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A exceção e a regra:

Bolsonaro e o legado da ditadura

O pedido de impeachment, a tortura e a herança autoritária no Brasil em


perspectiva

Texto publicado no Painel Acadëmico


São Paulo - 25/07/2016 - 16h27

Janaína de Almeida Teles1

No Brasil, desde o fim dos governos militares, tratava-se de (re)construir a


democracia. Muitos diziam que a defesa dos direitos humanos deveria se voltar para a
maioria esquecida da população, que sofre a tortura do cotidiano das delegacias de
polícia. Não por acaso, desde então, os familiares de mortos e desaparecidos políticos
denunciam a “tortura institucionalizada” como o pior legado da ditadura. De lá para cá,
algumas questões permanencem martelando corações e mentes: como enfrentar a
violência estatal de hoje sem falar da tortura disseminada do passado recente? A
impunidade dos crimes do passado não incentiva a tortura no presente? A ditadura
brasileira transcorreu sem grande violência, esta existiu por meio de “excessos” dos
considerados “duros”, tal como muitos livros didáticos ainda explicam a história
recente?
Essas perguntas retornam, com força, ao centro da cena política. Na atualidade,
um número considerável de pessoas demonstra simpatia pela ditadura, pois alguns dos
que saíram às ruas pedindo o impeachment de Dilma pediam também a volta dos
militares. O ápice da apologia do autoritarismo e da tortura ocorreu quando do discurso
do deputado Jair Bolsonaro (PSC/RJ) na sessão que aprovou a abertura do processo de
impeachment, na Câmara dos Deputados. O parlamentar, ao votar a favor do
impedimento, após parabenizar o presidente da sessão, Eduardo Cunha, afirmou:

“Perderam em 64, perderam agora em 2016. Pela família e pela inocência das crianças
em sala de aula, que o PT nunca teve. Contra o comunismo, pela nossa liberdade, contra
o Foro de São Paulo. Pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor
de Dilma Rousseff. Pelo Exército de Caxias, pelas nossas Forças Armadas, pelo Brasil
acima de tudo e por Deus acima de todos, meu voto é sim.”

1
Historiadora e pesquisadora do Programa de Pós-Doutorado em História da Universidade de São Paulo.
Co-autora da ação judicial que declarou torturador o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra.
2

Ustra foi comandante do famigerado DOI-Codi de São Paulo, entre 1970 e 1974.
Ao prestar homenagem ao coronel, declarado torturador pela justiça, pouco tempo antes,
Bolsonaro realizou um gesto emblemático, que ganhou repercussão internacional. E que
permite questionar, novamente, como a sociedade brasileira tem lidado com o legado da
ditadura, colocando em perspectiva as relações existentes entre o pedido de
impeachment, a tortura e a herança autoritária no Brasil.

A transição pactuada e a tortura


A mobilização popular de protesto ao final da ditadura arregimentava-se em
torno do repúdio às violações dos direitos humanos, bem como à sua política
econômica. Predominaram, contudo, a “conciliação pelo alto” e a transição pactuada.
Não obstante, os ecos traumáticos da ditadura tiveram um papel crucial no desenho
institucional da transição democrática e na avaliação do legado autoritário. A defesa dos
direitos humanos se converteu num dos eixos mais importantes do debate político e das
disputas entre estratégias diversas.
Nesse contexto, os familiares de mortos e desaparecidos políticos e os Grupos
Tortura Nunca Mais erigiram-se ao papel de atores políticos e de gestores de memória.
Os militares e as direitas mantiveram o papel de protagonistas, assegurando a
impunidade e a manutenção de dispositivos da legalidade de exceção, ao passo que, em
grande medida, os partidos políticos de esquerda (tradicionais e novos), adotaram
posturas ambíguas sobre a defesa dos direitos humanos.
No intervalo entre a publicação do Brasil: Nunca Mais (1985) e a abertura da
Vala de Perus (1990) – os dois momentos “inaugurais” da memória da ditadura –
ocorreu o Congresso Constituinte e a aprovação da Carta Magna de 1988. A
Constituição “cidadã”, como foi chamada na época, incluiu uma série de direitos
progressistas em diversas áreas, ao mesmo tempo em que manteve elementos
autoritários, sobretudo no que diz respeito à relação entre o poder político e as Forças
Armadas. A tortura foi abordada, mas sem enfrentar a herança autoritária da ditadura.
No início dos trabalhos do Congresso Constituinte, em 1986, os familiares
lançaram uma campanha solicitando a inserção de parágrafos na Carta Magna referentes
à tortura e ao chamado “entulho autoritário”. De acordo com a proposta de redação, a
Constituição deveria afirmar que:
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“Par.2º. – Serão afastados dos cargos públicos, todos os civis e militares envolvidos com
a prática de tortura, assassinato e desaparecimento de presos políticos.
Par.3º. – Serão extintos todos os organismos de repressão política.
I – [Que] Seus espaços físicos e arquivos secretos sejam abertos ao público;
Par.4º. – [Que] Sejam extintos também toda e qualquer estrutura de espionagem voltada
contra a organização democrática dirigida pelo SNI – Serviço Nacional de Informações
ou outros.
Par.5º. – [Que] Seja extinta a Lei de Segurança Nacional2”

A proposta não foi aceita e a lei sobre a tortura foi regulamentada apenas em
1997, sem que nenhum dispositivo ou medida contemplasse a punição dos torturadores
do período ditatorial.

