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A RECONSTRUÇÃO DO MITO EM

"A MENINA DE LÃ"


DE JOÃO GUIMARÃES ROSA

Vexa LÚCÁJOL RodeZIa ABRIATA*

"Quando nada a c o n t e c e , há um
m i l a g r e que não estamos ven
do"
("0 Espelho" - João G. Rosa)
(2, p. 61)

0 caráter m e t a d i s c u r s i v o em "A menina de


lã" ( 2 , p. 1 7 - 2 1 ) , de João Guimarães Rosa, pode
ser observado na medida em que a enunciação d e l e
ga a voz a um a c t a n t e n a r r a d o r , que c r i a seu d i s
c u r s o , simulando r e c o n t a r o d i s c u r s o da família
de N h i n h i n h a , uma e s t r a n h a g a r o t a , c u j a morte
precoce, é m o t i v o p a r a que a consagrem s a n t a .
Esse processo de mitificação é, portanto,
performance da família da g a r o t a , que incapaz
de a c e i t a r a sua p e r d a , movida p e l a tristeza,
uma paixão de ausência, passa a reinterpretar
seu estado e seus f a z e r e s , até então considera

* Aluna do Programa de Pós-Graduação


dos e s t r a n h o s e anormais, como m i l a g r o s o s . O n a r
r a d o r , que s i m u l a e n t r a r em c o n t a t o com esse sa
ber a p o s t e r i o r i , ao recontá-lo, v a i traçando,
de maneira implícita, uma o u t r a coordenada de
l e i t u r a do c o n t o , c u j a sanção última delega ao
narratório l e i t o r . Assim ao narratório, é dado
l e r o m e t a d i s c u r s o do n a r r a d o r como espaço de
reconstrução do m i t o N h i n h i n h a . Neste espaço, a
menina santa metamorfoseia-se em a t o r , um "ser
de p a l a v r a s " . Logo, são essas duas metamorfoses-
a transformação da menina débil em s a n t a , opera
da no d i s c u r s o mítico da família e, p o r outro
l a d o , a transformação do m i t o Nhinhinha num
a t o r , no m e t a d i s c u r s o do n a r r a d o r , que detalha
remos mais e s p e c i f i c a m e n t e , através de uma abor
dagem sêmio-narrativa e sêmio-discursiva.
Em termos de s i n t a x e n a r r a t i v a , percebemos
que um dos programas n a r r a t i v o s do s u j e i t o "fanví
l i a " c o n s i s t e em c o n t a r a estória da menina san
t a . É i m p o r t a n t e e n f a t i z a r a q u i que a performan
ce de criação do m i t o "Nhinhinha", no discurso
da família, se dá como metamorfose, p o i s obser
va-se que, na situação i n i c i a l da narrativa,
quando a menina se e n c o n t r a em conjunção com a
v i d a , e l a é f i g u r a t i v i z a d a como um s u j e i t o de es
tado d e b i l i t a d o física e mentalmente. Nota-se,
p o i s , a nível d i s c u r s i v o , a instauração de um
p e r c u r s o f i g u r a t i v o da incapacidade física e men
t a l da menina. Retomando as f i g u r a s que o com
põem temos: "miúda", "cabeçudota", "olhos enor
mes", "adoeceu", "morreu", " q u i e t a " , "pouco se
mexia", " f a z i a vácuos", "olhando o nada diante
das pessoas", "ninguém entende m u i t a c o i s a que
ela fala", "seria tolinha?"
Um s u j e i t o de estado q u a l i f i c a d o , p o r t a n t o ,
pela imobilidade, pela e s t a t i c i d a d e , a única
performance atribuída a N h i n h i n h a é a de criar
estórias que, da p e r s p e c t i v a da família, soam
ininteligíveis. Deve-se observar a q u i que a famí
l i a , d i s j u n t a em relação aos o b j e t o s modais/sa
ber/ e / p o d e r / f a z e r / , i s t o é, e n t e n d e r N h i n h i n h a
e seu d i s c u r s o , passa a sancioná-los disforica
mente. T o d a v i a , a p a r t i r do momento em que a me
n i n a e n t r a em disjunção com a v i d a , o c o r r e a r e
velação dos m i l a g r e s operados p o r e l a , através
do c o n t a r de Tiantônia, i n s t a u r a d a s u j e i t o cogni_
