresso, 1955.
14. Ruth Landes, The city of women , New York, Macmillan Company, 1947.
15. Donald Pierson, Negroes in Brazil : a study of race contact at Bahia, Chicago, University of
Chicago Press, 1942.
16. Edson Carneiro, Candomblés da Bahia , Salvador, Editora Museu do Estado da Bahia, 1948.
17. René Ribeiro, Religião e relações raciais , Rio de Janeiro, MEC/Departamento de Imprensa
Nacional, 1956.
18. Waldemar Valente, Sincretismo religioso afro-brasileiro , 3. ed., São Paulo, Companhia Edito-
ra Nacional, 1977.
19. Gilberto Freyre, Casa-grande e senzala , 18. ed., Rio de Janeiro, José Olympio, 1977.
20. Nunes Pereira, A casa das minas , 2. ed., Petrópolis, Vozes, 1979.
21. Melville J. Herskovits, Pesquisas etnológicas na Bahia, Afro-Ásia , n. 4-5, 1942.
22. Roger Bastide, O candomblé da Bahia , São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1978.
23. Para uma discussão sobre a mudança de tratamento dado a esse material, ver Fernando
Tacca, O feitiço abstrato, Cadernos da Pós-graduação , Campinas, Unicamp, Instituto de Ar-
tes, v. 3, n. 2, 1999.
24. Pierre Verger, op. cit.
25. O livro foi resultado da tese de doutorado em etnologia, apresentada pela autora em 1972,
na Sorbonne, onde foi aluna de Roger Bastide. Juana Elbein dos Santos, Os nagô e a morte,
Petrópolis, Vozes, 1988.
26. Giselle Cossard-Binon, além de pesquisadora, é, desde 1973, ialorixá (mãe-de-santo) no Rio
de Janeiro. Conclui em 1970 sua tese de doutorado na Sorbonne, intitulada Contribuition à
l’étude des candomblés au Brésil : la candomblé angola. Sobre a vida de Giselle, foi publica-
do, em 1998, Memoires de candomblé, de Michel Dion, Éditions L’Harmattan, Paris. O livro
foi editado no Brasil, em 2002, pela Pallas, do Rio de Janeiro. Giselle Cossard-Binon, A filha-
de-santo, in Carlos Eugênio M. Moura (org.), Olóòrìsà , São Paulo, Ágora, 1981.
27. Hubert Fichte, Etnopoesia : antropologia poética das religiões afro-americanas, São Paulo,
Brasiliense, 1987.
28. Vivaldo Costa Lima, A família-de-santo nos candomblés jeje-nagô da Bahia : um estudo de
relações intra-grupais, 1977, dissertação (mestrado em ciências humanas), Universidade Fe-
deral da Bahia, Salvador.

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A C E

29. Claude Lépine, Contribuição ao estudo de classificação dos tipos psicológicos no candomblé
ketu de Salvador, 1978, tese (doutorado em antropologia social), Universidade de São Paulo,
São Paulo.
30. Jean Ziegler, Les vivants et les morts , Paris, Seuil, 1977.
31. Beatriz G. Dantas, Vovó nagô, papai branco : usos e abusos da África no Brasil, Rio de Janei-
ro, Graal, 1988.
32. Márcio Goldman, A possessão e a construção ritual da pessoa no candomblé, 1984, disserta-
ção (mestrado em antropologia social), Museu Nacional/UFRJ, Rio de Janeiro.
33. Rita L. Segato, Santos e daimones : o politeísmo afro-brasileiro e a tradição arquetipal, Brasília,
UNB, 1995.
34. Ordep Serra, Águas do rei , Petrópolis, Vozes, 1995.
35. José Jorge Carvalho, Nietzsche e xangô, in Meu sinal está no teu corpo, São Paulo, Edicon/
Edusp, 1989.
36. José Flávio P. Barros, O segredo das folhas , Rio de Janeiro, Pallas, 1993.
37. Maria Lina L. Teixeira, Transas de um povo-de-santo : identidades sexuais no candomblé,
1986, dissertação (mestrado em ciências sociais), Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Rio de Janeiro.
38. Patrícia Birman, Fazer estilo criando gênero , Rio de Janeiro, Relume Dumará e Editora UFRJ,
1995.
39. Raul Lody, Tem dendê, tem axé , Rio de Janeiro, Pallas, 1992.
40. Reginaldo Prandi, Os candomblés de São Paulo , São Paulo, USP/Hucitec, 1991.
41. Júlio Braga, O jogo dos búzios : um estudo da adivinhação no candomblé, São Paulo,
Brasiliense, 1988.
42. Monique Augras, O duplo e a metamorfose , Petrópolis, Vozes, 1983.
43. Vagner Gonçalves Silva, Orixás da metrópole , Petrópolis, Vozes, 1995.
44. Sérgio F. Ferreti, Querenbentan de zomadonu, São Luís, EDUFMA, 1986.
45. Waldenir Araújo, Parentesco religioso afro-brasileiro do Grande Recife , 1977, dissertação
(mestrado em antropologia social), Museu Nacional/UFRJ, Rio de Janeiro:
46. Maria do Carmo Brandão, Xangôs tradicionais e xangôs umbandizados do Recife , 1987, Tese
(doutorado em antropologia social), Universidade de São Paulo, São Paulo.
47. Mariza de C. Soares, O medo da vida e o medo da morte , 1990, dissertação (mestrado em
antropologia social), Museu Nacional/UFRJ, Rio de Janeiro.
48. Maria A. Barreto, A Casa Fanti-Ashanti em São Luís do Maranhão , 1987, tese (doutorado em
antropologia social), Museu Nacional/UFRJ, Rio de Janeiro.
49. Ismael Giroto, O candomblé do rei , 1980, dissertação (mestrado em antropologia social),
Universidade de São Paulo, São Paulo.
50. Stefania Capone, La quête de l’Afrique dans le candomblé, Paris, Karthala, 1999.
51. Aqui, abrimos mão das inúmeras e importantes coletâneas publicadas nessas mesmas déca-
das sobre o candomblé. As coletâneas organizadas por Carlos Eugênio M. Moura merecem
atenção: Olóòrisà , São Paulo, Ágora, 1981; Bandeira de alairá , São Paulo, Nobel, 1982; Meu
sinal está no teu corpo , São Paulo, Edicon/Edusp, 1989; etc. As publicações do ISER – Insti-
tuto de Estudos da Religião (Religião e Sociedade ; Cadernos do ISER ; Comunicações do ISER ),
do CEAO – Centro de Estudos Afro-Orientais ( Afro-Ásia ) e do CEAA – Centro de Estudos Afro-
Asiáticos, também merecem destaque.
52. Vale ressalvar que muitos desses autores são tanto pesquisadores como integrantes das reli-
giões afro-brasileiras – alguns mesmo ialorixás (mães-de-santo) e babalorixás (pais-de-san-
to). Sobre as relações e fronteiras estabelecidas entre os universos acadêmico e religioso,
ver: Vagner Gonçalves Silva, Reafricanização e sincretismo: interpretações acadêmicas e
experiências religiosas, in Faces da tradição afro-brasileira , Rio de Janeiro, CEAO/Pallas/
CNPq, 1999; o livro de Mãe Stella, Meu tempo é agora, editado pela Oduduwa, de São Paulo,
em 1993; o livro de Mãe Beata, Caroço de dendê , editado pela Pallas, do Rio de Janeiro, em
1997; o artigo de Mãe Sandra Medeiros Epega, A volta à África: na contramão do orixá , publi-

pág. 86, jul/dez 2003


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cado em Faces da tradição afro-brasileira , op. cit. Seu Manuel Papai, babalorixá do tradicio-
nal Sítio do Pai Adão, e Seu Euclides, babalorixá da Casa Fanti-Ashanti, em São Luís, também
publicaram artigos após o IV Congresso Afro-Brasileiro, ocorrido em 1994, em Recife. O oluô
Agenor Miranda Rocha publicou, em 1999, pela Editora Pallas, do Rio de Janeiro, o livro
Caminhos de odu – organizado pelo professor da USP e antropólogo Reginaldo Prandi, com
anotações por ele realizadas através de encontros com sua venerável ialorixá, Mãe Aninha
do Axé Opô Afonjá. Mestre Didi, alapini do Axé Opô Afonjá, chefe do terreiro Ilê Asipà e filho
biológico da respeitada Mãe Senhora, publicou, em 1962, seu História de um terreiro nagô
[São Paulo, Max Limonad, 2. ed., 1988].
53. Renato Ortiz, A morte branca do feiticeiro negro , Petrópolis, Vozes, 1977; Yvonne Maggie,
Guerra de orixá , Rio de Janeiro, Zahar, 1977; Diana Brown, Umbanda : politics of an urban
religious movement, New York, Columbia University Press, 1977; Liana Trindade, Exu : sím-
bolo e função, 1979, tese (doutorado em antropologia social), Universidade de São Paulo,
São Paulo; são bons exemplos.
54. Quase todas as suas obras retrataram situações do universo religioso afro-baiano. Contudo,
é Tenda dos milagres o seu maior tratado sobre o candomblé da Bahia e seus líderes religio-
sos [São Paulo, Livraria Matins Editora, 1969].
55. Odorico Tavares, Bahia : imagens da terra e do povo, Rio de Janeiro, José Olympio, 1951.
56. Antônio Olinto, A casa da água , Rio de Janeiro, Bloch Editores, 1969.
57. Zora Seljan, História de Oxalá : festa do Bonfim, Rio de Janeiro, Edições de Ouro, 1964.
58. Dir.: Luiz de Barros. Brasil. 1943.
59. Dir.: Luiz de Barros. Brasil. 1944.
60. Dir.: Luiz de Barros. Brasil. 1945.
61. Dir.: Jorge Lleli e Paulo Wanderley. Brasil. 1952.
62. Dir.: Eddie Bernoudy. Brasil. 1948.
63. Dir.: Jonald de Oliveira. Brasil. 1938.
64. Dir.: Tonn Payne. Brasil. 1953.
65. Dir.: Nelson Pereira dos Santos. Brasil. 1955.
66. Dir.: Nelson Pereira dos Santos. Brasil. 1957.
67. Dir.: Carlos Barros e Cesar Junior. Brasil. 1957.
68. Dir.: Anselmo Duarte. Brasil. 1962.
69. Dir.: Trigueirinho Neto. Brasil. 1961.
70. Dir.: Glauber Rocha. Brasil. 1961.
71. Dir.: Ola Balogun. Brasil. 1977.
72. Dir.: Nelson Pereira dos Santos. Brasil. 1974.
73. Dir.: Nelson Pereira dos Santos. Brasil. 1979.
74. Dir.: Nelson Pereira dos Santos. Brasil. 1987.
75. Dir.: Marcel Camus. França. 1958.
76. Dir.: Pia Tikka. Finlândia. 1996.
77. Dir.: Stanley Donen. EUA. 1984.
78. Dir.: Lech Majewski. 1988.
79. Dir.: Humberto Lenzi. Itália. 1984.
80. Dir.: Douglas Fowley. EUA. 1960.
81. Dir.: Richard Benjamin. EUA. 1986.
82. Dir.: Orson Welles. EUA. 1942.
83. Sobre a construção da brasilidade no cinema estrangeiro, ver: Tunico Amâncio, O Brasil dos
gringos : imagens no cinema, Niterói, Intertexto, 2000.

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84. Dir.: Walt Disney. EUA. 1943.


85. Dir.: Norman Ferguson. EUA. 1944.
86. Porto dos Milagres estreou no dia 5 de fevereiro – três dias após as comemorações para
Iemanjá, homenageada no dia 2 de fevereiro. Foi criada a partir de uma adaptação livre (por
Aguinaldo Silva) de duas obras do escritor baiano Jorge Amado – Mar morto e A descoberta
da América pelos turcos. No ar por sete meses, contou com cerca de duzentos capítulos, nos
quais, quase sem exceção, o candomblé foi fortemente representado, quer fosse por meio
de suas divindades, da relação de fé de seus fiéis, da freqüência ao terreiro, do carisma da
mãe-de-santo, da mitologia dos orixás.
87. Sobre a presença do negro no cinema e na telenovela brasileira ver, respectivamente: João
Carlos Rodrigues, O negro brasileiro e o cinema , Rio de Janeiro, Pallas, 2001; Joel Zito
Araújo, A negação do Brasil , São Paulo, Senac, 2000.
88. IRC – Internet relay chat.
88. Listas e grupos de discussão.

pág. 88, jul/dez 2003


R V O

Anna Paola P
P.. Baptista
Doutora em História Social pela UFRJ.
Curadora dos Museus Castro Maya e Chácara do Céu.

A Crise da Civilização
e o Cristo Terrestre
Iconografia cristã e arte moderna

A alteração dos fenômenos religiosos e da The alterations experienced by religious


própria iconografia sacra na primeira metade sentiment and sacred art in the first half of
do século XX pode ser avaliada em sua relação the 20th century can be followed in their
com as profundas mudanças trazidas pela relation with moder nity´s upheaval. On
moder nidade. Por um lado, a redefinição das one hand, new patter ns set off for sacred
funções tradicionalmente atribuídas à arte sacra arts‘functions allowed abstract art into catholic
criava brechas até mesmo para a inserção da temples. On the other hand, there
abstração nas igrejas. Por outro, padrões has been some changes in traditional
iconográficos tradicionais, principalmente os iconographical motives, especially christological
cristológicos, iriam sofrer alterações, passando a ones, which came to expose the dehumanisation
enfatizar sobremaneira os aspectos of modern society and to comment on the
do trágico e da miséria humana. present time.
Palavras-chave: arte sacra, moder nismo, Keywords: sacred art, moder nism,
iconografia. iconography.

A
morte de uma concepção cen- conseguinte, os homens não dobrariam
tenária da arte como a expres- mais o joelho diante das imagens religi-
são finita do Absoluto arras- osas. 1 Em 1962, o arcebispo de Colô-
taria a arte sacra a uma profunda ten- nia, dom Joseph Frings, justificava as
são. Hegel antecipara o dilema da arte experiências alemãs de igrejas
religiosa moder na profetizando um mun- construídas com uma gramática moder-
do secularizado no qual a religião não na dizendo: “se pode orar também (grifo
mais ocuparia o centro da vida e, por meu) nessas igrejas”. 2 Sintomaticamen-

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te, as igrejas moder nas não podiam ser claramente demarcado que seria o de
deixadas sem aval, precisando, ao con- criação de uma ambiência sagrada. Uma
trário, de abono, defesa, explicação. das possibilidades de justificativa para
Tentando convencer que a profecia de uma reaproximação da Igreja com os
Hegel não havia, afinal, se concretizado, artistas é dada por meio da construção
o arcebispo defendia a capacidade das de uma relação de analogia entre o ato
igrejas modernas de serem sacras ain- criador artístico e o divino, e de um elo
da, de conseguirem reunir os valores do entre a experiência estética e a Revela-
eter no e do moder no. ção. Criam-se, assim, condições – ainda
que temporárias – para uma nova parce-
Na primeira metade do século XX, o enor-
ria de artistas modernos com a Igreja,
me esforço de soerguimento da arte sa-
mas, concomitantemente, padrões
cra, levado a cabo sobretudo por teólo-
iconográficos tradicionais experimentam
gos e padres dominicanos franceses que
profundas alterações.

E
veiculavam suas idéias na revista L´Art
Sacré , procurou equacionar os cânones xcluindo-se uma arte litúrgica
da tradição com as novas exigências, passadista e pasteurizada, as
tendo o humanismo como um pano de opções restantes deixavam
fundo inspirador, tanto para as conside- aberta uma janela para manifestações do
rações teóricas a respeito da arte cristã tipo representado por uma arte de cu-
moder na, quanto para suas manifesta- nho predominantemente abstrato, em
ções artísticas concretas. que a própria espiritualidade pessoal do
artista se tornava soberana, ou para as
Na verdade, o processo de secularização
obras em que o conteúdo religioso pro-
e a mudança radical na relação dos ho-
cura uma ponte com as preocupações do
mens com os valores centrais da doutri-
tempo presente. Nelas estão contidas as
na católica, fundada na Encar nação e na
duas principais tendências da arte religi-
Eucaristia, não poderiam deixar de afe-
osa do período.
tar a estética religiosa, ao for mar um
quadro de transfor mações para o qual Colocando em segundo plano a função
os dramas da Guerra Mundial e do pós- didática da arte sacra, o padre Jean-Marie
guerra só viriam contribuir ainda mais. Alan Couturier – líder de um grupo de
Com a moder nidade alteram-se também renovação da arte sacra, diretor da L´Art
as definições acerca das funções da arte Sacré e responsável pelo surgimento de
religiosa, pelo menos para certas parce- várias igrejas modernas na Europa – se-
las da intelectualidade católica, sendo a guia ao encontro de novas possibilida-
função clássica, didática (“Bíblia dos des que incorporavam, dentro dos tem-
iletrados”), deslocada para um segundo plos, os resultados das pesquisas própri-
plano, em prol de um objetivo menos as ao movimento da arte moder na. Es-

pág. 90, jul/dez 2003


R V O

sas idéias ficam claras em seu julgamen- tamente. Isso significava, para ele, uma
to da obra de Matisse, em Vence: “Sua concepção extremada dos paralelos en-
preocupação era a criação de um espa- tre a criação divina e a artística. Se bem
ço religioso [...] tomar um espaço fecha- que o artista partilhava com Deus os atri-
do de proporções bastante reduzidas e butos da criação, ele não era senão um
dar-lhe, unicamente pelo jogo das cores criador em segundo grau. A arte não po-
e das linhas , dimensões infinitas”. (gri-
3
deria existir em estado puro, livre de
fo meu) todo apego ao real, pois isso seria usur-
par para ela a condição divina. 5
Do outro lado da arena, o cardeal Celso
Costantini, autor de diversos artigos de Em seu trabalho Intuição criadora na arte
denúncia contra os excessos da arte e na poesia , Maritain traça o percurso do
moder na, denunciava os perigos do advento do Eu na arte: “A arte ocidental
exercício no interior dos templos católi- progressivamente deu ênfase ao Eu do
cos de uma arte inteiramente voltada artista e nas últimas fases mergulhou
para os jogos for mais. Ele temia, acima cada vez mais profundamente no univer-
de tudo, a abertura proporcionada pela so individual e incomunicável da subje-
corrente de “avançados” à arte abstrata. tividade criadora”. 6 Segundo o autor, é
Se na arte tout court do início da década somente com o advento do cristianismo,
de 1950 já era grande o embate entre a ou seja, a humanização da pessoa divi-
arte figurativa e a não-figurativa, na arte na e a divinização do homem por meio
sacra a chegada da abstração podia sig- da encarnação, que a arte ocidental pas-
nificar verdadeira comoção: “Hoje pare- sou a comportar a subjetividade criado-
ce que nossos artistas não têm nada a ra do artista. Depois do fim da Idade
dizer, fazendo apenas exercícios de rit- Média, o sentido da pessoa e da subjeti-
mos e cores; alguns pretendem inclusi- vidade humana entraria num processo de
ve substituir a representação dos santos interiorização cada vez mais acentuado,
com a chamada arte não-figurativa, feita enfatizando-se sobremaneira o caráter
só de combinações de linhas e cores. sublime da vocação do artista que im-
Esta modernidade é aberração”. 4 prime em tudo o que cria a marca de sua
individualidade:
Mesmo comentadores entusiasmados
com a arte moder na, não ficaram indife- Depois do nascimento de Cristo, a arte

rentes à necessidade de apontar alguns ocidental passou de um sentido da pes-


de seus perigos. O teólogo e filósofo ca- soa humana, inicialmente apreendida

tólico Jacques Maritain assinalou a ten- como objeto e no modelo sagrado do

dência do artista moder no de cair no Eu divino de Cristo, a um sentido da


“perigo de seu delírio angelista”, a so- pessoa humana apreendida finalmen-

berba de pensar que pode criar absolu- te como sujeito, ou na subjetividade

Acervo, Rio de Janeiro, v. 16, n o 2, p. 89-108, ju/dez 2003 - pág. 91


A C E

criadora do próprio homem, artista ou acirrados debates. Na modernidade, as


poeta. 7
idéias e posturas de alguns teólogos e

Na modernidade, a experiência da sub- de deter minados segmentos do clero,

jetividade chegaria à plena realização, que chegaram mesmo a forjar concep-

atingindo o próprio ato criador. O senti- ções originais e alocar novas funções à

do interior das coisas passa a ser enig- arte religiosa, calcaram-se muitas vezes

maticamente apreendido através do eu em interpretações que não se alinhavam

do artista e ambos se manifestam juntos aos cânones traçados pelo Vaticano.

na obra. Dali em diante o objeto seria


No jogo interativo entre valores e con-
tão-somente a obra; a pintura tornava-
ceitos que vão sendo redefinidos e as
se consciente de sua própria essência. 8
obras realizadas no período, o espaço
Pode-se identificar, portanto, nas concep- para realizações sem paradigma prece-
ções de Maritain, a noção de certa ten- dente foi aberto todas as vezes que as
dência histórica na direção de uma necessidades da arte moderna foram
humanização da arte sacra, decorrente consideradas pertinentes o bastante para
do fato mesmo da encar nação ser fator impor condições à arte sacra. Parece que
deflagrador da individualidade na arte. foi exatamente o estabelecimento de
Contudo, Maritain parece alertar que a novos valores que deu condições de exis-
exacerbação da subjetividade criadora tência para uma obra tão radical como,
poderia ser um dos principais fatores a por exemplo, a Capela Rothko (1964-71),
conduzir ao delírio angelista, identifica- no Texas, Estados Unidos. Por outro lado,
do como um grande perigo para a arte esses valores nascentes na filosofia da
sacra. arte cristã tiveram sua inspiração nas
T radicionalmente, a arte religiosa foi próprias necessidades criadas pelos no-
sempre uma arte funcional e, por isso, a vos desafios lançados pelas formas mo-
opinião da Igreja sobre ela leva em con- dernas. Ao ser liberada pela fotografia
ta, necessariamente, a avaliação, caso a da busca da representação ilusionista e
caso, do cumprimento ou não de suas pelo cinema de sua vocação narrativa, a
exigências específicas. Todavia, a Igreja pintura se tor nara fundamentalmente
não pode ignorar que até mesmo o pa- auto-reflexiva e criara um enorme dile-
drão de uma arte ligada aos valores trans- ma para a arte religiosa cuja
cendentes é passível de variações ao lon- especificidade estava justamente em
go do tempo e estas transformações di- suas funções tradicionais: litúrgica e nar-
ficilmente se fazem sem choques. Não rativa. Tanto os textos produzidos quan-
é, pois, de se estranhar que desde os to as obras de arte religiosa executadas
primórdios da Igreja Católica as defini- nesta conjuntura indicam o esforço ope-
ções sobre a arte sacra fossem alvo de rado no sentido de propor novas inter-

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R V O

pretações a um elenco de valores tradi- A aceitação da arte abstrata nas igrejas


cionais. Desafiada pela necessidade foi justificada por alguns pela sua capa-
constante de atualização, a arte sacra cidade de criar a ambiência sagrada. 9 As
não poderia ficar indiferente ao intercâm- formas não-figurativas seriam mais ade-
bio do eter no e do moder no. Uma das quadas para expressar o místico e o so-
possibilidades de atualização, ainda que brenatural em religião, pelo exato moti-
circunscrita a um deter minado espaço vo por que sempre foram atacadas: elas
temporal, foi justamente aquela nova não explicam, são irracionais e, então,
interpretação dos objetivos da arte sa- assim como a música, possuem a capa-
grada, em que as funções narrativa e ins- cidade de mover o espectador espiritu-
trutiva sofrem uma desqualificação em almente e conduzi-lo para além das rea-
favor da meta de criação de uma lidades materiais.10
ambiência sagrada que deve mover es- O advento do abstrato na arte moderna
piritualmente o observador. Abria-se foi em si mesmo um fator que permitiu
mão, portanto, das vantagens proporci- uma nova exploração do espiritual. Os
onadas há tantos séculos pela grandes pioneiros da não-figuração,
iconografia reconhecível. Kandinsky, Mondrian, Malevich, concor-

Mark Rothko, Rothko Chapel, Houston, EUA, 1964-1971, interior.

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A C E

daram em sua concepção da abstração, qualquer outra [...] As pessoas que cho-
não como mero recurso for mal, mas ram diante de meus quadros estão pas-
como uma progressão revolucionária na sando pela mesma experiência religiosa
direção de uma linguagem mais essenci- que eu tive quando os pintei. E se você,
al. Por meio desta, princípios e forças como disse, é tocado apenas pelas suas
que governam inter na e externamente o relações de cor, então você não enten-
cosmos, poderiam ser, pela primeira vez, deu nada”.12
diretamente expressados.11 Agora, o que
A Capela Rothko segue e aprimora a for-
é solicitado ao pintor é a experiência
te tendência de integração entre a arqui-
direta e a criação de formas, e não mais
tetura e pintura no século XX. As pintu-
o simples ilustrar de um evento.
ras, algumas monocromáticas, em tons
sombrios de violeta, marrom e preto,
Não deixa de ser intrigante a constatação
foram concebidas de forma inseparável
de uma profunda reemergência do espi-
de sua localização espacial. Como focos
ritual no mundo traumatizado do pós-
para meditação, as pinturas abstratas
guerra, trazendo uma nova dimensão
cromáticas de Rothko são definidas como
religiosa para a arte moder na, ela mes-
“anteparos de m i s t é r i o ” . 13 John
ma tão alheia à religião tradicional ou
Dillenberger destaca a capacidade de
mesmo, em certas instâncias, antagonis-
Rothko em expressar profundidades não
ta da religião organizada. A questão da
mais transmitidas pelos objetos reconhe-
espiritualidade, presente na maioria das
cíveis tanto da arte quanto da religião, o
primeiras teorias de arte abstrata, volta-
que explicaria a capacidade daquelas
ria a se manifestar com toda pujança no
imagens de induzir à meditação, visto
expressionismo abstrato americano após
que possuiriam o poder de alcançar o
a Segunda Guerra Mundial, ainda que
que símbolos tradicionais já não o fa-
sem as características de ocultismo que
zem.14
haviam assinalado as manifestações do
início do século. Nas obras de Mark É o mesmo ponto de vista de Mircea
Rothko, principalmente, o caminho para Eliade quando afirma que a “morte de
a abstração vem à tona marcado pela Deus” significa antes de tudo a impossi-
necessidade de imagens transcendentes, bilidade de expressão da experiência
culminando na sua última encomenda religiosa na linguagem religiosa tradicio-
nos anos 1960: a decoração da Capela nal. Segundo ele, o homem moderno te-
Rothko, na Universidade Rice, em ria se esquecido da religião apesar do
Houston, Texas. Tempos antes, o artista sagrado sobreviver. Na arte, o sagrado
havia respondido em carta a um amigo teria se camuflado em formas, propósi-
que comentara suas obras: “Não me in- tos e significados aparentemente profa-
teressam as relações de cor, forma ou nos. 15

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R V O

A questão que ficava em aberto era a de doutrina católica está fundada no dogma
uma certa confusão entre os ter mos es- da encarnação como fenômeno históri-
piritual e religioso, não necessariamen- co. A encar nação define a relação da
te intercambiáveis no mundo moder no. segunda pessoa da Trindade com a or-
Na arte sacra, a aceitação radical dos dem criada, o mundo natural, e essa re-
pressupostos moder nos acabava dando lação será de parentesco do homem com
espaço a obras que escapavam do religi- Deus. A humanidade do Cristo seria, por
oso stricto sensu , contaminadas por um conseguinte, testemunha de que os gran-
espiritualismo difuso tal como na Cape- des exemplares de humanidade são ex-
la Rothko. Ao se afastar em demasia da pressões de Deus e aproximam os ho-
materialidade advinda da encarnação, a mens da divindade. “O trabalho do artis-
arte sacra perde de vista o que distingue ta nasce da sua comunhão com a ordem
o catolicismo. De fato, muito poucos clé- natural [...] Na ordem de sua arte ele
rigos ou fiéis seriam induzidos a associ- compreende a glória e o mistério da or-
ar, por exemplo, as imagens abstratas da dem criada”.16

A
Capela Rothko ao sacrifício do Cristo na o traçar um paralelo direto
cruz, que é a função litúrgica da imagem entre os atos criadores artís-
n o a l t a r. O e n o r m e p o t e n c i a l d e tico e divino, a Igreja assen-
espiritualidade presente na pintura mo- te na inevitavelmente crescente auto-
der na, principalmente em deter minadas nomia da esfera artística. Frei Bruno
correntes da abstração, não poderia ser Palma O. P. sintetiza desta forma algumas
associado direta e absolutamente com das idéias gestadas naquele período:
religiosidade.
O que faz religiosa uma obra de arte
Um caminho alter nativo a esse foi tam- é, antes de tudo, ser bela e realizada
bém trilhado levando a arte sacra mo- como obra de arte, ser de tal modo
der na a experimentar um contato mais verdadeira e densa [...] que nos comu-
próximo com a dimensão social, em de- nicaria e seria, indubitavelmente, a seu
trimento do caráter místico. modo – fosse ou não religioso o artista

As preocupações da Igreja e as do artis- –, uma centelha do ato criador do pró-

ta encontrariam seu ponto de interseção prio Deus. Vendo-a, veríamos também

no conceito de sensibilidade, ou seja, a um reflexo seu; ela nos faria mergu-

consciência humana do mundo dos sen- lhar no seu mistério, ainda que obscu-

tidos e as maneiras de responder a este. ramente.17 (grifo do autor)

A sensibilidade do artista o torna capaz Em seguida, ele destaca o que viria a


de traduzir certos aspectos da estrutura representar um desdobramento lógico
do mundo dos sentidos na linguagem da desse esquema: “Mas há outra caracte-
obra de arte. Ora, a sensibilidade da rística que remete a um plano ainda mais

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radical : é religiosa toda obra que, pela na Salvação foi um exercício constante
sua densidade e força, nos fala do ho- nas formulações de teólogos, filósofos e
mem, dos seus dilemas, sonhos e inqui- historiadores do período. A máxima de
etações. É lá, nessa profundeza, que se Couturier – “as causas da decadência da
pode encontrar o religioso , porque se arte sacra não devem ser procuradas na
encontra o humano”. 18
(grifos do autor) ordem artística e sim na religiosa” –

O processo não avançaria, porém, sem espelhava uma crença generalizada de

que o teor das obras sofresse variações parte da intelectualidade católica que

s i g n i f i c a t i v a s . E m p r i m e i r o l u g a r, a identificava a crise do cristianismo como

humanização não poderia se fazer sem uma crise de valores da própria civiliza-

alteração dos propósitos tradicionais da ção, perdida na dessacralização. “Tendo

religião. Ao se aproximar do presente do abandonado Deus para ficar consigo

homem, a arte sacra estaria se afastan- mesmo, o homem perdeu o caminho de

do do atemporal divino, encaminhando- sua alma”, afirmou Jacques Maritain. 20

se para um enorme dilema. Ela não mais Entre as muitas contribuições de


se contentaria em explorar o drama reli- Maritain, destaca-se sua crítica ao
gioso, almejando conferir à obra um ca- humanismo liberal clássico. Ele analisou
ráter mais amplo, a englobar também o profundamente o que chamou de “a cri-
drama da humanidade. A preocupação se da civilização”, apontando como sua
social que transborda dos trabalhos co- causa maior a aventura racionalista da
loca os problemas do presente como um exasperação do humanismo
parâmetro de reflexão e as obras pas- antropocêntrico. “O erro do mundo mo-
sam a tecer comentários sobre o homem derno consistiu em acreditar que o ho-
atual. mem pode salvar-se sozinho e que a his-

Em 1958, monsenhor Robert Dwyer re- tória humana se desenrola sem a inter-

conhecia a inutilidade de se tentar man- venção de Deus”, afirmava ele. 21 Um lon-

ter viva a simbologia da catedral que go processo de secularização por qual

dominara a cristandade por tantos sécu- passou a idade moderna teria produzido

los. Ele concluía que a catedral não mais um homem isolado em si mesmo, que

dominava arquitetônica e politicamente substituíra o evangelho pela razão e guar-

a cidade porque a religião deixara de ser dava do cristianismo apenas uma con-

uma força dominante entre os homens.19 cepção artificial. O humanismo clássico


tinha como tragédia ter elegido como
A tentativa de relacionar a alteração dos
seus valores a liberdade e a filantropia:
fenômenos religiosos e da própria
iconografia sacra às profundas mudan- Na sua ânsia de autonomia, o homem

ças trazidas pela modernidade no senti- moder no concebeu, como base de

mento religioso e nas crenças humanas seus sistemas, uma dignidade e uma

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retidão humana apenas, e do seu agir to de renovação litúrgica. A Igreja Cató-


uma autonomia da vontade que exclui lica tentava preencher a solidão do ho-
toda regulamentação vinda do exteri- mem moderno, descrente da intervenção
or, mesmo de Deus. Acreditou na paz divina, com a força mediadora do Reden-
e na frater nidade sem o Cristo, e para tor, cujo sacrifício da cruz é renovado
não ter necessidade de um Redentor sacramentalmente ao correr dos séculos
quis salvar-se sozinho, sem que a Ca- através do culto eucarístico. Em sua ten-
ridade Divina tivesse influência algu- tativa de recuperação sob novas bases,
ma em sua vida. 22
a Igreja coloca como partes do mesmo
processo, a concentração litúrgica na
Depois que o secularizado XIX produzi-
Eucaristia e a fixação da arte sacra nos
ra uma arte sacra pasteurizada, distante
aspectos humanos e divinos do Cristo.
tanto das esferas transcendentes quan-
Nesse sentido, ela repudia as manifesta-
to das imanentes, os dramas do século
ções artísticas presas de um naturalis-
XX pareciam impelir a sociedade
mo fotográfico depauperado de
desumanizada à busca por uma nova
espiritualidade ou dos esoterismos. É
humanização. Esta, porém, ao
contrária tanto ao fanatismo das formas
radicalizar-se, distanciava-se da possibi-
antigas, como ao Cristo sem dor.
lidade de incorporação simultânea da
esfera do transcendente. Assim, na pri-
Posto que ligadas à liturgia por uma re-
meira metade do século XX, a tentativa
lação de subordinação, as imagens sa-
de recriação de uma arte sacra viva cor-
cras prescritas (“mui nobres servas do
ria o perigo de operar-se à revelia do
culto divino”) devem reter a conotação
conceito ortodoxo da Redenção, justifi-
ritual, assim como a forma do altar, pon-
cado tão-somente pela dupla natureza –
to focal da liturgia e da igreja, deve re-
divina e humana – de Jesus.
ter todas as trágicas conotações de
Uma certa disfunção da arte sacra, ca- oferenda dolorosa que se faz necessária
racterizada pela constante alter nância para expiar os crimes do mundo. Assim,
entre um naturalismo sentimentalizado ele não deverá ser apenas mesa de ban-
(enfatizando o Cristo humano às quete (comunhão), mas também túmulo
expensas de sua divindade) e um (imolação do cordeiro). 2 3 A encíclica
for malismo desumanizado (ressaltando exortava os artistas ao não abandono da
uma humanidade aparente e não real de conotação ritual na arte sacra e advertia
Cristo), foi reconhecida pela Igreja Ca- contra a atenuação dos aspectos san-
tólica na carta encíclica Mediator Dei , de grentos da redenção: “Está fora do ca-
20 de novembro de 1947. Lá se traça- minho quem deseja restituir ao altar a
vam as bases modernas da litur gia sa- antiga for ma de mesa; [...] quem deseje
grada, em consonância com o movimen- retirar na representação do Redentor

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Crucificado as dores acérrimas por Ele ininteligível para quem os contempla

sofridas”. 24
sem instrução prévia.26

A Igreja afir mava que o verdadeiro e ge- Maritain foi um grande defensor da liber-
nuíno conceito da liturgia não excluía o dade da arte e do artista, e não deixou
Cristo histórico: de enfatizar a absoluta dependência da
arte sacra à sabedoria teológica, abali-
Alguns, [...] chegam a ponto de querer
zada pela Igreja Católica. Segundo ele,
tirar das igrejas as imagens do Divino
mesmo obras inspiradas por um legíti-
Redentor que sofre na cruz. Mas essas
mo sentimento religioso por vezes não
falsas opiniões são de todo contrárias
poderiam ter assegurado seu lugar no
à sagrada doutrina tradicional [...] E
interior dos templos em virtude de não
assim como suas acerbas dores cons-
obedecerem às convenções próprias da
tituem o mistério principal de que pro-
arte sacra. Um exemplo seriam as obras
vém a nossa salvação , é conforme as
do pintor flamengo Servaes, condenadas
exigências da fé católica colocar isto
pelo Santo Ofício em 1921. O autor, um
na sua máxima luz, porque isso é como
homem “cristão e talentoso”, estaria tra-
o centro do culto divino, sendo o Sa-
indo certas verdades teológicas ao con-
crifício Eucarístico a sua cotidiana re-
ceber o Caminho da Cruz como vertigem
presentação e renovação, e estando
de dor. Sua grande falha era esquecer
todos os Sacramentos unidos com
que é a dor de uma pessoa divina. 27
estreitíssimo vínculo à Cruz. 25 (grifo

meu) Para estar em acordo com a teologia cris-


tã, a arte sacra deveria ser capaz de abor-
A Mediator Dei colocou como parâmetros
dar com pesos iguais as facetas comple-
da arte sacra que ela se mantivesse afas-
mentares da natureza do Cristo, realizan-
tada do “excessivo realismo” e do “exa-
do plenamente para o observador o ide-
gerado simbolismo”, os dois principais
al de redenção do qual ele é participan-
perigos que poderiam recair sobre a arte
te. Etimologicamente, ‘sacro’ equivale a
religiosa moderna. Monsenhor Annabring
separado. No cristianismo, no entanto,
esclarece:
o sacro é contaminado de junção. Deus
A arte sagrada da Igreja deve possuir não pode mais ser completamente o ou-
um certo caráter simbólico devido às tro devido à encarnação, base do
realidades invisíveis da fé, das quais é humanismo cristão. Por isso, a
signo visível. O naturalismo excessivo iconografia de Cristo sofre tamanho pe-
absorve a atividade dos fiéis no obje- rigo de perder sua faceta do mistério
to mesmo, mais que no mistério que quando há o exagero dessa vertente, com
representa. O tratamento extremamen- uma aproximação excessiva em relação
te abstrato faz seu conteúdo aos aspectos humanos.28

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R V O

O cristianismo introduz no mundo um O crucifixo do altar não deve expres-

novo humanismo, um humanismo sa- sar uma interpretação naturalista do sa-


cro [...] essa divinização do homem não crifício do Cristo. Mais que dar ênfase

destrói o conceito do numinoso. O cris- aos aspectos dramáticos e emocionais

tianismo dá primazia ao amor mas se- da crucificação, o crucifixo ideal des-


ria errado querer despojar o santuário creve as realidades dogmáticas deste

cristão da terrível dignidade que lhe ato de redenção. A vontade interna do

confere o mistério que nele habita. 29


sacrifício do salvador e sua oferenda

É
física externa que sugerem o triunfo
no motivo da Crucificação que
sobre a morte são importantes notas
esse ideal deveria realizar-se
de verdadeira representação. 32
mais plenamente. Em geral,
porém, as figuras da Crucificação tendem Entretanto, a história da arte cristã já
a sofrer as marcas de um distanciamento demonstrou as dificuldades na obtenção
da exposição explícita das chagas, ou de desse ideal de equilíbrio. Nas artes, a
uma radicalização do paradigma de ago- representação da figura do Cristo cruci-
nia estabelecido por Matthias Grünewald ficado se faria esperar por cinco sécu-
no retábulo Isenheim do século XVI; em los. Ainda assim, em suas primeiras apa-
ambos os casos, o que está sendo cele- rições, mostrava um Jesus vivo, de olhos
brado é o Cristo terrestre. Joseph Pichard bem abertos. Quando finalmente sua
constatou a raridade com que o Cristo morte passou a ser representada, isso
triunfante foi abordado na época moder- era feito, geralmente, de uma forma plá-
na e concluiu: “Encontra-se plenamente cida, sem sinais aparentes de sofrimen-
estabelecido que o tema do Cristo tortu- to. A partir da Idade Média tor nou-se
rado e agonizante assim como o da Mãe mais comum a exibição do sangue ver-
sofredora sobrevivem nos temas atuais, tendo das feridas de Cristo. No
símbolos permanentes e exemplares do Renascimento, conviveram tendências
destino do homem”. 30 diversas que podem, de certa maneira,
ser associadas a tradições artísticas di-
É fato, porém, que uma evocação do
ferentes. Enquanto na Itália predomina-
mistério da cruz que não se reduza à re-
va um tipo de Cristo mais sereno, a es-
presentação de um suplício espantoso
cola flamenga tendia a enfatizar o sofri-
evocativo dos píncaros do sofrimento
mento torturante.
humano nem a uma referência abstrata
da vitória do amor de Deus pelos homens Tais modelos poderiam ser
não é tarefa simples. 31
A Igreja postula exemplificados em suas formas mais ra-
parâmetros de representação do moti- dicais por dois artistas do século XVI:
vo calcados nessa solução de compro- Miguelangelo e Grünewald. Duas obras
misso. desses autores, ambas da década de

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1540, são significativas dessas corren- No século XVII, o Cristo (c.1631-1632)


tes. No desenho de Miguelangelo, a figu- de Diego Velázquez no Museu do Prado
ra de Cristo atlética e pujante é a de um parece ser uma das raras instâncias de
super-homem que não sofre. Ao contrá- compromisso e equilíbrio da dualidade
rio, não há figura tão torturada, exterior homem-deus. O pintor não dispensa
e interior mente, como o Cristo do mostrá-lo morto, cabeça pendendo, feri-
retábulo de Grünewald (1515), expirante, das sangrando. Ao mesmo tempo, po-
de pele esverdeada e cravada de espi- rém, a luz da Ressurreição é bem visí-
nhas, recurvando os dedos das mãos em vel, indicando o desenrolar e o sentido
estertor. A Crucificação de Isenheim é a do acontecimento.
expressão máxima do sofrimento huma- O kitsch do século XIX, por sua vez, con-
no patético. solidou um padrão da Crucificação em

Miguelangelo, Crucificação , desenho grafite s/papel, c. 1539-41, (British Museum, Londres).

