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O BUDISMO ESOTÉRICO

A.P.SINNETT

PENSAMENTO

ÍNDICE

Prefácio à Edição Comentada............................................................................2


Prefácio da Edição Original...............................................................................5
Ao Leitor..............................................................................................................8
1. INSTRUTORES ESOTÉRICOS...................................................................9
COMENTÁRIOS 15
2. A CONSTITUIÇÃO DO HOMEM.............................................................17
COMENTÁRIOS 22
3. A CADEIA PLANETÁRIA..........................................................................24
COMENTÁRIOS 29
4. OS PERÍODOS DO MUNDO......................................................................31
5. O DEVACHAN..............................................................................................39
COMENTÁRIOS 48
6. KÂMA-LOKA...............................................................................................49
COMENTÁRIOS 55
7. A ONDA DA MARÉ HUMANA..................................................................61
COMENTÁRIOS 66
8. O PROGRESSO DA HUMANIDADE........................................................68
COMENTÁRIOS 75
9. BUDA..............................................................................................................76
10. O NIRVANA................................................................................................83
11. O UNIVERSO..............................................................................................87
12. REVISÃO DA DOUTRINA.......................................................................93

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Prefácio à Edição Comentada

Este livro foi publicado pela primeira vez no começo de 1883. Desde então, recebi
numerosas informações referentes a muitos dos problemas de que trata. Mas apraz-me dizer
que, se os ensinamentos posteriores mostram o caráter incompleto de minha concepção
original da doutrina esotérica, de modo algum eles evidenciam qualquer erro material. Na
verdade, recebi do próprio Grande Adepto, de quem obtive minha instrução, a certeza de que
o livro, como se apresenta agora, é uma exposição segura e digna de confiança do esquema da
Natureza tal como os iniciados da ciência oculta a entendem. Esta pode ser, em futuro
próximo, ampliada consideravelmente, se o interesse que estimula for suficiente para levar a
uma procura acentuada de ensinamentos desse tipo por qualquer um, mas nunca terá de ser
reformada ou justificada. Em vista dessa certeza, parece melhor que eu exponha minhas
conclusões últimas e as minhas informações complementares sob a forma de comentários em
cada um dos ramos do assunto, sem fundi-los no texto original, onde, devido às
circunstâncias, não me disponho a introduzir qualquer alteração. Este é o plano adotado para a
presente edição.
Querendo transmitir meu reconhecimento indireto da harmonia geral a ser estabelecida
entre esses ensinamentos e os reconhecidos dogmas filosóficos de algumas outras grandes
escolas de pensamento hindu, passo aqui a referir-me às críticas a este livro, publicadas na
revista indiana Theosophist, em junho de 1883, por "Um hindu brâmane". Lamenta-se o autor
que, ao interpretar a doutrina esotérica, eu me tenha afastado desnecessariamente da
nomenclatura sânscrita aceita. Entretanto, sua objeção significa simplesmente que, em alguns
casos, dei nomes pouco familiares para idéias já incorporadas aos sagrados escritos hindus, e
que honrei demasiado o sistema religioso comumente conhecido por Budismo, apresentando-
o mais intimamente ligado à doutrina esotérica do que nenhum outro. Diz o meu crítico
brâmane: "A sabedoria popular da maior parte dos hindus até o dia de hoje é mais ou menos
influenciada pela doutrina esotérica ensinada no livro de Mr. Sinnett, impropriamente
denominado O budismo esotérico, enquanto que não existe uma só aldeia ou vilarejo, em
toda a índia, em que o povo não esteja mais ou menos familiarizado com os sublimes
princípios da filosofia Vedanta. ... Os efeitos do karma no próximo nascimento, o gozo de
seus frutos, bons ou maus, num estado subjetivo ou espiritual de existência, anterior à
reencarnação da mônada espiritual neste ou nalgum outro mundo, o vagar das almas
insaciadas ou dos cascões humanos na Terra (Kâma-loka), os períodos malaicos e
manvantáricos... não são apenas inteligíveis, como também, para muitos hindus, são
familiares sob nomes diferentes dos usados pelo autor de O budismo esotérico”. É tanto
melhor que assim seja — permito-me contestar — sob o ângulo dos leitores ocidentais, para
os quais deve ser indiferente se a religião esotérica, hindu ou budista, está mais ou menos
próxima da ciência espiritual absolutamente verdadeira, que por certo não deveria admitir
nome algum que pareça fazê-la solidária, no mundo exterior, a uma fé mais do que a outra. Na
Europa, tudo o que podemos aspirar é chegar à clara compreensão dos princípios essenciais
daquela ciência; e se neste livro encontramos definidos esses princípios, conforme os
representantes ilustrados de mais de uma das grandes crenças orientais, como à altura de
verdades subjacentes a todos os diversos sistemas, estaremos tanto mais propensos a crer que
a presente exposição da doutrina merece nossa atenção.
Com referência à crítica de que os ensinamentos, aqui reduzidos a uma forma
inteligível, estão incorretamente descritos pelo nome que este livro leva, não posso fazer nada
melhor do que citar a nota com que o redator de Theosophist replica a seu colaborador
brâmane. Essa nota diz: "Publicamos a carta anterior porque expressa, em linguagem cortês

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e de modo hábil, as opiniões de grande número de nossos irmãos hindus. Ao mesmo tempo,
deve ser dito que o nome O budismo esotérico foi dado à última publicação de Mr. Sinnett,
não porque a doutrina nela exposta pretenda estar especialmente identificada com qualquer
forma particular de fé, mas porque Budismo significa a doutrina dos Budas, dos Sábios, isto
é, a Religião da Sabedoria". De minha parte, necessito apenas aduzir que aceito e admito
plenamente essa explicação do assunto. Seria, na verdade, uma concepção errônea do
propósito a que este livro responde o fato de supor que se preocupa em recomendar, ao gosto
do diletante moderno, modos de pensamento religioso próprios do Mundo Antigo. As formas
externas e fantasias religiosas, em uma época, podem ser mais puras e, em outra, mais
corrompidas, mas inevitavelmente se adaptam a seu tempo, e seria extravagância imaginar
que se possam substituir umas pelas outras. Esta declaração não é formulada na esperança de
converter em budistas os seguidores de qualquer outro sistema, porém com o fito de
comunicar aos pensadores que nos lêem, tanto no Oriente como no Ocidente, uma série de
idéias-guia, referentes às verdades efetivas da Natureza e aos fatos reais do progresso do
homem através da evolução, e que, tendo sido comunicadas ao autor pêlos filósofos orientais,
amolda-se assim com mais facilidade ao Oriente. Quanto ao valor desses ensinamentos, talvez
se apreciará melhor quando se perceber claramente que seu caráter é mais científico do que
controverto. Ai verdades espirituais, se são verdades, podem evidentemente ser tratado com
espírito no menos científico do que as reações químicas. E nenhum sentimento religioso, de
qualquer espécie que seja, precisa ser perturbado pela importação, ao repertório geral do
conhecimento, de novos descobrimentos sobre a constituição e a natureza do homem, no
plano de suas mais altas atividades. Á religião verdadeira atinaria, eventualmente, com um
procedimento para assimilar muitos conhecimentos recentes, do mesmo modo que sempre
acaba por admitir maior expansão do Conhecimento, no plano físico. À primeira vista, isso
pode confundir noções associadas a crenças religiosas — assim como, no início, a geologia
complicou a cronologia bíblica. Mas com o tempo os homens foram vendo que a essência das
afirmações bíblicas não reside no sentido literal das passagens cosmológicas do Antigo
Testamento, e os conceitos religiosos purificaram-se muito com o subsídio que assim lhes
pôde ser propiciado. Da mesma forma, quando os conhecimentos da ciência positiva
começarem a abranger uma compreensão das leis relativas ao desenvolvimento espiritual do
homem, alguns conceitos errôneos da Natureza, durante muito tempo misturados com
religião, poderão ser suplantados, mas apesar de tudo se descobrirá que as idéias
fundamentais da verdadeira religião foram mais aclaradas e robustecidas, mediante aquele
processo. À medida que tais procedimentos continuam, em especial as dissensões internas do
mundo religioso serão fatalmente superadas. A luta entre seitas pode ser devida apenas à
deficiência da parte dos sectários rivais em compreender os fatos fundamentais. Quem sabe
chegará um dia em que as idéias fundamentais, nas quais a religião se apóia, sejam
compreendidas com a mesma certeza que compreendemos algumas leis físicas elementares e
que as discordâncias sobre elas sejam consideradas ridículas por todas as pessoas instruídas;
então, não haverá lugar para tantas acres divergências no sentimento religioso. As
circunstâncias externas ao pensamento religioso serão diferentes ainda, em diferentes climas e
entre raças diferentes, como diferem a indumentária e o regime alimentar; mas tais diferenças
não causarão antagonismo intelectual.
A meu ver, os fatos fundamentais da natureza indicada são desenvolvidos na
exposição da ciência espiritual que obtivemos agora de nossos amigos orientais. Para os
pensadores religiosos, é completamente inútil afastar-se deles sob a impressão de que esses
argumentos favoreçam algum credo oriental, em detrimento da crença mais generalizada do
Ocidente. Se a ciência médica descobrisse um fato novo sobre o corpo humano, se
desvendasse algum princípio até agora oculto, em que se baseasse o crescimento da pele, da
carne e dos ossos, essa descoberta não seria encarada como uma violação do domínio da

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religião. O domínio da religião poderia considerar-se invadido, por exemplo, por uma
descoberta que, por trás da ação dos nervos, revelasse urna série mais delicada de atividades
que os manipulassem, do mesmo modo como eles manipulam os músculos? De qualquer
modo, malgrado tal descoberta pudesse ser um princípio para reconciliar ciência e religião,
nenhum homem que permita que suas faculdades superiores tomem parte em seus
pensamentos religiosos desprezaria como hostil à religião um fato positivo plenamente
demonstrado da Natureza. Sendo um fato, inevitavelmente se ajustaria a todos os outros fatos,
assim como a verdade religiosa. Isso acontece com a grande massa de informações relativas à
evolução espiritual do homem, compreendida na presente exposição. Nosso melhor intento é
perguntar, antes de nos fixarmos no relato que dou a público. Não se enquadra, sob todos os
seus aspectos, com opiniões preconcebidas. E realmente nos insere numa série de fatos
naturais relacionados com o crescimento e com o desenvolvimento das mais altas faculdades
do homem. Se assim é, podemos sabiamente examinar os fatos, primeiramente com espírito
científico e, depois, deixar que eles exerçam seus efeitos razoáveis e legítimos nas crenças
colaterais.
À medida que a explanação prossegue, ramificando-se em muitas direções, ver-se-á
que a afirmação principal que agora se divulga é uma teoria antropológica que completa e
espiritualiza as noções correntes da evolução física. A teoria que assinala o desenvolvimento
do homem, por meio de sucessivos e graduais aperfeiçoamentos das formas animais, de
geração em geração, é uma teoria muito desinteressante e pobre, se encarada como uma
explicação que compreende a criação inteira. Entretanto, devidamente entendida, facilita o
acesso à compreensão do processo concorrente superior que faz evoluir a alma do homem no
reino espiritual da existência. Á atual visão do assunto reconcilia o método evolucionista com
o anseio profundamente arraigado em cada entidade consciente, de perpetuação da vida
individual. As séries desarticuladas de formas progressivas existentes na Terra não têm
individualidade. À vida de cada uma é, por sua vez, uma operação separada que não encontra
na próxima e similar operação qualquer compensação pêlos sofrimentos que a acompanham.
Nenhuma justiça, nenhum fruto de seus esforços. Todavia, pode-se argumentar, na suposição
de nova e independente criação de uma alma humana, cada vez que nova forma humana é
produzida por desenvolvimento fisiológico, que nos estados espirituais posteriores desta alma
a justiça será concedida. Mas, nesse caso, essa concepção está em desacordo com a idéia
fundamental da evolução que faz depender ou crê fazer depender, em cada caso, a origem da
alma das operações da matéria altamente desenvolvida. Isso não deixa de ser discrepante com
as analogias da Natureza, mas, sem entrar neste assunto, basta por enquanto perceber que a
teoria da evolução espiritual, tal como ela aparece nos ensinamentos da ciência esotérica,
harmoniza-se em todo caso com essas analogias, ao passo que, ao mesmo tempo, coincide
com as exigências da justiça e satisfaz a demanda instintiva, pela continuação da vida
individual.
Esta teoria reconhece a evolução da alma como um processo que é inteiramente
contínuo em si mesmo, embora efetivado, em parte, por intermédio de uma grande série de
formas dissociadas que servem como instrumentos. Deixando de lado, por agora, a metafísica
profunda da teoria que revela a origem do princípio da vida, a primeira causa original do
cosmos, encontramos a alma como uma entidade emergente do reino animal e passando às
formas humanas primigênias, sem estar ainda preparada naquele tempo para a mais elevada
vida intelectual com que estamos familiarizados, no estado presente da humanidade. Porém,
devido às sucessivas encarnações nas formas, cujo aprimoramento físico, sob a lei de Darwin,
está constantemente se ajustando para ser a sua morada a cada retomo à vida objetiva, adquire
gradualmente aquele raio de experiência em que a resultante é o seu mais elevado
desenvolvimento. Nos intervalos entre as suas encarnações físicas, prolonga, desenvolve e por
fim esgota ou transforma as experiências pessoais de cada vida em desenvolvimento

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proporciona abstrato. Esta é a chave da explicação verdadeira daquela dificuldade aparente
que persegue a forma mais crua da teoria da reencarnação, apresentada algumas vezes pela
especulação independente. Cada homem é inconsciente das vidas por que passou
anteriormente, por isso sustenta que as vidas subseqüentes não podem lhe proporcionar
compensação alguma para esta presente. Não se dá conta da enorme importância do estado
espiritual intermediário, no qual de modo algum esquece as aventuras e emoções pessoais
pelas quais passou e durante o qual refina estas em outros tantos progressos cósmicos. Nas
páginas que seguem, tenta-se elucidar este mistério, profundamente interessante. O exame dos
acontecimentos, pêlos quais atualmente passamos, não é só' uma solução dos problemas da
vida e da morte, mas também de muitas das desconcertantes experiências que ocorrem na
região limítrofe entre estas duas condições — ou antes, entre a vida física e a espiritual — que
tanto prenderam a atenção e foram objeto de especulação nos últimos anos, nos países mais
civilizados.

Prefácio da Edição Original

Os ensinamentos compreendidos neste volume lançam luz sobre questões relacionadas


com a doutrina budista, que deixaram perplexos os escritores que se ocuparam dessa religião,
e oferecem, ao mundo, pela primeira vez, uma chave prática para o significado de quase todo
o antigo simbolismo religioso. Mais ainda, uma vez propriamente entendida a doutrina
esotérica, ver-se-á que ela possui razões muito poderosas para que todos os pensadores sérios
lhe dêem atenção. Seus princípios não nos são apresentados como a invenção de algum
fundador ou profeta. Seu testemunho não se baseia em nenhuma escritura. Suas opiniões
sobre a Natureza foram desenvolvidas graças às pesquisas de uma série enorme de
perquiridores, qualificados para sua missão, pela posse de faculdades e percepções espirituais
de uma ordem mais elevada que as pertencentes à humanidade comum. No decorrer dos
tempos, o repertório de conhecimentos assim acumulados, referentes às origens do mundo e
do homem e aos destinos posteriores de nossa raça — relativos também à natureza de outros
mundos e a estados de existência que diferem dos de nossa vida presente — comprovados e
examinados em cada um de seus aspectos, e constantemente sujeitos a completo exame,
chegou a ser encarado por seus defensores como sendo a verdade absoluta, no que diz respeito
às coisas espirituais, ao estado real dos fatos nas vastas regiões de atividade vital, mais além
desta existência terrena.
A filosofia européia, quer se refira à religião, quer à metafísica pura, acostumou-se,
durante tanto tempo, a um sentimento de insegurança nas especulações além dos limites da
experiência física, que os pensadores prudentes dificilmente reconhecem como objeto
razoável de investigação, a verdade absoluta sobre as coisas espirituais. Na Ásia, porém,
adquiriram-se outros hábitos de pensamento. A doutrina secreta, que em extensão
considerável tenho agora a oportunidade de expor, é considerada não só por seus seguidores,
como por grande número dos que nunca esperaram conhecer dela outra coisa do que saber
que existe, como uma mina de conhecimentos inteiramente dignos de fé, da qual todas as
religiões e filosofias tiraram o que possuem de verdade e com os quais toda religião deve
coincidir, se pretende ser um modo de expressão da verdade.

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De fato, isso é uma pretensão audaciosa, mas me aventuro a declarar que o conteúdo
deste livro é de suma importância para o mundo, porque creio que essa pretensão pode ser
justificada.
Não digo que dentro dos limites deste volume se possa provar a autenticidade da
doutrina esotérica. Essa prova não se apresenta por nenhum processo de argumentação, mas
apenas pelo desenvolvimento de per si das faculdades exigidas à observação direta da
Natureza, ao longo da senda indicada. Esta conclusão prima fade pode se determinar pela
importância que tenham para o indivíduo as opiniões que se vão expor sobre a Natureza, e
pelas razões que existem para confiar nos poderes de observação daqueles que a
comunicaram.
Pode-se supor, talvez, que a própria magnitude da presente pretensão em benefício da
doutrina esotérica suscite esta afirmação oriunda da região a que se refere seu título — a da
pesquisa relativa ao significado real e interno da religião definida e específica chamada
Budismo. O fato, contudo, é que o Budismo Esotérico, embora de maneira alguma esteja
divorciado das relações com o Budismo Exotérico, não deve ser concebido como constituindo
mero imperium in imperio — uma escola central de cultura no vórtice do mundo budista. À
medida que o Budismo se retira dos recessos de sua fé, descobre-se que estes se misturam
com os recessos de outras crenças. As concepções cósmicas e o conhecimento da Natureza
nos quais repousa o Budismo, como também constituem o Budismo Esotérico, são as mesmas
do Bramanismo esotérico. E a doutrina esotérica é assim considerada por todos os
"iluminados" (no sentido budista) das crenças como a verdade mais absoluta referente à
Natureza, ao Homem, à origem do Universo e aos destinos para os quais tendem os seus
habitantes. Ao mesmo tempo, o Budismo Exotérico permaneceu em união mais estreita com
a doutrina esotérica do que qualquer uma das outras religiões populares. A exposição da
ciência interna estará associada, portanto, de forma irresistível por si mesma, com as
descrições familiares dos ensinamentos budistas. Com certeza, conferindo a estes um
significado vívido, que no geral lhes parece faltar, mas por isso mesmo contribuindo para que
a doutrina esotérica seja estudada em seu aspecto budista: além disso, um aspecto que foi tão
fortemente impresso sobre ela, desde os tempos de Gautama Buda. Embora a essência da
doutrina seja bem mais remota, o colorido budista penetrou por completo em sua substância.
O que vou expor ao leitor é o Budismo Esotérico, e para estudantes acidentais, que pela
primeira vez o abordam, seria imprópria qualquer outra denominação.
À exposição das doutrinas deve ser considerada pelo leitor em seu conjunto, antes que
possa compreender por que os iniciados na doutrina esotérica consideram como de
assombrosa grandeza a situação que envolve uma revelação atual do esboço geral desta
doutrina. Uma explicação desse sentimento pode ser vista surgir, de imediato, da extrema
sacralidade que está sempre incorporada aos antigos guardiães das verdades íntimas e vitais
da Natureza. Até hoje, esta santidade tem prescrito sua ocultação absoluta do rebanho
profano. E, no que este costume de ocultação — tradição de muitos séculos — vai sendo na
atualidade substituído pelo novo costume que determina o aparecimento deste livro, o será
com surpresa e pesar por grande número de discípulos iniciados. Submeter à crítica, que pode
às vezes ser desairosa e irreverente, doutrinas que até agora foram tidas por tais pessoas como
de importância demasiado majestosa, para que se fale delas apenas em circunstâncias de
condizente solenidade, parecer-lhes-á uma terrível profanação dos grandes mistérios.
Considerando este livro do ponto de vista europeu, seria pouco razoável esperar que se possa
livrá-lo da dureza costumeira dispensada às idéias novas. E as convicções especiais ou o
fanatismo vulgar podem fazer com que, algumas vezes, no caso presente, tal conduta se torne
particularmente hostil. Apesar de tudo isso e ainda que dar à luz tais conhecimentos seja coisa
lógica de se esperar de expositores europeus como eu, será encarado com grande pesar e
desgosto pelos seus mais antigos e regulares representantes. Com tristeza, apelarão à

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sabedoria sancionada pelo tempo em que, no antigo e simbólico estilo, se proibia aos
iniciados jogar pérolas aos porcos.
Felizmente, conforme eu penso, não se permitiu que a regra funcionasse por mais
tempo em detrimento de todos aqueles que, apesar de estarem ainda muito longe de ser
iniciados, no sentido oculto da palavra, estão aptos, pela pura força da cultura moderna, a
apreciar essa concessão.
Parte das informações contidas nas páginas que se seguem foi, primeiramente,
divulgada de modo fragmentário no Theosophist, revista mensal publicada em Madras, índia,
pêlos diretores da Sociedade Teosófica. Como quase todos os artigos foram assinados por
mim, não vacilei em entremear trechos dos mesmos, quando achei conveniente no presente
volume. Desse modo, consegui certa vantagem, mostrando como as separadas peças do
mosaico, pela primeira vez apresentadas a público, ajustam-se naturalmente em seus
respectivos lugares no pavimento já concluído.
A doutrina ou sistema agora revelado, em seus traços essenciais, foi tão zelosamente
guardado até hoje que nenhum gênero de pesquisas literárias, embora houvessem
esquadrinhado a índia inteira, pôde trazer à luz a menor partícula do conteúdo aqui revelado.
Foi, afinal, dada ao mundo pela livre vontade daqueles sob cuja custódia haviam permanecido
até hoje. Ninguém teria arrancado deles nem a sua primeira letra. Somente após ler com
atenção estas explicações é que a atitude em geral, com respeito às suas atuais revelações ou à
reticência anterior, pode ser criticada ou mesmo compreendida. As opiniões sobre a Natureza,
agora expostas, são bastante estranhas para os pensadores europeus. O modo de agir dos
graduados na ciência esotérica, resultado de uma longa intimidade com essas opiniões, deve
ser considerado em relação com o alcance peculiar da própria doutrina.
Quanto às circunstâncias sob as quais estas revelações foram pela primeira vez
apresentadas no Theosophist, agora completadas e aqui expostas, como perceberão nossos
leitores, basta dizer, no momento, que a Sociedade Teosófica, por meio da qual e graças à
minha relação com ela vieram às minhas mãos as informações deste livro, deve sua existência
a certas pessoas que se incluem entre os defensores da ciência esotérica. O assunto que, por
fim, é exibido em proveito dos que estão aptos a recebê-lo, é apresentado ao mundo por
intermédio da Sociedade Teosófica desde sua fundação, e somente circunstâncias posteriores
indicaram-me como o agente através de quem esta comunicação poderia ser feita de modo
conveniente.
É preciso que se saiba que não me considero o único expositor da verdade esotérica
para o mundo exterior, durante esta crise. Estes ensinamentos constituem a conseqüência, no
tocante ao conhecimento filosófico, das relações estabelecidas com o mundo exterior pelos
guardiães da verdade esotérica por meu intermédio. E apenas em virtude dos atos e intenções
destes instrutores esotéricos que decidiram atuar por meu intermédio é que possuo um
determinado conhecimento. Mas, em diferentes sentidos, alguns outros escritores
empreenderam, parece, a exposição em benefício do mundo — e, segundo creio, de
conformidade com um vasto plano, do qual este volume é uma parte — das mesmas verdades
que, sob outros aspectos, tenho a missão de revelar. É provável que a grande efervescência
existente, hoje em dia, nas especulações literárias a respeito de problemas que ultrapassam os
limites da ciência física, tenham provocado tal conduta por parte dos grandes guardiães da
verdade esotérica, em que meu livro é, por certo, mais uma manifestação. Já o ardor agora
demonstrado nas "Pesquisas Psíquicas" por homens ilustres e cultos à testa da Sociedade que
se dedica, em Londres, a tal propósito, segundo minhas convicções íntimas — conhecendo,
como conheço, algo relativo ao modo como as aspirações espirituais do mundo estão sendo
secretamente influenciadas por aqueles cujos trabalhos ocorrem nesse departamento da
Natureza — é fruto evidente de esforços paralelos àqueles com os quais estou mais
diretamente preocupado.

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Agora me resta negar, com relação ao estudo que se segue, qualquer pretensão minha
quanto à perfeição de linguagem. Uma familiaridade maior com o vasto e complicado
esquema da cosmogonia revelada sugerirá, sem dúvida, aperfeiçoamentos na fraseologia
empregada de minha exposição. Há dois anos, nem eu nem outro europeu conhecíamos o
alfabeto da ciência aqui exposta pela primeira vez, sob uma forma científica — ou, pelo
menos, tentada nesta direção —, a ciência das Causas Espirituais e de seus Efeitos, da
Consciência Suprafísica, da Evolução Cósmica. Embora tais idéias comecem a se revelar ao
mundo, sob um disfarce mais ou menos embaraçoso de simbolismo místico, não se tentara até
há dois anos, por nenhum instrutor esotérico, expor a doutrina em sua clara pureza abstrata. À
medida em que progredia a minha própria instrução neste sentido, inventei frases e sugeri
palavras como equivalentes às idéias que se apresentavam à minha mente. Não tenciono ficar
convencido de que em todas as oportunidades tenha inventado as melhores frases possíveis,
nem que haja encontrado as palavras mais nítidas e expressivas. Por exemplo, no início da
obra, precisamos atribuir nomes aos elementos ou atributos de que se compõe o ser humano
completo. "Elemento" seria um termo inadequado para se usar, devido à confusão que se
originaria de sua utilização com outros sentidos. Também sujeita a objeções foi a palavra
"princípio". Para um ouvido educado nas sutilezas das expressões metafísicas, esse termo
soará de um modo pouco satisfatório, em algumas de suas presentes aplicações. É bem
possível que, com o passar do tempo, a nomenclatura ocidental da doutrina esotérica se
desenvolva muito mais a partir do que eu construí provisoriamente. A nomenclatura oriental é
bem mais apurada. Mas o sânscrito metafísico parece embaraçar penosamente o tradutor —
embora a culpa, segundo meus amigos indianos, não seja do sânscrito, mas da linguagem em
que pretendem expressar a idéia sânscrita na atualidade. Com a ajuda do grego, que nos é
familiar, às vezes recebe-se melhor a nova doutrina — ou, antes, a primitiva doutrina, tal
como ela foi revelada recentemente — do que no Oriente se presumiu fosse possível.

Ao Leitor

Todos os que lerem hoje este livro devem lembrar-se de que ele foi publicado pela
primeira vez em 1883, e constitui o mais primitivo esboço da doutrina esotérica já revelada ao
público em geral, em linguagem simples. Desde que ele foi escrito, o estudo da teosofia e a
posterior ajuda obtida dos Mestres originais ampliaram muito o nosso conhecimento, e de
muitas maneiras os pontos de vista que somos capazes de expressar a respeito da evolução
humana e da vida suprafísica são muito mais ricos de detalhes que naquele esboço primitivo,
que é considerado agora como incompleto, até certo ponto enganoso. Por exemplo, neste livro
todos os conhecimentos da vida no Plano Astral (ou Kâma-Ioka) estão inteiramente
desatualizados. Meu trabalho seguinte, O crescimento da alma, elucida o assunto de alguma
forma. Um livro ulterior, No próximo mundo, aborda também outros aspectos das condições
variadas em que a Terra está dividida, com a prevalência dos subplanos do vasto invólucro
suprafísico. Do mesmo modo, todos os relatos neste texto sobre o "Devachan" supervalorizam
a importância desse estado — na verdade, apenas um dos aspectos da vida no plano do Manas
— e não propriamente um objetivo a ser visado por toda a humanidade. Resumindo, a
teosofia, considerada uma ciência espiritual, avançou e está progredindo tão magnificamente
que os seus livros mais antigos são interessantes principalmente como registros de suas

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origens — um prognóstico incompleto da riqueza de conhecimentos, acumulada mais tarde
em nossas mãos. A primeira coleção dos Anais da Loja de Londres, publicada durante os anos
de 1884-1902, revelou grande parte do progresso obtido; a nova coleção (em circulação), de
1913-1916, já incorporou os resultados desse discreto trabalho posterior.
A Ética da Teosofia é demasiado clara e simples para necessitar de revisão constante.
Em seu aspecto intelectual, a Teosofia é uma ciência viva repleta de possibilidades futuras
infinitas. Assim como o químico moderno deve remontar a épocas anteriores com interesse,
não desprovido de humor, para a especulação transata sobre o "flogisto" e o "ar sem
flogístico", bem assim os teosofistas precisam, qualquer que seja seu estado, espero, ter uma
espécie de tolerância pêlos muitos equívocos contidos em O budismo esotérico, lembrando
que, apesar deles, o livro teve a honra de inaugurar o grande movimento teosófico no plano
físico do mundo ocidental.

A.P.SINNETT
1918

1. INSTRUTORES ESOTÉRICOS

As informações contidas nas páginas a seguir não são uma coleção de inferências
deduzidas de estudos. Aos leitores, apresento conhecimentos obtidos mais por generosidade
que por esforços. Disso não decorre que seu valor seja menor; ao contrário, aventuro-me a
declarar que será incalculavelmente maior pela facilidade com que os obtive, do que
quaisquer resultados proporcionados pêlos métodos ordinários de pesquisas, mesmo se eu
tivesse possuído, em seu grau mais elevado, o que não pretendo possuir de modo algum — a
Ciência Oriental.
Todos os que se preocupam com a literatura indiana, e mais ainda, qualquer pessoa
que na índia tenha tratado de assuntos filosóficos com nativos cultos, estarão cientes da
convicção geral no Oriente de que há homens que sabem mais sobre filosofia, na acepção
mais elevada da palavra — a ciência, o verdadeiro conhecimento das coisas espirituais —, do
que se acha registrado em qualquer livro. Na Europa, a noção de segredo aplicada à ciência
repugna tanto ao instinto dominante que a primeira tendência dos pensadores europeus é
negar a existência daquilo com que antipatizam. Mas as circunstâncias me deram a certeza
cabal, durante minha estada na índia, de que a convicção que acabo de mencionar está
perfeitamente bem fundamentada. Afinal, tive o privilégio de receber uma massa considerável
de instrução sobre a até hoje ciência secreta, a respeito da qual os filósofos orientais
meditaram em silêncio até agora. Essa instrução foi unicamente comunicada a estudantes
preparados para penetrar nas regiões do segredo, e permanecendo seus instrutores muito
tranqüilos com relação à dúvida em que têm ficado os demais investigadores, acerca da
existência ou não de algo de importância a aprender deles.
Compartilhando em princípio essa grande antipatia pela antiga regra de conduta
oriental, no que diz respeito ao conhecimento, cheguei, no entanto, a perceber que a antiga
ciência oriental era efetivamente uma verdade Importante. E escusável considerar as uvas

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como verdes quando estão totalmente fora de alcance, mas seria loucura persistir nessa
opinião se um amigo de estatura elevada pudesse apanhar um cacho e as achasse doces.
Por razões que aparecerão no decurso desta obra, a massa considerável de
ensinamentos até hoje secretos, que ela contém, me foi comunicada não só fora das condições
normais, mas com a finalidade explícita de que, de minha parte, eu as comunicasse sem
reservas ao mundo.
Sem a luz da ciência oriental, até agora secreta, é impossível que apenas pelo estudo
de sua literatura publicada — em língua inglesa ou em sânscrito — até mesmo os estudantes
da melhor qualificação científica possam compreender as doutrinas internas e o significado
verdadeiro de qualquer religião oriental. Esta assertiva não envolve repreensão alguma aos
escritores eruditos e laboriosos de grande gênio, que têm estudado as religiões orientais em
geral, e o Budismo de modo especial, em seus aspectos exteriores. O Budismo é sobretudo
uma religião que tem gozado de uma existência dual desde o início de sua introdução no
mundo. O significado real interno de suas doutrinas foi mantido apartado dos estudantes não-
inicia-dos, enquanto seus ensinamentos externos têm sido simplesmente apresentados à
multidão, como um código de lições morais e com uma literatura simbólica e velada, que
indicava a existência de conhecimentos anteriores.
Esta ciência secreta, na verdade, é muito anterior à passagem de Gautama Buda pela
vida terrena. A filosofia bramânica, em épocas anteriores a Buda, compreendia a mesma
doutrina que na atualidade pode ser chamada de Budismo Esotérico. Com efeito, os seus
contornos haviam-se apagado e as suas formas científicas haviam sido parcialmente
confundidas; mas a massa geral de conhecimentos já estava em poder de uns poucos eleitos
antes que Buda viesse a participar dos mesmos. Buda, entretanto, empreendeu a tarefa de
revisar e restaurar a ciência esotérica do círculo interno de iniciados, bem como a moralidade
do mundo externo. As circunstâncias em que esta tarefa foi feita foram muito mal-entendidas;
uma verdadeira explicação não seria inteligível sem as elucidações, que deveriam ser obtidas
por um exame prévio da própria ciência esotérica.
Desde o tempo de Buda, até hoje, a ciência esotérica de que nos ocupamos tem sido
zelosamente guardada como uma preciosa herança, privativa tão-só dos membros
regularmente iniciados das associações misteriosamente organizadas. Estes, no que diz
respeito ao Budismo, são os Arhats a que se refere a literatura budista. São os iniciados que
trilham a "quarta senda da santidade", de que se fala nos escritos budistas. Mr. Rhys Davids,
referindo-se à multiplicidade de textos originais e às autoridades sânscritas, diz: "Podem-se
escrever páginas e páginas com os louvores impregnados de um sentimento temeroso e de
êxtase, de que são pródigos os escritos budistas a este estado da mente, o fruto da quarta
senda, o estado de um Arhat, de um homem perfeito segundo a fé budista." E depois de fazer
uma série de citações oriundas de autoridades sânscritas, expressa: "Para aquele que chegou
ao fim da senda e passou além da tristeza; que se libertou por si mesmo de tudo; que se
desprendeu de todos os grilhões, não existe mais nem a paixão, nem o desgosto... Para ele
não há mais nascimentos... acha-se no gozo do Nirvana. Seu antigo karma está esgotado, não
foi produzido nenhum novo karma; seu coração está livre de anseios por uma vida futura e,
não gerando novos desejos, eles, os sábios, se extinguiram tal o lume de uma vela." Estes e
outros parágrafos semelhantes conduzem, de qualquer modo, os leitores europeus a uma idéia
completamente falsa no que concerne ao tipo de pessoa que um Arhat é efetivamente, à vida
que leva enquanto está na Terra e à que espera no futuro. Mas a elucidação destes pontos pode
ser adiada no momento. Primeiramente se podem expor outros parágrafos procedentes de
tratados esotéricos, que demonstram o que é que geralmente se supõe ser um Arhat.
Mr. Rhys Davids, falando de Jhana e Samadhi (a crença de que era possível, por meio
de intensa auto-absorção, atingir faculdades e poderes sobrenaturais) diz ainda: "Tanto quanto
é do meu conhecimento, não se registra nenhum caso de alguém, seja um membro da ordem,

10
ou um asceta brâmane, que tenha adquirido estes poderes. Um Buda sempre os possui; se os
Arhats, como tais, realizam os milagres especiais em questão, e se dentre os mendicantes
somente os Arhats ou unicamente os Asekhas podem realizá-los, é coisa que não está clara
na atualidade." As fontes de informação que foram exploradas até agora sobre o assunto
esclarecem muito pouco. Mas limito-me a mostrar que a literatura budista é abundante em
alusões relativas à grandeza e aos poderes dos Arhats. Quanto a um conhecimento mais
íntimo a respeito deles, circunstâncias especiais nos devem apresentar explicações cabíveis.
Mr. Arthur Lillie, em Buda e o budismo primitivo, nos relata: "Seis faculdades
sobrenaturais se requerem do asceta antes que ele possa pretender o grau de Arhat. A elas se
alude constantemente nos Sutras como as seis faculdades sobrenaturais, em geral sem
nenhuma outra especificação... O homem possui um corpo constituído dos quatro
elementos... neste corpo transitório está acorrentada a sua inteligência, e, achando-se assim
confuso, o asceta dirige a sua mente à criação do Manas. Ele imagina a si mesmo, em
pensamento, com outro corpo criado a partir desse corpo material — um corpo com uma
forma, com membros e órgãos. Com relação ao corpo material, este corpo é o que a espada é
para a bainha, ou como uma serpente saindo de um cesto em que estivesse confinada. Então
o asceta, purificado e aperfeiçoado, começa a pôr em prática faculdades sobrenaturais.
Encontra-se apto a passar através de obstáculos materiais, como paredes, muralhas, etc.; é
capaz de lançar sua fantástica aparição em muitos lugares ao mesmo tempo... pode
abandonar este mundo e até alcançar o céu do próprio Brahma... Adquire o poder de ouvir
os sons do mundo invisível de forma tão nítida quanto os do mundo fenomenal — ainda mais
nitidamente na realidade. Também pelo poder dos Manas, é capaz de ler os pensamentos
mais secretos dos outros e de dar conta de seus caracteres." E assim sucessivamente com os
demais exemplos. Mr. Lillie não adivinhou com exatidão a natureza da verdade existente atrás
desta versão popular dos fatos; porém, a rigor, não é necessário citar mais, para demonstrar
que os poderes dos Arhats e sua penetração nas coisas espirituais são respeitados pelo inundo
budista do modo mais profundo, por mais que os próprios Arhats se tenham mostrado
singularmente pouco dispostos a facilitar o mundo com autobiografias ou relatos científicos
dos "seis poderes sobrenaturais".
Algumas proposições da tradução recente feita por Mr. Hoey, da obra Buda: sua vida,
sua doutrina, sua ordem, do Dr. Oldenberg, podem-se inserir neste local, após o que
seguiremos adiante. Nela lemos: "A proverbial filosofia budista atribui, em inúmeras
passagens, a posse do Nirvana ao santo que ainda pisa a Terra: 'O discípulo que se livrou da
sensualidade e do desejo, rico em sabedoria, conseguiu aqui na Terra livrar-se da morte;
atingiu o repouso, o Nirvana, o estado eterno. Aquele que escapou dos difíceis labirintos do
Samsara, que cruzou e chegou à costa, absorvido em si mesmo, sem tropeços e sem dúvidas,
que se livrou por si mesmo das coisas terrenas e alcançou o Nirvana, a esse eu chamo de um
verdadeiro brâmane.' Se o santo quer pôr fim ao seu estado de existência, pode fazê-lo, mas
muito continua nele, até que a Natureza tenha atingido sua meta; a respeito disso, cabem
aquelas palavras postas na boca do mais eminente dos discípulos de Buda: 'Não desejo a
morte; não desejo a vida; espero que chegue minha hora, como um obreiro que aguarda o
seu salário'."
A multiplicação de citações semelhantes equivaleria a repetir, em formas variadas, os
conceitos exotéricos sobre o Arhats. Como todos os fatos ou pensamentos do Budismo, o
Arhat tem dois aspectos: um sob o qual ele se apresenta ao mundo em geral, e o outro no qual
vive, move-se e existe. No que se refere à apreciação popular, ele é um santo aguardando um
galardão espiritual do gênero que o vulgo pode entender — um produtor de maravilhas graças
a agentes sobrenaturais. Na verdade, ele é o guardião, por longo tempo provado, da filosofia
mais profunda e secreta da religião fundamental que Buda renovou e restaurou; um
investigador da ciência natural, situado no próprio cume do conhecimento humano, não só no

11
que diz respeito aos mistérios do espírito, mas também em tudo o que se relaciona com a
constituição material do mundo.
Arhat é uma designação budista. Na índia, onde os atributos da ordem de Arhat não
estão necessariamente associados com as profissões do Budismo, a designação mais familiar é
Mahâtmâ. A Índia está saturada de narrativas sobre os Mahâtmâs. Os mais antigos Mahâtmâs
são, geralmente, chamados Rishis. Mas os termos são permutáveis, e ouvi aplicar o título de
Rishis a homens que estão vivos hoje. Todos os atributos dos Arhats, que se descrevem nos
escritos budistas, são mencionados com não menos reverência na literatura indiana que os
atributos Mahâtmâs; e este volume poderia facilmente encher-se com traduções de livros do
país, referindo fatos milagrosos verificados por aqueles a quem a história e a tradição
conhecem por tal nome.
Com efeito, os Arhats e os Mahâtmâs são os mesmos homens. Naquela altura de
exaltação espiritual, o conhecimento supremo da doutrina esotérica harmoniza todas as
distinções sectárias originais. Seja qual for o nome que se dê a esses illuminati1, eles são os
adeptos da ciência oculta, algumas vezes, na índia de hoje, chamados Irmãos e depositários da
ciência espiritual que lhes foi legada por seus predecessores.
Seria em vão pesquisar a literatura antiga e moderna, em busca de qualquer explicação
sistemática de sua doutrina ou ciência. Boa parte dela está obscuramente exposta nos escritos
ocultos; mas muito poucos têm utilidade para os leitores que empreendem a tarefa sem um
prévio conhecimento adquirido independentemente dos livros. Pelo fato de eu ter recebido
instrução direta de um entre eles, posso agora tentar um esboço dos ensinamentos dos
Mahâtmâs, do mesmo modo como adquiri o que sei relativo à organização a que pertence a
maior parte deles, bem como os maiores, da atualidade.
Em todo o mundo há ocultistas de diversos graus de eminência e, igualmente, há
fraternidades ocultas que têm muito em comum com a fraternidade dirigente estabelecida no
Tibete. Mas todas as minhas investigações sobre o assunto me convenceram de que a
Fraternidade Tibetana é incomparavelmente a mais elevada dessas associações, e como tal é
considerada por todas as demais — dignas, por sua vez, de serem encaradas como
"iluminadas", no sentido oculto da palavra. Na verdade, existem na índia muitos místicos
isolados, que receberam uma auto-educação integral sem vinculação com as associações
ocultas. Muitos destes dizem que atingem mais altos pináculos da iluminação espiritual do
que os Irmãos do Tibete, ou do que qualquer outra pessoa na Terra. Porém, o exame dessas
pretensões, em todos os casos com que me deparei, creio que conduziria qualquer leigo
imparcial, por pouco qualificado que estivesse em seu desenvolvimento pessoal para julgar
sobre iluminação oculta, à conclusão de que são completamente infundadas. Por exemplo,
conheço um natural da índia, homem de educação européia, que goza de alto prestígio no
Governo, de boa posição social, de caráter elevado e que é respeitado de modo invulgar pêlos
europeus que com ele se relacionam na vida oficial. Essa pessoa concede aos Irmãos do
Tibete apenas um segundo lugar no mundo da iluminação espiritual. Considera o primeiro
lugar ocupado por uma pessoa que já não está neste mundo — seu próprio mestre oculto na
vida —, que ele convictamente afirma ter sido uma encarnação do Ser Supremo. Seus
próprios (do meu amigo) sentidos internos foram despertados por esse Mestre, de forma que
as visões do estado extático, em que pode imergir silenciosamente à vontade, são para ele a
única região espiritual digna de interesse. Convencido de que o Ser Supremo foi seu instrutor
pessoal desde o início, e que continua ainda sendo no estado subjetivo, ele é naturalmente
inacessível a sugestões de que suas impressões podem ser deturpadas em vista de seu
desenvolvimento psicológico mal dirigido. Por outro lado, os devotos de alta erudição, que
eventualmente se podem encontrar na índia, que erigem sua concepção de Natureza, do
Universo e de Deus sobre uma base completamente metafísica, e que desenvolveram seus
1
No original em italiano. Vale dizer: os Iluminados. (N. T.)

12
sistemas pela força pura do pensamento transcendental, tomarão algum reconhecido sistema
de filosofia como fundamento e irão amplificá-lo a um ponto que apenas um metafísico
oriental poderia sonhar. Conseguem discípulos que depositam neles uma fé tácita e fundam a
sua pequena escola, que floresce durante certo tempo dentro de seus próprios limites. Porém,
uma filosofia especulativa dessa espécie é antes uma ocupação para a mente do que um
conhecimento. Esses "Mestres", comparados aos Adeptos organizados da mais alta
fraternidade, são como botes a remo comparados com os transatlânticos — meios úteis de
locomoção em seu próprio lago ou rio, mas nunca uma embarcação em que se possa confiar
para uma grande viagem marítima ao redor do mundo.
Descendo a um nível ainda mais baixo na escala, a índia está saturada de ioguins e
faquires, em todos os graus de autodesenvolvimento, desde o dos mais sujos selvagens, muito
pouco superiores aos ciganos ledores de sorte que acorrem às nossas corridas de cavalo, até o
de homens em cuja reclusão um estrangeiro dificilmente penetraria, cujas anormais
faculdades e poderes bastam ser vistos ou experimentados para quebrar a incredulidade dos
mais ardorosos representantes do moderno ceticismo ocidental. Os pesquisadores superficiais
confundem com facilidade tais pessoas com os Grandes Adeptos, dos quais ouviram falar
vagamente.
Entretanto, no que diz respeito aos verdadeiros Adeptos, não me aventuro a dizer nada
sobre o que é a organização tibetana, quanto às suas mais altas autoridades dirigentes. Esses
próprios Mahâtmâs — sobre os quais os leitores que pacientemente me seguirem até o fim
poderão formar uma idéia mais ou menos adequada — estão subordinados, em seus diversos
graus, ao chefe de todos. Tratemos, antes de tudo, das primeiras condições da instrução
oculta, o que pode ser entendido com mais facilidade.
O grau de elevação que constitui um homem — chamado no mundo exterior Mahâtmâ
ou "Irmão" — só é alcançado após prolongada e penosa provação e ansiosas provas de uma
severidade realmente terrível. Há pessoas que passaram vinte, trinta ou mais anos de
irrepreensível e árdua devoção, dedicadas à missão que empreenderam na vida, mas apesar
disso, ainda se acham nos primeiros graus de seu chelado, contemplando as alturas do
adeptado, que estão muito acima de suas possibilidades. E em qualquer idade que um garoto
ou um homem se dedique à carreira do ocultismo, dedica-se, entenda-se bem, sem reservas de
nenhum gênero e por toda sua vida. A missão que leva a cabo é o desenvolvimento em si
mesmo de muitas faculdades e atributos, de cuja existência nem se suspeita devido ao fato de
serem completamente latentes na massa da humanidade, sendo negada a possibilidade de seu
desenvolvimento. Estas faculdades e atributos devem ser desenvolvidos pelo próprio cheia,
com muito pouca ajuda, se houver alguma, além da orientação e direção de seu mestre. Diz
um aforismo oculto: "O Adepto se torna um adepto: ele não é convertido em um." Pode-se
ilustrar isto com o que acontece num exercício físico corriqueiro. Todo homem com o uso
normal de seus membros é capaz de nadar. Mas mergulhem aqueles que, segundo provérbio
popular, não podem nadar em águas profundas, e eles se afogarão. O simples procedimento de
mover os membros não é um mistério. Porém, a menos que o nadador, ao movê-los, acredite
que tais movimentos produzirão o resultado almejado, este não será obtido. Nesse caso,
ocupamo-nos com forças meramente mecânicas, mas o mesmo princípio se aplica às forças
mais sutis. A mera "confiança" conduz o neófito oculto muito mais longe do que o vulgo
geralmente imagina. Quantos leitores europeus permaneceriam totalmente incrédulos se se
relatassem a ele alguns resultados que os cheias ocultistas, dos graus mais incipientes de sua
instrução, têm de obter por pura força da confiança e, apesar disso, ouvem amiúde na igreja as
familiares afirmações bíblicas de que o poder reside na fé, e permitem que as palavras passem
como o vento, sem deixar qualquer impressão.
O grande fim e propósito do Adeptado é realizar o desenvolvimento espiritual, cuja
natureza está velada e disfarçada nas frases comuns da linguagem exotérica. Dizer que o

13
Adepto procura unir sua alma com Deus, para poder, por esse meio, entrar no Nirvana, é uma
assertiva destituída de significação para o leitor comum, e quanto mais examiná-la, baseado
em livros e métodos elementares, tanto menos plausível lhe será a compreensão da natureza
do processo observado, ou do estado desejado. Em primeiro lugar, é preciso conhecer o
conceito esotérico de Natureza e a origem e os destinos do Homem, o que se diferencia por
completo dos conceitos teológicos, antes que se torne inteligível uma explicação da meta que
o Adepto persegue. Enquanto isso, entretanto, é desejável, logo de início, abrir os olhos do
leitor para o falso conceito, que provavelmente possa ter formado, sobre os objetivos do
Adeptado.
O desenvolvimento dessas faculdades espirituais, cujo cultivo se relaciona com os
mais elevados objetivos da vida oculta, proporciona, à medida que progride, um
conhecimento casual, relativo às leis físicas ainda não compreendidas da Natureza em geral.
Esse conhecimento, e a arte prática de manipular certas forças ocultas da Natureza, como
conseqüência, confere a um Adepto, e até aos discípulos de um Adepto, num estágio
incipiente de sua instrução, poderes extraordinários, cuja aplicação nos assuntos da vida diária
gera, em algumas ocasiões, resultados que parecem completamente milagrosos. Do aspecto
habitual, a aquisição de um poder de aparência milagrosa é uma conquista tão estupenda que
as pessoas, às vezes, se sentem inclinadas a imaginar que o desígnio do Adepto, ao procurar
os conhecimentos que obtém, não foi outro que ele próprio investir-se desses poderes
cobiçados. Isso seria tão racional como dizer de qualquer grande patriota da história militar
que o seu propósito, ao ser soldado, foi o de portar um vistoso uniforme e aguçar a
imaginação das amas-secas.
O método oriental para o cultivo do saber sempre diferiu diametralmente do seguido
no Ocidente, durante o desenvolvimento da ciência moderna. Enquanto a Europa pesquisou a
Natureza da forma a mais pública possível, sendo discutido cada passo com a mais ampla
liberdade e circulando de imediato cada recente fato adquirido para o benefício de todos, a
ciência asiática foi estudada em segredo e suas conquistas zelosamente guardadas. Não é
necessário que eu tente no momento a crítica ou a defesa desses métodos. Mas, de qualquer
modo, esses métodos foram afrouxados até certo ponto em meu próprio caso, e como já
afirmei, tenho o pleno consentimento de meus instrutores para seguir minhas inclinações
como europeu, comunicando o que aprendi a todos os que desejarem recebê-lo.
Posteriormente se verá como a transgressão das regras elementares do estudo ocultista,
incorporada às concessões agora feitas, cai naturalmente no lugar apropriado do esquema
completo da filosofia oculta. O acesso a essa filosofia esteve sempre, de certo modo, aberto a
todos. Através do mundo, por vários meios, foi vagamente difundida a idéia de que certos
processos de estudo, que alguns homens realmente seguiram, aqui e acolá, podiam conduzir à
aquisição de um gênero de conhecimento mais elevado do que o que é geralmente ensinado à
humanidade nos livros ou por meio de pregadores públicos religiosos. O Oriente, como já foi
assinalado, esteve sempre mais que vagamente impressionado por essa crença, porém mesmo
no Ocidente a massa inteira de literatura simbólica, referente à astrologia, alquimia e ao
misticismo em geral, fermentou na sociedade européia, levando algumas poucas inteligências,
singularmente receptivas e qualificadas, à convicção de que detrás de toda essa falta de
sentido, superficialmente incompreensível, grandes verdades jazem ocultas. A essas pessoas,
esse excêntrico estudo revelou algumas vezes passagens ocultas que conduziam aos maiores
reinos imagináveis da iluminação. Porém, até agora, em todos esses casos, de acordo com a
lei dessas escolas, tão logo o neófito forçava passagem na região do mistério, era-lhe imposto
o segredo mais inviolável a tudo o que se relacionasse com seu ingresso nessa região e com os
seus progressos ulteriores. Na Ásia, do mesmo modo, o cheia, ou discípulo de ocultismo, tão
logo se converte em um cheia, deixa de ser testemunha da realidade da ciência oculta. Fiquei
espantado ao ver, assim que comecei a tratar deste assunto, quão numerosos são os cheias.