t i v o . Esses m i l a g r e s , até então mantidos secre
t o s , eram sancionados como ilusórios p e l o sujejl
t o "família". Logo, através de um programa de
liquidação de f a l t a da g a r o t a , aquele sujeito,
ao d e l e g a r a voz a "Tiantônia", r e a l i z a o pro
grama n a r r a t i v o de criação do m i t o "Nhinhinha"
numa dimensão c o g n i t i v a , i n s t a u r a n d o a menina
como s u j e i t o p e r f o r m a n c i a l , capaz de o p e r a r m i l a
g r e s . Assim, ao r e d i m e n s i o n a r t o d o o percurso
da menina, o s u j e i t o "família", sanciona-o como
um p e r c u r s o m i l a g r o s o . Observamos então a q u i o
que Greimas denomina um " a t o epistêmico" ( 1 , p.
118): a passagem categórica de um estado de c r e n
ça a um o u t r o : do que é negado ao que é admiti,
do. Nega-se a menina t o l a e a f i r m a - s e a menina
mágica. Nhinhinha t o r n a - s e , p o i s , o o b j e t o em
que a família i n v e s t e os v a l o r e s desejados: segu
rança, transcendência, r e l i g i o s i d a d e .
Os m i l a g r e s da menina, p o r o u t r o l a d o , reve
lam-se concretizações mágicas de d e s e j o s que e l a
m a n i f e s t a através de sua f a l a . Assim, "o que e l a
q u e r i a , que f a l a v a , súbito a c o n t e c i a " ( 2 , p. 19),
segundo o c o n t a r de Tiantônia, r e c o n t a d o pelo
n a r r a d o r . E s t e , e n t r e t a n t o , numa de suas inter
venções no enunciado da família, r e l a t a que Nhi.
nhinha "só q u e r i a c o i s a s l e v i a n a s e descuidosas,
o que não põe nem q u i t a " ( 2 , p. 1 9 ) . Observa-se,
p o r t a n t o , que a realização de seus d e s e j o s , que
magicamente acontecem após serem verbalizados,
r e s t r i n g e - s e , p o r exemplo, ã presença de uma rã,
d e p o i s de e l a t e r m a n i f e s t a d o um q u e r e r - que o
sapo aparecesse, ou à presença de uma mulher que
vem de longe t r a z e n d o - l h e uma pamonhinha de g o i a
bada, d e p o i s de e l a também m a n i f e s t a r essa v o n t a
de. A chuva que c a i , após um longo período de se
ca, é o u t r o dos c o n s i d e r a d o s f e i t o s m a r a v i l h o s o s
de N h i n h i n h a . Todos pedem para que e l a " q u e i r a "
a chuva. E l a não se d e i x a m a n i p u l a r . Só que um
d i a e l a m a n i f e s t a um d e s e j o - v e r o arco-íris.
Chove então e o arco-íris aparece.
Relatando esses acontecimentos mágicos a t r a
vés de seu c o n t a r , Tiantônia c o m p e t e n c i a l i z a - s e ,
assim como também aos s u j e i t o s " P a i " e "Mãe", no
s e n t i d o de poder m i t i f i c a r a g a r o t a . O /saber/
r e v e l a d o p o r Tiantônia t o r n a - s e , d e s t a forma,
a condição de um /poder/, ou s e j a , c r i a r Nhinh_i
nha como s u j e i t o m i r a c u l o s o numa dimensão cogn_i
tiva.
A aquisição do /saber/ a r e s p e i t o da para
normalidade da menina p e l o s u j e i t o "família" tam
bém se e f e t i v a através da revelação da performan
ce m i r a c u l o s a da c u r a da mãe da g a r o t a . É o que
podemos o b s e r v a r no t r e c h o a s e g u i r :

" A s s i m , quando a Mae adoeceu de d o r e s que não eram


de nenhum remédio, não houve f a z e r com que Nhinhi
nha l h e f a l a s s e a c u r a . S o r r i a apenas, segredando
seu - "Deixa ... D e i x a ..." - nao a podiam desper
s u a d i r . Mas v e i o , v a g a r o s a , abraçou a Mãe e a bei
jou, q u e n t i n h a . A Mãe, que a o l h a v a com estarreci

da fê, s a r o u - s e então, num m i n u t o . Souberam que e l a

t i n h a também o u t r o s modos. " ( 2 , p. 19)

