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Glauco Mattoso: O processo criativo do escritor

maldito.
Por Redação - 25 de Janeiro de 2018

Por Caio Gagliardi & Pedro Marques

Ao longo de três décadas de intensa atividade intelectual, o poeta, ficcionista, ensaísta, letrista,
colunista, “fanzineiro” e tradutor Glauco Mattoso (pseudônimo de Pedro José Ferreira da Silva,
paulistano de 1951) vem acumulando, entre entrevistas e depoimentos, um número significativo
de testemunhos sobre seus mais de quatro mil sonetos, cerca de 20 livros (4 deles inéditos) e
uma antologia de próprio punho, Poesia Digesta (1974-2004). Afora esses textos, matérias sobre
seu perfil pessoal, e declarações de outros escritores, é ínfima a resposta crítica à sua poesia.

Se, por um lado, essa desproporção evidencia o acréscimo de significativo volume documental a
ser investigado, por outro, deve ser encarada com método, porque o reconhecimento desses
textos requer atenção sobre a necessidade de distanciamento crítico dos enfoques, dos
propósitos, e da linguagem de que o poeta se vale nessas ocasiões. Uma linguagem, em síntese,
eivada de referências à sua história pessoal, que opera a serviço da própria poesia, mas em
termos de expressão autobiográfica.

Mattoso atribui à formação como bibliotecário (formou-se também em Letras Vernáculas, na USP)
a poesia meticulosamente organizada em séries temáticas; à cegueira (decorrente de um
glaucoma progressivo que lhe roubou integralmente a visão em 1995), a predileção pela forma
fixa, nomeadamente o soneto (que o permitiria escrever de memória), e o pseudônimo
(glaucomatoso: “Adj. e s.m. Que ou aquele que tem glaucoma”); à condição de homossexual, não
raramente associada à deficiência visual, a autovitimação e a segregação social; e às
humilhações vivenciadas na infância, o posicionamento contracultural, norteado pela denúncia à
opressão (da ditadura ao trote), da sátira à vida política e burguesa, do escárnio cultural, da
brutalidade social, da provocação à ordem, do fetichismo podólatra, da simbologia fecal e da
obscenidade. G. Mattoso entende, em síntese, o exercício da poesia como forma de “vingança
mental” contra humilhações sobretudo pessoais.

Com os mais incautos, essa iniciativa corre o risco de fazer desviar a atenção do texto para a
personalidade e a biografia do poeta. Segundo esses testemunhos, a poesia é encarada como
“solução paradoxal” aos percalços da vida. Do ponto de vista literário, o segundo termo da
expressão é o mais produtivo, uma vez que a idéia de solução não se associa ao sujeito, mas à
personalidade literária criada por Mattoso.

Se o autor pensa e vive como diz, se sua poesia o ajuda a superar um trauma de infância, ou se
ela é ainda consequência disso, o crítico literário não está apto a testar sua eficácia, ou a entrar
no mérito moral dessas questões. O seu trabalho se destina a colocar de lado curiosidades
antropológicas, e tratar não só desses temas, como da própria confissão em si, como partes de
uma obra em progresso, e, portanto, efeitos do trabalho com o estilo.

Não se trata de impugnar possíveis discussões que se travem em termos de veracidade. Mas de
enxergá-las como componentes do culto à personalidade, e da atração pelas definições de escola
(“marginal”, “punk”, “pós-concreto”, “maldito”, “pós-maldito”). Sobram rótulos nesse sentido,
expressões cunhadas pelo próprio poeta para designar diferentes estágios que marcaram sua
trajetória.

Um exemplo histórico: o “datilograffiti”, do “Jornal Dobrabil”, que designa um fanzine de protesto


político, escrito à máquina, em que o poeta incorpora a exploração espacial da página e
diferentes tamanhos de fontes, já praticados pelos concretistas, ao prosaísmo do que chama de
“literatura de mictório”, ou seja, grafites de banheiro público. Ou o caso mais recente do
“barrockismo”, em que alia ao rigor formal do soneto o vocabulário chulo, o lugar-comum, a
temática cotidiana e a provocação.