14
Mas é impossível imaginar algum ato humano mais improvável do que a revelação não
autorizada, por parte de qualquer cheia, aos profanos, de sua qualificação como tal. E assim é
como a grande escola esotérica de filosofia conserva com sucesso o seu segredo.
Num livro anterior, O mundo oculto, apresentei um completo e fiel relato das
circunstâncias sob as quais estive em contato com homens de dons elevados e profundamente
instruídos, de quem obtive as informações contidas neste volume. Não preciso repetir a
história. Agora tratarei do assunto sob novo ângulo. A existência de Adeptos ocultistas e a
importância de suas aquisições são estabelecidas por intermédio de duas diferentes Unhas de
argumento: em primeiro lugar, considerando-se a evidência externa — o depoimento de
testemunhas qualificadas, a manifestação de pessoas relacionadas com Adeptos de faculdades
anormais que proporcionem algo mais que mera suposição da existência de conhecimentos de
anormal amplitude; em segundo lugar, pela apresentação de uma parte considerável desses
conhecimentos, suficiente para dar a segurança intrínseca de seu próprio valor. Meu primeiro
livro seguia o primeiro destes métodos. Agora, enfrento um desafio maior, utilizando o
segundo.

COMENTÁRIOS

Quanto mais avançamos no estudo do ocultismo, tanto mais exaltadas se tomam, sob
muitos aspectos, as nossas concepções sobre os Mahâtmâs. A compreensão global da maneira
como estas pessoas chegam, ao final de longo tempo, a diferenciar-se da espécie humana não
é algo que se obtém apenas com a ajuda do esforço intelectual. Há aspectos na natureza do
Adepto que se relacionam com o extraordinário desenvolvimento dos princípios superiores do
homem, que não podem ser compreendidos pela aplicação dos inferiores. Mas enquanto os
conceitos incompletos, formados a princípio, por pouco não alcançam o nível verdadeiro dos
fatos, surge uma curiosa complicação do problema nesse caminho. A primeira idéia que
fazemos de um Adepto que conquistou o poder de penetrar os tremendos segredos da natureza
espiritual é formulada de acordo com os nossos conceitos de um homem de ciência muito
talentoso, em nosso próprio plano. Estamos aptos a pensar que, uma vez Adepto, ele será
sempre um Adepto — um ser humano muito digno, que necessariamente deve usar, em todas
as circunstâncias de sua vida, as qualidades que lhe são pertinentes como um Mahâtmâ. Desse
modo — como já indicamos — não conseguiremos, certamente, por mais que nos esforcemos,
fazer justiça em nossos pensamentos aos seus atributos ás Mahâtmâ. Podemos com bastante
facilidade incorrer no extremo oposto ao pensarmos nele em seu aspecto humano comum e,
destarte, ficaremos perplexos, à medida que começarmos a nos familiarizar com as
características do mundo da ciência oculta. Precisamente porque os mais elevados atributos
do adeptado se relacionam com os princípios da natureza humana, que transcendem
inteiramente os limites da existência física, é que o Adepto ou Mahâtmâ apenas pode ser um
Adepto, na mais alta acepção do termo, enquanto está, como diz a expressão, "fora do corpo"
ou, de qualquer modo, num estado anormal alcançado por sua própria vontade. Quando não
tem por que entrar em tal estado, nem sair completamente fora das limitações de sua prisão
carnal, parece-se muito mais com um homem comum, do que a experiência dos discípulos
sobre algum de seus aspectos poderia fazê-los supor.
Uma apreciação correta desse estado de coisas explica a contradição aparente, com
base na posição do discípulo de ocultismo diante de seus mestres comparada com algumas das
declarações que o próprio mestre faz freqüentemente. Por exemplo, os Mahâtmâs asseveram
que não são infalíveis, que eles são homens como os demais, talvez com uma compreensão
mais ampla da Natureza que o comum da humanidade, mas, apesar de tudo, capazes de

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enganar-se tanto na direção dos assuntos práticos com que podem estar relacionados, como na
apreciação dos atributos de outros homens, ou na apreciação da capacidade dos candidatos
para o desenvolvimento oculto. Mas como conciliarmos afirmações dessa natureza com o
princípio fundamental, existente no fundo de toda pesquisa do ocultismo, que induz o neófito
a confiar absolutamente e sem nenhuma reserva nos ensinamentos e na orientação do mestre?
A solução da dificuldade está no estado de coisas, ao qual nos referimos anteriormente.
Embora o Adepto possa ser um homem capaz de enganar-se algumas vezes de modo
surpreendente, quanto aos assuntos mundanos, do mesmo modo que entre nós alguns dos
maiores gênios estão propensos a cometer erros em sua vida comum, que talvez não
cometeria jamais o vulgo de outro lado, assim que um Mahâtmâ se ocupa com os mais
elevados mistérios da ciência espiritual, ele o faz devido ao exercício de seus atributos de
Mahâtmâ, e, no que tange a estes, dificilmente é considerado capaz de enganar-se.
Esta consideração permite-nos sentir que a confiança que merecem os ensinamentos
derivados dessa fonte, em que se inspira o presente volume, está completamente fora do
alcance dos pequenos incidentes que no progresso de nossa experiência pareçam pedir a
retificação dessa confiança entusiástica na sabedoria suprema dos Adeptos, que geralmente
evoca as primeiras abordagens ao estudo do ocultismo.
Isso não quer dizer que esse entusiasmo ou reverência diminua por parte de algum
cheia ocultista, à proporção que cresça sua compreensão do mundo em que penetra. O
homem, que em um de seus aspectos é um Mahâtmâ, antes é conduzido dentro dos limites do
afetuoso respeito humano, do que privado de seus direitos à reverência, pela consideração de
que em sua vida comum não está acima do nível comum dos sentimentos humanos, como
algumas de suas nirvânicas experiências nos levariam a crer.
Se temos sempre presente na mente que um Adepto só é verdadeiramente um Adepto
quando está exercendo as suas funções e que no exercício destas pode elevar-se à relação
espiritual com tudo aquilo que é, ao menos dentro dos limites de nosso sistema solar, o que na
prática significa para nós a onisciência, livrar-nos-emos então de muitos de nossos erros
gerados pelas dificuldades do assunto.
Pode-se relatar aqui algo atinente à intrincada natureza do Adepto, o que seria difícil
compreender sem fazer referência a alguns dos últimos capítulos deste livro. Mas, como isto
tem um significado tão importante para tudo quanto se refira à compreensão do que é o
Adeptado, será conveniente tratar dele de uma vez. A natureza dúplice do Mahâtmâ é tão
completa que algo de sua influência ou sabedoria, nos planos mais elevados da Natureza,
pode atingir os que estão em singulares relações psíquicas com ele, sem que o Mahâtmâ-
homem sequer perceba no momento em que esse apelo lhe foi dirigido. Por essa via, estamos
livres para especular sobre a possibilidade de que a relação entre o Mahâtmâ espiritual e o
Mahâtmâ-homem algumas vezes pertença antes à Natureza do que às vezes se menciona nos
escritos esotéricos como um obscurecimento (overshadowing), em vez de uma encarnação no
amplo sentido da palavra.
Além disso, como outra complicação independente do assunto, devemos apreciar o
fato de que cada Mahâtmâ não é meramente um ego humano num estado muito exaltado, mas
pertence, por assim dizer, a algum departamento específico da grande organização da
Natureza. Cada Adepto deve pertencer a um ou a outro dos sete grandes tipos do Adeptado.
Mas embora possamos, quase com certeza, inferir que existam correspondências entre esses
vários tipos e os sete princípios do homem, eu evitaria tentar a elucidação completa desta
hipótese. Será suficiente aplicar a idéia ao que conhecemos vagamente sobre a organização
ocultista em suas mais altas regiões. Há algum tempo, afirmou-se que nos escritos esotéricos
existem cinco grandes Chohans ou Mahâtmâs superiores, que presidem sobre toda a
fraternidade dos Adeptos. Quando foi escrito o capítulo precedente deste livro, eu tinha a
impressão de que um chefe supremo, situado num nível diferente, exercia autoridade sobre

16
esses cinco Chohans. Agora, parece-me que este personagem deve antes ser considerado
como um sexto Chohan, cabeça de um sexto tipo de Mahâtmâ. Esta conjectura conduz, de
uma vez, a outra inferência: deve existir um sétimo Chohan para completar as correlações que
assim discernimos. Mas como o sétimo princípio na Natureza ou no homem é um conceito de
ordem mais inacessível, que escapa ao poder de qualquer inteligência e que seria descrito em
nebulosas frases ininteligíveis sobre metafísica, podemos portanto estar seguros de que o
sétimo Chohan está fora de toda compreensão dos intelectos não versados na matéria. Mas
ele, fora de dúvida, desempenha um papel naquilo que pode ser chamado a mais elevada
organização da Natureza espiritual, sendo que tal personagem é, às vezes, visível para alguns
dos outros Mahâtmâs. Mas a especulação que lhe diz respeito é valiosa, principalmente para
ratificar a idéia segundo a qual os Mahâtmâs podem ser compreendidos em seu verdadeiro
aspecto, como fenômenos necessários da Natureza, sem os quais a evolução da humanidade
dificilmente seria imaginada como avançando, e não como homens excepcionais que
atingiram um estado de grande exaltação espiritual.

2. A CONSTITUIÇÃO DO HOMEM

Um exame da Cosmogonia, tal como a compreende a ciência oculta, deve preceder


toda tentativa de explicação dos meios pêlos quais se chegou a obter o conhecimento dessa
mesma Cosmogonia. Os métodos de pesquisa esotérica são o resultado de fatos naturais, que a
ciência exotérica desconhece totalmente. Estes fatos naturais relacionam-se ao
desenvolvimento precoce de faculdades nos Adeptos ocultos, que a humanidade em geral não
desenvolveu ainda. Estas faculdades, por sua vez, capacitam seus possuidores à exploração
dos mistérios da Natureza e à comprovação das doutrinas esotéricas, na manifestação
vindoura de seu sublime desígnio. O estudante prático de ocultismo pode desenvolver
primeiramente suas faculdades e aplicá-las depois à observação da Natureza. Mas, para os
leitores ocidentais, que só procuram a compreensão intelectual, deve preceder a consideração
dos sentidos internos utilizados pela pesquisa oculta, antes de expor a teoria da Natureza. Por
outro lado, o exame da Cosmogonia, tal como é compreendida pela ciência oculta, só pode ser
sistematizado cientificamente em detrimento da inteligibilidade para os leitores europeus.
Antes de mais nada, devemos tentar entender o estado do Universo anterior ao início da
evolução. Isso não foi negligenciado de modo algum pêlos estudantes esotéricos, e, mais
adiante, no curso deste esboço, serão feitas algumas sugestões relativas à opinião que o
ocultismo sustenta sobre os processos primitivos, através dos quais a matéria cósmica passa

17
em seu percurso evolutivo. Mas uma ordenada exposição dos processos mais primitivos da
Natureza incluiria indicações à constituição espiritual do homem, que não seria entendida sem
alguma explicação preliminar.
A ciência esotérica reconhece sete princípios distintos na constituição do homem. A
classificação difere de um modo tão absoluto de tudo aquilo com que os leitores europeus
estão familiarizados que, naturalmente, me questionarão sobre as bases em que o ocultismo se
apóia para chegar a essa conclusão. Porém, devido às peculiaridades inerentes ao assunto, que
mais adiante serio compreendidas, devo pedir para esta ciência oriental que dou a conhecer,
certa atenção, por assim dizer, de tipo oriental. Os sistemas oriental e europeu de transmitir
conhecimento diferem completamente em seus métodos. O método ocidental instiga e
provoca, a cada momento, o instinto da controvérsia do discípulo. Ele é animado a debater e a
opor-se à evidência. Proíbe-se-lhe aceitar qualquer afirmação científica tão-somente por sua
autoridade. Pari passu, à medida que adquire conhecimentos, deve aprender o modo como
eles são adquiridos e faz-lhe sentir que nenhum fato é digno de ser conhecido, a menos que se
conheça ao mesmo tempo a maneira de se demonstrá-lo como tal. O método oriental dirige
seus discípulos de uma forma bem diferente. Está atento à necessidade de demonstrar seus
ensinamentos como o Ocidente, mas fornece provas de um gênero bem diferente. Dá poder ao
estudante de pesquisar por si mesmo a Natureza e de comprovar seus ensinamentos naquelas
regiões em que a filosofia ocidental só pode penetrar por intermédio da especulação e do
argumento. Jamais se dá ao trabalho de questionar sobre nada. Afirma: "O fato é assim e
assim; eis a chave dos conhecimentos; agora vai e observa por ti mesmo." Assim ocorre que o
ensinamento per se não é nada mais que ensinamento pela autoridade. O ensinamento e a
demonstração não vão de mãos dadas. Seguem-se um ao outro na devida ordem. Outra
conseqüência deste método é que a filosofia oriental emprega o método que no Ocidente foi
afastado, por boas razões, como incompatível com nossa própria atitude de desenvolvimento
intelectual: o sistema de raciocinar do geral ao particular. Os objetivos que a ciência européia
costuma ter em mente não seriam resolvidos por esse plano, porém penso que qualquer pessoa
que se adiante na presente questão sentirá que esse sistema, de partir dos detalhes para chegar
às conclusões gerais, não se aplica ao assunto que ora discutimos. Não se pode compreender
pormenores neste ramo de conhecimentos, até que se adquira um discernimento geral do
esquema completo das coisas. Até o fato de comunicar esta compreensão apenas por meio da
linguagem é uma tarefa enorme e nada fácil. Deter-se a cada momento da exposição, a fim de
recolher toda evidência capaz de provar cada afirmativa de per se, seria praticamente
impossível. Tal método acabaria com a paciência do leitor e o impediria de deduzir, como o
faria de um estudo sinóptico, esse conceito definido sobre o que a doutrina esotérica quer
ensinar e que me toca evocar.
Esta reflexão pode sugerir, de passagem, uma nova luz que guarda uma íntima
vinculação com o assunto presente dos sistemas de raciocínio platônico e aristotélico. O
sistema de Platão, descrito grosseiramente como raciocinando do universal ao particular, é
condenado pêlos hábitos modernos em prol do segundo e exatamente sistema inverso. Mas
Platão se restringia à tentativa de defender o seu sistema. Todas as razões nos levam a crer
que sua familiaridade com a ciência esotérica é o que movia seu método e que as habituais
restrições que sobre ele pesavam, como ocultista iniciado, proibiam-no de dizer tudo o que
poderia tê-lo justificado. Ninguém que estude a ciência oculta, contida neste volume, e que
logo se direcione para Platão, ou para qualquer resumo inteligente de seu sistema, deixará de
encontrar correlações colhidas em cada passagem.
Os mais elevados princípios da série que forma o homem não estão desenvolvidos na
humanidade que conhecemos, mas um homem completo ou perfeito poderia ser determinado
nos elementos seguintes. Para facilitar a aplicação destas explicações aos usuais escritos

18
exotéricos budistas, são dados também os nomes sânscritos desses princípios, assim como os
termos adequados em nossa linguagem2.
1 O Corpo: Rûpa
2 Vitalidade: Prana ou Jîva
3 Corpo Astral: Linga-sharîra
4 Alma Animal: Kâma-rüpa
5 Alma Humana: Manas
6 Alma Espiritual: Buddhi
7 Espírito: Âtma
Quando conceitos tão transcendentais, como alguns dos incluídos nesta análise, são
expostos de forma tabular, incorre-se, ao que parece, em certa degradação contra a qual
devemos estar sempre prevenidos, tratando de compreender com clareza o que se pretende
significar. De fato, seria impossível mesmo para o mais hábil professor de ciência oculta
exibir cada um desses princípios, isolada e distintamente dos outros, como se procede com os
elementos físicos de um corpo composto, ao separá-los por meio da análise e conservá-los
independentes uns dos outros. Os elementos de um corpo físico estão todos no mesmo plano
de materialidade, mas os elementos do homem estão em planos muito diferentes. Os gases
mais sutis, capazes de entrar na composição química do corpo humano, acham-se ainda, ao
menos proporcionalmente, quase no nível mais material de todos os elementos. O segundo
princípio, por sua associação com a matéria grosseira, transforma-a, do que de costume
chamamos matéria inorgânica (o que com mais propriedade seria chamá-la inerte), em matéria
viva, sendo algo bem diverso da matéria mais inferior que conhecemos. Constitui, portanto, o
segundo princípio algo que possamos chamar verdadeiramente de matéria? A questão nos
conduz, assim, ao princípio desta indagação, ao centro da sutil discussão metafísica sobre se a
força e a matéria são diferentes ou idênticas. Basta, no momento, assentar que a ciência oculta
as considera idênticas e que não observa nenhum princípio da Natureza como totalmente
imaterial. Desse modo, embora nenhum conceito do Universo, do destino do homem ou da
Natureza em geral seja mais espiritual do que os da ciência oculta, esta ciência está
completamente livre do erro lógico de atribuir resultados materiais às causas imateriais. A
doutrina esotérica é, portanto, na realidade, o elo que falta entre o materialismo e a
espiritualidade.
A chave do mistério que isso envolve encontra-se no fato, diretamente reconhecível
pêlos ocultistas versados, de que a matéria existe sob outros estados além dos que podem ser
reconhecidos pêlos cinco sentidos.
O segundo princípio do Homem, a Vitalidade, consiste, portanto, na matéria em seu
aspecto como força. Sua afinidade com o estado mais grosseiro da matéria é tão grande que
não pode ser separada de qualquer partícula ou massa da mesma, salvo por instantânea
translação para alguma outra massa ou partícula. Quando o corpo do homem morre, por
abandono de seus princípios superiores que o haviam convertido numa realidade viva, o
segundo, ou seja, o princípio da vida, não constituindo mais uma unidade por si mesma, é
ainda inerente, contudo, às partículas do corpo enquanto este se decompõe, unindo-se a outros
organismos aos quais dá origem o mesmo processo de decomposição. Enterre-se o corpo na
terra e seu Jîva se unirá por si à vegetação que brota na superfície, ou às formas animais
2
A nomenclatura aqui adotada difere ligeiramente da que apareceu na Theosophist, quando alguns fragmentos
dos presentes ensinamentos foram expostos pela primeira vez. Depois se verá que os nomes, atualmente
preferidos, incluem um conceito mais completo de todo o sistema e evitam algumas dificuldades a que nos
nomes primitivos davam origem. Não se deve estranhar que as primeiras exposições da ciência esotérica fossem
imperfeitas, pois eram uma conseqüência natural das dificuldades com que os expositores ingleses lidavam. Mas
não há que confessar, nem deplorar erro algum substancial. As conotações dos nomes atuais são mais precisas do
que as escolhidas de início; porém, as explicações dadas originariamente, quanto a seu alcance, estavam em
completa harmonia com as que se desenvolvem na atualidade.

19
inferiores que se desenvolvem de sua substância. Queime-se o corpo, e o indestrutível Jîva
voa não menos instantaneamente ao mesmo planeta donde foi originalmente tomado, entrando
em alguma nova combinação determinada por suas afinidades.
O terceiro princípio, o Corpo Astral ou Linga-sharîra, é um duplo etéreo do corpo
físico, seu desenho original. Ele é quem guia o Jîva em seu trabalho sobre as partículas físicas
e é a origem para que este construa a forma que aquelas assumem. Vitalizado pêlos princípios
mais elevados, sua unidade é conservada apenas pela união de todo o grupo. Na ocasião da
morte, desencarna-se por um breve período, e sob condições anormais é transitoriamente
visível para algumas pessoas. Sob tais condições, é tomado naturalmente pelo espectro da
pessoa morta. As aparições espectrais podem, às vezes, ter outras causas, mas o terceiro
princípio, quando isso se apresenta como um fenômeno visível, é mera agregação de
moléculas num estado particular, destituído de toda espécie de vida ou consciência. Já não é
um Ser, como não o é qualquer nuvem suspensa que no espaço casualmente tome a
semelhança de algum animal. Em termos gerais, o Linga-sharîra jamais abandona o corpo,
exceto à morte, nem mesmo neste caso migra muito longe dele. Quando é visto, o que só pode
ocorrer raramente, será unicamente percebido perto do lugar onde o corpo físico ainda
permanece. Em alguns casos muito peculiares de mediunidade espírita, pode, durante um
breve tempo, sair do corpo físico e ser visível perto deste, mas o médium, nesse caso,
permanece todo o tempo em perigo iminente de vida. Perturbem-se inconscientemente as
condições nas quais o Linga-sharîra se libertou e sua volta pode ser impedida. Então, o
segundo princípio logo deixaria de animar o corpo físico como uma unidade e se seguiria a
morte.
Durante os dois últimos anos, enquanto indícios e fragmentos de ciência oculta se
difundiram pelo mundo, a expressão "Corpo Astral" vem sendo aplicada a certa semelhança
da forma humana plenamente habitada por seus mais elevados princípios, podendo projetar-se
a qualquer distância do corpo físico, lançada conscientemente e com intenção precisa por um
Adepto vivo, ou sem intencionalidade, por meio da aplicação acidental de certas forças
mentais a seus princípios desprendidos por alguma pessoa no momento da morte. Para uso
comum, não há inconveniente prático no uso da expressão "Corpo Astral" para a aparência
assim projetada. De fato, qualquer expressão mais estritamente rigorosa, como se vê, seria
embaraçosa e devemos empregar a expressão em ambos os significados. Não é preciso criar-
se nenhuma confusão. Porém, estritamente falando, o Linga-sharîra ou terceiro princípio é o
corpo astral, e não pode ser lançado para fora como veículo dos princípios superiores.
Os três princípios inferiores, como se vê, pertencem à Terra. Perecíveis por natureza,
como entidade isolada, embora sejam indestrutíveis com relação às suas moléculas e em
absoluto dissociados do homem em sua morte.
O quarto princípio é o primeiro dos que pertencem à natureza superior do homem. A
denominação sânscrita Kâma-rûpa é com freqüência traduzida por "Corpo de Desejo", o que
parece antes uma expressão confusa e pouco exata. Talvez "Veículo da Vontade" seria uma
tradução mais aproximada, se relacionando melhor ao significado do que às palavras. Porém,
o nome adotado anteriormente, "Alma Animal" é o que sugere uma idéia mais exata.
Na Theosophist de outubro de 1881, quando se divulgaram as primeiras indicações
sobre a constituição setenária do homem, o quinto princípio era chamado "alma animal", para
distingui-lo do sexto, "alma espiritual". Embora essa nomenclatura fosse suficiente para fixar
a distinção exigida, degradava-se o quinto princípio, que é essencialmente o princípio
humano. Apesar de a humanidade ser animal em sua natureza, se ela for comparada com o
espírito, em todos os outros aspectos acha-se acima da criação propriamente animal.
Introduzindo um novo nome para o quinto princípio, fazemos retroceder a denominação
"alma animal" a seu lugar devido. Esta classificação não se opõe, entretanto, à apreciação do
modo como o quarto princípio constitui o centro da vontade ou do desejo a que o nome

20
sânscrito se refere. O Kâma-rûpa é a alma animal, o princípio mais desenvolvido da criação
bruta, suscetível de evoluir e converter-se em algo mais elevado, por sua união com o
crescente quinto princípio no homem. Mas, de todo modo, a alma animal, da qual nenhum
homem prescinde, é o centro de todos os desejos animais e uma potente força no corpo
humano, atuando, por assim dizer, tanto para cima como para baixo, e capaz de influenciar o
quinto princípio, para fins práticos, bem como ser influenciada por ele, para o seu domínio e
aperfeiçoamento. O quinto princípio, a "alma humana" ou Manas (como é descrito em
sânscrito por um de seus aspectos), é a sede da razão e da memória. Uma parte deste
princípio, animada pelo quarto, é o que em realidade se projeta a lugares distantes por um
Adepto, quando faz sua aparição no que se chama comumente seu corpo astral.
O quinto princípio, ou "alma humana", não está ainda plenamente desenvolvido na
maior parte da humanidade. Este fato, sobre o desenvolvimento imperfeito dos princípios
superiores, é muito importante. Não podemos conceber com exatidão o lugar atual do homem
na Natureza, se cometemos o erro de encará-lo como um ser já completamente aperfeiçoado.
E esse erro seria fatal para qualquer previsão razoável relativa ao futuro que o aguarda —
fatal também para qualquer apreciação do verdadeiro caráter do futuro, que a doutrina
esotérica nos explica e que efetivamente o espera.
Uma vez que o quinto princípio não está plenamente desenvolvido, fica subentendido
que o sexto princípio ainda está em estado embrionário. Essa idéia foi indicada de variadas
maneiras em recentes previsões da grande doutrina. Algumas vezes, foi dito que não
possuíamos, a rigor, nenhum sexto princípio, porém que simplesmente temos o seu germe.
Também foi dito que o sexto princípio não está em nós, mas adeja sobre nós. É algo para onde
se devem dirigir as mais altas aspirações de nossa natureza. Mas também foi dito: Todas as
coisas, não apenas o homem, cada animal, planta e mineral, tem os seus sete princípios, e o
mais elevado princípio de todos — o sétimo — vitaliza aquele fio contínuo de vida que passa
através de toda a evolução, unindo em sucessão definida as quase inumeráveis encarnações
daquela vida que forma uma série completa. Devemos assimilar todos esses diferentes
conceitos e uni-los uns com os outros, ou extrair a sua essência, para aprender a doutrina do
sexto princípio. Seguindo a ordem de idéias que agora mesmo nos sugere a aplicação do
termo "alma animal" ao quarto princípio, e "alma humana" ao quinto, pode o sexto ser
denominado a "alma espiritual" do homem, e o sétimo, por conseguinte, o próprio espírito.
Sob outro aspecto da idéia, o sexto princípio pode ser chamado o veículo do sétimo, e
o quarto, o veículo do quinto. Contudo, outra forma de focalizar o problema nos ensina a
considerar cada um dos princípios superiores, a contar do quarto para cima, como um veículo
do que na Filosofia Budista se chama de Vida Una ou Espírito. Segundo este modo de abordar
o assunto, a Vida Una é aquilo que se aperfeiçoa, ao habitar os diferentes veículos. No animal,
a Vida Una está concentrada no Kâma-rûpa. No homem, começa do mesmo modo a penetrar
o quinto princípio. No homem aperfeiçoado penetra o sexto, e quando penetra o sétimo
princípio o homem deixa de ser homem, atingindo uma condição de existência
completamente superior.
Este último modo de situar a questão é especialmente valioso, por prevenir-nos contra
a noção de que os quatro princípios superiores são como um feixe de varas, atadas juntas, mas
possuindo cada uma a sua individualidade, no caso de se desatarem. Nem a "alma animal"
sozinha nem a "alma espiritual" sozinha têm qualquer individualidade. Por outro lado, o
quinto princípio não poderia separar-se dos outros, em tal grau que conservasse sua
individualidade, ao passo que os outros dois princípios ficassem inconscientes. Foi dito que
mesmo os princípios mais sutis são materiais e moleculares em sua constituição, embora
compostos por uma ordem de matéria muito mais elevada do que podem captar os sentidos
físicos. Portanto, são dissociáveis, e o mesmo sexto princípio pode ser imaginado como
divorciando-se de seu vizinho inferior. Neste estado de separação, porém, e no grau atual de

21
desenvolvimento da humanidade, poderia em semelhante circunstância simplesmente
reencarnar-se e desenvolver um novo quinto princípio, por contato com um organismo
humano. Neste caso, o quinto princípio se apoiaria no quarto, sendo proporcionalmente
degradado. Apesar de tudo, este quinto princípio, que não pode permanecer só, é o que
constitui a personalidade do homem e a sua essência, em união com o sexto, a sua contínua
individualidade através das vidas sucessivas.
As circunstâncias e as atrações, sob cuja influência os princípios se dividem, e o modo
como a consciência do homem atua sobre eles, serão objeto de discussão mais adiante.
Entrementes, compreenderemos melhor o aspecto geral da questão ocupando-nos de início
dos processos de evolução por meio dos quais se desenvolvem os princípios do homem.

COMENTÁRIOS

Alguma objeção foi levantada ao método de como a Doutrina Esotérica é apresentada


ao leitor, neste livro, com o fundamento de que é materialista. Duvido eu que, por qualquer
outro procedimento, as idéias de que trato pudessem ser postas ao alcance da inteligência,
sendo fácil, uma vez entendidas, traduzi-las nos termos próprios de seu idealismo. Os
princípios superiores poderão ser considerados melhor como outros tantos estados diferentes
do Ego, quando os atributos destes estados forem considerados separadamente como
princípios submetidos à evolução. Mas vale frisar algo sobre o aspecto da constituição
humana que apresenta a consciência da entidade, emigrando sucessivamente através dos
distintos graus de desenvolvimento que os diferentes princípios significam.
Quanto à evolução mais elevada, da qual temos de ocupar-nos agora — a do Mahâtmâ
perfeito —, declarou-se algumas vezes, nos ensinamentos ocultos, que a consciência do Ego
adquiria o poder de viver integralmente no sexto princípio. Seria, porém, uma maneira
errônea, além de crassa, de considerar o assunto, supor que o Mahâtmâ tenha descartado por
completo, como inúteis, os invólucros do quarto e do quinto princípios, nos quais sua
consciência pode haver morado durante os anteriores estados de sua evolução. A entidade que
era antes o quarto ou quinto princípio, chegou agora a ser diferente em seus atributos e a ficar
divorciada por completo de certas tendências ou disposições, e é, portanto, um sexto
princípio. A mudança pode ser descrita, em termos mais gerais, como uma emancipação da
natureza do Adepto da servidão de seu eu inferior aos desejos da vida terrena comum — e
mesmo das limitações dos afetos. Porque o Ego, que está completamente consciente em seu
sexto princípio, realizou sua unidade com os verdadeiros Egos de toda humanidade, no plano
superior, e não pode mais ser atraído pêlos laços de simpatia mais para uns do que para
outros. Atingiu aquele amor pela humanidade como um todo, que transcende o amor de Mâyâ
ou ilusão, que constitui a criatura humana e é a causa do sentimento de separação do ser
limitado nos planos inferiores da evolução. Não é que tenha perdido seus quarto e quinto
princípios — mas estes alcançaram o Mahatmado. Do mesmo modo como a alma animal do
reino inferior, ao alcançar a humanidade, floresce no quinto estado. Aquela consideração nos
ajuda a entender com maior exatidão a passagem dos seres humanos comuns através de
longas séries de encarnações no plano humano. Tendo penetrado diretamente naquele plano
de existência, a consciência do homem primitivo vai gradualmente adquirindo os atributos do
quinto princípio. Mas o Ego, a princípio, permanece , um centro de atividade mental
trabalhando principalmente com impulsos e desejos pertencentes ao quarto estágio da
evolução. Lampejos da razão humana superior iluminam-no com intermitência no início, mas,
por graus, o homem mais intelectual atinge a plena posse daquela. Os impulsos da razão
humana afirmam-se cada vez mais vigorosamente. A mente fortalecida converte-se em força

22
predominante na vida. A consciência é transferida ao quinto princípio, oscilando, entretanto,
durante muito tempo, entre as tendências da natureza inferior e as da superior, ou seja:
durante vários períodos evolutivos e várias centenas de vidas — e assim purificando e
exaltando o Ego. Durante esse tempo, o Ego constitui assim uma unidade, tomado deste ponto
de vista, enquanto o sexto princípio é apenas uma potencialidade de desenvolvimento
posterior. No tocante ao sétimo princípio, este é o verdadeiro Incognoscível, a causa suprema
reguladora de todas as coisas, o mesmo em todos os homens, o mesmo tanto para a
humanidade., como para o reino animal, o mesmo para todos os planos de existência: físico,
astral, devachânico ou nirvânico. Nenhum homem adquiriu um sétimo princípio, na
concepção superior do assunto: todos nós somos encobertos, do mesmo incompreensível
modo, pelo sétimo princípio do cosmos.
Como se harmoniza esta forma de encarar o assunto com a asserção feita no capítulo
anterior de que, em certo sentido, os princípios são dissociáveis e que até pode imaginar-se o
sexto como se divorciando de seu próximo e inferior vizinho e desenvolvendo, por
reencamação, um novo quinto princípio por meio do contato com um organismo humano?
Não existe qualquer incompatibilidade no espírito de ambas as opiniões. O sétimo princípio é
uno e indivisível em toda a Natureza; mas, por intermédio dele, existe uma misteriosa
persistência de certos impulsos de vida, os quais constituem assim fios em que sucessivas
existências podem estar engastadas. Tal impulso de vida não expira, nem mesmo no caso
hipoteticamente extraordinário em que um Ego, por ele projetado e desenvolvido, até certo
ponto, se desprenda dele totalmente e como um todo completo. Não irei expressar
precisamente o que ocorre em caso semelhante, mas as subseqüentes encarnações do espírito
ao longo daquela linha de impulso se devem, é claro, à seqüência original. E, destarte, dado o
modo materialista de abordar a idéia, pode-se dizer, aproximando-nos da precisão tanto
quanto nos permita a linguagem, que o sexto princípio da entidade caída separa-se do quinto
original e se reencarna por sua própria conta.
Mas não é necessário que nos ocupemos demasiadamente desses processos anormais.
A evolução normal é o problema que temos de resolver primeiro. A consideração dos sete
princípios como tais é, a meu ver, o método mais instrutivo para abordar o problema. E
convém considerar sempre que o Ego é uma unidade que progride através de várias esferas ou
estados de existência, sofrendo mudanças, crescimentos e purificações durante o curso de sua
evolução — ou seja, uma consciência que reside neste, naquele ou em outro dos atributos
potenciais de uma entidade humana.

23
3. A CADEIA PLANETÁRIA

A ciência esotérica, apesar de ser o sistema mais espiritual que se possa imaginar, nos
apresenta, ao atuar em toda a Natureza, o sistema de evolução mais completo que a
inteligência humana possa conceber. A teoria darwiniana da evolução é simplesmente o
descobrimento independente de uma parte — infelizmente só de uma pequena parte — de
uma vasta verdade natural. Porém, os ocultistas sabem explicar a evolução sem degradar os
mais elevados princípios do homem. A doutrina esotérica não tem nenhuma obrigação de
manter a sua ciência e religião em compartimentos estanques. Sua teoria da física e sua teoria
da espiritualidade não são irreconciliáveis; estão intimamente vinculadas e dependem uma da
outra. E o primeiro grande fato que a ciência oculta nos exibe, com relação à origem do
homem neste globo, vem em auxílio da imaginação para alguns sérios problemas da noção
científica familiar de evolução. A evolução do homem não consiste num processo que apenas
acontece neste planeta. É um resultado para o que contribuem muitos mundos em condições
diferentes de desenvolvimento material e espiritual. Se esta asserção fosse exposta apenas
como uma conjectura, é certo que forçosamente se recomendaria por si mesma às
inteligências racionais. Pois existe uma irracionalidade manifesta na noção banal de que a
existência do homem está dividida num começo material, que dura sessenta ou setenta anos, e
num resto espiritual de eterna duração. O irracional converte-se em absurdo quando se
pretende que os atos dos sessenta ou setenta anos — as confusas e frívolas ações da ignorante
vida humana — sejam consentidos pela perfeita justiça de uma sapientíssima Providência,
para definir as condições daquela vida póstuma de duração infinita. Não é menos disparatado
imaginar que, excetuada a questão de justiça, a vida do além deva estar isenta da lei da
mudança, do progresso e do aperfeiçoamento, que todas as analogias da Natureza indicam
como funcionando provavelmente em todas as variadas existências do Universo. Mas
abandone-se de uma vez por todas a idéia de uma vida do além uniforme, invariável e não
progressiva — admita-se por um instante o conceito de mudança e progresso naquela vida —
e conceba-se a idéia de uma variedade dificilmente compatível com qualquer outra hipótese
senão a do progresso através de mundos sucessivos. Como afirmamos antes, não é isto, de
modo algum, uma hipótese para a ciência oculta, mas um fato determinado e comprovado
(por ocultistas) fora de qualquer dúvida ou contradição.
A vida e os processos evolucionários deste planeta — numa palavra, tudo o que faz
dele algo mais que uma massa inerte de matéria caótica — estão encadeados com a vida e os
processos evolucionários de vários outros planetas. Mas não vá supor-se a inexistência de
finalidade no que se refere ao esquema desta união planetária a que pertencemos. A
imaginação humana, uma vez posta em liberdade, às vezes arremessa-se bem longe. Aceite-se
plenamente como provável ou verdadeira esta noção de que a Terra constitui meramente um
elo na grande cadeia de mundos, e poderia originar a idéia de que a totalidade dos céus
estrelados é a herança da família humana. Tal idéia implicaria um erro grave. Um só globo
não oferece lugar à Natureza para os processos mediante os quais o gênero humano foi
evocado do caos. Estes processos exigem apenas um número limitado e definido de globos.
Separados como estão no tocante à grosseira matéria física de que são formados, os globos se
acham estreita e intimamente unidos por meio de sutis correntes e forças, cuja existência não
requer muito esforço racional para ser admitida, desde o momento em que a existência de

24
alguma conexão — de força ou meios etéreos — que une todos os corpos celestes visíveis,
prova-se pelo mero fato de que são visíveis. Por intermédio dessas correntes sutis é como os
elementos de vida passam de um mundo a outro.
Entretanto, o fato é, ao mesmo tempo, suscetível de má interpretação decorrente de
opiniões preconcebidas. Alguns leitores imaginarão que queremos afirmar que, após a morte,
a alma será arrastada pelas correntes daquele mundo com o qual as suas afinidades se
relacionam. O processo real é mais metódico. O sistema de mundos é um circuito em torno do
qual todas as entidades espirituais individuais devem passar igualmente, e esta passagem
constitui a Evolução do Homem. Deve-se entender, portanto, que essa evolução é um
processo ainda em atividade e que de modo algum ele está completo. Os escritos darwinianos
ensinaram o mundo moderno a encarar o macaco como um antecessor, mas a simples vaidade
da especulação ocidental raras vezes permitiu que os evolucionistas europeus dessem uma
rápida olhada noutra direção, reconhecendo a probabilidade de que para os nossos remotos
descendentes podemos ser o que aquele tão mal-recebido progenitor é para nós. Apesar disso,
os dois fatos citados apenas apóiam-se um no outro. A evolução superior será consumada por
nosso progresso através dos mundos sucessivos do sistema, e em formas mais elevadas
voltaremos a esta Terra de vez em quando. Mas as linhas de pensamento, por intermédio das
quais contemplamos essa perspectiva futura, são de uma extensão quase inconcebível.
Poder-se-á supor, facilmente, que os mundos que compõem a cadeia à qual pertence
esta Terra não estão todos preparados para uma existência material exatamente ou mesmo
aproximadamente semelhante à nossa Não teria sentido numa cadeia organizada de mundos,
que todos fossem parecidos e que todos pudessem ser amalgamados num só. Na verdade, os
mundos com os quais estamos relacionados diferem uns dos outros, não só em suas condições
externas, mas também naquela característica suprema da proporção em que o espírito e a
matéria combinam-se em sua constituição. Nosso próprio mundo geralmente apresenta-se-nos
em condições de equilíbrio entre o espírito e a matéria. Não se deve presumir que ocupe um
lugar alto na escala de perfeição. Ao contrário, permanece num nível muito inferior nessa
escala. Os mundos mais elevados na escala são aqueles em que o espírito amplamente
predomina. Existe um outro mundo, por assim dizer, atado à cadeia em vez de formar uma
parte dela, em que a matéria se manifesta até mesmo mais decisivamente que na Terra; mas
disso podemos falar mais adiante.
Que os mundos superiores, que o homem possa habitar em sua evolução progressiva,
tomem-se gradualmente mais e mais espirituais em sua formação — por estar neles a vida
mais e mais nitidamente separada das grosseiras necessidades materiais — parecerá à
primeira vista bastante razoável. Mas também à primeira vista se pode imaginar que todos os
que inversamente forem denominados mundos inferiores, mas que a rigor denominam-se
mundos precedentes, devem ser menos espirituais, mais materiais do que esta Terra. O fato é
bem o oposto, e assim deve ser, visto tratar-se de uma cadeia de mundos sem fim, isto é, uma
cadeia em torno da qual percorre o processo evolucionário. Se este processo somente tivesse
uma jornada ao longo de um caminho que jamais retornasse sobre si mesmo, poderíamos
considerá-lo, deste ponto de vista, como atuando da matéria quase absoluta até o quase
absoluto espírito; mas a Natureza atua sempre em curvas completas e viaja sempre por
caminhos que retornam sobre si mesmos. Os anteriores bem como os posteriores mundos
desenvolvidos — pois a própria cadeia foi crescendo por graus —, tanto os mais atrasados
como os mais adiantados são os mais imateriais, os mais etéreos de toda a série; e isto,
estando bem de acordo com o modo próprio de ser das coisas, pode ser comprovado,
refletindo-se que aquele mundo, estando numa situação mais avançada de todos, não é
nenhuma região de finalidade, mas o primeiro patamar para atingir o que está mais atrás de
todos, da mesma forma como o mês de dezembro nos conduz novamente ao de janeiro. Não
se trata de que a mônada individual caia, como por uma catástrofe, do ápice de

25
desenvolvimento ao estado do qual lentamente ascendeu há milhões de anos. Desde esse
mundo, por motivos que logo apresentaremos, que deve ser considerado como o mais alto no
arco ascendente do círculo até aquele que deve ser considerado como o primeiro no arco
descendente — ou seja, o mais baixo na ordem do desenvolvimento —, não existe descida
alguma, mas sempre ascensão e progresso. Pois a mônada ou entidade espiritual, que
percorreu seu caminho ao redor de todo o ciclo da evolução, tomando-a em qualquer das
muitas etapas de desenvolvimento em que as existências são agrupadas, começa seu próximo
ciclo no grau superior que segue, e deste modo está ainda realizando progresso à medida que
passa do mundo Z outra vez ao mundo A. Muitas vezes percorre o círculo deste modo em
torno do sistema, mas sua passagem ao redor dele não se deve julgar que seja tal qual uma
revolução circular numa órbita. Na escala da perfeição espiritual, está constantemente
ascendendo. Então, se comparamos o sistema de mundos a um sistema de torres situadas
numa planície — cada uma delas de muitos andares e simbolizando a escala de perfeição —,
vemos que a mônada espiritual representa um progresso em espiral em redor da série,
passando por cada uma das torres, cada vez que em sua volta chega a cada uma delas e a um
nível mais elevado que antes.
Por falta de compreensão desta idéia, a especulação relativa à evolução física é amiúde
sustada por obstáculos intransponíveis. Estão-se buscando os elos perdidos num mundo em
que jamais serão encontrados, porque, tendo apenas um objetivo temporal, eles
desapareceram. O homem, diz o darwiniano, foi certa vez um macaco. Muito certo. Mas o
macaco conhecido pelo darwiniano jamais se converterá num homem — isto é, z. forma não
mudará de geração em geração até que a cauda desapareça e os pés se convertam em mãos, e
assim por diante. A ciência comum confessa que, embora as mudanças de forma sejam
percebidas no progresso dentro dos limites das espécies, as mudanças, de espécie para
espécie, podem somente ser inferidas; para explicá-las, pressupõem-se grandes intervalos de
tempo e a extinção das formas intermediárias. Ocorreu, sem dúvida, uma extinção das formas
intermediárias ou primitivas de todas as espécies (na acepção mais ampla da palavra) — isto
é, das correspondentes aos reinos mineral, vegetal, animal, humano, etc. — mas a ciência
comum meramente conjectura que tal fato ocorra, sem compreender as condições que o
tomaram inevitável e que proibiam a renovada geração das formas intermediárias.
É o caráter espiralado do progresso realizado pelos impulsos vitais que desenvolvem
os vários reinos da Natureza o responsável pelos claros que se observam agora nas formas
animadas que povoam a Terra. A rosca de um parafuso, que na realidade é um plano inclinado
uniforme, se parece com uma sucessão de degraus se for examinada apenas ao longo de uma
linha paralela ao seu eixo. As mônadas espirituais que percorrem em volta do sistema ao nível
animal passam a outros mundos, enquanto exerceram aqui sua volta de encarnação animal.
Quando de novo retornam, já estio prontas para uma encarnação humana e então não é
necessário o desenvolvimento ascendente das formas animais em formas humanas — estas já
estão esperando por seus moradores espirituais. Mas se voltarmos bastante para trás,
chegaremos a um período em que não existiam na Terra formas humanas já desenvolvidas.
Quando as mônadas espirituais, percorrendo o nível humano mais baixo ou primitivo,
começavam a circular desse modo, seu impulso para a frente, num mundo que não continha
senão formas animais, provocou o melhoramento das mais elevadas dessas formas na forma
exigida — o elo perdido de que tanto se fala.
Focalizando essa questão sob determinado aspecto, pode-se objetar que esta
explicação é idêntica ao pressuposto evolucionismo darwiniano, com relação ao
desenvolvimento e extinção dos elos perdidos. Afinal de contas, um materialista pode
argumentar que "não nos interessa expressar uma opinião sobre a origem da tendência nas
espécies a desenvolver formas mais elevadas. Dizemos que elas desenvolvem estas formas
mais elevadas por meio de elos intermediários que se extinguem, e vós dizeis exatamente o

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mesmo". Mas existe entre ambas as idéias uma diferença para quem possa compreender
distinções sutis. Ao processo natural de evolução relacionado à influência de circunstâncias
locais e à seleção sexual, não se deve atribuir a produção de formas intermediárias, e este é o
motivo pelo qual se toma inevitável que as formas intermediárias sejam de natureza
transitória e se extingam. Do contrário, veríamos o mundo repleto de elos perdidos de todas as
espécies, aproximando-se ávida animal do gênero humano, por graus claramente visíveis e
misturando-se as formas humanas com as dos animais em indistinguível confusão. O impulso
à nova evolução de formas superiores é dado, efetivamente, como já indicamos, por ondas de
mônadas espirituais que chegam por ciclos num estado apropriado para poder habitar nas
novas formas. Estes impulsos de vida superiores rompem a crisálida da forma mais antiga no
planeta que invadem, surgindo uma eflorescência de algo mais elevado. As formas que nada
mais fizeram do que se repetir por milhares de anos recomeçam o seu crescimento. Com
rapidez relativa, se elevam através das formas intermediárias às formas superiores, e, então,
como estas, por sua vez, multiplicam-se com o vigor e a rapidez de todos os novos
crescimentos, proporcionam habitações de carne para as entidades espirituais que vão
atingindo aquele estado ou plano de existência, enquanto que para as formas intermediárias já
não existem mais moradores que as exijam. Assim, inevitavelmente, elas se extinguem.
Desse modo consuma-se a evolução, no que se refere a seu impulso essencial, por
meio de um progresso em espiral através dos mundos. Na exposição desta idéia, antecipamos
em parte o enunciado de outro fato relevante, como auxílio para corrigir opiniões sobre o
sistema do mundo a que pertencemos. Trata-se do fato de que a maré de vida — a onda de
existência, o impulso espiritual, chame-se como quiser — passa de planeta a planeta por
vagas ou golfadas, e não como uma corrente contínua. No intuito de ilustrar no momento essa
idéia, o processo é comparável à operação de encher uma série de orifícios ou de tubos
fincados no chão, como são vistos algumas vezes na boca de nascentes pouco férteis, os quais
são unidos uns aos outros por meio de pequenos canais superficiais. À medida que brota a
corrente do manancial é, no início, inteiramente recolhida pelo primeiro orifício, ou tubo A, e
apenas quando este está completamente cheio, a corrente contínua de água que brota da fonte,
ao extravasar, passa a encher o tubo B. Este, ficando cheio, transborda pelo canal em direção
ao tubo C. E assim sucessivamente. Pois bem, embora uma analogia tão tosca como esta
certamente não nos leve muito longe, esclarece, no entanto, a evolução da vida numa cadeia
de mundos como a que pertencemos. E esclarece até mesmo a evolução dos próprios mundos.
Porquanto, o processo que ocorre não implica a preexistência de uma cadeia de globos que a
Natureza se encarrega de encher com vida, mas sim num processo em que a evolução de cada
um dos globos é o resultado de evoluções prévias e a conseqüência de certos impulsos
provenientes de seu predecessor na superabundância de seu desenvolvimento. Agora vamos
estudar a característica do processo a ser descrito, mas para isso devemos imaginar que
recuamos no tempo, a um período anterior no desenvolvimento de nosso sistema, muito
anterior ao que trata nosso assunto na atualidade, ou seja: a evolução do homem. É evidente
que tão logo comecemos a falar de princípios de mundos, nos ocupemos de fenômenos que
têm muito pouco a ver com a vida, tal como a entendemos, e, portanto, pode-se supor que eles
nada têm a ver com os impulsos da vida. Mas voltemos por etapas. Atrás do resultado humano
do impulso de vida existe o resultado das meras formas animais, como qualquer um
compreende. Atrás desta, permanecem as formas meramente vegetais — pois algumas delas
antecederam indubitavelmente a aparição da primitiva vida animal no planeta. Além disso,
antes das organizações vegetais, existiam as minerais — visto que até um mineral é produto
da Natureza, evolução de algo existente atrás dela, como deve ser toda a manifestação
imaginável da Natureza — até que, na imensa série das manifestações, a inteligência chega,
retrocedendo, ao Imanifesto princípio de todas as coisas. Não nos ocupamos agora da
metafísica pura dessa espécie. Basta-nos demonstrar que é tão razoável para nós — se de

27
alguma forma queremos falar desses assuntos — conceber um impulso de vida gerando
formas minerais, como considerar que, mercê de impulso idêntico, uma raça de macacos
eleva-se a uma raça de homens rudimentares. A ciência oculta remonta muito mais atrás, em
sua inexaurível análise da evolução, do que ao período em que os minerais começaram a
aparecer. No processo de desenvolver mundos do seio ígneo das nebulosas, a Natureza
começa com algo mais primitivo que os minerais — começa com as forças elementares que
são subjacentes aos fenômenos da Natureza, tais como os sentidos do homem os percebe. Mas
pode-se prescindir, no momento, desta parte do assunto. Tomemos o processo no período em
que o primeiro mundo da série — vamos denominá-lo globo A — é somente uma massa
informe de formas minerais. Pois bem, recorde-se que o globo A foi descrito como muito
mais etéreo, mais dominado pelo espírito, mais livre de matéria do que o globo em que
habitamos na atualidade. Assim, devemos fazer grande concessão quanto a esse estado de
coisas, quando pedimos ao leitor que o imagine, no seu princípio, como mera massa informe
de formas minerais. As formas minerais podem ser minerais no sentido de não pertencerem as
formas superiores do organismo vegetal e podem ser, ainda, muito imateriais, quanto ao que
consideramos como matérias, muito etéreas, constituídas por uma fina ou sutil qualidade da
matéria em que o outro pólo ou característica da Natureza, o espírito, amplamente predomina.
Os minerais, que tentamos descrever, são, por assim dizer, os espectros dos minerais. Não são
os perfeitos, belos e duros cristais apresentados pêlos gabinetes mineralógicos deste mundo.
Nestas espirais inferiores da evolução, de que agora nos ocupamos, do mesmo modo
que nas superiores, existe o progresso de um mundo a outro, e este é o grande ponto a que
visamos. Discorrendo para baixo, por assim dizer, existe o progresso em acabamento,
materialidade e consistência, depois, novamente o progresso também para cima na
espiritualidade, combinado com a perfeição que a matéria ou a materialidade atingiu na
descida. Ver-se-á que o processo de evolução relacionado com o homem, em seus estados
superiores, prossegue exatamente pelo mesmo procedimento. Na verdade, há de se verificar
que, em todos esses estudos, um processo da Natureza tipifica o outro, que o grande é a
repetição do pequeno em maior escala.
Torna-se evidente, pelo que antes afirmamos, e a fim de que sejam explicados os
progressos dos organismos do globo A, que o reino mineral não desenvolverá o reino vegetal
no globo A até que receba um impulso de fora, do mesmo modo que a Terra não pôde
desenvolver o Homem do macaco até que recebeu o impulso de fora. Mas não seria agora
conveniente retroceder à consideração dos impulsos que funcionam no globo A, no início da
construção do sistema.
Remontamo-nos bem atrás, a fim de poder avançar com mais facilidade, desde um
remotíssimo período mais longínquo do que aquele do qual agora retrocedemos. Recuar mais
modificaria por completo o caráter desta exposição. Devemos deter-nos em alguma parte. Por
enquanto, o melhor será admitir como certos os impulsos de vida atrás do globo A. Detendo-
nos neste ponto, vamos examinar, de modo bem sucinto, o enorme período existente entre a
época mineral do globo A e a época do homem, voltando assim ao problema principal que
temos diante de nós. O que já foi dito facilita a abordagem da evolução interposta. O pleno
desenvolvimento da época mineral do globo A prepara terreno para o desenvolvimento
vegetal. Tão logo este se inicia, o impulso da vida mineral inunda o globo B. Quando o
desenvolvimento vegetal no globo A é completo e inicia-se o desenvolvimento animal, então
o impulso de vida vegetal inunda o globo B e o impulso mineral passa ao globo C. Finalmente
chega o impulso da vida humana ao globo A.
Nesta altura, é preciso precaver-nos contra um erro em que podemos incorrer. Tal
como foi descrito aproximadamente, o processo comunica a idéia de que, quando o impulso
humano começou no globo A, o impulso mineral está começando no globo D, e que além dele
existia o caos. Isso está longe da verdade, por duas razões. Em primeiro lugar, como já se

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disse, existem processos de evolução que antecedem a evolução mineral, e assim ocorre que
uma onda de evolução, na verdade várias ondas de evolução, precedem à onda mineral em
seus progressos em volta das esferas. Além disso, existe um fato, que devemos expor, por ter
essa influência no curso dos acontecimentos, e que, uma vez entendido, nos revela que o
impulso de vida passou várias vezes completamente ao redor de toda a cadeia de mundos,
antes de principiar o impulso humano no globo A. Este fato é o seguinte: cada um dos reinos
da evolução, o vegetal, o animal e assim por diante, está dividido em várias camadas dispostas
em espiral. As mônadas espirituais — ou seja, os átomos individuais daquele imenso impulso
de vida, de que tanto se falou — que não completam plenamente a sua existência mineral no
globo A, completam-na depois no globo B, e assim por diante. Elas passam várias vezes ao
redor do círculo completo como minerais. Depois, várias vezes como vegetais e várias vezes
como animais. De propósito nos abstemos, por enquanto, de entrar em números, porque
convém apresentar primeiramente o esboço do esquema em termos gerais. Mas, cifras
relativas a esses processos já foram divulgadas ao mundo pêlos Adeptos do ocultismo. Por
enquanto, para nós, o esboço deverá ser suficiente.
Temos agora o homem rudimentar, iniciando a sua existência no globo A, naquele
mundo em que todas as coisas são como que espectros correspondentes às coisas deste
mundo. Ele começa a sua longa descida na matéria. O impulso de vida de cada "Ronda"
transborda, formando-se as raças de homens em graus diferentes de perfeição em todos os
planetas, cada um por sua vez. Mas as Rondas são mais complicadas em seu modo de ser do
que esta explicação poderia mostrar, se nos detivéssemos aqui. O processo para cada mônada
espiritual não é meramente uma passagem de planeta a planeta. Dentro dos limites de cada
planeta, cada vez que chega a ele, ocorre um complicado processo de evolução. Encarna-se
muitas vezes nas raças sucessivas de homens antes de ir para a frente e, mesmo, está sujeita a
muitas encarnações em cada uma das grandes raças. Ao se avançar mais, há de se ver que este
fato lança um facho de luz sobre o estado atual do gênero humano, tal como o conhecemos,
explicando as imensas diferenças de inteligência, de moralidade e mesmo de bem-estar, em
seu sentido mais elevado, tudo o que aparece em geral tão dolorosamente misterioso.
O que tem um começo definido, em geral, também tem um fim. Assim como
mostramos que o processo evolucionário, antes descrito, começa quando certos impulsos
atuam pela primeira vez, da mesma forma infere-se que tendem para um fim, para um objeto
final. Assim é, embora esta meta esteja ainda longínqua. O homem, tal como o conhecemos
nesta Terra, está apenas a meio caminho do processo evolucionário a que deve seu
desenvolvimento atual. Ele será muito maior, antes que o destino de nosso sistema se tenha
cumprido, do que o é agora, assim como na atualidade ele é muito maior do que o chamado
elo perdido. Esse aperfeiçoamento ocorrerá nesta Terra mesmo, enquanto nos outros mundos
da série ascendente existem ainda outros ápices de perfeição para serem escalados. Imaginar a
espécie de vida que terá o homem, por último, antes de atingir o zênite do grande ciclo, está
completamente fora do alcance de faculdades não acostumadas ao discernimento dos
mistérios ocultos. Mas já há bastante o que fazer com os pormenores do esboço que agora
apresentamos ao leitor, antes de tentarmos prever as vidas para as quais a evolução se dirige
nos imensos abismos do futuro.