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R V O

que elegantes corpos de um “belo ho- é um Deus circunscrito àquela comuni-


mem” são levados à cruz aparentemen- dade camponesa.
te por acaso, sem que tivesse de sofrer
Talvez seja Georges Rouault quem repre-
qualquer dor, tornando supérflua a cruz.
sente de forma mais cabal a tendência
Esquece-se o aspecto divino do Salvador
do Cristo cheio de piedade e sempre com
à custa de sua bela humanidade. 33 A re-
uma expressão humana. Para Lionello
ação da arte moder na viria na forma do
Venturi seus Cristos possuem uma digni-
Cristo atualizado no presente.
dade sem limites, em que a crueldade
Paul Gauguin foi um que recusou a dos homens transparece de sua sereni-
historicidade da Crucificação, retratan- dade. Ele sente mais do que ninguém o
do um Cristo sem chagas, com for mas e Cristo feito homem e que “está agonizan-
cores distanciadas dos padrões de te até o fim do mundo”. 34 Seu impulso é
mimetismo natural. Mais ainda, o episó- o de abordar os temas religiosos de uma
dio se desenrola em uma sociedade con- maneira liberta de convenções hipócri-
temporânea. Seu Cristo amarelo (1889) tas. Ao rechaçar os padrões usuais de

Matthias Grünewald, retábulo Isenheim, óleo s/madeira, 1515, (Musée d´Unterlinden, Colmar).

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beleza e livrar a pintura de toda “litera- do Cristo na cruz extrapolam em uma


tura”, Rouault ultrapassa a defor mação dignidade contida que acaba por torná-
paroxísmica em prol de um sofrimento las parte daquela tendência de apresen-
majestoso. 35
Recusando-se a pintar tação de um Cristo sem estigmas e, por-
nazarenos açucarados, marca da arte tanto, sem função litúrgica ou sacramen-
litúrgica do século XIX, as imagens do tal. Como ressaltou Edgar Wind, do modo
Cristo de Rouault atualizam e prolongam como Rouault nos apresenta, as imagens
no tempo o pecado e a crueldade do ho- do Cristo torturado aparecem: “como
mem: “ toutjours flagellé ...” é a inscrição uma figura humana, um modelo humil-
de uma imagem de Cristo morto da série de de todo o sofrimento terreno que con-
de gravuras Miserere , publicada em tinuará enquanto durar o mundo [...]. A
1948. devoção que essas imagens suscitam
Por outro lado, suas inúmeras imagens está mais próxima da meditação moral

Diego Velázquez, Crucificação , óleo s/tela, c. 1631-1632, (Museu do Prado, Madri).

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sobre a crueldade humana e a mansidão de identificação dos sofrimentos huma-


divina do que a participação num sacra- no e divino na representação da Crucifi-
mento”. 36
cação. 37 Alguns, como Chagall, chegaram
a incorporar à cena episódios concretos
Outros artistas preferiram buscar a
da experiência contemporânea de deter-
contemporaneidade de Cristo na
minada comunidade. A Crucificação , de
exaltação dos tor mentos físicos da Cru-
1939, no Art Institute de Chicago, é uma
cificação. O pintor alemão Lovis Corinth
comparação direta das experiências dos
explorou como ninguém todo o horror de
judeus da Europa Oriental com a perse-
uma cena de tortura. Em uma Crucifica-
guição e crucificação de Jesus.
ção de 1907 fica difícil reconhecer qual-
Outros, como Graham Sutherland, aludi-
quer parcela divina da natureza de Cris-
ram à Guerra mesmo que concentrando
to, que sofre simplesmente toda sua ago-
visualmente a cena na própria crucifica-
nia causada por algozes implacáveis.
ção de Jesus. Sutherland foi artista ofi-
A Guerra adicionou um elemento a mais cial de guerra, voltando-se para a pintu-

Marc Chagall, Crucificação , óleo s/tela, 1939, (Art Institute, Chicago).

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A C E

ra religiosa ao final do conflito bélico. A prosseguiu afir mando continuamente


busca pela imagem sensível da devasta- que o artista não poderia mergulhar na
ção e destruição causadas pelo homem miséria do tempo, deixando de lado o
persistiu em seu trabalho de caráter sa- aspecto redentor que justifica a religião
cro. A Crucificação , pintada em 1946 católica:
para a igreja de São Mateus, em
A representação artística dos temas
Northampton, Inglaterra, representa bem
cristãos no curso dos últimos tempos
a tendência de exploração visual radical
tem tomado freqüentemente um aspec-
do tormento de Jesus. Os dois modelos
to sombrio e triste refletindo a tragé-
imolados são as fotografias de vítimas
dia da condição humana em meio a
dos campos de concentração da Segun-
uma época transtornada pelo materia-
da Guerra Mundial e o retábulo Isenheim
lismo ateu. Sem fechar os olhos à dra-
de Grünewald. Entretanto, a agonia sa-
mática situação da humanidade, sem
grada é levada a um tal paroxismo que
renunciar a ser testemunha da desdita
praticamente remete à acusação pura e
humana cansada pela perda do senti-
simples e acaba por excluir a parcela de
do de Deus e do homem, o artista que
compaixão e êxtase capaz de impor ao
trabalha para uma igreja deve desenhar
contemplador o significado sacramental
nela os motivos permanentes da espe-
da cena e lhe conferir um sentido re-
rança cristã, transfigurando o sofrimen-
dentor.
to e dando-lhe um sentido redentor. 38

A aflição do tempo presente, vivida e


A abordagem dos temas religiosos punha
observada pelos artistas, torna-se, assim,
toda sua complacência nos aspectos do
parcialmente responsável por uma visão
trágico, da miséria, do pecado. As ima-
renovada da tortura na cruz. A Crucifica-
gens haviam se tor nado brados contra a
ção de Sutherland é uma das obras que
agonia sem sentido do mundo moderno
se apresentam nitidamente como um
e, conseqüentemente, distanciavam-se
brado contra a agonia sem sentido da
do ideal católico, posto que na religião
Guerra Mundial e do holocausto. Ao ex-
a agonia possui seu sentido. 39 A cruz se
plorarem mais o lado terreno do martí-
tornara desnecessária ou inútil. É isso
rio divino, as obras de arte acabam por
que parecem proclamar duas das mais
enfatizar o ir mão da humanidade. Dessa
radicais – ainda que antagônicas – expe-
maneira, o drama de Cristo se iguala ao
riências de inovação iconográfica do
drama da coletividade.
motivo da Crucificação realizadas no
Essa tendência da arte religiosa na século XX: a Crucificação (1954) de Sal-
modernidade inquietou a Igreja, que con- vador Dalí e o mural de José Clemente
testou sua excessiva humanidade. A crí- Orozco, Moder n migration of the spirit
tica, iniciada na encíclica Mediator Dei, (1932). Não é por acaso que em ambas

pág. 104, jul/dez 2003


R V O

as imagens o Cristo tenha abandonado a gesto de seus braços sugere um ato de


cruz. oferecimento completo. Cristo está iso-
lado do mundo dos homens, que apenas
Dalí pintou aquela obra com o intuito de
assistem (na figura da mulher que con-
oferecer uma imagem que fosse a com-
templa a cena) ao ato de vontade de um
pleta antítese ao retábulo Isenhein de
Deus. Não há vestígio da responsabilida-
Grünewald, que ele considerava “mate-
de humana na crucificação nem
rialista e brutalmente antimístico”. 40 Nela
tampouco sinal que seu ato se revestis-
Cristo aparece pairando sobre a cruz.
se de algum sofrimento.
Seu corpo não está per furado e os qua-
tro pequenos cubos de madeira que alu- Com seu machado, o Cristo de Orozco
dem aos pregos da paixão não chegam a acabou de derrubar a cruz, que passará
tocar sua pele e flutuam soltos no ar. O doravante a fazer parte dos escombros

Salvador Dalí, Crucificação, óleo s/tela, 1954, (Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque).

Acervo, Rio de Janeiro, v. 16, n o 2, p. 89-108, ju/dez 2003 - pág. 105


A C E

da civilização humana junto com as ar- à humanidade: – Decidam agora: terá


mas e equipamentos de guerra, as ruí- sido tudo em vão?
nas de edifícios e templos, as obras de
Experiências radicais como as de Dalí e
arte destroçadas que se amontoam no
Orozco suscitam o pasmo e somente se
plano de fundo. Seu corpo foi tão devas-
explicam por sua inserção em um perío-
tado pelo sofrimento que está descarna-
do em que as experiências de reunião
do deixando os músculos expostos. As
dos vetores arte moderna e arte sacra
chagas cristalizaram-se em buracos fun-
ofereceram possibilidades tão amplas de
dos e negros. Cristo é periclitantemente
transformação de padrões tradicionais de
humano na sua miséria e na sua descren-
iconografia que chegaram mesmo a con-
ça. A raiva de seu gesto é a mágoa pela
trariar certos pressupostos fundamentais
inutilidade de seu sacrifício. A utopia da
de embasamento teológico da arte cristã.
paz e fraternidade está implícita, porém
sua concretização está nas mãos dos Artigo recebido para publicação em
homens. Ele parece lançar um ultimato agosto de 2003.

José Clemente Orozco, American civilization – modern migration of the Spirit , fresco, 1932,
(Baker Library, Darthmouth College, New Hampshire).

pág. 106, jul/dez 2003


R V O

N O T A S
1. Nas Preleções sobre a estética , apud Edgar Wind, A eloqüência dos símbolos , São Paulo,
Edusp, 1997, p. 168. Ver também Gerard Bras, Hegel e a arte : uma apresentação à estética,
Rio de Janeiro, Zahar, 1990.
2. Dom Joseph Frings, Experiências pastorais e as novas igrejas de Colônia, in Juan Plazaola, El
arte sacro actual : estúdio, panorama, documentos, Madri, La Editorial Católica, 1965, p.
605-608. Todas as fontes provenientes deste livro são citadas com traduções minhas.
3. Apud Pie-Raymond Régamey, Arte sacra contemporânea , São Paulo, Herder, 1965, p. 285.
4. Celso Costantini, Modernidade e tradição, in Juan Plazaola, op. cit., p. 601-605.
5. J. Guimarães Vieira, Maritain e o problema da arte, A Ordem , Rio de Janeiro, v. 26, n. 35,
jan./jun. 1946, p. 520-528.
6. Jacques Maritain, A intuição criadora na arte e na poesia , Belo Horizonte, Laboratório de
Estética, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, UFMG, 1982.
7. idem.
8. idem.
9. Dom Paolo Marella, A arte sacra nas normas diretivas da Santa Sé, in Juan Plazaola, op. cit.,
p. 657-667.
10. Gabrielle Langdon, A spiritual space: Matisse´s chapel of the Dominicans at Vence, Zeitschriff
für Kunstgeschichte , v. 51, n. 4, 1988, p. 557-558.
11. Ver Mike King, Concerning the spiritual in twentieth-century art & science, Leonardo, v. 31,
n. 1, 1998; Sheldon Nodelman, The Rothko Chapel paintings : origins, structure, meaning,
Austin, University of Texas Press, 1997, p. 310.
12. Apud Henk van Os, Sienese altarpieces 1215-1460 : form, content, function, volume II: 1344-
1460, Groningen, Egbert Forsten, 1990, p. 27. Tradução minha.
13. Geraldo de Souza Dias Filho, O expressionismo abstrato: a pintura norte-americana nos anos
40 e 50, in Annateresa Fabris (org.), Arte e política : algumas possibilidades de leitura, São
Paulo; Belo Horizonte, Fapesp; C/ARTE, 1998, p. 107-161.
14. John Dillenberger, Artists and church commissions: Rubin´s The Church at Assy revisited, in
Diane Apostolos-Cappadona (ed.), Art, creativity and the sacred : an anthology in religious
and art, New York, Continuum, 1995, p. 204.
15. Mircea Eliade, The sacred and the modern artist, in Diane Apostolos-Cappadona (ed.), op.
cit., p. 179-181.
16. John W. Dixon Jr., The sensibility of the Church and the sensibility of the artist, in Finley
Eversole (ed.), Christian faith and the contemporary arts , New York, Abingdon, 1957, p. 87.
Tradução minha.
17. Alceu Amoroso Lima e Frei Bruno Palma, Arte sacra Portinari , Rio de Janeiro, Alumbramento,
1982, p. 91.
18. idem.
19. Mons. Robert J. Dwyer, Arte e arquitetura para a Igreja de nossos dias, in Juan Plazaola, op.
cit., p. 636-643.
20. Jacques Maritain, A crise da civilização, A Ordem , Rio de Janeiro, v. 23, n. 29, jan./jun.
1943, p. 95-114.
21. ibidem, p. 97.
22. ibidem, p. 99.
23. Edgar Wind, op. cit., p. 174.
24. Pio XII, Mediator Dei : encíclica sobre a sagrada liturgia, A Ordem , Rio de Janeiro, v. 28, n.
39, jan./jun. 1948.
25. idem.

Acervo, Rio de Janeiro, v. 16, n o 2, p. 89-108, ju/dez 2003 - pág. 107


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26. Mons. Joseph J. Annabring, Diretrizes diocesanas para a construção de igrejas, in Juan
Plazaola, op. cit., p. 686-693.
27. Jacques Maritain, Art et scolastique , Paris, Louis Rouart et Fils, 1935, p. 175-177.
28. Juan Plazaola, op. cit., p. 15-17.
29. ibidem, p. 18.
30. Joseph Pichard, L´art sacré moderne , Paris; Grenoble, B. Arthaud, 1953, p. 126.
31. Comissão Nacional de Ensino Religioso em França / Comissão de Meios Audiovisuais, Diretri-
zes referentes à imaginária religiosa destinada às crianças, in Juan Plazaola, op. cit., p. 577-
581.
32. Mons. Joseph J. Annabring, op. cit.
33. Richard Egenter, O mau gosto e a piedade cristã , Lisboa, Editorial Áster, 1960, p. 194 e 232.
34. Ver F. Rouault Peixoto Filho e Luiz Orlando Carneiro, Georges Rouault: o pintor do Miserere ,
A Ordem , Rio de Janeiro, v. 38, n. 60, jul./dez. 1958, p. 103-106 e 219-222.
35. Jacques Maritain, Georges Rouault , New York, Harry N. Abrams & Pocket Books, 1954.
36. Edgar Wind, op. cit., p. 174.
37. Ver Anna Paola P. Baptista, Paraíso e inferno na terra: ecos da II Guerra Mundial na pintura
religiosa brasileira, 1940-50, História Social , Campinas, n. 7, 2000, p. 49-65.
38. Mons. Jean-Jullien Weber, Diretório de arte sacra para a diocese de Estrasburgo, in Juan
Plazaola, op. cit., p. 702-714.
39. Pie-Raymond Régamey, op. cit., p. 222.
40. Apud Crucifixion , London, Phaidon, 2000, p. 228.

pág. 108, jul/dez 2003


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Angelo Adriano Faria de Assis


Doutorando em História pela Universidade Federal Fluminense.

Uma Família Criptojudaizante


nas Garras da Inquisição
Os Antunes, Macabeus do Recôncavo baiano

Após a proibição do judaísmo no reino em After the prohibition of jewish in the kingdon
1497, e a criação da Inquisição portuguesa during 1497 and the creation of the Inquisition
em 1536, muitos cristãos-novos optaram in Portugal in 1536, a lot of new-christians
por começar vida nova longe dos rigores choose to start a new life far away from the
que encontravam em Portugal, e as capitanias do rigourism that they find in Portugal, and the sugar
Nordeste açucareiro faziam-se umas das areas of the Northeast were one of the
principais escolhas. Entre os cristãos-novos que main choices of them. Between the new-christians
se dirigiam ao Brasil, recebeu a Colônia, that went to Brazil, some of them were
presumivelmente, algumas famílias de “criptojudeus” – hidden jewish – those that
criptojudeus – aqueles que, não aceitando a don’t agree with the forced convertion of
conversão forçada dos antigos judeus ao christianism and maintained in secret the
cristianismo, mantinham em secreto as práticas religions’practice that couldn’t be sustained
da religião que não podiam seguir abertamente. in liberty. The Antunes, from Bahia, denounced
Os Antunes, do Recôncavo baiano, denunciados during the first visitation of the Holy
durante a primeira visitação do Santo Ofício ao Office in Brazil, between 1591 and 1595,
Brasil, entre 1591 e 1595, são exemplo are privileged examples of the jewish
privilegiado da resistência judaica em épocas de resitance during the time of catholic
monopólio católico. monopoly in the portuguese world.
Palavras-chave: Inquisição, criptojudaísmo, Keywords: Inquisition, hidden jewish, jewish
resistência judaica. resistance.

Sendo-nos muito certo que os judeus cometem grandes males e blasfêmias

e mouros obstinados no ódio da nossa em estes nossos reinos, as quais não


Santa Fé Católica de Cristo Nosso Se- tão-somente a eles, que são filhos de

nhor que por sua morte nos remiu, têm maldição, enquanto na dureza de seus

cometido e continuamente contra ele corações estiverem, são causa de mais

Acervo, Rio de Janeiro, v. 16, n o 2, p. 109-128, jul/dez 2003 - pág. 109


A C E

condenação, mais ainda a muitos cris- publicamente a sua devoção à religião


tãos fazem apartar da verdadeira car- católica, no intuito de integrarem-se à
reira, que é a Santa Fé Católica. 1
sociedade portuguesa, alguns dentre

A
eles, longe dos olhares da população,
ssim justificava o monarca
esforçavam-se por manter, malgrado os
português d. Manuel I (1495-
impedimentos, as crenças e rituais de
1521) a publicação do édito
seus antepassados, sendo, por isso, de-
de expulsão dos judeus de Portugal, em
signados judaizantes ocultos, ou seja,
fins do século XV. Mal havia inaugurado
criptojudeus . A intensa presença eclesi-
a Modernidade, vivendo os lusitanos o
ástica e a crescente organização do San-
período áureo da expansão marítima e
to Ofício português durante o Quinhen-
dos descobrimentos, tinha início um lon-
tos tornavam ainda maiores as pressões
go período de domínio católico sobre
contra os neoconversos. Buscando fugir
Portugal. Desde a implantação na última
da pressão social e da ameaça
década do século XV das leis de dom
inquisitorial, considerável parcela dos
Manuel, que puseram fim ao longo con-
cristãos-novos procuraria refúgio em ter-
vívio entre judeus e cristãos no reino, a
ras distantes, como a América portugue-
resistência dos agora denominados cris-
sa, um dos locais preferidos para os que
tãos-novos se fez sentir fortemente, in-
deixavam o reino, visto o próprio desta-
tensificando-se em grande escala após a
que que a economia açucareira ganhava
instauração do Tribunal do Santo Ofício
para os interesses reinóis. De fato, mui-
da Inquisição no ano de 1536, durante
tos neoconversos conseguiriam, em cer-
o reinado de d. João III. Dessa for ma, o
ta medida, recompor suas vidas no qua-
tribunal inquisitorial português encontra-
se anonimato de uma sociedade em for-
ria nos neoconversos não apenas a jus-
mação e, portanto, pouco disposta a pre-
tificativa para sua criação, mas também
ocupações mais sofisticadas, sobrema-
suas principais vítimas, apontados como
neira no campo religioso, posto que a
maiores ameaças à pureza da fé cristã
enorme distância da sisuda moral ecle-
no reino. O fato é que, malgrado os exa-
siástica européia refletiria num confor-
geros e generalizações, muitos dos anti-
tável despojar no viver colonial, uma vez
gos adeptos da religião de Israel conver-
que se encontravam todos – cristãos-no-
tidos à força ao catolicismo, reuniriam
vos e cristãos-velhos – mais preocupa-
forças e encontrariam for mas de burlar
dos com a própria (e imediata) sobrevi-
a lei para continuar a comungar a fé do
vência em ambiente inóspito. O quadro
coração.
de relativa tranqüilidade no convívio en-
Embora os cristãos-novos procurassem tre cristãos-velhos e cristãos-novos, con-
escapar às desconfianças e perseguições tudo, seria modificado pelas visitações
populares, esforçando-se por demonstrar do Santo Ofício à América lusa.

pág. 110, jul/dez 2003


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Salvador da Bahia de Todos os Santos. dir a justiça do Santo Tribunal. A conde-


Corria o período da graça referente à nação da pobre mulher deveria servir de
segunda visitação inquisitorial ao Brasil, lição aos futuros hereges. Por esse moti-
que procuraria hereges e crimes contra vo, seus ossos seriam desenterrados
a pureza da fé católica na Colônia entre para que fosse queimada em efígie por
1618 e 1620, quando o lavrador de man- sentença datada de 9 de maio de 1604.
dioca Antônio de Aguiar Daltro compare- O tal retrato desaparecido da porta da
ceu à audiência matinal da Mesa do T ri- igreja de Matoim, por praxe inquisitorial,
bunal para acusar, diante do inquisidor teria sido pintado e lá posto a mando do
Marcos Teixeira, um certo Adão Gonçal- Santo Ofício, como forma de manterem
ves, mancebo mamaluco que, à época vivos na lembrança daquela comunida-
da denúncia – setembro de 1618 –, atu- de os riscos a que estariam sujeitos os
ava como soldado no Forte de Tapagipe, que escolhessem processar uma fé proi-
na mesma Bahia. Segundo Antônio, fa- bida, a ratificar que os braços da
zia cerca de treze anos que Adão havia Inquisição não vislumbravam limites para
roubado da porta principal da igreja de alcançar suas vítimas: o quadro mostra-
Matoim um retrato da cristã-nova Ana va Ana entre labaredas e seres demonía-
Rodrigues, do que “houve grande escân- cos, a significar que morrera relapsa,
dalo entre os cristãos-velhos daquela fre- considerada herege apóstata da fé, me-
guesia”, segundo se dizia em fama pú- recedora do castigo reservado aos que
blica. 2
abandonavam ou desvirtuavam o catoli-
cismo.
Matriarca dos Antunes, família duramen-
te atacada perante a Inquisição, Ana O roubo da tal imagem, afirmava ainda
Rodrigues fora denunciada seguidamen- o lavrador de mandioca perante o
te como conhecida judaizante durante a visitador, teria ocorrido a pedido do en-
primeira estada do Santo Ofício na Colô- tão patrão do futuro soldado Gonçalves,
nia, em finais do século XVI, sendo pre- o cristão-velho Henrique Muniz Teles,
sa e enviada a Lisboa para julgamento casado com dona Leonor Antunes, uma
pelo licenciado Heitor Furtado de Men- das filhas de Ana Rodrigues, interessado
donça, em 1593. De idade avançada – em livrar não só a esposa e o restante
contava mais de oitenta anos quando no da família de comentários acerca do cru-
cárcere –, acabaria por adiantar o prová- el destino que tivera sua mãe e da má
vel resultado de seu processo, morren- fama que dela herdaram, procurando
do na prisão, enquanto esperava julga- preservar-lhes a honra e evitar novas
mento. Os inquisidores, contudo, fariam acusações e problemas com o Santo Ofí-
questão de demonstrar que nem a mor- cio, mas a si próprio de possíveis des-
te da ré era razão suficiente para impe- confianças com relação à pureza e reti-

Acervo, Rio de Janeiro, v. 16, n o 2, p. 109-128, jul/dez 2003 - pág. 111


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dão de sua fé. seria impedido pela mãe, irmãos e cu-


nhados de levar o relacionamento adi-
A história da família Antunes no Brasil
ante, acabando por gerar desentendi-
teria começado cerca de seis décadas
mentos e inimizades entre as duas famí-
antes, em dezembro de 1557, com a
lias. À época da visitação, três dos filhos
chegada do cristão-novo Heitor Antunes,
do casal Antunes já eram falecidos: Isa-
marido de Ana Rodrigues, na mesma
bel, Violante e Jorge, cuja esposa arru-
embarcação que trouxera o recém-nome-
mou novo casamento com Sebastião
ado gover nador-geral Mem de Sá para
Cavalo, que viria a se tornar o novo dono
assumir sua função. Com Heitor vieram
do engenho outrora pertencente ao clã.
esposa e filhos; outros teriam nascido já
na Bahia: seriam sete irmãos ao todo, O patriarca dos Antunes alcançaria con-
sem contar um que morrera doente ain- siderável prestígio ao longo de sua vida.
da no reino, chamado Antão, quando o Por sua origem neoconversa, contudo, só
clã morava na vila da Sertã, localizada viria a conseguir um maior destaque a
na região da Beira, a meio caminho en- partir de sua transferência para a região
tre o Atlântico e a fronteira com a brasílica. Impedido de enobrecer pela
Espanha. mácula do sangue que carregava, consi-
derado impuro, fazia-o pelo destaque
A família fixar-se-ia em Matoim, no
econômico e social: inicialmente merca-
Recôncavo baiano. Homem de influência
dor, tornou-se exemplo de comerciante
na região, conseguiria matrimônios para
a enriquecer no trópico em formação e
os filhos com representantes das melho-
do avanço dos neoconversos sobre a pro-
res famílias: Isabel Antunes, casada com
priedade fundiária e o negócio do açú-
o cristão-velho Antônio Alcoforado;
car, ameaçando os interesses e o poder
Violante Antunes, casada com o cristão-
da camada cristã-velha, vindo a transfor-
v e l h o D i o g o Va z E s c o b a r ; B e a t r i z
mar-se – graças ao apoio dado por Mem
Antunes, casada com o cristão-velho Se-
de Sá em certa querela envolvendo a
bastião de Faria, senhor de engenho que
região de Matoim – em dono de terras e,
participou das lutas pela conquista do
mais tarde, senhor de engenho.
Sergipe aos índios aimorés; Leonor
Antunes, casada com o cristão-velho O comerciante senhor de engenho por-
Henrique Muniz Teles, fidalgo escudeiro tava ainda as insígnias e o prestígio de
da casa real; Jorge Antunes, casado com “cavaleiro da casa del-rei Nosso Senhor”,
a cristã-velha Joana de Bitencourt de Sá; o que colaborava para que fosse bem
Álvaro Lopes Antunes, casado com a cris- relacionado entre os principais e
tã-velha Isabel Ribeiro. Nuno, o filho mais governantes da Colônia, homem de con-
novo, se envolveria com uma donzela fiança do governador-geral. Prova disso
cristã-nova de uma família amiga, mas é que assinaria como testemunha em um

pág. 112, jul/dez 2003


R V O

relatório administrativo enviado por Mem (corruptela de Torá 3 ) – metáfora bastan-


de Sá ao rei d. Sebastião no ano de 1572. te usada para dizer que se seguia a lei
Seria ainda, durante certo tempo, um dos mosaica ou lei dos judeus –, numa sina-
responsáveis pelo pagamento dos orde- goga que teria construído em suas ter-
nados ao bispo e cabido da capitania, ras, “uma casinha separada”, localizada
como rendeiro dos dízimos do açúcar. ao lado de sua residência: a “esnoga de
“Enobrecido” pelas relações e pelo di- Matoim”, a mais denunciada e conheci-
nheiro, vangloriava-se igualmente Heitor da de toda a Bahia. Freqüentada por al-
Antunes ao dizer possuir um alvará que guns dos principais da capitania, nela
comprovava sua descendência direta dos reuniam-se secretamente os judaizantes
Macabeus – célebre e heróica família de em dias específicos, “deixando dito na ci-
sacerdotes e militares hebreus, fundado- dade que iam fazer peso” – procurando,
res de uma dinastia, no século II a.C., sem muito sucesso, despistar o verda-
que per mitiu aos judeus a liberdade deiro objetivo dos que lá iam. Líder da
de viver segundo seus costumes e cren- sinagoga que construíra em suas terras,
ças, gover nando a Judéia durante 126 Heitor funcionava como uma espécie de
anos. “rabi” dos judaizantes da região, respon-
Do cavaleiro macabeu era conhecida a sável pela liturgia e manutenção das tra-
fama de realizar em seus domínios reu- dições da fé proibida, atuando ainda na
niões judaicas, onde “se adorava a toura” orientação aos criptojudeus nas questões

Aspecto contemporâneo do Engenho Freguesia, em Matoim, Recôncavo Baiano, que pertenceu à família
Antunes. Foto: arquivo pessoal do autor.

Acervo, Rio de Janeiro, v. 16, n o 2, p. 109-128, jul/dez 2003 - pág. 113


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de fé, interpretações teológicas e dificul- cutado pelo Santo Ofício na última déca-
dades no comportamento do dia-a-dia. d a d o s q u i n h e n t o s ” , 6 as primeiras
visitações inquisitoriais ao Brasil ressal-
A fama da “esnoga dos Antunes” iria lon-
tam o novo momento político vivido por
ge, ultrapassando em muito a vida de seu
Portugal: ocorrem durante o domínio
próprio fundador: o rabi macabeu do
Filipino (1580-1640), bem mais rigoro-
Recôncavo faleceria por volta de 1575-
so e atento no tocante ao controle admi-
1577, momento em que Ana Rodrigues
nistrativo, político e religioso dos espa-
toma a frente da família e o controle dos
ços coloniais do que a dinastia dos Avis.
negócios, auxiliada pelos filhos e genros.
Por mais que nas cortes de Tomar o
Mesmo com a ausência do patriarca dos
monarca Felipe II tenha se comprometi-
Antunes, a sinagoga de Matoim continu-
do a respeitar a autonomia das institui-
aria sua atividade, presumivelmente, ten-
ções portuguesas, foi justamente sob o
do um de seus filhos como responsável.
domínio dos Habsburgo que a Inquisição
Deter minados denunciantes que citam a
esticou seu braço até a América portu-
“casinha” de Matoim ao inquisidor dizi-
guesa, como já o fizera sobre a parte his-
am ter conhecimento da sua existência
pânica.
há mais de vinte ou trinta anos, o que a
transformava na mais antiga sinagoga em
A estada da Inquisição nas capitanias do
funcionamento de que se tinha notícia
açúcar significaria o fim da relativa har-
na Bahia e uma das mais tradicionais da
monia existente no convívio entre os cris-
região colonial àquela época. Nem mes-
tãos diferentes pelo sangue, refletindo o
mo a chegada da visitação inquisitorial
ambiente de conflitos há muito vivido em
às capitanias açucareiras do Nordeste
Portugal. Se, a princípio, as dificuldades
(Bahia, Per nambuco, Itamaracá e
maiores que se colocavam à ocupação
Paraíba), entre 1591 e 1595, a espalhar
do espaço colonial permitiam que cris-
o medo por todos os lados, teria sido
tãos-velhos e neoconversos vivessem
motivo suficiente para que cessassem as
sem maiores problemas, a presença da
reuniões judaicas em Matoim, num cla-
máquina repressora do Santo Ofício se
ro sinal de enfrentamento ao Santo Ofí-
mostraria como oportunidade única para
cio e à religião dominante.
tornar público o descontentamento com
Fruto do que Anita Novinsky definiu como o comportamento irregrado de deter mi-
importância do aumento da vigilância nados indivíduos. Era também o momen-
sobre áreas economicamente próspe- to apropriado para que a sociedade co-
ras, 4
Sonia Siqueira caracterizou como lonial aproveitasse o clima de caça aos
necessidade de vigilância das crenças na hereges para cuidar de ódios ocultos,
Colônia 5
e Ronaldo Vainfas denominou desavenças e vinganças pessoais, fazen-
de “vasto programa expansionista exe- do acusações dos inimigos ao Tribunal –

pág. 114, jul/dez 2003


R V O

for ma oficial de resolver antigos proble- único espaço que julgava seguro: o lar.
mas, livrando-se dos desafetos com o Também tinha a fama de per manecer
respaldo oficial e institucional do Santo trancada com as filhas na sexta-feira à
Ofício. Os cristãos-novos, vistos como tarde, a fazerem jejuns e orações, de
ameaça ao bom andamento da fé católi- onde só saíam no fim do sábado, de rou-
ca no trópico, seriam, uma vez mais, os pa limpa e banho tomado. Nem a casa,
alvos preferidos do fervilhar de denúnci- contudo, se mostraria como locus ideal
as à mesa do visitador. para a manutenção desses segredos, 8 e
o comportamento de Ana e seus filhos
A população colonial receberia em pâni-
acabaria público, chegando ao conheci-
co os representantes da Inquisição, e o
mento do visitador. A restrita privacida-
dia-a-dia dos Antunes começaria a sofrer
de dos ambientes coloniais se encarre-
maiores revezes pelo medo de possíveis
garia de divulgar o que ocorria entre as
denúncias. O destaque que possuíam e
paredes da residência dos Antunes: ou-
a negativa fama de que desfrutavam agra-
vidos e olhos permaneciam atentos para
vavam ainda mais os temores de alguns
saber detalhes e novidades da vida pri-
membros da família em sofrerem acusa-
vada, tornada pública a todo instante.
ções por suas variadas heresias. “Jesus,
estávamos quietos”, já lamentava a cris-
A vida dos Antunes seria exposta aos gu-
tã-velha Isabel Ribeiro, esposa de Álva-
losos olhos do visitador desde o primei-
ro Lopes Antunes, prevendo consciente
ro dia dos trabalhos inquisitoriais na
as sombrias conseqüências para o mari-
Colônia, constando este rol de denúnci-
do e os demais parentes das denúncias
as entre os de maior volume perante o
que chegariam aos ouvidos atentos do
Santo Tribunal. Ao todo, seriam dezenas
licenciado Heitor Furtado de Mendonça.
de acusações contra vários membros do
A família Antunes seria acusada, princi- clã. Só a matriarca Ana Rodrigues soma-
palmente, de pouco ou nenhum cuidado ria 23 denúncias envolvendo seu estra-
na prática da fé cristã. De Ana Rodrigues, nho comportamento, o que a coloca
dizia-se que “nunca vai à igreja, senão como a terceira pessoa mais delatada da
mui raramente, nem se confessa, senão primeira visitação, atrás apenas do cris-
pela obrigação da quaresma”. Não bas-
7
tão-novo João Nunes Correia, poderoso
tassem os comentários que davam con- homem de negócios em Per nambuco,
ta da existência de uma sinagoga em acusado 47 vezes, entre outras heresi-
Matoim, a própria residência dos Antunes as, de possuir um crucifixo em um quar-
era transformada, aos olhos populares, to imundo, próximo a um servidor onde
em verdadeiro templo judaico, onde a fazia as suas necessidades corporais, e
matriarca do clã mantinha as tradições de ofendê-lo física e moralmente 9 , e do
da antiga lei, ensinando a fé proibida no cristão-velho Fer não Cabral de Taíde,

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senhor de engenho na Bahia, denuncia- inquisitorial seria uma constante duran-


do 39 vezes por acolher em seus domí- te o tempo em que o Santo Ofício per-
nios uma seita religiosa indígena, conhe- maneceu na Bahia, procurando amenizar
cida como a “Santidade de Jaguaripe”, as faltas, tirando destas o conteúdo
além de outros crimes. De toda a judaizante. Nove Antunes compareceri-
visitação, seria Ana Rodrigues a mais in- am à Mesa do Tribunal para confessar
sistentemente apontada como erros e procurar inocentar os demais
judaizante, e, também, a mais denunci- parentes. As confissões seriam feitas
ada entre as mulheres. durante os períodos da graça 10 concedi-
dos pelo visitador – um, à cidade de Sal-
A matriarca de Matoim e seus descenden-
vador, e outro, à região do Recôncavo –,
tes seriam acusados de criptojudaísmo
talvez sinal do grau de preocupação da
e de desrespeito à fé católica por todos
família com a gravidade de seus crimes,
os lados, e nem mesmo Heitor Antunes,
aproveitando os benefícios para os que
falecido cerca de quinze anos antes, fi-
confessassem durante esse período: per-
caria esquecido na caça popular que pro-
dão das fazendas e dos indivíduos que
curaria desnudar ao inquisidor os supos-
optassem por fazer inteira e verdadeira
tos hereges da Colônia. Do grupo de de-
confissão das culpas.
latores do clã, faziam parte vizinhos,

J
freqüentadores costumeiros da residên-
á no primeiro dia destinado às con-
cia, indivíduos chocados com os
fissões e denúncias durante a eta-
desregramentos da “gente de Matoim”,
pa baiana da visitação, Nicolau
antigos desafetos, desconhecidos e cu-
Faleiro de Vasconcelos procuraria Heitor
riosos que ouviam as histórias sobre a
Furtado de Mendonça para confessar
velha senhora e corriam para contá-las
seus erros e contar o que sabia. A seu
ao visitador, procurando mostrar boa
modo, procurava explicar as práticas da
vontade com o Tribunal. Na grande mai-
esposa e dos parentes desta antes que o
oria das vezes, as denúncias partiam de
inquisidor soubesse delas por outros de-
cristãos-velhos, chocados com os segui-
nunciantes: tentava remediar o
dos desrespeitos à fé cristã praticados
injustificável. Casado com Ana
pelos Antunes. Alguns dos próprios mem-
Alcoforado, afirmava no depoimento que
bros da família, preocupados em escla-
sua mulher lhe havia dito “que era bom
recer as dúvidas sobre a sinceridade cris-
vazar fora a água dos cântaros” quando
tã dos demais membros, compareceriam
do falecimento de alguém em casa, e que
às sessões de confissão perante o
ele próprio consentira nisso certa vez,
visitador, dando versões diversas para o
mas sem nenhuma intenção de judaís-
pouco apego católico do clã.
mo. Desculpava-se: só com a publicação
A presença dos Antunes na mesa do édito da Fé e leitura em voz alta do

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monitório nas igrejas no dia anterior, é que ele faleceu, nunca mais comera em
que soubera ser aquilo cerimônia dos mesa, nem carne, e que se punha detrás
judeus, motivo pelo qual apressava-se da porta e derramava água no chão, e
em esclarecer a involuntária falta. levantava a saia e se sentava no chão”.
Nicolau ainda defenderia o apego religi- Concluía com um alerta: “quanto risco
oso de sua esposa, que “nunca lhe dis- corriam os genros do dito Heitor Antunes
se, nem fez coisa em que entendesse ficarem desonrados”, 13 referindo-se aos
dela má intenção contra nossa santa fé laços que mantinham estes cristãos-ve-
católica, rezando a Nossa Senhora e fa- lhos, dos principais da terra, com a fa-
zendo romarias e devoção, e jejuando mília de judaizantes.
às vésperas de Nossa Senhora e fazendo
Algumas denúncias diziam ser de conhe-
esmolas e obras de que teme a Deus, e
cimento geral que Ana Rodrigues enter-
a tem por muito boa cristã e venturosa”.
rara seu esposo ao modo judaico, numa
Prova disso, queria fazer crer, é que “sua
ermida em terra virgem, e que fizera o
mulher e as primas e tias delas são ca-
pranto diferente do que usam os cristãos,
sadas com homens fidalgos e cristão-ve-
“sabadeando-se toda, abaixando a cabe-
lhos e que, por virtuosas, casaram tão
ça toda até o chão e tornando a levantar
bem”. 11
e tor nando a abaixar”,14 “levantando as
Não tardaria a avalanche de acusações fraudas e assentando-se com as carnes
contra a família. No dia seguinte ao de- no chão, guajando com a cabeça”, nun-
poimento de Nicolau de Vasconcelos co- ca mais voltando ao local onde o marido
meçariam as denúncias contra a foi enterrado. 15 O local escolhido para o
matriarca. O alfaiate cristão-velho Gaspar repouso eterno do patriarca dos Antunes,
Fer nandes inauguraria a avalanche de ao mesmo tempo em que deixa clara a
acusações afir mando que Ana Rodrigues herança judaica defendida pela família,
e suas filhas Beatriz e Leonor eram co- aponta para o receio de desconfianças
nhecidas publicamente como “as sobre o criptojudaísmo do clã que, te-
Macabéias”, 12
sinal de que a história do mendo ser denunciado à Inquisição, pro-
famoso parentesco contada por Heitor curava demonstrar uma sinceridade ca-
Antunes ainda ecoava e era causa de tólica que, na prática, era inexistente:
orgulho para os descendentes e de es- Heitor descansaria “em terra
cárnio para a sociedade colonial. Tam- catolicamente benta e judaicamente vir-
bém cristão-velho, o senhor de engenho gem”, 1 6 fato comum entre os cristãos-
Pero Novais, ao relatar ao inquisidor o novos judaizantes da época, numa ten-
período da morte de Heitor Antunes, de- tativa de velar a fé proibida que segui-
talhava o luto adotado pela viúva: “a dita am. Detrás da ermida que servia de últi-
velha mulher de Heitor Antunes, depois mo descanso para o esposo, mandara a

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viúva colocar as roupas e o par de botas da, por sua vez, de também seguir o luto
usados por Heitor: repreendida e acon- judaico na morte do marido: “deixou de
selhada a doar os trajes aos mais neces- vestir camisa lavada até que morreu”.17
sitados, respondia que “deixasse estar, Ao morrer Violante, agiria Ana da mes-
pois estava com seu dono”. Depois de ma forma que fizera com o esposo, ve-
certo tempo, a ermida, derrubada, seria lando-a de acordo com a fé que seguia.
substituída por nova igreja. Um dos fi- Preparava-se, enfim, para o futuro encon-
lhos de Heitor, Jorge Antunes, desejoso tro com o companheiro já falecido: o
de transferir os restos do pai para o novo cristão-velho Antônio Dias ouvira dizer
local, seria impedido pela mãe, que ale- “não lhe lembra a quem que a dita Ana
gava já estar ele sepultado em terra vir- Rodrigues de Matoim tem guardado as
gem e que ninguém deveria de lá tirá-lo. jóias de quando se casou para se enter-
Outra filha, Violante Antunes, era acusa- rar com elas quando morrer”. 18 Outra

Mapa do Recôncavo baiano em 1630, com a localização geográfica de Matoim e de seus engenhos. W.
Pinho, História social da cidade do Salvador , p. 264. Apud Luís Henrique Dias Tavares, História da Bahia ,
10ª ed., São Paulo/Salvador, Unesp/EDUFBA, 2001, p. 137.