Ainda distante de receber a atenção crítica merecida, Glauco Mattoso é hoje um exemplo raro em
nossa literatura, por apresentar domínio absoluto (respaldado por desenvolvimento teórico) sobre
as técnicas que emprega, ampla consciência do papel e dos vetores de sua poesia, erudição
aliada ao uso variado e criativo da cultura popular, fisionomia autoral inconfundível, e postura
crítica provocativa e inconformista diante dos mais diversos aspectos sociais. Não mais do que
uma pequena amostra do amplo lastro de atributos do poeta, a entrevista que se segue justifica
plenamente essas palavras.

Glauco, sua poesia se afirma num registro de escrita desalinhado do cenário mais
visível no país. O desalinho não significa, contudo, orfandade. O terreno por onde ela
envereda é, grosso modo, o da sátira. Nomes como Marcial, Catulo, Aretino, Rabelais,
Cervantes, Gregório de Matos, Bocage, Laurindo Rabelo e Apollinaire surgem
naturalmente como heranças literárias.

Mote

Dois corações que se amam,

Sem falar se comunicam.

Glosa

A freira que madre chamam,

E o frade, que é frei Carvalho,

Sustentam com seu trabalho

Dois corações que se amam.


E tão bem se verificam

Com manobras tão seguras

Que, trabalhando às escuras,

Sem falar se comunicam.

(Laurindo Rabelo)

Mote

Não sei quem diabo inventou

mulher, cachorro e menino!

Glosa

Agora que cego estou,

só mulher tem dó de mim;

macho zomba! Azar assim

não sei quem diabo inventou!

Na fossa mais fundo vou

quando meu lado canino

assumo e, então, me imagino

lambendo o pé dum frangote!

De três bichos fiz meu mote:

mulher, cachorro e menino!

(Glauco Mattoso)

Ainda que seja instigante considerá-la sobre o pano de fundo de seus antecessores,
nos seus poemas a sátira parece ter efeito muito particular. Será relevante considerar
que um dos principais alvos da sátira mattosiana seja justamente a figura de seu
autor?
Glauco Mattoso: Acho que no meu caso a sátira é mais autofágica. Bocage e outros fazem seu
auto-retrato em algum momento (lembremos do famoso soneto bocagiano em que o autor se diz
“bem servido de pés”), mas eu converto o auto-retrato em autoflagelação, um recurso que, ao
mesmo tempo que exorciza os fantasmas e demônios que me assombram, atrai a curiosidade
dita “mórbida” da multidão que se aglomera na praça para ver o palhaço cego ateando fogo às
vestes e dançando para divertir a platéia. O diferencial talvez esteja no grau de desgraça
pessoal, que, no plano literário, traduz-se em “maldição poética”: enquanto outros menestréis
alfinetavam o poder político que os perseguia ou a moral social que os patrulhava, eu parto da
própria deficiência física (da qual tiro o nome de pluma) para deblaterar contra um poder até
mais alto e absoluto – o do dito Onipotente. Além disso, há que ressaltar que, se não me engajo
numa trincheira política (esquerdista ou direitista) nem estética (passadista ou futurista), não
posso me apoiar na cômoda perspectiva do maniqueísmo e tenho que voltar minha metralhadora
giratória para todos os lados. Sendo assim, meu poder de fogo só pode ser efetivo se eu partir do
princípio de que não devo poupar nem a mim mesmo. Só assim ganho, digamos, “autoridade
imoral” para sair dando porrada em qualquer um e em todo mundo.

A ótica da sua história pessoal, do jovem homossexual abusado e humilhado, tem


contrapartida poética. A reação mais contundente às vicissitudes do passado parece
residir justamente numa espécie de resignação calculada: ao invés de devolver o
pontapé, sublima-se o chute, oferece-se a outra face, empina-se o quadril, venera-se o
pé. Assim, o objeto de temor, a bota, é transfigurado em objeto de desejo. Fetichizam-
se os mecanismos de opressão, desarmando o agressor. Sua poesia leva o opressor a
confrontar-se com o próprio sadismo por meio da postura masoquista do oprimido?

SONETO ASSUMIDO [509]

Mattoso, que nasceu deficiente,

ainda foi currado em plena infância:

lambeu com nojo o pé; chupou com ânsia

o pau; mijo engoliu, salgado e quente.

Escravo dos moleques, se ressente

do trauma e se tornou da intolerância

um nu e cru cantor, mesmo à distância,

enquanto a luz se apaga em sua lente.


Tortura, humilhação e o que se excreta

são temas que abordou, na mais castiça

e chula das linguagens, o antiesteta.

Merece o que o vaidoso não cobiça:

um título que, além de ser “poeta”,

será “da crueldade” por justiça.