COMENTÁRIOS

Há uma expressão no capítulo anterior que não se coaduna com algumas noções mais
completas que pude adquirir sobre o assunto, depois de haver escrito este livro. Afirma-se que
"as mônadas espirituais — os átomos individuais daquele imenso impulso de vida, sobre o
qual tanto se tem falado —, que não completam inteiramente sua existência mineral no globo

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A, completam-na depois no globo B, e assim por diante. Elas passam várias vezes ao redor
de todo o círculo como minerais; depois, várias outras vezes em torno do mesmo, como
vegetais, etc." Agora compreendo que me foi permitido empregar esta forma de expressão no
primeiro caso, porque o principal propósito era elucidar o modo como a entidade humana se
desenvolvia gradualmente, devido aos processos da Natureza, agindo a princípio nos reinos
inferiores. Mas, na verdade, uma vez que se chega a um grau de investigação mais amplo,
torna-se claro que o vasto processo (cujo coroamento é a evolução da humanidade e de tudo o
que conduz a ela, isto é, a descida do espírito na matéria) não produz uma diferenciação de
individualidades até um período muito posterior ao que se observa no parágrafo antes citado.
Nos mundos minerais em que as formas superiores da planta e da vida animal não foram
estabelecidas ainda, não existe nada que se pareça a uma mônada individual e espiritual, a
menos que seja, na verdade, por meio de alguma unidade inconcebível — inconcebível, mas
sujeita a ser tratada como outra teoria qualquer nos impulsos de vida destinados a originar as
cadeias ulteriores de existência de uma organização elevada. Assim como, em nota anterior,
pressupusemos a unidade desse impulso de vida, no caso de um Ego humano pervertido,
lançado como entidade completa fora da corrente da evolução em que havia entrado, podemos
igualmente supor a mesma unidade como existente nos primeiros albores da cadeia planetária.
Mas isto não passa de uma hipótese que nos dá certa garantia, reservando-nos o direito de
indagar depois alguns mistérios, dos quais não necessitamos tratar no momento. Para apreciar
de modo geral o assunto, é melhor considerar a primeira infusão do espírito na matéria, como
provocadora de uma manifestação homogênea. As formas específicas do reino mineral, os
cristais e as rochas diferenciados são bolhas daquela massa fervente, assumindo parcialmente
formas individualizadas por certo tempo e confundindo-se outra vez com a substância geral
do crescente cosmos, não se tratando ainda de verdadeiras individualidades. Nem sequer no
reino vegetal começa a individualidade. O reino vegetal estabelece a matéria orgânica em
manifestação física e prepara o caminho para a evolução superior do reino animal. Neste, pela
primeira vez, mas unicamente em suas regiões superiores, é evocada a verdadeira
individualidade. Portanto, até que contemplemos na imaginação a passagem do grande
impulso de vida ao redor da cadeia planetária, no nível da encarnação animal, até aí não seria
estritamente justificável falar das mônadas espirituais que se movem em volta do círculo,
como uma pluralidade a que o pronome "elas" pudesse ser aplicado com propriedade.
É evidente que os Adeptos, autores da doutrina exposta neste volume, não revelaram o
tema da cadeia planetária com a intenção de encorajar nenhum estudo íntimo da evolução na
mesma grande escala em que aqui aparece exposta. Em tudo o que se refere à humanidade, o
período em que a Terra estará ocupada por nossa raça é mais do que suficiente para absorver
nossa energia especulativa. A magnitude do processo evolucionário, que se verifica durante
esse período, é mais do que suficiente para pôr à prova as faculdades da imaginação comum.
No entanto, é sumamente vantajoso para os estudantes da doutrina oculta, para que
compreendam de uma vez a pluralidade de mundos em nosso sistema — suas íntimas relações
entre si e a interdependência mútua — antes de concentrar a atenção na evolução deste único
planeta. Pois em muitos aspectos a evolução de um único planeta segue uma rotina análoga à
rotina que afeta toda a série de planetas a que pertence. Os antigos escritos sobre a ciência
oculta, de linguagem obscura, referem-se algumas vezes aos estados sucessivos do mundo
como se indicassem mundos sucessivos, e vice-versa, causando confusões para o leitor que,
conforme a tendência a que se incline, adere a determinadas interpretações de linguagem
nebulosa. A obscuridade desaparece, porém, quando compreendemos que, nos fatos atuais da
Natureza, temos de reconhecer ambos os procedimentos de mudança. Enquanto habitado pela
humanidade, cada planeta passa por uma metamorfose de caráter altamente importante e
transcendente, cujo efeito em cada um dos casos pode ser encarado quase como equivalente à
reconstituição do mundo. Mas não é menos certo que, se a série completa dessas mudanças

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for tratada como uma unidade, esta pertencerá, como tal, a uma série de mudanças mais
elevada. Os vários mundos da cadeia são realidades objetivas e não símbolos de mudança em
um mundo único e variável. Outras observações sobre este ponto principal estarão com mais
propriedade no lugar que lhes corresponde no final de um dos próximos capítulos.

4. OS PERÍODOS DO MUNDO

Num primeiro relance pela doutrina oculta, observa-se uma ilustração notável das
uniformidades da Natureza, quanto ao desenvolvimento do homem na Terra. O contorno do
plano é tal qual o contorno do plano mais compreensível de toda a cadeia de mundos. Os
pormenores internos deste mundo, por suas unidades de construção, equivalem aos
pormenores internos do organismo maior, de que este mundo é apenas uma unidade. Isto
significa que o desenvolvimento da humanidade nesta Terra se efetua por meio de ondas
sucessivas de desenvolvimento, que correspondem aos sucessivos mundos da grande cadeia
planetária. A grande maré da vida humana — segundo o que já foi descrito — percorre em
volta do círculo inteiro de mundos em ondas sucessivas. Achamos conveniente denominar
Rondas os primeiros crescimentos da humanidade. Não devemos esquecer que as unidades
individuais constitutivas de cada Ronda por turno são sempre as mesmas, no que se refere a
seus princípios superiores. Assim, as individualidades na Terra durante a Ronda número um
voltam outra vez a ela, depois de completarem suas jornadas ao redor de toda a série de
mundos, constituindo a Ronda número dois, e assim sucessivamente. Mas o ponto a que se
deve dar atenção especial é que a unidade individual, chegando a um dado planeta da série, no
decorrer de qualquer das Rondas, não entra em contacto simplesmente com o planeta,
passando ao próximo. Pois, antes de passar a outro planeta, tem de viver por toda uma série de
raças neste planeta. Este fato sugere o esboço da construção que logo há de se desenvolver na
mente do leitor, exibindo aquela semelhança de contorno por parte de um mundo, ao ser
comparado com a série inteira, para a que já se chamou a atenção. Assim como o esquema
completo da Natureza a que pertencemos se desenvolve por meio de uma série de Rondas que
passam através de todos os mundos, assim também o desenvolvimento da humanidade, em
cada um dos mundos, resulta de uma série de raças desenvolvidas por turno, dentro dos
limites de cada mundo.
Já é tempo de esclarecer de que modo funciona esta lei, ocupando-nos dos números
que efetivamente representam um papel na evolução de nossa doutrina. Seria apressado
iniciar por eles nossa explicação, mas uma vez bem entendida a idéia de um sistema de
mundos em cadeia e a idéia da evolução da vida em cada um desses mundos, por meio de
uma série de renascimentos, o exame posterior das leis em funcionamento será, em grande
parte, facilitado pela referência ao número de mundos e raças necessários para realizar toda a
finalidade do sistema. Mas se deve ter presente que a duração inteira do sistema é certamente
limitada no tempo, como o é a vida de um homem. Provavelmente não limitada a determinado
número de anos, fixado irrevogavelmente desde o início, mas tudo o que tem um princípio se
encaminha para um fim. A vida do homem, prescindindo de todos os acidentes, é um período

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findável e a vida do sistema mundial conduz a uma consumação final. Os vastos períodos de
tempo, com relação à vida de um sistema mundial, em geral ofuscam a imaginação; mas
apesar de tudo são mensuráveis e divisíveis em subperíodos de vários tipos e estes têm um
número definido.
Por um instinto profético, Shakespeare tomou o número 7 como o que convinha à sua
fantástica classificação das idades do homem, o que constitui uma questão sobre a qual não
precisamos nos preocupar. O certo, porém, é que não poderia haver feito uma escolha mais
feliz. A evolução das raças humanas pode ser delineada em períodos de sete em sete, e o
número preciso de mundos objetivos que constituem o nosso sistema, e dos quais a Terra é
um deles, é também de sete. Tenha-se em mente que os sábios oculistas conhecem isso como
um fato, assim como os físicos admitem como um fato que o espectro consta de sete cores e a
escala musical de sete tons. Existem sete reinos na Natureza, e não três como a ciência
moderna os classificou incorretamente. O homem pertence a um reino nitidamente separado
do dos animais, incluindo seres de grau mais alto de organização que aquele com que a
humanidade nos familiarizou até agora. Abaixo do reino mineral existem outros três, sobre os
quais a ciência ocidental nada conhece; mas esta parte do assunto pode, no momento, ser
deixada de lado, pois apenas a mencionamos para demonstrar a operação regular da lei
setenária da Natureza.
O homem — voltando ao reino que mais nos interessa — evolui numa série de Rondas
(progressões em volta da série de mundos) e sete delas têm de se efetuar antes que os destinos
de nosso sistema se cumpram. A Ronda em que nos encontramos na atualidade é a quarta.
Existem considerações do mais alto interesse relacionadas com conhecimentos exatos sobre
estes pontos, porque cada Ronda está especificamente destinada ao predomínio de um dos
sete princípios do homem, e na ordem regular de sua gradação ascendente.
Uma unidade individual, que chega a um planeta pela primeira vez no curso de uma
Ronda, tem de evoluir pelas sete raças daquele planeta antes de passar ao próximo, e cada
uma destas raças habita a Terra durante longo tempo. Nossas antiquadas especulações a
respeito do tempo e da eternidade, sugeridas pelos vagos sistemas religiosos do Ocidente, nos
levaram a adotar uma curiosa atitude de pensamento, com relação aos problemas relativos à
duração desses períodos. Falamos da eternidade de modo volúvel e, dirigindo-nos ao outro
extremo da escala, não nos impressionam os milhares de anos, mas assim que os anos são
numerados com exatidão em grupos correspondentes a conceitos determinados, os ilógicos
teólogos ocidentais tendem a reputar como disparates essas numerações. Pois bem, nós que
vivemos atualmente nesta Terra — ou seja, o grosso da humanidade, pois há casos
excepcionais que abordaremos mais tarde — estamos na quinta raça de nossa presente quarta
Ronda. Entretanto, a evolução dessa quinta raça começou há milhões de anos. Animar-se-ia o
leitor, considerando o fato de que a cosmogonia atual não reconhece a sua atuação na
eternidade, a ocupar-se com as estimativas que se referem a milhões de anos, dispondo-se até
mesmo a contá-los como se fossem números dignos de consideração?
Cada uma das sete raças que compõem uma Ronda — ou seja, que evoluem
sucessivamente na Terra durante sua ocupação pela grande vaga da humanidade que passa em
torno da cadeia planetária — está sujeita a subdivisões. Não fosse assim, as existências ativas
de cada unidade humana seriam na verdade poucas e distantes entre si. Nos limites de cada
raça há sete sub-raças, e nos limites de cada subdivisão há outras sete raças ramais. Por todas
estas raças, em termos aproximados, cada unidade humana deve passar durante a sua
permanência na Terra, cada vez que chega a ela numa Ronda de progresso através do sistema
planetário. Pensando bem, essa necessidade não deveria abalar a mente tanto quanto uma
hipótese que estipulasse um número menor de encarnações. Pois, por muitas que sejam as
vidas pelas quais cada unidade individual deva passar na Terra em cada Ronda, sejam em
maior ou menor número, não pode passar adiante enquanto não chegar o tempo em que a

32
onda circulante avançar para outras regiões. Mesmo pelo cálculo já exposto, ver-se-á que o
tempo gasto por cada unidade individual na vida física representa uma pequena fração do
tempo total decorrido entre sua chegada à Terra e sua partida para o planeta próximo. A maior
parte do tempo — tal como contamos sua duração — portanto, obviamente transcorre nas
condições subjetivas de existência que pertencem ao "Mundos dos Efeitos", ou à Terra
espiritual ligada à Terra física, onde se passa a nossa existência objetiva.
A natureza da existência na Terra espiritual deve ser considerada pari passu com a
natureza da vida passada na Terra física, se relacionando com a enumeração anterior de
encarnações da raça. Não devemos esquecer jamais que, entre cada existência física, a
unidade individual passa por um período de existência no correspondente mundo espiritual. E
como as condições dessa existência são definidas pelo uso que se fez das oportunidades de
que se dispunha na existência física precedente, com freqüência se indica a Terra espiritual
nos escritos ocultos como o mundo dos efeitos, e a própria Terra como o correspondente
mundo de causas.
O que naturalmente passa ao mundo dos efeitos, após uma encarnação no mundo das
causas, é a unidade individual ou a mônada espiritual; mas a personalidade que acaba de
dissolver-se a acompanha na proporção que corresponde aos méritos dessa personalidade —
ou seja, de acordo com o uso que esta tenha feito de suas oportunidades na vida. O período
que tem de passar no mundo dos efeitos — muito mais longo em cada caso do que a vida que
lhe abriu caminho para a existência naquele — corresponde ao "além-mundo", ou seja, o céu
da teologia comum. Os estreitos horizontes dos conceitos religiosos vulgares compreendem
somente uma vida espiritual e suas conseqüências na vida futura. A teologia supõe que a
entidade em questão tem seu princípio nesta vida física e que a vida espiritual seguinte jamais
cessará. Esse par de existências, revelado pêlos elementos da ciência oculta que agora estamos
expondo, constitui apenas uma parte da experiência da entidade durante a sua conexão com
uma raça ramal, uma das sete pertencentes a uma raça subdivisionária, por sua vez, uma das
sete que compõem uma raça principal, esta, uma das sete ocupantes da Terra através de -uma
das sete ondas circulantes de seres humanos, as quais devem, cada uma de per si, habitá-la,
antes que sejam concluídas as suas missões na Natureza — essa microscópica molécula da
estrutura total é o que a teologia comum trata como se fosse mais que o todo, pois supõe que
isso abrange a eternidade.
Neste ponto devemos prevenir o leitor contra uma conclusão a que poderiam induzi-lo
as explicações anteriores — embora exatas para os períodos que abarcam, não abrangem,
entretanto, a totalidade do esquema. Ele não obterá o número exato de vidas que uma entidade
individual tem de passar na Terra durante sua permanência ali numa Ronda, se simplesmente
eleva o número sete à sua terceira potência. Se em cada uma das raças ramais ocorresse
unicamente uma existência, o número total seria, obviamente, 343; porém, cada vida desce à
objetividade duas vezes, pelo menos, no mesmo ramo — em outras palavras: cada mônada
encarna duas vezes em cada raça ramal. Por outro lado, existe uma curiosa lei cíclica que atua
para aumentar o número total de encarnações além de 686. Cada uma das sub-raças possui em
seu ápice certa vitalidade extra, que a leva a fazer com que brote uma raça ramal adicional
naquele ponto de seu progresso, pelo que desenvolve um ramo novo no fim da sub-raça, por
assim dizer, em seus derradeiros momentos. Através de todas essas raças passa a onda inteira
da vida humana. O resultado é que o número normal de encarnações, para cada mônada, é de
quase 800. Este número varia dentro de limites relativamente estreitos, mas as significações
desse fato serão consideradas mais adiante.
A lei metódica que conduz a todas e a cada uma das entidades humanas, através do
vasto processo evolucionário assim esboçado, não é compatível, de forma alguma, com a
possibilidade de cair em destinos anômalos ou na derradeira aniquilação que ameaça as
entidades pessoais de gente que cultivou afinidades muito ignóbeis. A distribuição dos sete

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princípios à morte demonstra isto de modo bastante claro, mas, considerada à luz destas
explicações posteriores sobre a evolução, podemos, com mais facilidade, compreender a
situação. A entidade permanente é a que vive através da série inteira de vidas, não só das
raças, pertencentes à atual onda circulante na Terra, mas também através de todas as outras
ondas circulantes e em todos os outros mundos. Expressando em termos gerais, no tempo
oportuno, embora num futuro inconcebivelmente distante, se for medido em anos, ela poderá
recuperar a recordação de todas essas vidas, que lhe parecerão dias do passado. Mas a escória
astral, expelida a cada entrada no mundo dos efeitos, tem existência própria mais ou menos
independente, separada por completo da entidade espiritual da qual recentemente se desligou.
A história natural dessa escória astral é um problema de grande interesse e
importância, mas o prosseguimento metódico de todo assunto exige de nós, à primeira vista,
que se compreenda o destino do Ego espiritual mais durável e elevado, e antes ainda de
empreendermos esta investigação, cabe analisarmos melhor o desenvolvimento das raças
objetivas.
Ainda que se interesse por assuntos que geralmente são considerados como pertinentes
à religião, a ciência esotérica não seria um sistema tão completo e fidedigno, tal como é, se
não conseguisse harmonizar com suas doutrinas todos os fatos da vida terrena. Muito pouco
capaz teria sido ela de pesquisar e certificar-se do modo como a raça humana se desenvolveu
através de evos de tempo e de séries de planetas, se não estivesse estado em condições de
comprovar também, sempre que a indagação menor está contida na maior, o modo como a
onda de humanidade, de que tratamos agora, se desenvolveu nesta Terra. As faculdades, em
suma, que permitem aos Adeptos lerem os mistérios dos outros mundos e dos outros estados
de existência, não são, de forma alguma, inferiores à tarefa de sondar o passado da corrente de
vida deste globo. Disto decorre que, enquanto a rápida lembrança de uns poucos milhares de
anos é tudo o que abrange nossa chamada história universal, a história da Terra, que constitui
uma divisão da ciência esotérica, compreende os eventos da quarta raça, que precedeu a
nossa, e todos os da terceira raça, que precedeu àquela. Na verdade, pode-se remontar ainda
mais, mas nem a segunda nem a primeira raça desenvolveram nada que se possa denominar
civilização, e, portanto, há menos que dizer delas do que sobre as que as sucederam. A
terceira e a quarta é que desenvolveram, por estranho que pareça a alguns de nossos leitores, a
noção de civilização na Terra, há vários milhões de anos.
Onde estão os seus vestígios? — perguntarão. Como pode uma civilização, com que a
Europa dotou presentemente a humanidade, desaparecer tão completamente a ponto de chegar
a ser ignorada a sua anterior existência por alguns habitantes futuros da Terra? Como
podemos, pois, conceber a idéia de que alguma civilização semelhante tenha desaparecido,
sem nos deixar quaisquer registros?
A resposta está na rotina regular da vida planetária, que marcha pari passu com a vida
de seus habitantes. Os períodos das grandes raças raízes são divididos uns de outros por
grandes convulsões da Natureza e por grandes modificações geológicas. A Europa não existia
como continente nos tempos de florescimento da quarta raça. O continente em que a quarta
raça viveu não existia quando floresceu a terceira, e nenhum dos continentes que foram os
grandes vórtices das civilizações daquelas raças existe na atualidade. Sete grandes cataclismos
continentais sobrevêm durante a ocupação da Terra pela onda da vida humana, num período
de Ronda. Cada raça é eliminada, desse modo, no tempo predeterminado, ficando alguns
remanescentes em outras partes do mundo, que não pertencem à região própria de sua raça;
mas esses, de forma invariável nesses casos, mostram uma tendência a degenerar e a reincidir
na barbárie com maior ou menor rapidez.
A região própria da quarta raça, predecessora direta da nossa, era aquele continente do
qual alguma reminiscência foi conservada, até mesmo na literatura exotérica — a
desaparecida Atlântida. Mas a grande ilha, de cuja destruição fala Platão, foi efetivamente o

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último remanescente daquele continente. Foi dito que: "No período Eocênico, na sua primeira
parte, o grande ciclo dos homens da quarta raça, os atlantes, já havia atingido o seu ponto
mais elevado, e o grande continente, o pai de quase todos os continentes atuais, apresentava
os primeiros sintomas de depressão — processo que durou até há 11.446 anos, quando a sua
última ilha, que pode ser propriamente chamada Poseidonis, tradução de seu nome indígena,
submergiu com um estrondo.
"A Lemúria" (um continente mais antigo que se estendia para o Sul, através do que é
hoje o Oceano Índico, mas ligado com a Atlântida, pois então a África não existia) "não deve
ser mais confundida com a Atlântida, do que a Europa com a América. Ambos os continentes
afundaram e foram cobertos pelas águas, com as suas elevadas civilizações e deuses. Porém,
entre ambas as catástrofes, decorreu um período de cerca de 700.000 anos, havendo
florescido a Lemúria e acabado seu curso de vida, exatamente naquele decurso de tempo
anterior ao período inicial da época Eocênica, visto que a sua raça era a terceira.
Contemplai as relíquias daquela que foi antigamente uma grande nação, em alguns dos
aborígines de cabeça chata de vossa Austrália."
Certo escritor cometeu um equívoco ao escrever recentemente sobre a Atlântida,
povoando a índia e o Egito com colônias daquele continente. Sobre isso trataremos em breve.
"Por que os vossos geólogos não levarão em conta" — pergunta meu venerado
Mahâtmâ instrutor — "que, sob os continentes explorados e sondados por eles, em cujas
entranhas encontraram a época Eocênica, forçando-a a entregar seus segredos, permanecem
profundamente submergidos nos insondáveis, ou antes, nos insondados leitos do oceano,
outros e mais antigos continentes cujas camadas não foram jamais exploradas
geologicamente, e que podem algum dia demolir inteiramente as suas atuais teorias? Por que
não admitir que os nossos atuais continentes já permaneceram várias vezes submersos, como
a Lemúria e a Atlântida, e que tiveram os seus tempos de reaparecer de novo e de sustentar
novos grupos de humanidade e de civilização; e que no primeiro grande sublevantamento
geológico e próximo cataclismo, na série dos cataclismos periódicos ocorrentes desde o
princípio até o fim de cada Ronda, nossos já autopsiados continentes submergirão, aflorando
novamente à superfície as Lemúrias e as Atlântidas?"
"Certamente, a quarta raça teve os seus períodos de mais alta civilização." (A carta
que estou agora citando foi escrita em resposta a uma série de perguntas que eu formulei.) "As
civilizações grega, romana e mesmo a egípcia nada são em comparação com as civilizações
que começaram com a terceira raça. As da segunda raça não eram selvagens, mas não
podiam ser denominadas civilizadas."
"Os gregos e romanos eram pequenas sub-raças e os egípcios uma parte de nosso
próprio tronco caucásio. Considerai estes últimos e a índia: tendo atingido a civilização mais
elevada e, o que é mais, a ciência, decaíram. O Egito, como sub-raça diferenciada,
desapareceu por completo (seus coptas são apenas um remanescente híbrido). A índia, como
um dos primeiros e mais poderosos brotos da raça mãe e composta de certo número de sub-
raças, permanece ainda hoje lutando para conquistar de novo, " algum dia, o seu lugar na
história. A história só possui uns poucos desgarrados e nebulosos vislumbres do Egito de há
12.000 anos, época em que, tendo alcançado o ápice de seu ciclo milhares de anos antes,
começou a sua decadência."
"Os caldeus haviam chegado ao apogeu de sua fama oculta antes do que chamais a
Idade do Bronze. Nós sustentamos que existiram civilizações muito maiores que as vossas,
que se erigiram e decaíram — contudo, que garantia podeis mostrar ao mundo de que
afirmamos a verdade? Não basta dizer, como o fazem alguns de vossos modernos escritores,
que existiu uma civilização extinta antes que Roma e Atenas fossem fundadas. Asseveramos
que existiu uma série de civilizações, tanto antes como depois do período glacial, que
ocuparam diversos pontos do globo, alcançaram o cume da glória e morreram. Todo vestígio

35
e lembranças das civilizações assíria e fenícia tinham sido perdidos, até que há poucos anos
começaram a ser feitas descobertas. E agora elas abrem uma nova página na história,
embora não uma das mais primitivas da história da humanidade. Entretanto, a que épocas
tão afastadas remontam essas civilizações em comparação com as mais antigas conhecidas,
ainda àquelas, a história se mostra relutante em aceitar. A arqueologia tem demonstrado
suficientemente que a memória do homem remonta no passado a idades mais recuadas que
as que a história tem desejado admitir e os anais sagrados de nações, antigamente
poderosas, conservados por seus herdeiros, são ainda mais dignos de crédito. Falamos de
civilizações do período pré-glacial, e a pretensão parece absurda, não só à inteligência
comum e profana, mas até à opinião do geólogo de alta erudição. O que dizer, então, de
nossa afirmativa de que os chineses — refiro-me aos do interior, aos verdadeiros chineses,
não à mistura híbrida entre a quarta e a quinta raças, que na atualidade ocupa o trono 3 —
cujos aborígines pertencem em sua não mesclada nacionalidade integralmente ao último e
mais elevado ramo da quarta raça, chegaram a seu mais alto grau de civilização quando a
quinta raça apenas aparecia na Ásia? Quando foi isto? Fazei a conta. O grupo de ilhas
descoberto por Nordenskiold, com Vega, foi encontrado coberto de fósseis de cavalos,
ovelhas, bois, etc., entre gigantescas ossadas de elefantes, mamutes, rinocerontes e de outros
monstros pertencentes a períodos em que o homem, segundo vossa ciência, ainda não havia
feito a sua aparição na Terra. A que se deve o achado de cavalos e carneiros na companhia
dos enormes antediluvianos?"
"A região agora desaparecida no inverno eterno, inabitada pelo homem — o mais
débil dos animais — logo se comprovará que não só teve um clima tropical, coisa que vossa
ciência sabe e não refuta, mas também que igualmente foi a sede de uma das mais antigas
civilizações da quarta raça, cujos mais importantes vestígios encontramos agora no chinês
degenerado, cujos restos mais ínfimos estão misturados, sem esperança de serem
diferenciados (pelos cientistas profanos) dos restos da terceira raça. Disse-vos antes que o
mais elevado povo (espiritualmente) existente hoje na Terra pertence à primeira sub-raça da
quinta raça raiz e é constituído por arianos asiáticos; e que a raça mais elevada (no intelecto
físico) é a última sub-raça da quinta — ou seja: vós mesmos, os conquistadores brancos. A
maior parte da humanidade pertence à sétima sub-raça da quarta raça raiz — as
mencionadas anteriormente: os chineses, seus ramos e brotos (malaios, mongóis, tibetanos,
javaneses, etc.) — com restos de outras sub-raças da quarta e da sétima sub-raça da terceira
raça. Todas essas decaídas e degradadas formas da humanidade são a descendência por
Unha direta de nações altamente civilizadas, das quais nem nomes nem reminiscências
sobreviveram, exceto em Evros como Populvuh, o livro sagrado dos guatemaltecos e alguns
outros desconhecidos à ciência."
Eu me perguntara se havia meio de explicar o que parece ser o impulso curioso do
progresso humano nos últimos dois mil anos, se comparado com o estado de relativa
estagnação do povo da quarta raça desde o início do progresso moderno. Essa pergunta foi a
que despertou as explicações antes citadas e também as seguintes observações relativas ao
recente "impulso do progresso humano".
"É o final de um ciclo muito importante. Cada Ronda, cada raça, assim como cada
sub-raça, tem os seus grandes e os seus pequenos ciclos em cada um dos planetas pêlos quais
a humanidade passa. Nossa humanidade da quarta Ronda tem o seu grande ciclo, o mesmo
acontecendo com as suas raças e sub-raças. O 'curioso ímpeto' deve-se ao duplo efeito do
primeiro — o princípio de seu curso descendente — e do último (o pequeno ciclo de vossa
sub-raça) arremessando-se para seu ápice. Lembrai-vos de que pertenceis à quinta raça;
entretanto, sois tão-só uma sub-raça ocidental. Apesar de vossos esforços, o que chamais de
civilização está restrito unicamente à última e a seus descendentes na América. Ao irradiar
3
Refere-se à Dinastia dos Ch'ing (1644-1912), quando o trono chinês foi ocupado pelos mandchus. (N. T.)

36
em torno de si, pode parecer que a sua luz enganosa lance os seus raios a maior distância do
que em verdade o faz. Não existe ímpeto algum na China, e do Japão fazeis apenas uma
caricatura."
"Um estudante de ocultismo não deve falar do estado estagnado do povo da quarta
raça, visto que a história quase nada sabe sobre esse estado, 'até o início do progresso
moderno' de outras nações, a não ser as ocidentais. O que sabeis da América, por exemplo,
antes da invasão daquela região pêlos espanhóis? Menos de dois séculos antes da chegada
de Cortês, ocorreu ali um grande ímpeto para o progresso entre as sub-raças do Peru e do
México, como ocorre na atualidade na Europa e nos Estados Unidos. Sua sub-raça terminou
com o aniquilamento quase completo, por causas produzidas por si mesma. Podemos falar
tão-só do estado 'estagnado' em que, de acordo com a lei de desenvolvimento, crescimento e
maturidade caem cada raça e sub-raça durante os períodos de transição. Deste último estado
é o que vossa história universal tem conhecimento enquanto permanece soberbamente
ignorante do estado em que até mesmo a índia se achava há uns dez séculos. Vossas sub-
raças agora se, precipitam para o ápice de seus ciclos respectivos, e vossa história não
remonta além dos períodos de decadência de outras poucas sub-raças, pertencentes em sua
maior parte à anterior quarta raça."
Eu também me perguntara a que época pertencera a Atlântida e se o cataclismo pelo
qual foi destruída sobreveio num ponto determinado do progresso da evolução,
correspondente ao desenvolvimento das raças e ao obscurecimento dos planetas. A resposta
foi:
"Na era Miocênica. Tudo ocorre em seu tempo e lugar devidos, na evolução das
Rondas. De outra forma seria impossível, para o melhor dos videntes, calcular a hora exata e
o ano em que tais cataclismos, grandes e pequenos, têm de ocorrer. Tudo o que um Adepto
poderia fazer seria prognosticar o tempo aproximado, enquanto o que efetivamente sucede é
que os acontecimentos que resultam em grandes mudanças geológicas podem ser
prognosticados com certeza tão matemática, como os eclipses e outras revoluções no espaço.
A submersão da Atlântida (o grupo de continentes e ilhas) começou durante a era Miocênica
— do mesmo modo como alguns de vossos continentes, observa-se agora, estão afundando
gradualmente — tendo seu ponto culminante com o desaparecimento final do continente
maior, evento coincidente com a elevação dos Alpes, terminando com o desaparecimento das
belas ilhas mencionadas por Platão. Os sacerdotes egípcios de Saís contaram a Sólon que a
Atlântida (ou seja, a única grande ilha restante) perecera há 9.000 anos. Este não era um
dado imaginário, visto que eles haviam conservado os seus anais com grande zelo por
milênios. Mas nesse caso, como disse, eles se referiam a Poseidonis, não querendo revelar
nem mesmo ao grande legislador grego a sua cronologia mais secreta. Como não existem
quaisquer razões geológicas para duvidar disso, senão antes há massa de evidências em prol
da tradição, a ciência aceitou, por fim, a existência do grande continente e arquipélago, e
assim deu fundamento de verdade ao que se pensava ser mais uma 'fábula'."
"A proximidade de cada novo obscurecimento é sempre marcada por cataclismos de
fogo ou de água. E cada raça raiz é cortada, por assim dizer, ou por fogo, ou por água.
Assim, tendo chegado ao ápice de seu desenvolvimento e glória da quarta raça, os atlantes
foram destruídos pela água. Encontrareis agora somente os seus degenerados restos cujas
sub--raças, entretanto, tiveram cada uma seus dias gloriosos e a sua relativa grandeza. O
que eles são agora, vós o sereis algum dia, pois a lei dos ciclos é una e imutável. Quando a
vossa raça, a quinta, tiver chegado ao zênite de sua intelectualidade física e desenvolvido a
sua mais alta civilização (lembrai da diferença que estabelecemos entre a civilização
material e a espiritual), incapaz de elevar-se mais em seu próprio ciclo, seu progresso para o
mal absoluto será detido (como o de seus antecessores, os lemurianos e os atlantes, os
homens das terceira e quarta raças foram-no em seu progresso) por uma dessas mudanças

37
cataclísmicas, sua grande civilização será destruída e todas as sub-raças da raça irão
declinando em seus respectivos ciclos, após um breve período de glória e conhecimento.
Contemplai os restos dos atlantes, os antigos gregos e romanos (os modernos pertencem à
quinta raça). Contemplai quão grandes, quão rápidos e passageiros foram os seus dias de
fama e de glória. No entanto, eram apenas sub-raças dos sete brotos da raça raiz4. A
nenhuma raça-mãe, como tampouco a suas sub-raças e brotos, lhe é permitido, por uma lei
soberana, infringir as prerrogativas da raça ou sub-raça que a seguirá. E menos ainda é
permitido usurpar os conhecimentos e poderes em reserva para sua sucessora."
O "progresso para o mal absoluto", detido pêlos cataclismos de cada raça por seu
turno, começa com a aquisição, por meio da pesquisa intelectual comum e do avanço
científico, daqueles poderes sobre a Natureza, que atualmente se desenvolvem no Adeptado,
pelo prematuro desenvolvimento de faculdades mais elevadas do que as que comumente
empregamos. Falei rapidamente desses poderes, em capítulo anterior, quando tentava
descrever os nossos instrutores esotéricos. Descrevê-los minuciosamente conduzir-me-ia a
uma longa digressão sobre os fenômenos ocultos. Basta dizer que são de tal natureza que
necessariamente seriam perigosos à sociedade em geral e provocariam toda espécie de crimes,
que depois desafiariam completamente toda a averiguação, se fossem apropriados por pessoas
capazes de considerá-los de qualquer outra forma, em vez de como uma verdade
profundamente sagrada. Ora, alguns desses poderes são simplesmente a aplicação prática de
forças obscuras da Natureza, suscetíveis de descoberta durante o curso do progresso científico
comum. Tais progressos haviam sido realizados pelos atlantes. Os profanos de ciência
daquela raça haviam aprendido os segredos da desintegração e da reintegração da matéria cuja
possibilidade só hoje é admitida por alguns espíritas devido aos fenômenos que têm
presenciado, e o domínio sobre os elementais, mediante o qual aquele e outros fenômenos
mais portentosos podem se produzir. Esses poderes, em mãos de pessoas desejosas de usá-los
apenas para fins egoístas e inescrupulosos, não só seriam causa de desgraças sociais, mas
também induziriam essas pessoas a usá-los visando àquela malévola exaltação espiritual, o
que traria um resultado mais terrível do que os sofrimentos e as provações deste mundo.
Conseqüentemente ocorre que, quando a inteligência física, não acompanhada de uma
moralidade elevada, se lança à região própria do progresso espiritual, a lei natural provê a sua
violenta repressão. A contingência será melhor entendida quando nos ocuparmos dos destinos
gerais para os quais tende a humanidade.
Desse modo, afirma-se plenamente o princípio pelo qual as várias raças de homens, à
medida que se desenvolvem, são coletivamente governadas pela lei cíclica, por mais que
exercitem o livre-arbítrio que irretorquivelmente possuem. Para a gente que jamais considerou
os assuntos humanos a não ser sob o aspecto do brevíssimo período que a história conhece, o
curso dos acontecimentos não apresentará, talvez, como regra geral, qualquer caráter cíclico,
porém muito mais um progresso ininterrupto, acelerado algumas vezes por grandes homens e
circunstâncias venturosas, outras vezes retardado pela guerra, pela intolerância ou por
intervalos de esterilidade intelectual, mas avançando continuamente para diante em seu longo
percurso, quer com uma, quer com outra velocidade. Como a opinião esotérica sobre o
assunto, fortalecida por um amplo raio de observação em que opera a ciência oculta, possui
tendência inteiramente oposta, parece-nos que vale concluir estas explicações com um trecho
de um autor eminente, bem alheio ao mundo oculto, que entretanto se pronuncia
decididamente a favor da teoria dos ciclos, como resultante da íntima observação dos simples
registros históricos. Em sua História do desenvolvimento intelectual da Europa, o Dr. J.W.
Draper escreve o que segue:
"Somos, como freqüentemente dizemos, filhos das circunstâncias. Há nesta expressão
uma filosofia mais elevada do que parece à primeira vista... Do ponto de vista mais exato,
4
Ramos das sub-raças, segundo a nomenclatura que adotei previamente

38
devemos, pois, considerar o curso desses acontecimentos reconhecendo o princípio de que os
assuntos dos homens avançam de modo determinado, dilatando-se ou desenvolvendo-se.
Daqui vemos que as coisas sobre as quais falamos como se fossem matéria de escolha, eram,
na verdade, impostas a seus aparentes autores pela necessidade dos tempos. Porém,
realmente, devem ser consideradas como apresentação de uma certa fase de vida que as
nações, em seu curso, assumem logo ou mais tarde. No plano individual, sabemos que a
moderação sóbria na ação, a postura grave de conduta, pertence ao período de maturidade
na vida, que é uma modificação da licenciosa obstinação da juventude e que pode ser
provocada ou introduzida por muitos incidentes causais; seja, talvez, por desolações
domésticas, seja por perda da fortuna, ou ainda por falta de saúde. Não cometemos o erro de
atribuir a mudança de caráter a essas experiências; mas nunca nos podemos enganar a
ponto de supor que essa mudança teria deixado de existir se esses incidentes não ocorressem.
De permeio a todas essas vicissitudes circula um irresistível destino... Existem analogias
entre a vida de uma nação e a de um indivíduo, o qual, embora de certo modo seja o autor de
sua própria sorte, para a felicidade ou para desgraça, onde quer que ele vá, ao sabor de suas
inclinações, quer faça ou se abstenha disto ou daquilo, segundo prefira, está contudo
agrilhoado a um destino inexorável - um destino que involuntariamente o trouxe ao mundo,
no que diz respeito à sua vontade, que o compele para diante através de um curso definido
cujos graus são absolutamente invariáveis, a saber: infância, meninice, juventude,
maturidade, velhice, com as suas ações e paixões características; e que o faz desaparecer de
cena no tempo devido, na maior parte dos casos contra a sua vontade. O mesmo acontece
com as nações. O voluntário é unicamente a aparência exterior, cobrindo, embora
dificilmente ocultando o que está predeterminado. Sobre os acontecimentos da vida podemos
ter certo controle, mas nenhum, seja qual for, sobre a lei de seus progressos. Existe uma
geometria que aplica às nações uma equação de sua curva de avanço. A essa nenhum mortal
pode tocar."

5. O DEVACHAN

Não seria possível considerar os estados em que os princípios humanos revertem por
ocasião da morte, sem indicar primeiramente a estrutura geral do plano completo
desenvolvido durante o curso da evolução do homem. Esta parte de minha tarefa, contudo, já
foi concluída. Passemos então a refletir sobre os destinos naturais de cada Ego humano no
intervalo decorrente entre o término de uma vida objetiva e o começo de outra. Nos princípios
desta última, o karma da vida objetiva anterior determina o estado de vida em que o indivíduo
nascerá. Esta doutrina do karma é um dos traços mais interessantes da filosofia budista. Com
relação a ela, em tempo algum houve segredo, ainda que por falta de compreensão adequada
dos elementos de caráter estritamente esotérico ela possa ter sido algumas vezes mal-
compreendida.
Karma é uma expressão genérica aplicada ao complexo grupo de afinidades para o
bem e para o mal, geradas por um ser humano durante a sua vida e cujo caráter é inerente a
seu quinto princípio, através de todo o intervalo que decorre entre a sua morte numa vida
objetiva e o seu nascimento na próxima. Como já foi exposto, a doutrina parece estabelecer a
noção de uma autoridade espiritual superior que resume as ações da vida do homem ao seu
término, considerando suas boas e más ações e pronunciando a sua sentença, segundo o
aspecto completo do caso. Mas compreensão de como os princípios humanos se dividem, na
morte, fornecerá uma chave à interlecção do modo como o karma atua, e também à grande

39
questão do imediato estado espiritual do homem apôs a morte, à qual convém dedicar-nos
desde já.
Na morte, os três princípios inferiores — o corpo, a sua vitalidade meramente física e
a sua correspondente parte astral — são finalmente abandonados pelo que constitui
efetivamente o próprio Homem. E os quatro princípios superiores evadem-se para o mundo
imediatamente acima do nosso, ou seja, acima, no que se refere à espiritualidade — não que
se situe em cima, mas nele e fora dele, no que diz respeito à localização real — que é o plano
astral, ou Kâma-loka, conforme uma expressão sânscrita muito familiar. Nele ocorre uma
divisão entre as duas díadas que incluem os quatro princípios superiores. As explicações já
dadas anteriormente, com relação ao estado imperfeito de desenvolvimento em que se acham
os princípios superiores do homem, evidenciarão que este modo de considerar o processo,
como se fosse uma separação mecânica dos princípios, é um modo primário de tratar o
assunto. O leitor deve modificar as idéias em sua mente, à luz do que já foi dito. Ele pode ser
descrito de outra forma, tomando-o como uma prova da extensão atingida pelo quinto
princípio. Encarado à luz da primeira idéia, devemos, entretanto, conceber, por um lado, o
sexto e o sétimo princípios, atraindo o quinto, a alma humana, numa direção, enquanto o
quarto, por outro lado, o atrai para a Terra. Ora, o quinto princípio é uma entidade muito
complexa, dissociável em elementos superiores e inferiores. Na luta que se trava entre esses
princípios, recentemente seus associados, suas porções espirituais superiores, mais puras e
mais elevadas, aderem ao sexto, enquanto os seus instintos, os seus impulsos e as suas
reminiscências aderem ao quarto. Assim, o quinto princípio, em certa medida, divide-se em
dois. O resto inferior, associado ao quarto, flutua pela atmosfera da Terra, enquanto os
melhores elementos, aqueles, entenda-se bem, que realmente constituem o Ego da última
personalidade terrena, a sua individualidade, a sua consciência, seguem o sexto e o sétimo a
um estado espiritual cuja natureza vamos examinar.
Rejeitando o nome popular usado para este estado espiritual por envolver idéias
sumamente errôneas, permita-se-nos conservar a designação oriental daquela região ou
estado, ao qual os princípios superiores dos seres humanos passam por ocasião da morte.
Sendo isso bem conveniente, pois, se o Devachan da filosofia budista corresponde em alguns
dos seus aspectos à moderna idéia européia do céu, difere desta em outros aspectos que são
sem dúvida mais importantes.
Em primeiro lugar, o que sobrevive no Devachan não é simplesmente a mônada
individual, que sobrevive através de todas as mudanças do esquema evolucionário completo e
passa de um corpo a outro, de planeta a planeta e assim por diante — na verdade, aquilo que
sobrevive, embora com algumas restrições que revelaremos em seguida, é ainda a mesma
personalidade autoconsciente do homem na parte que corresponde aos seus sentimentos mais
elevados, às suas aspirações, a seus afetos e até mesmo às suas preferências durante a sua vida
na Terra. Talvez fosse melhor dizer que o que sobrevive é a essência da última personalidade
autoconsciente.
Entrementes será útil ao leitor saber o que o Coronel H. S. Olcott menciona em seu
Catecismo budista (14º milheiro) sobre a diferença intrínseca entre "individualidade" e
"personalidade". Uma vez que escreveu, não só com a aprovação do Sumo-Sacerdote de
Sripada e Galle, Sumangala, mas também sob a instrução direta do seu Guru Adepto, suas
palavras são importantes para o estudante de ocultismo. Eis o que ele diz em seu apêndice:
"Depois de haver refletido, substituí 'personalidade' por 'individualidade', assim como
constava na primeira edição. As sucessivas aparições em uma ou muitas terras ou 'descida à
geração' da parte tanhaica5 e coerente (Skandhas) de determinado ser são uma sucessão de
personalidades. Em cada nascimento, a personalidade difere da do nascimento anterior e da
do próximo nascimento. Karma, o deus ex machina, disfarça-se (ou, devemos dizer, reflete-
5
De Tanhâ, ou seja: Desejo insaciável. (W. T.)