Auto-manipulando-se, p o r t a n t o , para crer


nos poderes mágicos de N h i n h i n h a através da
"fé", a família e s t a b e l e c e , p o r c o n s e g u i n t e , uma
relação fiduciária com a imagem que constrói a
seu r e s p e i t o .
Em termos de semântica d i s c u r s i v a , podemos,
p o i s , n o t a r que ao p e r c u r s o f i g u r a t i v o da d e b i l i _
dade de N h i n h i n h a superpõe-se o p e r c u r s o de sua
mitificação. E s t e , p o r sua v e z , a s s o c i a - s e ao
tema da superstição ou da influência da religió
sidade a r c a i c o - p o p u l a r sobre o a c t a n t e sujeito
"família". Ao p e r c u r s o f i g u r a t i v o da d e b i l i d a d e
de Nhinhinha associamos, também, p o r o u t r o l a d o ,
o tema da f u g a c i d a d e da v i d a , ao passo que ao
p e r c u r s o f i g u r a t i v o dos m i l a g r e s da menina ou de
sua mitificação, r e l a c i o n a m o s o tema de t r a n s c e n
d e n t a l i d a d e . De uma o u t r a p e r s p e c t i v a , se nos
lembrarmos de que a mitificação de Nhinhinha
o c o r r e através do c o n t a r de Tiantônia, ou s e j a ,
através da criação de um r e l a t o o r a l e lendário,
podemos sobrepor ao tema da t r a n s c e n d e n t a l i d a d e ,
o tema da necessidade de p e r e n i z a r a f u g a c i d a d e
da v i d a através da criação de estórias míticaSj
Uma a n a l o g i a a q u i se e s t a b e l e c e tendo em
v i s t a os papéis temáticos de Tiantônia e de
Nhinhinha. Ambas se revelam c r i a d o r a s de esto
r i a s . Relembremos que, a n t e r i o r m e n t e , a família
s a n c i o n a r a d i s f o r i c a m e n t e o d i s c u r s o de Nhinhi
nha, p o r não se e n c o n t r a r c o m p e t e n c i a l i z a d a para
entendê-lo. E n t r e t a n t o o n a r r a d o r , quando o re
c o n t a , ao d a r voz ã menina através de debreagens
i n t e r n a s de segundo g r a u , p e r m i t e ao narratário
e n t r a r em c o n t a t o com esse mesmo d i s c u r s o , o que
l h e p e r m i t e um f a z e r i n t e r p r e t a t i v o o u t r o sobre
e l e . Assim, ao narratário, a aparente loucura
da linguagem da menina - a utilização de signi
f i c a n t e s sem s i g n i f i c a d o , como, p o r exemplo, em
"Ele xurugou" ( 2 , p. 17) - assemelha-se muito
à l u d i c i d a d e da linguagem poética.
As f i g u r a s do conteúdo de suas estórias en
f a t i z a m essa l e i t u r a na medida em que revelam
o u t r a s características s i m i l a r e s às do d i s c u r s o
literário: - a metamorfose do t e m p o r a l em atem
p o r a l através da p a l a v r a - não s e r i a e s t a uma
l e i t u r a possível do / d e v e r - f a z e r / manifestado
por Nhinhinha em "a precisão de se f a z e r lista
das c o i s a s que no d i a por d i a a gente vem perden
do"? ( 2 , p. 17)
O traço sêmico / a t e m p o r a l i d a d e / , aí percep^
tível, r e i t e r a - s e nas f i g u r a s do conteúdo de ou
t r a de suas estórias: - a "de uma porção de meni.
nas e meninos sentados a uma mesa de doces com
p r i d a , comprida, p o r tempo que não se acabava".
(2, p. 17)
O tema da criação através da p a l a v r a é o
que se e n f a t i z a , p o r t a n t o , a q u i , o que nos f a z
e s t a b e l e c e r uma relação e n t r e os papéis temãti
cos de Tiantônia e de N h i n h i n h a . Instaura-se,
p o i s , a i s o t o p i a temática da criação, mítica no
d i s c u r s o de Tiantônia, poética no d i s c u r s o de
Nhinhinha que, desta p e r s p e c t i v a , pode s e r v i s t o
como um espelho metafórico do próprio discurso
do n a r r a d o r . Essa relação t o r n a - s e ainda mais
e v i d e n t e quando, através de uma retroleitura,
nós nos lembramos da figurativização espacial
que abre o c o n t o :