E, por outro lado, em lugar da panfletagem contra as diferentes formas de violência,


ao descrever com detalhes a ação de quem violenta, acaba-se fazendo o leitor provar,
não sem incômodo, o sabor de ser opressor?

SONETO DELATADO [584]

Atado ao pau-de-arara, o preso aguarda

que todos se acomodem. Se depara

ali o mesmo informante que o dedara.

Alguns vêm à paisana, outros de farda.

Início da sessão. Alguém não tarda

a rir do torturado, cuja cara

contorce-se em esgares. A taquara

penetra-lhe no cu, que se acovarda.

A certa altura, todos tomam parte,

tirando uma casquinha. O eletrochoque

funciona em cada mão, até que farte.

Na boca o prisioneiro sente o toque


do tênis do cagueta, o que mais arte

revela quando um rosto chute ou soque.

G.M.: Cada vez mais me convenço de que o universo lógico no qual raciocinamos não é apenas
dicotômico, como as noções binárias da cibernética, nem apenas maniqueísta, como os conceitos
éticos da história, mas sim oximorônico, ou seja, a dialética da contradição humana se sintetiza
em cada indivíduo, que passa a ser, assumidamente ou não, mocinho e bandido ao mesmo
tempo, médico num momento e monstro no outro instante. Daí por que insisto em desmascarar
no sádico o impulso masoquista e vice-versa, ou em desmascarar nos humanistas o que chamo
de “desumanismo”. Posso contrariar o pensamento de Deleuze, que acha ser impossível que um
sádico compartilhe sua tendência com um masoquista (já que um quer que o outro não queira e
o outro faz que não quer o que quer), mas sei que, no fundo, o opressor só desfruta de seu poder
ao imaginar o que o oprimido está sentindo, enquanto o oprimido se sente mais oprimido quando
imagina o que faria caso exercesse o mesmo poder e tivesse a chance da vingança… Em última
análise, denuncio a fragilidade geral e particular do homem, que, para desespero dos
nietzschianos, é muito mais subumano que super-herói.

Ainda tratando o pólo opressor-oprimido, central em sua poesia, dois nomes, entre
tantos, vêm à tona: o do poeta corsário, ensaísta e cineasta Pier Paolo Pasolini, e o do
dramaturgo Jean Genet. Que a sua poesia dialogue com esses autores, parece
bastante claro. Mas gostaríamos de saber como, do seu ponto de vista, esse diálogo
se estabelece.

G.M.: Sou cinéfilo (agora de memória) e curto Pasolini, mas acima dele curto o Kubrick de
“Laranja mecânica”, cujo interlocutor, no caso, é Burgess. O interlocutor de Pasolini é Sade em
“Salò”, mas eu prefiro me reportar ao próprio marquês de “Os 120 dias de Sodoma” para não cair
no circunstancial esquerdismo antifascista. Quanto a Genet, acho-o mais autêntico e espontâneo
quando recapitula os abusos que sofreu, ainda adolescente, na FEBEM francesa retratada em “O
milagre da rosa”. Em ambos o que me fala de perto é a intimidade com a crueldade, e nesse
sentido alguns me associam a Artaud, quando me rotulam de “poeta da crueldade”. Digamos que
não estou falando sozinho quando se trata de reunir um grupo de discussão em torno da arte
humana de tripudiar sobre o semelhante, que se discrimina como “diferente” apenas por
pretexto para a intolerância…