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for ma de prestar homenagens à memó- la da incômoda presença revelaria um


ria de Heitor Antunes, seguindo as tradi- certo pendor do filho caçula dos Antunes
ções do judaísmo, eram as juras que fa- em desprezar o emblema cristão: em
zia – e ensinava as filhas a repeti-las – outro momento, teria sido espionado por
“pelo mundo que tem a alma de seu suas negras que, por um buraco, esprei-
marido ou pai”: jura que parece ter sido tavam-no a açoitar um crucifixo. Tendên-
pronunciada seguidamente e nas mais cia que também carregava seu ir mão Ál-
diversas situações, visto que um grande varo Lopes, flagrado em uma igreja en-
número de denunciantes afirmou presen- quanto expressava todo o seu descon-
ciar tal fala da boca de vários dos tentamento com a fé que era oficialmen-
Antunes. te obrigado a seguir: “olhando fitamente
para um crucifixo que estava no altar, o
Uma das acusações repetidas com mai-
ameaçou, pondo o dedo no nariz duas
or freqüência ao visitador, refere-se ao
ou três vezes e pondo outras tantas a
período em que Ana Rodrigues esteve
mão pelas barbas e, depois disto, lhe deu
doente em casa. Sua filha Beatriz trou-
duas ou três figas”. 20
xera para a beira da cama um crucifixo,
Entre os que ouviram a tal história so-
esperando que o objeto sagrado trouxes-
bre os devaneios da moribunda
se amparo e alívio aos sofrimentos da
judaizante, estava o casal de cristãos-
mãe. Surtiu efeito contrário: mesmo de-
velhos Pero de Aguiar d’Altero e Custó-
bilitada, a matriarca reuniria forças para
dia de Faria. Pero de Aguiar fora o pri-
repetir seguidamente, “tirai-o lá, tirai-o
meiro a denunciar o ocorrido, mas fize-
lá”, procurando de toda forma afastar de
ra questão de amenizar as acusações
si o símbolo do martírio cristão, no que
com elogios à família: “a dita velha Ana
contaria com a ajuda de um dos filhos.
Roiz e suas filhas são boas cristãs e as
Assustadas com o comportamento da
vê fazer obras disso, sendo devotas de
mãe e com as conseqüências de tais im-
Nossa Senhora e fazendo romarias, indo
propérios, Beatriz alertava, em nome das
às igrejas, dando esmolas e fazendo ou-
irmãs: “mãe, não nos desonreis”; “olhai
tras boas obras de boas cristãs”.21 Tal-
o que dizeis, que somos casadas com
vez a explicação para os seus comentá-
homens fidalgos e principais da terra”,
rios a respeito da exemplar religiosida-
“homens honrados”, “cristãos-velhos e
de dos Antunes esteja no parentesco com
nobres”. 1 9 Ana, porém, para o temor e
o clã: Custódia era uma das ir mãs de
reprovação das cuidadosas filhas, conti-
Sebastião de Faria, genro dos Antunes.
nuaria a exigir que o retábulo com a ima-
gem de Cristo fosse retirado do ambien- Também Custódia compareceria para
te, tor nando a dizer, “tirai-o lá, tirai-o lá”. contar o que presenciara. Além de con-
A ajuda dada à mãe enferma para livrá- fir mar o que contara o esposo, afirmava

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desconfiar de haver sido Heitor Antunes perante o representante ao Santo Ofício.


judaizante, “pois não nomeava Jesus
A velha matriarca também escandaliza-
Cristo, a quem os judeus negam”. Por
ria a todos ao repetir blasfêmias contra
várias vezes havia, “de propósito e de
outros importantes símbolos do catolicis-
indústria”, experimentado a religiosida-
mo. Escolhida para madrinha da recém-
de de Heitor, quando este se encontrava
nascida filha de uma tal Isabel Pestana,
acamado e doente. Aconselhava-o a cla-
recusara o convite, posto que a cerimô-
mar as bênçãos de Nosso Senhor:
nia seria realizada na mesma er mida
“chamai por Jesus, que Jesus vos valha,
onde fora sepultado Heitor Antunes. Des-
chamai pelo nome de Deus”, encontran-
culpava-se: “depois que o dito seu mari-
do sempre como resposta a negativa do
do morreu, não entrava naquela igreja
Macabeu de Matoim , visto que “o dito
na qual ele estava enterrado”.24 Durante
Heitor nunca chamou por Jesus nem quis
outro batizado, este de uma sua bisne-
nomear o nome de Jesus” – a quem os
ta, afirmara: “olhai que negro batismo!”.
judeus não reconhecem como o Messias
Quando de um dos partos de suas filhas,
prometido –, “e somente dizia como dan-
clamando-se por Nossa Senhora para que
tes, valha-me Deus”. Quanto a Ana
ajudasse nos trabalhos, repetira,
Rodrigues, “que sempre foi sua amiga”,
desafiante: “não me faleis nisso que não
seria ainda mais taxativa. Por ser presen-
no posso dizer!”. 25
ça constante na casa dos Antunes, e cer-
tamente contando com a confiança e in- Se Antônio José Saraiva, em obra clássi-
timidade da família, a velha senhora brin- ca, definiu a Inquisição como “fábrica de
dava-a em ocasiões especiais com o prin- judeus”, 26 outra denúncia de peso con-
cipal alimento dos judeus: “muitas vezes tra o clã, que nos faz pensar no Santo
dava pão a ela denunciante, quando o Ofício também como uma espécie de “fá-
amassava, que era miudamente. E sem- brica de espias” a desintegrar as socia-
pre ela denunciante notou que o dito pão bilidades existentes, foi feita pelo cris-
era sempre ázimo”. 22
Dizia-se também de tão-velho Fernão Garcia, estudante de
Ana e de suas filhas, que evitavam cer- quinze anos, companheiro de classe de
tos alimentos, à maneira dos judeus: a Manuel de Faria, filho de Sebastião de
cristã-velha Gracia de Siqueira acusava Faria e de Beatriz Antunes. Segundo
Beatriz Antunes de não comer coelho, Fernão, Manuel era avesso às orações,
razão pela qual certa vez fora presente- não tinha o livro das horas de Nossa Se-
ada com um destes animais, capturado nhora, não comparecia às rezas, poucas
e morto pelos escravos de Beatriz. 23
As vezes vendo-o “rezar pelas contas”, e
próprias Macabéias confir mariam essa saía das missas “antes de se alevantar a
repulsa alimentar – à moda da tradição Deus”. O jovem delator havia tramado
dietética judaica – em suas confissões uma verdadeira e engenhosa arapuca

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para confir mar a desviada religiosidade depor. Confessaria ter derramado toda a
do colega de estudos: “ele denunciante água de casa quando da morte de um
molhou o dedo no tinteiro e tocou por escravo, o que fez por lhe haver ensina-
detrás, sem ser sentido, no filete da ca- do sua mãe que, por sua vez, aprendera
misa ao dito Manuel de Faria, para co- o costume com Ana Rodrigues, mas “que
nhecer se a trazia também hoje, que é sua mãe não lhe nomeou lei de Moisés,
sábado. E que hoje que é sábado, viu ao nem suas cerimônias”, assim agindo
dito Manuel de Faria com outra camisa “sem entender que era cerimônia de ju-
lavada”. Querendo evitar qualquer dúvi- deus e sem má intenção”. Também lem-
da, infor mava ao visitador que realizara brava do falecimento da tia Violante
a experiência por mais de uma vez, e o Antunes: no dia da morte desta, “havia
resultado se repetira. 27
em casa de sua mãe, Beatriz Antunes,
panela de carne para jantar, de vaca e
A desbocada senhora e sua prole iam,
galinhas e leitões assados, porque havia
assim, acumulando críticos aos seus
em casa hóspedes”. Chegando a notícia
comportamentos destemperados enquan-
da morte de Violante e de “como a trazi-
to tentavam manter as aparências de
am morta para a enterrar, sua mãe,
bons cristãos, disfarçando o judaísmo e
Beatriz Antunes, não quis comer nada de
freqüentando as missas, procurando abo-
carne aquele dia ao jantar, nem quis co-
lir as desconfianças e fugir às pressões
mer nada, senão somente quando que-
e cobranças da sociedade colonial. Eram
ria pôr-se o sol, a fizeram comer, e co-
judeus em casa, longe dos olhos popu-
meu então peixe”. Admoestada pelo
lares, e faziam-se cristãos nas ruas, fin-
visitador das fortes suspeitas sobre ela,
gindo integrar a religião dominante.
a mãe e a avó, “que são todas judias e
Conscientes do sem-número de acusa-
vivem afastadas da lei de Jesus Cristo, e
ções que deveriam pesar sobre as cos-
têm a lei de Moisés”, Custódia respon-
tas, sobretudo da velha matriarca, esten-
deu ser boa cristã e que somente depois
dendo-se as denúncias a todos do clã,
de publicado o édito da Fé é que enten-
não tardariam a perceber a ur gência em
deu ser cerimônia judaica, vindo por isso
c o n f e s s a r, à sua maneira, os
se acusar. 28
desregramentos da família, repetindo o
caminho trilhado por Nicolau de Vascon-
Beatriz repetiria, com outras palavras, o
celos desde o primeiro dia dos trabalhos
depoimento da filha: por dezessete ou
inquisitoriais no trópico.
dezoito vezes lançara fora a água de casa
Quase ao fim do período da graça, uma quando da morte de alguém e “manda
outra Custódia de Faria, esta filha de amortalhar em lençol inteiro, sem lhe ti-
Beatriz Antunes e casada com Ber nardo rar ramo, nem pedaço algum”; sendo o
Pimentel de Almeida, compareceria para morto seu parente, “por nojo, nos pri-

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meiros oito dias não comia car ne”; ao gava a água fora quando da morte de al-
afirmar alguma coisa, jurava “pelo mun- guém em casa “porque lavavam a espa-
do que tem a alma de meu pai”; ao assar da do sangue nela”. Tudo infor mava ter
em casa “quarto de car neiro, lhe manda aprendido ainda na Sertã, em Portugal,
tirar a landoa por ter ouvido que não se por volta de trinta e cinco anos antes,
assa bem com ela, e também não come com “uma sua comadre cristã-velha, Inês
lampreia [...] porque lhe tomou nojo, mas Rodrigues, parteira, viúva, [...] a qual ora
come os mais peixes sem escama, salvo já é defunta” e, “cuidando ela ser isto
os d’água doce, e não come coelho”. bom, o ensinou também neste Brasil a
Tudo fazia por lhe haver ensinado sua suas filhas”. Na morte do marido, conti-
mãe, “dizendo-lhe que era bom fazê-las, nuava, teria ficado assentada atrás da
assim, sem lhe declarar mais alguma porta “por desastre, por acontecer ficar
outra razão, nem causa”. Ter minaria o ali assim a jeito o assento”. Quanto ao
depoimento dizendo que “nunca teve período em que esteve doente e foi acu-
intenção de judia e nunca soube nem sada de expulsar o crucifixo de perto da
entendeu que as ditas coisas eram ceri- cama, afirmou a Heitor Furtado que “che-
mônias judaicas, nem que nelas ofendia gou a tresvaliar, e dizem que falava de-
a Jesus Cristo, senão depois que nesta satinos, mas não lembrava se nesse tem-
terra entrou a Santa Inquisição”. 29
po falou ou fez alguma coisa com ofen-
sa de Deus”. O depoimento tornava ain-
No dia seguinte, querendo mostrar boa
da mais evidentes os desregramentos da
vontade com o Santo Ofício, seria a vez
velha confidente, desmascarada pelo
da matriarca Ana Rodrigues acusar-se
visitador, que assim explicava a conclu-
perante o visitador em longo depoimen-
são a que chegara:
to. Depois de desfilar suas origens, da-
ria vários exemplos de seu comporta- está mui forte a presunção contra ela

mento judaico, mas para tudo apresen- que é judia e vive na lei de Moisés, e

tando desculpas: confessava estar há se afastou da nossa santa fé católica,


quatro ou cinco anos sem comer cação e que não é possível fazer ela todas as

fresco “porque lhe faz mal ao estômago, ditas cerimônias de judeus, tão conhe-

mas que o come salgado, assado, e ou- cidas e sabidas serem cerimônias de
trossim, não come arraia, mas que nos judeus, como botar água fora quando

outros tempos atrás comia arraia e alguém morre, e não comer oito dias

cação”. Ao abençoar os netos, dizendo carne no nojo, e jurar pelo mundo que
a bênção de Deus e minha te cubra , “lhes tem a alma do defunto, e não comer

põe a mão estendida sobre a cabeça, cação nem arraia, e pôr a mão na ca-

depois que lhe acaba de lançar a bên- beça aos netos quando lhes lançava a
ção”, o que faz por descuido, e que jo- bênção, tudo isto são cerimônias ma-

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nifestamente judaicas e que ela não dou lançar fora água quando da morte
pode negar, e que por isso fica claro de filho, filha ou escravos; que, “de
que é judia e que as fez como judia. 30
dezessete anos a esta parte”, jura “pelo
mundo que tem a alma de seu pai, e des-
Conhecedor dos indícios reveladores de
ta jura usava pela ouvir jurar a sua mãe”;
judaísmo, Heitor Furtado de Mendonça
que amortalhava os mortos “sem coser
agruparia as peças processuais para en-
com agulha e linha a mortalha do len-
caminhar o caso à sede da Inquisição de
çol”; que ouviu dizer “que é bom tirar as
Lisboa.
landoas aos quartos traseiros das reses
A confissão de Leonor Antunes daria con- miúdas”, assim fazendo sempre; que não
tinuidade à ladainha: que lançou e man- come lampreia por nojo, mas “come os

Nicholas Turner e Carol Plazzotta. Drawnings by Guercino from British collections (catálogo da
exposição). Londres/Milão/Roma, British Museum Press/Leonardo/De Luca, 1991, p. 220. Apud Francisco
Bethencourt, História das Inquisições : Portugal, Espanha e Itália – séculos XVI-XIX, São Paulo,
Companhia das Letras, 2000.

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mais peixes sem escamas, e lhe sabem a u t o r i z a ç ã o . 3 3 Dias depois voltaria à


muito bem”; quando, em certa vez, uma Mesa para confessar o que mais lembra-
escrava degolou uma galinha defronte de ra: jurava pelo mundo que tem a alma
sua porta, teria ordenado que lançasse do pai; vestia-se aos sábados de camisa
serragem em cima do sangue derrama- lavada, “porém que a veste também to-
do, “porque andava aí perto um porco”, dos os mais dias da semana e domingos
para que “não ficasse inclinado a lhe [...] por limpeza”; mandava seus negros
comer os pintões”. Afir mava, porém, trabalharem aos domingos e dias santos,
que, em tudo que fazia, não tinha inten- mas só “nos tempos da necessidade,
ção de judaizar, assim agindo “por lhas porque vê que assim o costumam fazer
ensinarem da dita maneira”, e que “fi- geralmente nesta terra”. 34
cou muito triste”, quando da publicação
Ainda três netos de Ana Rodrigues com-
do édito da Fé, “por ver que podiam cui-
pareceriam para contar seus erros ao
dar que ela era judia”. Dizia tudo haver
v i s i t a d o r. I s a b e l , f i l h a d e V i o l a n t e
aprendido com a mãe Ana Rodrigues,
Antunes, assumiria haver lançado fora a
“sem malícia, também por lho ensina-
água de casa ao falecer um menino es-
rem”. 31
cravo, sem nunca mais repetir a dita ce-
Nuno Fer nandes prestaria seu depoimen- rimônia, nem quando da morte de uma
to ao visitador na mesma data que a mãe filha sua. Seu irmão, Lucas d’Escobar,
e as ir mãs. Declarava que no dia da mor- confessaria o mesmo costume, que tinha
te de sua ir mã Violante, também ele, visto ser praticado por sua mãe, repetin-
“com nojo, não comeu nada todo o dia do-o por três ou quatro vezes. A última
[...] e somente à noite comeu peixe”, o das confissões feitas a Heitor Furtado por
que fez sem saber tratar-se de cerimô- um dos membros dos Antunes foi a de
nia judaica. Maior surpresa deve ter des- Ana Alcoforado, filha de Isabel Antunes
pertado ao inquisidor quando confessou e esposa do inaugurador das denúncias,
que, “sabendo ele que o livro chamado Nicolau Faleiro de Vasconcelos. Como os
Diana era defeso, ele contudo leu por ele demais, admitiu jogar fora toda a água
muitas vezes, não lhe lembra quantas, e de casa por motivo de falecimento, e que
outrossim confessou que tem Ovídio de isto havia feito “em diversos tempos”,
metamaforgis em linguagem, não saben- sete ou oito vezes. Negava contudo que
do ser defeso (e) confessou mais, que tivesse adotado o costume por lhe ensi-
sabendo que Eufrozina é defeso, leu por nar Ana Rodrigues, tendo-o antes visto e
ele uma vez”. 32
Mantinha em seu poder aprendido com um escravo: da avó her-
apenas Ovídio , sendo mandado por Hei- dara apenas o juramento “pelo mundo
tor Furtado que o trouxesse à Mesa, e que tem a alma de Heitor Antunes”, ten-
proibido de sair da cidade sem prévia do-o ouvido a muitas outras pessoas,

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usando-o “muitas vezes, perante suas parte, dona Ana; rezar orações judaicas
parentas e outras pessoas”, “sem ruim contra a parede, sabadeando, abaixan-
intenção”. Advertida pelo inquisidor da do e levantando a cabeça; no luto, co-
gravidade de seus atos, afinados com as mer em mesa baixa, ou comer peixe,
práticas dos judeus, “que costumam ju- ovos e azeitonas por amargura, ou ficar
rar pelo Orlon de mi padre , que quer di- atrás da porta por tristeza; enterrar o
zer o mesmo pelo mundo que tem a alma defunto em terra virgem e em covas
de meu pai ”, respondeu ser boa cristã, muito fundas, do que foi acusada
“mas que fez as ditas coisas sem enten- Violante Antunes, quando da morte do
der que eram judaicas”, e que “depois esposo, e Ana Rodrigues, durante o luto
que se publicou a Santa Inquisição nes- do marido e da própria filha Violante;
ta cidade [...] nunca mais as fez, e da derramar fora a água dos potes quando
culpa que tem em as fazer exterior men- alguém morre em casa, o que pratica-
te, sem ter no coração erro algum da fé mente todos os membros da família afir-
católica, pede perdão e misericórdia”. 35
maram ter feito; abençoar os filhos pon-
do-lhes as mãos sobre a cabeça e bai-
Das heresias confessadas pelos Antunes,
xando-as pelo rosto, sem fazer o sinal
muitas faziam parte do monitório
da cruz, o que fez Ana e ensinou às fi-
inquisitorial usado pelo visitador para
lhas para que repetissem. Outras práti-
classificar os erros que lhe eram relata-
cas, embora não aparecessem citadas no
dos, e eram classificadas como sinal evi-
monitório, agravavam as desconfianças
dente de judaísmo: 36 seguir ou aprovar
sobre o clã, como, por exemplo, o feste-
ritos ou cerimônias judaicas, o que to-
jado parentesco com os Macabeus da
dos confessaram, afirmando desconhe-
Antigüidade, as ofensas contra o crucifi-
cer suas origens; guardar o sábado, sem
xo e o batismo, ou a negativa da
trabalhar, enfeitando-se e vestindo-se
matriarca em freqüentar a igreja onde
bem neste dia, o que confessou Nuno
enterrara o esposo.
Fer nandes, e foram acusadas Ana
Rodrigues e suas filhas; cobrir o sangue O inquisidor tomaria as providências que
de animais mortos, costume confessado julgava necessárias para apurar as res-
por Leonor Antunes; não comer ponsabilidades. Entre denunciados e
toucinho, lebre, coelho ou aves afoga- confessantes, as evidências cairiam mais
das, enguia, polvo, congro, arraia, nem fortemente sobre Ana Rodrigues. Presa
peixe sem escamas, do que foram acu- pelo visitador, seria enviada a Lisboa
sadas e confessaram a matriarca e as fi- numa jaula, tendo apenas a companhia
lhas; solenizar a Páscoa do Pão Ázimo de uma escrava para aquecê-la durante
comendo pão ázimo em bacias e a viagem, e seria encarcerada nos Estaus,
escudelas novas, do que foi acusada, em sede do Santo Ofício na cidade, enquan-

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to aguardava o desenrolar do processo. como havia sido preso por um falso fa-
miliar do Santo Ofício, acabara solto por
Temendo as conseqüências de uma pro-
provas insuficientes.
vável condenação, os descendentes de
Ana Rodrigues tentariam, a todo custo, Durante a segunda visitação inquisitorial

provar sua inocência, procurando evitar ao Brasil, iniciada em 1618, ouvir-se-iam

o confisco dos bens e a desonra da fa- ecos do irregrado comportamento dos

mília. De idade avançada e enfraquecida Antunes, novamente apontados ao

pela longa e cansativa viagem, a visitador como grupo judaizante. As his-

matriarca de Matoim morreria no cárce- tórias sobre Ana Rodrigues e seus des-

re, fato que não impediria que fosse con- cendentes ainda permaneciam vivas na

siderada culpada e queimada em efígie, memória e eram repetidas, ocasionando

pois seus ossos – julgavam os o tal roubo da imagem que representava

inquisidores – não eram dignos de per- a velha macabéia a arder no infer no:

manecer entre as ossadas de cristãos. As culpada de judaísmo era condenada a

filhas Beatriz e Leonor seriam processa- passar a eternidade nos subterrâneos da

das e sentenciadas em 1603 a saírem em crença que era acusada de negar! O

auto de fé público e a abjurar em forma, exemplo de Ana Rodrigues para as no-

mais cárcere e hábito com fogos. Já Ana vas gerações de neoconversos, contudo,

Alcoforado, neta da matriarca, permane- não seria apagado por seu destino trági-

ceria presa no reino com seqüestro de co: a matriarca assim como outros repre-

bens até o breve papal, que decretou per- sentantes dos Antunes alcançados pelas

dão geral aos cristãos-novos, em 1605 – garras da Inquisição seriam baluartes da

em troca de gordo donativo à coroa por- sobrevivência judaica oculta,

tuguesa –, ficando livre de um processo criptojudaica, durante o tempo em que

em que possivelmente sofreria penas se- o mundo português viveu – por cerca de

melhantes às de que foram vítimas suas três séculos! – a longa noite da intole-

tias. Já Nuno Fer nandes, na década de rância e do monopólio da fé.

1610, seria também preso e enviado Artigo recebido para publicação em


para a Inquisição de Lisboa. Porém, agosto de 2003.

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N O T A S
1. Édito de expulsão dos judeus de Portugal, em 5/12/1496. Apud David Augusto Canelo, Os
últimos criptojudeus em Portugal , Belmonte, Câmara Municipal de Belmonte / Marques &
Pereira Ltda., 2001, p. 206-207.
2. Antônio de Aguiar Daltro contra Adão Gonçalves e Antônio Mendes Beiju, em 16/9/1618.
Livro das Denunciações que se fizerão na visitação do Santo Ofício à cidade do Salvador da
Bahia de Todos os Santos do Estado do Brasil, no ano de 1618 – inquisidor e visitador o
licenciado Marcos Teixeira, Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro , 1927, vol. XLIX,
Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional, 1936.
3. “Um dos conceitos centrais do judaísmo, que pode se referir ao ensinamento judaico do
Pentateuco, ou da Bíblia hebraica, ou, em seu sentido mais amplo, a toda a tradição judai-
ca”. Alan Unter man, Dicionário judaico de lendas e tradições , Rio de Janeiro, Jorge Zahar,
1992, p. 264.
4. Anita Novinsky, Cristãos-novos na Bahia: 1624-1654 , São Paulo, Perspectiva/Edusp, 1972.
5. Sonia Siqueira, A Inquisição portuguesa e a sociedade colonial , São Paulo, Ática, 1978.
6. Ronaldo Vainfas, A heresia dos índios : catolicismo e rebeldia no Brasil colonial, São Paulo,
Companhia das Letras, 1995, p. 166.
7. [João Álvares Pereira] contra Pedro Homem, Nuno Fernandes, Álvaro Lopes Antunes e irmãs,
Ana Roiz, Violante Antunes, em 31/7/1591. Primeira visitação do Santo Ofício às partes do
Brasil pelo licenciado Heitor Furtado de Mendonça capelão fidalgo del rey nosso senhor e do
seu desembargo, deputado do Santo Ofício. Denunciações da Bahia 1591-1593 , São Paulo,
Paulo Prado, 1925, p. 256-259.
8. Como bem salienta Vainfas, “faz-se necessário, portanto, divorciar, no caso da América por-
tuguesa, a idéia de privacidade da idéia de domesticidade. As casas coloniais, fossem gran-
des ou pequenas, estavam abertas aos olhares e ouvidos alheios, e os assuntos particulares
eram ou podiam ser, com freqüência, assuntos de conhecimento geral”. Ronaldo Vainfas,
Moralidades brasílicas: deleites sexuais e linguagem erótica na sociedade escravista, in Laura
de Mello e Souza (org.), História da vida privada no Brasil : cotidiano e vida privada na Amé-
rica portuguesa, São Paulo, Companhia das Letras, 1997, p. 227.
9. Elias Lipiner, João Nunes, o rabi da lei dos judeus em Pernambuco, in Os judaizantes nas
capitanias de cima : estudos sobre os cristãos-novos do Brasil nos séculos XVI e XVII, São
Paulo, Brasiliense, 1969; Sonia Siqueira, O comerciante João Nunes, in Eurípedes Simões de
Paula (org.), Portos, rotas e comércio , Anais do V Simpósio Nacional dos Professores de
História – Campinas, São Paulo, USP, 1971; José Antônio Gonçalves de Mello, Um ‘capitalis-
ta’ cristão-novo: João Nunes Correia, in Gente da nação : cristãos-novos e judeus em
Pernambuco, 1542-1654, 2. ed., Recife, Fundaj, Massangana, 1996; Angelo A. F. de Assis,
Um ‘rabi’ escatológico na Nova Lusitânia : sociedade colonial e Inquisição no Nordeste qui-
nhentista – o caso João Nunes, 1998, Dissertação (Mestrado em História), Universidade Fe-
deral Fluminense, Niterói.
10. O período da graça, segundo o édito da Inquisição de outubro de 1536, corresponde ao
prazo de trinta dias concedido, “em que os culpados seriam absolvidos das censuras e penas
de excomunho maior, com penitências saudáveis para as suas almas”, dependendo da since-
ridade do depoimento prestado, julgada pelos inquisidores encarregados dos serviços. Apud
Elias Lipiner, Santa Inquisição : terror e linguagem, Rio de Janeiro, Documentário, 1977, p.
130.
11. Confissão de Nicolau Faleiro de Vasconcelos, cristão-velho, na qual diz contra sua mulher
dona Ana (Alcoforado), cristã-nova, no tempo da graça, em 29 de julho de 1591. In Ronaldo
Vainfas (org.), Santo Ofício da Inquisição de Lisboa : confissões da Bahia, São Paulo, Compa-
nhia das Letras, 1997.
12. [Gaspar Fernandes] contra dona Lianor, Britis Antunes e a mãe delas cristãs-novas, em 30/7/
1591. Denunciações da Bahia 1591-1593 , op. cit., p. 247-248.
13. [Pero Novais] contra Fernão Cabral, cristão-velho, e Manuel de Paredes, cristão-novo, e a
mulher e filhas de Heitor Antunes, de Matoim, cristãos-novos, em 30/7/1591. Ibidem, p.
253-256.
14. [Margarida Pacheca, mulher de Antônio da Fonseca] contra Ana Roiz, Violante Antunes, Caterina
Mendes, Maria Lopes, Mécia Rodrigues, Fernão Cabral, em 21/8/1591. Ibidem, p. 392-394.

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15. [Antônio da Fonseca] contra Ana Roiz e Fernão Cabral, em 6/8/1591. Ibidem, p. 275-276.
16. Elias Lipiner, Os judaizantes nas capitanias de cima , op. cit., p. 127.
17. [Victoria de Bairros, que não sabia assinar] contra Álvaro Sanches, Manuel de Paredes, Ana
Roiz, em 24/8/1591. Denunciações da Bahia 1591-1593 , op. cit., p. 437-438.
18. [Antônio Dias, da Companhia de Jesus] contra Ana Roiz, Henrique Mendes, Phelipe de Guillem,
em 16/8/1591. Ibidem, p. 337-338.
19. [Custódia de Faria] contra Heitor Antunes, Ana Roiz etc., em 27/8/1591; [Pero de Aguiar
d’Altero] contra Ana Rodrigues, cristã-nova de Matoim, em 30/7/1591; [Isabel de Sandales]
contra Ana Roiz etc., em 23/10/1591. Ibidem, respectivamente, p. 477-481; p. 250-251; p.
539-540.
20. [Ines Roiz, que não sabia assinar] contra Álvaro Lopes Antunes, em 30/10/1591. Ibidem, p.
549.
21. [Pero de Aguiar d’Altero] contra Ana Rodrigues, cristã-nova de Matoim, em 30/7/1591. Ibidem,
p. 250-251.
22. [Custódia de Faria] contra Heitor Antunes, Ana Roiz etc., em 27/8/1591. Ibidem, p. 477-481.
23. [Gracia de Siqueira, que não sabia assinar] contra Beatriz Antunes e Fernão Gomes, em 7/9/
1592. Ibidem, p.493-494.
24. Elias Lipiner, Os judaizantes nas capitanias de cima , op. cit., p. 127.
25. [Antônio da Fonseca] contra Ana Roiz e Fernão Cabral, em 6/8/1591. Denunciações da Bahia
1591-1593 , op. cit., p. 275-276.
26. Antônio José Saraiva, Inquisição e cristãos-novos , 6. ed., Lisboa, Estampa, 1994.
27. [Fer não Garcia, estudante que já denunciou] contra Manuel de Faria, em 7/9/1591.
Denunciações da Bahia 1591-1593 , op. cit., p. 494-495.
28. Confissão de dona Custódia de Faria, cristã-nova, em 31/1/1592. In Ronaldo Vainfas (org.),
Santo Ofício da Inquisição de Lisboa : confissões da Bahia, op. cit., p. 271-274.
29. Confissão de Beatriz Antunes, cristã-nova, no tempo da graça, em 31/1/1592. Ibidem, p.
275-278.
30. Confissão de Ana Rodrigues, cristã-nova, no tempo da graça, em 1/2/1592. Ibidem, p. 281-
286.
31. Confissão de dona Leonor, cristã-nova, no tempo da graça, em 1/2/1592. Ibidem, p. 288-
293.
32. Segundo Vainfas, “trata-se de Metamorfoses , de Ovídio (43 a.C. – 18 d.C.), de que havia
edição em português proibida pela Inquisição no século XVI” e “da comédia Eufrozina , de
Jorge Ferreira de Vasconcelos, publicada em 1555 e depois proibida pela Inquisição”. Ibidem,
p. 300, nota.
33. Confissão de Nuno Fernandes, cristão-novo, no tempo da graça, em 1/2/1592. Ibidem, p.
299-300.
34. Confissão de Nuno Fernandes, cristão-novo, no tempo da graça, em 9/2/1592. Ibidem, p.
343-344.
35. Confissão de dona Ana Alcoforada, cristã-nova, no tempo da graça do recôncavo, no último
dia dele, em 11/2/1592. Ibidem, p. 358-361.
36. “O monitório utilizado foi, provavelmente, o baseado no Regimento de 1552 ou no Edital da
Fé de 1571, elaborados no tempo em que o cardeal d. Henrique, ir mão de d. João III e tio-
avô de d. Sebastião, era o inquisidor-mor do Santo Ofício português. Monitório muito calca-
do, é verdade, no de 1536, porém acrescido das culpas que, nesse intermezzo , passaram à
jurisdição inquisitorial”. Ronaldo Vainfas (org.), Santo Ofício da Inquisição de Lisboa : confis-
sões da Bahia, op. cit., p. 21.

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Beatriz Catão Cruz Santos


Doutora em História pela UFF. Recém-doutora UFRJ.

As Capelas de Minas no
Século XVIII

O texto faz um breve histórico do culto de The text is a short historical note on the
São Gonçalo do Amarante na América worship of Saint Gonçalo from Amarante,
portuguesa e tem por objetivo central analisar Portugal, in the Portuguese America, and the
um conjunto de petições que envolvem os main purpose is to analyse a series of petitions
devotos de São Gonçalo, em sua maioria, da that are related to the devotees, the
comarca de Rio das Mortes, capitania de Minas majority of them from comarca do Rio das
Gerais no século XVIII. Através da leitura dessas Mortes (Death River Judicial District), located in
representações dirigidas ao rei, que demandam a the Minas Gerais Captaincy, 18th century. From
ampliação da assistência espiritual aos moradores reading these representations to the King that
da região e do diálogo com a historiografia request the spiritual assistance enlargement to
sobre a cidade e as ir mandades na América the region dwellers, and by the dialogue on the
portuguesa, este ensaio afirma que as historiografy of the town and of the brotherhoods
capelas se definem como um lugar in Portuguese America, this paper affirms that the
a meio caminho entre o sertão chapels are defined as places in between the
e a cidade colonial. backlands and the colonial town.
Palavras-chave: santos, ir mandades, sertão, Keywords: saints, brotherhoods, sertão, colonial
cidade colonial, Minas Gerais. town, Minas Gerais.

P
or que as edificações religiosas santos? Por que os agrupamentos urba-
estão quase sempre registradas nos se davam em torno das capelas? Por
nas plantas e paisagens das ci- que, passado muito tempo, com a diver-
dades da América portuguesa? Por que sificação da malha urbana, as igrejas e
as cidades coloniais recebiam nomes de suas paróquias continuam a marcar o

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centro das ruas? 1 sa. 4 Segundo o teólogo Arlindo Cunha,


entre outros autores, a importância de
Essas e outras questões correlacionadas
sua devoção em Portugal só rivaliza
podem ser encaminhadas por meio da
com aquela dedicada a Santo Antônio
relação entre cidade colonial e religiosi-
de Lisboa.
dade católica na América portuguesa. A
partir dessas questões que assinalam Seu culto parece ter sido transmitido
uma percepção de nossa urbs , este en- para a América portuguesa por intermé-
saio tem por objetivo analisar um con- dio dos homens do mar, que estavam
junto de representações dirigidas ao rei, entre seus fiéis. Para sustentar essa hi-
que envolvem devotos de São Gonçalo, pótese, além das infor mações sobre a
em sua maioria, da comarca de Rio das história do culto em Portugal, há que se
Mortes, capitania de Minas Gerais no sé- investigar evidências documentais como
culo XVIII. o ex-voto encomendado por Manuel Pe-
reira Marante em Minas Gerais,5 e as pre-
Por meio desse conjunto documental,
ciosas indicações fornecidas pelos
que localizei ao procurar registros sobre
folcloristas. É comumente definido como
a festa de São Gonçalo do Amarante, 2 é
um culto popular , com características
possível reconhecer o culto ao santo em
heterodoxas , 6 e grande parte da litera-
algumas localidades de Minas Gerais e,
tura a respeito vem dos folcloristas e
mais importante, considerar as capelas
etnógrafos, que tornaram seu culto e, em
um lugar a meio caminho entre cidade e
particular, a dança de São Gonçalo, um
sertão. Para chegar a esse ponto, o arti-
objeto de estudo.
go faz um rápido histórico do culto de
São Gonçalo e, quando se fizer necessá- Câmara Cascudo indica que seu culto
rio, uma releitura da historiografia sobre teria vindo para a América portuguesa
a cidade e as ir mandades no período por meio de seus fiéis, sendo “extrema-
colonial. mente festejado” na Bahia do século
XVIII. 7 Na capela do Rio Vermelho, se-
O CULTO DE S ÃO G ONÇALO

I
gundo João da Silva Campos, a festa “era
númeras dúvidas rondam a biogra- celebrada com muito arrojo pelos pes-
fia de São Gonçalo do Amarante. O cadores”, que a sustentavam na década
santo teria nascido em Portugal, fa- de 30 do século XIX, com uma missa
lecendo a 10 de janeiro, cerca de 1284, festiva durante a chamada “festa das jan-
em Amarante. São Gonçalo não foi ca- gadas”. 8 Por ora, pode-se apenas dizer
nonizado, mas o que importa assinalar, que o santo fora introduzido na América
a meu ver, é que foi historicamente for- durante a colonização, encontrando de-
jado como santo, guardando forte rela-
3
votos ou trazendo para a sua festividade
ção com a identidade nacional portugue- elementos oriundos de diversos grupos

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sociais. O “Sermão de São Gonçalo”, vações de Vieira parecem indicar uma


pregado pelo padre Antônio Vieira no familiaridade, uma intimidade entre os
século XVII, pode ser tomado como um devotos e os santos, que caracterizava a
documento a esse respeito. 9
religiosidade popular na América portu-
guesa, tal como nos indicam diversos
Nesse panegírico a São Gonçalo, Vieira
autores da historiografia.11
reconta ao auditório e seus leitores como
ele foi santo e admirável desde menino. Vale lembrar o contraponto estabeleci-
Na quinta idade da vida, como define o do no Ser mão entre o culto ao santo em
pregador, São Gonçalo é “pai de famíli- Amarante e os domínios portugueses,
as”, “pai universal” tanto pelos diferen- considerando-os como espaços relativa-
tes agentes que a ele recorrem, como mente contínuos. 12 Se no berço da de-
pela variedade de motivos pelos quais voção a São Gonçalo, o Sermão procura
seus devotos lhe fazem petições, às testemunhar a “multidão” que visita as
quais o santo responde como pai: “po- relíquias do santo, a crer no seu patrocí-
deroso”, “vigilante”, “amoroso”, que, nio, “nas remotíssimas terras da África,
quando necessário, castiga. 10 As obser- da Ásia e desta América onde apenas há

Ponte entre a vila da Cachoeira e a povoação de São Félix, 1818. Arquivo Nacional.

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lugar , que não tenha levantado templos, gião e que distavam das cidades por ra-
ou altares a São Gonçalo, só com a invo- zões de ordem natural – o número de
cação de seu nome, como se nele se ti- léguas, as chuvas, os despenhadeiros –,
vera sacramentado, pelo efeito maravi- mas, fundamentalmente, pelas dificulda-
lhoso de suas graças de tão longe o ex- des interpostas à manutenção do culto
perimentam, e têm presente”. 13
Ou seja, divino.
onde a Igreja está ausente como institui-
ção, o poder, a eficácia de São Gonçalo Evidentemente, o critério “pobreza” re-

se faz presente. petido nas representações é relativo.


Para darmos conta deste, de forma pre-
A meu ver, mais do que um testemunho,
cisa, em relação ao conjunto da estrutu-
uma evidência documental do culto a São
ra social, teríamos que lançar mão de
Gonçalo do Amarante na América portu-
pesquisas que vêm se dedicando à his-
guesa, o “Ser mão de São Gonçalo”, pre-
tória da capitania das Minas, e que me-
gado no século XVII, deve ser lido como
dem os padrões de posse, através dos
práxis que buscava semear o Verbo divi-
testamentos e inventários post
no, o culto ao Santo. 14 Nesse ponto, vale
mortem . 18
Para efeito deste ensaio, con-
lembrar a hipótese de Robert Slenes so-
sidero relevante fazer algumas observa-
bre o papel dos ser mões de Vieira como
ções: entre os requerimentos, há irmãos
fonte de inspiração para os pregadores
e devotos de São Gonçalo que se uni-
capuchinhos, e a conseqüente difusão do
ram aos homens pretos de Nossa Senho-
culto a Santo Antônio no Congo, demons-
ra do Rosário em mesma capela e ação,
trando a enor me circulação de idéias e
portanto aliando-se a uma invocação so-
sensibilidades pelas diversas áreas do
bre a qual a historiografia já apresenta
Império português. 15
um bom conjunto de produções. 19 Mo-
Se tomarmos os requerimentos, as repre- radores de Catas Altas sediavam suas
sentações encaminhadas pelos próprios respectivas irmandades na Igreja de São
ir mãos e devotos de São Gonçalo nas Gonçalo, que era a do arraial, e em 1754
Minas Gerais do século XVIII, estes se estava em construção “em razão da fre-
definem como “moradores novos”, 16 ha- guesia ser distante três léguas, que é
bitantes de “novo povoado, e em Sertão Santo Antônio de Itaverava”. 20 É também
bravo, e de gente pouco culta”, “naque- válido observar que, nesses documentos,
les países pela sua extensão e longetude a distância geográfica se confunde com
(sic) que é das Igrejas” e, especificamen- a distância social e que os devotos de
te, como “pobres”. 17 São Gonçalo do Amarante se reúnem ora
Em termos gerais, é recorrente no con- com os homens pretos do Rosário, ora
junto desses documentos, dizerem-se com devotos de outras capelas, para a
homens que ocupavam há pouco a re- manutenção de seus interesses: a cons-

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trução de uma igreja, a solicitação de um dita Igreja e ficarão aqueles moradores


pároco, a extensão ou criação de uma vivendo gentilicamente, sem cumprirem
nova freguesia. os divinos preceitos, esquecendo-se da
doutrina evangélica”. 21
No requerimento dos irmãos e devotos
de São Gonçalo e de Nossa Senhora do Como se pode perceber, a distância ex-
Rosário, moradores no arraial de Catas perimentada pelos devotos de São Gon-
Altas, de 8 de julho de 1754, fica evi- çalo, moradores dos arraiais de Minas,
denciado que, em última instância, eles era vivida pelo afastamento dos núcleos
receavam “vir a faltar no dito arraial o de povoamento e pela intermitência das
culto divino, esquecendo-se totalmente práticas religiosas. E que, em última ins-
de Deus aqueles novos habitadores o que tância, poderia excluí-los da civilidade e
é muito fácil, naquelas terras, pois são da religião. Para refletir sobre o papel
muito distantes as freguesias, que há das cidades como locus de contínua co-
morador há muito tempo não vai a ela lonização, 22 aqui reconhecido pelos mo-
como é bem sabido”. Ou, como diriam radores do arraial, vale fazer um
os mesmos agentes em petição de 14 de contraponto entre suas práticas religio-
outubro do ano seguinte, “virá a faltar a sas em torno das irmandades e a festa

Planta da cidade de São Salvador, capital do estado federado da Bahia, 1894. Arquivo Nacional.

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do Corpo de Deus, na mesma época. ticipação compulsória dos cidadãos, ir-

Corpus Christi ou o Corpo de Deus era mandades, confrarias e povo na festa

uma das festividades mais importantes “fazendo corpo” de Deus. A expressão,

e solenes do calendário católico. Uma nesse contexto discursivo, vai além da

festa religiosa apropriada pela monarquia aglomeração de gentes que a festa im-

e que deveria acontecer em todas as ci- plicava. O Senado convocava os diver-

dades do reino. 23 O Senado da Câmara sos corpos sociais, unidos em comuni-

realizava o enquadramento espaço-tem- dade cristã, para a celebração do

poral da procissão, sendo responsável Santíssimo Sacramento, sob a direção da

pela limpeza das ruas, a convocação dos monarquia. Ademais, o referido docu-

moradores, a nomeação dos carregado- mento constituía apenas um exemplo

res do pálio etc. 24 Quando uma cidade entre outros, produzidos por colonos e

descumpria as leis do reino, cabia à Câ- colonizadores na região 26 em que a pro-

mara cobrar o devido. Foi o que ocorreu cissão lisboeta é repertório de práticas,

no Rio de Janeiro, confor me a represen- e realizar a procissão do Corpo de Deus

tação do Senado de 15 de junho de é uma forma de registrar a cidade no

1748: reino.

