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Introdução
A história social no Brasil, referente ao período escravista, buscou entender a formação
da hierarquia e a diferenciação social dentro das redes de relações sociais, tanto vertical
quanto horizontalmente. Para se compreender como a hierarquia se formou e se manteve
naturalizada na sociedade brasileira, torna-se necessário analisar a produção dos estigmas
da escravidão, que era a base da estratificação social.
A categoria escrava sempre foi subjugada pelo sistema escravista, o qual procurou
estigmatizar não somente o escravo, como também o negro livre e as pessoas com as
quais se relacionavam. No entanto os cativos desenvolveram formas de transpor as
barreiras impostas e conquistar direitos e espaços sociais. Nesse contexto as relações
sociais se mostraram bastante relevante no que concerne ao escravo enquanto indivíduo,
construindo sua realidade e atuando historicamente dentro dos espaços possíveis.
O presente artigo centrou-se numa exposição e discussão historiográfica sobre as
abordagens acerca da figura do escravo. Este enquanto ator social que agia e se manifestava
dentro dos espaços conquistados ou concedidos na ordem escravista. As ações dos
escravos foram analisadas dentro de contextos de redes de relações sociais. O contexto
social da escravidão condizia ainda com as relações de poder existentes entre os extratos
sociais, um poder que se mostrou instável, pois convivia com os conflitos e tensões que
lhe eram inerentes.
Dentro das relações sociais, os conflitos muitas vezes ganhavam forma de atos criminosos,
que se multiplicaram principalmente do decorrer do século XIX. Muitos foram os
historiadores que utilizaram como fontes os processos criminais para reconstituir as
relações sociais do período escravista. Tais fontes trazem os depoimentos dos escravos,
seja como réu, vítima ou informante.
1 CARDOSO, Ciro e VAINFAS, Ronaldo. Domínios da História. Rio de Janeiro: Campus, 1997.p. 52.
2 Ibid. p.54.
Desta forma, a história social pôde formular novos problemas, a partir de novas fontes e
com uma metodologia mais apurada. No Brasil, sua expansão se fez de formas variadas,
mas sintonizada com as discussões a nível internacional. A Escola Sociológica Paulista foi
pioneira nos estudos das questões sociais, com temas voltados para o negro, a escravidão,
movimento operário e o mundo do trabalho.
Através dos estudos sociológicos, a escravidão tornou-se um dos temas mais trabalhados
pela história social no Brasil, acompanhando as novas abordagens e a evolução pela
qual passou. Temas como a família escrava, demografia, redes de compadrio e relações
sociais foram estudados. O que só foi possível com a reformulação no que tange ao
papel do escravo na história. O escravo deixou de ser considerado passivo ou uma massa
homogênea, e passou a ser visto pela historiografia como um ator social, capaz de gerir
mudanças, de adaptar-se ao sistema e transformar a realidade em que vivia.
A História Social da Escravidão foi bastante influenciada pela produção norte-americana
e inglesa, com destaque para E. P. Thompsom. Sob sua influência, os historiadores da
escravidão buscaram resgatar a luta e a resistência dos cativos ao sistema escravista. No
entanto tiveram de ver o cativo como sujeito histórico, realizando uma releitura das fontes
oficiais e incorporando novos documentos e metodologias3.
Segundo os diversos autores que buscaram entender a formação da sociedade escravista
brasileira, como Maria H. Machado (1987), Sidney Chalhoub (1990), Eione S. Guimarães
(2006), Hebe M. Castro (1995) entre outros, predominaram as relações coercitivas entre
senhores e escravos e o conflito esteve presente entre os diversos segmentos sociais,
explodindo, em determinadas circunstâncias em reações violentas. Contudo, ao lado
dos conflitos inerentes ao sistema escravista, transcorriam acordos e negociações que
equilibravam a sociedade, ao mesmo tempo amenizavam as tensões.