A exceção e a regra: a tortura e a repressão no cotidiano


Iniciados os trabalhos da Constituinte, a Comissão de Organização Eleitoral
Partidária e Garantia das Instituições (responsável pela nova estrutura política, pelo
papel dos militares e das instituições de segurança pública) foi presidida pelo coronel
Jarbas Passarinho, ex-ministro dos governos dos generais Geisel, Médici e Figueiredo e
signatário do AI-53. O resultado foi o controle do Exército sobre as forças de segurança
pública e a tutela das Forças Armadas sobre o poder político legitimamente instituído.
Na Constituição, o Título V trata “Da defesa do Estado e das Instituições”, sendo
que o artigo 142 versa sobre a ingerência militar nos assuntos civis e no poder político,
no qual se pode ler: “As Forças Armadas destinam-se à defesa da pátria, à garantia dos
poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”. Num
Estado de Direito, os militares não podem se submeter aos poderes constitucionais
(Executivo, Legislativo e Judiciário) e, ao mesmo tempo, garanti-los. Ao instituir as
Forças Armadas como garantes da lei e da ordem, acaba-se por estabelecê-las como um
dos poderes políticos da sociedade.
Dessde modo, as Forças Armadas acabam por protagonizar a manutenção da
segurança interna e não a defesa das fronteiras, introduzindo medidas de exceção no
cotidiano da sociedade. Criando precedentes para a utilização das Forças Armadas na
repressão a movimentos sociais… a exceção vai tornando-se regra, conforme se pode
observar desde a violenta repressão aos protestos contra a Copa do Mundo. Isso vem

2
Cf. texto que incluiu a proposta, ver PATRIOTA, Gonzaga. “Proposta à Assembléia Nacional
Constituinte”, Câmara dos Deputados, Sala de Sessões, 27/04/87.
3
Passarinho escreveu em 2006 que os militares não pediriam perdão, pois não se arrependeram do que
fizeram durante a ditadura. Cf. PASSARINHO, Jarbas. “A tortura e o terrorismo”. Folha de S.Paulo,
28/11/06, p.3.
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ocorrendo no Brasil, tal como Walter Benjamin anunciou na tese no. 8 de seu fomoso
texto intitulado “Sobre o conceito de história”, de 1940.
Nesse sentido, não espanta que, ainda hoje, a Lei de Segurança Nacional e as
Polícias Militares – uma criação da ditadura –, bem como o decreto, estipulando que os
serviços reservados das PMs façam parte do sistema de informação do Exército,
continuem em vigor.
É de se ter em vista que, em muitos aspectos, a Lei de Anistia de 1979 teve o
significado de um reencontro. A anistia constituiu-se num momento marcado pela
alegria da conquista de uma vitória, que, embora parcial, abria possibilidades,
projetando para o futuro os investimentos pessoais e políticos dos sobreviventes, mas
representou também a denegação da tortura e o que ocorrera aos mortos e desaparecidos
políticos, dando início à consolidação de “memórias e versões da conciliação”, que têm
suplantado tantas outras.
A política de reparação do período democrático não foi acompanhada da garantia
do direito à verdade e de acesso à justiça. A demanda por “Verdade e Justiça” ficou
marginalizada, circunscrita às organizações de familiares e sobreviventes, a setores do
movimento de direitos humanos e parcelas minoritárias da sociedade. A despeito dos
esforços empenhados pela CNV e por alguns membros do MPF, pouco se avançou na
recuperação factual ou no acesso à justiça. Não obstante, familiares e sobreviventes
tornaram-se os herdeiros e agentes da memória desse período, provocando o debate e a
participação política. Eles continuam a influir e mudar o sentido e o conteúdo da
“história oficial”, tornando públicos e legítimos os relatos silenciados, criando rituais,
comemorações e marcas simbólicas de reconhecimento e pertencimento.
Cabe ressaltar que, se inicialmente, sobreviventes e remanescentes das esquerdas
entenderam que essa herança tinha relevância e representava um capital político
importante, a análise das resoluções do PT indica o distanciamento do partido em
relação às pendências do passado ditatorial. Essa temática aparece com destaque nos
documentos do PT até 19944.
Nesse sentido, não deve ser surpresa o fato de que, até o momento, as principais
determinações da condenação do Estado brasileiro na OEA, relativa à Guerrilha do
Araguaia, não tenham sido cumpridas. Ou que os governos petistas não tenham

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Em 1994, o PT passou a defender a abertura dos arquivos policiais e militares para esclarecer os casos
de “desaparecidos” e assassinatos de opositores da ditadura. O partido defendia ainda que a “[…]
Constituição de 1988 manteve parte do entulho autoritário, distorções no sistema de representação, a
tutela militar sobre o Estado, ausência de controle sobre o Judiciário.”
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conseguido romper com os limites jurídicos e políticos impostos pela transição


pactuada, não conseguindo mudar as normas e os marcos interpretativos herdados do
período, conforme a decisão do STF, realizada em abril de 2010, confirmando a
interpretação de que a anistia de 1979 foi “recíproca, dada a importância de não romper
o suposto „acordo histórico‟”, que permitiu a “transição pacífica e harmônica” no país5.
Sabe-se, conforme testemunho do jurista Fábio K. Comparato, que no dia do
julgamento da ADPF no. 153, em 2010, um dos ministros do STF o chamou de lado
para dizer que, na véspera, todos os magistrados haviam jantado, com o então presidente
Lula e uma autoridade militar, e foram pressionados para votar contra a ação da OAB,
cuja interpretação da Lei de Anistia considera, à luz da Constituição de 1988, que os
torturadores da ditadura não foram anistiados.
O discurso de Bolsonaro e a demanda pela volta dos militares nos ensinam, entre
outras coisas, que a estratégia política de não priorizar a defesa dos direitos humanos em
detrimento de “acordos” pretéritos fracassou. E, também, que a reconstrução da
democracia brasileira passa, necessariamente, pelo enfrentamento direto desse passivo
que a ditadura militar nos legou.

5
Cf. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 153, apresentada ao STF pelo
Conselho Federal da OAB em 2008.

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