40
se?) agora na personalidade de um sábio, outra vez na de um artesão e assim
sucessivamente, ao longo da série de nascimentos. Mas embora as personalidades
continuamente mudem, o único fio de vida no qual se engastam aquelas sucessivamente,
como as contas de um rosário, não sofre interrupções."
"Permanece sempre sendo aquela mesma linha ou fio particular, e jamais nenhuma
outra. Portanto, é individual, uma ondulação vital individual que se iniciou no Nirvana, ou
seja, a região subjetiva da Natureza (assim como a ondulação luminosa ou calorífica através
do éter se iniciou em sua fonte dinâmica); transcorre através da região objetiva da Natureza,
sob o impulso do karma e da direção criativa de Tanhâ, tendendo, através de muitas
mudanças cíclicas, a voltar de novo ao Nirvana. Mr. Rhys Davids chama o que passa de
personalidade à personalidade ao longo da cadeia individual, de 'caráter' ou 'modo de ser'.
Desde que o 'caráter' não é uma abstração puramente metafísica, mas a soma das qualidades
mentais e tendências morais de alguém, não ajudaria isso a resolver o que Mr. Rhys Davids
denomina 'o desesperado expediente do mistério', se considerarmos a ondulação da vida
como individualidade e a cada uma de suas séries de manifestações natais como uma
personalidade separada?"
"A negação da 'alma' por Buda (veja-se Sanyutto Nikaya, o Sutta-pitaka)6 assinala a
crença dominante e enganosa numa personalidade independente e transmissível; uma
entidade que passasse inalterada de nascimento a nascimento, ou passasse a lugar ou estado
em que, como entidade perfeita, gozasse ou sofresse eternamente. O que ele evidencia é que a
consciência de 'eu sou eu' é, quanto à permanência, logicamente impossível, uma vez que
seus elementos constitutivos mudam de forma constante e que o 'eu' de um nascimento
diferencia-se do 'eu' de cada um dos outros nascimentos. Mas tudo quanto encontrei no
Budismo concorda com a teoria de uma evolução gradual do homem perfeito — isto é, um
Buda através de inúmeras experiências natais. Na consciência de uma pessoa, que ao
término de uma dada cadeia de existências chega ao estado de Buda, conseguindo atingir o
quarto grau de Dhyana ou místico desenvolvimento, de qualquer um de seus nascimentos
anteriores ao último, as cenas de todos os nascimentos da série são perceptíveis. No
Yatakattahavannana, tio bem traduzido por Mr. Rhys Davids, apresenta-se continuamente
uma expressão que, a meu ver, antes confirma essa mesma ideia, a saber: 'Então o bem-
aventurado tomou manifesto um fato oculto pela mudança de nascimento' ou 'aquilo que
tinha sido escondido por, etc.' O primitivo Budismo, portanto, defende claramente a
permanência de registros no Akâsa e a capacidade potencial do homem para os ler, quando
em sua evolução atingiu o grau da verdadeira iluminação individual."
Os sentimentos e gostos puramente sensuais da personalidade passada desagregam-se
no Devachan, mas daí não decorre que nada se preserve naquele estado, a não ser sentimentos
e pensamentos que se refiram diretamente à religião ou à filosofia espiritual. Ao contrário,
todas as fases superiores, mesmo as da emoção sensual, encontram sua adequada esfera de
desenvolvimento no Devachan. Para sugerir uma série completa de idéias através de um só
exemplo, diremos que uma alma no Devachan, caso seja a alma de um homem apaixonado
pela música, permanecerá extasiada, sem interrupção, pelas sensações que a música produz. A
pessoa cuja mais elevada felicidade na Terra ficou concentrada no exercício das afeições, não
escapará nem um pouco, no Devachan, àqueles a quem ele ou ela amou. Entretanto, ao
mesmo tempo se pode perguntar: e se alguns desses não estão num estado apropriado para o
Devachan, o que ocorre? A resposta é: pouco importa. Porque para a pessoa que os amou eles
estarão ali. Não é preciso dizer muito mais para fornecer a chave da questão. O Devachan é
um estado subjetivo. Parecerá tão real quanto nos parecem as mesas e cadeiras que estão em

6
Segundo o cânone páli, há o Trípitaka, que compreende três partes: o Vinaiapitaka, coleção de regras
monásticas, o Suttapitaka, coleção de Sutiãs ou sermões atribuídos a Buda, e o Abidamapitaka, coleção de
comentários filosóficos. (M T.)

41
volta de nós. Tenha-se presente que, acima de tudo, para a profunda filosofia do ocultismo, as
mesas, as cadeiras e todas as paisagens objetivas do mundo nada têm de reais e são meras
ilusões transitórias dos sentidos. Tão reais como as realidades deste mundo para nós, e até
mais, serão as realidades do Devachan para aqueles que atingem tal estado.
Disto se deduz que o isolamento subjetivo do Devachan, tal como talvez se conceba à
primeira vista, não é, de modo algum, um isolamento real, no sentido em que se entende a
palavra no plano físico da existência, mas é a companhia de todas aquelas coisas pelas quais
uma alma verdadeira anseia, sejam pessoas, coisas ou sabedoria. Um paciente exame do lugar
que o Devachan ocupa na Natureza demonstrará que este isolamento subjetivo de cada
unidade humana constitui o único estado que torna possível o conceito de uma feliz existência
espiritual, para a humanidade em geral, após a morte. O Devachan é um estado tão puro e tão
absolutamente feliz para todos os que o alcançam quanto o Avitchi é o seu contrário. Não
existe desigualdade ou injustiça no sistema. O Devachan não é o mesmo para o bom, como
para o indiferente, mas não é uma vida de responsabilidade e, portanto, não existe nele
logicamente lugar algum para o sofrimento; do mesmo modo que no Avitchi não há lugar
para o gozo ou arrependimento. Ê uma vida de efeitos, não de causas. Uma vida em que nos é
pago o que ganhamos, sem que tenhamos de trabalhar para isso. Portanto, é impossível,
durante essa vida, ter conhecimento do que se passa sobre a Terra, porque tal conhecimento
não possibilitaria a verdadeira felicidade no estado de pós-morte. Um céu convertido em torre
de vigia, de onde os seus ocupantes observassem as misérias da Terra, seria, na verdade, um
lugar de agudos sofrimentos mentais para seus habitantes, dotados dos sentimentos mais
simpáticos, altruístas e caritativos. Se em nossa imaginação investimo-lhes com um grau de
simpatia tão limitado que, além das pessoas de sua afeição que tivessem ficado, não lhes
importasse o espetáculo do sofrimento alheio, ainda assim teriam de passar por um período de
espera muito desafortunado, antes que os sobreviventes alcançassem o fim de uma existência,
com freqüência longa e árdua. Esta hipótese se agravaria ainda mais, fazendo com que os céus
fossem muito penosos para os ocupantes mais generosos e compassivos, que continuariam
desse modo se afligindo na presença da atormentada raça humana, mesmo depois que seus
aparentados pessoais estivessem livres pelo transcurso do tempo. A única forma de fugir a
este dilema está na suposição de que os céus não estão ainda abertos para o seu caso, por
assim dizer, e que todos os mortais, desde Adão até hoje, jazem num sono estático semelhante
à morte, esperando pela Ressurreição ao fim do mundo. Também esta hipótese tem seus
empecilhos, mas na atualidade tratamos da harmonia científica do Budismo Esotérico, e não
das teorias de outras doutrinas.
Os leitores, contudo, admitindo que a observação da vida terrena, feita dos céus,
tomaria impossível a felicidade neles, podem duvidar mesmo que a verdadeira felicidade seja
possível naquele estado, ao qual objetam o monótono isolamento descrito anteriormente. Mas
a objeção teria procedência meramente do ponto de vista de uma imaginação que não foge do
que a circunda no presente. Comecemos com o que se relaciona à monotonia. Ninguém se
lastimará de ter experimentado monotonia durante o minuto, momento, meia hora ou seja o
tempo que for, em que gozou a maior felicidade que teve durante sua vida. A maior parte das
pessoas teve, de algum modo, momentos felizes, capazes de servir ao objetivo desta
comparação. Seja-nos permitido imaginar um minuto ou momento, assaz curto, para dar
motivo à menor suspeita de monotonia, e imaginar o prolongamento imenso de suas
sensações, sem quaisquer fatos externos que marcassem o decurso do tempo. Nesse estado de
coisas, não há lugar para o conceito de enfastiamento. A inalterável e imutável sensação de
intensa felicidade segue seu curso, não para sempre, visto que as causas que a produziram não
são infinitas em si mesmas, mas, sim, durante períodos muito longos de tempo, até que o
impulso ativo se tenha esgotado por si mesmo.

42
Nem tampouco se deve supor que para as almas no Devachan não exista, por assim
dizer, mudança nenhuma de ocupação, e que qualquer momento único de sensação terrena é
escolhido para uma perpetuação exclusiva. Eis aqui o que escreve um instrutor da mais
elevada autoridade a respeito deste assunto:
"Existem dois campos de manifestações casuais — o objetivo e o subjetivo. As
energias mais grosseiras, ou seja, as que operam no estado mais denso da matéria,
manifestam-se objetivamente em cada próxima vida física, constituindo o seu aparecimento,
a nova personalidade de cada nascimento que se conduz dentro do grande ciclo da
individualidade em evolução. Apenas as atividades morais e espirituais são as que encontram
a sua esfera de efeitos no Devachan. E não existindo limites nem para o pensamento, nem
para a imaginação, como se pode questionar, sequer por um momento, que no estado do
Devachan exista algo semelhante à monotonia? Poucos são os homens cujas vidas tenham
sido tão inteiramente destituídas de sentimentos, amor, ou de uma predileção mais ou menos
intensa por determinados pensamentos que sejam inaptos para atingir um período regular de
experiência devachânica, após sua vida terrena. Assim, por exemplo, enquanto os vícios, as
atrações físicas e sensuais de um grande filósofo, porém mau amigo e homem egoísta, podem
acabar no nascimento de uma nova inteligência ainda maior, mas, ao mesmo tempo, no de
um homem dos mais miseráveis, que recolhe os efeitos kármicos de todas as causas
produzidas pelo 'antigo' ser e que resulta inevitável devido às inclinações dominantes
daquele ser no nascimento precedente, o período intermediário entre seus dois nascimentos
físicos não pode ser, dadas as excelentemente bem-ajustadas leis da Natureza, senão um
hiatus de inconsciência. Não pode existir um vazio tão sombrio como o que a teologia
protestante cristã bondosamente promete, ou antes implica para as 'almas que já foram
embora', as quais, entre a morte e a 'ressurreição' devem flutuar no espaço, em catalepsia
mental, aguardando o 'Dia do Juízo'.
Sendo as causas produzidas por energia espiritual e mental muito maiores e mais
importantes do que as criadas pêlos impulsos físicos, seus efeitos têm de ser, por graça ou
por desgraça, proporcionalmente grandes. Não oferecendo as vidas, nesta ou em outras
terras, campo adequado para tais efeitos, e tendo cada lavrador direito a sua própria
colheita, têm de ampliar suas funções, quer no Devachan, quer no Avitchi 7. Bacon, por
exemplo, a quem um poeta chamou: 'O mais brilhante, o mais sábio, o mais mesquinho dos
homens', pode reaparecer em sua próxima encarnação como um ávido avaro, de
extraordinárias faculdades intelectuais. Mas, por mais fortes que estas últimas qualidades
sejam, não encontrarão campo próprio em que aquela linha particular de pensamento (que
foi o objetivo da vida prévia do fundador da filosofia moderna) possa alcançar tudo que lhe é
devido. Seria apenas o astuto advogado, o corrompido Procurador-Geral, o amigo ingrato e
o desonesto Ministro da Justiça, que poderia encontrar, conduzido por seu karma, um novo
terreno apropriado no corpo do prestamista e reaparecer como um novo Shylock8. Mas
aonde iria Bacon, o pensador incomparável, para quem a pesquisa filosófica sobre os mais
profundos problemas da Natureza foi o seu 'primeiro, último e único amor', aonde iria este
'gigante intelectual de sua raça', uma vez despojado de sua natureza mais inferior? Têm de
desvanecer-se e desaparecer todos os efeitos daquela magnífica inteligência? Por certo que
não. Assim é que suas qualidades morais e espirituais têm de achar também um campo, em
que suas energias possam expandir-se. O Devachan é este campo. Daqui se infere que todos
os grandes planos de reformas morais, de pesquisas intelectuais acerca dos princípios
abstratos da Natureza — todas as divinas e espirituais abstrações que encheram a parte mais
brilhante de sua vida devem frutificar-se no Devachan. É a abstraía entidade conhecida no
nascimento precedente como Francis Bacon, e que pode ser conhecida em sua reencarnação
7
Os estados inferiores do Devachan se interpenetram com os do Avitchi
8
Personagem literária de Shakespeare, que representa um avarento, na comédia O Mercador de Veneza.

43
seguinte como um desprezado usurário — criação do próprio Bacon, seu Frankenstein, o
filho de seu karma — ocupar-se-á, enquanto neste mundo interno, também sua obra própria,
em gozar dos efeitos das grandes causas benéficas e espirituais, semeadas em vida. Viveria
uma existência pura e espiritualmente consciente — um sonho de vívida realidade — até que,
estando seu karma satisfeito naquela direção e atingindo a ondulação de força a borda de
sua área subcíclica, o ser deve atuar em sua seguinte esfera de causa, seja neste mesmo
mundo ou em outro, segundo o grau de seu progresso... Portanto, há uma 'mudança de
ocupação', uma mudança contínua no Devachan. Porque aquela vida-sonho é apenas o gozo,
a época da colheita daquelas sementes-germes psíquicas caídas da árvore da existência
física em nossos momentos de sonhos e de esperança — vislumbres imaginários de bem-
aventurança e de felicidade, sufocados num terreno social ingrato, florescendo na
enrubescida aurora do Devachan, e amadurecendo sob seu frutificante céu. Se o homem
tivesse tido um único momento de experiência ideal, nem mesmo então poderia ocorrer, como
erroneamente se supôs, o prolongamento indefinido daquele 'único momento'. Aquela nota
única, arrancada da lira da vida, constituiria a tônica do estado subjetivo do ser e produziria
inúmeros e harmônicos tons e semitons de fantasmagoria psíquica. Ali, todas as esperanças,
aspirações e sonhos não-realizados se tomam efetivos completamente e os sonhos da
existência objetiva convertem-se nas realidades da existência subjetiva. E ali, atrás da
cortina de Mâyâ, suas enganadoras e vaporosas aparências são percebidas pelo Iniciado,
que aprendeu o grande segredo de como penetrar tão profundamente nos Arcanos do Ser..."
Assim como a existência física possui a sua intensidade cumulativa da infância à
virilidade diminuindo sua energia desta à velhice e à morte, do mesmo modo o sonho de vida
no Devachan transcorre de modo análogo. Ocorre o primeiro período de vida psíquica, segue
depois o aparecimento da virilidade, a perda gradual da força, passando a uma letargia
consciente, à semi-inconsciência, ao esquecimento e não morte — mas ao nascimento! —
nascimento em outra personalidade e a ressunção da atividade que diariamente origina novas
séries de causas, que devem encontrar seus efeitos em outra vida devachânica.
"Não é, pois, realidade; é meramente um sonho" — instarão os opositores; "a alma
assim embebida em ilusória sensação de gozo, sem realidade nenhuma naquele tempo, é
enganada pela Natureza e deve sofrer um terrível choque quando despertar de seu erro".
Mas, dada a natureza das coisas, jamais desperta ou pode despertar. O despertar do Devachan
é seu próximo nascimento à vida objetiva e o gole do Leteu 9 já foi tomado. No que diz
respeito ao isolamento de cada alma, nem tampouco existe ali consciência alguma de
isolamento, seja o que for; nem é possível ali separar-se de seus associados escolhidos. Estes
associados não são da natureza de companheiros que podem desejar ir-se embora, de amigos
que podem separar-se, do amigo que os ama, mesmo que este não queira separar-se deles. O
amor, a força criadora, colocou a sua imagem viva diante da alma pessoal que anseia por sua
presença e aquela imagem jamais fugirá.
Neste aspecto da questão, de novo me valho das palavras de meu instrutor:
"Os que fazem objeções dessa espécie simplesmente pressupõem uma incongruência,
pois outra coisa não é aplicar ao Devachan um tipo de relações que unicamente podem
subsistir entre as entidades da existência física! Duas almas irmãs, ambas desencarnadas,
expressarão cada uma suas próprias sensações devachânicas, fazendo participar a outra de
sua felicidade subjetiva. Naturalmente será isso tão real para elas como se ambas estivessem
ainda nesta Terra. Contudo, cada uma está dissociada da outra, no que se refere à
associação pessoal ou corpórea. Enquanto esta última é a única de sua espécie que é
reconhecida por nossa experiência terrena como relação efetiva, para o habitante do
Devachan não só seria algo de ilusório, mas não teria para ele existência alguma em nenhum
9
* Leteu: relativo ao Letes, o rio do Olvido, à entrada do Hades, ou os Infernos, segundo a mitologia grega. (N.
T.)

44
sentido, nem sequer como uma ilusão. Um corpo físico e mesmo um Mâyâvi-rûpa
permaneceriam para os seus sentidos espirituais tão invisíveis como o é ele mesmo para os
sentidos físicos daqueles que mais o amaram na Terra. Assim é que, embora um dos
participantes' estivesse vivo e inteiramente inconsciente desse relacionamento durante seu
estado de vigília, entretanto, todo trato com ele seria, para o habitante do Devachan, uma
realidade absoluta. E que outra associação efetiva pode existir ali, senão a meramente
idealista, como já foi descrita, entre duas entidades subjetivas, que nem sequer são tão
materiais como aquele etéreo corpo--fantasma, o Mâyâvi-rûpal Fazer objeção a isso,
baseando-se em que alguém é assim 'enganado pela Natureza' e chamá-lo 'uma enganosa
sensação de gozo que não tem realidade alguma', é mostrar-se por completo incapaz de
compreender os estados de vida e do ser fora de nossa existência material. Pois, como se
pode fazer a mesma distinção no Devachan — ou seja, fora dos estados da vida terrena —
entre o que chamamos uma realidade e uma contrafação fictícia ou artificial da mesma, neste
nosso mundo? O mesmo princípio não pode ser aplicado a dois estados diferentes. É
concebível que o que chamamos uma realidade, em nosso estado físico encarnado, possa
existir, sob as mesmas condições,'como uma realidade para uma entidade desencarnada? Na
Terra, o homem é dual - no sentido de ser um ente composto de matéria e de espírito —,
donde a distinção natural feita por sua mente, o analisador de suas sensações físicas e
percepções espirituais, entre uma realidade e uma ficção. Ainda assim, mesmo nesta vida, os
dois grupos de faculdades equilibram-se constantemente, e cada grupo, quando prevalece,
considera como ficção ou ilusão o que o outro acredita ser o mais real. Mas no Devachan, o
nosso Ego deixa de ser dualista, no sentido acima, e se converte em entidade mental e
espiritual. Aquilo que durante a vida era uma ficção, um sonho e que só existia na região da
'fantasia', converte-se, sob as novas condições de existência, na única realidade possível.
Assim, pressupormos a possibilidade de qualquer outra realidade para um habitante do
Devachan é sustentar um absurdo, uma falácia monstruosa, uma idéia antifilosófica no
máximo grau. O real é aquilo que é efetivado ou que é exercido de facto: 'A realidade de uma
coisa é demonstrada por sua efetividade'. E como no estado devachânico não têm existência
possível o imaginário e o artificial, a conseqüência lógica é que tudo o que nele existe é
efetivo e real. Além disso, quer porque o sexto princípio encubra os cinco inferiores durante
a vida da personalidade, quer porque se ache inteiramente separado dos princípios mais
grosseiros devido à dissolução do corpo, de todo modo, o sexto princípio — ou seja, a nossa
'Alma Espiritual' — carece de substância, é sempre Arûpa, e tampouco permanece confinado
em um único lugar, com um limitado horizonte de percepções em volta de si. Portanto, quer
ele esteja dentro ou fora de seu corpo mortal, sempre é distinto dele e está livre de suas
limitações. E se nós chamamos as suas experiências devachânicas 'um engano da Natureza',
então não devemos permitir-nos jamais chamar de 'realidade' a nenhum dos sentimentos
puramente abstratos que pertencem por completo à nossa alma superior e que ela reflete e
assimila — como, por exemplo, um conceito ideal do belo, a profunda filantropia, o amor,
etc., bem como qualquer outra sensação puramente espiritual que, durante a vida de prazer
ou dor imensos, enche o nosso ser interno."
Devemos lembrar que, pela mesma natureza do sistema descrito, existem infinitas
variedades de bem-estar no Devachan, correspondentes às infinitas variedades de mérito no
gênero humano. Se "o outro mundo" fosse efetivamente o céu objetivo que a teologia comum
predica, haveria ali injustiça e arbitrariedade sem fim além de ineficiência no seu
funcionamento. Para começar, os indivíduos teriam de ser admitidos ou excluídos e as
diferenças de favorecimento, manifestadas aos diferentes hóspedes na mansão da graça por
excelência, não seriam suficientes para compensar as diferenças de mérito nesta vida. Mas o
céu verdadeiro de nossa Terra concilia-se por si, com infalível exatidão, às necessidades e aos
méritos de todos os que chegam. O céu de cada pessoa, que alcança o céu que realmente

45
existe, ajusta-se exatamente à sua capacidade para dele gozar, não só quanto à duração do
estado bem-aventurado, que é determinado pelas causas produzidas durante a vida objetiva,
mas também quanto à intensidade e amplitude das emoções constitutivas desse estado de
bem-aventurança. É a criação de suas próprias aspirações e faculdades. Seria impossível para
os não-iniciados compreender algo além disso. Mas esta indicação de seu caráter basta para
mostrar quão perfeitamente se adapta ao lugar que lhe está destinado no esquema da
evolução.
Retomo as minhas citações: "O Devachan é, naturalmente, um estado, não uma
localização, o mesmo ocorrendo com o Avitchi, sua antítese (o qual rogo não confundir com
o inferno). A Filosofia Esotérica Budista tem três lokas (denominadas assim) principais, a
saber: 1º) Kâma-loka; 2º) Rãpa-loka; e 3º) Arûpa-laka; ou seja, em sua tradução e
significado literais: 1º) o mundo de desejos ou paixões, de anelos terrenos insatisfeitos - a
mansão dos " ‘Cascões’ e das Vítimas, dos Elementais e dos Suicidas; 2º) o mundo das
formas, ou seja, de sombras mais espirituais, possuindo forma e objetividade, mas nenhuma
substância; e 3º) o mundo informe, ou antes o mundo de nenhuma forma, o incorpóreo, desde
o momento em que seus habitantes não têm para nós, mortais, nem corpo, nem forma, nem
cor, no sentido que atribuímos a estas palavras. Estas são as três esferas da espiritualidade
ascendente, em que os vários grupos de entidades subjetivas e semi-subjetivas encontram as
suas atrações. Todas, exceto os suicidas e as vítimas de mortes violentas e prematuras, vão,
conforme as suas atrações e poderes, para o estado ao Devachan ou ao Avitchi, estados estes
que compõem as inúmeras subdivisões dos lokas Rapa e Arûpa — vale dizer, esses estados
não só variam em grau ou em aspecto para a entidade, quanto a sua forma, cor, etc., mas
também existe uma escala infinita de semelhantes estados, em sua progressiva
espiritualidade e intensidade de sentimento, dos mais ínfimos no Rapa, até os mais elevados e
exaltados, no Arûpa-loka. O estudante deve considerar que personalidade é sinônimo de
limitação e que quanto mais egoísta, quanto mais estreitas sejam as idéias da pessoa, tanto
mais intimamente esta aderirá às esferas inferiores de existência, tanto mais tempo se
demorará no plano das egoístas relações sociais."
Sendo o Devachan um estado de gozo meramente subjetivo, cuja duração e
intensidade são determinadas pelo mérito e espiritualidade da passada vida terrena, não pode
apresentar-se nele ocasião alguma para a retribuição das más ações. Mas não é que a Natureza
se satisfaça em perdoar os pecados, de modo livre e fácil, ou condenar de uma só vez os
pecadores, tal como um senhor preguiçoso, mais indolente do que bondoso faz para governar
com justiça a sua casa. O karma do mal, seja grande ou pequeno, atua com bastante certeza,
no tempo devido, como o karma do bem. Mas o lugar de sua ação não é o Devachan, e sim
um novo renascimento ou Avitchi — estado que se atinge somente em casos excepcionais e
por excepcionais naturezas. Noutras palavras, enquanto o pecador vulgar colherá os frutos de
suas ações nocivas numa reencamação seguinte, o criminoso excepcional, o aristocrata do
pecado, terá como perspectiva o Avitchi, ou seja, o estado de infortúnio espiritual subjetivo,
que é o inverso do Devachan.
"Avitchi é um estado da maior maldade ideal espiritual, algo semelhante ao estado de
Lúcifer, tio magnificamente descrito por Milton. Portanto, não são muitos os que chegam a
ele, como o perceberá o leitor sério. E se se fizer a objeção de que, desde que há o Devachan
para quase todos — os bons, os maus e os indiferentes —, frustram-se os fins de harmonia e
de equilíbrio, e a lei da retribuição, de justiça imparcial e implacável dificilmente se aplica e
satisfaz com tal escassez relativa, para não dizer ausência de sua antítese, então a resposta
demonstrará que não ocorre assim. 'O Mal é o negro filho da Terra (matéria) e o Bem — a
bela filha dos Céus' (ou Espírito), diz o filósofo chinês. Donde, a Terra é o lugar de castigo
para a maior parte de nossos pecados — seu lugar de nascimento e de efetivação. Na Terra

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existe mais mal aparente e relativo do que verdadeiro, e não é dado às hoi-polloi 10
alcançarem todos os dias a fatal grandeza e eminência de um 'Satã’."
Em geral, o renascimento na existência objetiva é o acontecimento que pacientemente
aguarda o karma do mal, quando, então, de modo irresistível se afirma. Isto não quer dizer
que o karma do bem se esgota no Devachan deixando que a infeliz mônada desenvolva uma
nova consciência, sem outro material que as más ações de sua última personalidade. O
renascimento será qualificado tanto por mérito como por demérito da vida prévia, porém a
existência devachânica é um sono róseo, uma noite pacífica, com sonhos mais vívidos que o
dia, e imperecedoura por muitos séculos.
Ver-se-á que o estado devachânico é apenas um dos estados de existência, que
constitui todo o complemento espiritual de nossa vida terrena. Os observadores de fenômenos
espíritas não teriam ficado perplexos, como lhes aconteceu, se não existisse outro estado além
do Devachan. Pois uma vez estando um espírito no Devachan, há muito poucas ocasiões de
comunicação entre um espírito, por completo absorto então em suas próprias sensações e
praticamente esquecido da Terra que abandonou, e de seus amigos ainda vivos. Estes amigos,
quer tenham partido antes, quer permaneçam na Terra, se os laços de afeto eram bastante
fortes, permanecerão com o espírito feliz e, para todos os efeitos, tão felizes, bem-aventura-
dos e inocentes como o próprio sonhador desencarnado. É possível, entretanto, para as
pessoas, ainda viventes, ter visões ao Devachan, embora tais visões sejam raras e somente
percebidas por uma das partes, pois as entidades no Devachan, capazes de ser vistas por um
clarividente terrestre, estão por completo inconscientes dessa observação. O espírito do
clarividente sobe ao estado do Devachan durante tão raras visões e está sujeito, assim, às
vívidas ilusões daquela existência. Acha-se sob a impressão de que os espíritos com os quais
trava relações devachânicas de simpatia vieram visitar a Terra e a ele próprio, enquanto que o
que realmente ocorreu é a operação inversa: o espírito do clarividente foi elevado até aqueles,
ao Devachan. Assim, muitas das comunicações espirituais subjetivas — a maior parte delas,
sempre que os sensitivos são inteligências puras — são reais, apesar de ser da maior
dificuldade para o médium não-iniciado fixar em sua mente, numa imagem verdadeira e
exata, o que vê e ouve. Da mesma forma, alguns dos fenômenos chamados psicográficos
(embora mais raros) são também reais. O espírito do sensitivo, sendo possuído, por assim
dizer, pela aura do espírito no Devachan, converte-se durante alguns minutos naquela
personalidade morta e escreve, com sua última caligrafia, em seu estilo e com seus
pensamentos, tal como eram durante sua vida. Os dois espíritos fundem-se em um só, e a
predominância de um sobre o outro durante tal fenômeno determina a predominância da
personalidade nas características exibidas. Assim é que, acidentalmente, observa-se que o que
é chamado rapport11 é, no final de tudo, uma identidade de vibração molecular entre a porção
astral do médium encarnado e a porção astral da personalidade desencarnada.
Como já foi assinalado, e como o senso comum deve tê-lo demonstrado, existe no
Devachan grande variedade de estados e cada personalidade se encontra ali no lugar
apropriado. Dali, portanto, emerge ao mundo das causas, ou seja, esta Terra ou outra,
conforme seja o caso, quando chega o tempo de seu renascimento. Unido à sobrevivência das
afinidades, abrangidas na definição de karma, afinidades para o bem e para o mal, geradas na
vida anterior, ver-se-á que este processo acarreta uma explicação do problema que foi sempre
encarado como ininteligível: as desigualdades da vida. As condições sob as quais entramos na
nova vida são conseqüências do uso que tivermos feito de nossas últimas circunstâncias.
Aquelas que, sejam quais forem, não impedem o desenvolvimento do novo karma, visto que
este será gerado pelo uso que façamos delas, desta vez. Nem tampouco cabe supor que todos
os fatos correntes da vida, alegres ou tristes, sejam o fruto do antigo karma. Muitos são
10
Termo que significa as massas, a turba. (N. T.)
11
Em francês no original. Ou seja: relação íntima, conformidade, harmonia.

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conseqüências imediatas de atos da vida à qual pertencem — por assim dizer, transações à
vista com a Natureza, dos quais é rigorosamente necessário fazer-se todos os registros desta
nos livros. Mas as grandes desigualdades da vida, quanto ao modo de os diferentes seres
humanos entrarem nela, são uma conseqüência manifesta do antigo karma, cujas variedades
infinitas conservaram sempre uma constante provisão de situações para todas as múltiplas
variedades da condição humana.
Não se deve supor que o verdadeiro Ego deslize instantaneamente, depois da morte, da
vida da Terra e suas complicações para o estado devachânico. Quando a divisão ou
purificação do quinto princípio ocorre no Kâma-loka, pelas contrapostas atrações do quarto e
do quinto princípios, o verdadeiro Ego passa para um período de gestação inconsciente. Já
afirmei como a vida devachânica é um processo de crescimento, maturidade e decadência.
Porém, suas analogias com a Terra certamente são ainda mais estreitas. Existe um estado
espiritual pré-natal, à entrada da vida espiritual, do mesmo modo que existe um estado
semelhante e igualmente inconsciente, ao ingressar na vida objetiva. Este período, em
diferentes casos, varia a sua duração — de poucos momentos a imensos períodos de anos.
Quando um homem morre, sua alma ou quinto princípio se torna inconsciente e perde toda
lembrança das coisas, quer internas, quer externas. Seja que sua permanência em Kâma-loka
dure uns poucos momentos, horas, dias, semanas, meses ou anos, seja que morra de morte
natural ou violenta, quer esta ocorra na juventude ou na velhice, e seja que o Ego tenha sido
bom, mau ou indiferente, sua consciência o abandona rapidamente como a chama de um
pavio, quando é soprada. Quando a vida se retira da última partícula da matéria do cérebro,
suas faculdades perceptivas ficam extintas e seus poderes espirituais de conhecimento e de
volição ficam durante algum tempo tão apagados como os outros. Seu Mâyãvi-rûpa pode ser
lançado na objetividade, como no caso de aparições depois da morte. Mas, a menos que seja
projetado por um desejo consciente ou intenso de ver ou de aparecer a alguém, lançando-se
através do cérebro moribundo, a aparição será simplesmente automática. A revitalização da
consciência em Kâma-loka é, pelo que já se disse, um fenômeno que depende da característica
dos princípios, passando inconscientemente, no momento, fora do corpo moribundo. Pode
chegar a ser regularmente completa, sob circunstâncias de nenhuma forma desejáveis, ou
pode ser obliterada por uma rápida passagem ao estado de gestação conducente ao Devachan.
Este estado de gestação demora muito, em proporção à força espiritual do Ego, e o Devachan
ocupa o restante do período entre a morte e o próximo renascimento físico. Naturalmente, o
período completo é de duração muito variável, conforme difiram as pessoas. Diz-se que o
período entre os renascimentos é quase impossível de ser menor que mil e quinhentos anos,
enquanto que a permanência no Devachan, que é a recompensa de um karma muito rico, diz-
se que algumas vezes se estende por enormes períodos.

COMENTÁRIOS

Quanto às observações a fazer sobre a doutrina compreendida no capítulo anterior,


será mais conveniente transferi-las para o final do próximo e apresentá-las com as pertinentes
aos estados de Kâma-loka.

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6. KÂMA-LOKA

O que antes foi exposto do destino dos princípios humanos superiores depois da morte
facilita o caminho para compreender as circunstâncias em que a escória desses princípios se
encontra, depois que o verdadeiro Ego passou bem pelo estado devachânico, ou por aquele
período inconsciente de sua preparação e que corresponde à gestação física. A esfera em que
semelhante escória permanece durante certo tempo é conhecida, na ciência oculta, por Kâma-
loka, a região do desejo, não a região em que o desejo se desenvolve num grau anormal de
intensidade, comparativamente ao desejo tal como o associamos na vida terrena, mas a esfera
em que essa sensação do desejo, que é uma parte da vida terrena, pode sobreviver.
Pelo que foi dito sobre o Devachan, é claro que grande parte das reminiscências que se
acumulam em redor do Ego humano durante a vida são incompatíveis, por sua natureza, com
a pura existência subjetiva por que passa o Ego verdadeiro, perdurável e espiritual. Nem por
isso se extinguem ou se aniquilam necessariamente essas reminiscências. Permanecem
inerentes acertas moléculas pertencentes aos princípios sutis (embora não nos mais sutis) que
abandonam o corpo por ocasião da morte. Do mesmo modo como a dissolução separa do
corpo o que comumente se chama alma, assim também provoca uma separação posterior entre
os elementos constitutivos dessa alma. Aquela parte do quinto princípio, ou alma humana, que
por sua natureza é assimilável ao sexto princípio — alma espiritual —, ou gravita em direção
a ele, ou passa, juntamente com o germe desta alma divina, à região superior ou estado
devachânico, em que se separa, quase completamente, das atrações da Terra, ou por completo,
de tudo quanto se relaciona a seu próprio curso espiritual, por mais que ainda mantenha certas
afinidades com as aspirações espirituais que emanam da Terra ou que possa algumas vezes
atraí-las para si. Já a alma animal ou o quarto princípio (o elemento da vontade e do desejo,
no que se associa à existência objetiva) não exerce nenhuma atração para o superior, e não
passa além da Terra mais do que o fazem as partículas do corpo entregues à sepultura.
Todavia, este quarto princípio não pode ser confinado no sepulcro. Em sua natureza ou
afinidades não é espiritual, mas tampouco é físico, sendo apenas físico em suas afinidades.
Assim, permanece dentro da atração local e física efetivas da Terra — ou seja, na atmosfera
desta - ou em Kâma-loka, uma vez que não são os gases atmosféricos os que se relacionam
nesta passagem do problema que examinamos.
Ainda com relação ao quarto princípio, uma grande parte dele (no que toca à maioria
da humanidade, infelizmente, embora uma parte muito variável em proporção relativa) sem
dúvida ali permanece. Existindo, ali, muitos atributos do comum e complexo ser humano,
muitos sentimentos ardentes, desejos e atos, torrentes de reminiscências, os quais, ainda que
não estejam relacionados com uma vida tão ardente, talvez como os que se relacionem com as
aspirações mais elevadas, pertencem, contudo, essencialmente, à vida física e demoram a
morrer. Ficam atrás, associados ao quarto princípio, que é todo de natureza perecível, e
dispersam-se, desvanecem-se ou são absorvidos pêlos princípios universais respectivos a que
pertencem, da mesma forma que o corpo é absorvido pela Terra, no decorrer do tempo, rápida
ou lentamente, em proporção à tenacidade de sua substância. Mas onde, entrementes,
permanece a consciência do indivíduo que morreu ou se dissolveu? Com certeza no Devachan

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Mas à mente não treinada na ciência oculta apresenta-se para isto certa dificuldade, pois uma
aparência de consciência permanece inerente à parte astral — isto é, o quarto princípio com
uma parte do quinto — que fica atrás no Kâma-loka. Levanta-se a objeção de que a
consciência individual não pode existir em dois lugares ao mesmo tempo. Mas, acima de
tudo, isto pode acontecer até certo ponto, como logo se perceberá, sendo um erro falar de
consciência, tal como a entendemos na vida, unida à crosta ou escória astral. Pode despertar
nessa crosta certa manifestação espúria de consciência, desprovida de qualquer conexão com
a consciência real, que entretanto cresce em força e em vitalidade na esfera espiritual. Não
tem o cascão o poder de adquirir e assimilar novas idéias e de iniciar cursos de ação com base
nessas novas idéias. Porém, existe no cascão uma sobrevivência dos impulsos volitivos que
lhe foram comunicados durante a sua vida. O quarto princípio é o instrumento da volição,
embora não da volição mesma, e os impulsos que lhe foram comunicados durante a vida pêlos
princípios superiores podem seguir seu curso e produzir resultados quase indiscerníveis, para
os observadores pouco atentos, daqueles que ocorreriam se os quatro princípios mais elevados
estivessem de fato todos unidos, tal qual em vida.
O quarto princípio é, durante a vida, o veículo daquela consciência essencialmente
mortal, que não se harmoniza com um estado de existência permanente; mas a consciência,
mesmo dos princípios inferiores durante a vida, é uma coisa muito diferente da consciência
vaporosa, volátil e incerta, que continua inerente neles, quando aquilo que na realidade é a
vida, que os cobre, ou seja, sua vitalização pela infusão do espírito, extinguiu-se em tudo o
que a eles se refere. Não pode a linguagem tornar inteligível de uma só vez todos os aspectos
de uma idéia que apresente muitos aspectos, como tampouco pode um desenho revelar todos
os lados de um objeto sólido. À primeira vista, os desenhos diferentes de um mesmo objeto,
tomados de diversos pontos de vista, podem parecer tão dessemelhantes que não sejam
reconhecidos como o mesmo. Entretanto, quando a inteligência chegar a percebê-los em
conjunto, verá que as suas diversidades formam um todo harmônico. Assim acontece a estes
sutis atributos dos princípios invisíveis do homem. Nenhum tratado pode fazer mais do que
discutir seus diferentes aspectos de modo separado. Os diversos pontos de vista expostos
devem fundir-se na mente do leitor antes que a concepção completa corresponda às realidades
da Natureza.
O quarto princípio é, na vida, a sede da vontade e do desejo, mas não é a própria
vontade. Deve estar ativamente unido ao espírito obscurecedor, ou a "Vida Una", para ser
assim o agente daquela muito elevada função da vida — a vontade em sua potência sublime.
Como já foi dito, os nomes sânscritos dos princípios superiores envolvem a conotação da
idéia de que são veículos da Vida Una. Não que a Vida Una seja um princípio molecular
dissociável: é a união de todos, a influência do espírito; mas, na verdade, a idéia é demasiado
sutil para a linguagem, e talvez para a própria inteligência. De qualquer maneira, a sua
manifestação no caso atual é bastante evidente. Qualquer que tenha sido a vontade do quarto
princípio quando vivente, este não é capaz, quando morto, de vontade ativa. Mas então, sob
certas condições anormais, pode parcialmente recuperar a vida durante certo tempo, ate fato é
o que explica muitos, embora nem todos, os fenômenos da mediunidade espírita. O
"elemental" (como tem sido geralmente chamado o cascão astral em escritos ocultos
anteriores) é suscetível — deve-se lembrar — de ser galvanizado durante certo tempo pela
corrente mediúnica, passando a um estado de consciência e vida. Disso se pode formar uma
idéia pelo primeiro estado em que se encontra uma pessoa, que levada a um recinto estranho,
em estado de inconsciência durante uma enfermidade, acorda fraca, com sua inteligência
confusa, fitando ao redor de si com um sentimento de desnorteamento, recebendo impressões,
ouvindo palavras que lhe são dirigidas e respondendo vagamente. Este estado de
inconsciência não está associado a noções do passado ou do futuro. É uma consciência
automática como a derivada do médium. Deve-se considerar que um médium é uma pessoa

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cujos princípios estão frouxamente unidos e são suscetíveis de ser apropriados por outros
seres, ou por princípios flutuantes que sintam atração por algum deles ou por alguma parte
deles. Pois bem, o que acontece no caso de um cascão ser desentranhado nas proximidades de
uma pessoa assim constituída? Suponhamos que a pessoa que abandonou o cascão tenha
morrido com algum poderoso desejo insatisfeito, não necessariamente de natureza
pecaminosa, mas totalmente relacionado com a vida terrena, um desejo, por exemplo, de
comunicar algum fato a uma pessoa ainda viva. Sem dúvida, o cascão não vaga pelo Kâma-
loka com um propósito firme, inteligente e consciente de comunicar aquele fato, porém, entre
outros, o impulso volitivo de fazê-lo foi infundido no quarto princípio e enquanto as
moléculas desse princípio permanecerem associadas (o que pode acontecer por muitos anos),
apenas necessitam ser parcialmente galvanizadas de novo à vida, para se converterem em
ativas na direção do impulso original. Esse cascão entra em contato com um médium (na
realidade não tão diferente da pessoa que morreu a fim de que se tome possível um rapport
dificílimo), e algo do quinto princípio desse médium se associa com o quarto princípio
desgarrado e coloca em ação o impulso original. Do médium é então emprestada tanta
consciência e tanta inteligência quanto for necessário para manter o quarto princípio usando
os meios de comunicação que estiverem à mão — uma lousa e um lápis, ou uma mesa para
dar batidas — e, nesse caso, a mensagem dada, por assim dizer, pode ser aquela que a pessoa
morta originalmente ordenara que o seu quarto princípio revelasse, ordem que o cascão até
agora não tivera oportunidade de cumprir. Pode-se objetar que a produção de escritos numa
lousa fechada, ou de golpes numa mesa, sem que se usem os nós dos dedos ou um bastão, é
por si mesma um fato maravilhoso da Natureza, que demonstra, por parte da inteligência
comunicadora, o conhecimento de poderes da Natureza sobre os quais nada sabemos em
nossa vida física. Mas o cascão está no mundo astral, no reino desses poderes, e a
manifestação de tais fenômenos é seu modo natural de conduzir-se. Não tem mais consciência
da produção de um resultado maravilhoso, pelo uso de novos poderes adquiridos numa esfera
mais elevada de existência, do que a que possuímos das forças, por meio das quais na vida o
impulso volitivo é comunicável aos nervos e aos músculos. Ainda se pode objetar que a
"inteligência que comunica" numa sessão espírita executa constantemente fatos notáveis,
apenas por interesse próprio, para exibir o poder que possui sobre as forças naturais. O leitor
há de lembrar-se de que a ciência oculta, contudo, está muito longe de afirmar que todos os
fenômenos do espiritismo são atribuíveis a uma só classe de agentes. Até aqui, neste estudo,
bem pouco foi dito sobre os dementais, esses seres semi-inteligentes da luz astral, que
pertencem a um reino da Natureza inteiramente diferente do nosso. Nem é possível, na
atualidade, estender-nos sobre seus atributos, pela simples e óbvia razão de que o
conhecimento relativo aos elementais, os conhecimentos minuciosos sobre esse assunto, com
relação ao modo como agem, são retidos de forma escrupulosa e secreta pêlos Adeptos do
ocultismo. Possuir tal conhecimento equivale à posse do poder, e todo motivo do grande
segredo de que a ciência oculta está encoberta volta-se para o perigo existente de conferir
poderes a pessoas que não deram, antes de tudo, submetendo-se à instrução dos iniciados,
garantias morais de serem dignas deles. Por intermédio do domínio dos elementais é que
alguns dos maiores feitos físicos do adeptado são realizados, assim como os mais importantes
fenômenos físicos da sessão espírita são produzidos por atos espontâneos dos elementais que
assim atuam. O mesmo ocorre com quase todos os ioguins e faquires da índia das classes mais
inferiores, que possuem o poder de produzir fenomenais resultados. Por alguns meios, talvez
graças a fragmento herdado do ensinamento oculto, encontraram-se de posse de uma partícula
de ciência oculta. Para produzir o fenômeno, não é preciso entender a ação das forças que eles
utilizam, assim como um criado indiano de uma companhia telegráfica, a quem se ensinou a
misturar os ingredientes do líquido empregado na bateria galvânica, não precisa entender a
teoria da eletricidade. Pode executar a única operação que lhe ensinaram, o mesmo

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acontecendo como ioguim inferior, que aprendeu a influenciar certos elementais e pode fazer
certas maravilhas.
Voltemos a tratar dos cascões ex-humanos no Kâma-loka. A respeito, pode-se objetar
que a sua conduta durante as sessões espíritas não fica bem explicada pela teoria de que
tinham alguma mensagem do seu último dono a comunicar. E valendo-se da mediunidade
presente para transmiti-la. À parte os fenômenos que classificamos como extravagâncias de
elementais, encontramos algumas vezes uma continuidade de inteligência, por parte do
dementai ou cascão, que indica muito mais que a mera sobrevivência de impulsos procedentes
da vida anterior. Isto é muito exato. Mas, com porções do quinto princípio do médium, que
lhe tenham sido transmitidas, o quarto princípio volta a ser um instrumento nas mãos de um
mestre. Com um médium em estado de transe, de forma que as energias de seu quinto
princípio possam ser transmitidas em grande parte ao cascão errante, redunda que a
consciência desperta nesse cascão, naquele dado momento. Porém, qual é, nisto tudo, a
conseqüente natureza dessa consciência? Nada mais, na verdade, do que uma luz refletida. A
memória é uma coisa, as faculdades perceptivas são outra inteiramente distinta. Um louco
pode lembrar claramente algumas porções de sua vida passada. Apesar disso, é incapaz de
perceber qualquer coisa em seu aspecto verdadeiro, pois a mais elevada parte de seu Afanas e
Buddhi, o quinto e o sexto princípios, estão paralisados nele ou o abandonaram. Se um animal
— um cão, por exemplo — pudesse se explicar por si mesmo, provaria que sua memória, com
relação à sua personalidade canina, é tão grande quanto a de seu dono. Entretanto, a sua
memória e o seu instinto não podem ser chamados de faculdades perceptivas.
Uma vez que um cascão está na aura do médium, ele pode perceber, suficientemente
claro, o que lhe permitem os princípios transmitidos pelo médium e pêlos órgãos em simpatia
magnética com ele. Mas isto não o conduzirá além do grau das faculdades perceptivas do
médium, ou de alguns outros presentes à sessão. Daí as respostas, freqüentemente racionais e
algumas vezes muito inteligentes, que pode dar, e daí, também, seu invariável e completo
esquecimento de todas as coisas desconhecidas àquele médium ou círculo, ou que não se
encontram nas reminiscências inferiores de sua personalidade passada, galvanizada de novo
pelas influências sob as quais está colocada. O cascão de um homem, em alto grau inteligente
e instruído, mas destituído de espiritualidade, que tenha morrido de morte natural, durará mais
tempo do que o pertencente a temperamentos mais fracos, e (com a ajuda da sombra de sua
própria memória) pode pronunciar, por intermédio de médiuns, orações não desprezíveis. Mas
jamais se notará que estas se relacionem com algo que não sejam os assuntos que o tenham
interessado seriamente durante sua vida, nem uma palavra virá dele que indique um avanço
efetivo de conhecimentos.
Vê-se com facilidade que um cascão astral, atraído para uma corrente mediúnica e
entrando em relacionamento com o quinto princípio do médium, não assegura de modo algum
que ele esteja animado por uma consciência (mesmo sendo pouco o que valham tais
consciências) idêntica à da personalidade morta, de cujos princípios superiores foi
desprendida, pois, com a mesma faculdade, pode refletir alguma personalidade inteiramente
diferente, capaz de ser sugestionada pela mente do médium. Esta personalidade pode talvez
permanecer e responder por algum tempo. Se alguma nova corrente de pensamento, lançada
pelas mentes das pessoas presentes, encontrar eco nas efêmeras impressões do dementai, seu
sentimento de identidade começará a vacilar por um curto tempo, entre duas ou três
conjecturas, acabando por desaparecer por completo. O cascão volta assim a seu sono na luz
astral, sendo, em poucos instantes, inconscientemente arrastado ao outro extremo da Terra.
Além do elemental comum — o cascão da espécie recém-descrita — o Kâma-loka é
também a morada de outra classe de entidades astrais, que devemos lembrar se desejarmos
compreender as diversas condições em que as criaturas humanas passam desta vida para
outras. Até agora examinamos o curso normal dos acontecimentos, quando a pessoa morre de

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modo natural. Mas uma morte anormal levará a conseqüências anormais. Assim, no caso de
pessoas que se suicidaram, os resultados decorrentes diferirão por completo dos que provêm
de morte natural. Se se meditar a respeito desses casos, constatar-se-á que, de fato, num
mundo governado por regras e tribunais, por afinidades que produzem seus efeitos regulares
desse modo deliberado que a Natureza favorece, o caso de uma pessoa que morre de morte
súbita, quando todos os seus princípios estão firmemente unidos e aptos a manter-se assim
durante vinte, quarenta ou sessenta anos, ou, o que seja, o resto natural de sua vida, deve
certamente diferir em algo do de uma pessoa que se acha pelo processo natural em
decadência, quando a máquina vital pára, facilmente dissociável em seus vários princípios,
cada um dos quais estando pronto para seguir seu próprio destino. Á Natureza, sempre
fecunda em analogias, apresenta-nos em seguida o exemplo em dois frutos: um maduro e
outro verde. Do interior do primeiro, seu caroço sairá tão limpo e facilmente quanto a mão de
uma luva, ao passo que do fruto verde somente o caroço é extraído com dificuldade, ficando a
polpa semi-aderida à sua superfície. Pois bem, no caso de uma morte súbita, acidental ou por
suicídio, o caroço tem de ser arrancado do fruto verde. Não é a questão da culpa moral que
pesa aqui sobre o ato do suicídio. É bem provável que, na maior parte dos casos, a culpa
moral lhe seja inerente, mas essa é uma questão do karma que seguirá a pessoa a que se
refere, até seu próximo renascimento, como qualquer outro karma, e não tem nada a ver com
a dificuldade imediata, que essa pessoa possa encontrar em chegar à morte completa. Esta
dificuldade é evidentemente a mesma, quer uma pessoa se suicide, quer seja morta no heróico
cumprimento de seu dever, quer ainda seja vítima de um acidente, por completo independente
de sua vontade.
Como regra geral, quando uma pessoa morre, a longa conta do karma se fecha
naturalmente — isto é, a complicada série de afinidades, que se estabeleceu durante a vida, no
primeiro princípio durável, o quinto, já não é suscetível de aumentar. O saldo das contas, por
assim dizer, não é exigido a não ser no próximo nascimento objetivo, ou, em outras palavras,
as afinidades que no Devachan permanecem em estado latente, devido à ausência de sua
esfera de ação própria, voltam a valer tão logo entrem de novo em contato com a existência
física. Mas o quinto princípio, no qual essas afinidades se desenvolvem, não se desvincula, no
caso da pessoa que morre prematuramente, do princípio terreno, isto é, do quarto princípio.
Portanto, o dementai que assim se encontra no Kâma-loka, em sua violenta expulsão do
corpo, não é um mero cascão, mas a própria pessoa, que vivia, sem que lhe falte mais nada
que o corpo. No verdadeiro sentido da palavra, não está absolutamente morto.
Certos dementais dessa espécie podem comunicar-se de modo efetivo, nas sessões
espíritas, às suas próprias custas. Pois, infelizmente, devido à inteireza de sua constituição
astral, eles podem continuar gerando karma, ao mitigar sua sede pela vida na insalubre fonte
da mediunidade. Se em vida eles pertenceram a um tipo muito material e sensual, os prazeres
que buscarão serão de tal gênero, mesmo a ponto de conceber-se que seu deleite, no estado
desencarnado, será mais danoso para seu karma do que o que foram os seus prazeres durante a
vida. Nesses casos, facilis est descensos. Extirpados à vida terrena, em plena exacerbação de
paixões que os ligam a cenas familiares, são seduzidos pela oportunidade oferecida pêlos
médiuns, para satisfazê-las por procuração. Convertem-se nos íncubos e súcubos de que falam
os escritos medievais, demônios sedentos e glutões, levando as suas vítimas ao crime. Um
breve ensaio sobre este assunto, escrito por mim, apareceu na Theosophist seguido de uma
nota, em cuja autenticidade tenho minhas razões para confiar. Dele reproduzo aqui alguns
parágrafos, cujo teor é o seguinte:
"A variedade de estados depois da morte é muito maior, se possível, do que a
diversidade de vidas humanas nesta Terra. As vítimas de acidentes não se convertem, no
geral, em andarilhos terrestres, mas somente os que caem na corrente de atração, os que
morrem cheios de alguma grosseira paixão terrena, os egoístas, que nunca pensaram no

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bem-estar dos outros. Surpreendidos pela morte na realização, verdadeira ou imaginária, de
alguma subjugadora paixão de suas vidas que não lograram satisfazer, ou mesmo tendo-a
realizado, ansiando por mais, essas personalidades não podem passar nunca mais além da
atração terrena para esperar a hora da liberação em feliz ignorância e pleno esquecimento.
Entre os suicidas, aplica-se o que antes expusemos sobre os que levam ao crime as suas
vítimas, como também àqueles que se suicidaram em conseqüência de um crime, para
escapar à penalidade da lei humana, ou devido ao seu próprio remorso. A lei natural não
pode ser impunemente violada. A inexorável relação causal entre a ação e o resultado
somente atua em sua plenitude, no mundo dos efeitos — o Kâma-loka — e cada caso
encontra ali um castigo apropriado, de mil diferentes modos, cuja descrição superficial
exigiria muitos volumes."
Aqueles que "esperam pela hora da liberação em feliz ignorância e em pleno
esquecimento" naturalmente são aquelas vítimas de acidentes que, na Terra, provocaram
relações puras e elevadas e que, depois da morte, estão além do alcance das tentações que as
correntes mediúnicas representam, da mesma forma como eram inacessíveis durante a vida,
aos impulsos naturais para o crime.
Encontram-se fortuitamente no Kâma-loka entidades de outra espécie, das quais
haveremos ainda de tratar. Temos seguido os princípios superiores de pessoas recém-
falecidas, observando a separação do resíduo as trai, da porção espiritual durável, a qual é
santa ou satânica em sua natureza e, portanto, apropriada para o Devachan ou para o Avitchi.
Analisamos a natureza do cascão elemental arremessado, e que conserva, durante certo tempo,
uma enganosa semelhança com uma entidade real. Temos prestado atenção, também, aos
casos excepcionais de seres com seus quatro princípios, no Kâma-loka, vítimas de acidentes
ou de suicídios. Mas, o que acontece a uma personalidade sem nenhum átomo de
espiritualidade, nem vestígio algum de afinidade espiritual em seu quinto princípio, nem para
o bem, nem para o mal? Nesse caso, é claro que nada existe que o sexto princípio possa
assimilar. Ou, em outras palavras, essa personalidade perdeu seu sexto princípio, quando
chegou o tempo de sua morte. O Kâma-loka não é mais uma esfera de existência para essa
personalidade do que o mundo subjetivo. O Kâma-loka pode ser permanentemente habitado
por seres astrais, por elementais, mas unicamente pode servir de antecâmara a outros estados
relativos aos seres humanos. No caso imaginado, a personalidade sobrevivente é logo levada
pela corrente de seus futuros destinos e estes nada têm a ver com a atmosfera da Terra, nem
com o Devachan, mas sim com a "oitava esfera", mencionada somente de forma casual em
escritos ocultos mais antigos. Até o momento deve ter sido ininteligível aos leitores comuns a
denominação "oitava esfera"; mas, depois de explicada pela primeira vez a constituição
setenária do nosso sistema planetário, o significado ficará bastante claro. As esferas
pertencentes ao processo cíclico da evolução são em número de sete, mas existe uma oitava
em conexão com a nossa Terra, nosso ser terreno. Como se há de recordar, esse é o ponto de
reversão na cadeia cíclica, e esta oitava esfera está situada fora do circuito, sendo uma espécie
de cul-de-sac, por ser uma região da qual pode em verdade dizer-se que nenhum viajante
regressa.
Pode-se conjecturar facilmente que a única esfera relacionada com a nossa cadeia
planetária, que ocupa um lugar inferior ao da nossa, nessa escala, que tem o espírito no seu
extremo superior e a matéria no âmago, não deve ser menos visível à vista e aos instrumentos
ópticos do que a nossa própria Terra. E, como as funções que esta esfera tem de desempenhar
em nosso sistema planetário estão imediatamente associadas com esta Terra, não há, na
atualidade, muito mistério quanto ao enigma da "oitava esfera", nem quanto ao ponto do céu
onde se pode encontrá-la. Entretanto, as condições de existência nela são assuntos sobre os
quais os Adeptos são muito reservados em suas comunicações a discípulos não iniciados, e
com relação a estas informações nada tenho, por agora, a externar.