A sociedade brasileira, tanto no período imperial quanto no colonial, apresentava uma
hierarquia naturalizada dentro dos seguimentos sociais, as relações sociais se davam
tanto horizontal como verticalmente. Senhores, trabalhadores livres, sitiantes e cativos
conviviam e estabeleciam relações das mais diversas. Na segunda metade do século XIX,
a proximidade de homens livres e escravos, tanto no meio urbano como no campo, muitas
vezes trabalhando lado a lado, era comum 4. Esta proximidade entre livres e cativos tinha
uma dupla função, reforçava a hierarquia, pois os escravos se reconheciam como tal
dentro destas socializações, como também teciam redes de solidariedade em caso de fuga
e ajuda em momentos de tensão.
Maria H. Machado estudou as relações conflituosas da sociedade escravista brasileira,
destacou que
... Sendo uma sociedade desigual na qual uma camada detém o poder de
expropriar não só os frutos do trabalho, mas também a pessoa do próprio
3 GUIMARÃES, Elione S. Violência entre parceiros de cativeiro: Juiz de Fora, segunda metade do século XIX. São
Paulo: Fapeb, Annablume, 2006.p.31,35.
4 CASTRO, Hebe Maria Mattos de. Das cores do silencio: os significados da liberdade no sudeste- Brasil sec. XIX.
Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995.p.49.
De acordo com tais reflexões, pode-se considerar que a sociedade escravista produziu
uma ampla rede de controle social, onde não apenas a força, mas a existência de um
censo comum capaz de gerir mecanismos de dominação diversos. Em todas as instancias
de poder estava presente a rede de controle social, seja na religião, política, no sistema
jurídico e na economia, o que tornou o sistema funcional e legitimo.
As demonstrações de força, todo o aparato jurídico e suas argumentações, os sermões
que pediam resignação, eram mecanismos através dos quais se assentava a estrutura da
sobrevivência cotidiana do sistema, direcionavam-se aos escravos e tinham o objetivo de
mantê-los em seu lugar na hierarquia. Assim, pode-se dizer que para a sociedade da época
o escravo era um agente social, cuja prova era a necessidade de produzir mecanismos de
acomodação para suas relações5.
O escravo vivia em sociedade como qualquer outro indivíduo social, dentro de uma rede
de relações sociais, no qual agia dentro de suas possibilidades e obrigações. O autor
Norbert Elias chama a atenção para a relação do indivíduo e a sociedade, levando em
consideração as relações e as funções desempenhadas6. As redes de relações sociais
nas quais os escravos atuavam, principalmente entre eles, não eram hierarquizadas no
que concerne à posição social, mas sim com situações de vivência cotidiana na qual as
pessoas se relacionavam independente da condição. As relações e as funções de cada
um compunham o universo social em que os escravos viviam ao mesmo tempo em que
era esse meio social que formava o individuo escravo. Uma relação compreendida como
dialética.
Portanto, concordando com a argumentação de Norbert Elias7, a relação entre o indivíduo e
a sociedade, a qual só pode ser compreendida a partir das relações e funções, constantemente
é permeada por tomadas de decisão onde se tem de fazer escolhas dentro de um espaço
possível. No entanto, as escolhas dependem das posições sociais ocupadas pelo indivíduo
nas redes de relações humanas, o que pode perecer a sua verdadeira natureza. Segundo o
autor, os indivíduos sentem-se incapazes de se transformar no que realmente eles queriam
5 MACHADO, Maria H. Crime e escravidão: trabalho, luta e resistência nas lavouras paulistas-1830-1888.São
Paulo: Brasiliense,1987.p.18.
6 ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivíduos. Org. Michael Schroter, Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar,1994.p.25.
7 Ibid.p.33.
vir a ser. Todas as pressões, restrições e conflitos sofridos pelos escravos, produziram
atores sociais que agiram dentro de um espaço de sujeição, mas que também lhe forneceu
as bases para lutar e negociar através das relações sociais estabelecidas.
8 MACHADO, Cacilda. A trama das vontades: negros, pardo e brancos na produção da hierarquia social do Brasil
escravista. Rio de Janeiro: Apicuri,2008.p.18.