“Não há arte revolucionária sem forma revolucionária”. Eis uma das pedras-de-toque
do Concretismo, extraída de Maiakovski. Da aplicação dessa máxima vanguardista à
sua poesia extraem-se duas perguntas: pode-se falar num caráter “revolucionário” da
poesia nos dias de hoje, ou mesmo em “poetas revolucionários”? Segundo: você se
assume como um dos responsáveis por transformar o soneto, forma tradicionalíssima,
em modelo de transgressão, ou espaço de experimentação, numa poesia
contemporânea em que se banalizou o verso livre?
G.M.: Cada geração literária busca conquistar seu espaço fazendo o máximo de barulho em torno
daquilo que propõe como algo novo. Na verdade o que prevalece é o velho conceito bíblico de
que não há nada de novo sob o sol. O que há é mais ou menos conhecimento de causa, mais ou
menos rigor. Os concretistas primaram pelo “ostinato rigore” e temos que tirar o chapéu para
eles. Os modernistas também entendiam do riscado, diferentemente dos atuais poetas, que
ouvem cantar o galo sem saber onde, e só praticam o verso livre porque não conhecem outra
maneira de versejar. Um Mário de Andrade, tal como um Augusto de Campos, sabia
perfeitamente como compor um soneto dentro do cânone. Mário chegou a fazer alguns, por sinal
belíssimos, e o próprio Augusto me disse que só fez dois ou três porque não quis fazer mais. Mas,
quando eu conversava com ele sobre metrificação, notei como é exímio conhecedor das regras.
Isso é o que legitima um discurso vanguardista, ou “revolucionário”, como queiram: transgredir
sabendo exatamente o que se está transgredindo. Mas quando aquela transgressão se generaliza
e se banaliza, já não há transgressão, assim como já não há revolução quando o poder
conquistado se torna totalitário. Eu uso, sim, o soneto como laboratório para meus desvarios
fetichistas e meus desaforos desumanistas, mas não me pretendo messiânico nem
fundamentalista: só espero que os mais informados percebam que, quando sigo regras, é porque
as reconheço, e, quando as quebro, é porque as conheço.

Sua “Teoria do Soneto”, ainda não saída em livro mas disponível no site oficial,
contribui para o estudo e compreensão do gênero. Aí se obtêm classificações
esclarecedoras do ponto de vista crítico-didático. Os sonetos que se voltam ao próprio
“desafio da composição e à responsabilidade do sonetista”, são chamados de
“metassonetos”. Os que descrevem a marcha da própria construção do soneto:
“processonetos”. Alguns respectivos exemplos fornecidos por você:

SONETO XX

Amo o soneto porque é molde antigo

para dizer as cousas sempre novas;

porque depois de não sei quantas provas,

um pudor virginal guarda consigo.

O soneto é mais puro do que as trovas.

Sim, Bem-Amada, eu nele apenas digo

tudo que é nobre em mim, tudo que aprovas

e é meu prêmio na vida, e é meu castigo.

É fino e breve, e tem segredos de arte;

Uma pureza, enfim, tão cintilante

que, quando um dia desejei cantar-te,


os teus encantos rútilos, diversos,

pus em soneto; e desde aquele instante,

só sei rimar-te com quatorze versos.

(Sílvio Valente)

SONETO VAZIO

Se este é o primeiro verso de um soneto,

eis o segundo do soneto acima.

Terceiro verso: Santo Deus, que meto

agora aqui no quarto? Desanima!

E, lido o quinto verso, lhes prometo

um sexto! E atenção, que já termina!

No sétimo, reparo que o quarteto

acaba neste oitavo. E tome a rima!

E aqui, meu nono verso, meus senhores,

no décimo, sugiro-lhes paciência,

do undécimo habilmente me descarto!

Duodécimo: E que tal falar de amores?

Mas… Décimo-terceiro! A penitência

tem chave de ouro, enfim: décimo-quarto!

(Eno Teodoro Wanke)

Você mesmo cria, batiza e pratica uma nova espécie de soneto quanto à disposição
das estrofes: o “Paulindrômico”, cuja estrofação dístico / terceto / quarteto / terceto /
dístico procura o “movimento palindrômico”:

SONETO TORRESMISTA [426]

Não basta a ditadura que já dura

e vem a ditadura antigordura!

Saímos do regime militar,

caímos no regime do regime.

Censuram-nos até no paladar!

Trabalho, horário, imposto, compromisso.

Orgasmo não se tem como se quer.

Só sobra o bom do garfo e da colher,

e os nazis nariz metem até nisso.

Maldita seja a mídia, sempre a dar

espaço à medicina que reprime!

Gestapo da “saúde” e “bem-estar”!

Resista! Coma! Abaixo a ditadura!

A luta tem um símbolo: FRITURA!

São várias espécies examinadas. Mas há uma bem abastardada que não parece ter
chamado sua atenção. Com o modernismo, que militou contra o molde de 14 versos
banalizado à época, muitos poetas, desorientados que ficaram, compuseram peças em
versos livres ou polimétricos à sombra da forma consagrada. Era um tipo de “soneto
elástico”, podia ter mais ou menos de 10 a 18 versos de qualquer extensão e variáveis
entre si. O tamanho e organização das estrofes também furavam as regras, mas o
poema buscava a proporção do soneto; tematizava, expunha e concluía um assunto.
Você concorda quanto a essa presença clandestina e poderosa do soneto? Dois
exemplos de conhecedores do soneto clássico que passaram ao verso livre:

NOITE
As estrelas não são fictícias, são existentes,

Mas parecem fictícias…

Todos os sonhos são verdadeiros

Mas parecem mover-se num plano irreal.