Não acontece assim na do Corpo de Muitas vezes, o surgimento das cidades


Deus, porque não só falta a maior par- coincidia com a celebração do Corpo de
te dos cidadãos, que sempre se prati- Deus. Foi assim em Salvador e vila do
cou virem a ela, como outros a quem Príncipe (em Minas), só para indicar al-
este Senado sempre convoca por car- guns exemplos. Nesse sentido, vale men-
tas para as varas de pálio, e a este res- cionar o eloqüente caso de Recife. Des-
peito também a religião que a acom- de 1710-1711 torna-se vila e, desde essa
panha, irmandades e confrarias, e ao ocasião, o Senado da Câmara encaminha
mais povo se faz público por editais a representações ao Conselho Ultramarino
celebração desta festividade, e nesta para que a cidade pudesse realizar sua
for ma se vai pondo em algum esqueci- procissão do Corpo de Deus “separada”
mento o fervor devido com que se deve da de Olinda. Por intermédio de uma re-
concorrer para ela, que vai destituída presentação, encaminhada pela Irmanda-
de gente que faça corpo capaz de pro- de do Santíssimo Sacramento ereta na
cissão tão solene como esta, o que é Matriz do Corpo Santo, na cidade de Re-
digno de censura, em uma cidade tão cife, ao Senado da Câmara, sabe-se que
notável como esta [...]. 25 a questão não fora plenamente resolvi-
da em 1770. Dizia o documento:
Tomando a procissão de Lisboa como
modelo para a do Rio de Janeiro, a re- Sendo pois, como fica expressado esta
presentação citada faz referência à par- vila: separada da jurisdição de Olinda,

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diferente Senado, diversa paróquia, nu- vam petições ao rei para evitar “viver
meroso povo, com dilatada extensão gentilicamente”, “esquecendo-se de Deus
de fogos e pessoas de graduação, por e do Evangelho”.
cuja razão se tem apresentado a dita
AS PETIÇÕES

D
procissão com o declarado fausto, pre-
sentemente é falta para a maior suntu- e maneira geral, todas as repre-
osidade a presença de tão nobre Se- sentações que selecionei de-
nado, o que os suplicantes represen- mandam a ampliação da assis-
tam a Vossa Majestade praticarem no tência espiritual dos moradores de Minas,
dia destinado, a exemplo das mais vi- contribuindo direta ou indiretamente
las do reino . 27
(grifos meus) para a formação de núcleos de povoa-
mento. A maior parte delas foi realizada
Como se observa, a petição é não somen-
pelos próprios devotos, que se organiza-
te um indicativo da autonomia de Recife
vam através de irmandades ou se reuni-
em relação a Olinda, mas, fundamental-
am com representantes de diversas ca-
mente, uma afirmação de identidade da
pelas do mesmo povoado. A
primeira como cidade colonial. Se tiver-
historiografia há muito é sensível ao pa-
mos em mente a história particular de
pel das ir mandades, a começar por
Recife, cujo núcleo inicial é português,
Scarano que, ao analisar a Irmandade de
mas que cresce com os holandeses, po-
Nossa Senhora do Rosário dos pretos no
deremos nela identificar características
distrito Diamantino, considera que
próprias do projeto colonizador e urba-
nístico batavo. 28 E interpretar a necessi- em todas as Minas Gerais, será o sete-
dade da vila do Recife de registrar sua centos o período áureo das irmanda-
entrada no reino português, por meio da des, a época da construção das igre-
realização da festa do Corpo de Deus, jas, quando aquelas se tornaram real-
com participação do Senado e na mes- mente o centro dos encontros da po-
ma data celebrada pelo conjunto das ci- pulação local, que assim podia satis-
dades coloniais do reino. fazer suas tendências gregárias e

lúdicas, além de atender seus própri-


Se há algo de comum entre a experiên-
os interesses. Mesmo escravos, consi-
cia dos devotos de São Gonçalo do
derados seres à parte naquela socie-
Amarante – “moradores novos” e “po-
dade, encontraram nas ir mandades
bres” do sertão das Gerais – e os habi-
uma ocasião de agir como criaturas hu-
tantes da cidade que co-participavam do
manas, de saber lutar por seu grupo.29
Corpo de Deus, é a percepção que as
paróquias e as cidades faziam o nexo A autora demonstra assim, como as ir-
entre o reino português e o reino de mandades contribuíam para reunir e or-
Deus. Os devotos de São Gonçalo envia- ganizar os moradores de Minas, exercen-

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do funções diversas. Observou que por aqueles grupos experimentavam a liber-


meio dessas agremiações, os negros ti- dade, o reconhecimento social e a pos-
nham papel ativo na sociedade colonial sibilidade de autogestão numa socieda-
e na defesa de seus interesses, assertiva de escravista. Para isso, elabora uma
que se tornou mais comum na história do espaço urbano do Rio de Ja-
historiografia, e que tem gerado interpre- neiro, através das edificações religiosas
tações várias acerca das ir mandades de e, em particular, das irmandades de ne-
pretos. 30
Entre estas, os Devotos da cor , gros. E indica o uso do espaço pelos de-
de Mariza Soares, que investigou a Irman- votos em vida e na morte.
dade de Santo Elesbão e Santa Efigênia, Para relacionar irmandades e urbaniza-
no Rio de Janeiro do século XVIII. O tra- ção em Minas Gerais, o trabalho de Caio
balho caracteriza as irmandades de pre- Boschi constitui uma referência funda-
tos e pardos como instituições do Anti- mental. Para o autor “as ir mandades mi-
go Regime, que reproduzem hierarquias neiras foram, em seus primórdios, uma
próprias daquela sociedade e, simulta- forma de manifestação e defesa dos in-
neamente, são um meio através do qual teresses das populações locais, vale di-

Vistas e costumes da cidade e arredores do Rio de Janeiro em 1819-1820, Henry Chamberlain.


Arquivo Nacional.

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zer, dos interesses dos arraiais e das fre- dem fora dela se vem a experimentar

guesias”, e “ se confundiram com o pró- grande dano, em razão de não chega-


prio surgimento dos aglomerados urba- rem assim as esmolas para a despesa,

nos, fazendo-se presentes em todas as e satisfação dos capelães por sobre o

partes da capitania”. 31
Segundo ele, a dito arraial, e do novo povoado, e em
presença das irmandades inclusive pre- Sertão bravo, e de gente pouco culta e

cede o Estado português, que a posteriori com a dita falta de esmolas, virá a fal-

assegurava a posse dos antigos arraiais tar a dita igreja e ficarão aqueles mo-
por meio de medidas administrativas. Se radores vivendo gentilicamente, sem

hoje a historiografia já questiona o cará- cumprirem os divinos preceitos, esque-

ter “espontâneo” 32
dos agrupamentos cendo-se da doutrina evangélica, o que
urbanos, é inegável a presença simultâ- é muito fácil naqueles países pela sua

nea das irmandades à ocupação da re- extensão e longetude que é das igre-

gião de Minas, dando importante supor- jas. Para se evitar estes perniciosos
te nas funções urbanas. danos recorrem os suplicantes a Vos-

sa Majestade para que os ponderando


Vejamos mais precisamente o que de-
lhes conceda provisão para que os ir-
mandam as representações dirigidas ao
mãos das ditas ir mandades possam
rei: diziam os moradores do novo arraial
geralmente pedir por todas as
de São Gonçalo de Catas Altas de
comarcas das Minas em seus nichos,
Itaverava, em 1755,
sem que os possam impedir de ne-
que para melhor comodidade, e con-
nhum modo [...]. 33
servação do dito arraial edificaram uma

igreja ao dito santo para nela se cele- A representação citada demanda ao rei,
brar o culto divino e poderem os supli- d. José I, uma provisão para que os ir-
cantes acorrer a ela e ouvirem missa mãos de São Gonçalo e de Nossa Senho-
em razão desse ficar distante três lé- ra do Rosário pudessem pedir esmolas
guas a dita freguesia [de Santo Antô- “livremente”, “por todas as comarcas das
nio de Itaverava] e se lhe fazer impos- Minas” 34 com seus nichos e imagens. O
sível irem a ela ao dito e feito. Feita recurso fazia-se necessário, em poucas
foi a dita igreja estabeleceram nela ir- palavras, para conservar o arraial e o
mandade do dito santo, e outra de culto divino. Em ter mos gerais, repete-
Nossa Senhora do Rosário dos homens se o pedido e os argumentos encaminha-
pretos em ordem a poderem suportar dos ao Conselho Ultramarino em 8 de
e conservar a dita igreja; e despesa do julho de 1754. Contudo, dessa vez, pode-
divino culto, pedindo esmolas com se perceber que o documento faz um
seus nichos para isso; e como só na histórico da Igreja e Irmandade do Rosá-
dita comarca os deixam pedir e impe- rio, apresentando uma densa localização

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dos moradores, alguns dos quais subs- em missão ao dito bispado os padres

crevem a representação. Por meio dos capuchinhos italianos, o que ordinari-


dois documentos, sabe-se que a circula- amente sucede de três em três anos

ção ao menos daqueles homens não era com os seus sermões, práticas e dou-

livre na capitania, ou seja, estavam su- trinas se refor mam os costumes, e


jeitos a alguma for ma de controle, “eram mudam de vida os seus moradores fi-

pobres, e não eram admitidos a sair”, cando em grande tranqüilidade e sos-

“eram impedidos”. 35
Nesse ponto, vale sego espiritual as suas consciências,
lembrar a ameaça vivida pelas autorida- por meio das confissões gerais e parti-

des da região mineradora diante do con- culares, que fazem os ditos padres

tingente vário de desclassificados ali reu- missionários de que todo resulta mui-
nidos, instando a conversão deste ônus to serviço a Deus e utilidade a

em utilidade. 36
Mesmo se considerarmos Respublica [...]. 38
que a vadiagem apareça nos domínios
De certa maneira, a demanda coincide
portugueses significando ausência de tra-
com a dos devotos de São Gonçalo, que
balho, certamente ela vem associada à
falavam dos “per niciosos danos” 39 cau-
“gente volante ou, como lhe chamam, de
sados pela falta do culto divino. Contu-
pé ligeiro”, 37 segundo informa um con-
do, aqueles temiam perder-se no Sertão.
temporâneo.
Estes indicam as “liberdades” que se ti-
Entre as representações enviadas ao rei
nham introduzido no bispado, e falam em
que clamavam pela assistência espiritu-
razão do “serviço de Deus e utilidade da
al dos moradores de Minas, encontra-se
Respublica”. Não temos acesso à respos-
uma dos oficiais da Câmara de Mariana,
ta do Conselho Ultramarino nos dois ca-
“em seu nome e de todos os seus mora-
sos. Todavia, a representação da Câma-
dores”, para que os auxiliasse na cons-
ra recebe parecer positivo pelo bispo de
trução de um hospício, junto à capela de
Mariana, ou seja, Câmara e bispo se re-
São Gonçalo desta cidade, que servisse
únem “resignificando” a cidade coloni-
de dor mitório para os padres
al, como ponto de partida de missão, de
capuchinhos italianos. Argumentavam
colonização religiosa. Segundo o docu-
que por
mento, que indica a presença intermiten-
não haver nela [cidade], nem em todo te dos capuchinhos, os missionários re-
seu bispado, convento algum de reli- cebem acolhida dos moradores; “conser-
giosos que por instituto saiam em mis- vando um inexplicável desejo de que os
são se tem introduzido grandes liber- ditos padres missionários venham assis-
dades para as ofensas de Deus, e da- tir nesta cidade, e nela tenham um hos-
nos dos próximos, tem mostrado a ex- pício donde saiam em missão, e aonde
periência que vindo do Rio de Janeiro se busquem para diretores, e confesso-

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res, e para assistir os doentes”. 40 plicantes demandam a criação de nova

Em 1749, uma representação dos mora- paróquia, sumaria a função das paróqui-

dores devotos das capelas de Nossa Se- as e redefine párocos, à diferença dos

nhora da Conceição da Barra, São Gon- capelães. Se tomarmos os significados

çalo de Ibituruna, Nossa Senhora de coevos recolhidos por Bluteau 42 e o pa-

Nazaré, São Gonçalo do Brumado e San- ralelo que ele estabelece entre a cristan-

to Antônio do Rio das Mortes pequeno dade e a antigüidade romana, “pároco é

solicita a d. João V a mercê de lhes cons- aquele que distribui, que administra aos

tituir nova paróquia na capela da Con- fregueses os sacramentos da Igreja, &

ceição. Dizem “não ser de razão” que particular mente aos moribundos, que

paguem ao estão para passar para a outra vida”, “são


os confessores ordinários” e que “não
pároco que ainda que queira, lhes não
hão de levar dinheiro [pelos sacramen-
pode administrar os sacramentos nem
tos]”, como ocorria na localidade pelos
os suplicantes para eles e suas famíli-
capelães. Nos termos de Morais e Silva,
as, recebê-las de suas mãos, pelas mui-
seguidor de Bluteau, é o cura de almas
tas distâncias e pobreza, como tam-
de uma freguesia. E paróquia43 um meio
bém em perigos de vida, e a que as
através do qual os moradores vizinhos
paróquias foram e são eretas, a fim de
se reuniam, recebiam os sacramentos e
que haja quem prontamente adminis-
se religavam à cidade, reino português e
tre os sacramentos, e bem espiritual
reino de Deus.
das almas. E não para estes

despenderem com os párocos, que ain- Em 1774, vinte e cinco anos depois, uma
da que queiram os não pode governar,
nova representação é encaminhada por
reger, como Deus manda, nem os su-
Manuel Ferreira de Oliveira, entre outros
plicantes obedecem [...]. 41 devotos das três capelas de São Gonça-
Pode-se notar, nessa ocasião como em lo de Ibituruna, Nossa Senhora de Nazaré
outras, que os argumentos da “distân- e da Conceição da Barra, solicitando a
cia”, “pobreza” e “perigos de vida” ex- nomeação do reverendo Manuel Ferreira
perimentados pelos moradores da região Godinho como vigário de uma nova fre-
reaparecem. E, também, que o documen- guesia a ser criada no arraial da Concei-
to em questão, por meio do qual os su- ção da Barra. 44

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Dessa forma, tomamos conhecimento de consciência privada, portanto, arcava

que a questão se mantinha em aberto: com a responsabilidade extraordinária


os “mesmos” agentes “recorrem a Vossa de preservar a pureza do “vínculo ma-

Majestade se digne conceder-lhe, o trimonial” entre Deus e a Congregação

desanexarem-se desmembrando-se da [...]. Em contrapartida, a


sobredita freguesia, com se fazer outra municipalidade latino-americana tinha

de novo no dito arraial da Conceição da uma identidade corporativa num siste-

Barra”, e for neciam argumentos seme- ma de império baseado em hierarqui-


lhantes: “para os ditos aplicados das as de unidades urbanas e aldeãs. In-

mesmas três capelas poderem ter sem- ternamente, a cidade era composta de

pre pároco próprio que lhes administre grupos étnicos e ocupacionais também
o pasto espiritual”. 45
Isso aponta, por um unidos por critérios hierárquicos impre-

lado, para um deter minado tempo admi- cisos. A unidade urbana era um

nistrativo, em que “o vaivém pelo Atlân- microcosmo da ordem imperial e ecle-


tico podia durar anos, contudo muitas siástica maior [...]. 49

das petições obtinham respostas”. 46 Por


Nesse trabalho, Morse faz uma história
outro, para um sentido em negociar, em
das cidades na América espanhola, man-
pedir ao rei, que é tido “simbolicamente
tendo a perspectiva comparativa nesse
como pai, sempre pronto a ouvir as afli-
tema que lhe é caro.
ções de seus filhos”. 47
Considerando as diferenças entre a co-
Essa representação que demanda ao rei lonização espanhola e a portuguesa, a
a criação de nova paróquia, onde “há partir das petições que envolvem os de-
grande número de moradores”, 48 pode votos de São Gonçalo, não se pode re-
também indicar características que apro- fletir sobre a importância do vínculo
ximariam os povoados, as vilas da Amé- “corporativo” entre aqueles “novos mo-
rica portuguesa da municipalidade radores” e as autoridades do reino atra-
hispano-americana à diferença da con- vés das capelas?
gregação puritana. Segundo Morse, nes-
A pesquisa sobre aquela localidade está
ta última,
inconclusa. Sabe-se, por meio do reque-
todas as relações, exceto as existen- rimento de 1774, que há moradores
tes entre pais e filhos, eram voluntári- “abundantes de bens, que estão prontos,
as e dependentes de um pacto entre e sempre estiveram a fazer o corpo da
as partes contratantes. A comunidade igreja para Matriz, exceto a capela-mor,
não tinha nenhuma identidade por pertencer, ao Padroado Real”,50 e que
“corporativa”, no sentido de que era diversos documentos necessários à cria-
antecedente, ou superior, aos arranjos ção da nova paróquia foram providenci-
contratuais de seus membros. Cada ados e encaminhados. Entre eles, o cer-

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tificado do vigário interino atestando a se demandavam manutenção do culto di-


morte e enterro cristão de seu predeces- vino – a construção de uma igreja, o sus-
sor; o pedido de certidão do rol de con- tento da irmandade ou a criação de nova
fessados infor mando o número de mo- paróquia –, os devotos moradores con-
radores da localidade; e o certificado do tribuíram para a urbanização da região.
vigário interino sobre a desobriga. Enfim, E, por último, que nas representações as
foram gerados papéis e processo. capelas eram reconhecidas como um
nexo entre seus arraiais, no “Sertão bra-
Pode-se reafirmar, por meio da análise
vo”, e as cidades coloniais.
das petições relacionadas aos devotos de
São Gonçalo do Amarante, que a histó-
Hoje, sabe-se que a história dos antigos
ria dos povoados de Minas Gerais no sé-
arraiais de Minas seguiram caminhos vá-
culo XVIII se mistura com a história da
rios: algumas irmandades e capelas de-
Igreja e das irmandades. E concluir, em
sapareceram sem deixar registros, outras
primeiro lugar, que através dessas repre-
se tornaram núcleos densamente povo-
sentações dirigidas
ados; há casos, como Catas Altas da No-
ao monarca,
ruega, que conservam-se como arraiais.
nas quais
Mas isso é uma outra história... Esta, que
ora propus, apenas remete para a vitali-
dade da pesquisa sobre o lugar da cida-
de na colonização lusa, que a
historiografia ensaia pôr em justos ter-
mos. A cidade que os portugueses cons-
truíram na América já não pode ser lida
nos ter mos de Sérgio Buarque de
Holanda, que segundo o autor “não é pro-
duto mental, não chega a contradizer o
quadro da natureza, e sua silhueta se en-
laça na linha da paisagem. Nenhum ri-
gor, nenhum método, nenhuma previdên-
cia, sempre esse significativo abandono
que exprime a palavra ‘desleixo’”, e que
se relaciona ao “realismo fundamental”,
característico da colonização portugue-
sa à diferença da castelhana.51 A partir
da leitura das petições que envolviam os
devotos de São Gonçalo e da recente
historiografia, pode-se dizer, revisitando

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“O semeador e o ladrilhador”, que as ci- da intervenção de múltiplos agentes: a


dades da América portuguesa não foram Coroa, a Igreja, a Câmara e os irmãos
apenas cidades semeadas. Mesclas de leigos.
pragmatismo e abstração, as cidades lu-
sas foram ponto de partida da coloniza- Artigo recebido para publicação em
ção, 52
resultaram, entre outros fatores, agosto de 2003.

N O T A S
1. Vale consultar a minuciosa pesquisa de plantas e ilustrações das cidades coloniais: Nestor
Goulart Reis Filho, Imagens de vilas e cidades do Brasil colonial , São Paulo, Edusp, Imprensa
Oficial de São Paulo, 2000. E o trabalho de Murillo Marx, Nosso chão : do sagrado ao profano,
São Paulo, Edusp, 1988, uma história da arquitetura e do urbanismo, que analisa a presença
persistente da Igreja no espaço urbano público brasileiro entre os séculos XVI e XX. O autor
anota que “à existência do foro privilegiado para o clero somava-se ainda sua prerrogativa de
conceder ou não licença para o erguimento e a freqüência dos templos de toda espécie.
Como estes constituíam o ponto alto duma rua, dum setor, representavam a casa comum de
congregações de religiosos ou de irmandades de leigos ou eram a própria ‘matriz’ duma
freguesia ou paróquia, torna-se compreensível a influência que tiveram sobre o tecido urba-
no – influência dos critérios para a concessão de determinada categoria ao povoado, para a
localização de capelas, igrejas, clausuras, para definir a orientação dos templos e a
abrangência de seus adros”. Ibidem, p. 31 – grifos meus.
2. Desde março de 2002, desenvolvo o projeto “ Corpus Christi , entre outras festas da América
portuguesa” junto ao Departamento de História do IFCS/UFRJ, através de uma bolsa de re-
cém-doutor do CNPq. A pesquisa tem uma perspectiva comparativa entre a festa de São
Gonçalo do Amarante e a festa de Corpus Christi na América portuguesa, no século XVIII, e
está em andamento. Por isso, algumas questões relacionadas, sobretudo, à devoção e festa
de São Gonçalo podem estar inconclusas.
3. São Gonçalo pode ser definido como um santo se tivermos em mente que foi historicamente
construído através de múltiplas ações da Igreja, do Estado português e dos fiéis. Para expli-
car “como esta devoção estritamente local durante três séculos [XII ao XV], tenha explodido
no período pré-tridentido”, o trabalho de Arlindo Cunha sobre o culto de São Gonçalo faz uso
das reflexões de Georges Duby e considera o santo como uma construção, que tem uma
história (Arlindo de Magalhães Ribeiro da Cunha, São Gonçalo de Amarante : um vulto e um
culto, Vila Nova de Gaia, Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia, 1996, p.xvi). Para uma
definição de “santos” populares no Brasil, vale consultar o trabalho de Luiz Mott. Aqueles,
segundo o autor, muitas vezes não contam com processos de beatificação. Contudo, apesar
da ausência de reconhecimento oficial, são acreditados pelo povo como “beneficiados dos
céus e portadores de poderes sobrenaturais”, sendo dignos de santidade (Luiz R. B. Mott,

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Santos e santas no Brasil colonial, Fortaleza, Fundação Waldemar Alcântara, 1994, p. 3-4).
São Gonçalo é definido como santo, a partir do entendimento de Mott, por Rui Aniceto (Rui
Aniceto Nascimento Fernandes, Um santo nome : histórias de São Gonçalo do Amarante,
monografia de licenciatura pela Faculdade de Formação de Professores da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro, 2000). Sobre as dúvidas quanto à existência histórica de São
Gonçalo e quanto a informações da sua biografia (Antônio Vieira, Sermão de São Gonçalo, in
Sermões , Porto, Lello & Irmão, 1959, v. 2, tomo IV, p. 291-333; Maria Clara Lucas, Hagiografia
medieval portuguesa , Lisboa, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1994; Arlindo de
Magalhães Ribeiro da Cunha, op. cit.; Rui Aniceto Nascimento Fernandes, op. cit.).
4. Gonçalves Guimarães considera que o culto a São Gonçalo tem um cunho patriótico identifi-
cado em diversos momentos da sua história em Portugal, desde a União Ibérica. Quando
Felipe II expede a provisão régia para a canonização de São Pero Gonçalves, tradicionalmen-
te relacionado aos pescadores e mareantes portugueses, estes substituem o santo galego
por São Gonçalo do Amarante, o que é interpretado pelo autor como uma reação à iniciativa
régia e opção pelo santo nacional. A inscrição evocativa ao santo associada ao escudo naci-
onal e com coroa numa pedra de calcáreo, que data dos séculos XVII ou XVIII e se localiza
nos jardins da Câmara Municipal de Loulé, é tida como registro do simbolismo patriótico em
torno do culto a São Gonçalo. Gonçalves Guimarães, A festa de São Gonçalo em Vila Nova de
Gaia: origens e evoluções de um culto de mareantes, Revista de Ciências Históricas , Univer-
sidade Portucalense, v. 7, 1993, p.146, 141,149.
5. Milagre de São Gonçalo de Amarante. 1744. Apud Comissão Nacional para as Comemorações
dos Descobrimentos Portugueses, Estórias de dor, esperança e festa: o Brasil em ex-votos
portugueses (séculos XVII-XIX), Lisboa, 1998, p. 50. Há um outro ex-voto destinado a São
Gonçalo do Amarante, sem legenda, de meados do século XVIII, produzido em Minas Gerais
(Marcia de Moura Castro, Ex-votos mineiros : as tábuas votivas no ciclo do ouro, Rio de Janei-
ro, Expressão e Cultura, 1994, p. 33).
6. Câmara Cascudo refaz a história do culto de São Gonçalo desde a colonização, singularizan-
do a dança de São Gonçalo. Ponto alto da celebração, que é definida como popular pela
presença dos “humildes”, desde aquela época até meados do século XX e por sua capacida-
de de difusão entre diversos grupos sociais e por diferentes regiões (Luís da Câmara Cascudo,
Dicionário do folclore brasileiro , Brasília, Instituto Nacional do Livro, 1972, p. 414-418). A
partir de Canclini é possível desconfiar da continuidade apresentada por Cascudo da dança
de São Gonçalo, como tradição que se repete , e compreender o popular, levando-se em
conta também a sua apreensão pelo filtro dos estudos folclóricos (Néstor Garcia Canclini,
Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade, São Paulo, Edusp, 1997).
Gonçalves Guimarães faz referência ao caráter “pouco ortodoxo” da festa na visão de algu-
mas autoridades civis e religiosas. Ele diz respeito à presença de um acentuado erotismo na
festa, que se coloca, por exemplo, na dança das mulheres (Gonçalves Guimarães, op. cit., p.
150). Tomarei o sentido de “heterodoxo” utilizado por Ricardo Benzaquen de Araújo, que
caracteriza o catolicismo da Casa Grande , a partir da análise da obra de Gilberto Freyre
como uma vertente “semi-herética e heterodoxa”, “sensual e mágica” do catolicismo portu-
guês. Em sua abordagem, essa concepção que predomina naquele espaço estaria marcada
pela hybris. Entre os diversos argumentos recuperados por Araújo para propor sua interpre-
tação, estariam a sensibilidade de Gilberto permeável ao “império das paixões”; o destaque
dado às “paixões da carne”, que adviriam sobretudo da influência do maometanismo e o
lugar subordinado da Igreja ao ethos senhorial, gerando um culto eminentemente domésti-
co. Essa versão se apresenta como um catolicismo da festa, da guerra e do sexo e se distin-
gue de um catolicismo mais racional, disciplinado, ou seja, do ortodoxo representado pelos
jesuítas. A partir das colocações de Araújo, pode-se pensar que essas duas concepções di-
versas convivem, contrastam sob mais uma forma de “antagonismos em equilíbrio” nos es-
paços sociais diversos da colonização portuguesa, e que a festa de São Gonçalo é apenas
uma das manifestações daquela primeira vertente (Ricardo Benzaquen de Araújo, Os anjos
da terra, in Guerra e paz: Casa-Grande & Senzala e a obra de Gilberto Freyre nos anos 30, Rio
de Janeiro, Editora 34, 1994).
7. Luís da Câmara Cascudo, op. cit., p. 414-418.
8. João da Silva Campos, Tradições baianas, Revista do Instituto Histórico e Geográfico , Bahia,
n. 56.
9. Antônio Vieira, op. cit. A participação de diferentes grupos sociais na celebração de São
Gonçalo também pode ser localizada em: Le Gentil de la Barbinais, Lettre Quinziéme, in
Nouveau voyage autour du monde , Paris, Chez Briasson, 1728, p. 216-217, v. 3; Nuno Mar-
ques Pereyra, Compêndio narrativo do peregrino da América, Rio de Janeiro, Publicações da
Academia Brasileira, 1932, p. 113-114, v. 2. O primeiro volume foi publicado cinco vezes,
ainda no século XVIII. Contudo, o segundo per manecera manuscrito até esta edição.

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10. Antônio Vieira, op. cit., p. 323.


11. Gilberto Freyre, Casa-Grande & Senzala : for mação da família brasileira sob o regime da eco-
nomia patriarcal, Rio de Janeiro, José Olympio, 1987, p. 272; Laura de Mello e Souza, O
diabo e a terra de Santa Cruz , São Paulo, Companhia das Letras, 1986; Ricardo Benzaquen
de Araújo, op. cit .
12. Estou fazendo uso da noção de “continuidades relativas” proposta por Luiz Felipe Baêta Ne-
ves para analisar a ação da Companhia de Jesus no Brasil do século XV, a partir da qual pode-
se pensar numa inscrição num espaço relativamente contínuo através da missão (Luiz Felipe
Baêta Neves, Os soldados de cristo na terra dos papagaios , Rio de Janeiro, Forense Universi-
tária, 1978, p. 25).
13. Antônio Vieira, op. cit., p. 327(grifos meus).
14. Para uma definição de Sermão, do pregador e do ouvinte, a partir do “Ser mão da Sexagési-
ma”, que é tomado como um discurso da época barroca e da sociedade colonial (Beatriz
Catão Cruz Santos, Semen est Verbum Dei. O pináculo do temp(l)o : o Sermão do padre Antô-
nio Vieira e o Maranhão do século XVII, Brasília, UnB, 1996, p. 73-92).
15. Robert Slenes, Santo Antônio na encruzilhada : reinterpretações do taumaturgo no Kongo e
no Brasil, Comunicação apresentada no Simpósio de Arrábida, 1-5/11/1999, mimeo, apud
Marina de Mello e Souza, Santo Antônio de nó-de-pinho e o catolicismo afro-brasileiro, Tem-
po , Rio de Janeiro, n. 11, p. 176-177.
16. AHU, Brasil/MG, cx. 65, doc. 23. Projeto Resgate cd n. 18.
17. AHU, Brasil/MG, cx. 68, doc. 64. Projeto Resgate cd n. 20.
18. Eduardo França Paiva, Escravidão e universo cultural na Colônia, Minas Gerais, 1716-1789 ,
Belo Horizonte, UFMG, 2001.Este livro trata do cotidiano dos libertos em Minas Gerais do
século XVIII, particular mente nas comarcas do Rio das Velhas, ao norte, e Rio das Mortes, ao
sul. Contudo, contém observações que apontam para o conjunto da sociedade de Minas.
19. Entre eles: Julita Scarano, Devoção e escravidão : a irmandade de Nossa Senhora do Rosário
dos pretos no distrito diamantino no século XVIII, São Paulo, Companhia Editora Nacional,
1978; João José Reis, Identidade e diversidade étnicas nas irmandades negras no tempo da
escravidão, disponível em http://gladiator.historia.uff.br/tempo/textos/artg3-1. Acesso em
23/5/2003; Marina de Mello e Souza, Reis negros no Brasil escravista : história da festa de
coroação do rei Congo, Belo Horizonte, UFMG, 2002.
20. AHU, Brasil/MG, cx. 65, doc. 23. Projeto Resgate cd n. 18. Tomo como referência para a
localização de Catas Altas na comarca de Rio das Mortes, as indicações contidas nos docu-
mentos. A Corografia histórica da província de Minas, elaborada entre 1831-1837, faz refe-
rência a três localidades: arraial de Catas Altas da Noruega, São Francisco de Catas Altas e
São Gonçalo de Catas Altas. Localidades dependentes do distrito de Itaverava, que tinha
igreja paroquial, no termo da vila de Queluz. Segundo esta obra, a vila de Queluz “é separa-
da da comarca do Rio das Mortes, para se incorporar à de Ouro Preto, pelo decreto de 29/7/
1829” (Raimundo José da Cunha Matos, Corografia histórica da província de Minas , Belo
Horizonte, Imprensa Oficial, 1979-1981).
21. AHU, Brasil/MG, cx. 68, doc. 64. Projeto Resgate cd n. 20.
22. Faço uso da definição de cidade colonial de Ilmar Rohloff de Mattos, para quem a cidade é
foco de colonização e ponto de interseção entre os monopólios do colonizador e do colono.
(Ilmar Rohloff de Mattos, A moeda colonial, in O tempo saquarema , São Paulo, Hucitec, 1987,
p. 18-33). A partir desta for mulação, analisei a pregação do padre Antônio Vieira em missão
ao Maranhão no século XVII, como práxis que articulava as aldeias, a cidade, a região, o
reino e o reino de Deus (Beatriz Catão Cruz Santos, A Rochela de Portugal, in Semen est
Verbum Dei , op. cit . , p. 45-72).
23. Desenvolvi esta abordagem acerca da festa e procissão em: Beatriz Catão Cruz Santos, O
Corpo de Deus na América: a procissão de Corpus Christi nas cidades da América portuguesa
– século XVIII, Niterói, Universidade Federal Fluminense, tese de doutorado, 2000.
24. Como afirmo no corpo do texto, a Câmara realizava o enquadramento espaço-temporal da
festa, que estava sujeita a intervenções de outros agentes, como a Igreja e as irmandades
(Beatriz Catão Cruz Santos, Unidade e diversidade através da festa de Corpus Christi , in O
Corpo de Deus na América , op. cit.).
25. AHU, Rio de Janeiro, avulsos, cx. 48, doc. 42, apud idem.

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R V O

26. Faço uso dos conceitos de colono, colonizador, colonizado e região colonial de: Ilmar Rohloff
de Mattos, op. cit .
27. Discuto com mais vagar a questão em: Beatriz Catão Cruz Santos, Unidade e diversidade
através da festa de Corpus Christi , op. cit., p. 68-72. O documento é AHU, Pernambuco,
1770, março, 28, cuja referência é diversa porque não tinha sido trabalhada pelo Projeto
Resgate até o momento em que o pesquisei.
28. O texto de Catalá fornece indicações ricas acerca da concepção de cidade que prevalecia
entre os holandeses, à diferença dos portugueses. Uma concepção civilizadora e pragmática,
marcada pela valorização dos conhecimentos técnicos científicos e que era reforçada por
motivações religiosas. Faz uma rápida, mas elucidativa história da cidade Maurícia, projeto
da colonização holandesa durante o governo de Nassau (José Sala Catalá, El paraíso
urbanizado: ciência y ciudad en el Brasil holandês, Quipu , México, v. 6, 1989, p. 331-363).
Vale consultar Heloísa Meireles Gesteira, Cidade Maurícia : a colonização neerlandesa no Bra-
sil, 1637-1645, Rio de Janeiro, PUC, dissertação de mestrado, 1996, no qual se encontram
os diferentes significados e funções da cidade na colonização holandesa.
29. Julita Scarano, op. cit . , p . 2.
30. Mariza de Carvalho Soares, Devotos da cor: identidade étnica, religiosidade e escravidão no
Rio de Janeiro, século XVIII, Civilização Brasileira, 2001.Ver também referências indicadas
na nota 19.
31. Caio César Boschi, Os leigos e o poder : irmandades leigas e política colonizadora em Minas
Gerais, São Paulo, Ática, 1986, p. 30. (grifos meus)
32. ibidem, p. 31.
33. AHU, Brasil/MG, cx. 68, doc. 64. Projeto Resgate cd n. 20.
34. AHU, Brasil/MG, cx. 65, doc. 23. Projeto Resgate cd n. 18.
35. AHU, Brasil/MG, cx. 65, doc. 23. Projeto Resgate cd n. 18; cx. 68, doc. 64. Projeto Resgate cd
n. 20.
36. Laura de Mello e Souza, Desclassificados do ouro : a pobreza mineira no século XVIII, Rio de
Janeiro, Graal, 1986. No capítulo “Da utilidade dos vadios” a autora parte de uma reflexão
mais geral sobre os desclassificados até centrar o foco sobre os mesmos em Minas, no sécu-
lo XVIII. Procura identificar as condições que geraram a pobreza mineira e mapeia a emer-
gência, os significados, as funções e a visão das autoridades em relação aos desclassifica-
dos. O argumento central do capítulo é que este contingente, vário e ameaçador da ordem
social, é controlado e utilizado em prol da manutenção do sistema colonial. Hoje, a
historiografia tem uma leitura mais complexa da estrutura econômica da América portuguesa
que envolve a região de Minas, contudo sua leitura a respeito dos vadios, em sua
heterogeneidade e funções, permanece uma referência da maior importância.
37. Apud Joaquim José da Rocha, Memória da capitania de Minas Gerais (fim do século XVIII),
Revista do Arquivo Público Mineiro , v. II, 1987; Laura de Mello e Souza, Desclassificados do
ouro , op. cit., p. 89.
38. AHU, Brasil/MG, cx. 63, doc. 48. Projeto Resgate cd n. 18.
39. AHU, Brasil/MG, cx. 68, doc. 64. Projeto Resgate cd n. 20.
40. idem.
41. AHU, Brasil/MG, cx. 54, doc. 31. Projeto Resgate cd n. 16.
42. De acordo com Rafael Bluteau, ‘paróquia’ “deriva-se do grego Parochos , que quer dizer
repartidor , ou hospedeiro de embaixadores . Antigamente havia um costume, que nas casas
em que se hospedava embaixador, ou enviado romano, lhe haviam de dar de graça quanta
lenha pudesse queimar, & quanto sal pudesse comer ele, & a sua gente. Então não amassa-
vam o pão com sal como agora pelo que folgavam cada bocado de pão, que comiam, com as
talhadas de carne, especialmente, que o sal não era simples, se não composto como cá sal
& pimenta. O que tinha cuidado de dar aos ministros romanos a lenha, & o sal, se chamava
parochus , que vai o mesmo que repartidor [...] A imitação disso chamamos a igreja de uma
colação paróquia [...] pela lenha entenderemos a matéria do sacramentos, e pelo sal, a gra-
ça, que sempre acompanha os sacramentos, dão-se estes romanos que caminham nesta vida
debaixo da obediência do Romano Pontífice [...]. E parochus era aquele, que tinha a seu
cargo dar a lenha, & sal aos que o Senado mandava as províncias para os negócios públicos.
Pároco pois na cristandade também é aquele [...]”, tal como transcrevi no corpo do texto.

Acervo, Rio de Janeiro, v. 16, n o 2, p. 129-146, jul/dez 2003 - pág. 145


A C E

Rafael Bluteau, Vocabulário português e latino , Lisboa, Oficina Pascoal da Silva, 1720, p.
180-181,v-2.
43. Antônio de Morais e Silva, Dicionário da língua portuguesa , 6. ed., Lisboa, Tipografia Antônio
José, 1948, tomo II. ‘paróchia’. s.f. (do lat. parochia; do gr. paroikia ), que se encontra em
alguns concílios, e que significa propriamente morada vizinha, de para próximo, e oikos ,
morada. Igreja matriz, em que há parocho .
44. AHU, Brasil/MG, cx. 106, doc. 27. Projeto Resgate cd n. 30.
45. idem.
46. A observação é de Maria Fernanda Bicalho, que analisa no capítulo 11 o conjunto das insti-
tuições político-administrativas portuguesas na época moderna, para a compreensão da or-
dem política e social na Colônia e dos princípios sobre os quais se assentou a soberania
régia no ultramar. E reafirma, como Boxer, a importância das petições e representações das
Câmaras como canais de comunicação direta entre estas e o monarca, que delas se utilizava
para controlar a política ultramarina. Nesse sentido, relê a idéia de distância e tempo admi-
nistrativo entre a Colônia e a Metrópole, tal como vêm sendo interpretados pela historiografia.
Maria Fernanda Bicalho, A cidade e o Império : o Rio de Janeiro no século XVIII, Rio de Janei-
ro, Civilização Brasileira, 2003, p. 352-359. Acredito que suas reflexões podem ser aplica-
das ao caso destes devotos, povoadores que demandam a criação de nova paróquia.
47 . ibidem, p. 353.
48. AHU, Brasil/MG, cx. 106, doc. 27. Projeto Resgate cd n. 30.
49. Richard Morse, O desenvolvimento urbano da América espanhola colonial, in Leslie Bethell
(org.), História da América Latina : a América Latina, São Paulo, Editora da Universidade de
São Paulo, Brasília, Fundação Alexandre de Gusmão, 1999, p. 61-62, v-2.
50. AHU, Brasil/MG, cx. 106, doc. 27. Projeto Resgate cd n. 30.
51. Sérgio Buarque chamou a atenção para a primazia da vida rural sobre a urbana (Sérgio Buarque
de Holanda, Raízes do Brasil , Rio de Janeiro, José Olympio, 1984, p. 18, 41, 61). Todavia,
em “O semeador e o ladrilhador”, enfocou as cidades coloniais, a partir das quais caracteri-
zou a colonização portuguesa à diferença da colonização castelhana (ibidem, p. 61-85). Fez
ainda observações sobre a experiência holandesa na América. É interessante também rever
a periodização que o autor estabelece na história da urbanização: nos séculos XVI e XVII, a
débil cena citadina só ganhava vida por ocasião dos festejos e solenidades. Já no XVIII, a
vida urbana “em certos lugares, parece adquirir mais caráter, com a prosperidade dos comer-
ciantes reinóis, instalados na cidade” (ibidem, p. 58-59).
52. No capítulo “Natureza e urbanismo”, Fernanda Bicalho analisa alguns aspectos do urbanismo
português no ultramar e, relendo Sérgio Buarque de Holanda, questiona a falta de ordem e
regularidade no seu ato construtor. A partir de Stuart Schwartz reafirma o papel da cidade,
sobretudo as cidades litorâneas, como pontos de partida da colonização e domínio no além-
mar. Explora a historiografia luso-brasileira mais recente, de modo a indicar, por exemplo,
uma atividade construtora e regulamentadora das cidades portuguesas por parte da Coroa,
que não se supunha anteriormente. Maria Fernanda Bicalho, op. cit . , p. 165-176.

pág. 146, jul/dez 2003


R V O

V ivien Ishaq
Doutoranda em História pela UFF.
Pesquisadora do Arquivo Nacional.

Missionários Reais
A literatura religiosa e a disputa pelas
almas devotas, séculos XVI-XVIII

A Igreja Católica tridentina estimulou The Catholic Church after the


a produção de uma vasta literatura Council of T rento stimulated the
espiritual escrita pelos moralistas cristãos, production of a lar ge spiritual literature
pertencentes ao clero regular e secular, visando written by christian moralists, that belonged to
difundir a correta doutrina aos fiéis. Os membros clergy secular and regular. Its major objective was
da Companhia de Jesus e da Congregação do to spread the correct doctrine to the christians.
Oratório, em Portugal e suas colônias, foram os The members of Society of Jesus and
porta-vozes privilegiados dos ideais da Igreja Congregation of Oratory in Portugal and in its
refor mada, atuando em consonância com o colonies, were the speakers of the ideals of the
padroado português. Reformed Church, according to Portuguese
Palavras-chave: literatura religiosa, patronage.
protestantismo, religiosidade, Igreja Católica, Keywords: religious literature, Protestantism,
América portuguesa, Companhia de Jesus, religiosity, Catholic Church, Society of Jesus,
Congregação do Oratório. Congregation of Oratory.

Primeiramente, os livros que tratam significada. E assim com razão disse


das matérias pouco honestas, ainda um autor grave, que a própria bibliote-

que falem com estilo or nado e pala- ca de semelhantes livros é uma foguei-
vras compostas, sempre inculcam ra, ou chaminé acesa. 1

O
cousas torpes e geram fantasia, e no

coração pensamentos e desejos indig- texto do oratoriano Manuel


nos da presença de Deus, que os está Bernardes destinava-se ao lei-
vendo: e fazem que gostando o leitor tor benévolo e expressa uma
da fábula, queira gostar da realidade; das questões essenciais ao processo de
e celebrando o conceito discreto, se expansão do catolicismo e à
lembre melhor da impureza nele evangelização das populações do Reino

Acervo, Rio de Janeiro, v. 16, n o 2, p. 147-172, jul/dez 2003 - pág. 147


A C E

e dos novos territórios conquistados pela cristianização do mundo não católico.