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Contudo, existe sobre isso uma afirmação definida, a saber, que a degradação total de
uma personalidade, capaz de arrastá-la depois da morte para o raio de atração da "oitava
esfera", é uma ocorrência bem rara. Na imensa maioria das vidas existe algo que os princípios
superiores podem atrair para si, algo que pode redimir de uma destruição total a página de
uma existência que acaba de passar. Tenha-se aqui também presente que as reminiscências da
vida terrena no Devachan, vívidas como são, apenas se referem àqueles episódios que podem
produzir o gênero de felicidade elevada que existe no Devachan, ao passo que a vida, cuja
essência espiritual é assim extraída no presente, pode chegar a ser lembrada no futuro, em
todos os seus pormenores. A recordação completa, porém, só a consegue um indivíduo no
limiar de um estado espiritual bem ulterior, no progresso dos vastos ciclos da evolução. Cada
uma das longas séries de vidas pelas quais se tenha passado será, então, como páginas num
livro cujo dono o folheia à vontade, embora muitas dessas páginas a ele parecerão,
provavelmente, uma leitura fastidiosa, à qual não recorrerá amiúde. Esse reavivamento
eventual de reminiscências relativas às personalidades por longo tempo esquecidas é o que
efetivamente representa a doutrina da Ressurreição. Porém, não dispomos de tempo agora
para deter-nos a desenredar os enigmas desse simbolismo relacionado com os ensinamentos
que no momento são comunicados ao leitor, sendo essas, contudo, uma empresa digna de
levar-se a cabo mais adiante. Por enquanto, voltando ao relato de como os fatos se
apresentam, pode-se dizer que, entre todas as páginas do livro, quando afinal a "ressurreição"
ocorre, não haverá páginas inteiramente perversas. Porque, na verdade, se alguma
individualidade espiritual, durante a sua passagem por este mundo, esteve alguma vez unida a
personalidades tão deploráveis e desesperadamente degradadas, que passaram por completo
dentro da esfera de atração do vórtice inferior, essa individualidade espiritual não terá retido,
nesse caso, em suas próprias afinidades, nenhum vestígio ou mancha de sua degradação. São
páginas que terão sido arrancadas do livro sem deixar qualquer traço. Como ao fim da luta,
depois de cruzar o Kâma-loka, a individualidade espiritual terá passado ao estado
inconsciente de gestação, de onde, tocando de leve o estado devachânico, voltará direta-mente
(embora não de imediato quanto ao tempo) a nascer à vida de atividade objetiva, e toda a
consciência de si mesmo relacionada com aquela existência terá passado ao mundo inferior
para ali eventualmente "perecer eternamente", uma expressão da qual, como tantas outras, a
teologia moderna mostrou ser guardiã infiel, convertendo em puras tolices os fatos
psicocientíficos.

COMENTÁRIOS

Não há parte do presente volume que tenha tanta necessidade urgente de ampliação
com os dois últimos capítulos.
O plano de existência chamado Kâma-loka, assim como a região ou estado mais
elevado, o Devachan, do qual o Kâma-loka é a antecâmara, foram deixados inicialmente, por
nossos mestres, de forma intencional, numa obscuridade parcial, a fim de que o esquema
completo da evolução fosse melhor compreendido. O estado espiritual que segue
imediatamente a nossa vida física atual é uma seção da Natureza, cujo estudo pode ser de uma
sedução malsã para quem compreende que, mesmo durante a vida, é possível colocar-se em
contato com ele e proceder algumas experiências sobre as suas condições. Podemos já, até
certo ponto, reconhecer os fenômenos desse estado de existência a que passa a criatura
humana por ocasião da morte do corpo. As experiências do espiritismo nos forneceram, em
grande profusão, fatos relativos a isso. Esses fatos são, em verdade, extremamente sugestivos
de teorias e inferências que parecem atingir os últimos limites da especulação. Só a rígida

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disciplina mental do estudo esotérico, em seu aspecto mais amplo, pode impedir que qualquer
inteligência dedicada à consideração desses fatos chegue a conclusões que esse mesmo estudo
demonstra serem necessariamente errôneas. Por esta razão, os pesquisadores teosóficos nada
têm a lastimar no que se refere a seus próprios progressos na ciência espiritual, nas
circunstâncias que os induziram a isso até agora, por haverem, antes, se descuidado com
referência aos problemas relacionados com o estado de existência que segue ao nosso. É
impossível exagerar as vantagens espirituais que se obtêm pelo estudo do vasto desígnio da
Natureza, através daqueles extensos reinos do futuro, que unicamente a perfeita clarividência
dos Adeptos pode penetrar, antes de ocupar-se de minúcias referentes àquele limiar espiritual,
parcialmente acessível a uma visão menos poderosa que sem esforço toma essa região num
primeiro estudo, como o todo da expansão do futuro.
Atualmente, contudo, podemos descrever os primeiros processos pêlos quais passa a
alma depois da morte, de um modo mais completo e exato do que estão definidos no capítulo
anterior. A natureza da luta que ocorre no Kâma-loka, entre as díadas superior e inferior, pode
agora, segundo creio, ser melhor compreendida do que no início. Aquela luta parece ser um
processo muito prolongado e heterogêneo, que constitui — não como algum de nós poderia
ter conjecturado a princípio, uma automática ou inconsciente ação de afinidades ou forças
dispostas a determinar o futuro da mônada espiritual após a morte — todavia uma fase da
existência que pode durar, e provavelmente dura na maior parte dos casos, um número
considerável de anos. Durante esta fase de existência, é bem possível às entidades humanas,
que têm abandonado a Terra, manifestar-se a pessoas ainda vivas, por meio da chamada
mediunidade espírita, de um modo que em parte pode explicar, senão vindicar, as impressões
que os espíritas derivam dessas comunicações.
Mas não devemos deduzir, com demasiada pressa, que a alma humana que passa pela
luta ou pela evolução do Kâma-loka é, sob todos os aspectos, o que à primeira vista sugere a
situação assim apresentada. Em primeiro lugar, devemos ter cautela ao materializar
demasiado grosseiramente o nosso conceito da luta, concebendo-a como uma separação
mecânica de princípios. Existe uma separação mecânica, envolvida no abandono dos
princípios inferiores, quando a consciência do Ego se apóia solidamente nos superiores.
Assim, à morte, o corpo é abandonado mecanicamente pela alma, que (em união, talvez, com
os princípios intermediários), ao deixar a morada de que já não necessita, pode ser vista por
alguns clarividentes de ordem elevada. Processo muito semelhante pode, afinal, ocorrer no
próprio Kâma-loka, com respeito à matéria dos princípios astrais. Mas deixando de lado, por
um instante, esta consideração, cabe evitar a suposição de que a luta no Kâma-loka é, por si
mesma, esta última divisão de princípios, ou a segunda morte no plano astral.
A luta em Kâma-loka é de fato a vida da entidade naquela fase de existência.
Conforme se expôs com rigor no capítulo precedente, a evolução ocorrente, naquela fase de
existência, não se relaciona com a opção responsável entre o bem e o mal que acontece
durante a vida física. O Kâma-loka é uma parte do grande mundo dos efeitos — não uma
região em que se originem causas (exceto sob circunstâncias peculiares). A entidade em
Kâma-loka, portanto, não é verdadeiramente dona de seus próprios atos. É, antes, um joguete
de suas próprias afinidades já estabelecidas. Porém, estas afinidades, durante todo esse tempo,
se afirmam ou se esgotam, por graus, e a entidade em Kâma-loka, por todo o tempo, possui
uma existência de consciência vívida de uma espécie ou outra. Pois bem, um momento de
reflexão mostrará que essas afinidades, que estão acumulando força e se afirmando, se
referem às aspirações espirituais experimentadas na última vida, enquanto as que se estão
esgotando se referem aos gostos, às emoções e às tendências materiais. Vale lembrar que a
entidade em Kâma-loka encaminha-se para o Devachan, ou, em outras palavras, está
progredindo em direção ao estado devachânico, e que o processo de desenvolvimento ocorre
por ação e reação, por fluxo e refluxo, como quase todos os processos da Natureza — por

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uma espécie de oscilação entre a luta das atrações da matéria e as do espírito. Destarte, o Ego
avança, por assim dizer, em direção ao céu, ou retrocede para a Terra, durante a sua existência
em Kâma-loka, e precisamente essa tendência a oscilar entre os dois pólos de pensamento ou
estado é o que o faz recuar, às vezes, para a esfera da vida que acaba de deixar.
Suas ardentes simpatias por aquela vida não se dissipam de uma vez. Quanto à suas
simpatias para com os aspectos superiores da vida, deve-se recordar, nem sequer entram no
processo de dissipação. Por exemplo, no que nos referimos aqui como afinidade terrena, não
devemos abranger os sentimentos, que são um exercício exclusivo de natureza devachânica.
Já quanto às afeições, sejam elas terrenas ou espirituais, a sua contemplação, com as
circunstâncias e ambientes da vida terrena, amiúde influi no retrocesso da entidade em Kâma-
loka para a vida terrena, o que mencionamos antes.
À comunicação, estabelecida pela prática do espiritismo entre tais entidades em Kâma-
loka e os amigos que foram deixados na Terra, deve ocorrer naqueles períodos de existência
da alma em que as lembranças da Terra prendem a sua atenção. E sobre isso há duas
considerações muito importantes, decorrentes da reflexão anterior.
1º) Quando se chama a atenção da alma para a Terra, ela é afastada do progresso
espiritual em que está empenhada, pois faz com que oscile em direção oposta. Pode-se
lembrar completamente bem as aspirações espirituais da vida na Terra e, em conversação,
referir-se a elas, mas suas novas experiências parecem impossíveis de ser traduzidas em
palavras próprias à inteligência física comum, além do que não estão no domínio das
faculdades que operam na alma, enquanto se ocupa a alma com as antigas lembranças da
Terra. Pode-se exemplificar a situação, ainda que grosseiramente, com o caso de um
emigrante pobre que podemos imaginar prosperando em seu novo país, ilustrando-se ali,
ocupando-se de seus negócios públicos e descobertas, realizando atos de filantropia e assim
por diante. Pode manter intercâmbio com os seus familiares através de cartas, mas achará
difícil mantê-los a par de tudo o que chega a povoar seus pensamentos. O exemplo só pode
ser aplicado inteiramente a nosso propósito, se consideramos o emigrante como submetido à
lei psicológica cujo véu encobre o seu entendimento, quando se senta para escrever a seus
antigos amigos, se restabelecendo nele, durante aquele tempo, a sua primitiva condição
mental. Com o decorrer do tempo, ele vai sendo cada vez menos capaz de escrever sobre seus
antigos temas, porque estes não só estariam num nível inferior àqueles a cuja consideração se
elevaram suas verdadeiras faculdades mentais, como também se teriam, em grande parte,
apagado de sua memória. Suas cartas seriam uma fonte de surpresa para os seus destinatários,
que diriam, com certeza, que os seus escritos deixavam muito a desejar e que ele se tomara
muito obtuso e estúpido, em comparação ao que era antes de ir para o exterior.
2º) Recorde-se que a bem-conhecida lei fisiológica segundo a qual as faculdades se
reavivam pelo uso e se atrofiam pelo desuso, aplica-se
tanto no plano astral como no físico. A alma que no Kâma-loka adquire o hábito de
centrar sua atenção nas lembranças da vida que deixou, reforçará e afirmará aquelas
tendências que estão em guerra com seus impulsos mais elevados. Quanto mais amiúde ela
for atraída pelo afeto dos amigos ainda viventes, para aproveitar as oportunidades que lhe
proporciona a mediunidade, a fim de manifestar a sua existência no plano físico, tanto mais
veementes serão os impulsos que o farão recuar para a vida física e tanto mais grave a demora
em seu progresso espiritual. Esta consideração parece implicar o mais forte motivo que leva
os representantes dos ensinamentos teosóficos a desfavorecerem e desaprovarem todo gênero
de tentativas para pôr-se em comunicação com as almas dos mortos, por via dos médiuns.
Quanto mais genuínas forem essas comunicações, tanto mais danosas serão para os moradores
do Kâma-loka, no que lhes diz respeito. No presente estágio de nossos conhecimentos, é
difícil determinar com segurança até que ponto são assim lesadas no Kâma-loka. Podemos,
também, ser tentados a crer que, em alguns casos, a grande satisfação usufruída pelas pessoas

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viventes, que receberam a comunicação, compensa o dano provocado na alma do morto.
Entretanto, esta satisfação será mais ou menos profunda conforme o amigo ainda vivo
compreenda as circunstâncias sob as quais ocorre a comunicação. Num começo, é certo, logo
após a morte, as recordações ainda vívidas e completas da vida terrena possibilitam que a
entidade no Kâma-loka se manifeste de modo muito semelhante à de sua personalidade
terrestre, mas desde o instante da morte começa a transformação rumo à sua evolução. Ao se
manifestar no plano físico, não revelará nenhuma nova fermentação de pensamento em sua
inteligência. Nessa manifestação, não se mostrará nem mais sábia, nem mais elevada, na
escala da Natureza, que o que era ao morrer; ao contrário, tornar-se-á cada vez menos
inteligente e, na aparência, menos instruída do que antes, à medida que passa o tempo. Nunca
fará justiça, em suas comunicações com os amigos que deixou para trás. Seu malogro neste
ponto há de se lhe tomar cada vez mais penoso, gradualmente.
Contudo, há outra consideração que lança luz muito duvidosa sobre a sensatez ou a
conveniência de satisfazer o desejo de comunicação com os amigos falecidos. Podemos dizer
que não importa que o interesse do amigo que deixou a Terra desapareça gradualmente, pois,
enquanto fique algo dele ou dela que se nos manifeste, mesmo este pouco nos causará grande
encanto. Também se pode argumentar que, ainda quando a pessoa querida se atrase um pouco
em sua passagem para o Céu, ao conversar conosco, fará este sacrifício de bom-grado pêlos
seres que ama. O aspecto que aqui não se leva em conta é que no plano astral, ou no físico, é
muito fácil contrair um mau costume. Quando a alma no Kâma-loka tiver saciado sua sede
nos mananciais pela comunicação terrestre da mediunidade sentir-se-á fortemente
impulsionada a fazê-lo novamente de vez em quando. Por causa disso podemos produzir
outros resultados além do de distrair a atenção da alma de seus próprios assuntos, sustentando
relações espirituais com ela. Podemos causar-lhe um dano grave e quase permanente. Não
afirmo que isso ocorra sempre, mas de um ponto de vista de severa ética sobre o tema, deve-
se reconheceres perigos que envolvem semelhante conduta. Entretanto, é claro que se
apresentam casos em que o desejo de comunicar-se provenha principalmente da outra parte:
isto é, quando a alma que se foi embora está dominada pelo desejo não satisfeito — que pode
dirigir-se ao cumprimento de um dever descuidado na Terra — cuja atenção, por parte dos
amigos ainda vivos, gere um efeito bem ao contrário do que implica o mero estímulo da
entidade no Kâma-loka em retomar seus antigos interesses na Terra. Nesses casos, os amigos
viventes, pondo-se em comunicação com a alma, podem ser indiretamente o meio de facilitar
o caminho de seu progresso espiritual. Neste ponto, contudo, devemos estar prevenidos contra
o aspecto ilusório das aparências. Um desejo manifestado por um morador do Kâma-loka
pode nem sempre ser a expressão da idéia que então ocupa sua mente. Pode ser o eco de um
antigo, talvez muito antigo, desejo que então encontra, pela primeira vez, um canal para se
exteriorizar. Desse modo, ainda que fosse plausível considerar como importante um desejo
inteligível que se expressa a nós do Kâma-loka, por uma pessoa que tenha morrido há pouco,
seria prudente encarar com grande desconfiança tal desejo, proveniente da sombra de uma
pessoa morta há muito tempo e cuja conduta geral, enquanto sombra, não demonstra que
retém nenhuma consciência vívida de sua antiga personalidade.
O reconhecimento de todos esses fatos e possibilidades do Kâma-loka proporcionará,
julgo eu, aos teosofístas, uma explicação mais satisfatória de muitas experiências relacionadas
com o espiritismo, que deixa na obscuridade a exposição inicial da doutrina esotérica, no que
se refere a este assunto.
Compreender-se-á logo que à medida que a alma se liberta, no Kâma-loka, das
afinidades que retardam seu desenvolvimento devachânico, o que retoma à Terra se debilita
cada vez mais, sendo inevitável que exista sempre no Kâma-loka um grande número de
entidades quase em estado de passar ao Devachan, razão pela qual aparecem ao observador
terrestre num estado de decrepitude avançada. Estas terão caído, quanto à atividade de seus

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princípios inferiores astrais, no estado das entidades vagas e ininteligíveis que, seguindo o
exemplo de escritores ocultistas mais antigos, chamei cascão no texto deste capítulo. Esta
denominação, contudo, não é muito feliz. Teria sido preferível ter seguido outro precedente e
tê-las chamado "sombras", mas, de um ou de outro modo, seu estado é o mesmo. Toda a
consciência vívida inerente, quando abandona a Terra, nos princípios adequadamente
relacionados com as atividades da vida física, é transferida aos princípios superiores que não
se manifestam por meio dos médiuns. Sua memória da vida terrestre quase se extingue.
Nesses casos, seus princípios inferiores podem somente ser despertados por influência de uma
forte corrente mediúnica para a qual são atraídos, e então se convertem em pouco mais que
meros espelhos astrais, nos quais se refletem os pensamentos do médium ou dos assistentes
das sessões. Se pudermos imaginar as cores de uma tela pintada, penetrando por graus na
matéria da tela, fazendo aparecer por fim o outro lado da mesma com o seu primitivo brilho,
participaremos com isso de um processo em que não destruímos a pintura, mas convertemos a
galeria, na qual isso ocorre, num lúgubre salão com escuras costas de quadros sem sentido
algum. Isto se parece muito com o que são as entidades no Kâma-loka, quando afinal se
livram da matéria em que atuava a sua primeira consciência astral, para passar ao
absolutamente puro estado devachânico.
Mas o exposto não é tudo o que ensina a encarar com desconfiança as manifestações
provenientes do Kâma-loka. O que hoje conhecemos do assunto permite-nos compreender
que, quando chega o tempo desta segunda morte no plano astral, que liberta completamente o
Ego do Kâma-loka para fazê-lo passar ao estado devachânico, permanece no Kâma-loka algo
que corresponde ao cadáver deixado na Terra, quando a alma levanta seu primeiro vôo fora do
mundo físico. Com efeito, no Kâma-loka permanece um cadáver astral, e por certo é correio
atribuir o qualificativo cascão a essa escória. O cascão, neste estado, desintegra-se no Kâma-
loka, dentro em muito breve, do mesmo modo que o cadáver que se abandona ao processo de
dissolução natural decairá logo, misturando seus elementos com os depósitos gerais de
matéria na ordem a que pertencem. Mas até que essa dissolução ocorra, o cascão abandonado
pelo Ego verdadeiro pode, mesmo nesse estado, ser tomado algumas vezes, nas sessões
espíritas, pela entidade vivente. Durante certo tempo permanece como um espelho astral, no
qual os médiuns podem ver refletidos seus próprios pensamentos e recebê-los, na crença plena
de que provêm de uma origem externa. Estes fenômenos, no verdadeiro sentido da palavra,
são cadáveres astrais galvanizados ainda que, até o momento da desintegração, possa existir
entre eles e o verdadeiro espírito devachânico certa relação sutil, do mesmo modo que
subsiste tal comunicação entre a entidade no Kâma-loka e o cadáver deixado na Terra. Esta
última relação citada mantém-se por meio da matéria sutilmente difundida do terceiro
princípio original, ou Linga-sharîra. O estudo deste ramo do assunto nos levaria, creio eu, a
uma melhor compreensão do que a que hoje possuímos a respeito das circunstâncias em que
às vezes se realizam as materializações nas sessões espíritas. Sem entrarmos agora nesta
digressão, basta reconhecer que a analogia ajuda a demonstrar como, entre a entidade
devachânica e o abandonado cascão, no Kâma-loka, pode subsistir durante algum tempo uma
relação semelhante, que atua, enquanto dura, como um gancho do espírito ou mesmo talvez
como seu refulgente crepúsculo no cascão. Por certo, é extremamente penoso para qualquer
amigo vivente da pessoa morta ver ou tomar conhecimento, seja por clarividência ou por
qualquer outro modo, de semelhante cascão, enquanto o imagina como sendo a verdadeira
entidade.
O ponto de vista comparativamente nítido, que agora temos com relação ao Kâma-
loka, pode nos ajudar a utilizar as expressões aplicadas a seus fenômenos com mais rigor do
que até o momento fizemos. Creio que se adorarmos a nova expressão "alma astral" para as
entidades que acabaram de deixar a vida terrena, mas que por outras razões conservam ainda
grande parte dos atributos intelectuais que possuíam na Terra, descobriremos, pois, que

59
também outros termos já empregados serão adequados em sua aplicação. Contudo, devemos
desfazer-nos do termo (inconveniente) "elemental", que tão facilmente pode nos trazer
confusões, além de ser mesmo muito impróprio aos seres que descrevemos. Faço a indicação
de que a alma astral, quando entra (encarado de nosso ponto de vista) na decrepitude
intelectual, seja chamada, neste estado de debilitação gradual, sombra e que o termo cascão
seja reservado para os verdadeiros cascões ou cadáveres astrais abandonados definitivamente
pelo espírito devachânico.
Ao estudar a lei do desenvolvimento espiritual no Kâma-loka, é natural que
pesquisemos quanto tempo decorre antes que se complete a passagem da consciência dos
princípios inferiores aos superiores da alma astral Como de costume, assim que se cuida de
números relacionados aos processos superiores da Natureza, a resposta é sempre bem elástica.
Os mestres esotéricos do Oriente proclamam que, no que se refere à média da humanidade —
o que se pode denominar, no seu sentido espiritual, a grande classe média da humanidade —,
é extraordinário que uma entidade no Kâma-loka esteja em condições de manifestar-se como
tal por mais de vinte e cinco ou trinta anos. Mas em ambos extremos dessa média, os números
podem aumentar consideravelmente. Uma criatura humana muito ignóbil e estupidificada
pode permanecer no Kâma-loka por muito mais tempo, por falta de princípios superiores
bastante desenvolvidos para elevar a sua consciência, como também, num outro extremo da
escala, certa alma muito intelectual e mentalmente ativa pode permanecer longuíssimos
períodos no Kâma-loka (na falta de afinidades espirituais de análoga força), em virtude da
grande persistência das forças e causas geradas no plano superior dos efeitos, ainda que a sua
atividade mental possa estar separada da espiritualidade, excetuando-se aqui os casos em que
a alma esteja exclusivamente associada à ambição mundana. Além disso, se os períodos no
Kâma-loka podem prolongar-se desse modo além da média por variadas causas, podem
também reduzir-se a uma infinitesimal brevidade, quando uma pessoa muito avançada em
espiritualidade morre após uma vida longa que preencheu legitimamente o seu desígnio.
Há outra possibilidade importante relacionada com as manifestações que nos chegam
pelos canais normais de comunicação com o Kâma-loka, que convém observar aqui, por mais
que, devido à sua natureza, essa possibilidade não ocorra com freqüência. Nenhum estudante
novato de teosofia pode esperar saber muito até agora sobre os estados de existência dos
Adeptos que renunciam ao uso do corpo físico na Terra. As possibilidades superiores que se
abrem perante eles parecem-me por completo fora do alcance de toda avaliação intelectual.
Nenhum homem é suficientemente hábil, apenas devido à mera capacidade de um cérebro
vivente, para compreender o Nirvana. Porém, segundo parece, em alguns casos os Adeptos
decidem optar por uma via que está entre a reencamação e a passagem ao Nirvana, pelas
regiões superiores do Devachan; ou seja, podem esperar, nos estados Arûpa do Devachan,
pelo lento avanço da humanidade para o estado superior que assim atingiram. Ora, o Adepto
que deste modo se converte num espírito devachânico do tipo mais elevado não será impedido
de manifestar sua influência na Terra, pela situação do seu estado devachânico — como
aconteceria com um espírito devachânico comum ao passar por aquele estado em seu caminho
para a reencamação. Esta não seria, por certo, uma influência que se fizesse sentir por
intermédio de qualquer sinal físico para auditórios heterogêneos, não sendo, porém,
impossível que um médium do mais elevado tipo — que mais propriamente deveria ser
chamado vidente — possa assim ser influenciado. É possível que o espírito de um Adepto
desse tipo, de tempos em tempos, inspire algum dos grandes homens da história do mundo,
quer consciente, quer inconscientemente, conforme o caso.
A desintegração dos cascões no Kâma-loka inevitavelmente sugere a qualquer um que
procure compreender o seu processo, que devem existir na Natureza alguns depósitos gerais
de matéria adequada a esta esfera de existência, correspondente à Terra física e a seus
elementos circundantes, em que os nossos corpos se dissolvem após a morte. Os grandes

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mistérios a que esta consideração vai de encontro exigem uma pesquisa mais exaustiva do que
a que até agora empreendemos, mas desde logo é conveniente expor uma idéia relacionada
com eles: o estado do Kâma-loka tem suas correlatas ordens de matéria em manifestação. Não
tentarei entrar aqui na metafísica do problema que mesmo poderia levar-nos a prescindir da
noção de que a matéria astral necessita ser menos real e tangível do que a que conhecem
nossos sentidos físicos. Basta, por enquanto, explicar que a proximidade do Kâma-loka com a
Terra, tão evidenciada pelas experiências espíritas, explica-se pelo ensinamento oriental que
provém deste fato: o Kâma-loka está na Terra e pertence a ela, tanto como a nossa, alma astral
está no homem vivo e pertence a ele. A região do Kâma-loka, de fato esse grande reino no
estado adequado que constitui o Kâma-loka, perceptível aos sentidos das entidades astrais,
bem como aos de muitos clarividentes, é o quarto princípio da Terra, da mesma maneira que o
Kâma-rûpa é o quarto princípio do homem. Pois a Terra tem seus sete princípios como as
criaturas humanas que nela habitam. Assim, o estado devachânico corresponde ao quinto
princípio da Terra e o Nirvana, ao sexto.

7. A ONDA DA MARÉ HUMANA

Já dei uma explicação geral do modo como a grande onda humana evolucionária
passa, dando voltas em torno dos sete mundos que compõem a cadeia planetária da qual a
Terra é parte. Agora se podem acrescentar novos pormenores, objetivando expandir esta idéia
geral para que se atinja uma completa compreensão do processo com que se relaciona. E
nenhum capítulo adicional da grande história irá influenciar mais, no sentido de tornar seu
caráter inteligível, do que a explicação de certos fenômenos relacionados ao progresso dos
mundos, os quais podem propriamente ser denominados obscurecimentos.
Os estudantes de filosofia oculta, que assumem esta tarefa com suas mentes
abundantemente providas de outras idéias, tendem a interpretar erroneamente as primeiras
afirmações que foram feitas. Não se pode dizer tudo de uma vez, e as primeiras explicações

61
gerais sugerem conceitos com relação aos pormenores, muito provavelmente errôneos,
mesmo em se tratando de pensadores de mente mais ativa e inteligente. Esses leitores não se
satisfazem com um esboço vago, mesmo por um momento. A imaginação completa a tela, e
se a obra permanece sem retoques por um tempo qualquer, seu autor logo se surpreenderá ao
verificar que os últimos relatos são incompatíveis com o que ele chegou a considerar como
sendo o que nitidamente se ensinou no início. Ora, neste estudo, o esforço do escritor é no
sentido de expor o assunto de tal forma que evite, na medida do possível, um prematuro
crescimento de erva daninha na mente. Mas este mesmo esforço requer, às vezes, que se
avance celeremente, deixando alguns detalhes, e mesmo detalhes muito importantes, para
serem captados numa segunda viagem pelo antigo caminho. Assim, portanto, o leitor será
bastante amável para retornar à explicação que fornecemos no Capítulo 3, relativo ao
progresso evolucionário através de toda a cadeia planetária.
Algo foi dito então sobre o modo como o impulso de vida passava de planeta em
planeta sob a forma de "ondas ou jorros, e não por meio de um fluxo contínuo". Agora, o
curso da evolução em seus primeiros estados é tão contínuo que a preparação de vários
planetas para a onda final da humanidade pode estar ocorrendo simultaneamente. Com efeito,
a preparação de todos os diversos planetas pode ocorrer simultaneamente, em certo momento
do processo, mas o ponto importante a reter é que a onda principal da evolução — a onda
crescente que se move na dianteira - não pode estar em mais de um lugar ao mesmo tempo. O
processo ocorre de maneira capaz de ser descrita, mas o leitor o compreenderia melhor se
desenhasse um diagrama, quer num papel, quer em sua própria imaginação, que consistisse de
sete círculos (representando os mundos) ordenados em forma de anel. Denominando-os A, B,
C, etc., se observará, com base no que já se afirmou, que o círculo (ou globo) D representa a
nossa Terra. Pois bem, lembre-se de que os reinos da Natureza, conhecidos dos ocultistas, são
em número de sete, dos quais três são relativos às forças astrais e elementais, precedendo os
reinos materiais, mais grosseiros na ordem de seu desenvolvimento. O reino número 1
evoluciona no globo A e passa ao globo B, no momento em que o reino número 2 começa a
evolucionar no globo A. Dando continuidade a este sistema até o fim, com certeza há de se
ver que, quando o reino número 1 está evolucionando no globo G, o reino número 7, ou seja,
o reino humano, está se desenvolvendo no globo A. E agora vejamos: o que acontece assim
que o reino 7 passa ao globo B? Não há um oitavo reino que funcione no globo A. Os grandes
processos da evolução culminam na onda final da humanidade, que, ao seguir seu curso, deixa
atrás de si a Natureza numa letargia transitória. Quando a onda de vida continua no globo B, o
globo A, de fato, entra durante algum tempo num estado de obscurecimento. Este estado não é
de decadência, nem de dissolução, nem de nada que propriamente se chame de morte. A
própria decadência, embora seu aspecto possa induzir em erro, representa um estado de
atividade em determinada direção. Esta consideração fornece uma chave para o significado de
uma porção de coisas que de outra maneira seriam desprovidas de sentido, nessa parte da
mitologia hindu relacionada com as deidades que regem a destruição. O obscurecimento de
um mundo é a cabal suspensão de sua atividade. Isto não significa que, desde o momento que
a última mônada humana abandona um dado mundo, esse mundo se paralisa por alguma
convulsão ou submerge no estado de transe encantado de palácio adormecido. A vida vegetal
e a anima continuam como antes, durante certo tempo, porém o seu caráter retrocede em lugar
de avançar. A grande onda de vida o abandonou. Os reinos vegetal e animal voltam
gradualmente ao estado em que se achavam quando pela primeira vez os alcançou a grande
onda de vida. São precisos enormes períodos de tempo para esse lento processo, mediante o
qual o mundo obscurecido se entrega ao sono, pois, como se há de ver, o obscurecimento, em
cada caso, dura seis vezes12 mais tempo que o período de ocupação de cada mundo pela onda
12
Ou pode-se dizer cinco vezes, tendo-se em conta o meio período da manhã que precede e o meio período da
tarde, que segue o dia da atividade integral.

62
humana. Vale dizer: o processo que ocorre, segundo já foi descrito, com relação à passagem
da onda de vida, do globo A ao globo B, repete-se ao longo de toda a cadeia. Quando a onda
passa a C, B fica em obscurecimento, do mesmo modo que A. Então D recebe a onda de vida,
e A, B, C ficam em obscurecimento. Quando a onda chega a G, todos os seis mundos
precedentes encontram-se em obscurecimento. Enquanto isso, a onda de vida prossegue com
certa progressão regular, cujo caráter simétrico satisfaz muito as inclinações científicas. O
leitor, a partir disto, está preparado para compreender a idéia de como a humanidade se
desenvolve através das sete grandes raças, durante cada período de Ronda num planeta — ou
seja, durante a ocupação desse planeta pela onda de vida. A quarta raça é obviamente a raça
do meio da série. Assim que se passa deste ponto médio e começa a evolução da quinta raça
em qualquer planeta, começa, no seguinte, a preparação da humanidade. Por exemplo, a
evolução da quinta raça em E está na mesma proporção que a evolução, ou antes que a
revivescência do reino mineral em D, e assim sucessivamente. Quer dizer, a evolução da sexta
raça em D coincide com a revivescência do reino vegetal em E; a sétima raça em D, com a
revivescência do reino animal em E e logo, quando os últimos montículos da sétima raça em
D tenham passado ao estado subjetivo ou mundo dos efeitos, o período humano em E
começa, e a primeira raça inicia ali seu desenvolvimento. Entrementes, o período crepuscular
no mundo, que precede a D, converteu-se na noite do obscurecimento do mesmo modo
progressivo, e esse toma-se definitivo ali, quando o período humano em D passa seu ponto
médio. Mas assim como o coração do homem bate e continua a respiração, não importa quão
profundo seja o seu sono, assim também continua o processo de ação vital no mundo em
repouso, mesmo nos momentos de sono mais profundo. Este processo conserva para a
próxima volta da onda humana os resultados da evolução, que precederam a sua primeira
chegada. O despertar de um planeta, dessa forma, é um processo mais longo que o de sumir-
se no repouso, pois precisa atingir um grau maior de perfeição para a volta da onda humana,
que aquele em que se encontrava quando a última onda deixou as suas costas. Mas a cada
novo começo, a Natureza é infundida por um vigor próprio — a frescura de uma manhã — e
o último período de obscurecimento, que é um tempo de preparação e de esperança, por assim
dizer, reveste a própria evolução com uma nova energia. Quando a grande onda de vida volta,
tudo está pronto para a sua recepção.
Na primeira exposição que fizemos deste assunto indiquei, mais ou menos, que os
diversos mundos, que constituem a nossa cadeia planetária, não eram da mesma matéria.
Pondo o conceito de espírito no pólo norte do círculo, e o de matéria no pólo sul, os mundos
do arco descendente variam em materialidade e espiritualidade, o mesmo ocorrendo com os
do arco ascendente. Esta variação deve agora ser considerada com mais atenção, se o leitor
deseja compreender todo o processo da evolução de uma forma mais integral do que até aqui.
Além da Terra, que se acha no ponto material mais baixo de todos, somente há dois
mundos de nossa cadeia que são visíveis aos olhos físicos: um atrás e o outro diante dela.
Estes dois mundos são, na verdade, Marte e Mercúrio — Marte está antes do nosso e
Mercúrio depois —, Marte, num estado de obscurecimento completo na atualidade, no que diz
respeito à onda de vida humana, e Mercúrio, que acaba justamente de preparar-se para seu
próximo período humano13.

13
É importante observar aqui, em benefício das pessoas que pretendam objetai, do ângulo da física, que
Mercúrio se encontra muito próximo do Sol, e conseqüentemente demasiado quente para poder ser uma
habitação apropriada para o Homem, que, num relatório oficial do Departamento de Astronomia dos Estados
Unidos sobre as recentes "Observações do Monte Whitney", pode tomar-se declarações capazes de sustar a
crítica à ciência oculta neste ponto. Os resultados das observações de Monte Whitney sobre a absorção seletiva
dos raios solares demonstram, segundo o relatório oficial, que é de supor as condições de uma atmosfera que
tornasse Mercúrio habitável, num extremo da escala, e Saturno no outro. Não temos de tratar de Saturno agora.
Nem se fosse necessário explicar, pelos princípios ocultos, a habitabilidade de Mercúrio, não teríamos de
abordar cálculos a respeito da absorção seletiva. O fato é que a ciência corrente considera o Sol, ao mesmo

63
Os dois planetas que estão atrás de Marte e os dois que seguem a Mercúrio não são
constituídos por uma ordem de matéria capaz de ser percebida pelo telescópio. Dos sete
planetas, quatro são, pois, de natureza etérea, os quais as pessoas que só concebem a matéria
em sua forma terrena tenderão a chamar de imaterial. Mas efetivamente nada têm de
imateriais. Eles simplesmente pertencem a estados de matéria mais sutis que os da Terra. Essa
sutileza não anula de modo algum a uniformidade do desígnio da Natureza com relação aos
métodos e graus de sua evolução. Dentro da escala de sutil "invisibilidade", as Rondas e as
raças sucessivas da humanidade passam por seus graus de maior e menor materialidade, do
mesmo modo que nesta Terra; mas todo aquele que queira compreendê-los deve primeiro
compreender esta Terra e esclarecer por analogia os seus delicados fenômenos. Voltemos,
portanto, à consideração da grande onda de vida, em seus aspectos, neste planeta.
Assim como a cadeia de mundos, tomada como unidade, tem seus pólos norte e sul, ou
seus pólos espiritual e material, descendo da espiritualidade à materialidade e subindo outra
vez à primeira, assim também as rondas da humanidade constituem uma série semelhante,
como que simbolizando a cadeia planetária. Com efeito, na evolução do homem, tanto em
cada plano isolado como no conjunto há um arco descendente e outro ascendente: o espírito,
por assim dizer, envolvendo-se na matéria e a matéria desenvolvendo-se no espírito. O ponto
inferior ou mais material no ciclo converte-se, deste modo, no ápice invertido da inteligência
física, que é a manifestação mascarada da inteligência espiritual. Cada Ronda da humanidade
evoluída no arco descendente (ou mesmo cada raça de cada Ronda, se descemos a espelhos
menores do cosmos) tem de ser mais fisicamente intelectual que a sua predecessora, e cada
uma no arco ascendente deve ser investida de uma forma mais refinada de mentalidade
misturada com uma maior intuição espiritual. Na primeira Ronda, portanto, encontramos o
homem como um ser relativamente etéreo (mesmo comparado na Terra com o estado que
alcançou aqui agora), não intelectual, mas sim superespiritual. Do mesmo modo, o animal e o
vegetal que o circunda, habita um corpo imenso, mas de organização não consistente. Na
segunda Ronda é ainda gigantesco e etéreo, porém mais consistente e mais condensado: um
homem mais físico, porém menos inteligente que espiritual. Na terceira Ronda, desenvolveu
um corpo perfeitamente concreto e compacto, primeiramente sua forma é mais a de um
macaco gigante do que a de um homem verdadeiro, porém com inteligência mais e mais
pronunciada. Na primeira metade da terceira Ronda, a sua estatura gigantesca decresce, o seu
corpo melhora em contextura e ele começa a ser um homem racional. Na quarta Ronda, o
intelecto, então plenamente desenvolvido, adquire um enorme progresso. As primeiras raças
com que se principia a Ronda adquirem a linguagem humana, tal como a entendemos. O
mundo prolifera dos resultados da atividade intelectual e da decadência espiritual. Na metade
da quarta Ronda aqui, se transpõe o ponto polar de todo o período dos sete mundos. Desse
ponto em diante, o Ego espiritual inicia a sua verdadeira luta com o corpo e a mente, para
manifestar os seus poderes transcendentais. Na quinta Ronda, a luta prossegue, mas as
faculdades transcendentais estarão completa-mente desenvolvidas, embora a luta entre estas e
as tendências físicas seja mais feroz que nunca, porque a inteligência da quinta Ronda, bem
como sua espiritualidade, é mais avançada do que a da quarta. Na sexta Ronda, a humanidade

tempo demasiado e demasiado pouco, como o depósito da força do Sistema Solar — demasiado, na medida em
que o calor dos planetas se relacionam com outra influência completamente distinta do Sol, influência esta que
não será por completo entendida até que se saiba mais que até o presente sobre as correlações entre o calor e o
magnetismo e da poeira meteórica magnética que permeia os espaços interplanetários. Entretanto, basta - para
refutar qualquer teoria que pudesse opor-se às explicações que agora são dadas, do ponto de vista dos fiéis
devotos da ciência do último ano — que seja assinalado que tais objeções estariam antiquadas. A ciência
moderna é muito progressiva - sendo este um de seus maiores méritos — porém, não é um costume meritório
nos cientistas modernos crer, em cada etapa de seu progresso, que todos os conceitos incompatíveis com esta
etapa devam ser necessariamente absurdos.

64
atinge um grau de perfeição tanto do corpo como da alma, da inteligência como da
espiritualidade, sendo difícil de imaginá-lo a partir dos mortais comuns de nossa época. As
combinações excelsas de sabedoria, bondade e iluminação transcendental, que o mundo tenha
visto ou pensado, representarão o tipo comum da espécie humana. Essas faculdades que
agora, na rara eflorescência de uma geração, permitem a algumas pessoas extraordinariamente
dotadas explorar os mistérios da Natureza e adquirir o conhecimento do qual se oferecem
agora algumas migalhas (por meio destes escritos e de outros meios) ao mundo em geral,
serão então apanágio comum a todos. Quanto ao que seja a sétima Ronda, os mestres ocultos
mais comunicativos mantêm um silêncio solene. A humanidade da sétima Ronda será
bastante semelhante a Deus para que a humanidade da quarta possa pressupor seus atributos.
Durante a ocupação de qualquer planeta pela onda de vida humana, cada mônada
individual se encarna muitas vezes. Se a mônada apenas passasse uma existência em cada
uma das raças ramais, pelas quais deve passar pelo menos uma vez, o número total que se
atingira numa Ronda seria 343, ou seja, a terceira potência de 7. Mas, na verdade, cada
mônada se encarna duas vezes em cada raça ramal, assim como também faz necessariamente
mais algumas encarnações extras. Por motivos que não são fáceis de adivinhar pêlos leigos, os
portadores do conhecimento oculto são particularmente pouco comunicativos quanto a dados
numéricos sobre a cosmogonia, por mais que para o não iniciado seja incompreensível tal
reserva. Na atualidade, por exemplo, não podemos externar qual é a duração verdadeira, em
anos, do período de uma Ronda. Não obstante, obtivemos uma concessão — que só poderiam
apreciar inteiramente os que foram, de há muito, estudantes de ocultismo pelo método antigo
— relativa aos números que imediatamente nos dizem respeito. Essa concessão, em todo caso,
é valiosa porque nos ajuda a elucidar um fato interessante relacionado com a evolução, em
cujo limiar chegamos agora. Este fato é que, na Terra, por exemplo, estando habitada
atualmente pela humanidade da quarta Ronda, ou seja, pela onda da vida humana em sua
quarta viagem ao redor do círculo dos mundos, podem existir entre nós algumas poucas
pessoas, poucas em relação ao número total, que, propriamente falando, pertencem à quinta
Ronda. Pois bem, no sentido do termo ora empregado, não há que supor que, por algum
procedimento milagroso, alguma unidade individual tenha viajado ao redor da cadeia dos
mundos uma vez mais do que seus parceiros. Dadas as explicações que foram apresentadas de
como progride a onda da humanidade, compreender-sê-á que isso seria impossível. A
humanidade ainda não fez a sua quarta visita, nem mesmo ao planeta que segue ao nosso. Mas
as mônadas individuais podem passar às suas companheiras o seu desenvolvimento
intelectual, e assim converter-se exatamente no que o geral da espécie humana será quando a
quinta Ronda se tiver desenvolvido integralmente. Isto pode ocorrer de dois modos. Um
homem nascido como um indivíduo comum da quarta Ronda pode converter-se, por meio do
processo da instrução oculta, num homem com todos os atributos de um homem da quinta
Ronda, e assim tornar-se o que denominamos um homem da quinta Ronda artificial. Mas
independentemente de todos os esforços que faça o homem em sua presente encarnação, ele
pode também nascer como o da quinta Ronda, no meio da Humanidade da quarta, devido ao
número total de suas encarnações prévias.
Se x representa o número normal de encarnações que uma mônada, no decurso da
Natureza, tem de passar durante um período de Ronda num planeta, e y a margem de
encarnações extras, que no mesmo período pode chegar a atravessar por um forte desejo de
vida física, então é evidente que: 24 1/2 (x + y) pode exceder 28 x. Vale dizer: uma mônada
pode em 3 1/2 Rondas realizar tantas encarnações quanto uma mônada comum em quatro
Rondas completas. Em menos de 3 1/2 Rondas esse resultado não seria obtido, de modo que
apenas agora, depois de haver ultrapassado o ponto médio da evolução deste planeta médio, é
que os da quinta Ronda começam a aparecer.