É de mim que nasce o mal,

Todas as coisas são puras.

Sou como um morto andando à toa.

Oh, este pensamento

Não vem de mim, vem do alto.

Tive de pensá-lo porque se fez presente

Como o abismo ao suicida.

Desejo transcendê-lo

E transformar o mal imaginário

Num bem presente e invisível.

(Dante Milano)

PENSÃO FAMILIAR

Jardim da pensãozinha burguesa.

Gatos espapaçados ao sol.

A tiririca sitia os canteiros chatos.

O sol acaba de crestar os gosmilhos que murcharam.

Os girassóis

amarelo!
resistem.

E as dálias, rechonchudas, plebéias, dominicais.

Um gatinho faz pipi.

Com gestos de garçom de restaurant-Palace

Encobre cuidadosamente a mijadinha.

Sai vibrando com elegância a patinha direita:

– É a única criatura fina na pensãozinha burguesa.

(Manuel Bandeira)

G.M.: Não concordo que um poema estrófica e metricamente aleatório possa ser considerado
como soneto. Não considero nem o estrambote como algo válido, a não ser como filigrana
supérflua no exibicionismo da perícia do poeta. Qualquer poema, seja ou não composto em
molde fixo, pode desempenhar satisfatoriamente a função silogística do soneto ou dialógica da
glosa – desde que o autor não esteja apenas divagando e se proponha a desenvolver o tema de
forma consequente. Não estou desmerecendo o poema livre nem o tema vago, pois também
valorizo o nonsense, o surrealismo e até o bestialógico. Mas se queremos um soneto temos de ter
catorze versos, como temos um haicai com três, uma trova com quatro, um limerick com cinco e
uma glosa com dez. Podemos, sim, variar na disposição das estrofes (e por isso mesmo existe o
molde petrarquiano e o shakespeariano), mas a dosagem é essencial. Quando criei o
“Paulindrômico” e outros do mesmo tipo era para aprimorar uma proposta do Paulo Henriques
Britto, mas sem sair da posologia dos catorze decassílabos heróicos (ocasionalmente sáficos). Já
as designações de “metassoneto” e de “processoneto” eu as propus unicamente como alusivas a
soluções temáticas auto-referentes à técnica do sonetista: mero detalhismo terminológico.

Glauco, hoje você é dos nossos maiores recicladores de formas poéticas tradicionais,
inclusive das enraizadas na poesia popular, especialmente nordestina. Do ponto de
vista técnico, que alterações significativas você realizou nessas formas?

G.M.: Nada de importante, quanto à forma: apenas faço questão de privilegiar a sinérese, ao
passo que os cordelistas e repentistas aceitam mais naturalmente a diérese. Assim, enquanto o
verso deles me parece ora frouxo ora de pé quebrado, na dicção popular nordestina soam justos
porque o cantador não funde os encontros vocálicos e mantém hiatos tipo “com muito jeito e
agrado” (e/agrado) em Moysés Sesyom ou “por que tamanha judiação” (judi/ação) em Luiz
Gonzaga/Humberto Teixeira. Mas no tratamento temático, aí sim, sou bastante anticonvencional,
pois, ao contrário dos glosadores e pelejadores que se vangloriam de seus méritos e suas
virtudes, alardeando bravura e virilidade (postura que chamo de “cabramachismo”), eu me
“inglorifico” como o anti-herói cego, gay e masoquista, que alardeia seus fiascos e vícios (postura
que chamo de “xibunguismo”).

Ideologicamente falando, ocorre-nos que sob a máscara de uma poesia libertina você
tenha produzido uma poesia libertária. Você vê algum prejuízo ao se estabelecer tal
diferença para descrever sua obra?

G.M.: Pelo contrário, se alguém identifica um alcance ético no meu projeto antiestético e um
alcance humanista no meu desumanismo, é porque consegui passar aquela vocação oximorônica,
intrínseca ao que chamo de “barrockismo” no verso, isto é, a capacidade de “duplipensar”
positivamente, não a serviço da opressão, como sugeria Orwell, mas a serviço da desrepressão.