Coroa portuguesa: a criação de uma cul-
A Igreja anterior à Reforma protestante
tura religiosa de matriz católica imper-
não era o deserto devocional condena-
meável a outras for mas de manifestação
do pelos seus críticos protestantes. 4
científica e cultural, controlada pela cen-
Nesse período, destacou-se a difusão da
sura régia e pela estrutura eclesiástica –
Devotio moderna no continente europeu,
aqui representada pelo clero secular e
que se tornou um dos mais importantes
regular –, organizada, financiada e firme-
movimentos espirituais dos séculos XIV
mente dirigida pela Coroa portuguesa
e XV, procedente dos Países Baixos. Di-
sob a égide do padroado real.
ante da crise vivida pela Igreja Católica
No século XVI, o impacto causado pelas no final da Idade Média, algumas comu-
devastadoras críticas luteranas à Igreja nidades religiosas implementaram refor-
Católica romana direcionou o programa mas visando reverter este quadro de des-
de reforma da Igreja. O papa Paulo III crédito e de críticas. Este modelo de
foi quem afirmou a vontade de defesa devoção acabou transpondo os limites
da Igreja romana, aprovando os estatu- monacais e se disseminou entre a popu-
tos da Companhia de Jesus, convocan- lação leiga, inaugurando uma nova for-
do para Trento o concílio ecumênico que ma de piedade, mais pessoal e
havia sido demandado sucessivamente interiorizada. O exercício da caridade e
por Martinho Lutero e criando o Santo o aprendizado da oração privada e me-
Ofício da Inquisição em Roma. Paulo III tódica, diferente da oração litúrgica e
publicou, em 1537, as Letras apostóli- pública realizada nas igrejas e nos mos-
cas , em que declarou: “Nós outros, pois, teiros, tornaram-se práticas preconizadas
que ainda que indignos, temos às vezes pela Devotio moder na . Como indicou
de Deus na terra, e procuramos com to- Jean Delumeau, a vida religiosa do Oci-
das as forças achar suas ovelhas, que dente a partir do século XIV é caracteri-
andam perdidas fora de seu rebanho, zada por uma devoção mais pessoal,
para reduzi-las a ele, pois este é o nosso concorrendo para que o período prece-
ofício”. 2 dente à Reforma visse a expansão do
individualismo religioso e da devoção
Esse texto pretendeu ampliar os ideais
popular. 5
culturais agostinianos, de integrar à sa-
bedoria cristã as verdades da filosofia Foi somente com o encerramento do
pagã extraídas dos autores antigos. Essa
3
Concílio de Trento (1543-1563) que o
orientação filosófica objetivava arcabouço reformista tor nou-se, final-
cristianizar todos os antigos valores e se mente, sistematizado e dirigido pela Igre-
expandiu, durante o Renascimento, jun- ja romana. A fundação de novas congre-
tamente com o novo ideal tridentino de gações e ordens com rígidos preceitos

pág. 148, jul/dez 2003


R V O

de observância visaram atender a essa a leitura de obras que divulgavam as


necessidade de reordenação após a novas práticas da espiritualidade monás-
eclosão da Reforma protestante. O mo- tica. 6
vimento refor mador tridentino interviu
A Congregação do Oratório foi fundada,
na formação do clero secular, alvo privi-
originalmente, em Roma, pelo florentino
legiado não só dos críticos luteranos. O
Felipe de Néri (1515-1595), em 1575.
seiscentos viu, entre outras inovações
Néri era um cristão piedoso que alterna-
realizadas na estrutura eclesiástica, as
va seu tempo livre – era tutor de dois
fundações da Companhia de Jesus (cle-
jovens –, assistindo aos doentes nos hos-
ro regular), por Inácio de Loyola, e da
pitais romanos e passando as noites
Congregação do Oratório (padres secu-
orando nas catacumbas de São Sebasti-
lares que vivem congregados como reli-
ão, da antiga Roma. Aos 32 anos foi or-
giosos numa congregação ou instituto),
denado sacerdote por insistência de seu
por Felipe de Néri. Ambas instituições,
confessor, que havia identificado em
ressalvadas suas diferenças, expressam
Felipe o carisma e a vocação inequívoca
o mesmo espírito de reforma que havia
para ingressar nos quadros da Igreja
impulsionado o combate ao protestan-
tridentina. Houve contato entre ele e
tismo, esforço igualmente dirigido
Inácio de Loyola, durante o período em
para aper feiçoar a for mação do clero
que este viveu em Roma. Felipe recusou
regular e secular e ainda estimular a
o convite para ingressar na recém-fun-
fé dos fiéis.
dada Companhia de Jesus, preferindo
continuar atuando na difusão, entre os
A herança espiritual da Devotio moder-
fiéis, de uma prática espiritual austera,
na foi renovada por Inácio de Loyola e
orientando os leigos na prática dos exer-
pelos oratorianos, assim como inspirou
cícios espirituais e na formação de um
a devoção de parte dos leigos no século
novo clero secular. 7
XIV e nos subseqüentes. A obra consi-
derada central de Inácio de Loyola, os O modelo oratoriano chegou à França
Exercícios espirituais para vencer a si pela iniciativa do futuro cardeal Pierre
mesmo ordenar a própria vida sem se Bérulle (1575-1629), um dos defensores
determinar por nenhuma afeição da reforma católica nesse país. Inicial-
desordenada (1522-1523), foi escrita mente, o Oratório francês destinava-se
após o período em que ele convalesceu a aperfeiçoar a formação intelectual e
de um grave ferimento na per na – era espiritual do clero secular, promovendo
um soldado –, na abadia beneditina de estudos teológicos e criando seminários,
Montserrat, selando assim o sentido de mas acabou estendendo, a partir de
sua vocação, surgida no contato com o 1623, sua atuação à educação de leigos.
cotidiano da abadia já reformada e com Os colégios oratorianos tornaram-se im-

Acervo, Rio de Janeiro, v. 16, n o 2, p. 147-172, jul/dez 2003 - pág. 149


A C E

portantes centros de ensino, for mando eram franceses e o restante traduções


parte da população francesa durante os de publicações italianas, espanholas,
séculos XVII e XVIII. O reformista Bérulle renanas ou flamengas.9 A expansão des-
interferiu igualmente na reestruturação sa nova devoção na França marcou a
de algumas ordens religiosas, como a dos religiosidade francesa do período, que
beneditinos de Mar moutier e de Saint- ficou conhecida como école française de
M a u r, dos franciscanos e dos spiritualité , como primeiramente definiu
agostinianos. Assim, o oratoriano afirma- Henri Bremond, 10 ou école oratorienne
va a necessidade de implantar as deter- ou école bérullienne , como caracterizou
minações do Concílio de Trento que ain- R. Deville,11 e como também entende-
da não tinham sido oficialmente reconhe- mos. A fundação de 72 casas da Congre-
cidas na França. Sua influência na corte gação do Oratório na França, até 1629,
de Luís XIII foi dirigida para enfraquecer ano do falecimento de seu fundador, 12
os protestantes, apoiando o cerco de La expressou a posição de prestígio
Rochelle, o casamento de Henriette da alcançada pela Congregação em parte da
França com Carlos I da Inglaterra e sociedade culta francesa.
promovendo a renconciliação entre a
Em Portugal a Congregação do Oratório
França e a Espanha. 8
também assumiu um papel relevante no
campo da difusão de uma espiritualidade
A espiritualidade difundida por Pierre
mais austera e na área educacional. O
Bérulle, seguindo o modelo criado por
confessor da Capela Real, Bartolomeu de
Felipe de Néri, acentuou os aspectos da
Quental, instituiu em Lisboa a primeira
vida interior do fiel, expressando que a
Congregação do Oratório, em 16 de ju-
espiritualidade da Idade Moder na é
lho de 1668, denominada de Nossa Se-
marcada, de for ma indelével, pela
nhora da Assunção, obtendo aprovação
Devotio moder na , e distinguiu-se por di-
canônica pelo breve Ex iniuncto nobis ,
fundir uma prática metódica que preten-
de 24 de agosto de 1672.
dia regrar e dirigir o cotidiano do fiel. A
luta contra a presença de protestantes Alguns pontos uniam as diversas Congre-
calvinistas na França havia mobilizado os gações do Oratório, entre eles a adoção
intelectuais a participar dos debates te- da língua vernácula e não mais o empre-
ológicos e religiosos no intuito de refu- go do latim como a base da atuação pe-
tar os argumentos das obras protestan- dagógica; e a renovação cultural
tes. Os problemas religiosos tinham al- antiescolástica no âmbito dos conteúdos
cançado tons dramáticos no seio da po- do ensino – introduzindo as ciências ex-
pulação francesa e entre 1550 e 1610 perimentais e a filosofia moderna – em
foram impressos cerca de 450 livros com oposição à tradição aristotélica-tomista
temática religiosa, dos quais sessenta difundida pela Companhia de Jesus em

pág. 150, jul/dez 2003


R V O

seus colégios. Essas opções não há referência ao desenvolvimento da


programáticas contestaram o rígido atividade de ensino. 14 A experiência pe-
monismo ideológico vigente nas regiões dagógica dos jesuítas, sintetizada na
católicas onde a Companhia de Jesus Ratio Studiorum ou Método e or ganiza-
usufruía uma posição dominante na di- ção dos estudos nos colégios da Compa-
reção espiritual e cultural da sociedade. nhia de Jesus, veio a ter sua forma defi-
Entretanto, os objetivos da Congregação nitiva em 1599. Na Ratio foram regula-
do Oratório, expressos pelos estatutos dos programas, cursos e métodos dos co-
portugueses, não mencionam a ativida- légios da Companhia de Jesus, assim
de de ensino, mas se referem somente à como se estabeleceram as normas para
difusão de uma nova espiritualidade e de o ensino universitário, tornando-se im-
uma prática religiosa, assim como à as- portante elemento para a preservação da
sistência aos idosos, indigentes e doen- tradição cultural e religiosa expressa pela
tes. 13
Também nas Regras da Companhia doutrina aristotélica-tomista.

Bíblia com pleno apparatu summariorum... Lugdune, Jacob, Sacon, 1509.

Acervo, Rio de Janeiro, v. 16, n o 2, p. 147-172, jul/dez 2003 - pág. 151


A C E

Esse novo papel na área da educação, e agostiniana foi a inspiração da Congre-


que originalmente não havia sido pre- gação do Oratório – herança que, em
visto por Bartolomeu de Quental para parte, também informou a teologia de
a Congregação do Oratório, foi, Martinho Lutero –, que defendia a idéia
gradativamente, definindo o modelo da existência de uma extrema fraqueza
institucional oratoriano. Os oratorianos do homem, o qual, corrompido depois
tornaram-se concorrentes dos jesuítas do pecado de Adão, esperava a graça be-
notadamente na área da educação e da nevolente de Deus. A luta entre essas
pregação. 15
No início do século XVIII, o duas concepções opostas, desde o Con-
Oratório português conseguiu fazer opo- cílio de Trento, continuou sendo trava-
sição ao monopólio da Companhia de da pelas Igrejas, assim como a disputa
Jesus sobre o ensino, uma vez que o im- pela alma dos fiéis.
portante apoio material e legal dado por
A perfeição da sociedade cristã pressu-
d. João V, depois mantido por d. José I,
punha o controle dos desejos e, conse-
per mitiu à congregação tor nar-se um
qüentemente, o controle das decisões
“grande centro de atração intelectual
individuais que contestassem ou desafi-
daquele meado do século”, em Lisboa,
assem os dogmas oficiais da Igreja e do
com uma biblioteca e um gabinete de
Estado português. O princípio de que
física muito elogiados pelos
governantes e súditos deveriam compar-
memorialistas da época. 16 Sabemos da
tilhar uma mesma fé – cujus regio illius
participação dos oratorianos, ainda no
religio –, já aceito por católicos e pro-
século XVII, nos territórios portugueses
testantes no continente europeu, 18 foi
de além-mar, como em Goa e nas mis-
estendido para os territórios conquista-
sões em Pernambuco e, a partir de 1700,
dos por Portugal no ultramar.
na assistência espiritual aos colonos. 17
O Novo Mundo configurou-se como o lu-
Va l e destacar que a aparente gar privilegiado para a evangelização,
homogeneidade do universo da literatu- expressando o ideal da vontade de Deus
ra religiosa produzida pelos moralistas em compensar as almas perdidas para o
da Igreja Católica apresenta seus recor- protestantismo no continente europeu.
tes internos, que assinalam as Fundou-se, assim, a idéia utópica de que
especificidades das filiações teológicas o território conquistado era a oportuni-
dos autores religiosos e das instituições dade que a Providência oferecia para a
que representam. Assim, o otimismo concretização do verdadeiro reino de
tomista que pretende conciliar a liberda- Deus e para “a restauração da Igreja pri-
de humana e a graça de Deus, vai ter na mitiva”, 19 em que se evitariam os erros
Companhia de Jesus seu melhor difusor. que haviam alterado as feições da cren-
Por outro lado, a longa tradição paulina ça na Europa. Um dos atos fundadores

pág. 152, jul/dez 2003


R V O

do ideal de unidade entre o Reino e os Sob o amparo do padroado, a Coroa por-


novos domínios foi a realização da pri- tuguesa empreendeu a construção de
meira missa no início do século XVI, ato uma sociedade cristã na sua colônia
de batismo do continente que simboliza americana, assumindo o controle da vida
a benção de Deus ao solo conquistado, religiosa das populações e da Europa.20
conferindo uma nova e única identidade Por meio de seus agentes buscou conti-
religiosa às populações já estabelecidas nuamente aperfeiçoar um modelo cultu-
e àquelas que viriam a povoá-lo. Portu- ral considerado inquestionável. O
gal tornar-se-ia uma nação missionária; padroado português 21 e o modelo cultu-
os reis deter minaram-se a realizar a ex- ral dele decorrente estão inscritos num
pansão do catolicismo e a eliminar a universo maior que é o da filiação aos
heresia e a descrença de seus súditos, princípios estabelecidos pela refor ma
tanto na metrópole como nos domínios católica em contraposição à reforma pro-
coloniais, dispondo-se a travar batalhas testante, com base no rigor doutrinal
pela conquista da alma do novo conti- fundado e reatualizado pela Igreja roma-
nente. na a partir do século XVI. O essencial
seria, portanto, o valor de paradigma que
A colônia americana deveria não só rea-
assumem as determinações de T rento –
fir mar a catolicidade do Reino e, por
expressão da moral romana e européia
conseguinte, selar com ele a sua unida-
– e sua incorporação ao modelo de soci-
de, mas, sobretudo, demarcar a frontei-
edade concebido pela Coroa para o rei-
ra entre os dois mundos cristãos então
no e os seus domínios ultramarinos.
tor nados hostis, manifestando assim a
vitalidade do catolicismo no Ocidente A refor ma tridentina, enquanto modelo
perante a consolidação das Igrejas pro- para a atuação das autoridades civis e
testantes. A colônia da América, geográ- eclesiásticas, não estava tão longe assim
fica e idealmente distante da influência da colônia; ao contrário, diversos aspec-
da doutrina protestante, deveria confir- tos do catolicismo na América portugue-
mar o vigor das virtudes morais e cris- sa estão informados por ela, quer direta
tãs, constituindo-se o lugar privilegiado ou indiretamente, e apontam para o pa-
para a difusão dos ideais que informa- pel decisivo desse arcabouço reformis-
vam o modelo católico reformado, e tal ta. Se colocarmos como tela de fundo
situação a Coroa se empenhará em de- as modificações empreendidas pela re-
fender. A colônia tornou-se o lugar ade- forma protestante, veremos que na co-
quado para a reconstrução da história do lônia há uma exacerbação das práticas
catolicismo, enfraquecido no continente e rituais negados por aquela. Como ob-
europeu pelas disputas confessionais do serva Keith Thomas, o protestantismo
Renascimento. “apresentou-se como uma tentativa deli-

Acervo, Rio de Janeiro, v. 16, n o 2, p. 147-172, jul/dez 2003 - pág. 153


A C E

berada de retirar os elementos mágicos portanto, no universo da literatura nas-


da religião, de eliminar a idéia de que cida da Contra-Reforma. Bernardes escre-
os rituais da Igreja tinham uma eficácia veu diversos tratados de espiritualidade
mecânica”. 22
Ou seja, o protestantismo e guias morais, como Luz e calor (1696),
negava o poder instrumental da Igreja Armas da castidade (1699), Exercícios
católica – opus operatum – recebido de espirituais e meditações da vida purgati-
Deus e a “participação ativa em suas va (1731) e Sermões e práticas do padre
obras e encargos”. 23
Manuel Bernardes (1733). Seus livros
ainda eram oferecidos à população da
Na colônia se promoveu ou enfatizou
colônia portuguesa na América no início
todo um conjunto de práticas que demar-
do século XIX, como infor ma a lista dos
cavam as diferenças entre as Igrejas Ca-
118 títulos de literatura religiosa, sem
tólica e Protestante: as procissões e as
menção de seus autores, vendidos na
festas do calendário religioso, a devoção
cidade do Rio de Janeiro pelo livreiro
de um grande rol de santos e santas ve-
baiano Manuel da Silva Serva. 24 Identifi-
nerados nas confrarias for madas por
camos que o conjunto dos títulos refere-
colonos leigos e naquelas de escravos e
se, na sua maioria, a obras publicadas
forros, as missas pelos mortos ou em
em Portugal nos séculos XVII e XVIII, e
nome das almas do purgatório instituí-
uma menor parte no final do século XVI,
das pela população, e muitas outras for-
sugerindo que a identidade religiosa e
mas de manifestação religiosa. Ao mes-
cultural da colônia desenvolveu-se em
mo tempo, houve a adoção de algumas
torno dos mesmos livros e da
das estratégias ou condutas introduzidas
homogeneidade das bibliotecas. Entre os
com a consolidação do protestantismo
outros títulos da referida lista, encon-
na reforma da Igreja Católica em geral
tram-se alguns também de autoria de
e, mais especificamente, no projeto con-
membros do Oratório português. Dentre
cebido pelo padroado português para a
eles, Ser mões genuínos e práticas espi-
for mação de súditos fiéis ou de perfei-
rituais e Obras espirituais, de Antônio
tos cristãos, tais como a importância da
das Chagas, contemporâneo de Manuel
pregação – que tonaria célebres os ser-
B e r n a r d e s . 2 5 A segunda geração dos
mões de Antonio Vieira –, o estímulo à
oratorianos está representada, na rela-
leitura dos compêndios que esclarecem
ção do livreiro, por Teodoro de Almeida,
os pontos básicos da doutrina, e a ela-
que produziu livros de divulgação cientí-
boração e difusão da literatura
fica e de espiritualidade, e desta segun-
devocional entre os fiéis.
da linhagem é a obra Estímulos do
As obras do oratoriano Manuel Bernardes a m o r . 2 6 Apesar da hostilidade política
(1644-1710), membro da primeira gera- contra o Oratório em Portugal, na déca-
ção do Oratório português, se increvem, da de 1760 quando foi determinado o

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exílio, ordenado pelo marquês de Pom- regiões luteranas e católicas da palavra


bal, dos seus mais proeminentes intelec- clerical e de todos os livros que têm a
tuais, as obras dos seus religiosos não função de indicar a correta interpretação
foram banidas do universo da literatura da Escritura”, 29 pois os religiosos tinham
religiosa na colônia. o monopólio da interpretação do texto
sagrado.
Nos inventários post-mortem dos colonos
Não poderia deixar de estar presente nos
da América portuguesa estão arrolados
inventários, o best-seller da literatura
os conteúdos das bibliotecas privadas co-
devocional, não somente para o clero
loniais e em suas listagens encontramos
secular e regular como para amplas ca-
inúmeros exemplares da Bíblia, catecis-
madas de piedosos leigos, A imitação de
mos e outros compêndios dos princípios
Cristo 30 de Thomas Kempis. Editado pela
básicos do cristianismo. 27 A partir do sé-
primeira vez em 1418, foi impresso em
culo XVI, a difusão da doutrina cristã tor-
diversas línguas e publicado cerca de
nou-se um importante objetivo, acaban-
sessenta vezes antes de 1500, tendo
do por promover a teologia, cujos fun-
aproximadamente duzentas edições no
damentos básicos deveriam ser conhe-
curso do século XVI. 31 O livro, obra-pri-
cidos pelos fiéis, e da qual deveria origi-
ma gestada pela Devotio moder na , é uma
nar a moral. Essa estratégia, originalmen-
exortação e uma explanação detalhada
te adotada pelos protestantes, foi, de-
da vida cristã, que consistiu, para
pois, incorporada na prática da Igreja
Kempis, em seguir os passos de Cristo.
Católica. Expressão inequívoca dessa
Kempis convida os cristãos que querem,
nova atitude foi a multiplicidade de ca-
em suas palavras, fazer alguns progres-
tecismos, redigidos tanto para instruir co-
sos a meditar sobre a miséria humana, a
munidades católicas quanto protestan-
morte, o julgamento, o inferno e o céu.
tes. No século XVI, e ainda no XVII, a
Esses elementos foram interligados pelo
“Escritura fala”, como diz Michel de
autor com um sentimento religioso ar-
Certeau; o texto sagrado é uma voz que
dente, contribuindo, assim, para que a
ensina. É a crença na poderosa coerên-
obra permanecesse, por quase quinhen-
cia da palavra divina, e o reencontro do
tos anos, como expressão do supremo
“querer dizer de Deus” com o “querer
chamamento à vocação religiosa e guia
ouvir” do leitor-ouvinte. 28 A Bíblia desti-
de aspiração espiritual para os cristãos.32
nava-se exclusivamente aos pastores pro-
testantes e religiosos do catolicismo ro- Nos inventários pesquisados, destaca-se
mano até o final do século XVII, pois a vasta produção de obras edificantes,
“não deve ser dada aos que correriam o tais como: A verdadeira voz do pastor ;
risco de realizar leituras heterodoxas e Virtuoso instruído ; Meditações de Cris-
perigosas”, daí o papel fundamental “em to; Conduta de uma senhora cristã ; Diá-

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rio do cristão ; Obrigação da vida cristã ; plícitas, de um vocabulário particular, de


Pecador convertido; Combate espiritual; códigos de leitura como, por exemplo, o
Método de falar com Deus ; Peregrinação “aviso ao leitor”, e de outros dispositi-
de uma cristã , entre outros títulos. A vos que tentam orientar o leitor para o
especificidade da literatura edificante correto entendimento do texto, com vis-
como gênero está referida à sua nature- tas a conectá-lo com a perfeita compre-
za religiosa, carregada de intenções ex- ensão da religião e dos hábitos da fé. O

Antônio José da Silva Pinto, Bíblia sacra : vulgatae editionis..., apud Nicolaum Pezzana, 1742.

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sentido edificante dessas obras era dado cinto e claro, para que aproveite a mui-
por sua leitura repetida, intensiva e la- tos)”, em que “se apontam os meios e
boriosa, ou seja, por meio da árdua de- diligências para evitar, ou remediar os
dicação do leitor, pretendia-se remode- danos da luxúria e adquirir e conservar
lar a consciência privada e a sua experi- as riquezas da castidade”. 36 Aqui o au-
ência temporal. Podemos ler o universo tor remete-nos ao conceito de socieda-
da literatura edificante como um conjun- de cristã perfeita, inspirado na refor ma
to coerente que ao mesmo tempo cons- tridentina, que ao tentar estabelecer a
trói a doutrina cristã e tenta difundi-la, e divisão do mundo entre almas santas e
que integra um circuito de comunicação pecadoras, fixou-se nos temas da moral
que opera segundo o modelo individual, colocando em segundo plano
hegemônico concebido pela Coroa por- os assuntos relativos à moral social.37
tuguesa. Nesse sentido, esses “livros não Ou seja, o palco para o desenrolar das
se destinam a relatar a história: eles a angústias religiosas situava-se, a partir
fazem”. 33
A idéia de que a leitura pode de então, no interior da consciência de
alterar o destino do leitor foi expressa- cada indivíduo, e a esperança de uma
da por Antônio Vieira no seu sermão so- salvação coletiva cedia espaço à preo-
bre o fundador da Companhia de Jesus: cupação com a salvação individual, res-
saltando-se, assim, a importância da fé
[Inácio de Loyola] pediu um livro de ca-
pessoal em Deus.
valarias para passar o tempo; mas, oh

Providência divina! Um livro que só se


As refor mas protestante e católica se
achou, era das vidas dos Santos. Bem
esforçaram para atender as transforma-
pagou depois Santo Inácio o que de-
ções que vinham ocorrendo desde o sé-
veu a este. Mas vede quanto importa a
culo XIV, com a gradativa emergência do
lição de bons livros. Se o livro fora de
lugar do fiel no cristianismo. A pregação,
cavalarias, sairia Inácio um grande ca-
no protestantismo e no catolicismo, ocu-
valeiro: foi um livro de vidas de San-
pou um lugar de destaque na liturgia. A
tos, saiu um grande Santo. 34
busca da qualidade da transmissão da
Nessa linhagem insere-se a obra Armas mensagem evangélica aos fiéis fez com
da castidade . Manuel Bernardes, no sub- que os párocos recebessem esclareci-
título, diz que este é um “tratado espiri- mentos de como conduzir as missas e
tual em que por modo prático se ensi- os sermões. Conforme observou
nam os meios e diligências convenien- Delumeau, as igrejas construídas após o
tes para adquirir, conservar e defender Concílio de Trento tinham dimensões
esta angélica virtude”. 35
O autor adverte menores para que a audiência pudesse
o leitor dos benefícios adquiridos a par- ouvir claramente a pregação emanada do
tir da leitura “deste tratado (prático, su- púlpito.

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A imprensa tornou possível, pela primei- proibição de condutas sociais vinculadas


ra vez, a difusão das instruções de uni- a desejos heréticos, apreendidos tanto
for midade do culto em um maior núme- no contato com os saberes dos livros
ro de comunidades dos territórios cató- profanos como nos lugares tidos como
licos. Por exemplo, no inventário do pa- ofensivos ao dogma cristão e à moral das
dre Joaquim Gonçalves de Figueiredo, 38
famílias. A sociabilidade adequada era
estão arrolados os livros de sua modes- um retrato da virtude, cabendo à educa-
ta biblioteca, embora devesse ser de ção religiosa transmitir não apenas a fé,
grande valia para o bom exercicío das mas, sobretudo, uma moral para a vida
suas atividades pastorais: quatro cotidiana. Os reformadores católicos pre-
breviários, uma Bíblia , Prática de confes- tendiam restaurar a teologia da qual de-
sionário, Concílio Tridentino, Viático cris- veria derivar a moral que serviria de
tão , Caderno dos santos , Filosofia metó- modelo a todos os fiéis. 39 Na sociedade
dica e Livro da Semana Santa . As religi- colonial da América portuguesa, em que
ões cristãs investiram na for mação das a educação não recebia qualquer estímu-
academias e seminários para sacerdotes lo fora do âmbito do monopólio da Com-
e ofereceram a correta instrução aos panhia de Jesus, não havendo impren-
guias espirituais das comunidades. sa, universidade ou livre circulação de
livros, a devoção religiosa tornava-se
O texto de Manuel Ber nardes ainda lem-
prioritária. Maria Beatriz Nizza da Silva
bra ao leitor que não existe intimidade
afirma que “a civilização brasileira de
passível de escapar ao olhar de Deus. À
1650 a 1750 mostrou-se uma civilização
vigilância das autoridades se somaria a
s e m l i v r o s ”, 4 0 entretanto acrescenta-
vigilância onipresente de Deus, o que
mos: uma sociedade com poucos livros
representaria a negação radical da inti-
que não fossem, em sua maior parte,
midade. Esse texto refere-se à trigésima
religiosos.
pergunta colocada, por ele, ao leitor qual
seja: “[aquele] que deseja ser casto deve A literatura edificante pode ser compre-
fugir de livros amatórios, pinturas obs- endida como parte de um sistema maior
cenas, músicas lascivas, cheiros delicio- de comunicação, parte escrita de um sis-
sos, saraus, e bailes, em que entram mu- tema que tem como perspectiva formar
lheres?”. O texto é construído sob a for- o leitor padrão, ou seja, o homem e a
ma de um diálogo com perguntas e res- mulher cristãos na sua formulação idea-
postas que buscam a razão do leitor, lizada, e assim moldar o súdito ideal que
sendo um recurso inicialmente utilizado não se opõe à ordem hierárquica coloni-
na elaboração de catecismos e que pas- al, suscetível à disciplina instaurada pe-
sou a ser incorporado pelos autores dos los mecanismos de controle social e
livros de devoção. O autor sublinha a moral impostos pela Coroa portuguesa

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e, por isso, capaz de reafirmar a valida- te da Sagrada Escritura para que esta
de do pacto colonial. “servisse para fundar ou autorizar as

Os livros de divulgação da moral e dou- considerações em que se reparte [o li-

trinas católicas podem ainda ser compre- vro], ou de pegar-lhes calor da palavra

endidos, de acordo com Michel Vovelle, divina, que como ela mesmo diz é fogo

como parte integrante dos mecanismos muito ativo”. 4 4 Tanto a imagem que o

de controle social que tornam os fiéis autor faz dos livros proibidos como a que

objeto de uma política, 41 e como um dos faz das palavras divinas remetem-nos

instrumentos então dirigidos a discipli- para a ambivalência do simbolismo do

nar homens e mulheres e a treinar seus fogo na tradição bíblica. Um dos signifi-

corpos e suas almas para que juntos for- cados refere-se à idéia de que Deus é

massem um todo harmônico a serviço de fogo, e suas palavras e ações são

Deus e do rei. incandescentes. Essa imagem repousa na


passagem bíblica em que o profeta
Voltando à epígrafe, Ber nardes associa
Moisés, estando no Monte Sinai, é sur-
livros considerados inadequados e a bi-
preendido pela presença de Deus, que
blioteca por eles formada “a uma foguei-
surge no meio de um arbusto que arde
ra”, concluindo que “melhor era arderem
em chamas, sem contudo destruir a ve-
os livros do que os leitores”. 42 A refe-
getação, e esta é a própria imagem da
rência tem um tom de ameaça por sua
eternidade de Deus. 45
analogia com os métodos de punição
empregados pela Inquisição, ou de um A palavra de Deus, portanto, é também
aviso preventivo contra os possíveis im- considerada como um fogo, fonte que
pulsos do leitor em desrespeitar as nor- pode aquecer o corpo físico e iluminar a
mas religiosas e morais estabelecidas alma, acompanhando o fiel na sua jor-
pelas autoridades civis e eclesiásticas. nada pela vida terrestre. Mas o tema do
Aos leitores de seus Exercícios espiritu- fogo devorador é também importante
ais e meditações da vida purgativa , que nessa tradição. O fogo que reduz tudo a
tratam da “malícia do pecado, vaidade do cinzas simboliza a destruição resultante
mundo e misérias da vida humana”, o da implacável cólera de Deus e o aspec-
autor faz a mesma advertência, ao dizer to catastrófico de sua ira, que é também
que seu livro, mesmo que ainda “não sir- a imagem de sua potente atividade in-
va para meditar, servirá para lição mais terna. 46 As referências feitas em Ar mas
honesta e proveitosa, que a de fábulas, da castidade apontam, ao menos, para
comédias e novelas”. 43 essas duas faces de Deus: a que pode
Ainda nos Exercícios , o autor, ao final conceder sabedoria em vida e paz à alma
de cada meditação proposta ao pio lei- no paraíso celeste e aquela que não he-
tor, escolhe uma sentença corresponden- sita em destruir tudo em nome de sua

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justiça. A analogia entre as fogueiras da divulgação de obras doutrinais que con-


Inquisição e o Index apoia-se sobre essa trariassem o modelo religioso concebi-
manifestação concreta da face divina que do pelo padroado. O marquês do
aniquila para purificar. O autor pergunta Lavradio, em 1775, determinou o con-
ao leitor qual vítima deveria ser fisco da biblioteca do Colégio dos Jesu-
sacrificada ou, em outras palavras, o que ítas no Rio de Janeiro. Nessa ocasião,
seria melhor, arderem os livros conside- 64 títulos foram avaliados como proibi-
rados impróprios ou seus leitores? Pois, dos e enviados ao Juízo da Inconfidên-
nada ou ninguém escapa à implacável ira cia em Lisboa, entre eles as obras de Si-
de Deus. mão de Vasconcelos, as publicações so-
bre a história da Companhia e também,
No Reino chegaram as orientações da
como não poderia deixar de ser, os Exer-
Igreja romana, que incluíam “a discipli-
cícios espirituais de Inácio de Loyola. Os
na da imprensa pela censura prévia e da
livros que tratavam da doutrina e da dis-
leitura pela máquina integradora do li-
ciplina eclesiástica foram entregues ao
vro proibido”. 47 A censura imposta pelo
prelado, e os livros restantes foram dis-
T ribunal da Inquisição iniciou-se em
tribuídos entre “as pessoas de alguns mi-
1547, ano seguinte ao fim do Concílio
nistros e letrados que se julgar serem ca-
de T rento, quando foi também publica-
pazes não só de dar conta deles, mas de
do o primeiro Index dos autores e livros
lhes darem melhor trato”.49
proibidos. A difusão das obras religiosas
e a censura de livros e autores constitu-
Os livros escritos pelos jesuítas traduzi-
em-se as duas faces de uma mesma base
ram um modelo cultural que foi domi-
na qual se assenta o processo de
nante no Reino e espaço colonial ao me-
enquadramento das populações à reli-
nos até 1759, ano de sua expulsão, ex-
gião católica e, conseqüentemente, à
pressando, de certa for ma, a aliança
ordem monárquica, 48 sendo ambas ins-
desses religiosos com os ideais que in-
trumentos para o exercício do poder ré-
formavam o padroado português. Cum-
gio ainda no século XVIII.
pre assinalar a importante tradição da
A ausência da literatura produzida pelos Companhia de Jesus no processo de pro-
jesuítas e a presença das obras dos dução de obras acerca da evangelização
oratorianos na referida lista do livreiro e doutrinação das populações coloniais
Manuel Serva também indicam dois mo- e seu papel de destaque no quadro das
mentos distintos para a compreensão do reformulações tridentinas. Os livros de
padroado régio na colônia no decurso do lingüística, dicionários, vocabulários e
século XVIII. Com a expulsão dos jesuí- gramáticas em língua indígena constituí-
tas, a censura régia recaiu sobre os seus ram-se importantes instrumentos utiliza-
novos desafetos, buscando o controle da dos pelos missionários jesuítas para a

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conversão das populações nativas. Cou- for mada dentro e fora do continen-
be à Companhia propor à ascese cristã te europeu.
o alicerce racional e a estrutura sist e -
mática necessários para a Com base na experiência nos colégios,
i m p l e m e n t a ç ã o d a I g r e j a Ca t ó l i c a r e - os jesuítas dedicaram-se a produzir tra-

Nuno Marques Pereira, Compêndio narrativo do peregrino da América, 1731.

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tados morais como aquele do italiano habitantes. O enquadramento das popu-


Jorge Benci, discípulo de Vieira, que es- lações no espaço colonial assentou-se na
creveu, em 1700, a Economia cristã dos definição geral das virtudes cristãs, ca-
senhores no gover no dos escravos , 50
bendo às Constituições fundar as bases
primeira obra publicada em Roma acer- de uma estrutura normativa que regula-
ca da moral escravocrata. 51
Esse livro mentasse e ordenasse a vida religiosa da
reúne quatro sermões dirigidos aos se- colônia com base nos princípios estabe-
nhores de engenho do Recôncavo Baiano lecidos em Trento, que impunham a cada
sobre as vinte obrigações da economia fiel a obrigação de conhecer a sua reli-
cristã no gover no de escravos. 52
Benci gião. 55
recomendava aos senhores de escravos,
Outro tratado moral a ser destacado é o
alimentar as almas de seus servos com de Nuno Marques Pereira, Peregrino na
a doutrina cristã, para que saibam os América, 56 que parece ter atraído nume-
mistérios da fé, que devem crer e os rosos leitores em Portugal e na colônia
preceitos da lei de Deus, que hão de no século XVIII. 57 O livro é uma narrati-
guardar [...] em que se funda esta tão va de viagem, em que são relatados os
precisa obrigação que têm os senho- diálogos travados entre o peregrino e os
res de catequizar os servos? Digo que habitantes da colônia, ao longo de sua
no poder e domínio que têm sobre jornada. Para Nuno Pereira, os livros es-
eles; porque doutrinar aos rudes é pirituais “ensinam a obrar, para salvar”, 58
conseqüência de quem tem neles se- pois a perfeita vida cristã requer o “cum-
nhorio. 53 primento da lei de Deus e observância
de seus mandamentos por serem as pe-
Jorge Benci recupera aqui um dos prin-
dras fundamentais destes nossos edifí-
cípios estabelecidos em Trento, anteci-
cios espirituais, e para melhor dizer, o
pando o que seria incorporado, mesmo
cumprimento per feito da vontade de
que tardiamente, às Constituições pri-
Deus”. 59 O autor-peregrino relata a pre-
meiras do arcebispado da Bahia,
ocupação de um morador da colônia, que
publicadas em 1717, ao se determinar a
indaga: “[nós] outros semelhantes que
todas as pessoas, eclesiásticas e secula-
vivemos num deserto, sem confessor, e
res, que ensinassem e fizessem ensinar
mal nos podemos confessar de ano em
a doutrina cristã “à sua família e especi-
ano, como nos poderemos livrar de dor-
almente a seus escravos, que são os mais
mirmos, não em um pecado, se não em
necessitados por sua rudeza”. 54 A con-
muitos?”. O peregrino aconselha:
versão e a conseqüente observância da
doutrina cristã não eram somente res- lede os livros espirituais [...] que à noi-
ponsabilidade do clero, mas sim um de- te, antes ou depois de vos deitardes a

ver a ser cumprido pelo conjunto dos dormir, façais exame de consciência,

pág. 162, jul/dez 2003


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trazendo à memória todos os pecados sa colônia: substituir o incipiente clero


que cometestes naquele dia: e que secular e a estrutura eclesiástica
façais então um ato de contrição com diocesana precária. A importância da atu-
dor, e arrependimento [...]. E deste ação das ordens religiosas foi afirmada
modo vos poreis em graça de Deus: e também por meio da produção intelec-
se morrerdes naquela noite sem con- tual de seus membros, ao escreverem as
fissão, por não ter confessor, não ireis obras edificantes que pretendiam comu-
ao infer no. 60
nicar a concepção do fiel ideal. Os livros
religiosos aspiram a tor narem-se os con-
O aviso do autor expressa uma das fun- selheiros do bem-estar espiritual dos co-
ções desses livros espirituais na disper- lonos e orientadores do perfeito cumpri-

Nuno Marques Pereira, Compêndio narrativo do peregrino da América, 1731.

