Professional Documents
Culture Documents
“Perderam em 64, perderam agora em 2016. Pela família e pela inocência das crianças
em sala de aula, que o PT nunca teve. Contra o comunismo, pela nossa liberdade, contra
o Foro de São Paulo. Pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor
de Dilma Rousseff. Pelo Exército de Caxias, pelas nossas Forças Armadas, pelo Brasil
acima de tudo e por Deus acima de todos, meu voto é sim.”
1
Historiadora e pesquisadora do Programa de Pós-Doutorado em História da Universidade de São Paulo.
Co-autora da ação judicial que declarou torturador o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra.
2
Ustra foi comandante do famigerado DOI-Codi de São Paulo, entre 1970 e 1974.
Ao prestar homenagem ao coronel, declarado torturador pela justiça, pouco tempo antes,
Bolsonaro realizou um gesto emblemático, que ganhou repercussão internacional. E que
permite questionar, novamente, como a sociedade brasileira tem lidado com o legado da
ditadura, colocando em perspectiva as relações existentes entre o pedido de
impeachment, a tortura e a herança autoritária no Brasil.
“Par.2º. – Serão afastados dos cargos públicos, todos os civis e militares envolvidos com
a prática de tortura, assassinato e desaparecimento de presos políticos.
Par.3º. – Serão extintos todos os organismos de repressão política.
I – [Que] Seus espaços físicos e arquivos secretos sejam abertos ao público;
Par.4º. – [Que] Sejam extintos também toda e qualquer estrutura de espionagem voltada
contra a organização democrática dirigida pelo SNI – Serviço Nacional de Informações
ou outros.
Par.5º. – [Que] Seja extinta a Lei de Segurança Nacional2”
A proposta não foi aceita e a lei sobre a tortura foi regulamentada apenas em
1997, sem que nenhum dispositivo ou medida contemplasse a punição dos torturadores
do período ditatorial.
2
Cf. texto que incluiu a proposta, ver PATRIOTA, Gonzaga. “Proposta à Assembléia Nacional
Constituinte”, Câmara dos Deputados, Sala de Sessões, 27/04/87.
3
Passarinho escreveu em 2006 que os militares não pediriam perdão, pois não se arrependeram do que
fizeram durante a ditadura. Cf. PASSARINHO, Jarbas. “A tortura e o terrorismo”. Folha de S.Paulo,
28/11/06, p.3.
4
ocorrendo no Brasil, tal como Walter Benjamin anunciou na tese no. 8 de seu fomoso
texto intitulado “Sobre o conceito de história”, de 1940.
Nesse sentido, não espanta que, ainda hoje, a Lei de Segurança Nacional e as
Polícias Militares – uma criação da ditadura –, bem como o decreto, estipulando que os
serviços reservados das PMs façam parte do sistema de informação do Exército,
continuem em vigor.
É de se ter em vista que, em muitos aspectos, a Lei de Anistia de 1979 teve o
significado de um reencontro. A anistia constituiu-se num momento marcado pela
alegria da conquista de uma vitória, que, embora parcial, abria possibilidades,
projetando para o futuro os investimentos pessoais e políticos dos sobreviventes, mas
representou também a denegação da tortura e o que ocorrera aos mortos e desaparecidos
políticos, dando início à consolidação de “memórias e versões da conciliação”, que têm
suplantado tantas outras.
A política de reparação do período democrático não foi acompanhada da garantia
do direito à verdade e de acesso à justiça. A demanda por “Verdade e Justiça” ficou
marginalizada, circunscrita às organizações de familiares e sobreviventes, a setores do
movimento de direitos humanos e parcelas minoritárias da sociedade. A despeito dos
esforços empenhados pela CNV e por alguns membros do MPF, pouco se avançou na
recuperação factual ou no acesso à justiça. Não obstante, familiares e sobreviventes
tornaram-se os herdeiros e agentes da memória desse período, provocando o debate e a
participação política. Eles continuam a influir e mudar o sentido e o conteúdo da
“história oficial”, tornando públicos e legítimos os relatos silenciados, criando rituais,
comemorações e marcas simbólicas de reconhecimento e pertencimento.
Cabe ressaltar que, se inicialmente, sobreviventes e remanescentes das esquerdas
entenderam que essa herança tinha relevância e representava um capital político
importante, a análise das resoluções do PT indica o distanciamento do partido em
relação às pendências do passado ditatorial. Essa temática aparece com destaque nos
documentos do PT até 19944.
Nesse sentido, não deve ser surpresa o fato de que, até o momento, as principais
determinações da condenação do Estado brasileiro na OEA, relativa à Guerrilha do
Araguaia, não tenham sido cumpridas. Ou que os governos petistas não tenham
4
Em 1994, o PT passou a defender a abertura dos arquivos policiais e militares para esclarecer os casos
de “desaparecidos” e assassinatos de opositores da ditadura. O partido defendia ainda que a “[…]
Constituição de 1988 manteve parte do entulho autoritário, distorções no sistema de representação, a
tutela militar sobre o Estado, ausência de controle sobre o Judiciário.”
5
5
Cf. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 153, apresentada ao STF pelo
Conselho Federal da OAB em 2008.