"Sua casa f i c a v a para trás da S e r r a do Mim, quase


no meio de um b r e j o de água limpa, lugar chamado
o Temor-de Deus." (2, p. 17)

Ao topónimo "Temor-de-Deus" r e l a c i o n a - s e o
o b j e t o - v a l o r " r e l i g i o s i d a d e " a que se conjunge
o s u j e i t o "família" desde a situação i n i c i a l da
n a r r a t i v a , quando a mãe é f i g u r a t i v i z a d a como um
s u j e i t o de estado que "nunca t i r a v a o terço da
mão" ( 2 , p. 1 7 ) . Revela-se, p o r c o n s e g u i n t e , um
p e r c u r s o f i g u r a t i v o propício ã instauração do
m i r a c u l o s o . Quanto à casa, e ao f a t o de e l a se
l o c a l i z a r "quase no meio de um b r e j o de água
limpa" ( 2 , p. 1 7 ) , deve-se o b s e r v a r que este
espaço, o b r e j o , remete-nos a uma centralização
h o r i z o n t a l i n f e r a t i v a . Reconstextualizado, entre
t a n t o , observamos que e l e não é caracterizado
disfõrica, mas sim e u f o r i c a m e n t e . A sua água não
é estagnada, mas uma água l i m p a , o que nos reme
t e à s i m b o l o g i a da água enquanto f o n t e de v i d a ,
de criação. No meio de um b r e j o de água limpa
f i g u r a t i v i z a r i a , p o i s , de acordo com o d i s c u r s o
do s u j e i t o "família", o c e n t r o mítico do mundo,
espaço p r o f a n o e i n f e r a t i v o , mas f o n t e de v i d a ,
porque o espaço de origem da menina " m i t o " .
É i n t e r e s s a n t e n o t a r a q u i também que o n a r
r a d o r s i t u o u a casa "por detrás da Serra do
Mim" ( 2 , p. 1 7 ) . A n a l i s a n d o - s e , p o i s , o sema
" s e r r a " , nota-se que e l e é composto de traços sê
micos que pressupõem um espaço / e n g l o b a n t e / , /ex
t e r o c e p t i v o / , / v e r t i c a l / e /não-humano/. Seu mo
d i f i c a d o r "do Mim", no e n t a n t o , c o n t e x t u a l i z a d o ,
d e s q u a l i f i c a os traços / e x t e r o c e p t i v o / e /não-
humano/, que passam a s e r q u a l i f i c a d o s respecta
vãmente como / i n t e r o c e p t i v o / e /humano/. Perce
be-se, p o r t a n t o , que o sema " s e r r a " parece tam
bém c o n f i g u r a r uma e s p a c i a l i d a d e mítica. Se lem
brarmos que a s e r r a é o espaço da n e b u l o s i d a d e ,
chegaremos ã conclusão de que o o c u l t a m e n t o da
casa "por detrás da Serra do Mim" ( 2 , p. 17) não
é g r a t u i t o . V i s a a c a m u f l a r j u s t a m e n t o o "Mim",
o o u t r o l a d o do Eu, do e u - n a r r a d o r , que simula
c r i a r seu d i s c u r s o recontando o d i s c u r s o mítico
da família de N h i n h i n h a . Desta forma, ao narra
tãrio é dado perceber o m e t a d i s c u r s o do n a r r a d o r
como um d i s c u r s o que se v o l t a sobre s i mesmo,
r e f l e t i n d o sobre o próprio a t o de criação lite
rãria, que c o n s i s t i r i a , assim, na reconstrução
estética da p a l a v r a mítica.
O m i t o "Nhinhinha", p o r c o n s e g u i n t e , recons
trói-se no d i s c u r s o implícito do n a r r a d o r como
um a t o r , c u j o p a p e l a c t a n c i a l é o de c r i a r esto
r i a s " e n f e i t a d a s " de s e n t i d o .
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