9 BARTH, Fredrik. O guru, o iniciador e outras variações antropológicas. Rio de Janeiro:Contracapa,
2000.p.128.6 Idem 1, p. 43
10 BARROS, José D’Assunção. A construção social da cor: diferença e desigualdade na formação da sociedade
brasileira. Petrópolis: Vozes, 2009. P.21.
11 Ibid. p.22.
12 Ibid.p.24-25.
13 Ibid.p.27.
14 Ibid.p.40.
15 Ibid.p.44-45
16 ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia
das Letras,2000.
17 BARROS, op. cit. p. 43.
18 Ibid. p. 31-34.
19 LARA, Silvia Hunold. Fragmentos setecentistas: escravidão, cultura e poder na América portuguesa. Tese de livre
docência, Unicamp, Campinas, 2004, p.17-24.
20 MACHADO, Cacilda. op. cit. p. 19.
onde os atores agiam e interagiam entre si, respeitando a diferenciação imposta, sofrendo
com a desigualdade resultante.
De acordo com a proposta de Hebe M. Castro, as relações sociais entre escravos e livres
eram importantes para amenizar a violência e, para, além disso, estavam inseridas no
mesmo código cultural e social, pois
O universo de relações sociais, no qual o escravo estava inserido, era muito complexo,
pois era um espaço social no qual conviviam cativos e livres, assim como o próprio
senhor. Pessoas de diferentes estratos, proprietários de terras, viajantes, sitiantes,
vendeiros ou camponeses. Concordando com os autores Douglas Libby e Eduardo França
Paiva21, os escravos tinham redes de relações sociais dentro e fora das senzalas, com
familiares, agregados, vizinhos, famílias de outros cativos a até comerciantes com os quais
negociavam. Dentro dessa rede buscava-se ajuda em momentos de crise e dificuldade,
favores, dinheiro, obrigações de compadrio ou apenas por laços de amizade.
Segundo Leonam Maxney Carvalho, os escravos viviam num contexto cotidiano, não
somente de trabalho, mas também de convívio social entre a sociedade, que em muito se
assemelhava da realidade dos indivíduos livres. Valores de amizade, compromissos de
trabalho e com certas hierarquias funcionais, posicionamentos com respeito à formação e
manutenção da família e de todos estes valores. Enfim, o universo cultural na sociedade
escravista brasileira, no século XIX, era mestiço, social e culturalmente, possibilitando a
identificação de valores comuns a todas as categorias sociais, de livres a escravos22.
21 LIBBY, Douglas Cole e PAIVA, Eduardo França. A Escravidão no Brasil: relações Sociais, acordos e conflitos. 2
ed. São Paulo: Moderna, 2005. p. 11. 14
22 CARVALHO, Leonan Maxney. Africanos e crioulos no banc dos réus: justiça, sociedade e escravidão em Oliveira,
MG,1840-1888. FAFICH/UFMG. Dissertação de mestrado, 2009.
se com um equilíbrio instável, com tensões e conflitos que lhe eram inerentes28.
Mesmo com todo o estigma da escravidão o escravo soube adaptar-se e criar laços, fossem
eles sociais ou de parentesco. A formação da família escrava, tema muito pesquisado
pela história social da família, foi também um quesito importante para a ampliação das
redes sociais. Historiadores como Florentino e Góes (1997), Slenes (1999), Brugger
(2007) ressaltam que a família escrava foi realidade frequente no meio social colonial
e provincial brasileiro. Além de muitas outras conquistas, o matrimônio e a reprodução
familiar em cativeiro aconteceu, mesmo que sob o contexto de poucas opções devido à
grande desproporção entre os sexos ou sob violente repressão senhorial. Os obstáculos
impostos à formação de famílias foram muitos, mas os cativos lutaram de varias maneiras
para manterem seus laços unidos.