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mento dos princípios cristãos. A refor- sou de oscilar entre o otimismo


ma católica, ao dizer ao fiel que ele não pelagiano, que proclama a autonomia
está sozinho e que a vida não é deter mi- voluntarista da criatura em relação ao
nada arbitrariamente pela sorte, caminha criador, e o pessimismo trágico de San-
na direção contrária à tormenta do ina- to Agostinho, que reduz o homem sem-
cessível introduzida pela religião protes- pre maculado pelo pecado original a es-
tante e sua compreensão de que somen- perar a salvação de Deus, mas o “vence-
te a fé salva, não as ações ou a vontade dor foi Agostinho”. 6 1 Dessa discussão
humana. teológica emergiu para as populações de
fiéis a ênfase no tema da salvação, es-
O grande debate travado entre católicos
treitamente relacionado ao debate sobre
e protestantes foi em tor no da
a predestinação.
predestinação. Para Lutero a justificação
Os intelectuais eclesiásticos produziram
pela fé estava baseada na certeza de que
uma vasta literatura de devoção com a
Deus havia liberado o livre-arbítrio hu-
função de orientar o fiel na busca da
mano da tarefa da salvação. A salvação
salvação. Os Exercícios espirituais e
dependia, nessa perspectiva, do livre
meditações da vida purgativa 62 de Manu-
arbítrio divino, e de modo algum seria
el Bernardes dedicam três capítulos a
alcançada em virtude dos próprios esfor-
meditações sobre a morte, o inferno e o
ços dos indivíduos, mas exclusivamente
paraíso. Contrariando a concepção
em virtude da graça e misericórdia de
luterana de que os esforços dos fiéis são,
Deus. Mais tarde, Calvino aprofundou a
em sua essência, inúteis, os escritores
noção de salvação luterana, ao apontar
da Igreja romana oferecem consolo aos
para uma dupla predestinação: aqueles
crentes e orientação, na sua angústia
que serão eleitos e os que serão repro-
sobre a morte, e uma gama variada de
vados; tais escolhas dependeriam dos
possíveis práticas para a vida cotidiana
atos inteiramente livres de Deus. A deci-
visando à eleição futura e à entrada no
são soberana de Deus não poderia ser
paraíso celestial.
negada pelo homem; a graça divina se-
ria, portanto, irresistível na concepção Na Capela Real, em 1655, Antônio Viera

protestante. Os católicos e, mais especi- disse à sua audiência:

ficamente, os jesuítas defendiam a idéia Como hão de ser as palavras? Como

de que havia muito a ser feito em vida as estrelas. As estrelas são muito dis-

para se obter a graça de Deus. Segundo tintas e muito claras. Assim há de ser

Jean Lacouture, o cristianismo não ces- o estilo da pregação, muito distinto e

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muito claro. E nem por isso temais que tã no início do século XVI, 65 reafirman-
pareça o estilo baixo; as estrelas são do a validade da religião e a credibilidade
muito distintas, e muito claras e de suas palavras, que passaram a ser
altíssimas. O estilo pode ser muito cla- divulgadas também pela imprensa. Os
ro e muito alto; tão claro que o enten- reformadores protestantes moveram-se
dam os que não sabem, e tão alto que pela convicção religiosa de que o texto
tenham muito que entender nele os escrito, sobretudo o sagrado, como apon-
que sabem. 63
ta Michel de Certeau, tem o poder de
modificar a história de uma sociedade
No século XVII, a perspectiva de persua-
tida como corrompida e de restaurar uma
são presente no texto de Vieira, escrito
Igreja Católica considerada decadente; “a
fundamentalmente para os sermões fa-
ambição dos reformadores é refazer a
lados, pode ser entendida como um mo-
história a partir de um texto, eis o mito
delo ideal para as palavras impressas que
de Refor ma”.66
compõem os livros de devoção e de
espiritualidade. É a literatura edificante,
A Igreja romana combateu os infiéis tam-
seja como objeto de leituras em públi-
bém por meio das palavras de Deus. Os
co, seja como objeto de leitura íntima,
Exercícios espirituais de Inácio de
que pretende dirigir os corações e men-
Loyola, escritos em 1526, apresentam-
tes da população. Pregar – seja do púlpi-
se como resultado de uma revelação,
to, seja por meio da palavra impressa –
ditada pelo próprio Senhor ao jesuíta,
para persuadir e conquistar, continuava
reafirmando a transcedência de Deus em
a ser uma tarefa indispensável no inces-
função do sentido de inspiração contido
sante esforço não só de recompor as fra-
em sua obra.67 A credibilidade dos Exer-
turas sofridas pela Igreja ocidental, mas
cícios é dada pela sacralização da pala-
de manter seu rebanho sempre em cres-
vra escrita, e fundamentalmente não se
cimento, como já haviam preconizado os
destinam à leitura e sim à prática.68 O
antigos críticos da Igreja romana como
termo é categórico, exercício é o ato de
João Huss, no quatrocentos, e Lutero e
exercer, praticar, e tem também o senti-
Calvino, um século mais tarde. A Igreja
do de treinamento e adestramento. É a
romana também só poderia ser transfor-
credibilidade do texto que produz prati-
mada pela palavra de Deus. 64
cantes, relacionando-se assim o fazer
Os livros religiosos impressos e, mais crer à prática da devoção, à ação que
precisamente, as traduções da Bíblia inclui uma disciplina física e mental dos
começaram a se difundir na Europa cris- exercitantes. 69

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Oralidade e escrita, para Certeau, não fusão das novas exigências da religião
devem ser separados como pertencentes reformada e para a confor mação espiri-
a campos opostos, nem tampouco enten- tual dos fiéis.70
didos como iguais ou comparáveis, es-
Nobert Elias, em sua análise sobre os
tando apenas com sinais invertidos. A
mecanismos de implantação e reprodu-
memória cultural adquirida pela tradição
ção das normas da sociedade de corte
oral per mite e enriquece gradativamente
do Antigo Regime, o modelo de civilité ,
as “estratégias de decifração semântica
sublinha que é a interiorização da regra
cujas expectativas a decifração de um
que lhe confere maior eficiência. 71 As-
escrito afina, precisa ou corrige”. Assim,
sim, a disciplina coletiva torna-se “obje-
fala e escrita são fios que interminavel-
to de uma gestão pessoal e privada”.72
mente tecem a mesma trama, a palavra
Os livros espirituais divulgam os compor-
escrita retorna como voz ouvida, ou, in-
tamentos lícitos, em que o ato individu-
versamente, uma palavra falada se fixa
al está irremediavelmente sob o vigilan-
na escrita. Os textos da literatura de de-
te olhar de todos e de Deus. As duas re-
voção – como aqueles que orientam os
formas, apesar de suas diferenças de
fiéis a se preparar para a morte e para
ordem teológica, desejavam encerrar os
os exercícios religiosos – pretendem dar
fiéis numa teia de práticas e
forma às práticas religiosas. Essas obras
ensinamentos obrigatórios e, ao mesmo
aspiravam a produzir a educação dos es-
tempo, dotar os religiosos de uma for-
píritos para moldar as condutas, incor-
mação compatível com as novas exigên-
porando gestos necessários ou apropri-
cias da Igreja pós-tridentina, sujeitando-
ados às nor mas religiosas.
os à pressão dos mecanismos disciplina-
A literatura de devoção filia-se, também, res que visavam à interiorização das nor-
à tradição dos tratados de civilidade e mas inculcadas no seminário para o cor-
de divulgação de modelos de comporta- reto exercício de suas funções. Francis-
mento que fundaram uma linguagem co- co Falcon, ao analisar a direção e o con-
mum e novos pontos de referência soci- trole da cultura empreendidos pelo Es-
al e cultural para o homem moder no. tado português no Renascimento, alerta
Esse movimento de divulgação de mode- para o fato de que o “terror intelectual
los de civilidade acompanhou as refor- contaminava como verdadeira peste as
mas protestante e católica, fazendo do obras e as consciências; a autocensura
livro e, em particular, da literatura de funcionava com maior eficácia talvez que
devoção um dos instrumentos para a di- a própria censura. Para sobreviver era

pág. 166, jul/dez 2003


R V O

preciso integrar-se ao clima da Contra- especificidade em meio ao universo da


Refor ma”. 73
A cristalização do pensa- literatura leiga. A instituição religiosa,
mento aristotélico-tomista em terras lu- sua resistência ao tempo, sua aptidão
sitanas colaborou, decisivamente, para adaptativa, da qual fala Baêta Neves, nos
o enclausuramento do ambiente científi- remetem para o apego aos textos e às
co e cultural português. práticas institucionais originais, que “de-
vem ser repetidos ad infinitum e difun-
Mesmo diante da produção da Ilustração,
didos do mesmo modo, sendo a proxi-
na qual sobressaem os temas econômi-
midade do original o índice mesmo de
cos ou políticos, persistiu, segundo
sacralidade”. 78 Podemos considerar que
Dominique Julia – e com um peso infini-
o território da religiosidade é também o
tamente mais significativo –, esse gêne-
da temporalidade mais ampla. Aqui, re-
ro literário, 74 impulsionado, na França,
corremos a Vovelle que, ao enfrentar o
por sua demanda como instrumento di-
problema da longa duração tal como é
dático no processo de alfabetização das
conceituada por Braudel, ressalta que
populações. O livro Alfabetos com prin-
esta não inclui as noções de inércia e de
cípios da doutrina cristã 75 expressa que
imutabilidade, e propõe a
não havia mais separação entre o ensi-
compatibilização entre a longa e a curta
no dos princípios da fé, da moral e da
duração, entre o tempo da ruptura e o
leitura.
da permanência. 79
A ordem religiosa pensada é elaborada
em textos que se reproduzem nos livros No caso português, a literatura de devo-
e que a reiteram continuamente, “for- ção está firmemente apoiada tanto no
mando calçamentos e caminhos, redes poder institucional da Igreja Católica –
de racionalidade”. 76
Os textos religiosos e, no que se refere às suas funções es-
são aqueles que, por sua natureza, são pecíficas, procura manter laços estreitos
passíveis de reempregos duráveis e com a população – como nos mecanis-
multiplicadores. A designação do gêne- mos de controle instaurados pela Coroa,
ro como religioso é um indicador explí- marcados pela intolerância religiosa. Os
cito que cria expectativas de leitura e livros religiosos publicados com autori-
perspectivas de entendimento. O livro a zação dos censores portugueses inserem-
ser lido conecta-se, assim, com outros se na ordem institucional concebida e no
anteriores, assinalando ao leitor o “pré- discurso normativo expresso pelo poder
entendimento apropriado no qual situar metropolitano, em que a enunciação dos
o texto”, 77
e aponta para a sua textos mobiliza também a colonização

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civilizadora portuguesa. A vontade de gurando uma relação nova com o sagra-


dominação, o “sonho de uma ordem pen- do, para além daquela mediatizada pe-
sada”, como diz Angel Rama, 80
traduz- las práticas controladas pelos agentes
se em um projeto de colonização que eclesiásticos.
será constantemente refor mulado, mas
Os escritores de livros de devoção po-
que não se afasta de seu eixo central,
dem ser vistos, também, como missio-
em que a colônia é um território domi-
nários reais que, mesmo afastados fisi-
nado, uma possessão.
camente do universo colonial, atuam
como colonizadores eclesiásticos exer-
Os membros do clero secular e regular
cendo o ato de colonizar por meio da
são, obviamente, os autores dessa vasta
difusão da doutrina católica, aconselhan-
produção de livros de devoção, e tam-
do e dirigindo as consciências dos habi-
bém os que, por sua separação social e
tantes do território português na Améri-
cultural, tor nam-se encarregados de ex-
ca. A literatura edificante pode ser en-
primir a fronteira entre o sagrado e o
tendida como porta-voz desses agentes
profano e de manter uma difusão orto-
de transmissão cultural, constituindo-se
doxa das representações e das crenças
em um dos instrumentos da sua ação
religiosas. Dominique Julia observa que
diretiva na conquista espiritual das po-
os religiosos no século XVIII são o pon-
pulações, patrocinada pelo padroado
to focal por onde a Igreja se distingue
régio. O próprio for mato de Armas da
dos outros grupos sociais, uma vez que
castidade , de Manuel Bernardes, é con-
esses agentes participam ao mesmo tem-
dizente com essa expectativa de que o
po da administração de práticas cuja ló-
livro de devoção seja o companheiro
gica não é apenas religiosa, mas também
permanente do fiel; a obra é vermelha,
utilitária. 81 Os religiosos deveriam pos-
cor que simboliza o dom de iluminação
suir a aptidão ou o talento necessários
interior do Espírito Santo, menor do que
para cumprir o objetivo de difusão da
um palmo, compacta, facilmente se lê no
doutrina cristã, agora comunicada tam-
leito ou em qualquer outro lugar, e pode
bém pela palavra impressa. O livro tor-
acompanhar o leitor em suas locomo-
nou-se um aliado indispensável nas es-
ções sem tornar-se um fardo, podendo
feras das reformas católica e protestan-
ser objeto de uma consulta íntima e rei-
te, na construção de um fervor pessoal
terada.
e de uma devoção interior que repousam
sobre a mesma condição: a gradativa A Igreja Católica pós-tridentina não po-
familiaridade com a palavra escrita, inau- dia deixar cada um imaginar e, conse-

pág. 168, jul/dez 2003


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qüentemente, errar sobre quem era preende para crer, crê para compreen-
Deus, assim a instrução do catecismo e der”.82 Por que para ser salvo, era preci-
o conhecimento dos dogmas e preceitos so, antes, saber.
da religião católica tornavam-se funda-
mentais na era moder na. Voltava-se para Artigo recebido para publicação em ou-
as palavras de Santo Agostinho: “com- tubro de 2003.

N O T A S
1. Biblioteca Nacional. Seção de Obras Raras. Manuel Bernardes, Armas da castidade , Lisboa,
Na Oficina de Miguel Deslandes, 1699.
2. Arquivo Nacional. Apud Simão de Vasconcelos, Crônica da Companhia de Jesus nesta parte
do Novo Mundo, Lisboa, Editor J. Fer nandes Lopes, 1875, p. 50.
3. Édouard Jeauneau, A filosofia medieval , Lisboa, Edições 70, 1980, p. 13.
4. N. S. Davidson, A Contra-reforma , São Paulo, Martins Fontes, 1991, p. 7.
5. Jean Delumeau, A civilização do Renascimento , v. I, Lisboa, Editorial Estampa, p. 141.
6. Inácio de Loyola, Autobiografia , São Paulo, Edições Loyola, 1991, p. 19.
7. Henri Marc-Bonnet, Histoire dês ordres religieux , Paris, PUF, 1949, p. 90.
8. Cf. Krumenacker Y., L´école française de spiritualité, Paris, Cerf, 1998.
9. L. J. Rogier e J. De Bertier de Sauviny, Nova história da Igreja , Petrópolis, Vozes, p. 207.
10. Henri Bremond, Histoire littéraire du sentiment religieux en France , Paris, Bloud et Gay, 1921,
p. 3.
11. Raymond Deville, L´école française de spiritualité , Paris, Desclée, s.d.
12. L. J. Rogier e J. De Bertier de Sauviny, op. cit., p. 211.
13. Biblioteca Nacional. Seção de Manuscritos. Cf. Estatutos da Congregação dos Clérigos do
Oratório de Nossa Senhora da Assunção, 1670.
14. Arquivo Nacional. Companhia de Jesus, Regras da Companhia , Évora, 1603.
15. Raymond Deville, op. cit.
16. Francisco Contente Domingos, Ilustração e catolicismo – Teodoro de Almeida , Lisboa, Coli-
bri, 1994, p. 28.

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17. Eduardo Hoornaert, A Igreja Católica no Brasil colonial, in Leslie Bethell (or g.), História da
América Latina: América Latina colonial, v. 1, São Paulo, Editora da Universidade de São
Paulo, 1997, p. 558.
18. Charles Boxer, O império marítimo português 1415-1825, Lisboa, Edições 70, 1977, p. 84.
19. José Barnadas, A Igreja Católica na América espanhola colonial, in Leslie Bethell (org.), op.
cit., p. 525.
20. José Barnadas, op. cit., p. 577.
21. Cf. Vivien Ishaq, O padroado real, in Compromisso das almas : irmandades leigas na cidade
do Rio de Janeiro do século XVIII, dissertação de mestrado em história social da cultura, Rio
de Janeiro, PUC-Rio, 1996.
22. Keith Thomas, Religião e o declínio da magia : crenças populares na Inglaterra, séculos XVI e
XVII, São Paulo, Companhia das Letras, 1991, p. 55-56.
23. idem.
24. Renato Berbert de Castro, Notícia do catálogo de livros, que se acham à venda em casa de
Manuel Antônio da Silva Serva, in Maria Beatriz Nizza da Silva, Cultura e sociedade no Rio de
Janeiro (1808-1821) , São Paulo, Ed. Nacional, 1978, p. 81.
25. Biblioteca Nacional. Seção de Obras Raras. Antônio das Chagas, Obras espirituais , Lisboa,
Na Oficina de Miguel Deslandes, 1684; Sermões genuínos e práticas espirituais , Lisboa, Na
Oficina de Miguel Deslandes, 1690.
26. Segundo Francisco Contente Domingos, op. cit., p. 84, “pretende harmonizar o cristianismo
com a filosofia das luzes, tal como se propunha fazer no domínio científico-filosófico”.
27. Foi realizada pesquisa nos processos de inventários post-mortem sob a guarda do Arquivo
Nacional.
28. Michel de Certeau, A invenção do cotidiano , 1- A arte do fazer, Petrópolis, Vozes, 1998, p.
228.
29. Gugliemo Cavallo e Roger Chartier, História da leitura no mundo ocidental , São Paulo, Ática,
1998, p. 35.
30. Arquivo Nacional. Inventários, caixa 1.827, processo 9.263, ano de 1794, de Maria Joaquina
de Oliveira.
31. Jean Delumeau, O pecado e o medo : a culpabilização no Ocidente (séculos 13-18), São
Paulo, Edusc, 2003, v. 1, p. 46.
32. Cf. Thomas de Kempis [1420], Imitação de Cristo , São Paulo, José Olympio Editora, 1948.
33. Robert Darnton, A palavra impressa, in O beijo de Lamourette : mídia, cultura e revolução,
São Paulo, Companhia das Letras, 1990, p. 131.
34. Antônio Vieira, Ser mões , organização e introdução de Alcir Pécora, São Paulo, Hedra, 2000,
p. 122.
35. Manuel Bernardes, op. cit.
36. idem.
37. Cf. Eduardo Hoornaert, História geral da Igreja na América Latina , História da Igreja no Brasil,
tomo 2, Petrópolis, Vozes, 1970.
38. Arquivo Nacional. Inventários, maço 491, processo 597, de 1799.
39. L. J. Rogier chama a atenção para a vulgarização no terreno particular da piedade, que se
torna uma especialidade do século XVIII. Cf. L. J. Rogier e J. de Bertier de Sauviny, op. cit.
40. Maria Beatriz Nizza da Silva, Nova história da expansão portuguesa (1620-1750) , Lisboa,
1991, p. 382.
41. Cf. Michel Vovelle (coord.), L’homme des Lumières , Paris, Seuil, 1996.
42. Biblioteca Nacional. Seção de Obras Raras. Manuel Bernardes, Armas da castidade , op. cit.,
p. 271.
43. Biblioteca Nacional. Seção de Obras Raras. Manuel Bernardes, Exercícios espirituais e medi-
tações da vida purgativa , Lisboa, Na Oficina de Antônio Pedroso Galram, 1731.

pág. 170, jul/dez 2003


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44. idem.
45. Cf. Maurice Cocagnac, Les symboles bibliques : lexique théologique, Paris, Cerf, 1994, p. 35-50.
46. idem.
47. As regras ou instruções que acompanham o Index librorum prohibitorum foram impressas
em Lisboa, em 1564, e reproduzidas em língua portuguesa no Catálogo dos livros que se
proíbem nestes reinos , publicado em 1581. José Sebastião da Silva Dias, Os descobrimen-
tos e a problemática cultural do século XVI , Lisboa, Editorial Presença, 1982, p. 265-267.
48. A censura é exercida no Reino e no espaço colonial pelas duas instâncias eclesiásticas –
Santo Ofício e prelados diocesanos – e soma-se a elas o controle do Desembargo do Paço até
a criação, no âmbito das reformas pombalinas, da Real Mesa Censória (1768) e da Real Mesa
da Comissão Geral sobre o Exame e Censura de Livros (1787).
49. Auto de inventário e avaliação dos livros achados no colégio dos jesuítas do Rio de Janeiro e
seqüestrados em 1775, RIHGB , v. 301, Rio de Janeiro, Departamento de Imprensa Nacional,
1973, p. 259.
50. Jorge Benci, Economia cristã dos senhores no governo dos escravos , São Paulo, Editorial
Grijalbo, 1977 (1. ed., Roma, Antônio Rossi, 1705).
51. Cf. Eduardo Hoornaert, História geral da Igreja na América Latina , op. cit., p. 52.
52. Do mesmo grupo de Jorge Benci é o italiano João Antônio Andreoni, que escreveu Opulência
e cultura do Brasil por suas drogas e Minas , publicada em Lisboa, sob o pseudônimo de
Antonil.
53. Jorge Benci, op. cit., p. 84-85.
54. Arquivo Nacional. Constituições primeiras do arcebispado da Bahia , São Paulo, Tipografia 2
de Dezembro, 1853, livro primeiro, título II, cânon, p. 2.
55. Louis Châtelier, La religion des pauvres: les sources du christianisme moderne XVIe – XIXe
siècles, Paris, Aubier, 1993, p. 31.
56. Arquivo Nacional. Nuno Marques Pereira, Compêndio narrativo do peregrino da América : em
que se tratam vários discursos espirituais e morais, com muitas advertências, e documentos
contra os abusos, que se acham introduzidas pela malícia diabólica do Estado do Brasil,
Lisboa, Na Oficina de Manuel Fernandes da Costa, Impressor do Santo Ofício, 1731.
57. Cf. Eduardo Hoornaert, História geral da Igreja na América Latina , op. cit, p. 52.
58. Arquivo Nacional. Nuno Marques Pereira, op. cit., p. 4.
59. ibidem, p. 1.
60. ibidem, p. 103.
61. Jean Lacouture, Os jesuítas , 1: os conquistadores, Porto Alegre, L&PM, 1994, p. 350.
62. Manuel Bernardes, Exercícios espirituais e meditações da vida purgativa , op. cit.
63. Antônio Vieira, Sermão da Sexagésima, in Obras completas. Ser mões , Lisboa, Tipografia Mi-
neral Central, 1889.
64. Cf. Jean Delumeau, A civilização do Renascimento , v. 1, Lisboa, Editorial Estampa, 1983.
65. A Bíblia foi o primeiro livro impresso na Europa, e a primeira obra publicada em língua
portuguesa foi a tradução da Vita Christi, em 1495, de Rudolfo Cartusiano. A Imitação de
Jesus Cristo, escrita na década de 1420 por Thomas A. Kempis, foi, segundo Delumeau, a
obra mais lida na Europa Ocidental, sendo impressa em diversas línguas, cerca de 60 vezes,
antes do ano de 1500. Jean Delumeau, A civilização do Renascimento , op. cit., p. 141.
66. Michel de Certeau, A invenção do cotidiano, 1- A arte do fazer, op. cit., p. 263.
67. Diferente do sentido fechado ou estático da Bíblia que é dado pelo protestantismo, pois nela
está escrito tudo aquilo que o homem deve saber sobre Deus. Nesse sentido, para a Igreja
protestante as revelações são energicamente recusadas, como qualquer autoridade exterior
ao texto bíblico.
68. Jean Lacouture, op. cit., p. 32.
69. Jean Delumeau ressalta a influência da Devotio moderna nos Exercícios de Loyola, que se
constitui em uma nova forma de espiritualidade que privilegia a meditação pessoal e, em

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conseqüência, enfatiza a fé individual em relação à liturgia. Essa meditação deveria ser me-
tódica, apoiada em exercícios e, fundamentalmente, ser dirigida, introduzindo assim um
novo modo de expressão da devoção no Ocidente. Jean Delumeau, A civilização do
Renascimento , v. 2., op. cit., p. 262.
70. Jacques Revel, Os usos da civilidade, in Philippe Ariès e Roger Chartier (orgs.), História da
vida privada. Da Renascença ao século das Luzes , v. 3, São Paulo, Companhia das Letras,
1991, p. 170.
71. Cf. Nobert Elias, O processo civilizador , Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1990.
72. Jacques Revel, op. cit., p. 170.
73. Francisco Falcon, A cultura renascentista portuguesa, Semear , Rio de Janeiro, v. 1, n. 1,
1997, p. 38.
74. Por exemplo, o best-seller dessa literatura na França é o L’ange conducteur dans la dévotion
chrétienne ou pratique pieuse en faveur des âmes dévotes , escrito pelo jesuíta Jacques Coret
em 1683, reeditado 51 vezes entre os anos de 1770 e 1789, atingindo numa única reedição
cerca de cem mil exemplares. Dominique Julia, La pesée d’un phénomène, in Jacques Le
Goff e René Rémond, Histoire de la France religieuse, XVIIIe-XIXe siècle, Paris, Seuil, 1991.
75. Apud Renato Berbert de Castro, op. cit., p. 88.
76. Michel de Certeau, op. cit., p. 236.
77. Roger Chartier, Textos, impressões e leituras, in Lynn Hunt, A nova história cultural , São
Paulo, Martins Fontes, p. 226.
78. Luiz Felipe Baêta, Vieira e a imaginação social jesuítica : Maranhão e Grão-Pará no século
XVII, Rio de Janeiro, Topbooks, 1977, p. 75.
79. Cf. Michel Vovelle, A longa duração, in Ideologias e mentalidades , São Paulo, Brasiliense,
1991, p. 259-298.
80. Angel Rama, A cidade das letras , São Paulo, Brasiliense, 1985, p. 36.
81. Cf. Dominique Julia, Le prête, in Michel Vovelle (coord.), L’homme des Lumiéres , op. cit.
82. Apud Édouard Jeauneau, op. cit., p. 14.

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Célia Cristina da Silva T avares


Tavares
Professora Adjunta – DCH/FFP/UERJ.

Mediadores Culturais
Jesuítas e a missionação na
Índia (1542-1656)

Este artigo analisa os trabalhos This article examines the missionary


missionários desenvolvidos pela labours of the Society of Jesus in India
Companhia de Jesus na Índia, no período from 1542 to 1656 strongly marked by
de 1542 até 1656, que foram fortemente cultural exchanges between West and East,
marcados por trocas culturais entre o Ocidente e what gave it its originality. It takes as examples
o Oriente e determinaram sua originalidade. Como the missionary enterprise of two jesuits:
exemplo, estuda-se a ação missionária de dois Henrique Henriques and Roberto
jesuítas: Henrique Henriques e Roberto de Nobili. de Nobili.
Palavras-chave: Companhia de Jesus, Keywords: Society of Jesus, missionary
missionação, Índia. enterprise, India.

A
preocupação com a missão e ação, e local privilegiado para a
os cuidados com a educação concretização do princípio do contato
foram as marcas mais conhe- mais cristão com o mundo. 1
cidas da Companhia de Jesus, desde sua
for mação por iniciativa de Inácio de Ao discutir o conceito de “império”,
Loyola, em 1537, sendo a Fór mula do Anthony Pagden explora a associação da
Instituto aprovada pelo papa Paulo III na definição romana para civitas – que
bula Regimini Militantis Ecclesiae , em corresponde à comunidade ideal, ao lo-
1540. Para os jesuítas, a missão era o cal de humanidade, ao lugar de
caminho da consolidação da Igreja, vis- florescimento – à noção de “civilizar”, ou
to que a conversão tinha o destacado seja, transferir a civitas para outros lu-
papel de alargamento da sua área de atu- gares, o que significa dizer dominar ou-

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tras regiões para levar a sua própria cul- a propagação do catolicismo nessas re-
tura. Com os imperadores cristãos, o giões, que refletiu importante ponto de
antigo sonho de universalidade e a am- tensão nos séculos XVII e XVIII.3
bição pagã de civilizar foram transforma- No entanto, tal procedimento em relação
dos em um objetivo análogo de conver- a outras culturas não era algo novo para
são na cristandade – christianitas . Deri- a Igreja, nem se configurava como práti-
va daí a noção de “império cristão”, que ca evangelizadora exclusiva da Compa-
apoiou a transposição do conceito de nhia de Jesus. Muito antes, a “adapta-
civitas para o de “missão”. 2 Dessa for- ção” foi proposta por São Paulo como
ma, a ordem per feita só poderia ser método para conduzir infiéis a Cristo, e
alcançada no trabalho de cristianização, os jesuítas apenas levaram essa propos-
no trabalho em prol do domínio da fé, ta a limites extremos. 4
princípio que foi amplamente assumido
Apesar do esforço de aproximação, deve-
pela Companhia de Jesus.
se ter bem claro que, mesmo quando os
É importante destacar que o espírito prá- inacianos aparentemente toleraram ou
tico dos jesuítas, que marcou a ordem conformaram-se com a realidade cultu-
inaciana sobretudo no trabalho missio- ral e religiosa daqueles que pretendiam
nário, iria conduzir a um esforço de apro- evangelizar, o postulado básico de sua
ximação cultural com os grupos sociais ação era o de transformar, ou seja, sub-
e étnicos a serem evangelizados, que meter o outro à sua própria lógica, ao
pode ser exemplificado na catequese catolicismo, pois o que acreditavam que
feita nas línguas dos povos submetidos devia ser feito era promover a salvação
à missionação da Companhia de Jesus. das almas daqueles que estavam longe
Porém, tal aproximação não significou, da fé. 5
ao menos inicialmente, uma ampla com-
O historiador português João Paulo de
preensão das diferenças do outro, mas
Oliveira e Costa observou que as ações
sim uma tática de identificação para fa-
de evangelização dos jesuítas, fossem
cilitar o processo de conversão.
elas no Oriente, na América ou na Áfri-
Algumas vezes o procedimento dos je- ca, não se desenvolviam de maneira uni-
suítas em relação aos povos “não euro- forme. Onde a presença das autoridades
peus” se tornou alvo de críticas do clero régias portuguesas era marcante e ine-
mais ortodoxo, que via no tipo de abor- quívoca, o modelo de conversão tendia
dagem desenvolvido por eles ameaças à a ser “excessivamente ocidentalizador”,
integridade da fé. A questão do laxismo mas nas regiões fora do domínio direto
dos inacianos pode ter como exemplo a do Império português “foram ensaiadas
discussão sobre a utilização de práticas numerosas abordagens inovadoras”. 6 O
religiosas dos chineses e dos hindus para autor usa o conceito de “acomodação

pág. 174, jul/dez 2003


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cultural” ao definir essas abordagens ino- tura do religioso da Companhia de Je-


vadoras. sus é etnocêntrica e eurocêntrica. Mas,
Sem negar a complexidade da questão por outro lado, ao partir do princípio da
dos contatos entre culturas e sem desen- adaptação paulina, essa ordem acabou
volver aqui uma análise detalhada dos construindo na sua prática cotidiana fór-
debates conceituais travados pela antro- mulas de abordagem de aproximação
pologia nesse âmbito, ainda assim deve- que podem ser melhor entendidas ao se
se considerar o papel singular que os usar o conceito de “mediadores cultu-
jesuítas desempenharam na ação rais”, proposto por Serge Gruzinski. Es-
evangelizadora. De maneira geral, a pos- ses seriam responsáveis por estabelecer

Representação de pagode hindu – templo religioso – feita pelo holandês Linschoten no final do
século XVI, que evidencia a demonização que os cristãos faziam das práticas religiosas indianas.

Acervo, Rio de Janeiro, v. 16, n o 2, p. 173-190, jul/dez 2003 - pág. 175


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“ligações entre mundos, povos e cultu- turas, o mediador cultural pode utilizar-
ras, aqueles que efetivaram a passagem, se de sistemas de significados com dife-
o salto ou a transferência de um univer- rentes chaves de interpretação e irá ob-
so intelectual, material ou religioso para ter mais resultados na medida em que
outro”. 7
conseguir transmitir sentido e ser legí-
vel e interpretado por todos. 9
Por meio do estudo dos mediadores cul-
turais e de suas trajetórias, Gruzinski Vivendo na fronteira de civilizações, nos
considera possível definir a limites de cada cultura, muitos jesuítas
impermeabilidade ou a porosidade das puderam construir pontes, conexões en-
fronteiras culturais, a referenciação das tre esses mundos, tornando-se, portan-
circunstâncias, das condições e das mo- to, mediadores culturais na concepção
dalidades da passagem feita por eles definida por Gruzinski. É verdade que
(amálgama, transferência, síntese, tradu- isso deve ser entendido como uma das
ção). 8 Ao colocar em contato duas cul- tendências desenvolvidas pela Compa-

Mapa das províncias jesuíticas na Índia no século XVII: a província


de Goa e a província do Malabar.

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nhia de Jesus no conjunto de várias que as constituições dessa ordem proi-


modalidades de contatos com culturas e biam a entrada dos “impuros de sangue”.
civilizações distintas, e não como forma Após esse episódio, estudou artes e
única de atuação. Além disso, não pode cânones na Universidade de Coimbra. Já
ser usado de maneira generalizante para como diácono resolveu repartir seus
a ordem como um todo, pois não existia bens entre os pobres e a Companhia de
a homogeneidade que muitas vezes é Jesus e com isso conseguiu obter a ad-
destacada em estudos sobre os missão na ordem jesuítica, com a sur-
inacianos. Mas com certeza o uso do preendente concordância do provincial
conceito de mediador cultural possibili- da Assistência de Portugal, Simão
ta visualizar a práxis da evangelização Rodrigues, que geralmente fazia restri-
dos jesuítas na sua diversidade. ções à entrada de cristãos-novos, ape-
sar de não haver ainda nenhuma clara
Assim, como for ma de perceber e afir-
objeção do geral Inácio de Loyola. Como
mar que a Companhia de Jesus não se
padre coadjutor embarcou para a Índia
constituía no bloco monolítico que se
em 1546, com mais nove companheiros,
dizia, ou que se acreditava ser, há o
o terceiro grupo de missionários jesuí-
exemplo dos métodos de conversão de-
tas enviados de Portugal. 13
senvolvidos pelos jesuítas Henrique
Henriques e Roberto de Nobili, no De 1548 até sua morte em Tutocorim,
Malabar, 10 que não estava sob a jurisdi- em 1600, Henriques trabalhou na mis-
ção do Império português, ao contrário são da costa da Pescaria, com as popu-
de Goa, Salcete e adjacências. 11 Nessa lações que haviam sido convertidas ain-
região os jesuítas tiveram que contar da na década de 1530, onde praticou
com a flexibilidade das autoridades lo- algumas formas de adaptação, com a
cais hindus para que pudessem instalar aprovação dos superiores. A mais impor-
missões e desenvolver a cristianização. tante delas foi a reserva de certas igre-
Nesse espaço é possível identificar uma jas para determinadas castas, respeitan-
ação dos inacianos, mais adequada ao do a lógica da manutenção da pureza da
papel de mediadores culturais proposto sociedade hindu. É o próprio Henriques
por Gruzinski. que explica ao geral da Companhia essa
prática, em carta de 1561:
Para tanto, a análise deve ser iniciada
através da experiência pioneira do padre temos feito três igrejas grandes, duas
Henrique Henriques. Nascido em Vila Vi- para os paravás e uma aos careás, em

çosa, Portugal, no ano de 1520, descen- que aos domingos todos venham à igre-

dente de cristãos-novos, 12
primeiramen- ja [...]. Os careás do lugar pequeno e
te entrou na ordem dos capuchos, mas os palevilís [...] têm também cada um

não lhe foi permitido nela professar, por- sua igreja pequena, para ensinarem as

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orações aos meninos e meninas e aos cristianizadas, o que reforça a idéia de


domingos vêm os homens às igrejas que quando as conversões eram feitas
principais. Aos sábados vêm as mulhe- em massa, a lógica cultural e as forças
res dos cristãos paravás e palevilís às de coesão da sociedade de castas sobre-
duas igrejas principais. E as mulheres viviam.
dos careás ordenamos que viessem à
Outra prática estabelecida por Henriques
5ª feira [...]. 14
foi a suspensão do uso da saliva na ad-
Pela descrição feita, percebe-se que o ministração do batismo, considerada re-
jesuíta já tinha compreensão das diferen- pulsiva na cultura indiana, demonstran-
ças entre os grupos e da necessidade da do mais uma vez o sentido pragmático
separação, mesmo em populações já da ação dos jesuítas e a capacidade de

Brâmane – a principal casta da Índia – retratado pelo holandês Linschoten, no final do século XVI.

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adaptação de códigos do cristianismo em os capazes de estabelecer comunicação


respeito às características culturais direta com os cristãos da terra, princi-
hindus. palmente para atender o sacramento da

Mas a maior contribuição de Henriques confissão sem o uso de intérpretes, e

está no domínio da língua tâmil, além do divulgar a doutrina por meio de catecis-

malaiala e do telugu. Produziu dois cate- mos e outros manuais. O dedicado tra-

cismos, uma vida de santos, um manual balho de Henriques possibilitou a con-

de confissão e outras obras religiosas, e solidação de pontes para o trabalho de

a primeira gramática tâmil. Ines Zupanov evangelização, numa clara atuação de

considera que o esforço de aprendizado, mediação cultural. O esforço de apren-

tradução e produção de textos publica- dizagem da língua foi tão bem-sucedido

dos por Henriques foi a forma por ele que na costa da Pescaria em finais do

encontrada de direcionar a sua ener gia século XVI não se falava português na

apostólica para o plano da lingüística, missão, o que era uma norma

por ser o “menos político de todos, era estabelecida pelo próprio Henrique

o único campo óbvio em que podia exer- Henriques. 17

cer seus talentos”, pois sua condição de Outro nome de destaque na inovação de
descendente de cristãos-novos seria sem- métodos de conversão na Índia foi o de
pre um impedimento para outras aspira- Roberto Nobili. Nascido em Roma no ano
ções. 15
de 1577, de uma família nobre de
O próprio Francisco Xavier ordenou que Montepulciano, na Toscana, foi noviço da
Henriques aprendesse o tâmil. A princí- Companhia de Jesus em Nápoles, em
pio ele enfrentou grandes dificuldades, 1596. Solicitou aos superiores fazer mis-
mas ao fim de pouco tempo conseguiu são no Oriente, saindo de Lisboa para a
produzir um manual básico para a apren- Índia em 1604, e chegando a Goa em
dizagem. No entanto, à medida que 1605. Esteve brevemente em Cochim e
aprofundava seu conhecimento, verificou na costa da Pescaria.
que existiam muitos problemas a enfren- Ao contrário de Francisco Xavier e de
tar: “havia uma língua que era usada muitos jesuítas que viveram na Índia na
pelos ‘sábios’ e outra pelo povo comum; segunda metade do século XVI, Nobili
que o tâmul escrito e o tâmul falado não identificou na casta dos brâmanes 18 a
coincidiam [...]; e evidentemente, que chave das conversões na Índia, avalian-
havia diferenças regionais e de casta”. 16 do que se fosse possível cristianizar esse
Outra grande dificuldade era a pronún- grupo, as outras castas, historicamente
cia da língua. submetidas aos brâmanes, os acompa-
Dominar a língua da região serviu para nhariam, criando um efeito multiplicador
dois modos de ação: for mar missionári- do número de convertidos. Opôs-se, as-

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sim, frontalmente, ao modelo de cedimentos, sobretudo no esforço de


missionação que tinha marcado as pri- reconhecimento daqueles que simboliza-
meiras experiências de conversão da vam o poder de cada região em que os
Companhia de Jesus no litoral ocidental jesuítas se estabeleciam.
da Índia.
Como dito anteriormente, Nobili perce-
beu que o grupo social de maior desta-
Deve-se notar que, inicialmente, os je-
que na sociedade indiana era a casta dos
suítas desenvolveram uma postura de
brâmanes e dedicou-se ao estudo de seus
antagonismo em relação aos brâmanes,
hábitos e costumes. Mais tarde, com a
por terem identificado sua autoridade
autorização dos superiores eclesiásticos,
religiosa em relação aos hindus e perce-
Nobili apresentou-se na região de
berem que lutar contra esse grupo
Maduré, na costa Malabar, em 1606,
hegemônico poderia proporcionar aos
como um nobre romano que não tinha
inacianos a supremacia nas questões de
nenhum vínculo com os outros missio-
fé. Pode-se fazer aqui um paralelismo
nários e com os portugueses e que “re-
com a atuação dos padres da Companhia
jeitara todos os prazeres e confortos do
em outras regiões, como no litoral da
mundo”. 20 Adotou a vestimenta amarela
América portuguesa, ou mesmo no
dos saniassas, ou seja, assumiu a postu-
Paraguai das missões, nos séculos XVI e
ra dos brâmanes que viviam o último
XVII. 1 9 Nessas regiões a estratégia fun-
estágio de sua vida, a completa renún-
damentou-se no enfrentamento à autori-
cia. Declarou que seu objetivo era estu-
dade dos xamãs locais. Para tal, os jesu-
dar a literatura, as línguas sânscrita e
ítas dedicavam-se, por exemplo, à cura
telugu, além da malaiala. Em troca ofe-
dos doentes, uma vez que essa era uma
recia aos brâmanes da região revelar as
das atribuições do poder mágico que os
verdades do cristianismo. Deixou de co-
xamãs tinham e que deter minava sua
mer car ne, dedicou-se apenas a rezar e
autoridade no grupo indígena. Essa táti-
a estudar. Dificultava os encontros com
ca, às vezes, não obtinha sucesso, por-
os brâmanes, para dar a impressão de
que para algumas doenças que se difun-
sua importância.
diram entre os indígenas não havia a
possibilidade de cura. É verdade que a Por outro lado, o padre Gonçalo
percepção que os jesuítas tinham dos Fernandes – que conseguira per missão
grupos americanos, nos casos citados, do naique (denominação do título de rei
era de uma anomia, algo muito diferen- local) de Maduré para viver e missionar
te do que era encontrado e enfrentado na região desde 1595 e ao longo desses
no Oriente, especificamente em Goa. Mas anos de trabalhos obtivera poucos resul-
do ponto de vista do método, pode-se tados –, por ser muito conhecido, aten-
perceber algumas semelhanças de pro- dia a outras castas mais baixas. 21 Ele

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conta como fazia para comunicar-se com postura de Nobili não feria dois concei-
Nobili: tos básicos da formação dos jesuítas –
“adaptação de normas e tolerância das
nem eu, nem meus moços, nem portu-
violações que não fossem extremamen-
gueses, nem cristãos vão à sua igreja,
te ofensivas” 23 –, que caracterizavam o
nem casa, e se é necessário ir algum
pragmatismo tão peculiar à ordem
moço à sua casa há de ser de noite, e
inaciana.
quando o padre para nos confessarmos

há de vir a esta casa, há de ser em tem- Fer não Guerreiro relata a experiência
po de escuro, e muito de noite, de de Nobili em livro publicado em
modo que se não saiba quem é ele a 1609:
esta casa para nos confessarmos: por-
o padre Roberto Nobili, italiano de na-
que nos trajes em que ele anda não é
ção e sobrinho do ilustríssimo cardeal
conhecido e eu se for, logo me conhe-
Sforza [...] começando a aprender a lín-
cerão. Quanto aos seus cristãos não
gua e os costumes da terra e conside-
hão de vir ouvir missa a esta igreja nem
rando que o maior impedimento que
prática, posto que por alguma ocasião
havia para a conversão era o baixo con-
aconteça não estar o padre para dizer
ceito que os badagás tinham dos por-
missa ao domingo ou santo. 22
tugueses e de nossa lei [...] determi-
Pode-se perceber nesse relato a preocu- nou de os levar por seu humor. 24
pação de Nobili em desvincular-se de
Guerreiro informa ainda que Nobili agiu
qualquer conexão com elementos que
inspirado pelo sucesso da missão na
pudessem quebrar a lógica da pureza de
China do italiano Ricci, que já obtivera
sua condição aos olhos dos brâmanes.
bons resultados, a partir do uso, por
Com tudo isso, Nobili gradativamente
parte dos padres jesuítas, do hábito usa-
conseguiu promover a conversão de al-
do pelos letrados chineses, pois passa-
guns brâmanes por volta de 1608. Pro-
ram a ser respeitados como os sábios
curava sempre respeitar os costumes
locais. 25 O autor afirma que a repercus-
indianos que não considerasse supersti-
são da apresentação de Nobili foi gran-
ção. Dessa for ma, não reprimia o uso da
de e que até o naique de Maduré queria
linha bramânica (tríplice cordão de algo-
que ele fosse conhecê-lo:
dão que os brâmanes traziam a tiracolo
da esquerda para direita), do kudumi ao que respondeu um dos seus gran-

(tufo na cabeça), o uso do sândalo nas des que o padre era tão casto que só

fricções corporais dos banhos rituais, a por não ver mulheres nem saía de casa:

continuação de sinais na testa que fazi- a qual virtude tanto eles mais veneram,

am as distinções das castas, entre ou- quanto menos a guardam pela dificul-

tros costumes. É importante notar que a dade que nisso experimentam. É ver-

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dade que o padre com haver mais de vem sem se lavarem e porem o

um ano que residia naquela cidade sândalo. 27


nunca jamais sai de casa, nem fala a Fernandes mostrou-se temeroso em re-
todos a todo tempo: respondendo às lação ao método, porque considerava
vezes que está em contemplação, por- que se parecia mais com uma outra sei-
que aquela gente se rege tanto pelo ta do que com evangelização, afirmando
exemplo do que ensina, confor me ao ter ouvido que nem o nome de Jesus era
conceito que deste fazem, assim esti- mencionado nas conversas com os
mam a doutrina. E foi Nosso Senhor brâmanes; por outro lado, havia o cons-
servido que não saísse debalde todo tante perigo de se descobrir a verdadei-
este santo estratagema, ou artifício de ra identidade de Nobili.28 Por fim, justi-
que o padre usou, porque daqui teve ficava-se pela iniciativa de informar o
princípio a conversão dos infiéis que visitador da Companhia de Jesus,
nesta terra se vai começando com tan- Nicolau Pimenta, porque “havendo coisa
ta glória de Nosso Senhor. 26 que tenha necessidade de conserto, seja
Apesar do entusiasmo pelo método, que antes consertado pela Companhia que
fica evidente no texto de Fer não Guer- por outrem”. 29
reiro, não havia unanimidade de opinião Mesmo que se possa dizer que o padre
sobre as práticas de Nobili, que causa- Fernandes opunha-se aos métodos de
vam polêmica dentro da própria Compa- Nobili, suas críticas possuíam elementos
nhia de Jesus, e eram por alguns classi- que denunciavam os perigos da ação
ficadas como excêntricas. O primeiro a desenvolvida pelo italiano e, a compro-
fazer sérias reservas aos procedimentos var suas reservas, os problemas come-
de Nobili foi o seu próprio companheiro çaram a acontecer, depois do sucesso
de missão, padre Gonçalo Fernandes. Ele inicial.
informa que:
Um paravá 30 cristão teria contado a ou-
pareceu convir aos que se convertiam tros convertidos que o padre Nobili era
e eram convertidos porem na testa um parangi – designação local para por-
sândalo em certa for ma como os gen- tugueses – e que sendo assim, ao terem
tios o põem, que eles gentios o fazem sido batizados por ele tinham perdido
por galantaria [...] depois vejo o padre sua casta. Essa informação espalhou-se
a usar do sândalo da mesma for ma, e trouxe tensão à região. Nobili, então,
mas assim o sândalo que o padre põe, escreveu uma declaração em tâmil numa
como o que põem os cristãos benze o ola (folha de palmeira) e fixou-a numa
padre ao domingo antes de começar a árvore em frente à sua casa, declarando
missa e se reparte, porque nem o pa- que não era um parangi , mas sim um
dre diz missa, nem os cristãos a ou- homem vindo de Roma, de família muito

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nobre e que pregava a lei do verdadeiro cedimentos de Nobili na região – os limi-


Deus. 31
Isso serviu para aplacar a situa- tes geográficos dessa província compre-
ção na região. endiam as regiões da costa do Malabar à
costa do Coromandel, ou seja, o sul da
No entanto, os problemas estavam ape- península hindustani, incluindo as cida-
nas começando. A partir da carta do pa- des de Cochim, Travancore, São Tomé
dre Fer nandes, datada de 1610, o de Meliapor e Maduré; observe-se que a
visitador Pimenta iniciou uma série de maior parte desse território não se en-
ataques a Nobili. Primeiro fez uma con- contrava sob o domínio direto dos por-
denação do método e enviou uma con- tugueses, mas estava submetida à mis-
sulta a Cochim, sede da província do são de Maduré. Porém, de lá não obteve
Malabar, solicitando a suspensão dos pro- apoio. Então, convocou dois teólogos em

Roberto Nobili, jesuíta italiano de origem nobre que desenvolveu no início do século XVII,
na missão de Maduré, no Malabar, um modelo de conversão específico para a casta brâmane.