Podemos considerar que uma das suas fontes literárias é aquilo que, fora do plano da
escrita mais comum, se configura como aliterário, antiestético. Que efeito de sentido
você busca produzir quando transforma o abjeto em poético?

G.M.: Antes de mais nada, quero desabafar contra a maior das indignidades para um ser vivo, a
privação de uma aptidão vital como a visão, a audição ou a locomoção. Não importa se tal
mutilação foi causada pelo próprio homem – como no crime comum, na tortura policial ou na
atrocidade da guerra – ou pela dita “vontade divina”. Essa é a maior obscenidade: a injustiça.
Fora disso, qualquer tabu – inclusive os higiênicos – pode ser revertido em gozo, como
compensação para os traumas sofridos. Assim, como já foi lembrado aqui, o masoquismo irônico
compensa a barbárie franca, e o sadismo cínico compensa a civilidade hipócrita.

Por curioso que pareça, Mário de Andrade usava o adjetivo “viril” para qualificar
poesia. A sua identidade gay é também literária, Glauco?

G.M.: Se considerarmos a estratégia xibunguista como um mecanismo de transgressão ética e


estética, bem como o fetichismo andropodólatra nos sonetos mais explícitos, a resposta é sim.
Alguns acadêmicos nos States e na Europa estão analisando minha obra à luz das teorias mais
recentes, como a da sensibilidade “queer”, e concluem que já nem se trata, no meu caso, duma
reafirmação da identidade gay como questionamento da heterossexualidade, mas sim duma
proposta alternativa (portanto mais que pós-moderna) que desvia o foco das territorialidades
erógenas (falocentrismo, penetracionismo, analidade, etc.) e aponta para uma diversidade mais
“neutra” ou degenérica – afinal, o pé em si não tem sexo…

A cegueira, por decorrência do glaucoma, não lhe roubou a veia poética. Mas o levou a
esmerar-se na forma fixa. Um programa especial de computador sonoriza as palavras,
devolvendo a você aquilo que digita. Você produz mentalmente todo o poema e só
depois o transcreve? Como se dá esse processo?

G.M.: Já tentei explicar isso várias vezes, mas só consigo achar alguma pista na bruxaria pura.
Acontece que só digito no computador falante durante o dia, pois à noite ele ecoa mais alto e
perturba o sono alheio. E acontece, porém, que a maioria dos sonetos mais “vomitados” me
vinha no meio da noite, quando eu já estava deitado e não podia levantar para ligar o
computador. Então a coisa se passava como se fosse uma possessão demoníaca: entre os
constantes pesadelos e a consequente insônia, a masturbação e o orgasmo faziam o
contraponto. Nesse intervalo, os versos iam se formando na cabeça e a memória ia registrando,
com tamanha nitidez que, mesmo depois de voltar a dormir e sonhar, eu era capaz de recuperar
todo o soneto na manhã seguinte, quando o digitava e salvava. Hoje, que já completei os mil
sonetos que planejei, até parece que tudo não passou dum transe, mas, como creio em
influências esotéricas (nada a ver com psicografia), acho que fui, de alguma forma, “assistido”
pelos, digamos, desencarnados…
No “Jornal Dobrabil”, também em publicações como “Revista Dedo Mingo”, “Memórias
de um Pueteiro” e “Línguas na Papa”, você explorou o espaço visual da página, a
tipografia das letras, evidenciando a herança concretista. É o que você batizou de
“datilograffiti” – uma caricatura do movimento. Você manteve contato com o grupo
concretista? Depois a sua poesia deixou de lado essas experiências, vieram a cegueira
e, por decorrência, as formas fixas. Independentemente de sua trajetória pessoal,
você considera a poesia concreta datada, ou visualiza um legado produtivo deixado
pelo grupo para as gerações seguintes?

G.M.: Nunca perdi o contato com os concretistas, mestres ou discípulos. Claro que a contribuição
do concretismo marcou toda a minha geração e na certa continuará produzindo efeitos em
futuras gerações. Mas como na história literária tudo é cíclico, a tendência é que o concretismo
seja considerado superado (como o soneto já foi considerado), até que alguém o revisite, recicle,
releia, recrie, ou algo assim – sabe-se lá que termo seria então usado, talvez “redesconstrução”,
ou “neodesconstrutivismo”, ou “verbivoco-revisionismo”…

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