65
Não é possível na natureza das coisas que uma mônada possa se avantajar a suas
companheiras em mais de uma Ronda Ainda assim, Buda era um homem da sexta Ronda, mas
este fato relaciona-se com um grande mistério fora dos limites do presente cálculo. Basta
dizer por ora que a evolução de um Buda se relaciona com algo mais do que simples
encarnações dentro dos limites de uma cadeia planetária.
Desde que estes cálculos compreendam grande número de vidas, nas sucessivas
encarnações de uma mônada individual, é importante neste ponto, para evitar interpretações
errôneas, indicar que os períodos de tempo que abrangem essas encarnações são tão grandes
que, apesar do seu número, separam-nas vastos intervalos. Conforme afirmado anteriormente,
não podemos agora fornecer a duração verdadeira dos períodos de Rondas. Nem mesmo se
podem citar números indicadores da duração desses períodos, porque variam muito dentro de
extensos limites. Mas apresentaremos um fato simples que foi claramente manifestado por
uma autoridade oculta superior. A presente raça da humanidade, isto é, a presente quinta raça
da quarta Ronda, começou a evoluir há um milhão de anos. E esta ainda não acabou. Mas,
supondo que um milhão de anos constitua a vida completa de uma raça 14, como haveria de
subdividi-lo para cada mônada individual? Em uma raça deve haver mais do que 100
encarnações, sendo difícil que atinjam 120 para uma mônada individual. Mas aceitemos que
já tenha havido 120 encarnações para as mônadas na raça atual. E suponhamos que a média da
vida de cada encarnação tenha sido um século, mas mesmo assim só teríamos 12.000 anos
empregados na existência física, enquanto para a esfera subjetiva são 988.000 anos,
resultando uma média de mais de 800 anos entre cada encarnação. Com certeza, estes
períodos intermediários são de duração muito variável, mas dificilmente seriam menores que
1.500 anos — não considerando, naturalmente, o caso dos Adeptos, que se acham
inteiramente fora da ação da lei comum — e 1.500 anos, se não representa um período
impossível pela brevidade, seria de toda forma um intervalo muito curto entre dois
nascimentos.
Entretanto, esses cálculos devem ser qualificados por duas considerações. Os casos de
crianças que morrem na infância são bem diferentes dos das pessoas que atingem a
maturidade completa, e isto por razões evidentes, que serão compreendidas pelas explicações
que já foram dadas. Uma criança que morre antes que tenha vivido o suficiente para começar
a ser responsável por seus atos, não gerou karma novo algum. A mônada espiritual abandona
o corpo da criança, no mesmo estado em que o ocupou após sua morte no Devachan. Não teve
ocasião de tocar seu novo instrumento, o qual se quebrou antes de estar afinado. Portanto,
pode ocorrer imediatamente uma reencamação da mônada, na mesma linha que a anterior.
Mas a mônada que se reencarna assim não pode ser identificada espiritualmente, de modo
algum, com a criança que morreu. O mesmo ocorre com uma mônada que ocupe o corpo de
um idiota de nascimento. O instrumento não pode ser afinado, de forma que não pode tocar
com ele, nem tampouco com o corpo da criança nos primeiros anos da infância. Mas esses
dois casos são exceções claras que em nada modificam a regra geral, que foi exposta antes,
para todas as pessoas que chegam à maturidade e que empregam suas vidas terrenas para o
bem ou para o mal.

COMENTÁRIOS

14
A vida completa de uma raça é certamente muito mais longa que isso. Mas quando manipulamos números
desse tipo, penetramos num terreno bastante delicado, porque os períodos exatos são segredos profundos, por
razões que os estudantes não-inicia-dos (“chelas laicos", como dizem agora os Adeptos, ao cunhar uma
designação nova para um estado de coisas novo) só imperfeitamente podem presumir. Cálculos como os
mostrados acima podem merecer confiança tomados literalmente no que abrangem, mas não devem ser
considerados irrefletidamente como base para outros.

66
Notícias posteriores e o estudo — ou seja, a comparação dos diferentes ramos da
doutrina e o acréscimo de outras declarações como aquelas do capítulo anterior —
demonstram a dificuldade de se aplicar números, de modo notadamente definido, às Doutrinas
Esotéricas. Pode-se confiar em cifras, quando representam médias gerais, mas induzem a
grandes erros quando se trata de aplicá-las em casos especiais. Os períodos devachânicos
variam, para diferentes pessoas dentro de limites tão amplos, que qualquer regra que se baseie
neste ponto deve provocar muitas críticas. Primeiramente, a média antes mencionada foi, sem
dúvida, calculada para adultos. Entre a criança pequena, que não tem período devachânico, e
o adulto que completa um período médio, devemos ter presentes as pessoas que morrem na
juventude, que acumularam karma e que, portanto, têm de passar pelas etapas habituais do
desenvolvimento espiritual, mas para os quais a vida curta que tiveram não produziu causas
que exijam muito tempo para esgotar seus efeitos. Essas pessoas voltariam a reencarnar-se
depois de uma breve estada correspondente no mundo dos efeitos. Por outro lado, há casos de
encarnações artificiais, que se realizam pela intervenção direta dos Mahâtmâs, quando um
cheia, que, ainda sem ter adquirido o domínio de fazê-lo por si mesmo, é atraído à encarnação
quase imediatamente após sua morte física precedente, sem que tenha sido necessário flutuar
na corrente das causas naturais. Nesses casos, pode-se dizer que os direitos adquiridos por
essas pessoas, com relação aos Mahâtmâs, são causas naturais de certo gênero. E a
intervenção dos Mahâtmâs, que se acham isentos de agir por capricho em tais assuntos, é
fruto do esforço de suas vidas precedentes e, portanto, de seus karmas. Mas, de todas as
formas, esses casos são outras tantas exceções, no andamento da regra geral.
Obviamente, é impossível que, quando pela primeira vez são apresentados a
inteligências profanas os fatos complicados de uma ciência completamente desconhecida, se
possam expor com todas as suas devidas qualificações, compensações e desenvolvimentos
anormais visíveis desde o início. Devemos contentar-nos em tratar primeiro das regras gerais,
para passarmos depois às exceções, e isto ocorre muito particularmente no estudo do
ocultismo, cujos métodos tradicionais de ensino, geralmente seguidos, têm por objetivo gravar
na memória cada idéia nova, provocando uma perplexidade que é logo atenuada. Com
respeito a outro assunto de que se tratou nas páginas anteriores, parece-nos agora que não se
considerou exceção importante na Natureza. A descrição que fiz da evolução da onda humana
é completamente coerente como foi apresentada, mas desde a publicação da edição original
deste livro criticou-se, na índia, a comparação entre minha versão do assunto e certas
passagens de outros escritos, emanados, ao que se sabe, de um Mahâtmâ. Foi notada uma
discrepância entre as duas manifestações, visto que a outra versão admitia a possibilidade de
que uma mônada possa efetivamente ter dado uma volta a mais ao redor dos sete planetas do
que seus companheiros, entre os quais se encontra ultimamente na Terra. Minha explicação
sobre os obscurecimentos parece inviabilizar essa contingência. A chave desse mistério se
encontra fora do domínio de fatos a respeito dos quais os Adeptos de bom-grado falam
livremente. O leitor deve entender, assim, que a explicação que vou dar é fruto de minhas
especulações e comparações das diferentes partes da doutrina — não sendo recebida nenhuma
informação autêntica do autor de meu ensinamento geral.
Os obscurecimentos são bastante completos ao nos demonstrarem todos os fenômenos
descritos com relação a cada um dos planetas que afetam em sua totalidade. Mas os
fenômenos excepcionais, para o que devemos estar sempre prevenidos, apresentam-se
sempre, mesmo neste assunto. A grande massa da humanidade é conduzida de um planeta a
outro por meio do grande impulso cíclico, quando chega o tempo dessa transição, mas o
planeta que abandona não fica absolutamente destituído de humanidade, assim como
tampouco todas as regiões de sua superfície se tomam impróprias como morada para os seres

67
humanos, devido às mudanças físicas e climáticas que nelas ocorrem. Mesmo durante o
obscurecimento, permanece no planeta uma pequena colônia humana, e as mônadas
constitutivas dessas colônias, seguindo diferentes leis de evolução e fora do alcance dessas
atrações que governam o vórtice principal da humanidade no planeta ocupado pela grande
onda, passam adiante de mundo em mundo, no que poderia denominar-se a Ronda interna da
evolução, muito mais à frente que a raça em geral. Quais podem ser as circunstâncias que
arremessam, ocasionalmente, uma alma, ainda no meio do grande vórtice humano, para fora
da atração do planeta ocupado pela onda, dentro da atração da Ronda Interna? Tal é a questão
que no presente só podemos conjecturar de modo muito incerto.
Vale a pena chamar a atenção do leitor para a solução que acabo de apresentar acerca
das Rondas Internas, sobre o modo como este fato da Natureza, cuja existência, suponho, se
harmonizaria com as tão difundidas doutrinas a respeito do Dilúvio. Essas partes do planeta
que permanecem habitáveis durante um obscurecimento seriam equivalentes à Arca de Noé
dos relatos bíblicos, em seu sentido simbólico mais amplo. Certamente, a narrativa do Dilúvio
tem também significados simbólicos menores, mas não parece improvável que os Cabalistas
tenham associado a ela um significado mais lato que agora indicamos. No tempo devido,
quando o planeta obscurecido volta a estar em condições de receber apenas a onda humana, os
colonos da Arca estarão prontos para reiniciar o processo de povoá-lo de novo.

8. O PROGRESSO DA HUMANIDADE

Como terá visto o leitor, o curso da Natureza impele todas as entidades humanas pela
senda do progresso indefinido em direção a planos superiores de existência. Mas terá visto,
igualmente, que a Natureza, dotando estas entidades com faculdades sempre crescentes, e ao
ampliar constante-mente o escopo de sua atividade, fornece-lhes ao mesmo tempo
oportunidades cada vez maiores para escolher entre o bem e o mal. Nas primeiras Rondas da
humanidade, este privilégio de seleção não está inteiramente desenvolvido, em vista do que a
responsabilidade dos atos é relativamente incompleta. As primeiras Rondas da humanidade,
na verdade, não investem o Ego de nenhuma responsabilidade espiritual, no sentido lato da
palavra, do que agora estamos nos aproximando. Os períodos devachânicos, que se seguem a
cada existência objetiva, dispõem plenamente dos méritos e deméritos dessa existência, e a

68
personalidade mais deplorável que o Ego pode desenvolver, durante a primeira metade de sua
evolução, não se computa em relação à totalidade do empreendimento, ao passo que a
personalidade propriamente culpável paga a sua pena relativamente curta, não voltando a
perturbar a Natureza. Mas a segunda parte do grande período evolucionário ocorre sob
princípios bem diversos. As fases de existência, que então se apresentam, não podem ser
admitidas pelo Ego sem méritos positivos próprios, adequados aos novos desenvolvimentos
em perspectiva; não basta que a entidade, já completamente responsável e altamente dotada,
em que o homem se converte no grande ponto de retomo de sua carreira, flutue
preguiçosamente na corrente do progresso. Ela deve começar a nadar, se deseja prosseguir seu
caminho para a frente.
A complexidade do assunto, excluindo a hipótese de ocupar-nos de todas suas faces
simultaneamente, fez com que nosso exame da Natureza tenha apenas considerado as sete
rondas do desenvolvimento humano, que constituem todo o processo planetário que nos
concerne, como uma série contínua, através da qual tem de passar a humanidade em geral.
Mas deve-se lembrar que foi dito que a humanidade na sexta Ronda estará tão altamente
desenvolvida que os atributos e faculdades sublimes do mais alto Adeptado serão apanágio
comum de todos. Já na sétima Ronda, a raça quase terá saído do humano para converter-se no
divino. Pois bem, todo ser humano, neste grau da evolução, estará identificado por uma
ligação ininterrupta com todas as personalidades que foram engajadas no ciclo da vida, desde
o início do grande processo evolucionário. Pode-se conceber que o caráter dessas
personalidades seja irrelevante no final de contas, e que dois seres semelhantes a deuses
podem encontrar-se juntos na sétima Ronda, sendo um desenvolvido através de uma longa
série de irrepreensíveis e úteis existências e o outro por meio de outra não menos longa série
de vidas perversas e degradadas? Isto certamente não pode acontecer, e devemos questionar
agora: como se mantêm compatíveis as congruências da Natureza com a indicada evolução da
humanidade para a forma mais elevada de existência que coroa o edifício?
Assim como a infância é irresponsável por seus atos, as primeiras raças da
humanidade são irresponsáveis pêlos seus. Mas chega o período de desenvolvimento
completo, em que o integral desenvolvimento das faculdades que possibilitam ao homem
individual escolher entre o bem e o mal, na vida singular que ocupa no momento, permitem
também ao Ego perdurável fazer a sua escolha final. Este período — esse enorme período,
pois a Natureza não se apressa em colher suas criaturas numa armadilha em tal assunto —
apenas principiou, sendo preciso que transcorra uma Ronda completa ao redor dos sete
mundos antes que ele termine. Até que se tenha passado o ponto médio do quinto período
nesta Terra, a grande questão — a de ser ou não ser no futuro — não se determina de modo
irrevogável. Começamos agora a tomar posse das faculdades que tornam o homem um ser
completamente responsável e ainda temos de empregar essas faculdades, durante a
maturidade de nossa Egoidade, de modo que determine as imensas conseqüências do futuro.
Durante a primeira metade da quinta Ronda é que acontece principalmente a luta. Até
então, o curso corrente da vida pode ser uma boa ou má preparação para a luta, mas não se
pode descrever honestamente que seja a própria luta. E agora temos de examinar a natureza da
luta, que até agora consideramos como a escolha entre o bem e o mal. Isso não é, de forma
alguma, inexato, mas sim, uma definição incompleta.
O fenômeno que vamos analisar agora é o sempre freqüente e ameaçador conflito
entre o intelecto e a espiritualidade. Os conceitos comuns que estas palavras denotam devem,
em verdade, ser ampliados até certo ponto, para que se compreenda o conceito do ocultismo.
Ora, o hábito de pensar europeu presta-se a representar na mente uma imagem ignóbil da
espiritualidade, antes como um atributo do caráter que da própria mente — uma pálida
benevolência nascida do apego ao cerimonial religioso e das aspirações devotas, quaisquer
que sejam as noções excêntricas de Céu e de Divindade em que a pessoa de "mentalidade

69
espiritual" tenha sido educada. A espiritualidade, no sentido oculto, tem pouco ou nada a ver
com o sentimento devoto. Relaciona-se com a capacidade da mente em assimilar o
conhecimento na fonte original do próprio conhecimento — do conhecimento absoluto — em
vez de fazê-lo por meio dos tortuosos e trabalhosos processos do raciocínio.
O desenvolvimento do intelecto puro, a faculdade do raciocínio, foi por muito tempo
uma atividade das nações européias, e nesse setor elas obtiveram do progresso humano tão
magníficos triunfos, que nato haverá nada, na filosofia oculta, que seja menos aceitável para
os mesmos europeus, enquanto estas idéias não forem bem apreendidas, do que o primeiro
aspecto da teoria oculta sobre o intelecto e a espiritualidade. Porém, isso não provém tanto da
indevida tendência da ciência oculta a desprezar o intelecto, como da indevida tendência da
especulação ocidental moderna em desvalorizar a espiritualidade. Falando de modo geral, a
Filosofia Ocidental não teve nenhuma ocasião de apreciar a espiritualidade. Não conhece o
alcance das faculdades internas do homem. Ela somente tateou às cegas na direção da crença
de que existem essas faculdades internas. O próprio Kant, o grande expositor moderno desta
idéia, quando muito sustenta que existe a faculdade da intuição — se soubéssemos ao menos
como operar com ela.
O processo de operar com ela é a ciência oculta em seu aspecto mais elevado, é o
cultivo da espiritualidade. O cultivo de um mero poder sobre as forças da Natureza, a
investigação de alguns de seus segredos mais sutis no que diz respeito aos princípios internos,
dominando os resultados físicos, é a ciência oculta em seu aspecto inferior e, nesta região
inferior de sua atividade, a mera ciência física pode, ou mesmo deve, penetrar gradualmente.
Mas a aquisição por meio do simples intelecto — a ciência física in excelsis — de privilégios
que são patrimônio da espiritualidade, é um dos perigos dessa luta que decide o destino
definitivo do Ego humano. Pois há uma coisa que o processo intelectual não ajuda a
humanidade a compreender: a natureza e a excelência suprema da existência espiritual. Ao
contrário, o intelecto origina-se de causas físicas — a perfeição do cérebro físico — e tende
unicamente aos resultados físicos, à perfeição do bem-estar material. Se bem que como
concessão a "irmãos fracos" e à "religião", a qual olha com benévolo desdém, o intelecto
moderno não condena a espiritualidade, considerando com certeza a vida humana física como
o único assunto sério de que se ocupam os homens circunspectos, ou mesmo os filantropos
austeros. Mas, evidentemente, se a existência espiritual, ou seja, a consciência vívida
subjetiva, dura períodos maiores, na proporção de 80 para 1, no mínimo, conforme vimos ao
tratar do estado devachânico, então a existência subjetiva do homem é mais importante do que
a existência física. O intelecto, assim, incorre em erro, quando dirige todos os seus esforços à
melhoria da existência física.
Essas considerações demonstram que a escolha entre o bem e o mal — feita pelo Ego
humano, no decurso da grande luta entre, o intelecto e a espiritualidade — não é uma mera
escolha entre idéias que tão claramente se diferenciam, como a iniqüidade e a virtude. Não é
uma questão tão primária como essa — que o homem seja mau ou bom — que realmente
deve ser a decisiva, no ponto de retomo crítico final; se terá, por isso, de continuar vivendo e
se desenvolvendo em planos superiores de existência, ou deixar de viver totalmente. A
verdade do assunto é (se não for uma imprudência, em nosso estágio de progresso, descobrir a
superfície de um novo mistério) que a questão de ser ou não ser não se determina por um
homem completamente mau ou bom. Pode-se ver com toda clareza que deve haver uma
espiritualidade má, assim como uma espiritualidade boa. De modo que a grande questão da
continuidade da existência baseia-se, total e necessariamente, na questão da espiritualidade
comparada com o físico. O ponto não é tanto de "se um homem deve viver, se é bastante bom
para se lhe permitir continuar vivendo", como de se pode o homem viver por mais tempo nos
planos superiores da existência, para os quais a humanidade deve finalmente evoluir. Está ele

70
apto para viver pelo desenvolvimento da parte perdurável de sua natureza? Se não está,
chegou ao fim de sua tarefa.
Não é preciso apressar-se em concluir que a filosofia oculta considera o vício e a
virtude sem importância, no tocante aos destinos espirituais humanos, porque não se encontra
na Natureza que estas características determinem o progresso final da evolução. Não há
sistema que seja tão impiedosamente inflexível em sua moralidade, como o sistema que a
filosofia oculta pesquisa e explica. Mas o que é o vício e a virtude determinam por si mesmos
é o sofrimento ou a felicidade, não o problema final da continuidade da existência, mais além
desse período imensamente afastado, quando, no progresso da evolução, o homem tiver
principiado ser algo mais do que homem, e não possa prosseguir na senda do progresso com o
auxílio de atributos humanos relativamente inferiores. Além disso, é verdade que não se pode
imaginar que a virtude deixe, em qualquer grau determinado, de produzir, em seu devido
tempo, os elevados atributos requeridos, mas não seríamos cientificamente exatos se a
tomássemos como a causa do progresso nas etapas finais da elevação, embora ela possa
provocar o desenvolvimento daquilo que é a causa do progresso.
Esta consideração — de que as últimas etapas do progresso são determinadas pela
espiritualidade, não levando em conta seu matiz moral — contém o grande significado da
doutrina oculta de que, "para ser imortal no bem, é preciso identificar-se com Deus; para ser
imortal no mal, com Satã. Estes são os dois pólos do mundo das almas; entre estes dois pólos
vegeta e morre, sem lembrança alguma, a parte inútil da humanidade 15". O enigma, como
todas as fórmulas ocultas, tem uma aplicação menor (adequada quer ao microcosmos quer ao
macrocosmos), e em sua significação menor refere-se ao Devachan ou ao Avitchi, e ao
destino do não-ser das personalidades descoloridas. Mas, em seu significado principal
reporta-se à classificação final da humanidade na metade da grande quinta Ronda, a
aniquilação dos Egos completamente destituídos de espiritualidade e a continuação dos
outros, por serem imortais no bem ou imortais no mal. Justamente o mesmo significado
aplica-se à passagem do Apocalipse (III 15,16): "Sê frio ou quente; porque, por seres morno, e
nem frio, nem quente, eu te vomitarei de minha boca."
Portanto, a espiritualidade não é a aspiração devota. É o gênero de intelecto mais
elevado, o que conhece as funções da Natureza por meio da assimilação direta da mente a
seus princípios superiores. A objeção que a inteligência física apresenta a essa opinião é a de
que a mente nada pode conhecer, a não ser por meio da observação dos fenômenos e do
raciocínio a respeito deles. Isto é o erro, ela pode fazê-lo e a existência da ciência oculta é a
mais elevada prova disso. E há por toda parte ao redor de nós sugestões que apontam na
direção dessa prova, se tivermos a paciência de analisar seus verdadeiros significados. Sendo
infundado dizer, diante dos fenômenos da clarividência — por imperfeitos e grosseiros que
tenham sido os que se impuseram à atenção do mundo —, que não existem outras vias de
acesso à consciência, a não ser a dos cinco sentidos. Com certeza, no mundo comum, a
faculdade clarividente é extremamente rara, mas indica a existência, no homem, de uma
faculdade potencial, cuja natureza, conforme se infere de suas mais insignificantes
manifestações, é sem dúvida capaz, em seu desenvolvimento mais elevado, de conduzir à
assimilação direta do conhecimento, independentemente da observação.
Uma das maiores dificuldades que bloqueiam a presente tentativa de traduzir a
doutrina esotérica em linguagem corrente se deve, principalmente, ao fato de que a percepção
espiritual, à parte de todo processo ordinário de aquisição do conhecimento, constitui uma
grandiosa e importante possibilidade da natureza humana. Tal é o médoto utilizado pelos
Adeptos para instruir seus discípulos no curso regular da educação oculta. Eles despertam o
sentido adormecido do discípulo, e por seu intermédio imbuem em sua mente o conhecimento
de que determinada doutrina é a verdade real. Todo o esquema da evolução, descrito nos
15
ÉliphasLévi.

71
capítulos anteriores, infiltra-se na mente regular do cheia, pelo fato de que se lhe faz ver o
processo que acontece mediante a visão clarividente. Em sua instrução não se usam as
palavras, pois os Adeptos, para os quais os fatos e procedimentos da Natureza são familiares
como os dedos da mão para nós, acham muito difícil explicar num ensaio, que não podem
ilustrar de modo que produza imagens mentais em nosso adormecido sexto sentido, a
anatomia complexa do sistema planetário.
Com certeza, não é de se esperar que a humanidade em geral se encontre já consciente
da posse do sexto sentido, visto que o tempo de sua atividade ainda não chegou. Já se
declarou que cada Ronda por sua vez se destina a aperfeiçoar no homem o princípio
correspondente em sua ordem numérica e a sua preparação para assimilar a que se segue. As
Rondas iniciais referem-se ao homem que foi descrito como se assemelhando a uma sombra
destituída de coesão e de inteligência. O primeiro princípio de todos, o corpo, foi
desenvolvido, mas simplesmente se adaptava à vitalidade e não se parecia a nada ao que agora
nós podemos representar. A quarta Ronda, na qual hoje estamos envolvidos, é a Ronda em
que se desenvolve totalmente o quarto princípio, a Vontade, o Desejo, com o qual se empenha
por integrar-se ao quinto princípio, a razão, a inteligência. Na quinta Ronda, a razão
inteiramente desenvolvida, a inteligência ou a alma, em que mora então o Ego, deve integrar-
se ao sexto princípio, a espiritualidade, ou renunciar totalmente à existência.
Todos os leitores da literatura budista estão familiarizados com as freqüentes
referências ali feitas sobre a união da alma do Arhat com Deus. Em outras palavras, isto
exprime o desenvolvimento prematuro de seu sexto princípio, Ele força seu caminho através
de todos os obstáculos que impedem essa operação, no caso de um homem da quarta Ronda,
para atingir essa etapa da evolução que está reservada para o resto da humanidade — ou
melhor, daquela parte da humanidade que chega a esse estado no curso ordinário da Natureza
—, na última parte da quinta Ronda. Para isso, há de se observar que ele tem de atravessar
todo o grande período do perigo, ou seja, a metade da quinta Ronda. Esta é a estupenda
proeza do Adepto, com relação a seus próprios interesses pessoais: alcançou a outra margem
afastada desse mar no qual grande parte da humanidade perecerá. Ali espera pela chegada de
seus companheiros com uma satisfação que as pessoas nem sequer podem entender, a menos
que possuam alguns vislumbres de espiritualidade, de sexto sentido. Apresso-me a dizer, para
evitar uma interpretação errônea, que esta espera não é no corpo físico, pois tendo adquirido
finalmente o privilégio de abandoná-lo à vontade, permanece num estado espiritual que seria
insensato tentar descrevê-lo, pois até os estados devachânicos da humanidade comum se
acham fora do alcance da imaginação não educada na ciência espiritual.
Mas, voltando ao curso normal da humanidade e ao desenvolvimento das entidades, na
sexta Ronda, de homens e mulheres, que não se tornam Adeptos numa etapa prematura de sua
carreira, há de se observar que este é o curso ordinário da Natureza, num sentido da
expressão, como também é este o curso ordinário da Natureza, para cada grão de trigo
desenvolvido que cai no solo apropriado e se converte numa espiga. Assim como são muitos
os grãos que não chegam a esse ponto, muitos são os Egos humanos que não passam pelas
provas da quinta Ronda. O esforço final da Natureza, ao desenvolver o homem, é evolucioná-
lo num ser imensamente superior, para ser um agente consciente e, por fim, no que
ordinariamente se entende por princípio criador da própria Natureza. O primeiro
empreendimento que se leva a cabo é desenvolver a livre vontade. O segundo é perpetuar esta
vontade induzindo-a a que se una com o objetivo final da Natureza, isto é, com o bem. No
curso dessa operação, é inevitável que grande parte da vontade livre desenvolvida se volte
para o mal, e, depois de produzir um sofrimento temporário, seja dispersa e aniquilada. Mais
do que isso: o objetivo final apenas se concretiza por um gasto enorme de material. Assim
como isto ocorre nos estágios inferiores da evolução, onde de cada mil sementes que um
vegetal produz, unicamente uma chega a frutificar-se numa planta, do mesmo modo também

72
os germes divinos da Vontade são semeados no peito de cada homem, com a mesma
abundância que as sementes arrastadas pelo vento. Deverá ser impugnada a justiça da
Natureza pelo fato de que muitos desses germes perecem? Tal idéia só pode brotar numa
mente que não compreende o espaço existente na Natureza para o desenvolvimento de cada
germe que escolhe estender-se como preferir, seja numa ordem grande ou pequena. Se a
alguém parece horrível que uma "alma imortal" deve perecer, sob quaisquer circunstâncias,
essa impressão só advém do pernicioso costume de considerar tudo o que não é vida
microscópica como eternidade. Nas esferas subjetivas há espaço, assim como tempo, no
manvantara da cadeia planetária, mesmo antes que nos aproximemos do período Dhyan
Chohânico ou Divino, para além do que o cérebro comum tem concebido até agora como
imortalidade. Cada ação boa e cada impulso elevado que tenha realizado ou sentido qualquer
ser humano deve reverberar, através de evos de existência espiritual, sendo a entidade
interessada capaz ou não de florescer no sublime e estupendo desenvolvimento da sétima
Ronda. A especulação exotérica acredita que apenas das causas que se geram numa de nossas
breves vidas na Terra resultam efeitos eternos! Espera-se que nessa milésima parte de nossa
vida objetiva na Terra, durante a permanência nela da onda de vida evolucionária, perceba a
Natureza causa suficiente para decidir toda a nossa carreira futura. Na verdade, a Natureza
dará um retomo muito grande para um gasto comparativamente muito pequeno da força de
vontade humana na direção certa que, por mais estranha que possa parecer essa expectativa
recém-afirmada, por mais estranha que ela possa ser quando aplicada às vidas comuns, uma
breve existência algumas vezes pode bastar para antecipar o crescimento de milhares de anos.
O Adepto pode, em apenas uma encarnação16, conseguir tanto adiantamento que o seu
crescimento posterior é certo, é meramente uma questão de tempo. Porém, nesse caso, a
semente-germe, que produz um Adepto em nossa vida, deve ter sido muito perfeita, e as
condições de seu desenvolvimento muito favoráveis, além do esforço do próprio homem
vivido constantemente e muito mais concentrado, mais intenso, mais ardoroso, do que é
possível realizar um profano não-iniciado. Já nos casos comuns, a vida que está dividida entre
o gozo material e a aspiração espiritual, por mais sincera e harmoniosa que seja esta última, só
pode produzir o correspondente duplo resultado de uma recompensa espiritual no Devachan e
um novo nascimento na Terra. Observe-se que o modo como o Adepto se liberta da
necessidade desse novo nascimento é perfeitamente científico e simples, por mais que pareça
um mistério teológico quando se explica nos escritos exotéricos com relação a karma,
Skandna, Tríshnâ e Tanhâ, e assim sucessivamente. A próxima vida terrena é conseqüência
das afinidades geradas pelo quinto princípio, ou seja, a alma humana permanente (assim
como as experiências devachânicas são o desenvolvimento dos pensamentos e aspirações de
um caráter elevado) desenvolvida pela pessoa durante a vida. Vale dizer: as afinidades que se
engendram nos casos comuns são parte materiais e parte espirituais. Assim, fazem a alma
apresentar, em sua entrada no mundo dos efeitos, uma dupla série de atrações que lhe são
inerentes, sendo uma série produtora das conseqüências subjetivas de sua vida devachânica e
a outra que se desperta no final dessa vida, fazendo essa alma voltar à reencarnação. Mas se a
pessoa durante sua vida objetiva não desenvolve absolutamente nenhuma afinidade com a
existência material, na ocasião de sua morte a alma se encontra com todas suas atrações
tendendo na direção da espiritualidade, sem nada que a impulsione a voltar à vida objetiva, e
então ele não retorna. Eleva-se a um estado de espiritualidade correspondente à intensidade
das atrações ou afinidades nessa direção e se corta o outro fio de ligação.
Ora, a presente explicação não abrange todo o assunto, porque o próprio Adepto, por
mais elevado que seja, volta à encarnação eventualmente, após o resto da humanidade ter
cruzado o grande período divisório na metade da quinta Ronda. Até que se atinja a exaltação
16
Na prática, minha impressão é a de que isso se consegue raramente numa vida na Terra mas,
antes, em duas ou três encarnações artificiais

73
da Espiritualidade Planetária, a mais elevada alma humana precisa manter ainda uma certa
afinidade com a Terra, embora não com a vida terrena de prazeres físicos e de paixões que
atravessamos no momento. Todavia, o ponto importante que devemos compreender sobre as
conseqüências espirituais da vida mundana é de tal ordem, em tão grande maioria de casos,
que os poucos que fogem à regra não precisam ser mencionados; o senso de justiça, no que se
refere ao destino dos homens bons, é amplamente satisfeito, passo a passo, pelo curso da
Natureza, à medida que o tempo passa. O espírito de vida está sempre pronto a receber, a
reparar as forças e a restaurar a alma depois de lutas, feitos e sofrimentos da encarnação. E
mais do que isto, com ressalvas sobre a questão da eternidade, a Natureza proporciona, nos
períodos intercíclicos no final de cada Ronda, a toda humanidade, exceto esses desgraçados
fracassos que persistentemente permaneceram agarrados à senda do caminho do mal, grandes
intervalos de felicidade espiritual, mais longos e exaltados em seu caráter do que os períodos
devachânicos de cada vida em separado. Com efeito, a Natureza é inconcebívelmente liberal e
paciente com todos e cada um dos candidatos ao exame final, durante sua longa preparação
para o mesmo. Nem tampouco é absolutamente fatal o fracasso neste exame. Os fracassados
ainda podem tentar nova prova, se não forem casos de completa ignomínia, mas têm de
aguardar a próxima oportunidade.
Uma explicação cabal das circunstâncias em que essa espera ocorre nïo se enquadraria
no esquema deste tratado. Mas não é de se supor que os candidatos ao progresso, convictos da
incapacidade para continuar no período crítico da quinta Ronda, caiam necessariamente na
esfera da aniquilação. Para que esta atração se faça valer, o Ego deve ter desenvolvido uma
atração positiva pela matéria e uma repulsa positiva contra a espiritualidade que seja
esmagadora em sua força. Na ausência dessas afinidades, e na ausência também de outras que
fossem suficientes para fazer passar o Ego por cima do grande golfo, o destino que sai ao
encontro dos meros fracassos da Natureza é, no tocante ao presente manvantara planetário, o
morrer, sem lembranças, segundo o expressa Éliphas Lévi. Viveram sua vida e tiveram sua
parte de Céu, mas não são capazes de subir às enormes altitudes do progresso espiritual que
têm pela frente. Porém, estão habilitadas para sucessivas encarnações e para a vida nos planos
de existência a que estão acostumados. Assim, esperarão, no estado negativo espiritual a que
chegaram, que esses planos de atividade voltem a existir no próximo manvantara planetário.
A duração de tal espera está, por certo, fora do alcance de qualquer imaginação, sendo a
natureza exata de semelhante estado de existência não menos incompreensível. Mas se deve
levar em conta o sentido geral da senda conducente a essa estranha região de semi-animação,
a fim de que a simetria e a totalidade de todo o esquema evolucionário possa ser percebido.
Uma vez entendida essa última contingência, está diante do leitor todo o esquema
bastante completo em suas linhas principais. Já vimos a Vida Una, o Espírito, animando
primeiramente a matéria em suas formas inferiores e evocando, lentamente, o
desenvolvimento de formas mais elevadas. Individualizado finalmente no homem, ele abre
caminho através de encarnações inferiores e irresponsáveis até que, penetrando nos princípios
superiores e evoluindo uma verdadeira alma humana, que será, no tempo posterior, senhora de
seu próprio destino, ainda que resguardada, no início, nas condições naturais, para que se
preserve de um naufrágio prematuro, seja estimulada e animada em seu curso. Mas o destino
final que se apresenta a esta alma é não só o desenvolvimento num ser capaz de cuidar de si,
como num ser capaz de cuidar dos outros, de presidir e de dirigir, dentro do que se poderia
denominar limites constitutivos, as operações da Natureza mesma. É claro que antes que a
alma tenha adquirido o direito a esse grau, tem de ter sido examinada, concedendo a ela
domínio completo sobre seus próprios assuntos. Esse domínio completo implica
necessariamente o poder de naufragar. As salvaguardas que defendem o Ego em sua
juventude — sua incapacidade para passar a estados superiores ou inferiores, aos
intermúndios do Devachan e Avitchi — abandonam-no em sua virilidade. Então, toma-se

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potente sobre seus próprios destinos, não só quanto ao desenvolvimento do gozo ou
sofrimento transitório, mas quanto às enormes oportunidades que a existência exibe diante
dele em ambas as direções. Podem-se aproveitar as oportunidades superiores de duas
maneiras. Pode abandonar a luta de dois modos. Pode atingir a sublime espiritualidade para o
bem ou a sublime espiritualidade para o mal. Pode aliar-se ao físico, não para o mal, mas para
a total aniquilação. Ou, por outro lado, se não para o bem, mas para o resultado negativo que é
ter de reiniciar o processo educativo da encarnação.

COMENTÁRIOS

Neste capítulo não se descreve completamente o estado a que passam as mônadas que
não atravessam o período médio da quinta Ronda, tão logo a onda da evolução avança,
deixando-as, por assim dizer, encalhadas nas costas do tempo. Tão-só se indica em poucas
palavras que os fracassos de cada manvantara não são de modo algum aniquilados quando
chegam "ao final de sua carreira", mas são destinados, depois de grandes períodos de espera,
a retornar à corrente da evolução. Muitas são as deduções que se extraem desse estado de
coisas. O período de espera que estes fracassados têm de suportar é, antes de tudo, de uma
duração tão estupenda que frustra a imaginação. A última metade da quinta Ronda, toda a
sexta e a sétima têm de ser levadas a cabo com os graduados bem-sucedidos na
espiritualidade, e as últimas Rondas são de duração imensamente maior do que as do período
médio. Em seguida há o vasto intervalo de repouso nirvânico, que fecha o manvantara, a
incomensurável Noite de Brahmâ, o Pralaya de toda a cadeia planetária. Somente quando
principia o manvantara seguinte é que os fracassados acordam de seu tremendo transe —
tremendo para a imaginação de seres que estão em plena atividade da vida, por mais que tal
transe, destituído de consciência, não seja mais enfadonho que uma noite sem sonhos, na
memória de um homem profundamente adormecido. Á sina dos fracassados, depois de tudo,
pode ser considerada digna de pena em primeiro lugar, antes pelo que perdem do que pelo que
incorrem. Em segundo lugar, entretanto, é digna de pena em vista das conseqüências, pois, ao
acordar, precisam voltar a passar pelo sofrimento que envolve a vida física e as suas
inumeráveis encarnações, enquanto os seres aperfeiçoados, que os deixaram para trás, na
evolução daquela quinta Ronda, aquela em que eles fracassaram, atingiram a divina perfeição
do estado Dhyan Chohânico, durante o seu transe, e serão os gênios que hão de presidir o
manvantara seguinte, em vez de serem seus indefesos sujeitos.
Contudo, à parte o que se possa encarar como sendo o interesse pessoal dessas
entidades, a existência dos fracassos na Natureza, no início de cada manvantara, é um fato que
contribui, de modo muito significativo, à compreensão do sistema evolucionário. Por certo,
quando a cadeia planetária se desenvolve num princípio do caos — se é que se pode empregar
a expressão "num princípio" em seu sentido próprio, tendo presente a observação de que "no
princípio" é uma simples façon de parler aplicado a qualquer período da eternidade — não
existem os fracassos. Então a descida do espírito à matéria, através dos reinos elemental,
mineral e outros, prossegue da forma que já foi descrita nos primeiros capítulos deste livro.
Porém, a partir do segundo manvantara de uma cadeia planetária, durante a atividade do
sistema solar, que estabelece muitos desses manvantaras, o curso dos acontecimentos é um
pouco diferente — mais fácil, se posso tornar a usar uma expressão que é muito mais
adequada a uma conversa, do que ao uso do sentido rigorosamente científico. Além disso
anda mais rápido o processo, pois existem já entidades humanas dispostas a entrar em
encarnação, tão logo o mundo, que também já existe, esteja em estado perfeito para elas. A

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verdade, pois, parece ser que, após o primeiro manvantara de uma série — enormemente
maior em duração que seus sucessores — nenhuma entidade recém-saída dos reinos inferiores
pode passar assim do limiar da humanidade. Os últimos fracassados entram em primeiro lugar
na encarnação e depois eventualmente as entidades animais sobreviventes já diferenciadas:
Contudo, comparada com os trechos da doutrina esotérica que afeta a evolução corrente da
nossa própria raça, estas considerações, relativas a tempos muito primitivos da evolução do
mundo, têm um interesse meramente intelectual e ainda não podem ser muito ampliadas com
qualquer contribuição de minha parte.

9. BUDA

O Buda histórico, conhecido dos guardiães da doutrina esotérica, é uma personagem


cujo nascimento não se reveste das estranhas maravilhas com que a fantasia popular a
envolveu. Nem tampouco seu progresso para o Adeptado deixou as marcas dos eventos a que
se reportam as lutas sobrenaturais descritas pela lenda simbólica. Por outro lado, a encarnação
a que se atribui o nome de nascimento de Buda não é certamente encarada pela ciência oculta
como um acontecimento igual a qualquer outro nascimento, nem tampouco se considera o
desenvolvimento espiritual por que passou Buda, durante sua vida terrena, como mero
processo de evolução intelectual, semelhante à história mental de qualquer outro filósofo. O
erro que cometem os escritores europeus, ao se ocuparem de um problema dessa natureza, é
tratar a lenda esotérica como uma tradição de milagres, a respeito da qual não é necessário
acrescentar nada, ou como um puro mito, que agrega uma decoração fantástica a uma vida
notável. A vida de Buda, admite-se, por mais notável que tenha sido, deve ter sido vivida
segundo as teorias sobre a Natureza, atualmente aceitas desde o século XIX. O exposto nas
páginas anteriores prepara o terreno para a exposição do que ensina a doutrina esotérica sobre
Buda. Segundo se comprova de modo bastante exato pela pesquisa moderna, Buda nasceu
643 anos antes da era cristã, em Kapila-Vastu, perto de Benares.
As concepções exotéricas, desconhecendo as leis que regem as operações da Natureza
em suas esferas superiores, somente podem interpretar a dignidade anormal de algum
nascimento particular, mediante a suposição de que o corpo físico da pessoa envolvida foi
gerado de um modo milagroso. Donde a noção popular sobre Buda, de que sua encarnação
neste mundo foi devida a uma concepção imaculada. A ciência oculta não conhece processo
algum à produção de uma criança humana física, senão o determinado pelas leis físicas; mas,
sim, conhece-se muito a respeito dos limites dentro dos quais a Vida Una, ou "mônada
espiritual" progressiva, ou seja, o fio contínuo de uma série de encarnações pode eleger
corpos de crianças definidos como moradas humanas. No caso da humanidade comum, esta
escolha é feita por ação do karma, de forma inconsciente, no que diz respeito ao Ego

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espiritual emergente ao Devachan. Mas, nos casos anormais em que a Vida Una penetrou o
sexto sentido — ou seja, quando um homem se converteu em Adepto, tendo o poder de guiar
seu próprio Ego espiritual com plena consciência do que faz, após ter abandonado o corpo no
qual obteve o Adeptado, temporária ou permanentemente — está em seu poder a escolha de
sua própria encarnação seguinte. Mesmo durante a vida sobrepõe-se à atração devachânica.
Converte-se em um dos poderes conscientes que dirigem o sistema planetário a que pertence,
e por grande que seja este mistério da reencarnação escolhida, sua aplicação não se restringe
de modo algum a acontecimentos extraordinários, tais como o nascimento de Buda. E
fenômeno reproduzido amiúde pêlos Adeptos superiores até hoje. Assim, muito do que conta
a mitologia popular oriental é puramente fictício ou inteiramente simbólico. Mas as
reencarnações dos Lamas do Dalai e Teshu, no Tibete, das quais se riem os viajantes por falta
de conhecimento que lhes permitam distinguir os fatos reais dos imaginários, são um fato
sério e científico. Nesses casos, o Adepto declara antecipadamente quando e onde há de
nascer, e qual será a criança na qual tratará de reencarnar, e muito raramente se engana.
Dizemos muito raramente, porque há alguns acidentes de natureza física que não se podem
absolutamente prevenir, nem é absolutamente certo que, com toda a previsão que mesmo um
Adepto possa utilizar no assunto, a criança por ele escolhida — em seu estado reencarnado —
atinja afortunadamente a maturidade física. Enquanto isso, o Adepto, no corpo, é
relativamente impotente. Fora do corpo é exatamente o que foi sempre, desde que se
converteu em Adepto. Mas, no que diz respeito ao novo corpo que ele escolheu para moradia,
tem de deixá-lo desenvolver-se conforme o curso ordinário da Natureza, e educá-lo pêlos
procedimentos comuns, iniciando-o por meio do método oculto regular no Adeptado, antes
que possa dispor de um corpo totalmente pronto para o trabalho oculto no plano físico. Todos
esses processos são imensamente simplificados, é verdade, pela força espiritual peculiar que
atua dentro do corpo. Em princípio, porém, a alma do Adepto se sente constringida e
embaraçada no corpo da criança e, como parece natural, muito incomoda e pouco à vontade.
A condição seria muito mal-interpretada se o leitor imaginasse que essas reencarnações são
um privilégio que os Adeptos aproveitam com prazer.
O nascimento de Buda foi um mistério desse gênero e, à luz do que se disse, será fácil
verificar a história popular de sua origem miraculosa e traçar as referências simbólicas aos
fatos em questão, em algumas fábulas mais grotescas ainda. Nenhuma referência, por
exemplo, parece menos promissora como uma alusão a qualquer coisa que se pareça com um
fato científico do que a afirmação de que Buda entrou nas entranhas de sua mãe como um
jovem elefante branco. Mas o elefante branco é simplesmente o símbolo do Adeptado — algo
que se considera como um belo e raro exemplar de sua espécie. O mesmo acontece com
outras lendas pré-natais que indicam o fato de que o futuro corpo do menino fora escolhido
como morada de um grande espírito já dotado de sabedoria e bondade superlativas. Indra e
Brahmã vieram prestar homenagens ao menino na ocasião do nascimento — quer dizer: os
poderes da Natureza estavam já submetidos ao Espírito que havia dentro dele. Os trinta e dois
signos de Buda, que a lenda descreve por meio de um simbolismo físico ridículo, são
meramente os diversos poderes do Adeptado.
A escolha do corpo conhecido como Siddhartha e depois como Gautama, filho de
Suddhodana, de Kapila-Vastu, como morada humana do iluminado espírito humano, que se
submetera à encarnação para ensinar a humanidade, não foi um desses raros fracassos antes
mencionados. Pelo contrário, foi uma escolha notavelmente bem-sucedida sob todos os
aspectos, e em nada interveio na consumação do Adeptado pelo Buda em seu novo corpo. A
narração popular de suas lutas ascéticas e tentações, e de sua chegada final ao estado búdico
sob a Árvore-Bo, nada mais é que a versão exotérica de sua iniciação.
Dessa época em diante, sua obra teve uma natureza dual, tinha de reformar e revisar a
moral popular e a ciência dos Adeptos — pois o próprio Adeptado está sujeito a mudanças

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cíclicas, e necessita de impulsos periódicos. A explicação deste aspecto do assunto, expresso
claramente, não só será importante por si mesma, como de interesse para todos os estudantes
do Budismo Exotérico, visto que esclarece algumas das complicações que causam tanta
confusão da "Doutrina Setentrional" mais abstrusa.
Um Buda visita a Terra em cada uma das sete raças do grande período planetário. O
Buda de que nos ocupamos foi o quarto da série, e esta é a razão pela qual consta como o
quarto na lista, citada por Mr. Rhys Davids, de Bumouf - a título de ilustração do modo como
a Doutrina Setentrional tem sido, segundo Mr. Davids supõe, inflada de sutilezas metafísicas
e de absurdos acumulados ao redor da simples moralidade, que se resume no Budismo que se
apresenta ao populacho. O quinto, ou Maitreya Buddha, virá depois do desaparecimento final
da quinta raça, quando a sexta raça já estiver estabelecida na Terra durante algumas centenas
de milhares de anos. O sexto virá no início da sétima raça, e o sétimo, para o final da mesma
raça.
Esta ordem parecerá, à primeira vista, em desacordo com o grande desígnio geral da
evolução humana. Aqui estamos, na metade da quinta raça, entretanto o quarto Buda é o que
foi identificado com esta raça, enquanto o quinto não virá até que a quinta raça esteja
praticamente extinta. Â explanação encontra-se, contudo, nas grandes linhas da Cosmogonia
esotérica. No início de cada grande período planetário, quando o obscurecimento termina e a
onda humana, em seu progresso ao redor da cadeia de mundos, chega às margens de um globo
onde nenhuma humanidade existiu durante milhares de anos, toma-se necessário um Instrutor
desde o início para a nova colheita de humanidade que vai brotar. Recorde-se que a evolução
preliminar dos reinos mineral, vegetal e animal ocorreu na preparação do novo período da
Ronda. Com a primeira infusão da corrente de vida nas espécies que formam os "elos
perdidos", começa a evolucionar a primeira raça da nova série. Então aparece o Ser, que pode
ser considerado o Buda da primeira raça. O Espírito Planetário, ou Dhyan Chohan, que é —
ou, para evitar uma idéia errônea pelo uso do verbo na pessoa do singular, desafiemos a
gramática e digamos que são — Buda em todos seus (dele ou deles) desenvolvimentos,
encarna entre os jovens e inocentes precursores da nova humanidade, preparados para ser
ensinados, e imprime os primeiros princípios gerais do bem e do mal, e as primeiras verdades
da doutrina esotérica a um número suficiente de mentes receptivas, para assegurar a
reverberação contínua das idéias desse modo introduzidas através de gerações sucessivas de
homens nos milhões de anos vindouros, antes que a primeira raça tenha concluído seu curso.
Desta chegada, no princípio do período de Ronda, de um Ser Divino sob forma humana, é de
onde nasce o conceito inextirpável do Deus antropomórfico de todas as religiões exotéricas.
O primeiro Buda da série em que Gautama Buda aparece como quarto é, portanto, a
segunda encarnação de Avalokitesvara — nome místico das hostes de Dhyan Chohans ou
Espíritos Planetários pertencentes à nossa cadeia planetária —, e mesmo quando Gautama é,
pois, a quarta encarnação de iluminação, segundo o cálculo esotérico, constitui na verdade o
quinto da verdadeira série. Portanto, pertence propriamente à nossa quinta raça.
Avalokitesvara, como afirmamos antes, é o nome místico das hostes de Dhyan
Chohans. O significado próprio da palavra é sabedoria manifestada, como Âdi-Buddha e
Amitabha, ambas variantes com o significado de sabedoria abstraía.
A doutrina, conforme Mr. Davids, de que "cada Buda mortal terreno tem seu puro e
glorioso correlativo no mundo místico, livre das degradantes condições desta vida material
— ou antes, que o Buda, nas condições materiais, é apenas uma aparência, o reflexo, a
emanação ou tipo de um Dhyani Buddha" — é perfeitamente exato. O número de Dhyani
Buddhas ou Dhyan Chohans, ou espíritos planetários, espíritos humanos aperfeiçoados de
outros mundos, é infinito, mas somente cinco estão praticamente identificados no
ensinamento exotérico, e sete no ensinamento esotérico. Esta identificação, vale lembrar, é
um modo de falar que não deve ser interpretado demasiado literalmente, pois existe, na vida

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espiritual sublime em questão, uma unidade que não deixa lugar ao isolamento da
individualidade. Tudo isto há de se ver que se harmoniza perfeitamente com as revelações
relativas à Natureza, incluídas nos capítulos anteriores, e não deve ser, de forma alguma,
atribuído às imaginações místicas. Os Dhyani Buddhas ou Dhyan Chohans são a humanidade
aperfeiçoada de épocas manvantáricas precedentes, e sua inteligência coletiva se descreve
com o nome de Adi-Buddha. Mr. Rhys Davids engana-se ao tratá-lo como uma invenção
recente dos budistas do Norte. Adi-Buddha significa sabedoria primordial, sendo mencionado
nos livros sânscritos mais antigos. Por exemplo, na dissertação filosófica sobre o "Mandukya
Upanishad", por Gowdapatha, autor sânscrito contemporâneo do próprio Buda, a expressão é
empregada livremente e exposta sua concordância rigorosa com a presente declaração. Um
amigo meu na índia, pândita brâmane de primeira Unha, como erudito sânscrito, mostrou-me
cópia desse livro, que não foi, segundo ele, traduzido para o inglês, e me indicou uma frase
que se relaciona com a presente questão e que me foi traduzida do seguinte modo: "Mesmo
Prakriti, na verdade, é Adi-Buddha e todos os Dharmas têm existido por toda a eternidade."
Gowdapatha é escritor filósofo acatado por todas as seitas hindus e budistas, e bem-
conhecido. Era o guru, ou instrutor espiritual, do primeiro Sankaracharya, de quem logo terei
que tratar mais extensamente.
O Adeptado, quando encarnou Buda, não era a condensada e compacta hierarquia em
que desde então se converteu sob sua influência. Nunca houve época alguma no mundo sem
Adeptos, mas, às vezes, eles estiveram disseminados por todo o mundo, ou isolados em
reclusões separadas, gravitando ora por um país, ora por outro. Finalmente, vale recordar, seu
conhecimento e poder nem sempre foram inspirados na sublime e severa moralidade que
Buda infundiu em sua última e mais elevada organização. A reforma do mundo oculto por seu
intermédio foi, efetivamente, o resultado de seu grande sacrifício, da abnegação que o induziu
a recusar o estado afortunado do Nirvana, o que lhe cabia completo direito após sua vida
terrena como Buda, e a empreender a pesada tarefa de renovadas encarnações, a fim de
executar a missão que se havia imposto, conferindo à humanidade o aumento de benefício
correspondente, Buda reencarnou-se, depois de sua existência como Gautama Buda, na pessoa
de um grande Instrutor do qual se fala pouco nas obras exotéricas do Budismo, mas cuja vida,
sem ser conhecida, tomaria impraticável obter um conceito exato da situação no mundo
oriental da ciência esotérica, a saber: Sankaracharya. A última parte deste nome — acharya —
significa simplesmente mestre. A designação completa, como título, foi perpetuada até hoje
sob curiosas circunstâncias, mas os portadores modernos dela não estão na Unha direta das
encarnações espirituais budistas.
Sankaracharya apareceu na índia — não tendo fixado atenção em seu nascimento,
parece ter ocorrido na costa do Malabar — uns sessenta anos após a morte de Gautama Buda.
O ensinamento esotérico determina que Sankaracharya foi simplesmente Buda em todos
aspectos, num novo corpo. Esta opinião não será acolhida pelas autoridades hindus não-inicia-
das, que atribuem uma data posterior ao aparecimento de Sankaracharya, considerando-o
como um santo Instrutor independente, e mesmo oposto ao Budismo. Entretanto, não deixa de
ser por isso o que acabamos de manifestar, na opinião real dos iniciados na ciência esotérica,
quer se denominem budistas ou hindus. Recebi esta informação que agora exponho, de um
brâmane advaita da Ínida do Sul — não diretamente de meu instrutor tibetano — e todos os
brâmanes iniciados, conforme me afirmou, dirão o mesmo. Algumas das últimas encarnações
de Buda são descritas de outro modo, como coberturas do espírito de Buda, mas no que se
refere à pessoa de Sankaracharya, foi reencarnação sua na Terra. O objetivo que se propunha
era preencher algumas lacunas e reparar certos erros de seus ensinamentos anteriores; pois no
Budismo Esotérico não se discute que até um Buda pode ser falível em certo momento de sua
carreira.