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Goa que, após analisarem a questão, texto conhecido como “Primeira apolo-
condenaram como supersticiosas, escan- gia”, ou simplesmente “Resposta do pa-
dalosas e ilícitas as tentativas de aproxi- dre Roberto Nobili às censuras de
mação desenvolvidas por Nobili, no Goa”. 32 O documento foi escrito com a
Malabar. urgência que a situação exigia e ilustra
a alta formação intelectual do missioná-
Por outro lado, o jesuíta italiano também rio italiano, que não tendo textos teoló-
recebia apoio entre seus colegas gicos disponíveis, viu-se forçado a ela-
inacianos, e seus maiores aliados eram borar seus argumentos com o auxílio da
um companheiro da missão de Maduré, memória de suas antigas leituras. O je-
o padre Antônio Vico, e o arcebispo de suíta defendia-se das acusações alegan-
Cranganor, o jesuíta Francisco Roz. Di- do que esses costumes locais – o uso da
ante das acusações, Nobili escreveu um linha bramânica, os banhos rituais, as

Cópia do frontispício da publicação de carta, de 1551, do jesuíta português de origem cristã-


nova Henrique Henriques que missionou na costa da Pescaria, na Índia, e foi responsável pela
tradução das línguas tâmil, malaiala e telugu, importante chave para o incremento das
conversões praticadas na região.

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vestimentas, entre outros – tinham sig- 1618, outro breve do mesmo papa orde-
nificado social, eram sinais exteriores e nou que o arcebispo e os inquisidores
não de superstição, portanto poderiam de Goa organizassem uma junta para
e deveriam ser tolerados. Antônio Vico analisar as práticas de Nobili.
e Francisco Roz também fizeram consi-
As considerações dessa junta foram re-
derações escritas sobre os métodos pra-
metidas ao inquisidor-geral em Lisboa,
ticados em Maduré, além dos três terem
d. Fernão Martins de Mascarenhas, para
participado de debates sobre a questão
dar uma sentença, o qual por sua vez a
tanto em Cochim como em Goa.
enviou a Roma, onde a questão foi exa-
A discussão acabou por extrapolar os li- minada por três teólogos que deram ra-
mites da ordem jesuítica e começou a zão a Nobili. Baseado em todas essas
envolver outras autoridades eclesiásticas considerações, o papa Gregório XV, na
do Oriente. O bispo de Cochim, d. André bula Romanae sedis antiste , de 1623,
de Santa Maria, opunha-se de for ma ve- permitiu a continuidade dos trabalhos do
emente ao método de Nobili. Por sua vez, jesuíta italiano, fazendo, porém, algumas
o arcebispo de Goa, d. Aleixo de recomendações para que a superstição
Menezes, tinha simpatia pelos argumen- e o escândalo fossem sempre evitados.
tos do jesuíta italiano. No entanto, a par- Além disso, aprovou a separação das
tir de 1611, o seu sucessor, d. Cristovão castas, mas recomendou que nada fosse
de Sá, não manteve a mesma posição, feito em prejuízo dos mais pobres e hu-
polarizando ainda mais o debate. Em mildes.33
1613, o provincial da Companhia de Je-
Nobili continuou seus trabalhos missio-
sus, Pero Francisco, chegou a ordenar
nários na região, por vezes enfrentando
que Nobili e Vico não fizessem mais ba-
tensões locais. De 1639 a 1641, por
tismos na região.
exemplo, permaneceu preso por ordem
O problema finalmente chegou a Roma. do naique de Maduré. Posteriormente, al-
A princípio, os métodos de Nobili causa- guns outros jesuítas reproduziram os
ram escândalo, mas logo outras interpre- métodos do italiano na região, com vari-
tações dos acontecimentos foram apre- ações: os padres Baltazar da Costa, Leo-
sentadas e o debate também lá se esta- nardo Cinnani e João de Brito são os
beleceu. Em 1615, o geral da Companhia melhores exemplos.34 Já muito doente,
de Jesus, Claudio Aquaviva, deu sua quase cego, e apesar de ter expressado
aprovação a Roberto Nobili. No ano se- o desejo de morrer em Maduré, Nobili
guinte, no breve Cum sicut frater nitas, o foi mandado para Meliapor, onde veio a
papa Paulo V demonstrou consideração falecer em 1656. 35 O legado de seu es-
ao método de Nobili e recomendou um forço missionário na região pode-se re-
exame mais cuidadoso da questão. Em sumir em cerca de alguns milhares de

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conversões num período de trinta e nove indiana e européia, constituindo-se no


anos de trabalhos. 36
Além disso, Nobili exemplo mais completo de mediação cul-
também foi responsável pela tradução de tural desenvolvida por jesuítas na Índia.
muitas orações para o sânscrito e escre-
Por tudo aqui exposto, pode-se afirmar
veu nessa língua uma doutrina cristã e
que os procedimentos da Companhia de
uma vida de Nossa Senhora. Em tâmil,
Jesus, em relação ao processo de
escreveu um catecismo em quatro volu-
cristianização colocada em prática no
mes, um tratado sobre a vida eter na,
Oriente, sofreram variações ao longo do
uma negação à transmigração da religião
tempo e das regiões em que foram de-
gentílica, entre outras obras, muitas das
senvolvidos, e ainda provocaram algu-
quais traduziu para o telugu. Ou seja,
mas dissensões dentro da ordem. Geral-
seguiu a mesma linha de estudo das lín-
mente, esses conflitos são atribuídos às
guas locais indicada anterior mente pe-
diferentes nacionalidades dos jesuítas,
los trabalhos de Francisco Xavier e
especialmente a rivalidade entre portu-
Henrique Henriques. 37
gueses, espanhóis e italianos. Na verda-
Deve-se destacar a engenhosidade do de, essas rusgas podem ser detectadas
método desenvolvido por Nobili, ou na vasta correspondência da Companhia
adaptado por ele a partir da experiência de Jesus, queixas e críticas de jesuítas
de Ricci na China. Sua proposta de portugueses aos italianos, sobretudo no
missionação compreendia a necessida- período da administração do visitador e
de de se entrar na lógica religiosa dos provincial Valignano, na segunda meta-
hindus, uma vez que os laços entre a de do século XVI, o que comprova a exis-
estruturação da sociedade e o hinduísmo tência desses atritos.39 No entanto, não
são tão imbricados. Utilizar os símbolos se deve atribuir apenas as diferenças de
como fór mulas poderosas da existência atuações de missionação ao país de ori-
dos homens – para o caso hindu, uma gem de cada inaciano. Muitos jesuítas
série de características culturais, tais portugueses tentaram modelos de apro-
como a vestimenta, a alimentação, o iso- ximação com as culturas locais. Henrique
lamento –, reconhecidos como de valor, Henriques é um exemplo, assim como
para angariar primeiro a atenção e de- João de Brito, entre diversos outros. Com
pois introduzir outros conceitos religio- certeza havia distinções na formação de
sos, era um caminho alternativo, habili- jesuítas em Portugal e na Itália, em fun-
doso por manipular os elementos cultu- ção das próprias especificidades cultu-
rais existentes e, por isso mesmo, do rais desses países, e disso derivavam
ponto de vista da ortodoxia, perigoso. 38 diferenças de abordagens de situações
e problemas.
Significou também uma clara construção
de pontes e vínculos entre as culturas Parece ser mais proveitoso entender que

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houve métodos diferenciados de traba- tiva, a abordagem dos jesuítas tendia


lhos de cristianização que se desenvol- mais a um modelo de “orientalização”, a
veram em função do maior ou menor partir do último quartel do século XVI.
apoio da Coroa portuguesa, ou onde ha- Nas regiões onde havia o respaldo das
via um significativo aparato administra- autoridades portuguesas, houve maior
tivo lusitano, que trabalhava em associ- tendência à “ocidentalização”, mesmo
ação com os objetivos missionários e que houvesse níveis de flexibilização
fazia prescindir de estratégias engenho- junto às populações locais.
sas de mediação cultural. 40
Ou seja,
Artigo recebido para publicação em
onde a presença portuguesa não era efe-
agosto de 2003.

N O T A S
1. José Sebastião Silva Dias, Correntes de sentimento religioso em Portugal , Coimbra, s.ed.,
1960, v. 1, p. 170.
2. Anthony Pagden, Lords of all the world : ideologies of Empire in Spain, Britain and France (c.
1500- c. 1800), New Haven/ London, Yale University Press, 1995, principalmente o capítulo II.
3. Ver C. R. Boxer, O Império colonial português, trad. Inês Silva Duarte, Lisboa, Edições 70,
1977, p. 267; e Jonathan D. Spence, O palácio da memória de Matteo Ricci : (a história de
uma viagem: da Europa da contra-refor ma à China da dinastia Ming), trad. Denise Bottmann,
São Paulo, Companhia das Letras, 1986.
4. Maria de Deus Beites Manso, A Companhia de Jesus na Índia: 1542-1622 : aspectos da sua
ação missionária e cultural, 1999, mimeo., p. 86-87, 2 v., tese (doutorado em história),
Universidade de Évora, Évora.
5. Para a discussão sobre a questão das alteridades em conflito ver: Tzvetan Todorov, A con-
quista da América : a questão do outro, Lisboa, Martins Fontes, 1983; Maria Regina Celestino
de Almeida, Os vassalos d’ el rey nos confins da Amazônia : a colonização da Amazônia Oci-
dental (1750-1798), 1990, mimeo., p. 63-66, dissertação (mestrado em história), Universi-
dade Federal Fluminense, Niterói; e Luís Felipe Baêta Neves, O combate dos soldados de
Cristo na terra dos papagaios : colonialismo e repressão cultural, Rio de Janeiro, Forense
Universitária, 1978.
6. João Paulo de Oliveira e Costa, A diáspora missionária, in João Francisco Marques e Antônio
Camões Gouveia (coords.), História religiosa de Portugal : humanismo e reformas, Lisboa,
Círculo de Leitores, 2000, v. 2, p. 279.

Acervo, Rio de Janeiro, v. 16, n o 2, p. 173-190, jul/dez 2003 - pág. 187


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7. Ver a introdução de Rui Manoel Loureiro e Serge Gruzinski (coords.), Passar as fronteiras , II
Colóquio Internacional sobre Mediadores Culturais. Séculos XV a XVIII, Lagos, Centro de
Estudos Gil Eanes, 1999, p. 5. Os autores pertencem ao Centre de Recherches sur les mon-
des Américains, da École des Hautes Études en Sciences Sociales, e pretendem questionar a
figura do “mediador cultural” no mundo ibérico entre os séculos XV e XVIII. Os trabalhos
apresentados no Colóquio, no entanto, têm uma abrangência geográfica maior, pois existem
estudos sobre o Oriente também.
8. ibidem, p. 6.
9. Beatriz Moncó Rebollo, Mediación cultural y fronteras ideológicas, in Rui Manoel Loureiro e
Serge Gruzinski (coords.), op. cit., p. 342-343.
10. A província de Goa, da Companhia de Jesus, estava submetida à Assistência de Portugal e
era responsável, de 1542 até 1601, pela administração da presença jesuítica em áreas que
iam do litoral da Índia até o Japão e a China. A partir de 1601, foram criadas outras provín-
cias no Oriente: a do Japão e do Malabar (região ao sul de Goa), e ainda a vice-província da
China. Em Goa concentrava-se todo o movimento de chegada dos jesuítas e sua posterior
distribuição em função das tarefas deter minadas pelo provincial. Ali também se encontrava
o Colégio de São Paulo, que não foi fundado pelos jesuítas, mas que passou a ser administra-
do por eles, após instâncias das autoridades civis e eclesiásticas de Goa. Havia, ainda, na
capital do Estado da Índia, pertencentes à ordem jesuítica, a Casa Professa, a igreja de Bom
Jesus e a Casa de Provação, com o noviciado. Os jesuítas eram também responsáveis pela
administração do Hospital Real de Goa. Os inacianos possuíam uma tipografia na cidade e
isso possibilitou muitas publicações que serviram para a divulgação e realização dos traba-
lhos de evangelização.
11. O início da atuação da Companhia de Jesus no Oriente está associado ao nome de Francisco
Xavier, que partira de Lisboa, em abril de 1541, na nau que transportava também o novo
governador do Estado da Índia, Martim Afonso de Sousa, só chegando a Goa em maio de
1542. Foi acompanhado por Francisco de Mansilha e Paulo Camarte, ou Micer Paulo, como é
chamado nas cartas jesuíticas, que tinham entrado na ordem recentemente. Xavier estava
investido do cargo de superior das missões no Oriente e no de legado do papa, o que lhe
granjeava grande autoridade. Nos dez anos em que viveu no Oriente, foi responsável por
grande número de batismos, pela estruturação administrativa inicial da Companhia de Jesus
e por um número impressionante de viagens, além da própria amplitude delas: costa da
Pescaria, Cochim, Meliapor, Malaca, Molucas, Japão, chegando próximo à China, que estava
fechada à entrada de estrangeiros, onde aliás veio a falecer, em 2 de dezembro de 1552.
Dessa forma, pode-se perceber que o tempo que passou na cidade de Goa, propriamente
dita, foi diminuto. Mas, através de uma freqüente correspondência ficava a par dos proble-
mas e questões pertinentes à sua função e tomava as decisões necessárias.
12. Dauril Alden, The making of an enterprise: the Society of Jesus in Portugal, its empire and
beyond, 1540-1750, Stanford, Stanford University Press, 1996, p. 50. Segundo o autor, sua
ascendência era tanto de judeus quanto de mouros convertidos ao cristianismo.
13. Antônio Lourenço Farinha, Vultos missionários da Índia quinhentista , Cucujães, Editorial Mis-
sões, 1955, p. 73-74. Quando Henrique Henriques entrou para a Companhia ainda não havia
sido feita a redação final das constituições da ordem, que vieram a proibir a admissão dos
descendentes dos judeus entre os jesuítas. Depois de promulgadas, Henriques solicitou ao
papa dispensa de impedimento, mas, em carta de 27 de janeiro de 1552, Loyola informou
que quem já estava na Companhia que continuasse. Além disso, não criou nenhum impedi-
mento para os três votos solenes aos cristãos-novos. Cf. José Wicki, Documenta Indica, Roma,
Monumenta Historica Societatis Iesu, 1950, v. 2., p. 312. Dessa forma, Henriques pode fazer
profissão em 1560. Mas é notável que, ao longo de 52 anos de trabalhos missionários na
costa da Pescaria, nunca tenha subido na hierarquia da Companhia de Jesus no Oriente. Para
conhecer as listas de jesuítas que foram para o Oriente, ver Jerônimo P. A. da Câmara Manu-
el, Missões jesuíticas no Oriente nos séculos XVI e XVII , Lisboa, Imprensa Nacional, 1894.
14. José Wicki, op. cit., v. 5, p. 380. Carta de 19 de dezembro de 1561 ao geral Lainez e aos
companheiros do colégio de Coimbra.
15. Ines Zupanov, Do sinal da cruz à confissão em tâmul: gramáticas, catecismos e manuais de
confissão missionários na Índia meridional (séculos XVI-XVII), in Antônio Manuel Hespanha,
Os construtores do Oriente português , Porto, Comissão Nacional para as Comemorações dos
Descobrimentos Portugueses, 1998, p. 160.
16. ibidem, p. 161.
17. idem. O uso das línguas locais pelos jesuítas parece ter se tornado um padrão, assim como

pág. 188, jul/dez 2003


R V O

as críticas a essa prática por parte dos colonos em geral. Pode-se inclusive comparar com a
questão da “língua geral” utilizada pelos jesuítas na evangelização dos indígenas e que fo-
mentou duras críticas dos colonos no Estado do Brasil e no Estado do Maranhão e Grão-Pará.
18. Os varnas fundamentais na tradição védica eram quatro: os brâmanes (espécie de sacerdo-
tes e letrados); os kxátrias (guerreiros); os váixias (comerciantes) e os sudras (trabalhadores
braçais). Os homens das três primeiras castas são dvijas , “duas vezes nascido”, pois se con-
sidera que receberam o upanayana (iniciação). Os párias ou intocáveis não pertencem a
nenhum varna e não podem ter contato com nenhum deles. Os brâmanes não se alimentam
de carne de vaca, cebola, alho, vinagre e não podem beber vinho. Sua vida está dividida em
quatro estágios: brahmachari (iniciação – não basta ser brâmane por nascimento, deve-se
ser iniciado no conhecimento dos livros sagrados); grihastha (vida de casado); vanaprastha
(renúncia à sociedade e isolamento na floresta); saniassa (completa renúncia). Ver Mircea
Eliade e I. P. Couliano, Dicionário das religiões , São Paulo, Martins Fontes, 1995, p. 177.
19. Para o caso da América, ver Luís Felipe Baêta Neves, op. cit.; e Maxime Haubert, Índios e
jesuítas no tempo das missões , trad. Maria Appenzeller, São Paulo, Companhia das Letras/
Círculo do Livro, 1990.
20. Carta de Nobili para o papa Paulo V, por volta de 1620, apud Dauril Alden, op. cit., p. 151.
21. O padre Gonçalo Fernandes nasceu em Lisboa, em 1541. No ano de 1561 entrou para a
Companhia de Jesus como noviço, após ter participado da armada de d. Constantino de
Bragança. Recebeu a aprovação do padre Henrique Henriques, que o recomendou em carta
ao geral Laínez. Em 1583, foi sacerdote e procurador da missão da costa da Pescaria. Em
1588, foi admitido como coadjutor. Em 1595, construiu uma igreja em Maduré com aprova-
ção do naique. Depois de voltar à costa da Pescaria em 1596, retornou ao Maduré e em
1599, além da igreja, já tinha edificado uma escola e um hospício para enfermos. Em 1618,
foi para o colégio de Cochim. Em 1621, pediu ao provincial para retornar à costa da Pescaria
para que fosse enterrado aos pés do padre Henrique Henriques. Morreu no dia 6 de abril de
1621. José Wicki, Tratado do padre Gonçalo Fernandes Trancoso sobre o hinduísmo (Maduré,
1616), Lisboa, Centro de Estudos Históricos Ultramarinos, 1973, p. XI-XVII.
22. Carta ao padre visitador de Maduré, de 7 de maio de 1610, apud Maria de Deus Beites Manso,
A Companhia de Jesus na Índia: 1542-1622 : aspectos da sua ação missionária e cultural, op.
cit., p. 251-252.
23. José Eisenberg, As missões jesuíticas e o pensamento político moderno : encontros cultu-
rais, aventuras teóricas, Belo Horizonte, Ed. UFMG, 2000, p. 45.
24. Fernão Guerreiro, Relaçam anual que fizeram os padres da Companhia de Jesus nas partes
da Índia Oriental & em algumas outras partes da conquista deste reino no ano de 606 & 607
& do processo de conversão da cristandade daquelas partes , Lisboa, Pedro Crasbeeck, 1609,
p. 112.
25. A missão na China do padre Matteo Ricci começou em 1582 quando de sua chegada a Macau.
Até sua morte, em 1610, este jesuíta desenvolveu um método denominado oficialmente de
accommodatio , que utilizava os elementos culturais locais e exteriores, tais como vestimentas
e hábitos cotidianos, como for ma de aproximação para desenvolver o trabalho de
evangelização. Ver Jonathan D. Spence, O palácio da memória de Matteo Ricci , op. cit.
26. Fernão Guerreiro, op. cit., p. 112-113.
27. Carta para o padre visitador de Maduré, de 7 de maio de 1610, apud Maria de Deus Beites
Manso, op. cit., p. 250.
28. ibidem, p. 253.
29. ibidem, p. 254.
30. Na costa da Pescaria, localizava-se uma comunidade hindu denominada de Paravás, uma
casta marítima que vivia da pesca e da exploração de pérolas.
31. Augusto Truzzi, P. Roberto de Nobili e la sua apologia, in Enrico Fasana e Giuseppe Sorge,
Civiltà indiana ed impatto europeo nei secoli XVI-XVIII : l’apporto dei viaggiatori e missionari
italiani, Milão, Jaca Book, 1988, p. 104.
32. O texto completo encontra-se na Biblioteca da Ajuda. Resposta do padre Roberto Nobili às
censuras de Goa . Jesuítas na Ásia. Códice 49-V-7, fls. 334-345v. Esse texto datado de 1611
foi enviado a autoridades eclesiásticas em Goa, Lisboa e Roma.
33. Apesar dessa decisão do papa, a questão não foi definitivamente superada. O maior proble-

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ma foi a reação de outras ordens rivais que, no final do século XVII, acabaram denunciando
os jesuítas de permitirem a prática de “usos gentílicos”, conhecida como a querela dos ritos
malabares, sempre associada à questão dos ritos chineses. A polêmica continuou e só teve
fim no século XVIII, quando Bento XIV, em 1742, publicou a bula Ex quo singulari , em que
condenou os ritos chineses como supersticiosos, e, em 1744, publicou a bula Omnium
sollicitudinum , que resolve o mesmo sobre os ritos malabares.
34. O destaque maior é João de Brito, que ao tentar penetrar no Maravá acabou preso e degola-
do em 1693, a mando das autoridades hindus, e por isso foi canonizado em 1947. Ver João
Paulo A. de Oliveira e Costa, A missão de João de Brito , Lisboa, Secretariado Nacional das
Comemorações dos 5 Séculos, 1992.
35. Augusto Truzzi, op. cit., p. 106.
36. William V. Bangert, História da Companhia de Jesus , Porto/São Paulo, Apostolado da Impren-
sa/Edições Loyola, 1985, p. 290. Indica o número de 4.183 conversões. Já Dauril Alden, op.
cit., p. 152, fornece o número de trinta mil conversões atribuídas a Nobili.
37. A biografia do religioso encontra-se em J. Castets, Roberto de Nobili, in New Advent Catholic
Encyclopedia, on line edition, disponível em www.newadvent.ogr/cathen/11086a.htm.
38. Utiliza-se aqui a definição de religião de Clifford Geertz, A interpretação das culturas , Rio de
Janeiro, Guanabara-Koogan, 1989, p. 104-105: “um sistema de símbolos que atua para esta-
belecer poderosas, penetrantes e duradouras disposições e motivações nos homens através
da formulação de conceitos de uma ordem de existência geral e vestindo essas concepções
com tal aura de fatualidade que as disposições e motivações parecem singularmente realis-
tas”.
39. Maria de Deus Beites Manso, op. cit., p. 206. Para a autora, os missionários italianos mos-
tram sempre preocupação em relação aos programas e aos métodos a seguir, p. 86-87.
40. Cf. João Paulo de Oliveira e Costa, op. cit., p. 279.

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Cláudia Beatriz Heynemann


Doutora em História Social.
Pesquisadora do Arquivo Nacional.

O Tribunal das Letras


Rafael Bluteau e a cultura portuguesa
dos séculos XVII e XVIII

O padre Rafael Bluteau, de origem francesa, Father Rafael Bluteau, of French descent, is
é considerado um dos mais importantes considered as one of the most important
propagadores do pensamento moder no no disseminators of moder n thought in the
universo intelectual português da corte de d. Portuguese intellectual universe of the court of
João V. Classificado como um estrangeirado , King D. João V. Rated as an estrangeirado
tem entre seus principais títulos as Prosas (imitator of foreigners), among his chief work
portuguesas e o célebre Vocabulário português e titles are Prosas portuguesas and the famous
latino , editados nas duas primeiras décadas do Vocabulário português e latino, published in the
século XVIII. Os traços moder nos de sua obra first two decades of the 18 th century. Herein, the
são aqui analisados perante o processo de moder n traits of his work are analyzed in respect
for mação do Estado moder no, o sistema of the modern State for mation process, the
filosófico da revolução científica e, sobretudo, philosophical system of the scientific Revolution
a relação entre o pensamento racionalista e sua and above all, the relation between rationalist
representação no discurso, explorando sob thought and its representation in the discourse,
esse aspecto os ecos dos port-royalistas thus exploring under this aspect, the echoes of
na obra de Rafael Bluteau. the Port-Royalists in the work of Rafael Bluteau.
Palavras-chave: ciência moderna; refor mismo Keywords: modern science; Enlightenment;
ilustrado; Estado absolutista; filosofia escolástica. absolutism; scholasticism.

T
odos os homens são mortais, fecundidade das palavras, que a força
mas nem todos são indoutos. das nações confunde-se com a da língua.
Na apresentação de seu Voca- A única ar ma contra a mortalidade é,
bulário português e latino , 1 o padre assim, o conhecimento, manifesto em
Rafael Bluteau procurará mostrar que a muitas instâncias, entre elas, os dicio-
riqueza das monarquias está também na nários ou vocabulários. Exemplificando

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a potência do conhecimento, Bluteau cita genealogia divina ou heróica, da emer-

o ‘milagre’ da transformação de Hesíodo, gência do mundo no tempo dos ho-


no bosque das musas, e sua passagem mens, e que atestam, por exemplo, a

de pastor a ‘insigne’ poeta. Teogonia de Hesíodo e o Catálogo das

Constante na obra do padre Rafael mulheres que lhe é atribuído. 2

E
Bluteau, o recurso aos autores clássicos
ssa gênese dos dicionários, vo-
adquire múltiplos sentidos em uma lei-
cabulários, catálogos e enciclo-
tura que se faça a partir da busca de in-
pédias, enunciando os
fluências e diálogos com o debate inte-
conflituosos, e mesmo paradoxais,
lectual que marca a virada do século XVII
binômios memória e escrita, memória e
para o XVIII. Aqui, referimo-nos, especi-
história, conhecerá pontos de inflexão na
ficamente, à Querelle , à polêmica Anti-
presença fundadora do Liceu de
gos e Modernos que ecoaria, ainda, além
Aristóteles, no nominalismo, nas cole-
dos marcos cronológicos habituais, per-
ções e bibliotecas for madas ou conser-
durando pelo setecentos. Mas, não se
vadas entre os séculos XVI e XVIII. Em
trata de delimitar um certo “contexto” em
Portugal, o Vocabulário pode apresentar
que se move o autor. As definições de
antecedentes em seu gênero, tais como
Bluteau, os exemplos a que recorre, os
o Dicionário lusitano , de Agostinho Bar-
autores citados, compõem, internamen-
bosa, de 1611, ou o Tesouro da língua
te ao texto, uma história das idéias que
portuguesa , de Bento Pereira, de 1666,
se encontra com a ambiência intelectual
mas há uma tendência a se perceber no
de Portugal das cortes de d. Pedro II e d.
Vocabulário uma ruptura, que se confun-
João V, mas que também a ultrapassa.
de com o perfil do religioso no âmbito
Investindo um pouco mais no exemplo do regime intelectual português. É certo
de Hesíodo, retiramos o caráter possivel- que a idéia de obras “anteriores” pres-
mente fortuito da escolha de Bluteau, da supõe uma genealogia a ser verificada,
narrativa do bosque percorrido pelo po- devendo-se supor que boa parte de obras
eta, bosque das musas, únicas detento- congêneres editadas em Portugal ao lon-
ras do saber absoluto, conhecedoras de go do século XVII estivesse compreendi-
todos os lugares, dos grandes feitos he- da nos parâmetros da escolástica
róicos, e dos nomes, se nos lembrarmos seiscentista. Por outro lado, tal como
que as musas são aquelas que desenvolveremos neste artigo, podemos
Possuem os princípios de ordenação perceber alguns outros vínculos, exem-
desse saber e ensinam a arte de enu- plar mente com as gramáticas gerais,
meração metódica, esse fio da memó- racionalistas. O Vocabulário perpetuou-
ria que se desenrola para percorrer as se por inter médio de Morais e Silva, pri-
listas, [...] percurso temporal da meiro em uma revisão da obra de

pág. 192, jul/dez 2003


R V O

Bluteau, 3 depois em seu próprio dicio- de cartesiana com Fontenelle, em sua


nário, 4
consolidando-se, recorrente- adesão a algumas teses de Gassendi, à
mente, como fonte na historiografia pedagogia de Boileau. Esses traços da
brasileira. ação do padre teatino serão marcados
no comentário de Francisco Falcon so-
O padre Rafael Bluteau, nascido em Lon-
bre a sua presença no círculo dos
dres, em 1638, filho de pais franceses,
Ericeiras, cujas atividades convergiriam,
for mado em Paris e doutorado em ciên-
em seguida, para o apoio régio de d. João
cias teológicas em Roma, surgiu na his-
V. Bluteau, diz Falcon, “põe os portugue-
tória de Portugal, principalmente, além
ses em dia com o movimento das acade-
da autoria dessa obra, como membro
mias científicas de outros países, critica
ativo do grupo que se reúne em torno
as questões escolásticas comuns nas
dos condes de Ericeira, as Conferências
aulas de filosofia e de teologia, denomi-
discretas e eruditas , no final do século
nando a lógica utilizada nas escolas de
XVII. Clérigo regular, membro da Ordem
‘labirinto de questões inúteis’”. 5
de São Caetano, Rafael Bluteau chegou
pela primeira vez em Portugal em 1668,
Observando as transformações operadas
voltando à França em 1687 e regressan-
pelos jesuítas em Coimbra e Évora, es-
do, definitivamente, a Portugal em 1704.
sencialmente os cursos conimbricenses
Membro das academias Real de História,
da escolástica, Antônio Camões Gouveia
dos Generosos e dos Aplicados, estudou
identifica uma tentativa de “rejuvenesci-
no La Flèche, o famoso colégio dos jesu-
mento” e preservação da escolástica, da
ítas, por onde passou, entre outros, René
Segunda Escolástica, que em sua versão
Descartes. A indiscutível importância da
seiscentista e setecentista era uma “per-
formação jesuítica para o sistema
manência poderosa e desejada pelos
cartesiano, uma reação à filosofia
poderes”.6 Analisando o verbete
escolástica, que é, em si, demonstrativa
‘postilas’ em Bluteau, que as define tam-
da autoridade do aristotelismo tomista
bém como comentários efetuados à mar-
no início do século XVII, projeta-se so-
gem dos textos jurídicos, Antônio
bre Bluteau, divulgador da cultura fran-
Gouveia detém-se no trecho no qual é
cesa e das academias européias em Por-
comentado que “hoje nas Universidades
tugal.
postila é a lição que dão os lentes, fa-
Apresentado como um estrangeirado (em zendo as pausas, e intervalos que se
oposição aos castiços ), Bluteau será con- costumam quando se dita [...]. Tomar
siderado por muitos um integrante do postila, às vezes vale o mesmo que es-
movimento que teria precedido as refor- tudar”. 7 A descrição daquilo que os Es-
mas pombalinas. Um moder no em vári- tatutos de Coimbra de 1653 haviam fi-
os sentidos, sobretudo em sua afinida- xado como função dos docentes, a glo-

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sa das autoridades, 8 soa, assim, crítica, creto”9 que predominou no


inscrevendo Bluteau como um moderno, Renascimento português e nos Descobri-
oposto à escolástica. Desenvolvendo a mentos, expressando o predomínio da
idéia que em meio à trama apertada da filosofia aristotélica e da escolástica.
visão de mundo jesuítica infiltram-se Cumpre também deslocarmos um pou-
outros fios, coloridos e de outros forma- co essas cesuras, como indica Pierre
tos, a corte de d. João V é espaço tam- Chaunnu, avaliando que cedo os jesuí-
bém para o cartesianismo, o saber práti- tas “haviam compreendido [...] o interes-
co, a técnica, promovidos pelo mecenato se da filosofia mecanicista. Aceitaram dar
de homens como o conde de Ericeira. É um lugar vasto às matemáticas, lado a
nesse sentido que Gouveia constrói o lado com o latim, e na prática renuncia-
perfil do “eiriceirense Rafael Bluteau” e ram sem drama à física de Aristóteles”.
da sua definição de ‘experiência’ no Vo- Como comentava um religioso no sécu-
cabulário: “conhecimento de efeitos par- lo XVIII, não havia curso em que não
ticulares, adquirido com o uso de repeti- houvesse “exposições precisas das con-
dos ensaios, e provas [...]. A experiên- cepções de Aristóteles, de Epicuro, de
cia é filha natural do tempo, e mãe dos Descartes e de Gassendi”. Essa varieda-
bons conselhos: é a guia do entendimen- de não impedia, simultaneamente, uma
to, a regra da vontade, a alma da pru- forte resistência contra Newton, fazendo
dência”. com que Descartes fosse um argumento
contra o materialismo newtoniano.10 Por
O elogio da experiência e a crítica ao outro lado, a idéia de experiência nós
método escolástico nas universidades podemos encontrar em Aristóteles, um
responderiam, assim, como signos da aspecto que será destacado sobretudo
inserção de Bluteau entre os modernos no que se refere à história natural, em
que rompem o cerco da Companhia de uma leitura moderna de sua obra, mas
Jesus na corte de d. João V. No entanto, que ocupa um lugar ainda maior, figuran-
devemos rever o sentido da idéia de “ex- do na imagem do Liceu, na comprova-
periência” nesse universo, enunciada em ção do discurso. O que discutimos aqui
ter mos muito próximos da máxima “a não é a permanência intocável de uma
experiência que é madre das coisas, nos lógica, porém o caráter da ruptura que
desengana e toda dúvida nos se demarca, seu significado,
tira” que, nos ensina Sér- como se perguntará
gio Buarque de Holanda, Camões Gouveia, afir-
estabelece antes uma con- mando ser “banal dizer-
tinuidade com o “realismo mos que o Portugal cultu-
desencantado, voltado sobre- ral de 1620 é diferente da-
tudo para o particular e o con- quele de 1777-1807. Não duvi-

pág. 194, jul/dez 2003


R V O

damos [...]. Mas interessa pôr a pergun- Analisar o lugar de Bluteau na cultura
ta: quais as per manências e como se portuguesa implica enfrentarmos a ima-
mantêm? Quais as alterações e como se gem de um século barroco e de uma épo-
integram?”. 11
ca clássica. Uma conceituação histórica
proposta por José Antonio Maravall para
A combinação entre aquilo que perma- o barroco espanhol, para quem, mesmo
nece e as transformações ensaiadas no sem datas definidas, pode-se partir de
meio cultural e científico português tal- 1600 até 1670-1680. Reforçam-se aqui
vez esteja na fór mula “retórica alguns nexos históricos que, forçosamen-
farfalhante e ciência incipiente”. Mas re- te, levam à Itália e à conseqüente articu-
levante, acrescenta Francisco Falcon, um lação entre o barroco e o classicismo,
início. 12
O reinado joanino seria marca- associados por meio da reforma católi-
do por contrastes: entre o reino ca, do fortalecimento da autoridade pa-
cadaveroso e as iniciativas de rompimen- pal, da expansão da Companhia de Je-
to com a hegemonia sufocante da Com- sus, o que levou o crítico Hatzfeld a afir-
panhia de Jesus, que, ainda assim, edi- mar que “onde surge o problema do bar-
ta os quatro primeiros tomos do Vocabu- roco, está implícita a existência do
lário . 13
Uma ruptura com o universo bar- c l a s s i c i s m o ” . 1 6 A definição do século
roco, visível nas três frentes enumera- XVII como uma época barroca significa,
das por Falcon: ericeirense, oratoriana ainda, que o barroco qualifica todas as
e régia, tal é a tônica do fenômeno do “manifestações da civilização do século
estrangeiramento, 14
assinalando a sua XVII”. No caso espanhol, ibérico,
diferença em relação aos castiços, repre- Maravall tem como horizonte certos ele-
sentantes do pensamento tradicional e mentos de ruptura o que, muito mais do
que compõe um dos traços de identida- que um traço temporal, significa uma
de lusa. O tema da ruptura, adiado ou passagem para o setecentos que se dá
antecipado em relação ao período pelo rompimento com aquilo que quali-
pombalino, faz com que se vislumbre na ficaria o barroco, a idéia de uma crise
leitura dos moder nos, na adesão ao geral européia.
cartesianismo, na produção de memóri-
as como a Instrução sobre a cultura das O que essa crise geral expressaria seria
amoreiras e a criação dos bichos da a fragmentação do mundo então garanti-
seda , que Bluteau publica pela primeira do pela ordem escolástica e abalado pela
vez em 1679, 15
a retomada de algo in- lógica racionalista e matemática, pelo
terrompido na história portuguesa: o espaço euclidiano. É nesse sentido que
desenvolvimento prenunciador da revo- o que unifica o barroco é o seu compro-
lução científica seiscentista que estava misso com a renovação do sentido reli-
na expansão marítima portuguesa. gioso da vida e do mundo: “a sensibili-

Acervo, Rio de Janeiro, v. 16, n o 2, p. 191-208, jul/dez 2003 - pág. 195


A C E

dade barroca admite a fratura entre as geômetras e filósofos da idade barroca


ordens do transcendente e do imanente, deixa para o século XVIII uma série de
a distância aparentemente invencível questões que ampliam ou retraem as
entre o sagrado e o temporal, mas quer fronteiras da época e que no universo
de alguma forma superá-las”. A urgência intelectual e religioso ibérico e portu-
de uma ordem traduz-se, ainda, na im- guês configura, para alguns autores, um
portância do Príncipe, na fórmula do Es- modelo próprio.
tado absolutista. Em Portugal, o Estado
A obra de Bluteau comparece, via de re-
barroco é o da Restauração de 1640 e
gra, precedendo as reformas
sua tarefa de reconstrução do reino. A
pombalinas, estas por sua vez entendi-
Restauração é, desse modo, “uma apos-
das como ingresso resoluto no mundo da
ta que colocava em jogo a existência de
ciência e do pensamento moder nos.
um reino, e uma monarquia localista,
Quebrar essa subordinação mais imedi-
regressiva, obcecada com o passado”. 17
ata, identificando o que é próprio do rei-
Admite-se, assim, um específico luso no
nado de d. João V, implica, como vimos,
quadro mais amplo das reflexões sobre
olhar para o século XVII, mais do que
o barroco, mesmo ibérico, e que sugere
em seu sentido cronológico (que se jus-
um encontro interessante entre a forma-
tificaria pela for mação intelectual de
ção de Bluteau, constituída no seiscen-
Bluteau), em suas muitas dimensões, do
tos, e a sociedade portuguesa em que
ponto de vista filosófico-científico, como
se moverá e publicará a sua obra.
o século em que com Galileu se deixa,
definitivamente, o Renascimento, como
Poderíamos lembrar, ainda, outros aspec-
afirmará Alexandre Koyré. Uma ruptura,
tos importantes desse século XVII, no
Koyré assinala, que caracteriza uma se-
qual Paul Hazard situa a crise da consci-
paração entre o mundo sensível, quali-
ência européia. A ruptura com a ordem
tativo, aristotélico, relegado “a uma es-
racional – promovida pelos cânones reli-
fera subjetiva ou relativa ao ser vivo” e
giosos, uma das expressões da crise da
aquele real, escrito em números, reduzi-
época moder na – prossegue no
do ao geométrico. 19 A cisão não marca,
enfrentamento do racionalismo com o
assim, o fim de uma dada apreensão do
empirismo, na tensão entre os procedi-
mundo, mas uma divisão que mobiliza-
mentos dedutivo e indutivo, entre a geo-
ria a ciência setecentista, balizando a
metria cartesiana e a física de Newton, e
relação entre a história natural e outros
se expressará na aliança que os salva do
campos de matriz aristotélica e a física
ceticismo da razão: “o espírito do sécu-
galilaico-newtoniana. É nesse sentido que
lo XVIII, que tem suas raízes no XVII, é
François Châtelet dirá que
racionalista por essência e empirista por
t r a n s a ç ã o ” . 1 8 A vitória dos físicos, Quando o mesmo Galileu afirma que a

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natureza fala a linguagem das figuras a teoria se impõe de modo decisivo.

e dos números, pode-se pensá-lo pla- Essa idéia de experimentação, já pre-


tônico ou pitagórico. Mas a idéia fun- sente em Aristóteles, desenvolvida por

damental que se delineia, que vai fun- Bacon, se torna no pensamento moder-

dar toda a ciência ocidental, é que no, por seu rigor e suas referências, o
atrás da complicação visível do mun- lugar mesmo da demonstração. 20

do há uma simplicidade invisível. Com

Galileu, Descartes, Kepler, a relação da A passagem que Châtelet realiza, em uma


observação e da experimentação com história da razão, da herança clássica ao

Rafael Bluteau, Vocabulário português e latino , vol. I, Coimbra,


Colégio das Artes da Companhia de Jesus, 1712.