Relações conflituosas
As regras de dominação e a reprodução da ordem escravista, principalmente na segunda
metade do século XIX, encontrou muitos obstáculos, já que se intensificaram os conflitos
entre proprietários e escravos. Como demonstram as pesquisas sobre o sudeste brasileiro,
os últimos anos do escravismo caracterizado como um período de acirramento das tensões
entre senhores e escravos. Constatando um aumento do número de “fugas em massa
de escravos, destruição de propriedades agrícolas, ações cíveis movidas por mancípios
reivindicando liberdade e um crescimento exacerbado da criminalidade do escravo,
principalmente contra senhores e feitores” (Guimarães, 2006).
Os processos criminais se apresentam como importante fonte para se analisar os conflitos
da sociedade escravista. Nessas fontes é possível chegar ao depoimento do escravo, seja
como vítima, réu ou informante, através dos quais se chega à causa do ato criminoso.
Estudos que apresentaram como foco a criminalidade escrava demonstraram que a
análise dos autos criminais relativos aos ataques, contra a figura senhorial e os feitores ou
capatazes, sugeriu que a problemática da criminalidade repousa num conflito muito mais
complexo.
A utilização das fontes criminais na elaboração de uma história social requer uma
reflexão sobre o crime, enquanto evento histórico e realidade. De acordo com Maria H.
Machado, o crime tem estado presente nas produções da história social há algum tempo,
principalmente na Europa, interessada na reconstrução dos estágios da implantação das
fabricas e dos signos sociais.Também na Inglaterra o crime e outras fontes do aparelho
judiciário forma utilizadas como objeto de estudo29.
Maria Helena Machado ressalta que ao considerar o crime um produto da vida cotidiana de
determinado grupo historicamente localizado, o enfoque proposto pela corrente da história
social do crime afasta-se da tentativa de cotejar, através da análise da criminalidade, um
padrão psicológico individual e grupal. Para tais concepções, o conceito de crime social
28 Ibid. p. 23.
29 MACHADO. op. cit. 22.
30 Ibid. p. 24-25.
31 GUIMARÃES. op. cit. p.85.
32 CASTRO, op. cit. p. 63.
33 LARA, Silvia Hunold. Campos da Violência: escravos e senhores na capitania do Rio de Janeiro- 1750-1808. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1988. P165,170,273.
Conclusão
As redes de relações sociais, nas quais os escravos estavam inseridos, compunham um
universo cultural valorativo comum a toda sociedade. Um amplo conjunto de diferentes
e diferenças, em movimento constante, misturando-se, mas também se chocando,
antagonizando-se em ritmos que as vezes são lentos e outras vezes são velozes, de
maneira harmoniosa ou conflituosa, dependendo de épocas e regiões dos atores e de
seus objetivos. Podem-se notar fusões, superposições e recrudescimento de diferenças,
tudo isso se processa numa espécie de via dupla. Isto é, esse processo não corre em um
único sentido, as é constituído a partir de intervenções dos vários grupos sociais que se
influenciam continuamente, mesmo que alguns entre eles imponham-se sobre os outros a
partir de seu maior poderio34.
A sociedade escravista brasileira apresentava uma notória hierarquia social naturalizada
entre os setores, o que não impediu a mobilidade social do escravo dentro das redes
de relações. Várias foram as maneiras que os cativos buscaram para alcançar o mundo
dos livres, mas os estigmas da escravidão nunca deixaram de existir. De certa forma,
persistiram durante a ordem escravista e se estenderam para a república, sempre com
desconfiança sobre tudo que emanava do negro.
Ao longo do período escravista, os escravos, africanos de diferentes etnias, jogados todos
na mesma senzala, buscaram novos padrões de sociabilidade e novas formas de expressão
cultural. O resultado foi a constituição de uma nova etnia transatlântica, uma configuração
de resistência, interação ou de acomodação cultural35. Esse processo pode ser visto como
forma adaptação ao sistema, para que pudessem transmitir aos descendentes um pouco da
cultura africana, no entanto não tinha a intenção de afetar o sistema que os oprimia.
Referências
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Paulo: Companhia das Letras, 2000.
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