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A situação era a seguinte: Até o tempo de Buda, os brâmanes da índia haviam
reservado zelosamente o conhecimento oculto como propriedade de sua casta. Às vezes
ocorria alguma exceção em favor dos Tshatryas, mas a regra era exclusiva no mais alto grau.
Esta regra, destruída por Buda, admitia igualmente todas as castas na senda do Adeptado. A
mudança pode ter sido perfeitamente correta em princípio, mas abriu caminho a grande
perturbação e, segundo acreditavam os brâmanes, à degradação do próprio conhecimento
oculto — isto é, sua transferência para mãos indignas, não indignas devido à inferioridade de
casta, mas pelo fato de que a inferioridade moral que supunham introduzia-se na fraternidade
justamente com os irmãos de baixa linhagem. Não afirmavam os brâmanes, absolutamente,
que, porque um homem fosse brâmane, devia ser necessariamente virtuoso e digno de
confiança. A questão era: é preciso deixar fora dos segredos e poderes de iniciação todos
aqueles que não são virtuosos e dignos de confiança. Com este fito, é necessário não só
estabelecer todas as provações e testes imagináveis, como também não admitir candidatos
exceto da classe que, no geral, por causa de suas vantagens hereditárias, é mais provável seja
a melhor sementeira de candidatos apropriados.
A experiência, crêem-no agora todos, que despertam os temores dos brâmanes e a
encarnação seguinte de Buda, foi uma admissão prática disso. Entretanto, Buda, na pessoa de
Sankaracharya, cuidou de atenuar, de antemão, a luta sectária que viu iminente. A oposição
ativa dos brâmanes contra o Budismo começou no tempo de Asoka. Grandes esforços
envidados por Asoka para espalhar o Budismo provocaram temores por parte dos brâmanes,
por sua influência social e política. Deve-se ter presente que os iniciados não estio
completamente livres, em todos os casos, dos preconceitos de suas próprias individualidades.
Possuem alguns atributos semi-divinos, de tal sorte que, quando os profanos começam a
compreender algo deles, costumam despojá-los em sua imaginação de todas as fragilidades
humanas. A iniciação e o conhecimento oculto, tomados em comum, são certamente um
vínculo de união entre os Adeptos de todas as nacionalidades, vínculo muito mais forte que
qualquer outro. Porém, mais de uma vez verificou-se que não se podia apagar todas as outras
diferenças. Assim, os iniciados brâmanes e os budistas, da época a que nos referimos, não
sustentavam de forma alguma a mesma opinião em todas as questões, e os brâmanes
desaprovavam decididamente a reforma budista em seus aspectos exotéricos. Chandragupta, o
avô de Asoka, foi um forasteiro e a família, sudras. Isto era suficiente para tomar antipática
sua política budista aos representantes da fé ortodoxa brâmane. A luta tomou uma forma
exacerbada, mesmo quando a história nos fornece pouco ou nenhum pormenor. O partido do
Budismo primitivo foi completamente vencido e o costume brâmane, totalmente
restabelecido, no tempo de Vikramaditya, por volta de 80 a.C. Contudo, Sankaracharya havia
viajado por toda a índia, antecipando-se à grande luta, e estabelecido vários mathams, ou
escolas de filosofia, em diversos centros importantes. Empenhou-se poucos anos nesta tarefa,
mas a influência de seus ensinamentos foi tão grande que sua importância disfarça a mudança
introduzida. Colocou o Hinduísmo Exotérico em harmonia com a "religião da sabedoria"
esotérica. Deixou o povo entretendo-se com suas antigas mitologias, mas com o apoio de
guias filosóficos que eram budistas esotéricos sob todos aspectos, se bem que reconciliados
com tudo que era imperecível no Brahmanismo. A grande falta do Hinduísmo Exotérico
anterior dependia de afeição às vãs cerimônias e de sua adesão aos conceitos idólatras das
divindades do panteão hindu. Sankaracharya confirmou enfaticamente com seus comentários
aos Upanishads e com seus escritos originais, a necessidade de perseguir o gnyanam a fim de
se obter o moksha — vale dizer: a importância do conhecimento secreto do progresso
espiritual e a sua consumação. Foi o fundador do sistema Vedantino (sendo o verdadeiro
significado do Vedanta o último fim ou a coroa do conhecimento), ainda que as sanções deste
sistema as tenha tirado dos escritos de Vyasa, autor do "Mahabharata", dos "Puranas" e do
"Brahma-sutras". O leitor deve compreender que faço estas declarações não com base em

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investigações próprias — pois não sou um sábio bastante orientalista para tentá-lo —, senão
com a autoridade de um brâmane iniciado que é, além de ocultista, um sábio orientalista de
primeira ordem.
A escola Vedântica é hoje quase co-extensiva do Hinduísmo, levando em
consideração, naturalmente, a existência de algumas seitas especiais como os sikhs, os
vallabacharyas, ou maharajah, seita de muito má fama, que pode dividir-se em três grandes
divisões: os adwaitees, os adwaitees vishishta e os dawaitees. O esboço da doutrina adwaitee
é que brahmun ou purush, o espírito universal, agem somente por meio de prakríti, a matéria,
em que tudo tem lugar, desta maneira, por meio da energia inerente da matéria. Brahmun ou
Parabrahm é, pois, um princípio passivo, incompreensível e inconsciente, mas, em essência,
vida una ou energia do universo. Deste modo, a doutrina é idêntica ao materialismo
transcendental da filosofia do Adepto budista esotérico. O nome adwaitee significa não-dual e
refere-se, em parte, à não-dualidade, ou seja, a unidade do espírito universal ou vida una
budista, como distinta da noção de seu funcionamento por meio de encarnações
antropomórficas, e, em parte, à unidade do espírito universal e do humano. Como
conseqüência natural desta doutrina, os adwaitees deduzem a doutrina budista do kárma,
relativamente ao destino futuro do homem, como dependendo por completo das causas que
ele mesmo engendra.
Os adwaitees vishishta alteram essa doutrina com a interpolação de Vishnu como uma
deidade consciente, a emanação primordial de Parabrahm, Vishnu sendo considerado como
um deus pessoal, capaz de intervir no curso dos destinos humanos. Não encaram o yog, ou a
educação espiritual, como a senda própria à realização espiritual, crendo que isto é possível
principalmente por meio de Bhakti ou devoção. Expressando-o na fraseologia da teologia
européia, poder-se-ia dizer que os adwaitees apenas acreditam na salvação por meio das obras
e os adwaitees vishishta, na salvação pela graça. Os adwaitees distinguem-se pouco dos
adwaitees vishishta, afirmando, simplesmente, com a designação que assumem, com maior
ênfase, a dualidade do espírito humano e do princípio mais elevado do universo e incluindo
muitas observações de cerimônias como parte essencial de Bhakti.
É preciso considerar que todas essas diferenças de opinião só têm relação com as
variações exotéricas da ideia fundamental, introduzidas por diferentes instrutores com
impressões variadas sobre a capacidade do povo para assimilar as idéias transcendentais.
Todos os dirigentes do pensamento do Vedanta adoram Sankaracharya e os mathams que ele
fundou com a maior reverência possível, e a sua crença interior aproxima-se, em todos os
sentidos, da doutrina esotérica una. Com efeito, os iniciados de todas as escolas da índia
entrelaçam-se uns com os outros. Exceto quanto à nomenclatura, todo o sistema da
Cosmogonia, segundo defendem os budistas arhats e conforme está exposto neste livro, é
também defendido pêlos brâmanes iniciados, que o fazem desde antes do nascimento de
Buda. Donde o conseguiram? - perguntará talvez o leitor. Do Espírito Planetário ou Dhyan
Chohan, que visitou primeiramente este planeta, na aurora da raça humana, na Ronda presente
— há mais milhões de anos do que os que se possa mencionar por suposição, pois que o
número exato verdadeiro se guarda secretamente.
Sankaracharya fundou quatro mathams principais: uma, em Sringari, na índia do Sul,
que sempre foi a mais importante; uma, em Jugger-nath, em Orissa; uma em Dwaraka, em
Kathiawar, e uma, em Gungotri, nos declives do Himalaia, ao Norte. O chefe do templo de
Sringari teve sempre a designação de Sankaracharya, como adição a seu nome individual.
Surgiram desses quatro outros centros, e hoje existem mathams por toda a índia, exercendo a
maior influência possível no Hinduísmo.
Afirmei que Buda, em sua terceira encarnação, reconheceu o fato de que, na segurança
excessiva de sua amorosa confiança na perfectibilidade da humanidade, abriu demasiado as
portas do santuário oculto. Sua terceira aparição foi na pessoa de Tsong-kapa, o grande

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Adepto reformador tibetano do século XIV. Nesta personalidade tratou exclusivamente dos
assuntos da fraternidade de Adeptos, que naquele tempo se reunia notada-mente no Tibete.
Desde tempos imemoriais houve no Tibete certa religião secreta, hoje completamente
desconhecida e não abordável por quem não seja iniciado, inacessível para o povo comum do
país, assim como para outras gentes, e na qual se congregaram sempre os Adeptos. Mas, em
geral, o país não era, no tempo de Buda, o que se tomou depois, a morada escolhida da grande
fraternidade. Muito mais do que são na atualidade, os Mahâtmâs, nos primeiros tempos,
estavam espalhados pelo mundo. O progresso da civilização, gerador do magnetismo com que
penosamente deparam, havia, entretanto, na época de que tratamos — o século XIV — cedido
lugar a um movimento generalizado rumo ao Tibete, por parte dos previamente disseminados
ocultistas. O conhecimento e poder ocultos estavam então disseminados muito más que o que
era prudente à segurança da humanidade. Tsong-kapa assumiu a tarefa de colocá-lo sob o
domínio de um sistema rígido de regras e leis.
Sem restabelecer o sistema na base anterior, pouco razoável, do exclusivismo de
castas, elaborou um código de regras como guia dos Adeptos, cujo resultado foi depurar a
organização oculta de tudo o que não visasse ao conhecimento oculto, com o espírito da mais
sublime devoção aos princípios mais elevados.
Um artigo da Theosophist de março de 1882, sobre "Reencarnações no Tibete", de
cuja veracidade tenho absoluta certeza, traz notícia de grande importância acerca da questão
que tratamos agora, e das relações entre o Budismo Esotérico e o Tibete, que nunca serão
analisados o bastante acuradamente por qualquer um que queira compreender com rigor o
Budismo, em seu verdadeiro significado.
Lemos no artigo: "O sistema regular das encarnações lamaicas de 'Sangyas' (ou
Buda) começou com Tsong-kapa. Este reformador não é a encarnação de um dos cinco
Dhyanis celestiais ou Budas celestes, como se supõe geralmente, que se diz foram criados
por Sakya-Muni depois de elevar-se ao Nirvana, mas, sim, de Amita, um dos nomes chineses
de Buda. Os anais guardados no Gon-pa (lamasaria) de Tda-shi Humpo demonstram que
Sangyas se encarnou em Tsong-kapa em conseqüência da grande degradação em que haviam
caído as suas doutrinas. Até então não tinham ocorrido outras encarnações que as dos cinco
Budas celestiais e de seus Bodhisattvas, cada um dos primeiros tendo criado (leia-se,
encoberto com sua sabedoria espiritual) cinco dos últimos... Entre outras reformas, Tsong-
kapa proibiu a necromancia (que é praticada até hoje com os ritos mais repugnantes pelos
Bhons, aborígines do Tibete, com quem os Gorros Vermelhos ou Shammars haviam sempre
se confraternizado, sendo por isso que estes últimos resistiram à sua autoridade). Este ato foi
acompanhado de um rompimento entre as duas seitas. Separando-se completamente dos
Gyalukpas, os Dugpas (Gorros Vermelhos), que desde o início estavam em grande minoria,
se estabeleceram em várias regiões do Tibete, principalmente em suas fronteiras, sobretudo
no Nepal e no Butão. Mas mesmo mantendo esta espécie de independência, no mosteiro de
Sakia-Djong, a residência tíbetana de seu chefe espiritual(?), Gong-sso Rimbo-chay, os
butaneses foram sempre tributários e vassalos dos Dalai Lamas.
Os Tda-shi Lamas foram sempre mais poderosos e mais considerados do que os Dalai
Lamas. Estes últimos são criação de um Tda-shi Lama, Nabang-lob-sang, a sexta encarnação
de Tsong-kapa, uma encarnação de Amithaba ou Buda."
Vários escritores do Budismo levaram em consideração a teoria, que Mr. Clements
Markham formula de forma bastante completa em seu "Relato da Missão de George Bogle no
Tibete", ou seja, enquanto as escrituras originais do Budismo foram levadas ao Ceilão pelo
filho de Asoka, o Budismo que abriu seu caminho no Tibete, a partir da índia e da China, foi
gradualmente sobrecarregado com uma massa de dogmas e de especulações metafísicas. E o
Professor Max Müller expressa: "O elemento mais importante na reforma budista foi sempre
seu código social e moral, não as suas teorias metafísicas. Este código moral, tomado em si

82
mesmo, é um dos mais perfeitos que o mundo jamais conheceu; e esta foi a bênção que a
introdução do Budismo trouxe ao Tibete."
"A bênção" — diz o autorizado artigo da Theosophist que venho citando —
"permaneceu e estendeu-se por todo o país, não havendo uma nação mais bondosa, nem de
mente mais pura, nem mais singela, nem mais temerosa do pecado do que os tíbetanos.
Apesar disso, o Lamaísmo popular, se for comparado com o Budismo verdadeiramente
Esotérico ou Arhat, apresenta um contraste tão grande como a neve pisada ao longo da
estrada no vale e a massa pura e imaculada que resplandece no mais alto da crista de uma
altíssima montanha."
O fato é que o Ceilão está saturado de Budismo Exotérico e o Tibete, do Esotérico. O
Ceilão ocupa-se mera ou fundamentalmente da moral do Budismo, enquanto o Tibete, ou
antes, os Adeptos do Tibete, se ocupam da ciência do Budismo.
Estas explicações apenas constituem um esboço de toda a situação. Não disponho de
argumentos, nem folga literária que exige seu desenvolvimento num quadro acabado, das
relações que realmente subsistem entre os princípios intrínsecos do Hinduísmo e os do
Budismo. E cuido da possibilidade de que muitos sábios e pacientes pesquisadores do assunto
tenham tirado, decorrente de prolongados e eruditos estudos, conclusões que à primeira vista
parecem chocar-se com as explicações que agora apresento. Mas nem por isso deixam as
explicações de provir diretamente de autoridades para as quais o assunto é bastante familiar,
tanto no aspecto erudito como no esotérico. Seu conhecimento íntimo lança luz em toda a
situação, que os livra do perigo de desvirtuar textos e cometer erros com relação à simbologia
obscura. Saber quando nasceu Gautama Buda, o que está registrado em seus ensinamentos e o
que as lendas populares reuniram em volta de sua biografia, é saber pouco menos que nada
sobre o verdadeiro Buda, muito maior que o instrutor moral histórico ou que o semideus
fantástico da tradição. E somente quando se compreende o vínculo entre Budismo e
Brahmanismo, é que a grandeza da doutrina esotérica se revela em suas verdadeiras
proporções.

10. O NIRVANA

Uma assimilação completado ensinamento esotérico, até o ponto a que chegamos


agora, já nos permite abordar o tema que os escritores esotéricos trataram sobre o Budismo,
no geral, como o ponto de partida desta religião.
Por falta de um método melhor para pesquisar o verdadeiro significado do Nirvana, os
eruditos do Budismo esmiuçaram a palavra e examinaram sua raiz e fragmentos. Isso equivale
a tentar certificar-se do tipo de cheiro de uma flor, dissecando o papel em que esta foi pintada.
É difícil para as mentes instruídas, de acordo com o processo intelectual da pesquisa física —
como acontece, seja direta, seja indiretamente, com todas as nossas mentes ocidentais do
século XK —, entender o primeiro estado espiritual desta vida, ou seja, o Devachan. Desses
estados da existência, o entendimento só é capaz de compreender uma parte, sendo necessária
uma faculdade mais elevada para penetrá-los plenamente, sendo mais impossível ainda forçar
seu significado em outra mente por meio de palavras. Despertando primeiramente esta
faculdade superior em seu discípulo, e depois colocando-o em posição de se observar por si
mesmo, tal é o modo como procede todo instrutor regular nesse assunto.

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Ora, no Devachan existem os usuais sete estados, apropriados aos diferentes graus de
iluminação espiritual que os diversos candidatos a tal estado podem obter. No Devachan, há
os lokas Rûpa e Arûpa, isto é, estados que assumem uma consciência (subjetiva) da forma e
estados que transcendem a esta. Contudo, o estado devachânico mais elevado no Arûpa loka
não se compara com o estado maravilhoso de espiritualidade pura, denominado Nirvana.
No curso ordinário da Natureza durante uma Ronda, quando a mônada espiritual levou
a cabo a enorme viagem do primeiro planeta até o sétimo, e ali findou então sua existência —
ali terminando suas multiformes existências, com seus períodos respectivos no Devachan,
entre cada vida — o Ego passa a um estado espiritual diferente do devachânico, em que, por
períodos de duração inconcebível, descansa antes de voltar a assumir seu circuito dos
mundos. Este estado pode ser considerado como o Devachan dos estados devachânicos —
uma espécie de «capitulação dos mesmos — um estado que supera os demais, tanto como o
estado deva-chânico de qualquer existência da Terra supera as aspirações espirituais
semidesenvolvidas, ou os afetos impulsivos da vida terrena. Desse período — o período
intercíclico de exaltação extraordinária, se comparado com os mesmos estados subjetivos dos
planetas no arco ascendente, que superam tanto os nossos próprios períodos — diz-se, na
ciência esotérica, que é um estado de Nirvana parcial. Transportando-nos com a imaginação
através das incomensuráveis perspectivas do futuro, suponhamos que nos aproximamos ao
período que compreenderia o intercíclo da sétima Ronda da humanidade, quando os homens
se assemelham a deuses. Tendo sido completada a última, a mais elevada e gloriosa das vidas
objetivas, o ser espiritual perfeito atinge um estado em que lhe acode a reminiscência de todas
as existências que viveu em todo tempo no passado. Pode deter a sua vista nas curiosas
mascaradas das existências subjetivas, como então lhe parecerão, nos pormenores diminutos
de qualquer uma das vidas terrenas pelas quais ele passou, e pode aprofundá-las, bem como a
todas as coisas com que de alguma forma se tivesse relacionado, pois no atinente a esta cadeia
planetária ele atingiu a onisciência. Este desenvolvimento supremo da individualidade é a
grande recompensa que a Natureza reserva àqueles que prematuramente a alcançam, por
assim dizer, por meio da luta relativamente breve, desesperada e terrível que conduz ao
Adeptado, e àqueles que, por determinada prevalência do bem sobre o mal, no caráter da série
completa de suas encarnações, atravessaram o vale da sombra da morte na metade da quinta
Ronda e abriram seu caminho através da sexta e sétima Rondas.
Deste estado sublimemente ditoso se diz, na ciência esotérica, que é o limiar do
Nirvana,
Vale a pena continuar a especular sobre o que vem depois? Pode-se dizer que nenhum
estado de consciência individual, embora seja uma fase do sentimento já identificado em
grande parte com a consciência geral desse nível de existência, iguala-se em elevação
espiritual à consciência absoluta, em que todo sentimento de individualidade se funde no
Todo. Usamos tais frases como fichas intelectuais, mas à mente comum — dominada pelo
cérebro físico e pela inteligência cerebral — podem ter alguma significação viva?
Tudo o mais que as palavras podem sugerir é que Nirvana é um estado sublime de
repouso consciente na onisciência. Seria ridículo, depois do que foi dito antes, tratar das
discussões que se travaram, entre os que se dedicam ao estudo do Budismo Esotérico, em
tomo do Nirvana, se ele significa ou não aniquilação. Nossas palavras falham ao expressar o
sentimento com que os graduados na ciência esotérica consideram a questão. Significa o
Nirvana a última pena da lei, a honra mais alta que se pode conceder ao cidadão mais
meritório? Ou é uma colher de pau o emblema da mais ilustre eminência do saber? Perguntas
como estas apenas simbolizam fracamente o disparate da questão que interroga se o Nirvana
é, no Budismo, o equivalente à aniquilação. E de algum modo, inconcebível para nós, se diz
que o estado de para-Nirvana é imensamente superior ao do Nirvana. Não pretendo dar

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nenhum significado à afirmação, mas ela serve para demonstrar a que reino transcendental de
pensamento pertence o tema.
Grande é a confusão com relação ao Nirvana, surgindo isto das declarações feitas
sobre Buda. Diz-se que ele atingiu o Nirvana estando na Terra. Também se diz que renunciou
ao Nirvana, para submeter-se a novas encarnações em prol da humanidade. Ambas as
afirmações são conciliáveis. Como grande Adepto, Buda atingiu aquilo que é a grande meta
do Adeptado na Terra: a passagem de seu Espírito-Ego ao estado infalível do Nirvana. Não se
deve supor que qualquer Adepto pode tentar facilmente essa passagem. Apenas pequenas
alusões à natureza deste grande mistério chegaram até mim mas, reunindo-as, creio estar certo
ao dizer que a proeza em questão é uma das que apenas alguns dos iniciados elevados estão
qualificados a tentar, pois exige uma total interrupção da animação do corpo, por longos
períodos de tempo, comparados com os quais os longos transes catalépticos conhecidos da
ciência comum são insignificantes; além disso, a defesa da forma física contra a decadência
natural, durante esse período, por meio dos recursos da ciência oculta, é difícil de obter. Além
disso, é um processo que envolve um duplo risco para a continuidade da vida terrena da
pessoa que a empreende. Um desses riscos é a dúvida de que, uma vez alcançado o Nirvana, o
Ego queira voltar. O retorno será um esforço terrível e um sacrifício inevitável, e somente
ocorrerá por um sentimento de abnegação, por parte do viajante espiritual, à ideia do dever
em sua abstração mais pura. O segundo grande risco é que, supondo que o sentido do dever
prevaleça sobre a tentação de ficar - tentação, tenha-se presente, que não é debilitada por
noção alguma de que sobrevenha nenhum gênero de sanção — mesmo assim, sempre é
duvidoso que o viajante possa voltar. Apesar disso tudo, houve muitos outros Adeptos, além
de Buda, que constataram a grande passagem, e de quem os que lhes rodearam nessas
circunstâncias disseram que seu retomo à prisão da carne ignóbil — embora nobre ex
hypothesi, em comparação com a maior parte dessas moradas — deixou-os paralisados em
profunda depressão durante semanas. Iniciar novamente a fatigante volta à vida física, curvar-
se sobre a Terra depois de ter estado no Nirvana, é um colapso demasiado medonho.
A renúncia de Buda foi de certo modo inexplicável, ainda maior, porque não só voltou
do Nirvana por bem do dever, a fim de terminar a vida terrena em que havia se empenhado
como Gautama Buda, mas quando todas as imposições do dever tinham sido plenamente
satisfeitas e seu direito de passar ao Nirvana, durante incalculáveis evos, estava adquirido do
ponto de vista mais alto de sua missão terrena, renunciou a essa recompensa, ou, antes, a
protelou por tempo indefinido numa série de encarnações em prol da humanidade em geral.
Como se tem aproveitado a humanidade desta renúncia? — poder-se-á questionar. Mas a
pergunta só pode ser realmente sugerida por esse costume profundamente arraigado, que á
maior parte de nós adquiriu, de calcular o proveito por um tipo físico, e mesmo com relação a
este tipo, considerando os aspectos estritos dos negócios humanos. Por tudo o que foi
fundamentado no capítulo anterior sobre o Progresso da Humanidade, não se deixará de
perceber o gênero de proveito que Buda queria conferir aos homens. O que necessariamente é,
para ele, a grande questão com relação à humanidade é o modo de ajudar o maior número
possível de pessoas a passar o grande período crítico da quinta Ronda.
Para um Adepto, até que chegue esse tempo, tudo é uma preparação à luta suprema e,
portanto, quanto mais deve sê-lo para um Buda. O bem-estar material da geração existente
não é nem sequer como meio grão de pó na balança de semelhante cálculo. A única coisa
importante, no presente, é nutrir as tendências, que podem lançar o maior número de Egos
possível numa senda kármica, onde o desenvolvimento da espiritualidade em vidas futuras
receberá maior impulso. Certamente, é convicção arraigada dos instrutores esotéricos — os
Adeptos cooperadores de Buda — que o processo mesmo de nutrir essa espiritualidade
reduzirá enormemente a soma de sofrimento humano, mesmo o transitório. E a felicidade da
humanidade, embora seja em uma geração unicamente, não é de forma alguma um assunto

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indiferente à ciência esotérica. Assim, a ação esotérica não deve ser considerada como algo
tão nas nuvens que jamais influa no que hoje vivemos. Entretanto, há épocas para boa ou má
colheita, para o trigo e para a cevada, e assim também para o desejado desenvolvimento da
espiritualidade entre os homens. Na Europa, em todo caso, guiando-nos pela experiência de
precedentes grandes raças, em períodos de desenvolvimento correspondentes ao nosso atual,
não é provável que o presente impulso da inteligência na direção do progresso físico e
material traga uma época de boa colheita para o progresso de outro gênero. No momento, a
maior probabilidade de se fazer o bem nos países onde o referido impulso é mais marcado,
acredita-se, consiste na possibilidade de que a importância da espiritualidade possa chegar a
ser percebida pelo intelecto, mesmo antes de ser sentida, se a atenção desse penetrante,
embora pouco simpático tribunal, puder ser assegurada. Qualquer êxito na direção a que
conduzam estas explicações justificará a opinião daqueles — uma minoria — dentre os
guardiães esotéricos da humanidade, que acreditaram que vale a pena realizá-lo.
Portanto, o Nirvana é a diretriz do Budismo Esotérico, assim como até agora o foi para
os mal-orientados estudos dos sábios ocidentais. O grande objetivo da estupenda e total
evolução da humanidade é cultivar as almas humanas, de modo que ao final estejam aptas
para aquele ainda inconcebível estado. O grande triunfo da raça presente de espíritos
planetários, que atingiu esse estado, será o de atrair para si tantos Egos quanto possível.
Estamos ainda longe da época em que possa haver o perigo sério de se perder definitivamente
toda qualificação para tal progresso, mas já não é bastante cedo para iniciarmos grande
processo de qualificação, tanto mais que o karma que se propaga através de vidas sucessivas
nessa direção levará consigo sua recompensa. De modo que a consecução esclarecida de
nossos mais elevados interesses, num remoto futuro, coincidirá com o perseguir nosso bem-
estar imediato, no próximo período devachânico e na seguinte reencarnação.
Acaso se argüira que se o cultivo da espiritualidade é o grande propósito a que se deve
perseguir, pouco importará que os homens o sigam numa ou noutra senda religiosa. Isto é um
equívoco ao qual, conforme se explicitou em capítulo anterior, Buda, sob a personalidade de
Sankaracharya, se dedicou especialmente a combater — isto é, a primitiva crença hindu de
que moksha fosse alcançada por meio de bhatki, sem ter em conta o gnyanam. Vale dizer: a
salvação pode ser obtida por práticas de devoção, sem considerar o conhecimento da verdade
eterna. A espécie de salvação de que agora falamos não é livrar-se de um castigo bajulando
um potentado celestial. Sendo um cometimento positivo e não negativo, a ascensão a regiões
de elevação espiritual tão exaltada que o candidato a elas almeja, o que descrevemos
geralmente como onisciência. Trata-se de um plano em que, dado o modo como usualmente
atua na Natureza, sob qualquer circunstância, pode chegar o momento em que uma pessoa,
em virtude apenas de ter sido boa, se converta de repente em sábio. A bondade e a sabedoria
supremas do homem de sexta Ronda, que tendo chegado nesse ponto, assimilará
gradativamente os atributos da própria divindade, só se podem desenvolver também por
graus. A bondade sozinha, associada, como muitas vezes está às crenças religiosas mais
grotescas, conduz o homem apenas a períodos devachânicos de êxtases devocionais, não
inteligentes, e, no final, se tais condições se reproduzem em muitas exisências, levá-lo-á a
alguma extinção sem dor da individualidade na grande crise.
O perseguir continuo da verdade espiritual e o desejo dela, e não a ociosa e bondosa
aquiescência aos dogmas, à moda da igreja mais próxima, é o meio de os homens lançarem
suas almas dentro do estado subjetivo, preparadas para assimilar o conhecimento real da
onisciência latente de seu sexto princípio, e reencarnar-se em tempo oportuno com impulsos
na mesma direção. Nada produz tão desastrosos efeitos no progresso humano, no que respeita
ao destino do indivíduo, como a noção prevalecente de que uma religião, se for seguida com
espírito piedoso, é tão boa como outra qualquer, e que se tais e tais doutrinas são talvez
absurdas, quando consideradas a fundo, a maioria das pessoas boas jamais pensará no

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absurdo, senão que as observarão numa atitude mental sem mácula. Uma religião não é de
modo algum tio boa como outra, mesmo quando todas sejam geradoras de vidas igualmente
boas. Mas prefiro evitar toda crítica de crenças específicas, deixando que este livro seja uma
simples e inofensiva manifestação das doutrinas internas verdadeiras da grande religião do
mundo que — apresentando efetivamente, em seus aspectos externos, anais inocentes e sem
sangue — produziu realmente vidas sem mácula através de toda sua existência. De mais a
mais, não é por uma aceitação servil de suas doutrinas que o desenvolvimento da verdadeira
espiritualidade deva ser cultivado. O grande resultado será obtido pela tendência a buscar a
verdade, a comprovar e analisar tudo o que pretenda ser crença. No Oriente, tal resolução, em
sua mais alta expressão, conduz ao chelado, à persecução da verdade, ao conhecimento pelo
desenvolvimento das faculdades internas, por meio das quais pode o chelado ser obtido com
segurança. No Ocidente, o reino do intelecto, tal como se apresenta atualmente no mapa do
mundo, a verdade infelizmente só pode ser perseguida e caçada com o auxílio de muitas
palavras, muitas polêmicas e disputas. Mas, de qualquer modo, pode ser caçada e, se não é
finalmente capturada, o ato de caçá-la engendra parte dos caçadores, por instintos que se
propagarão e produzirão resultados mais adiante.

11. O UNIVERSO

Em toda literatura oriental a respeito da formação do Cosmo há freqüentes referências


aos dias e às noites de Brahmã, às inspirações e expirações do princípio criador, aos períodos
do manvantara17 e aos períodos do pralaya. Tal coisa perpassa por várias mitologias orientais,
mas não trataremos aqui de seu aspecto simbólico. O processo da Natureza a que se refere
constitui, por certo, a sucessão alternada de atividade e repouso, que se observa a cada passo
da grande escalada, do infinitamente pequeno ao infinitamente grande. O homem tem um
manvantara e um pralaya em cada 24 horas, isto é, seus períodos de vigília e de sono; a
vegetação segue a mesma regra de ano em ano, adormecendo e revivendo com as estações. O
17
A palavra manvantara ou manwantara, transliterada do sânscrito, significa literalmente "período entre dois
Afanas" (Manuantara). (N. T.)

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mundo igualmente tem seus manvantaras e pralayas, quando a onda da humanidade se
aproxima de suas margens, decorre pela evolução de suas sete raças e reflui de novo — tal
manvantara foi tratado pela maior parte das religiões exotéricas como o ciclo completo da
eternidade.
O manvantara principal de nossa cadeia planetária é o que acaba quando o último
Dhyan Chohan da sétima Ronda da humanidade aperfeiçoada passa ao Nirvana. Daí que a
expressão deve ser considerada como bem elástica. Na verdade, pode-se dizer que sua
elasticidade é infinita, e isto explica a confusão que tem imperado em todos os tratados acerca
das religiões orientais, em seus aspectos populares. Todas as palavras-raízes, transferidas à
literatura popular da doutrina secreta, têm ao menos um sêxtuplo sentido para o iniciado,
enquanto o leitor não-iniciado, supondo que uma palavra só significa uma coisa, e tratando
sempre de esclarecer seu sentido, pelo confronto de suas diferentes aplicações e sua média,
coloca-se numa embaraçosa perplexidade.
A cadeia planetária que nos diz respeito não é a única que tem o nosso Sol como
centro. Assim como há outros planetas além da Terra em nossa cadeia, do mesmo modo há
outras cadeias, além desta, em nosso sistema solar. Há sete delas e há um tempo em que todas
entram juntas no pralaya. A isto se denomina um pralaya solar. No intervalo entre dois desses
pralayas, o vasto manvantara solar abrange sete prdayas e manvan-taras de nossa cadeia
planetária e das outras. O pensamento se embaralha, dizem até mesmo os Adeptos, ao
especular quantos de nossos pralayas solares devem ocorrer, antes de chegar a grande noite
cósmica na qual o Universo inteiro, em sua enorme coletividade, obedeça ao que
manifestamente é a lei universal de atividade e repouso, e com todas as suas miríades de
sistemas passe ao pralaya. Pois, segundo a ciência esotérica, esse grandioso resultado tem de
ocorrer.
Depois de um pralaya de uma única cadeia planetária, não é preciso um novo começo
da atividade evolucionária absolutamente de novo, havendo uma reassunção da atividade
interrompida. Os reinos vegetal e animal, que ao final do último manvantara correspondente
haviam alcançado unicamente um desenvolvimento parcial, não são destruídos. Sua vida ou
energia vital passa por uma noite ou período de repouso. Também têm, por assim dizer, um
Nirvana próprio. E por que não haveriam de tê-lo essas entidades fetais e infantis? São todas,
como nós, geradas pelo elemento uno. Assim como nós temos nossos Dhyan Chohans, do
mesmo modo elas têm, em seus diversos reinos, guardiães elementais e são em massa
atendidas como o é a humanidade na sua. O elemento uno não só preenche e é espaço, como
também compenetra cada átomo da matéria cósmica. Portanto, quando soa a hora do pralaya
solar, embora o processo do avanço do homem em sua sétima e última Ronda seja o mesmo
de sempre, cada planeta, em vez de passar simplesmente o visível ao invisível, cada vez que o
abandona, é aniquilado. Com o princípio do manvantara da sétima Ronda da sétima cadeia
planetária, cada reino, tendo chegado a seu último círculo, resta em cada planeta, depois da
saída do homem, simplesmente o Mâyâ das formas que existiram. A cada passo que dá nos
arcos descendente e ascendente, à medida que se desloca de um globo a outro, o planeta que
fica atrás converte-se num mero cascarrão vazio. Após sua partida, vem a jornada das
entidades de todos os reinos. Esperando passar a formas elevadas no tempo oportuno, são,
todavia, libertadas, e mesmo à época da nova evolução permanecem no espaço em seu sono
letárgico, até que são chamadas de novo à vida no novo manvantara solar. Os antigos
elementais descansam até que são requeridos para ser, por sua vez, os corpos das entidades
minerais, vegetais e animais noutra cadeia de globos mais elevada, em seu caminho para as
entidades humanas, enquanto as entidades em germe das formas inferiores — e então só
sobrarão delas muito poucas — permanecerão suspensas no espaço como gotas de água
repentinamente congeladas. Eles degelarão ao primeiro sopro de calor do novo manvantara
solar e formarão a alma dos novos globos. O lento desenvolvimento do reino vegetal, até o

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período a que nos referimos, terá sido atendido pelo repouso interplanetário mais prolongado
do homem. Quando advém o pralaya solar, a totalidade da humanidade purificada se fundirá
no Nirvana e, depois deste Nirvana intersolar, nascerá em sistemas mais elevados. As cadeias
de mundos serão destruídas e se desvanecerão como sombras da parede quando se extingue a
luz. "Temos toda espécie de indicações —dizem os Adpetos — de que nesse mesmo
momento ocorre um pralaya solar semelhante, ao passo que há dois menores que terminam
em algum lugar."
No início do novo manvantara solar, os elementos até agora subjetivos dos mundos
materiais, espargidos então como poeira cósmica, recebendo impulso dos novos Dhyan
Chohans do novo sistema solar (pois os mais elevados do antigo terão passado mais acima)
formarão ondas primordiais de vida, e dividindo-se em centros diferenciados de atividade,
combinar-se-ão numa escala gradual de sete estados de evolução. Como os outros mundos do
espaço, nossa Terra tem que passar, antes de atingir seu estado material último, por uma gama
de sete estados de densidade. Nada neste mundo nos fornece agora uma ideia de como seja o
último estado de materialidade. O astrônomo francês Flammarion, no livro La résur-rection et
Ia fin dês mondes, aproximou-se de um conceito dessa materialidade última. Os fatos são,
contam-me, com pequenas modificações, muito parecidos aos que ele supõe. Em decorrência
do que ele trata como esfriamento secular, mas que verdadeiramente é velhice e perda de
vitalidade, a solidificação e dissecação da Terra atinge, por fim, um ponto em que o globo se
converte num conglomerado solto. Seu período de concepção passou. Sua progénie está toda
criada. Seu tempo de vida acabou. Daí que suas massas constitutivas deixam de obedecer às
leis de coesão e agregação que as mantêm unidas. Com isso, convertem-se num cadáver
abandonado à obra de destruição, deixando livre cada molécula que o forma, para separar-se
do corpo e obedecer ao impulso de novas influências. "A atração da Lua", sugere
Flammarion, "empreenderia a obra de demolição, gerando uma maré de partículas terrestres
em lugar de uma maré aquosa." Esta última ideia não deve ser tomada como aprovada pela
ciência oculta, exceto no que serve para exemplificar a perda da coesão molecular na matéria
da Terra.
A física oculta passa completamente à região da metafísica, se tratamos de conseguir
alguma indicação do modo como volta a começar a evolução depois de um pralaya universal.
A coisa una eterna, imperecedoura no universo, que os pralayas universais deixam sem
destruir, pode ser considerada indiferentemente como espaço, duração, matéria e movimento.
Não como algo que tenha esses quatro atributos, mas como algo que é estas quatro coisas ao
mesmo tempo e para sempre. E a evolução origina-se na polaridade atômica que gera o
movimento. Na Cosmogonia, as forças positiva e negativa, ou ativa e passiva, correspondem
aos princípios masculino e feminino. O fluxo espiritual penetra no véu da matéria cósmica. O
princípio ativo é atraído pelo passivo, e se nos é permitido aqui socorrer a imaginação,
recorrendo à simbologia oculta, a grande Nag, a serpente, emblema da eternidade, atrai sua
cauda à boca, formando assim o círculo da eternidade, ou melhor, círculos na eternidade. O
atributo uno e principal do princípio universal espiritual, como doador de vida inconsciente,
mas sempre ativo, é dilatar--se e espargir-se. O do princípio material universal, é unir-se e
fecundar-se. Inconscientes e inexistentes quando separados, convertem-se em consciência e
vida ao se unirem. A palavra Brahmã provém da raiz sânscrita brih, dilatar, crescer ou
frutificar, sendo na Cosmogonia esotérica a força expansiva vivificadora da Natureza em sua
eterna evolução. Nenhuma expressão pôde contribuir mais para desencaminhar a mente
humana na especulação fundamental relativa à origem das coisas, do que a palavra "criação".
Fale-se da criação e estaremos continuamente nos chocando contra os fatos. Uma vez que se
tenha entendido que nosso planeta e nós mesmos somos criações, como o é um iceberg,
simplesmente estados de ser por um tempo dado — que sua presente aparência, geológica ou
antropológica, é passageira, sendo apenas um estado concomitante daquele grau de evolução

89
que se alcançou —, o caminho fica preparado para melhor pensarmos. Então podemos ver o
que significa o princípio ou elemento uno e único no universo e podemos considerar este
elemento como andrógino. Do mesmo modo, também, a proclamação da Filosofia hindu de
que todas as coisas nada mais são do que Mâyâ — estados transitórios — exceto o elemento
uno que repousa durante os Maha-pralayas, as noites de Brahmã.
Talvez tenhamos nos aprofundado bastante no insondável mistério da grande Causa
Primeira. Não é paradoxo afirmar que, só em virtude de sua ignorância, julgam os teólogos
comuns saber tanto sobre Deus. E não é exagero afirmar que os maravilhosamente dotados
representantes da ciência oculta, cuja natureza mortal se elevou e purificou tanto que suas
percepções, alcançam outros mundos e outros estados de existência, e que comungam
diretamente com seres que se encontram tão acima da humanidade ordinária quanto o homem
o está sobre os insetos do campo, não se ocupam nunca de nenhuma concepção que nem
remotamente se pareça ao Deus das Igrejas e das crenças. Dentro dos limites do sistema solar,
o Adepto mortal sabe, por conhecimento próprio, que todas as coisas se explicam pelo
funcionamento da lei na matéria, em suas diversas formas, e mais a influência diretora e
modificadora das mais altas inteligências associadas com o sistema solar, os Dhyan Chohans,
a humanidade aperfeiçoada do último manvantara precedente. Os Dhyan Chohans ou
Espíritos Planetários, sobre cuja natureza é inútil meditar até que pelo menos possamos
penetrar na natureza de nossa própria existência não encarnada, comunicam aos mundos que
se despertam no final de um pralaya de uma cadeia planetária, tais impulsos, que a evolução
os sente através de todo seu progresso. Os limites da grande lei da Natureza restringem a sua
ação. Eles não podem dizer que exista o paraíso em todo o espaço, que os homens nasçam
sumamente sábios e bons. Não podem agir senão unicamente por meio do princípio da
evolução, e não podem negar a nenhum homem que se invista com a potencialidade de
desenvolver-se, convertendo-se por si em um Dhyan Chohan, até o direito de praticar o mal,
se o preferir ao bem. Nem tampouco pode impedir que, uma vez feito, o mal produza
sofrimento. A vida objetiva é o solo em que se plantam os germes da vida e a existência
espiritual (vale ter em conta que a expressão é usada somente como contraste com a existência
material grosseira), a flor que finalmente está em viço. Mas o germe humano é algo mais do
que a semente da flor. Tem liberdade de escolha quanto a desenvolver-se para cima ou para
baixo. A planta não se desenvolveria se não pudesse dispor dessa liberdade. Esta é a
necessidade do mal. Porém, nos limites prescritos pela necessidade lógica, o Dhyan Choan
imprime as suas concepções sobre a onda evolucionária e compreende a origem de tudo que
contempla. Ao refletir desse modo sobre a grandeza da evolução cíclica de que se ocupa a
ciência esotérica, parece razoável adiar as considerações relativas à origem do cosmos. O
homem comum nesta vida, com muitas vidas terrenas, certamente algumas centenas, por
passar, e seus mais importantes períodos entre as encarnações (mais importantes no que se
relaciona à duração e às perspectivas de felicidade ou de dor), também em perspectiva, pode
na verdade ocupar-se sabiamente, antes, de investigações com vistas a resultados práticos, do
que com as especulações nas quais praticamente não tem interesse nenhum. Do ponto de vista
de a especulação religiosa não se fundar em conhecimento positivo algum fora desta vida,
nada pode ser mais importante nem mais altamente prático do que as conjecturas acerca dos
atributos e prováveis intenções do terrível Jeová pessoal, descrito como um tribunal
onipotente, a cuja presença é levada a alma depois da morte para ser julgada. Mas o
conhecimento científico das coisas espirituais faz do dia do juízo uma longínqua e confusa
perspectiva e ocupa o tempo que falta com toda espécie de atividades. Além disso, demonstra
à humanidade que, seguramente, por milhões e milhões de séculos, não será chamada perante
nenhum juiz, excetuado esse juiz que a tudo integra, o Sétimo Princípio ou Espírito Universal,
que existe em toda parte e que atuando na matéria provoca a existência do próprio homem e
do mundo em que vive, assim como as situações futuras para as quais ele se encaminha. O

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Sétimo Princípio, indefinível, incompreensível para nós no presente estado de esclarecimento
é, com certeza, o único Deus reconhecido pelo conhecimento esotérico, e toda personificação
deste é apenas simbólica.
Entretanto, em verdade, o conhecimento esotérico que, de um lado, dá vida e realidade
ao antigo simbolismo e, de outro, está em conflito com o dogma moderno, nos demonstra
quão longe de ser absolutamente fabulosas são até as noções mais antropomórficas da
Deidade, associadas pela tradição esotérica ao princípio do mundo. O Espírito Planetário,
realmente encarnado entre os homens na primeira Ronda, era o protótipo da Deidade pessoal
em todos os desdobramentos subseguintes da idéia. O erro cometido pelas pessoas ignaras, ao
tratar do assunto, é simplesmente de grau. O Deus pessoal de um insignificante manvantara
menor foi tomado como criador do cosmos, um erro muito natural em gente obrigada a supor,
por não conhecer do destino humano sendo o que se inclui numa encarnação objetiva, que
tudo mais além era um futuro homogêneo espiritual. O Deus desta vida é para eles o Deus de
todas as vidas, mundos e épocas.
Confio que o leitor não me interprete mal, supondo que desejo dizer que a ciência
esotérica considera o Espírito Planetário da primeira Ronda como um deus. Conforme
afirmei, ele ocupa-se da obra da Natureza num espaço incomensurável, de um passado
incomensurável e através de um futuro todo incomensurável. O enorme raio de tempo e de
espaço em que opera nosso sistema solar é explorável pelos Adeptos mortais da ciência
esotérica. Dentro desses limites sabem tudo o que acontece e como acontece, e sabem que
tudo se explica pela vontade construtiva da hoste coletiva dos Espíritos Planetários, atuando
sob a lei da evolução, que penetra toda a Natureza. Eles se comunicam com esses Espíritos
Planetários e aprendem deles que a lei deste sistema solar é também a lei de outros sistemas
solares, em cujas regiões se podem aprofundar as faculdades perceptivas dos Espíritos
Planetários, assim como as dos próprios Adeptos podem aprofundar a vida de outros planetas
desta cadeia. A lei de atividade e repouso alternados atua universalmente para o cosmos todo,
embora a intervalos inimagináveis, o pralaya sucede o manvantara, e o manvantara, o pralaya,
Perguntará alguém: com que fim atua esta eterna sucessão? É melhor delimitar a
questão a um único sistema e perguntar com que fim a nebulosa original divide-se em vórtices
planetários de evolução, e desenvolve mundos nos quais o espírito universal, reverberando
através da matéria, produz a forma e a vida e esses estados superiores da matéria, pertinentes
ao que chamamos existência subjetiva ou espiritual. Com certeza, constitui um objetivo
suficiente para satisfazer qualquer mente razoável que seres perfeitos e sublimes, tais como os
Espíritos Planetários, venham dessa forma à existência e vivam uma vida consciente de
conhecimento e felicidade supremos, através de perspectivas de tempo equivalentes a tudo o
que possamos imaginar da eternidade. A esta grandeza inefável tudo quanto vive tem a
oportunidade de atingir. O Espírito que está em toda forma animada e que passou a estas, de
formas que em geral chamamos inanimadas, progredirá lenta mas seguramente para a frente,
até que o funcionamento constante de sua influência na matéria desenvolve uma alma
humana. Não se conclui disto que as plantas e os animais que nos circundam tenham já
desenvolvido algum princípio capaz de tomar a forma humana no curso do manvantara
presente. Mas, mesmo quando o curso de uma evolução incompleta possa ser suspenso por
um período de repouso natural, nem por isso é infrutífero. Toda mônada espiritual — de per
si, um princípio inconsciente e puro — atua através de formas conscientes em níveis
inferiores, até que estas, reproduzindo sucessivamente formas cada vez mais elevadas,
chegam a produzir aquela em que a consciência análoga à de Deus seja totalmente evocada.
Com certeza, não será por causa da grandeza de qualquer concepção humana relativa ao
objetivo adequado da existência no universo, que tal finalidade parecerá um objetivo
deficiente. Nem mesmo se o destino último do mesmo Espírito Planetário, após períodos com
relação aos quais seu desenvolvimento das formas minerais de mundos primevos (como a

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infância, na reminiscência do homem), for submergir sua individualidade gloriosa nessa soma
total de toda consciência, que a metafísica esotérica denomina consciência absoluta, que é a
não-consciência. Estas expressões paradoxais são simplesmente modos que representam
idéias que a mente humana não está apta a compreender, sendo tempo desperdiçado o porfiar
nelas.
As considerações precedentes fornecem a chave do Budismo Esotérico, uma expressão
mais direta da doutrina esotérica universal do que qualquer outra religião popular. O esforço
em sua construção foi fazer com que os homens amem a virtude por si mesma e por seus bons
efeitos em futuras encarnações, sem se sujeitar a nenhum sistema sacerdotal ou dogma que
aterrorize a sua imaginação com a doutrina de um juiz pessoal esperando para julgar suas
vidas por ocasião da morte. Mr. Lillie, por admirável que tenha sido sua intenção e por muita
simpatia que devote à bela moralidade e aspiração do Budismo, engana-se ao deduzir, do
ritual de seu tem-pio, a noção de um Deus Pessoal. Semelhante concepção não entra na
grande doutrina esotérica da Natureza, da qual este livro deu um esboço incompleto. Como,
sequer, com referência às mais longínquas regiões da imensidade, além de nosso sistema
planetário, tolera o Adepto expoente da doutrina esotérica a adoção de uma atitude agnóstica.
Não lhe basta dizer: "Tão longe, como os sentidos elevados dos espíritos planetários, cujo
conhecimento se estende até aos extremos limites dos céus estrelados, tão longe quanto sua
visão pode estender-se, a Natureza é auto-suficiente e, quanto ao que possa haver mais além,
não temos hipótese alguma." O que o Adepto diz efetivamente neste ponto é: "O universo é
ilimitado e é uma aberração do pensamento falar de hipótese relativa ao mais além do
ilimitado, ao outro lado dos limites do sem limites."
O que antecede a toda manifestação do universo, e estará mais além do limite da
manifestação, se tais limites pudessem algum dia ser encontrados, é o que jaz no fundo do
universo manifestado, dentro de nossa própria condição — a matéria animada de movimento,
seu Parabrahm ou Espírito. Matéria, espaço, movimento e duração constituem a substância
única e eterna do universo. Nenhuma outra coisa absolutamente eterna existe. Este é o
primeiro estado da matéria, incognoscível pêlos sentidos físicos, os quais somente conhecem
a matéria manifestada, outro estado bem diferente. Mas mesmo quando, em certo sentido da
palavra, for materialista a doutrina secreta, como os leitores das explicações precedentes terão
percebido, há de parecer tanto com o conceito estreito e grosseiro da Natureza, a que
usualmente lhe confere o que se chama por Materialismo, como o Pólo Norte dista do Pólo
Sul. A doutrina desce até o Materialismo, por assim dizer, para vincular seus métodos à lógica
deste sistema, e sobe às regiões mais elevadas do Idealismo, para abraçar e explicar as
aspirações mais exaltadas do Espírito. Jamais se repetirá demasiado e com máxima
perseverança que se radica, na união da Ciência com a Religião, a ponte por onde os mais
perspicazes e prudentes perseguidores do conhecimento experimental podem dar as mãos ao
devoto mais entusiasta, e por cujo meio também o mais entusiasta devoto pode voltar à Terra,
sem deixar de estar no Céu.