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século XVII articula-se em tor no dessa meio ao ‘reino cadaveroso’. Prenúncio


sorte de acontecimentos, que vão se re- dos novos tempos reivindicados no se-
cortando na querela Antigos e Modernos, tecentos, essa consciência de época e a
na famosa ‘querela do vazio’, 21
nos visão disciplinar de história que então se
impasses que se apresentam no interior consolidou, tem sido diretamente reco-
da ciência vista sob o prisma pós- nhecida em Bluteau, a partir de quem se
galilaico. A possibilidade de introdução irradiaria um dos benefícios da Restau-
do cogito cartesiano no mundo intelec- ração, qual seja, a ruptura com a
tual português da chamada Segunda Espanha e, portanto, com o barroco.
Escolástica pode ser pensada por meio Esse é o caminho percorrido por auto-
da interpretação de Eduardo d’Oliveira res como José Sebastião da Silva Dias
França, quando afir ma que o que enxerga no ano de 1640 a possibili-
racionalismo cartesiano teria vindo para dade de “reatamento das nossas relações
estabilizar o que a eclosão do culturais com o mundo exterior à Penín-
humanismo havia abalado, “a ordem sula. Os portugueses tiveram então uma
escolástica e a precisão seca de seus bela oportunidade para descobrirem o
conceitos”. Um século eminentemente novo pensamento universal, quer viajan-
normativo, que substitui a “instabilida- do por terras estranhas, quer ouvindo na
de dolorosa do espírito” pela dúvida sis- ‘pequena casa lusitana’ os peregrinos de
temática, tal é o século XVII que ele nos outra origem”. 23 Um desses peregrinos
apresenta, sublinhando o desejo de uma era, sem dúvida, o padre Rafael Bluteau,
ordem, desejo realizado na observação cuja Prosas acadêmicas é aberta por
e nos sistemas de classificação da natu- destacado membro do círculo acadêmi-
reza. Mas a “precisão seca” da co de d. Francisco Xavier de Meneses, o
escolástica resiste nas mãos dos jesuí- conde da Ericeira, com o “oratório reque-
tas, e não só: a fome de ordem, para esse rimento de palavras portuguesas agrava-
autor, permanece renovada dentro das das, desconfiadas e pertencentes, apre-
ordens religiosas, na teoria literária, na sentado no Tribunal das letras, erigido
teoria da arte: “a escolástica, menos fe- no ano de 1696, na biblioteca do conde
cunda como método de pesquisa cientí- da Ericeira, com o título de Conferênci-
fica, era um terrível instrumento de cla- as eruditas”. 24 Além do “genuíno signifi-
reza no jogo das idéias e um excelente cado” dos vocábulos portugueses, as
fiador da ordem. Havia de ser carinhosa- prosas compreendem diversos outros
mente preservada”. 22
assuntos das lições acadêmicas, tais
como matérias físicas ; prosas acadêmi-
O ensaio de compreensão da obra do cas, críticas, históricas, políticas das sete
padre teatino se faz na clave de sua ins- maravilhas do mundo ; assuntos de ou-
crição moder na, de sua irrupção em tras sete lições acadêmicas sobre as sen-

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tenças dos sete sábios da Grécia, com- Ocidente, o platonismo e o aristotelismo,


binados com outros tantos rifões dos devidamente transformados pela leitura,
Velhos da Lusitânia ; assuntos das prosas tradução, comentário e todos os proces-
acadêmicas, teológicas, fundados no atri- sos que envolvem a recepção das obras
buto da independência divina . e das idéias. Considerada um enclave

N
moder no na corte de d. João V, a obra
a tradição das academias lite- de Bluteau nos convida também a pen-
rárias, históricas e científicas sar, por meio de seu Tribunal das letras
do XVII, Bluteau participa das e do exercício da “arte de falar”, 26 o pro-
Conferências e da Academia dos Gene- cesso histórico que encaminha a
rosos, renovada em 1717, também na estruturação dos estados absolutistas,
casa do conde da Ericeira. Nas lições que a constituição de um campo científi-
compõem as prosas, nas referências aos co, a associação entre palavra, razão
temas e autores moder nos, entendidos e política.
no âmbito da Revolução científica,
Iniciando essa reflexão, vemos como no
Bluteau deixaria entrever suas filiações,
verbete ‘dicionário’ Bluteau dedica-se
seu cartesianismo, a adesão a Gassendi,
antes à impropriedade da palavra do que
como procura sublinhar Silva Dias, es-
à sua definição, bastante sucinta, mas,
pecialmente no que se refere às teses
ainda assim, significativa:
sobre o vazio, a existência do vácuo. Na
Livro, em que as palavras de uma ou
urgência de demonstrar o caráter moder-
mais línguas estão impressas por or-
no, antiescolástico do clérigo, Silva Dias
dem alfabética. De ordinário lhe cha-
o aproxima da “orientação gassendo-
mamos Dictionarium , que é palavra
cartesiana”, encobrindo que foi exata-
novamente forjada, e de tão pouco la-
mente em torno da querela do vazio que
tina, que se deriva de Dictio, que em
se opuseram as idéias de Gassendi e
latim, [...] não significa uma dicção ou
Descartes, acusado pelo primeiro de ter
uma palavra. Outros lhe chamam
permanecido, quanto ao método e ao seu
Vocabularium, e tem este nome a van-
dogmatismo metafísico, “fundamental-
tagem de ter derivado de Vocabulu , de
mente um escolástico”. 25 Mais do que
que Cícero usa para significar uma pa-
nos guiarmos por essa disputa, quere-
lavra. 27
mos destacar que ao se classificar
Bluteau como um moder no deve-se con- O termo dicionário foi utilizado recorren-
siderar a convivência na sociedade por- temente, como indica, por exemplo, o
tuguesa do início do setecentos e tam- Dictionarium seu Linguae latinae
bém em outros círculos intelectuais eu- thesaurus , de Robert Etienne, datado de
ropeus, de diferentes tradições do pen- 1531, 2 8 mas Bluteau insistirá no termo
samento, a partir das duas maiores do ‘vocabulário’, para definição desse gê-

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nero, em sua autenticidade etimológica, pobres”, uma outra ordem de discurso


contrariando a origem latina medieval do que não é a crônica dos príncipes ou dos
termo ‘dicionário’ e filiando-se a Cícero. embaixadores, mas constituindo-se das
A genealogia desses livros pode iniciar- “vozes e escritas parasitas que sobrecar-
se nas compilações lexicográficas gregas, regam o corpo do soberano – o verda-
conjuntos de glosas de palavras raras de deiro corpo do povo – de um fantasma
um ou outro autor (entre os quais mui- feito de palavras sem corpo – o fantas-
tos dedicados a Homero) ao dicionário ma de um ser que deve ser morto – e
de Bluteau, revelando, sem qualquer confere assim à multidão dispersa dos
linearidade, mudanças no sentido filosó- ‘ qualquer um ’ os atributos do corpo po-
fico das palavras, na técnica de expres- lítico”. 30
são, nos projetos de sistematização do
Essa morte do soberano, detectada por
conhecimento.
Hobbes no Leviatã, ao se referir às cau-
sas da sedição, deve-se então a esses
Esses livros onde se imprimem as pala-
nomes sem referencial que fazem adoe-
vras de uma língua participam de um
cer a política, frases que não têm exis-
processo em que protagonizam os “filhos
tência real senão por duas ‘cumplicida-
do Livro”, como chamará Jacques
des’: a primeira, dos “homens do verbo
Rancière aqueles que proferem palavras,
encar nado”, que dizem ‘déspota’ ou ‘ti-
tais como ‘déspota’, ‘tirano’ e outras que
rano’ sobre os que se opõem à sua ex-
fazem adoecer o corpo político e que
pansão da fé, e a segunda, “é a dos tex-
ensejarão o diagnóstico hobbesiano de
tos que dão vida e consistência à figura
que a doença da política é a doença das
do déspota, esses textos antigos, cheios
palavras. 29 Em seu ensaio, Rancière par-
de histórias de déspotas, de teorias da
te da morte do rei, no Mediterrâneo de
tirania e suas desgraças, histórias e poe-
Braudel, para refletir sobre a morte do
mas em honra dos tiranicidas que sus-
acontecimento na ‘nova história’, morte
tentam a outra grande doença do corpo
que se confunde com a do monarca, em
político, a hidrofobia”.31
um processo paralelo entre o tempo de
Felipe e o ‘anúncio’ de seu desapareci- Existem outras maneiras de expressar
mento ao final do Mediterrâneo . A morte esse diagnóstico hobbesiano, do exces-
ocorre, primeiramente, devido ao que so de palavras, das palavras que inves-
Braudel havia intitulado a “papelada dos tem contra o rei, o corpo soberano do

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povo? Aqui se tratava de combater a [...]. Com isso se assegura a

guerra civil, a consciência privada, que inteligibilidade: porque, se o modelo


deveria ser destituída de sua repercus- desta é a geometria, a qual conhece-

são política. Assim, Koselleck expressa- mos porque suas figuras e conceitos

rá o que considera o passo definitivo nós criamos, então só poderemos ter


dado por Hobbes, revelando que não era uma ciência do Estado quando também

apenas a “vontade de poder” que condu- o reconhecermos produto nosso. 33

zia à guerra civil, mas também a “invo-


A relação entre uma ciência política e a
cação da consciência sem amparo exter-
ciência seiscentista, cartesiana e dedu-
no”. Ou seja, que a consciência não leva
tiva estabelece-se, assim, em um mode-
à paz, mas é “em sua pluralidade subje-
lo de inteligibilidade que, na escrita de
tiva, uma causa belli civilis ”.32 A idéia
Hobbes, se dá na genealogia do Estado
do Estado como juiz racional de homens
absoluto, processo dedutivo racionalista
irracionais, fundando uma razão políti-
que, no entanto, é fendido pelo ato de
ca, enuncia um processo dedutivo do
vontade, o contrato. Tal é um processo
mundo, uma equação da qual conhece-
em que as palavras solicitam um assen-
mos, antecipadamente, os ter mos. Seu
timento, dos homens e do leitor, mas que
nome, nome do instrumento que flexiona
como ato de vontade não é nem
a passagem para uma pacificação dos
escolástico nem cartesiano, diz Renato
homens: contrato. Racionalismo
Janine: é uma vontade reduzida a uma
cartesiano, procedimento dedutivo,
“operação aritmética com forças”. 3 4
medo e esperança, na leitura de Renato
Aqui, importa esse paralelo entre as pa-
Janine Ribeiro sobre as paixões compre-
lavras e aquilo que elas podem estabe-
endidas no discurso hobbesiano.
lecer, imbuídas de um racionalismo
Esse percurso em torno de Hobbes, além cartesiano ou do enunciado aristotélico
de sublinhar a dimensão política das tomista, expressando um momento his-
palavras, pretende traçar o paralelo en- tórico em que as palavras que são profe-
tre um modelo de ciência e uma forma ridas pelos religiosos, aquela que está
de escrita que se situa entre a lógica de na “papelada dos pobres”, enfim, todas
seu enunciado e a sua relação com o conspiram nessa revolução moder na,
mundo empírico. Assim, no Leviatã , que é antes de tudo a seguinte:

Trata-se de fazer uma genealogia do Es- A revolução dos filhos do Livro, daque-
tado; os homens são criadores do po- les que reúnem os poderes da imita-

lítico a quem o texto revela a sua cria- ção e da profecia. Revolução da pape-

ção. Seremos súditos leais porque so- lada pela qual a legitimidade real e o
mos os sujeitos que instituíram; obe- princípio da legitimidade política en-

deceremos porque geramos o Estado contram-se desfeitos, despedaçados na

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multiplicidade das falas e dos falado- parte de uma origem, indicando uma
res que vêm atualizar outra legitimida- oposição à escolástica e ao aristotelismo,
de, a legitimidade do povo surgida nas às memórias do passado e da Antigüida-
entrelinhas da escrita testamentária ou de, ao tempo e espaço do que será con-
da de Tácito. Tal é no tempo de Felipe cebido como Antigüidade; e o Vocabulá-
II e de Hobbes, a papelada dos rio de Bluteau, “homem do verbo encar-
monarcomacas, dos soldados de Deus nado”, que se inscreve em uma tradição
e dos apaixonados pela Antigüidade. de obras que nomeiam, definem e siste-
Assim multiplicam-se os focos de pa- matizam. A temporalidade que o Voca-
lavra ‘legítima’ e, ao mesmo tempo, os bulário exibe é múltipla, comportando a
repertórios e os dicionários que per- tensão e a complexidade histórica dos
mitem mudar os nomes, construir ar- sistemas de pensamento que estão aqui
gumentações e figurações que fazem investidos. Assim, podemos ler o século
aparecer em tal ou tal lugar, sob tais XVII, clássico e barroco, século de
ou tais traços o despotismo ou a liber- Hobbes, de Descartes e do Estado abso-
dade. 35
luto, como aquele que conheceu a críti-
ca aos Antigos, a Revolução científica, o
A desordem da política coincidiria, por-
confronto entre os sistemas dedutivos,
tanto, com a desordem do saber, 36 algo
racionalistas e o pensamento indutivo e
que Hobbes detectaria, ainda que não a
experimental. Os dicionários e repertó-
tenha nomeado. Uma produção e deslo-
rios, obras que designam e recolhem o
camento de sentido que brota das pala-
significado das coisas, localizam-se, fi-
vras nos repertórios e dicionários, dos
losoficamente, em Aristóteles, como nos
textos dos antigos, textos da retórica, os
conduzem, também, à tradição
relatos da “história profana”, como defi-
nominalista e pela qual Bluteau parece
ne Bluteau, convocando a ‘memória pú-
haver se decidido. Como produto da
blica’, como a chama Cícero, “porque na
‘questão dos universais’, nascida no in-
História perseveram memórias do passa-
terior do aristotelismo do apogeu góti-
do”, e ainda Cícero, na clássica passa-
co, a vitalidade do nominalismo na épo-
gem “a história é a testemunha do tem-
ca moderna é reveladora da crítica ao
po, a luz da verdade, a vida da memó-
caráter especulativo do Renascimento e,
ria, a mestra da vida e a mensageira da
também, ao racionalismo seiscentista,
Antigüidade”. 37
em favor da eleição dos sentidos como
Nesse momento várias genealogias po- meio para percepção do real, procuran-
dem ser percorridas: a da história profa- do manter a “integridade do pensamen-
na que só se torna verídica com a funda- to racional e da observação empírica”,
ção de Roma; a recorrência a Cícero, sem escapar ao que Erwin Panofsky cha-
reafirmado ao longo da obra, refazendo mará “o eter no problema do

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empirismo”. 38 Seja como for, Bluteau e Incorporar essa gênese importa-nos


sua obra são devedores desta afir ma- como forma de reflexão teórica acerca
ção, de que tudo é singular e que o é dessas obras, como matriz filosófica que
por si próprio, de que só existem os in- anima e constrói os dicionários, enciclo-
divíduos ou as entidades particulares, pédias, coleções e que, igualmente, fo-
de um terminismo, enfim, que atraves- menta, nos séculos XVII e XVIII, um
sa essas obras. Por outro lado, está na momento privilegiado de realização e
arquitetura dos sistemas, igualmente, a embate, na Querelle : a polêmica antigos
constituição desse gênero de escrita, da e moder nos. Por um lado, vemos que
p o s s i b i l i d a d e d e c l a s s i f i c a r, o r d e - enquanto se recorre aos textos da Anti-
n a r, h i e r a r q u i c a m e n t e ou de for ma güidade nega-se o “caráter modelar da
enumerativa, o conhecimento. civilização clássica”, nas palavras de

Rafael Bluteau, Prosas portuguesas recitadas em diferentes


congressos acadêmicos, Lisboa Ocidental, Na Oficina de José Antônio da Silva, 1728.

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Paolo Rossi, 39 para quem Bacon e Des- De autoria de Ar nauld e Lancelot, é tam-
cartes não disputam com os Antigos, re- bém a famosa Gramática de Port-Royal
cusando sim o próprio campo da dispu- ou Gramática geral e razoada contendo
ta. Por outro lado, além dos dilemas pró- os fundamentos da arte de falar, 41 expli-
prios a alguns campos do saber, como o cados de modo claro e natural; as razões
da história natural, estão as diversas daquilo que é comum a todas as línguas
apropriações, releituras, das heranças e das principais diferenças ali encontra-
platônica e aristotélica no Ocidente, as- das , 4 2 de 1660, que é, para muitos, a
sumindo novas configurações a cada fundadora das gramáticas gerais. Os se-
questão que se enuncia. nhores de Port-Royal eram, em sua voca-
ção agostiniana, platônicos e identifica-
Um momento importante desse confron-
dos com o cartesianismo. Haviam desen-
to estará na doutrina jansenista, do bis-
volvido, no interior da filosofia
po Cornélio Jansênio, que projeta no re-
cartesiana, um ramo ainda não aborda-
tor no às teses de Santo Agostinho uma
do, o da linguagem, compreendendo as
refor ma católica, tendo sido condenado
palavras como “uma das grandes provas
pelo papa Inocêncio X. Com a adesão de
da razão: é o uso que dela fazemos para
Pascal e dos chamados senhores de Port-
expressar nossos pensamentos”. 43 Pala-
Royal, o jansenismo francês prospera
vra, na definição de Rafael Bluteau, é
após a morte do cardeal Richelieu, em
“dicção articulada, que consta de uma
1642, tendo a frente aquele que seria o
ou mais sílabas e com que entre todos
“doutor” do movimento por quase meio
os animais só o homem se declara. A
século: Antoine Arnauld. O funcionamen-
palavra foi dada ao homem para intér-
to de escolas junto ao austero convento
prete de seus pensamentos, imagem de
abre as portas, mais do que para a teo-
sua alma e espelho de seu espírito”.44

S
logia, para um ensino e um pensamento
que se deseja à frente dos jesuítas, na ão perceptíveis em Bluteau os
eficácia do método, no rigorismo, no ecos da gramática de Ar nauld.
ensino em francês, abrindo espaço às Nela também se afirmará que a
‘novas ciências’, incentivando a publica- palavra, mais do que em seu aspecto
ção, pelos mestres, de obras de pedago- material, o som (comum a alguns ani-
gia ou de filosofia geral “que tiveram um mais, como o papagaio), devia ser con-
lugar em primeiro plano no desenvolvi- siderada em sua parte espiritual, o que
mento da vida francesa: a Logique de a tornava uma das maiores vantagens
Port-Royal, a meio caminho entre o que o homem tinha sobre os animais.45
Discours de la méthode e a Recherche A palavra como evidência da razão, das
de la vérité de Malebranche, é a mais operações do espírito – conceber, julgar,
bela ilustração”. 40
raciocinar –, como definem os

pág. 204, jul/dez 2003


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gramáticos de Port-Royal, 46 associa, sob vel, a relação entre o geral e o racional,


esse aspecto, o padre Bluteau a uma tra- admitindo, portanto, a existência de leis
dição gramática racionalista, compatível gerais. 48 Marcando a passagem do co-
mesmo com sua formação. Elementos mentário, da exegese (típicos do
humanísticos e científicos informam seu Renascimento, em que se procuram nas
vocabulário, sempre referido a uma tra- marcas do texto como que uma segunda
dição clássica romana, ainda que não linguagem), à crítica , Foucault traça, as-
faltem as necessárias referências aos fi- sim, o caminho pelo qual a linguagem,
lósofos gregos. na época clássica, adquire o caráter
ambíguo que nos é contemporâneo. A
As gramáticas gerais constituem uma das
crítica, diz ele, “só pode analisar a lin-
manifestações do que Foucault conside-
guagem em termos de verdade, de exa-
ra “a linguagem elidida, discreta e sobe-
tidão, de propriedade ou de valor expres-
rana”. No capítulo IV de As palavras e as
sivo”. Por outro lado, não pode deixar
coisas , intitulado “Falar”, vemos que, na de interrogar a linguagem sobre a sua
idade clássica, “as palavras receberam
verdade ou a sua mentira, sua transpa-
a tarefa e o poder de representar o pen-
rência ou opacidade, “portanto do modo
samento”. Mas, ele adverte, não se trata
de presença daquilo que ela diz nas pa-
de uma representação de algo visível, de
lavras pelas quais a representa”. Uma das
“fabricar um duplo material que possa,
formas de interrogar a linguagem está em
na vertente externa do corpo, reprodu-
questionar seu funcionamento, sua na-
zir o pensamento em sua exatidão. Re-
tureza e suas virtudes de discurso, e,
presentar deve-se entender no sentido
citando as reflexões de Hobbes e de
estrito: a linguagem representa o pensa-
Locke sobre o sistema de sinais e signos
mento como o pensamento representa a
da linguagem, Foucault chegará à defini-
si mesmo”. 47 Em outro artigo, dedicado
ção de linguagem como análise do pen-
especificamente à Gramática de Port-
samento, instauração profunda da ordem
Royal, Foucault sublinhará o critério pre-
no espaço: “é aí que se situa esse domí-
sente na obra de Arnauld e Lancelot,
nio epistemológico novo que a idade
válido para as gramáticas gerais até o fim
clássica chamou ‘gramática geral’”.49 Ao
do século XVIII: “não é uma gramática
longo desse capítulo, ele percorrerá a
que analisa e compara um material
experiência da linguagem, concluindo que
lingüístico heterogêneo; é uma gramáti-
ca que toma distância em relação a uma A tarefa fundamental do “discurso”
ou duas línguas dadas e que, na distân- clássico consiste em atribuir um nome

cia assim instaurada, reconstitui os usos às coisas e com esse nome nomear o

particulares dos princípios universalmen- seu ser. Durante dois séculos, o discur-
te válidos”, estabelecendo, em outro ní- so ocidental foi o lugar da ontologia.

Acervo, Rio de Janeiro, v. 16, n o 2, p. 191-208, jul/dez 2003 - pág. 205


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Quando ele nomeava o ser de toda re- pacto histórico avaliado pelas rupturas
presentação em geral, era filosofia: ou acomodações que o reformismo
teoria do conhecimento e análise das pombalino anunciava: esplendor barro-
idéias. Quando atribuía a cada coisa co e fanatismo devoto, nas palavras de
representada o nome que convinha e, Francisco Falcon, precedem a época das
sobre todo o campo da representação, reformas, tendo em sua outra face os
dispunha a rede de uma língua bem estrangeirados e oratorianos.51
feita era ciência – nomenclatura e
Há também um tempo que existe na rea-
taxinomia. 50
lidade das palavras e das definições for-
Compreender a obra de Bluteau signifi- muladas no Tribunal das letras , tempo
ca compreender o lugar das palavras no profundo que dialoga com a tradição
século XVII e início do XVIII, fundando clássica, discurso que se dá no presente
uma epistemologia própria, uma repre- da sua escrita. A historicidade que se
sentação pelas palavras e pelo nome, configura, manifesta-se nas referências
marcando uma profunda relação entre a à ordem régia e eclesiástica, por meio
linguagem analítica e a classificação – de verbetes como “Estado”, em que são
taxinomia –, em um modelo em que ci- evocados os três estados e as ordens dos
ência, política, retórica, gramática e fi- mecânicos na sociedade portuguesa, ou
losofia são pensadas a partir de regimes nas variadas definições de “razão”, como
de racionalidade distintos daquele que faculdade, em sua dimensão divina, e
infor mara o comentário e a ordem como razão de estado, ratio politica , em
escolástica. Mas, consideramos que em seu tributo a Cícero, no reconhecimento
um mesmo movimento e aqui, em uma de um vocabulário das colônias ultrama-
perspectiva distinta da arqueologia rinas, nos verbetes dedicados à medici-
foucaultiana, dialoga-se com a tradição, na, à astronomia, aos sistemas. Está,
retomando os temas do Renascimento, também, no investimento historiográfico
da Antigüidade, reclamando anteceden- em Rafael Bluteau como um moder no;
tes históricos e filosóficos nessa escrita, no conteúdo crítico das lições proferidas
nesse relato racional. A obra de Bluteau na biblioteca seiscentista do Bairro Alto
traça a dupla dimensão da história por- lisboeta; em sua principal obra, o Voca-
tuguesa e da relação entre ciência, polí- bulário português e latino ; e, essencial-
tica e cultura na época moderna, descre- mente, na tarefa que se exige, no proje-
vendo, implicitamente, o gesto da escri- to de travar, de for ma sistemática, esta
ta como instância da história. A tradu- relação entre a língua e o mundo.
ção do pensamento e da cultura france-
sa das academias e das tensões intelec- Artigo recebido para publicação em ou-
tuais que esta comportava, tem seu im- tubro de 2003.

pág. 206, jul/dez 2003


R V O

N O T A S
1. Rafael Bluteau, Ao muito alto e muito poderoso rei d. João o Quinto, XXI dos naturais reis de
Portugal, in Vocabulário português e latino , v. I, Coimbra, Colégio das Artes da Companhia
de Jesus, 1712. Publicado entre 1712 e 1727, integra o acervo de obras raras do Arquivo
Nacional.
2. Christian Jacob, Athènes-Alexandrie, in Roland Schaer, Tous les savoirs du monde :
encyclopédies et bibliothèques, du Sumer au XXIe siècle, Paris, Bibliothèque Nationale de
France/Flammarion, 1996, p. 44.
3. Rafael Bluteau, Dicionário da língua portuguesa , refor mado e acrescentado por Antônio Moraes
e Silva, Lisboa, Na Oficina de Simão Tadeo Ferreira, 1789, 2v.
4. Antônio de Moraes Silva, Dicionário da língua portuguesa , Lisboa, Tipografia de Antônio José
da Rocha, 1813.
5. Francisco José Falcon, A época pombalina : política econômica e monarquia ilustrada, 2. ed.,
São Paulo, Martins Fontes, 1993, p. 206.
6. Antônio Camões Gouveia, Estratégias de interiorização da disciplina, in Antônio Manuel
Hespanha (org.), História de Portugal : o Antigo Regime, Lisboa, Editorial Estampa, 1993, p.
425.
7. Rafael Bluteau, Vocabulário português e latino , apud Antônio Camões Gouveia, op. cit., p.
426.
8. Autoridade aqui pode ter o sentido que assume na filosofia medieval, na qual auctoritas é
uma opinião inspirada pela graça divina, podendo ser a decisão de um concílio, uma máxima
bíblica, a sententia de um padre da Igreja. Como instância superior à razão, o recurso à
autoridade é típico da filosofia escolástica. Cf. autoridade e escolástica em Nicola Abbagnano,
Dicionário de filosofia , 4. ed., São Paulo, Martins Fontes, 2000.
9. Sergio Buarque de Holanda, Visão do paraíso , 6. ed., São Paulo, Brasiliense, 1994, p. 5.
10. Cf. Pierre Chaunnu, A civilização da Europa das Luzes, v. I, Lisboa, Estampa, 1985, p. 218-220.
11. Antônio Camões Gouveia, op. cit., p. 424.
12. Francisco José Falcon, op. cit., p. 206.
13. A partir do tomo 5 o editor passa a ser a Oficina de Pascoal da Silva.
14. Francisco José Falcon, op. cit., p. 204-205.
15. Também publicadas nas Prosas portuguesas como Prosa econômica, dedicada a d. Pedro.
16. José Antônio Maravall, A cultura do barroco : análise de uma estrutura histórica, São Paulo,
Edusp, 1997, p. 42.
17. Cf. Rubem Barboza Filho, Tradição e artifício : iberismo e barroco na formação americana,
Belo Horizonte, Ed. UFMG, Rio de Janeiro, IUPERJ, 2000.
18. Paul Hazard, La crise de la conscience européenne , Paris, Fayard, 1994, p. 226.
19. Alexandre Koyré, Estudos de história do pensamento científico , Rio de Janeiro, Forense Uni-
versitária, 1991, p. 53.
20. François Châtelet, Une histoire de la raison , Paris, Éditions du Seuil, 1992, p. 13.
21. A querela do vazio marcou, no século XVII, a polêmica de Gassendi e Pascal contra a máxi-
ma, dita aristotélica, mais claramente tomista, de que a natureza tem horror ao vazio. A
negação da vacuidade envolvia também Descartes, que será criticado e apontado por Gassendi
como um ‘escolástico’. Cf. Simone Mazauric, Gassendi, Pascal et la querelle du vide , Paris,
PUF, 1998.
22. Ver Eduardo d’Oliveira França, Portugal na época da Restauração , São Paulo, Hucitec, 1997.
23. J. S. S. Dias, Portugal e a cultura européia (séculos XVI a XVIII), Biblos , revista da Faculdade
de Letras da Universidade de Coimbra, v. XXVIII, 1952. Agradeço a Beatriz Catão a indicação
desse artigo.
24. Rafael Bluteau, Prosas portuguesas recitadas em diferentes congressos acadêmicos , Lisboa
Ocidental, Na Oficina de José Antônio da Silva, 1728. Esse título integra o acervo de obras

Acervo, Rio de Janeiro, v. 16, n o 2, p. 191-208, jul/dez 2003 - pág. 207


A C E

raras do Arquivo Nacional.


25. Simone Mazauric, op. cit., p. 96.
26. Rafael Bluteau, Prosas portuguesas , op. cit., t. 1, p. 4.
27. Rafael Bluteau, Dicionário, in Vocabulário português e latino , op. cit., v. III, p. 214.
28. Georges Matoré, Histoire des dictionnaires français , Paris, Librairie Larousse, 1968, p. 59.
29. Jacques Rancière, As palavras da história, in Políticas da escrita , Rio de Janeiro, Editora 34,
1995, p. 208.
30. ibidem, p. 209.
31. idem.
32. Reinhart Koselleck, Crítica e crise : uma contribuição à patogênese do mundo burguês, Rio
de Janeiro, EDUERJ/Contraponto, 1999, p. 30.
33. Renato Janine Ribeiro, Ao leitor sem medo : Hobbes escrevendo contra o seu tempo, 2. ed.,
Belo Horizonte, Editora UFMG, 1999, p. 30.
34. ibidem, p. 32.
35. Jacques Rancière, op. cit., p. 210.
36. Em Hobbes, o poder é conhecimento, e para que cessem as guerras civis é necessário que
esse conhecimento seja único. Bruno Latour esclarece que para Hobbes um dos maiores
perigos para a paz civil vem da crença em corpos imateriais, como os espíritos, que estariam
acima do poder civil. Isso é válido também para a ciência, realizada através do método expe-
rimental, fora do controle do Estado: “é importante evitar a qualquer custo que determinada
facção possa invocar uma Entidade superior – a Natureza ou Deus – que não seria plenamen-
te controlada pelo soberano”. A separação moderna entre o mundo natural e o mundo social
é parte de uma mesma constituição, sendo esta a principal tese de Latour. Cf. Bruno Latour,
Jamais fomos modernos : ensaio de antropologia assimétrica, Rio de Janeiro, Editora 34,
1994.
37. Rafael Bluteau, Vocabulário português e latino , op. cit., v. IV, p. 40.
38. E. Panofsky, Arquitetura gótica e escolástica, São Paulo, Martins Fontes, 1991, p. 9.
39. Cf. Paolo Rossi, O nascimento da ciência moderna na Europa , Bauru, SP, EDUSC, 2001.
40. R. Mandrou, Des humanistes aux hommes de science : XVIe et XVIIe siècles, Paris, Éditions
du Seuil, 1973, p. 183.
41. Observamos o uso da expressão “arte de falar”, também empregado por Bluteau nas prosas
portuguesas. Como observará Michel Foucault, a gramática não é a arte de “bem falar”, mas,
simplesmente, a arte de falar. A gramática racional é assim no século XVII “uma disciplina
que enuncia as regras pelas quais é preciso que uma língua se ordene para poder existir. Ela
deve definir a regularidade de uma língua, que não é seu ideal, seu melhor uso [...] mas a
forma e a lei inter na que lhe permitem simplesmente ser a língua que ela é”. Cf. Michel
Foucault, Introdução (in Ar nauld e Lancelot, Grammaire général et raisonné , Paris,
Republications Paulet, p. III-XXVII), in Michel Foucault, Arqueologia das ciências e história
dos sistemas de pensamento , organização e seleção de textos de Manoel Barros da Motta,
Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2000, p. 127.
42. Cf. Antoine Arnauld, Gramática de Port-Royal , São Paulo, Martins Fontes, 1992.
43. ibidem, p. 27.
44. Rafael Bluteau, Palavra, in Vocabulário português e latino , op. cit., v. 6, p. 194.
45. Antoine Arnauld, op. cit., p. 27.
46. ibidem, p. 28.
47. Michel Foucault, As palavras e as coisas : uma arqueologia das ciências humanas, 2. ed., São
Paulo, Martins Fontes, 1981, p. 93.
48. Michel Foucault, Introdução (in Arnauld e Lancelot), op. cit., p. 125.
49. ibidem, p. 95-98.
50. ibidem, p. 137.
51. Francisco José Falcon, A época pombalina , op. cit., p. 203.

pág. 208, jul/dez 2003


R V O

P E R F I L I N S T I T U C I O N A L

Centro de Estatística
Religiosa e Investigações
Sociais – CERIS
Rogerio Dardeau
Secretário-Executivo Adjunto.

Fundado em 1962, como ato conjunto da Established in 1962, due to a decision of the
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) National Conference of Catholic Bishops of Brazil
e da Conferência dos Religiosos do Brasil (CRB), o (CNBB) and the Conference of Religious of Brazil
CERIS tem como missão propiciar aos setores (CRB), CERIS is a NGO and its mission is to
mais pobres e excluídos da sociedade a obtenção contribute with the acquisition of better
de melhoria das próprias condições de vida, conditions of life, by the poorest and excluded
estimulando reflexões e práticas sociais human being in the society, encouraging them to
transfor madoras, sobretudo aquelas de caráter use transfor ming social practices, mainly local
local, realizadas pelas próprias comunidades. experiences, done by their own groups.
Palavras-chave: práticas transfor madoras; Keywords: transfor ming social practices;
melhoria das condições de vida. better conditions of life.

O
CERIS foi criado em 1962, cessidade de compreender melhor a so-
como ato conjunto da Confe- ciedade para ter uma ação pastoral efi-
rência Nacional dos Bispos do caz. A V Assembléia Ordinária da CNBB
Brasil (CNBB) e da Conferência dos Reli- fir mou o “compromisso de procurar ba-
giosos do Brasil (CRB), para atender a sear nossa atividade pastoral em sonda-
uma exigência bem precisa da ação pas- gens objetivas e estudos sociológicos”.
toral e social da Igreja. Era um momen- Naquela assembléia, a CNBB completa-
to em que a Igreja Católica sentia a ne- va dez anos e se dava conta da impor-

Acervo, Rio de Janeiro, v. 16, n o 2, p. 209-212, jul/dez 2003 - pág. 209


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tância de ter um órgão especializado, práticas sociais transformadoras, sobre-


que realizasse estudos e pesquisas a fim tudo aquelas de caráter local, realizadas,
de subsidiar a elaboração dos planos de portanto, pelas próprias comunidades. O
trabalho da Igreja no Brasil. financiamento da instituição dá-se por
contribuições diversas e convênios com
Em novembro de 1963, foi designado
organismos nacionais e internacionais de
como seu primeiro diretor-executivo, o
cooperação. Podem-se relacionar as se-
sociólogo padre Affonso Felipe Gregory.
guintes ações correntes e outras recen-
Em 27 de dezembro de 1964, o CERIS
temente realizadas, entre as mais signi-
inaugurou sua sede própria, na 1 a Assem-
ficativas:
bléia.
- Censo Anual da Igreja Católica do Bra-
Os primeiros anos foram dedicados à
sil. Atividade de caráter permanente,
coleta e à elaboração de dados estatísti-
da qual decorre, bienalmente, o Anu-
cos sobre a Igreja e a estudos de caráter
ário Católico do Brasil.
sociográficos. Depois se ampliaram os
estudos e as pesquisas às áreas - Apoio financeiro a iniciativas comu-

socioeconômica e socioreligiosa. nitárias, sobretudo no que se refere


à geração de trabalho, emprego e ren-
Em 1966, o CERIS publica o 1 o Anuá-
da, com recursos de organismos de
rio Católico. De 1970 a 1975, realiza
cooperação nacionais e inter nacio-
várias pesquisas, uma delas bem ex-
nais, especialmente da Alemanha,
tensa sobre obras sociais da Igreja
Holanda e Suíça.
Católica, publicada em Documentos da
CNBB , n o 34. - Acompanhamento de projetos sociais,
relativamente às capacidades técnica,
Desde então, vem ampliando seu esco-
política e financeira, capacitando seus
po de atividades, caracterizando-se sem-
gestores em métodos de planejamen-
pre por uma independência em relação
to, elaboração de diagnósticos e aná-
ao governo e por manter compromisso
lise de resultados; realizando
humanitário, não tendo fins comerciais.
capacitação em gênero, segurança
O CERIS é uma instituição de utilidade
a l i m e n t a r, s a ú d e , p r o t a g o n i s m o
pública federal, nos ter mos do decreto
infanto-juvenil e captação e gestão de
de 18 de setembro de 1967, e está
recursos.
credenciado como participante do Pro-
- Análises de projetos sociais, com a
grama Fome Zero, sob o número 1.101.
elaboração de pareceres, a partir da
Sua missão é propiciar aos setores mais
demanda de agências e organizações
pobres e excluídos da sociedade a ob-
que apóiam esses projetos.
tenção de melhoria das próprias condi-
ções de vida, estimulando reflexões e - Realização per manente de pesquisas

pág. 210, jul/dez 2003


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sociológicas, voltadas a investigar, uso por trabalhadores e formadores


entre outros temas, religião, realida- sindicais.
de urbana e ambiente educacional,
- Avaliação do programa de formadores
além de seminários sobre temas so-
de lideranças sindicais do Departa-
ciais relevantes.
mento Intersindical de Estatística e
- Publicação de séries de livros e ca- Estudos Sócio-Econômicos (DIEESE),
der nos temáticos, abordando temas com financiamento do Banco
sociais da atualidade, a partir das pró- Interamericano de Desenvolvimento.
prias pesquisas e atividades.
- Pesquisa de dados secundários, pes-
- Elaboração e distribuição de materi- quisa de opinião e levantamento en-
ais didáticos de auto-instrução para tre formadores de opinião de carac-

Fachada da sede do Centro de Estatística Religiosa e Investigações Sociais – CERIS.

Acervo, Rio de Janeiro, v. 16, n o 2, p. 209-212, jul/dez 2003 - pág. 211


A C E

terísticas socioambientais do bairro com a Fundação Ford.


de Santa Teresa, no sentido da elabo-
- Convênio com o Instituto de
ração da Agenda 21 local do bairro,
Tecnologia Social, para a realização
em parceria com a ONG Viva Santa.
do Centro Brasileiro de Referência em
- Concurso Nacional Ação Durban, com Tecnologia Social.
o objetivo de premiar ações de orga-
O CERIS desenvolve suas ações por meio
nizações da sociedade civil brasilei-
de uma equipe multidisciplinar de técni-
ra, orientadas pelo protocolo da Con-
cos e profissionais de apoio, aos quais
ferência das Nações Unidas contra o
se incorporam outros, temporariamente,
Racismo, a Discriminação Racial, a
na medida da necessidade dos projetos.
Xenofobia e a Intolerância Correlata,
realizada em Durban, África do Sul, Artigo recebido para publicação em se-
em setembro de 2001, em parceria tembro de 2003.

pág. 212, jul/dez 2003


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ZIEGLER, Jean. Les vivants et les morts . Paris: Seuil, 1977.

pág. 218, jul/dez 2003


R V O

Instruções aos
Colaboradores

I. A revista Acervo , de periodicidade se- IV. O material para publicação deve ser
mestral, dedica cada número a um encaminhado em uma via impressa e
tema distinto, e tem por objetivo di- uma em disquete ou por intermédio
vulgar e potencializar fontes de pes- de e-mail com arquivo anexado, no pro-
quisa nas áreas de ciências humanas grama Word 7.0 ou compatível, acom-
e sociais e documentação. Acervo panhado de resumo em português e
aceita somente trabalhos inéditos, inglês, com cerca de cinco linhas cada.
sob a for ma de artigos e resenhas. Os textos devem ter cerca de 1 5
laudas, excetuando-se as resenhas,
II. Todos os textos recebidos são subme-
com aproximadamente cinco laudas,
tidos ao Conselho Editorial, que pode
e conter de três a cinco palavras-cha-
recorrer, sempre que necessário, a
ve. Após o título do artigo constam
pareceristas.
as referências do autor (instituição,

III. O editor reserva-se o direito de efetu- cargo, titulação).

ar adaptações, cortes e alterações nos V. Devem ser enviadas também de três


trabalhos recebidos para adequá-los a cinco imagens em preto e branco,
às normas da revista, respeitando o com as respectivas legendas e refe-
conteúdo do texto e o estilo do autor. rências, preferencialmente com indi-
Os textos em língua estrangeira são cação, no verso, sobre sua localiza-
traduzidos para o português. ção no texto. As ilustrações devem ser

Acervo, Rio de Janeiro, v. 16, n o 2, p. 219-220, jul/dez 2003 - pág. 219


A C E

remetidas em papel fotográfico. Artigo em periódico: JAMESON,


Fredric. “Pós-modernidade e socieda-
VI. As notas figuram no final do texto,
de de consumo”. Novos Estudos
em algarismo arábico. A citação bi-
CEBRAP. São Paulo: nº 12, jun.
bliográfica deve ser completa quan-
1985, pp.16-26.
do o autor e a obra estiverem sendo
indicados pela primeira vez. Ex: Re- Tese acadêmica: ANDRADE, Ana Ma-
nato Ortiz, A moderna tradição bra- ria Mauad de Sousa. Sob o signo da
sileira, São Paulo, Brasiliense, 1991, imagem : a produção da fotografia e
p. 28. o controle dos códigos de represen-
VII. Em caso de repetição, utilizar Rena- tação social da classe dominante no
to Ortiz, op. cit., p. 22. Rio de Janeiro, na primeira metade
do século XIX. Tese de
VIII.A bibliografia é dispensável. Caso o
doutoramento em história. Niterói:
autor considere relevante, deve
Universidade Federal Fluminense,
relacioná-la ao final do trabalho. Es-
1990.
sas referências serão publicadas na
seção BIBLIOGRAFIA, figurando em IX. Caso o artigo ou resenha seja publi-
ordem alfabética, conforme os cado, o autor terá direito a cinco
exemplos abaixo: exemplares da revista.
Livro: FERNANDES, Florestan. A re-
X. As colaborações poderão ser envia-
volução burguesa no Brasil . Rio de
das para o seguinte endereço:
Janeiro: Zahar, 1976.
Revista Acervo
Coletânea: REIS FILHO, Daniel Aarão
e SÁ, Jair Ferreira de (orgs.). Ima- Arquivo Nacional – Coordenação-Geral
gens da revolução: documentos po- de Acesso e Difusão Documental
líticos das organizações clandestinas
Rua Azeredo Coutinho, 77 – sala 303
de esquerda de 1961 a 1971. São
Centro – Rio de Janeiro – RJ – Brasil
Paulo: Marco Zero, 1985.
20230-170
Artigo em coletânea: LUZ, Rogerio.
“Cinema e psicanálise: a experiên- XI. Infor mações sobre o periódico po-
cia ilusória”. Em Experiência clínica dem ser solicitadas pelo telefone
e experiência estética . Rio de Janei- (21) 2224-4525 ou via e-mail
ro: Revinter, 1998. (difusaoacervo@arquivonacional.gov.br).

pág. 220, jul/dez 2003

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