You are on page 1of 2

O ROMANSCISTA, FILÓSOFO DO HOMEM COMUM

Adolfo Casais Monteiro

Entre o homem comum, o homem da rua, o homem-massa, esse homem através do qual a vida
passa sem que ele possa ou saiba detê-la, e o filósofo, ao qual cumpre ser capaz de “suspender o tempo”,
e fazê-lo parar, que dá conta de como ele flui, e nos dá o seu “porquê”, parece-me que a posição do
romancista é ser aquêle que, a meia distância de ambos, nem só homem-massa, nem só filósofo, como se
o atravessasse um fio que unisse este àquele, ao mesmo tempo fixa as imagens do tempo que flui e lhes
instila o “sentido”, a significação, que ao filósofo só importam despojados da cor das horas, do efêmero
do sentir.
Bem sei que em vez de romancista apenas, poderia ter acrescentado: o poeta, o dramaturgo. Mas
importava-me escolher o romancista, precisamente por ele constituir, neste plano, o melhor exemplo. O
romancista é, de fato, o filósofo do homem comum, isto é, aquêle que lhe fornece, por assim dizer, o fio
de prumo pelo qual afere a sua própria estabilidade. Para o homem-massa, o filósofo é, e não podia ser de
outra maneira, um especialista; já não fala a mesma língua que ele, gira noutra esfera; mas o romancista
está ao seu alcance, porque “pensa” com acontecimentos, “pensa” com personagens, “pensa” com o
próprio fluxo da vida – e lhe apresenta exemplos, como que vivos, em vez de símbolos e de palavras em
cifra.
Para o homem comum, o romance veio substituir aquela sabedoria que em épocas mais patriarcais
lhe forneciam as histórias dos deuses, a Bíblia, os provérbios, em que a experiência se oferecia reduzida
a exemplos, ou, quando através de personagens, tornada exemplar, e símbolo, sempre. Hoje, os ditados já
quase que deixaram de andar na boca do homem da rua – e isto é, sem dúvida, progresso. Os ditados são,
de fato, a literatura dos analfabetos, a literatura sintética dos tempos sem luzes – o Reader´s Digest dos
séculos sem cultura (e não há dúvida de que a proliferação dos digestos de toda a espécie representa um
retorcesso para o homem comum, que, já sabendo ler, se alimenta contudo só de resíduos – e que
resíduos, em geral!).
Tem-se pretendido dar como “científica” uma falaz distinção entre interesses subjetivos e objetivos
do homem, isto é, entre o que êle precisa de saber de si e o que precisa de saber do resto do mundo –
homem e natureza. O certo é porém que só o homem que já sabe alguma coisa de si tem possibilidades de
começar a saber do mundo que o rodeia, pois é sempre ele próprio a única e verdadeira medida de tôdas
as coisas – dizia-o já a sabedoria órfica, e di-lo afinal o pai do pensamento moderno: Cogito ergo sum; o
caminho, que acaba no homem, no homem tem de começar.
À parte o que ao homem importa saber a respeito do meio, quer físico, quer humano, e das
condições que num e noutro lhe são feitas, é-lhe primacial a urgência de saber quem êle próprio é –
mesmo que o não pergunte, mesmo que esta interrogação se traduza apenas na necessidade de afirmar e
de negar, em suma, de ter uma opinião.
Pois o romance introduz o homem neste “seu” mundo que êle muitas vezes ignora – ignorando-se.
E assim ele subjetiva o mundo, ao mesmo tempo que se objetiva a si próprio (oxalá não me leia um
filósofo, que se escandalizaria, justificadamente, com o simplismo deste vocabulário!), aprendendo a
tomar a medida de si próprio, a encontrar o elo que o dá ao mundo, ao mesmo tempo que lhe dá o mundo
a êle.
O romance é hoje, e para multidões cada vez mais numerosas, um dos grandes instrumentos com
que o homem-massa se ajuda a superar a sua condição passiva. Porque o homem pode realmente estar no
mundo como um simples instrumento, ser apenas “agido” – mas não se define verdadeiramente como
homem senão quando, pelo menos, ganha a consciência dessa condição – o que é já superá-la. Homem, é-
o só verdadeiramente, porém, desde que a sua consciência participa da vida não para a conhecer, mas para
a transformar. E que pode ele saber de transformar o mundo, quando ainda ignora quem ele próprio seja?
Importa muito menos aos homens possuir um sistema que tudo explique do que conhecer-se. E,
mesmo só conhecendo-se, ele poderá distinguir o que importa principalmente à sua vida, do que só
importa ocasional, acidentalmente. A superstição (seja ela religiosa ou social) nasce precisamente
naqueles que não têm com que medir-se a si, nem com que medir as coisas, com que distinguir os
fantasmas do real; para quem, por exemplo, acredita numa coisa “porque vem no jornal”.
A literatura foi sempre, ou perseguida, ou vista com maus olhos por todos aquêles cujo interesse
está em que o homem comum não tome consciência de si. Não é o receio determinado desta ou daquela
idéia, é o receio de que o conhecimento da variedade do mundo e da vida, da multiplicidade do real, abra
no homem essa parta da heterodexia que é o espírito crítico. E os grandes passos que o homem deu nos
tempos modernos soa filhos dessa heterodoxia, quando tornada bem comum a massas cada vez maiores.
O romance contribui para integrar o homem em si próprio precisamente na medida em que substitui
formas de participação, de integração na vida, só acessíveis aos que beneficiaram de um nível superior de
cultura. Não penso, é claro, nessa espécie de romances que não passam de subprodutos e meras
especulações comerciais. Falo, sim, dos romances que têm como lugar não um cenário, mas a própria
vida; como personagens, não meros fantoches, mas verdadeiras figuras humanas; que não resolvem
problemas, mas os põem, isto é, que apresentam o homem resolvendo os problemas que a vida lhe põe –
ou não os podendo resolver, o que também é a verdade da vida. E não é uma sutil distinção a que
estabeleço ao dizer que o romance não resolve problemas, mas apresenta o homem resolvendo-o ou
tentando resolvê-los: é que, de fato, o romance não nos dá receitas, mas comunica-nos experiências; faz-
nos repetir, pela imaginação, formas de vida, as mais diversas da nossa; faz-nos estar presentes no mundo
– e torna o mundo presente dentro de cada um de nós.
1949
CASAIS MONTEIRO, Adolfo. O romance (Teoria e prática). Rio de Janeiro: José Olympio, 1964.

You might also like