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12. REVISÃO DA DOUTRINA

Só uma longa familiaridade com a doutrina esotérica pode proporcionar uma visão
completa do modo como ela se harmoniza com os fatos da Natureza, tais como todos
podemos observá-los. Mas algo se pode fazer para indicar as correlações identificáveis entre
todo o corpo de ensinamentos que se expôs e os fenômenos do mundo que nos circunda.
Iniciando com as duas grandes perplexidades da filosofia comum — o conflito entre o
livre-arbítrio e a predestinação e a origem do mal — há de se reconhecer certamente que o
sistema da Natureza, agora apresentado, nos permite abordar seus problemas com maior
confiança do que jamais o foram até agora. Até hoje, os pensadores mais prudentes foram os
menos dispostos a asseverar que, com a ajuda da metafísica ou da religião, se possa esclarecer
o mistério do livre-arbítrio e da predestinação. A tendência do pensamento foi a de relegar
todo enigma à região do incognoscível. E, parece estranho dizê-lo, isso foi feito
voluntariamente por pessoas que, nem por isso, se desagradaram em aceitar, como algo mais
do que uma hipótese provisória, doutrinas religiosas que assim continuam sem poder
reconciliar-se com algumas de suas mais evidentes conseqüências. A onisciência de um
Criador pessoal, abrangendo tanto o futuro como o passado, não deixa lugar para que o
homem possa exercer uma autoridade independente sobre seu próprio destino, no que é
absolutamente necessário deixá-lo exercer, para que o sistema de castigo ou recompensa por
seus atos na vida possa ser legitimado por outra coisa que não uma injustiça das mais
grotescas. Um grande filósofo inglês, encarando o problema, declarou, em um famoso ensaio,
que, em virtude dessas considerações, era impossível que Deus fosse todo-bondade e todo-
potência. As pessoas eram livres para investi-lo logicamente com um ou outro desses
atributos, mas não com os dois ao mesmo tempo. O argumento foi tratado com o respeito
devido à grande reputação de seu autor e posto de lado com a discrição devida ao respeito
pelas doutrinas ortodoxas.
Mas a doutrina esotérica nos socorre nessa dificuldade. Em primeiro lugar, considera
insignificantes as dimensões deste mundo, se comparado com o universo. Este é um fato da
Natureza, que a Igreja cristã primitiva temeu com verdadeiro instinto e combateu com a
crueldade do tenor. A verdade foi negada e seus autores torturados por muitos séculos. Por
fim, sobreposta à própria autoridade das negações papais, a Igreja recorreu ao "desesperado
expediente", para citar a frase de Mr. Rhys Davids, de pretender que isso não interessava.
A pretensão teve até agora mais êxito do que podiam esperar seus autores. Temendo as
descobertas da Astronomia, atribuíam ao mundo em geral uma lógica de menos
arrependimentos do que a lógica que por fim se mostraram inclinados a utilizar. As pessoas
prestaram-se, como regra geral, a fazer o que o Budismo Esotérico não exige de nós, ou seja,
guardar sua ciência e sua religião em compartimentos estanques. Este princípio foi usado por
tanto tempo e tão completamente, até que afinal cessou de ser um argumento contra a

93
credibilidade de um dogma religioso, para destacar ser ele impossível. Mas quando fazemos
uma relação entre nossos receptáculos, até agora divididos, e pedimos que fiquem no mesmo
nível, não podemos deixar de ver como a insignificância da grandeza da Terra diminui, em
proporção correspondente ao plausível das teorias que nos exigem pormenores de nossas
próprias vidas como parte do depósito geral da onisciência de um Criador universal. Ao
contrário, não parece razoável que os seres que habitam um dos menores planetas de um dos
sóis de menores dimensões, no oceano do universo, onde os sóis são como gotas de água no
mar, fiquem isentos, de algum modo, do princípio geral do governo pela lei. Mas este
princípio não se coaduna por capricho ao governo, que é uma condição essencial de uma
predestinação, como a que associa com o uso da palavra as discussões convencionais dos
problemas de que se trata. Pois cabe observar que a predestinação, que está em conflito com o
livre-arbítrio, não é a predestinação das raças, mas a predestinação individual, associada às
idéias de graça e cólera divinas. A predestinação das raças, sob leis análogas àquelas que
regem a tendência geral de qualquer conjunto de acontecimentos independentes, é
perfeitamente compatível com o livre-arbítrio individual, e, desse modo, a doutrina esotérica
reconcilia a tão debatida contradição da Natureza. O homem rege seu próprio destino, nos
limites constitucionais, por assim dizer. É perfeitamente livre para usar seus direitos naturais
no que estes alcancem, e praticamente alcançam o infinito no tocante a ele, a unidade
individual. Mas a ação humana média, sob condições dadas e tendo em conta vasta
multiplicidade de unidades, resulta na infalível evolução dos ciclos que constitui seu destino
coletivo.
A predestinação individual pode, é verdade, ser afirmada não como um dogma
religioso relacionado à graça ou à ira divinas, mas, sim, com fundamentos puramente
metafísicos — vale dizer. Pode-se arguir que cada ser humano está, na infância,
fundamentalmente sujeito à mesma influência, por circunstâncias análogas, que a vida de um
adulto é, portanto, apenas o produto ou a impressão de todas as circunstâncias que influíram
nessa vida desde o início, de modo que, se essas circunstâncias fossem conhecidas, o
resultado moral e intelectual o seria também. Nessa linha de raciocínio, pode-se deduzir que
as circunstâncias da vida de cada homem podem ser teoricamente conhecidas por uma
inteligência suficientemente penetrante. Que as tendências hereditárias, por exemplo, são
apenas o produto de circunstâncias antecedentes que entram num cômputo dado como
perturbação, porém que nem por isso deixam de ser menos calculáveis. Entretanto, essa
dedução não está menos em conflito direto com a consciência da humanidade do que o dogma
religioso da predestinação individual. O sentido do livre-arbítrio é um fator que não se pode
ignorar no processo, e o livre-arbítrio de que temos consciência não é um mero impulso
automático, como o puxão da perna da rã morta. O dogma comum religioso e o argumento
metafísico comum exigem de nós que o consideremos sob esse aspecto. Mas a doutrina
esotérica restitui-lhe a verdadeira dignidade e nos demonstra a esfera de sua atividade, os
limites de sua soberania. É soberano sobre o curso da vida individual, mas impotente em
presença da lei cíclica, descoberta na história humana por um filósofo tão positivo como
Draper — por curto que seja o período em que tenha podido estender suas observações. E
nem por isso deixa essa areia movediça colateral de pensamento, que J. S. Mill distinguiu
paralelamente com as contradições da teologia — a grande questão de se a especulação deve
referir-se à hipótese de toda bondade e toda potência — encontrar sua explicação no sistema
ora exposto. Os grandes seres, a eflorescência aperfeiçoada de uma humanidade anterior, que,
embora longe de constituírem um Deus supremo, reinam contudo de um modo divino sobre
os destinos de nosso mundo. Não são onipotentes. E, por serem grandes, acham-se
restringidos em sua ação por limites relativamente estreitos. Pareceria como se, quando a cena
está, por assim dizer, pronta de novo para outro drama da vida, pudessem ser introduzidas
algumas melhorias na ação, derivadas de sua própria experiência, no drama em que eles

94
estiveram interessados, porém que são apenas capazes de, quanto à montagem principal da
peça, repetir o que antes foi representado. Podem fazer em grande escala o que faz um
jardineiro com as dálias, em pequena escala: introduz consideráveis melhorias na forma e cor,
mas suas flores, por tratadas que sejam, continuarão a ser dálias.
Pode-se perguntar de passagem: Não será significativo, corroborando o que se aceita
da doutrina esotérica, que as analogias naturais a apóiem em cada momento? Assim como é
embaixo, o é acima, escreveram os filósofos ocultos antigos, sendo o microcosmos um reflexo
do macrocosmos. Toda a Natureza existente sob a esfera de nossa observação física comprova
a regra, no que essa área limitada apresenta como princípios. A estrutura dos animais
inferiores reproduz-se com alterações em animais superiores, e no Homem. As finas fibras da
folha se ramificam como os ramos de uma árvore,e o microscópio segue estas ramificações,
repetidas além do alcance do olho nu. As correntes turvas de águas pluviais depositam
"rochas sedimentares" nas poças que formam nos caminhos, do mesmo modo que os rios o
fazem nos lagos, e as imensas águas do mundo, no fundo dos mares. A obra geológica de um
pequeno lago e a de um oceano diferem tão-somente em sua escala. A doutrina esotérica
demonstra que também só diferem em escala as leis mais sublimes da Natureza, em sua
jurisdição sobre o homem e sobre a família planetária. Assim como as crianças de cada
geração são atendidas, na infância, por seus pais e crescem para, por sua vez, atender a outra
geração, do mesmo modo ocorre na humanidade inteira dos grandes períodos manvantáricos:
os homens de uma geração desenvolvem-se para ser os Dhyan Chohans da próxima, e nos
últimos progressos do tempo cedem lugar a seus descendentes, passando eles a estados
superiores de existência.
A doutrina esotérica responde à questão da existência do mal de forma tão decisiva
como o faz quanto ao livre-arbítrio. Este assunto foi discutido no seu lugar, no capítulo
anterior sobre o Progresso da Humanidade. Mas a doutrina esotérica, como se verá, enfrenta o
grande problema, mais a fundo que por simples enunciado, de como o livre-arbítrio humano,
cujo desígnio da Natureza é elevar ao estado Dhyan chohânico, deve ser, consoante esta
hipótese, livre para desenvolver o próprio mal, se quiser. Isto quanto ao princípio geral em
questão, mas o modo como atua pode ser percebido neste ensinamento, tão claro quanto o
próprio princípio. Ele atua por meio do karma físico, e não poderia agir de outro modo, exceto
por uma suspensão da lei invariável de que as causas .produzem efeitos. O homem objetivo
nascido no mundo físico é tanto uma criação da entidade que ultimamente o animara quanto o
homem subjetivo que, no ínterim, esteve vivendo na existência devachânica. O mal que os
homens fazem sobrevive a eles, no sentido mais literal que o próprio Shakespeare atribuía a
essas palavras. Há de se perguntar: como pode a culpa moral, numa vida, fazer com que se
nasça em outra cego ou aleijado, em um período diferente da história do mundo, alguns
milhões de anos mais tarde, de pais com os quais não teve na vida anterior nenhum tipo de
relação física? Mas a dificuldade explica-se, segundo o modo de agir das afinidades, mais
fácil do que se poderia imaginar à primeira vista. A criança cega ou inválida, quanto à sua
forma física, pode ter sido a potencialidade, antes que produto de circunstâncias locais.
Porém, não teria vindo à existência, amenos que houvesse uma mônada espiritual que
insistisse pela encarnação, levando consigo o quinto princípio (o que é permanente num
quinto princípio) adaptado justamente por seu karma para habitar naquele corpo potencial.
Dadas essas circunstâncias, a criança imperfeitamente organizada é concebida e lançada ao
mundo para ser uma causa de perturbação, para si e para os outros — um efeito convertendo-
se, por sua vez, em causa — e um enigma vivente para filósofos que cuidam de explicar a
origem do mal.
A mesma explicação é atribuível, com as devidas modificações, a toda uma vasta série
de casos, que pode ser citada para ilustrar o problema do mal no mundo. Incidentalmente
acarreta consigo uma questão relacionada com o funcionamento da lei kármica, que não pode

95
ser chamada dificuldade, desde o momento em que a resposta é provavelmente sugerida pelo
caráter da própria doutrina, mas nem por isso menos digna de ser citada. A assimilação
seletiva, por parte dos espíritos carregados de karma, a uma paternidade correspondente a
suas necessidades ou méritos, é a explicação óbvia que reconcilia o renascimento com o
atavismo e a herança. A criança nascida parece que reproduz as peculiaridades dos pais ou
antecessores, bem como sua parecença física, e o fato sugere a noção de que sua alma é um
rebrotar da árvore da família, como sua forma física. É desnecessário alongar-nos aqui sobre
as múltiplas dificuldades que rodeariam aquela teoria, se tivéssemos a extravagância de supor
que uma alma assim, lançada como faísca de uma bigorna, sem nenhum passado espiritual
atrás de si, possa ter um futuro diante dela. A alma, que desse modo seria apenas uma função
do corpo, terminaria com a dissolução daquilo de que se originou. Seja como for, a doutrina
esotérica, quanto aos caracteres transmitidos, oferece uma completa explicação do fenômeno,
do mesmo modo que se refere a outros da vida humana. A família na qual a criança nasce
representa, ao espírito reencarnado, o que um novo planeta o é para toda a onda humana numa
Ronda ao longo da cadeia manvantárica. Foi construído por um processo de evolução
funcionando numa Unha transversal à da aproximação da humanidade. E está apto para que a
humanidade o habite, quando chegar o tempo devido. O mesmo acontece com o espírito
reencarnado: arremessa-se para o mundo objetivo ao estarem esgotadas as influências que o
prendiam ao estado devachânico. Toca, por assim dizer, a mola da Natureza, provocando o
desenvolvimento de uma criança, que sem tal impulso seria meramente uma potencialidade,
não um desenvolvimento verdadeiro, mas em cuja paternidade encontra —
inconscientemente, por meio da cega operação de suas afinidades - as condições exatas da
nova vida, para a qual ela mesma se preparou na vida pretérita.
Não devemos esquecer a presença de exceções em todas as grandes regras da
Natureza. No presente caso, às vezes ocorre que um simples acidente cause um dano à criança
ao nascer. Assim é que um espírito cujo karma não mereceu de modo nenhum aquele castigo,
pode adquirir uma forma aleijada, e o mesmo aplica-se em relação com uma grande variedade
de acidentes. Mas sobre estes, tudo o que cabe dizer é que a Natureza não está tolhida por
seus acidentes. Ela dispõe de muito tempo para repará-los. Os sofrimentos não merecidos
numa vida são amplamente compensados pelo funcionamento da lei kármica na seguinte, ou
pela seguinte. Há o tempo necessário para que a compensação aconteça, e os Adeptos
declaram, conforme creio, que, na verdade, os sofrimentos não merecidos atuam, no final das
contas, como uma sorte feliz, mais do que de outro modo, provindo isto da observação
puramente científica dos fatos, de uma doutrina, que a religião usou benevolentemente
algumas vezes mais para o consolo dos aflitos.
Já a doutrina esotérica, quando oferece, neste sentido, uma inesperada solução dos
fenômenos da vida que causam maior perplexidade, não o faz às custas de sacrifício, em
qualquer sentido dos atributos que podemos sinceramente esperar de uma verdadeira ciência
religiosa. O que primeiro temos em favor desse sistema é que não permite nenhuma injustiça,
quer no sentido de dano feito sem merecimento, quer nos benefícios concedidos aos que não
os merecem. E a justiça desse funcionamento deve ser discernida tanto nas grandes coisas
como nas pequenas. A máxima jurídica de minimis non curat lex18 contém um meio de fuga à
falibilidade humana das conseqüências de suas próprias imperfeições. Nem em Química, nem
em Mecânica, existe nada semelhante à indiferença para as coisas pequenas. A Natureza, em
suas operações físicas, reage às pequenas causas com tanta certeza quanto às grandes e
podemos nos sentir instintivamente seguros de que também ela, em suas ações espirituais, não
tem o mau hábito de tratar as ninharias como coisas sem conseqüência, de ignorar pequenas
dívidas em recompensa por pagar as grandes, tal como um comerciante de duvidosa
integridade que se satisfaz a honrar compromissos que não são suficientemente sérios para
18
Isto é: o pretor não se ocupa de coisas mínimas. (N.T.)

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que seu cumprimento seja imposto pela lei. Ora, os atos de menor importância da vida, bons
ou maus, são necessariamente ignorados sob qualquer sistema que formula a questão final em
perspectiva, como admissão ou exclusão de uma condição uniforme, ou aproximadamente
uniforme, de bem-aventurança. Nem mesmo quanto ao mérito ou demérito que unicamente se
relacionam como conseqüências espirituais, nenhuma resposta exata pode dar a Natureza,
exceto por meio daquele estado de existência espiritual infinitamente graduado, descrito pela
doutrina esotérica como o estado devachânico. Mas a complexidade que se apresenta diante
de nós é mais séria do que a que se pode encontrar nos vários estados da existência
devachânica. Nenhum sistema de conseqüências que siga a humanidade, após a vida ora em
observação, pode ser reconhecido como adaptado cientificamente às circunstâncias
imprevistas, a menos que responda ao senso de justiça relativo aos múltiplos atos e costumes
da vida em geral, inclusive àqueles que meramente se referem à existência física e não estão
bastante caracterizados pelo justo ou injusto.
Pois bem, apenas retomando a existência física, é como se pode conceber que as
pessoas consigam, com todo rigor, os resultados das menores causas que tenham produzido na
última vida objetiva. Assim, após um cuidadoso exame do assunto — bem pouco atraente
para os estudantes do Budismo até agora em seu aspecto exotérico, o que não é de estranhar
— se verá que a lei kármica não só se reconcilia por si mesma com o senso de justiça, mas
constitui o único método imaginável de ação natural que pode testá-lo. Tendo sido
compreendida, a individualidade continua atuando, através de sucessivos renascimentos
kármicos, e tendo presente a correspondente cadeia de existências espirituais intercaladas
entre cada um dos nascimentos, não é de modo algum alterada a simetria requintada de todo o
sistema por aquela característica que, à primeira vista, parece exposta à crítica — os banhos
sucessivos nas águas do esquecimento, pelas quais deve passar o espírito reencarnado. Pelo
contrário, aquele esquecimento é na verdade a única condição em que a vida objetiva pode ser
iniciada completamente de novo. Poucas vidas terrenas são livres de sombras, cuja
reminiscência obscureceria uma renovada fase de vida da personalidade. E se se alega que o
esquecimento completo de cada uma das últimas vidas envolve desperdício de experiência,
esforço e aquisições intelectuais penosa e laboriosamente obtidas, essa objeção pode
unicamente provir do esquecimento da vida devachânica, na qual, longe de serem dissipados
tais esforços e aquisições, eles constituem as sementes das quais brotará toda a magnífica
colheita de resultados espirituais. Da mesma forma, quanto mais tempo a doutrina esotérica
ocupar a inteligência, tanto mais claramente se verá que cada uma das objeções feitas contra
ela depara-se com uma réplica pronta, e que somente parece objeção do ângulo do
conhecimento incompleto.
Ao passarmos das considerações abstratas a outras em parte entrelaçadas com assuntos
práticos, comparemos a doutrina esotérica com os fatos da Natureza observáveis em vários
sentidos, com o fito de comprovarmos diretamente seus ensinamentos. Uma ciência espiritual
que previu felizmente a verdade absoluta deve ajustar-se aos fatos da Terra, sempre que se
depare com eles. Um dogma religioso em flagrante oposição com o que é uma verdade
manifesta, para a Geologia e para a Astronomia, pode encontrar Igrejas e congregações que se
satisfaçam em sustentá-lo, porém não é digno de séria consideração filosófica. Como
concorda, pois, a doutrina esotérica com a Geologia e a Astronomia?
Não é nenhum exagero afirmar que a doutrina esotérica consiste no único sistema
religioso que se funde facilmente com as verdades físicas, descobertas pela pesquisa moderna
naqueles ramos da ciência. Não só se identifica com elas, no sentido de tolerar a hipótese
nebular e a estratificação das rochas, porém que, por assim dizer, se atira nos braços desses
fatos e em nada pode prescindir deles. Tampouco deixa de considerar os descobrimentos da
Biologia moderna, e, como é um sistema que se recomenda por si mesmo, numa época
científica, sequer pode dispensar as últimas aquisições da Geografia física.

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A estratificação da crosta terrestre é certamente um registro claro e visível de
cataclismos inter-raciais. A Física vai perdendo os hábitos de timidez que a insolente opressão
do fanatismo religioso, de quinze séculos, produziu, mas ainda se mostra um pouco esquiva
em suas relações com o dogma, por mera força do costume. Neste sentido a Geologia se
contentou em afirmar que tais e tais continentes, como suas bacias marítimas testemunham,
devem ter submergido e emergido, mais de uma vez, sob e sobre a superfície do oceano. Não
se acostumou ainda à livre aplicação de seus próprios subsídios à especulação que invade o
território religioso. Mas, com certeza, se fosse exigido que a Geologia interpretasse todos seus
fatos na forma de uma história consistente da Terra, suscitando as hipóteses mais plausíveis
que pudesse forjar para preencher lacunas em seus conhecimentos, ela construiria uma
história da humanidade que não seria diferente, nos traços gerais, do que foi esboçado no
capítulo precedente sobre os Grandes Períodos do Mundo. E, quanto mais progridam as
descobertas geológicas, no-lo dizem os instrutores esotéricos, tanto mais íntimas serão
reconhecidas as correlações entre a doutrina e os vestígios ósseos do passado. Já vemos
peritos do Challenger dando testemunho da existência da Atlântida, embora o tema pertença a
um gênero de problemas geralmente pouco atraentes para o mundo científico. Assim é que as
considerações em prol do continente perdido não são ainda apreciadas, de modo geral.
Geólogos pensadores se mostram bastante dispostos a reconhecer que, com relação às forças
formadoras da Terra, o período compreendido na série dos vestígios históricos pode ser um
período de inércia relativa e de lenta mudança. E que as metamorfoses devidas a cataclismos
podem ter-se agregado, nas primeiras eras, às ocasionadas por afundamentos, levantamentos e
fragmentações graduais. Um passo ou dois separa isso do reconhecimento, como fato, daquilo
que ninguém acharia criticável como hipótese, ou seja, as grandes submersões ou
levantamentos continentais que ocorrem alternadamente. O mapa completo do mundo toma
ocasionalmente formas novas, nos moldes, como os fragmentos de cores dos quadros de um
caleidoscópio caem formando novas combinações, como também está sujeito a mudanças
sistematicamente intermitentes, que restabelecem as primeiras disposições a enormes
intervalos de tempo.
Seja como for, estando ainda por vir mais descobrimentos, se irá admitir, talvez, que
possuímos uma massa de conhecimentos geológicos suficiente para reforçar a Cosmogonia da
doutrina esotérica. O fato de que a doutrina tenha sido mantida longe do mundo em geral, por
tanto tempo, como precisou desse conhecimento para achar pavimentado o caminho a sua
entrada, dificilmente será considerado indiscreto por parte de seus guardiães. Se a geração
atual concederá ou não importância suficiente às correlações da doutrina com o que foi
descoberto na Natureza por outros meios, está por se ver.
Essas correlações podem, naturalmente, ser encontradas de modo decisivo tanto na
Biologia quanto na Geologia. A ampla teoria de Darwin a respeito da descendência do
homem do reino animal não é o único fundamento proporcionado, por essa divisão da ciência,
à doutrina esotérica. As observações minuciosas, na atualidade, constatadas na Embriologia,
são especialmente interessantes pela luz que lançam em mais de uma seção desta doutrina.
Assim é que a verdade, hoje familiar, de que as fases sucessivas do desenvolvimento humano
pré-natal correspondem a progressos da evolução humana, através de diferentes formas da
vida animal, representa nada menos que uma revelação em suas conseqüências analógicas.
Não se cinge a fortalecer a hipótese evolucionária, mas ilustra notavelmente o modo como a
Natureza atua na evolução das novas raças de homens, no princípio dos grandes períodos de
Ronda. Quando uma criança tem de ser desenvolvida de um germe, de constituição tão
simples, que é a menos típica do reino animal — e até menos que do vegetal — que do
mineral, a escala familiar da evolução é percorrida, por assim dizer, rapidamente. Os
conceitos de progresso, que necessitaram séculos incontáveis para ser externados pela
primeira vez, na forma de uma cadeia sem solução de continuidade, estão para sempre

98
firmemente alojados na memória da Natureza, e podem, portanto, ser rapidamente lembrados,
em poucos meses, por sua ordem. O mesmo ocorre com a evolução da humanidade em cada
um dos planetas, à medida que avança a onda da maré humana. Na primeira Ronda, o
processo é bem lento, e quase não avança. As próprias idéias de Natureza estão sujeitas à
evolução. Mas quando o processo ocorreu uma vez, pode ser rapidamente repetido. Nas
últimas Rondas, o impulso de vida percorre a escala da evolução com uma facilidade só
concebível pela ajuda do esclarecimento proporcionado pela Embriologia. Esta é a explicação
do modo como o caráter de cada uma das Rondas difere das que lhe antecederam. O trabalho
evolucionário ocorrido uma vez é logo repetido. Então, a Ronda executa sua própria evolução
com uma rapidez bem diferente, assim como a criança que, ao atingir a perfeição do tipo
humano, verifica seu próprio crescimento individual lentamente, na proporção dos primitivos
estados de seu desenvolvimento inicial.
Não se exija de mim nenhuma comparação perfeita do Budismo Exotérico com os
aspectos da Natureza que até agora foram expostos, de modo sucinto, como verdade, mas
bastante compreensível somente para dar ao leitor uma visão geral do sistema em toda sua
grandeza. Com o auxílio das informações ora comunicadas, os estudantes de Budismo estarão
mais capazes de aplicar, aos enigmas que a Natureza pode conter, as chaves de sua
significação. Os hiatos existentes nos anais públicos dos ensinamentos budistas agora são
facilmente preenchidos, e com clareza se verá a razão de sua existência. Na obra de Mr. Rhys
Davids, por exemplo, deparo o seguinte: "O Budismo não tenta resolver o problema da
origem primária de todas as coisas", e, citando o Manual do Budismo, de Hardy, diz:
"Quando Malunka perguntou a Buda se a existência do mundo era ou não eterna, não
recebeu resposta, mas a causa do silêncio era que o Mestre considerava a pergunta sem
proveito." Na verdade, o assunto foi expressamente deixado de lado porque não podia ser
resolvido com um simples sim ou não, sem colocar o indagador numa pista falsa; pois, para
colocá-lo na verdadeira pista, seria necessária uma exposição completa de toda a doutrina a
respeito da evolução da cadeia planetária, para a qual a comunidade com que Buda se
relacionava não estava ainda intelectualmente madura. Mas, querer inferir de seu silêncio que
tomava a pergunta como sem nenhum proveito, é um equívoco, em que é natural que se tenha
caído, dada a inexistência de conhecimentos colaterais, pois na verdade nada pode ser mais
completo. Nenhum dos sistemas que publicamente trataram do problema a respeito da origem
de todas as coisas fez mais, como até agora foi visto, do que roçar a superfície daquela
especulação, comparativamente às pesquisas completas da ciência esotérica da qual foi Buda
um expositor eminente, como foi um proeminente instrutor moral para o povo.
As conclusões positivas sobre o que o Budismo ensinou — cuidadosamente
elaboradas — não foram divulgadas com menor cuidado por Mr. Rhys Davids que a
conclusão negativa já citada. Era inevitável que todas essas conclusões fossem imprecisas até
hoje. Cito um exemplo, não para diminuir o estudo cuidadoso de que foi fruto, mas para
mostrar como a luz, agora difundida por todo o assunto, penetra cada fresta, expondo todos os
fatos sob nova luz.
"O Budismo considera como última verdade a existência do mundo material e seres
conscientes vivendo nele. Sustenta que todas as coisas estão sujeitas à lei da causa e efeito e
que todas elas estão constante embora imperceptivelmente mudando. Não há lugar em que
esta lei não funcione; portanto, não existe nem céu, nem inferno, no sentido corrente da
palavra. Existem mundos onde vivem anjos, cuja existência é mais ou menos material
conforme a maior ou menor santidade de suas vidas anteriores; mas os anjos morrem, e os
mundos nos quais moram deixam de existir. Há lugares de tormento onde as más ações, dos
homens ou dos anjos, originam seres desgraçados; mas quando o ativo poder do mal que os
gerou se esgota, se desvanecem. Os mundos por eles habitados não são eternos. Todo o
cosmos — Terra, céus e infernos — tende sempre à renovação ou destruição, está sempre em

99
processo de mudança, é formado de uma série de revoluções ou ciclos, cujo princípio e fim
são igualmente incognoscíveis e desconhecidos. Nesta lei universal de composição e de
dissolução, os homens e os deuses não constituem exceção. A unidade de forças que forma
um ser sensível, deve mais tarde ou mais cedo ser dissolvida, e somente por ignorância e
ilusão esse ser sonha que é uma entidade separada e existente por si mesma."
Pois bem, este parágrafo serve de exemplo para demonstrar como as noções populares
da filosofia budista se distanciam de todas as luzes da verdadeira filosofia esotérica.
Certamente, esta filosofia não vê no universo, assim como tampouco na crença de qualquer
ilustre pensador asiático ou europeu, os imutáveis céus e infernos da lenda monacal. Mas, "os
mundos onde os anjos vivem" e assim por diante — os níveis do estado devachânico
vividamente reais, embora subjetivos — estão efetivamente na Natureza. O mesmo sucede
com todas as outras concepções populares budistas que passamos em revista. Porém, em sua
forma popular são caricaturas muito próximas às concepções correspondentes da ciência
esotérica. Assim, a noção de que a individualidade é uma ilusão e que a dissolução final do
ser sensível como essa ilusão é perfeitamente ininteligível, sem necessitar explicações mais
completas a respeito dos múltiplos evos de vida individual em condições de exaltação
espiritual, ainda para nós inconcebíveis, mas sempre progressivas, que precedem aquela
inimaginável e re mota emergência no estado não-individualizado. Este estado deve estar em
alguma parte do futuro, mas é de tal natureza que nenhum filósofo, o não-iniciado pelo
menos, concebeu ainda a respeito dele sequer o mais fraco vislumbre de suposição. O mesmo
que ocorreu quanto ao Nirvana, ocorreu com a ilusão da individualidade. Os escritores que se
ocuparam da doutrina budista, derivada de fontes exotéricas, ficaram perplexos, do modo
mais lamentável, perante alguns dos remotos elementos da grande doutrina, sob a impressão
de que se tratavam de opiniões budistas relativas a estados que acontecem imediatamente a
esta vida. A declaração, colocada fora de seu contexto no corpo geral da doutrina, constitui
quase um absurdo, não só porque não se pode considerar um insulto ao entendimento, mas
porque será sentida como verdade sublime ao admitir seu devido lugar na relação com outras
verdades. A emergência fina do perfeito Homem-deus ou Dhyan Chohan, na absoluta
consciência do Paranirvana, não tem nada a ver, permitam-me aduzir, com a "heresia da
individualidade", que se relaciona às personalidades físicas. Sobre esse assunto voltarei a
tratar mais adiante.
Mr. Rhys Davids afirma, com bastante razão, com referência ao resumo da doutrina
budista, antes citada: "Tais ensinamentos não são, de modo algum, peculiaridades do
Budismo, pois idéias semelhantes estão no fundamento das filosofias indianas primitivas."
(Certamente, pelo fato de que o Budismo, quanto à doutrina, é a filosofia indiana primitiva.)
"De fato, podem-se encontrar tais ensinamentos em outros sistemas bem distintos em tempo e
lugar. O Budismo, ao se relacionar com a verdade neles contida, podia ter-lhes atribuído
uma expressão mais definitiva, se não se tivesse apropriado também da crença referente à
curiosa doutrina da transmigração, doutrina essa que parece ter originado
independentemente, se não simultaneamente, no vale do Ganges e no vale do Nilo. A palavra
transmigração foi utilizada em diferentes épocas e lugares, para teorias diferentes, na
verdade muito diferentes. E o Budismo, ao adotar a idéia geral do Bramanismo pós-védico,
modificou-a de tal modo que chegou a formar, efetivamente, uma nova hipótese. Tanto a
hipótese nova como a velha referem-se à vida, em nascimentos passados e futuros, e em nada
contribuíram para a renovação aqui, nesta vida, do mal que supunham explicar."
Este livro terá desfeito as interpretações errôneas sobre as quais se apóiam essas
observações. O Budismo não crê em nada que se assemelhe à passagem para trás e para a
frente nas formas animais e humanas, que é o que muita gente concebe como sendo o
princípio da transmigração. A transmigração do Budismo é a transmigração da teoria
evolucionista de Darwin, cientificamente desenvolvida, ou antes completamente explorada

100
em ambas as direções. Os escritos budistas contêm alusões a nascimentos anteriores, nos
quais o próprio Buda era, às vezes, animal e, outras, outra espécie. Mas eles se referem ao
curso remoto da evolução pré-humana da qual sua visão aberta lhes proporcionava uma visão
retrospectiva. Jamais se encontrará, em qualquer escrito budista, nada que defenda a noção de
que qualquer criatura humana, tendo alcançado a humanidade, retroceda ao reino animal.
Além disso, enquanto nada, em verdade, seria tão ineficaz como explicação da origem do mal,
como a caricatura da transmigração que esse retrocesso implica. Os renascimentos dos Egos
humanos na existência objetiva, unidos na operação do karma físico e as funções inevitáveis
do livre-arbítrio, nos limites de suas prerrogativas, explicam a origem do mal, de um modo
cabal e decisivo. Tendo por objeto o esforço da Natureza em uma nova colheita de Dhyan
Chohans, cada vez que se desenvolve um sistema planetário, o desenvolvimento incidental do
mal transitório é uma conseqüência inevitável sob a ação das forças ou processos
mencionados, estados que por sua vez são inevitáveis no gigantesco processo empreendido.
Ao mesmo tempo, se o leitor quiser tornar agora o livro de Mr. Davids e examinar o
longo parágrafo desse assunto e a respeito das skandhas, há de se convencer da inútil tentativa
de deduzir qualquer teoria racional, a respeito da origem do mal, dos materiais exotéricos nele
empregados. Nem seria possível para esses subsídios sugerir a verdadeira explicação do
trecho do Brahmajala sutra citado logo após:
"Depois de fazer ver como se originou a crença infundada na eterna existência de
Deus ou de deuses, passa Gautama a discutir a questão da alma e indica 32 crenças relativas
a ela, que considera errôneas. Estas são resumidamente como segue: 'Em que princípio ou
sobre que terreno sustentam estes mendicantes ou brâmanes a doutrina da existência futura?
Ensinam que a alma é material ou imaterial, ou que é ambas as coisas ou nenhuma delas;
que terá um ou muitos modos de consciência; que suas percepções serão poucas ou
ilimitadas; que permanecerá em um estado de gozo ou de miséria, ou nem em um nem em
outro. Estas são as dezesseis heresias que ensinam uma existência consciente depois da
morte. Existem mais oito heresias que ensinam que a alma material ou imaterial, ou ambas
ou nenhuma das duas, finita ou infinita, ambas as coisas ou nenhuma delas, possui uma
existência inconsciente depois da morte. E finalmente outras oito que ensinam que a alma,
em seus oito sistemas correspondentes, existe após a morte em um estado nem consciente,
nem inconsciente. Mendicantes — conclui o sermão —, aquilo que liga o Mestre à existência
(isto é, tanha, sede) foi cortado, mas seu corpo ainda fica. Enquanto seu corpo permanece,
será visto por deuses e homens, mas depois de acabada a vida, depois da dissolução do
corpo, nem deuses, nem homens o verão.' Seria possível negar, de forma mais cabal e
categórica, que existe a alma — algo, seja o que for, que continua existindo de alguma forma
depois da morte?"
Com efeito, para os estudantes exotéricos, esse trecho parecerá em flagrante
contradição com os ensinamentos do Budismo, que se referem às sucessivas passagens da
mesma individualidade através de várias encarnações, o que em outra linha de pensamento
talvez assuma a existência de uma alma transmissível, com tanta clareza, como a nega a
passagem citada. Sem compreender os sete princípios do homem, não é possível reconciliar
diferentes opiniões sobre os diversos aspectos desta questão da imortalidade. Mas a chave
agora oferecida deixa a aparente contradição livre de toda dificuldade. No trecho
anteriormente citado, Buda está tratando da personalidade astral, enquanto a imortalidade
reconhecida pela doutrina esotérica é a da individualidade espiritual. À explicação foi
cabalmente dada no capítulo que trata do Devachan e nos parágrafos citados ali do Catecismo
budista, do Coronel Olcott. Desde que alguns fragmentos da grande revelação, que este
volume contém, foram publicados nos dois últimos anos, na Theosophist, a importante
distinção entre personalidade e individualidade, tal como se aplica à questão da imortalidade
humana, foi estabelecida de forma inteligível. Mas ocorrem referências, nos anteriores

101
escritos ocultos, que se podem agora invocar como prova do fato de que os escritores antigos
estavam inteiramente cientes da própria doutrina. Reportando-nos ao mais recente dos livros
ocultos, nos quais ainda subsiste o véu da obscuridade ocultando a doutrina à observação
superficial, embora em alguns trechos esteja vazado de tal modo que quase fica transparente,
podemos tomar qualquer um, dentre uma dúzia de parágrafos, para elucidar o ponto que
visamos. Aqui está um:
"Os filósofos que explicaram a queda na geração, a seu modo, consideram o espírito
como algo completamente diferente da alma. Admitiam sua presença na cápsula astral
somente quanto às emanações ou raios espirituais do 'resplandecente'. O homem e a alma
tinham que conquistar sua imortalidade subindo para a unidade, com a qual, no caso de
sucesso, se uniam afinal e eram absorvidos, por assim dizer. A individualização do homem
após a morte depende do espírito, não de seu corpo e alma. Se bem que a palavra
'personalidade', no sentido que geralmente é entendida, é um absurdo, se for aplicada
literalmente à nossa essência imortal. Entretanto, esta essência constitui uma entidade
distinta, imortal e eterna de per si mesmo até no caso de criminosos sem redenção, quando o
reluzente fio que une o espírito à alma, a partir do nascimento de uma criança, é
violentamente rompido e fica a entidade desencarnada abandonada a compartilhar do
destino dos animais inferiores, ou a dissolver-se no éter e a sofrer a aniquilação de sua
individualidade — ainda assim o espírito permanece sem ser distinto19."
Ninguém poderá ler isto ou qualquer outro trecho do capítulo donde foi extraído, sem
perceber, à luz das explicações dadas no presente volume, que a doutrina esotérica era
completamente familiar ao autor — por mais que tenha sido eu quem recebeu o privilégio de
expô-la pela primeira vez, numa linguagem clara e inequívoca.
É preciso algum esforço mental para diferenciar personalidade de individualidade, mas
a ânsia pela continuidade da existência pessoal — pois a reminiscência completa que sempre
se tem daquelas circunstâncias transitórias de nossa presente vida física constituem a
personalidade — é claramente nada mais do que uma passageira fraqueza da carne. Para
muita gente não será razoável dizer que qualquer pessoa vivente hoje, com suas lembranças
limitadas pêlos anos de sua infância, é o mesmo indivíduo que qualquer um de diferente
nacionalidade e época, que viveu há milhares de anos, ou mesmo que reaparecerá, após um
lapso de tempo ou sob condições futuras inteiramente novas. Mas o sentimento do "eu sou eu"
é o mesmo através das três vidas, assim como através de centenas delas; porque esse
sentimento está mais profundamente arraigado do que aquele que expressa "eu sou John
Smith, de tal altura, com tal peso, com tais e tais propriedades e relações". Será inconcebível
que — como noção mental — John Smith, herdeiro do dom de Tithonus, possa mudar seu
nome de tempos em tempos, vindo a casar-se talvez em cada nova geração perdendo uma
propriedade aqui, adquirindo outra ali, e se interessando, à medida que transcorre o tempo,
por uma variedade de diferentes empresas; e será inconcebível — repito — que tal pessoa
assim se esqueça, em poucos milhares de anos, de todas as circunstâncias relacionadas à vida
presente de John Smith, como se os incidentes dessa vida não houvessem nunca ocorrido?
Sem dúvida, o Ego será o mesmo. E, se isto é concebível para a imaginação, o que pode haver
de inconcebível na continuidade individual de uma vida intermitente, interrompida e retomada
a intervalos regulares e variada com permanências em estados mais puros de existência?
Do mesmo modo como a doutrina esotérica mostra o conflito aparente entre a
identidade das sucessivas individualidades e a "heresia" da individualidade, assim também
coloca o "incompreensível mistério" do karma, que Mr. Rhys Davids trata tão sumariamente,
numa base perfeitamente inteligível e científica. A respeito disso, diz-se que em vista de que o
Budismo "não reconhece a existência de uma alma", recorre ao desesperado expediente de um
mistério, para lançar uma ponte através do vazio que fica entre uma vida e outra, em algum
19
Isis Unveiled, volume I, p. 315

102
outro lugar, ou seja, a doutrina do karma. E condena a ideia como uma "ficção não existente
do cérebro". Irritado como se sente, com o que considera o absurdo da doutrina, entretanto
devota paciência e grande ingenuidade mental ao esforço de desenvolver algo que pareça uma
concepção racional metafísica das confusas expressões relativas ao karma, nos escritos
budistas. Ele diz:
"O karma, tomado do ponto de vista budista, evita o extremo supersticioso, por um
lado, dos que crêem na existência isolada de alguma entidade denominada alma; e, por
outro, o extremo irreligioso dos que não acreditam na justiça moral e na retribuição. O
Budismo pretende considerar a palavra 'alma', no tocante ao fato que se propõe abranger,
sem ter achado o fato, senão só uma das vinte ilusões diferentes que cegam a vista dos
homens. Contudo, o Budismo está convencido de que se um homem colhe tristeza, desengano,
dor, ele próprio e não outro é quem semeou, em alguma época, os erros, o pecado, e se não
nesta vida, em algum nascimento anterior. Onde, pois, há, neste caso, identidade entre o que
semeia e o que colhe? Naquilo que exclusivamente permanece após a morte de um homem, e
as partes constitutivas do ser sensível dissolvem-se, no resultado de suas ações, palavras e
pensamentos, em seu karma bom ou mau (literalmente, seu modo de agir), que não morre.
Familiarizados com a doutrina "Qualquer que seja o que um homem semeie, isso mesmo ele
colherá', portanto, pode caber no sentimento budista, que seja o que for que um homem
colha, ele deve tê-lo semeado. E já familiarizados com a doutrina a respeito da
indestrutibilidade da força, podemos, também, compreender o dogma budista (por mais que
se contraponha a nossas noções cristas) de que nenhum poder exterior é capaz de destruir o
fruto das ações do homem, que devem produzir pleno efeito, seja no sentido do prazer, seja
no da dor. E a grande peculiaridade do Budismo consiste nisto: o resultado do que o homem
é ou faz não se dissipa, por assim dizer, em muitas correntes separadas, mas se concentra na
formação de um novo ser sensível. Quer dizer novo em seus aspectos constitutivos e em suas
faculdades, mas permanecendo o mesmo em sua essência, em seu ser, em sua conduta, em
seu karma."
Nada pode ser mais engenhoso do que essa tentativa de inventar, com relação ao
Budismo, uma explicação de seu "mistério", apoiando-se na suposição de que os autores do
mistério geraram-no como "expediente desesperado" para cobrir sua retirada de uma posição
insustentável. Na verdade, a doutrina do karma tem uma história bem mais simples e dispensa
essa sutil interpretação. Como muitos outros fenômenos da Natureza relacionados com o
futuro, foi declarada por Buda um mistério incompreensível, e as questões referentes a ela
foram assim postas de lado. Mas Buda não quis dizer que, porque fosse incompreensível para
o vulgo, também o seria para os iniciados na doutrina esotérica. Era impossível explicar sem
fazer referência à doutrina esotérica, mas uma vez conhecidas as grandes linhas daquela
ciência, o karma, como muitas outras coisas, converte-se num assunto relativamente simples,
um mistério, no sentido em que o é igualmente a afinidade do ácido sulfúrico para com o
cobre e a afinidade, ainda maior, que experimenta pelo ferro. Certamente, a ciência esotérica,
para seus "chelas laicos", do mesmo modo que a Química para seus "chelas laicos", ou seja,
os estudantes de seus fenômenos físicos, deixa na sombra alguns mistérios insondáveis. Não
irei explicar por meio de quais exatas mudanças moleculares as mais elevadas afinidades,
constitutivas do karma, se mantêm nos elementos permanentes do seu quinto princípio. Mas a
ciência corrente não está melhor qualificada para dizer o que é que leva uma molécula de
oxigênio a abandonar a molécula de hidrogênio, com a qual estava combinada no pingo de
água, e porque se une a uma molécula de ferro da viga sobre a qual cai. Mas a mancha de
ferrugem aparece, e afirma-se que foi encontrada a explicação científica do fato ao serem
compreendidas suas afinidades e ao se recorrer a elas.
O mesmo acontece com o karma: o quinto princípio recolhe as afinidades de suas boas
e más ações durante sua passagem pela vida, com elas vai ao Devachan, onde as que estão

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harmoniosas com o ambiente, por assim dizer, daquele estado, frutificam e florescem em
prodigiosa abundância, passando depois, novamente, com aquelas que não esgotaram sua
energia, ao mundo objetivo. E com a mesma certeza com que a molécula de oxigênio, posta
em presença de uma centena de outras moléculas, se arremessará àquela com a qual tenha
maior afinidade, a mônada espiritual carregada de karma irá àquela encarnação com a qual a
unem suas misteriosas atrações. Não ocorre nesse processo nenhuma criação de um novo ser
sensível, exceto no sentido de que a nova estrutura corpórea desenvolvida constitui um novo
instrumento de sensação. O que nela reside, o que sente alegria ou tristeza, é o antigo Ego —
separado completamente pelo esquecimento de sua última série de aventuras na Terra, é
verdade, mas tendo alcançado seu fruto — é o mesmo "eu sou eu" que antes.
Segundo Mr. Rhys Davids: "É estranho tudo isso" - a explicação da Filosofia Budista
que os materiais esotéricos possibilitam dar — que "não pareça repulsivo por todos esses
2.300 anos e mais, a muitos corações ardentes e desesperados, que confiaram na magnífica
ponte aparente que o Budismo tentou construir sobre o rio dos mistérios e pesares da vida...
Não conseguiram ver que a pedra fundamental, o laço de união entre uma vida e outra, é
meramente uma palavra —esta maravilhosa hipótese, este aéreo nada, esta causa imaginária
fora do alcance da razão — a individualizada e a individualizante graça do karma".
Com efeito, estranho seria se as bases do Budismo tivessem repousado sobre
fundações tão frágeis. Sua aparente fragilidade é devida simplesmente ao fato de que sua
poderosa estrutura de conhecimentos permaneceu velada até agora. Agora que foi desvelada a
doutrina interna, há de se ver quão pouco depende, em qualquer aspecto, das vagas sutilezas
da metafísica. O fato de que estas se enfeixaram ao redor do Budismo deve-se a que
intérpretes externos de fortuitos indícios doutrinais não podiam ser inteiramente suprimidos
do simples sistema de moral prescrito para o povo.
No que realmente constitui o Budismo, deparamos uma sublime simplicidade, como a
da própria Natureza, uma lei que se ramifica de forma infinita. Há também, é verdade,
complexidade de pormenor, infinitamente complexas também na própria Natureza em suas
manifestações, por mais invariáveis e uniformes que sejam em suas finalidades. Mas sempre
encontramos a imutável doutrina das causas e seus efeitos, que por sua vez se convertem em
causas, numa interminável progressão cíclica.

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