Como é viver nas grandes cidades contemporâneas? De que forma as pessoas se
apropriam desses espaços citadinos? Quais os diferentes olhares e práticas em relação aos espaços que fogem da métrica da prancheta? Quais mapas carregamos da nossa cidade? É possível uma cartografia afetiva, simbólica, imaginária? Existe poesia no espaço? Sendo assim: o que dá sentido a uma rua? Seu nome? O cão que fuça o lixo? A memória da dona de casa que varre a calçada? O carteiro? O skatista? O corretor de imóveis? O andarilho? Qual a validade dessas apropriações para o estudo das cidades? Tais perguntas vêm no sentido de lançar um olhar para o espaço urbano nesse entrecruzamento de tempos que dizem respeito à história coletiva, social e individual. É como se fosse uma “guilda” em que se atravessam a memória e os esquecimentos, onde as transações econômicas, os símbolos, os ícones, as sobreposições de passados (e suas rugosidades) interagem com o presente, ressignificando, atualizando e refazendo lugares, segregando e criando outros, num hibridismo constante. Essas intersecções e cruzamentos no estudo das cidades fizeram com que elas ganhassem um novo olhar. A necessidade do enfoque multidisciplinar parece hoje crucial para abordagem do meio (a sociedade e seus espaços) que outrora possuía certa estabilidade e vem sendo “desmanchado” pela mobilidade, pela fluidez, pela velocidade das informações. Trata- se de operar com ferramentas flexíveis e atualizadas às novas necessidades, capazes não só de analisar o “desenvolvimento” das cidades, mas também contra-efetuar, por meio de práticas coletivas, esse “desenvolvimento” patrocinado, sobretudo, pelo capitalismo global, que na sua origem e fundamento só se mantém pela constante metamorfose. É importante observar que foi no século XX que o capitalismo sofreu umas das suas maiores mudanças. Amparadas pela política mundial, os estados nacionais – aliados às grandes corporações e a todo o seu investimento ligado ao meio técnico- científico – multiplicaram seu poder e sua abrangência, de modo nunca antes visto. Características como a redução do papel político do Estado (imposto ou negociado) e a debilidade de suas leis fizeram com que as grandes corporações invadissem fronteiras e assumissem a responsabilidade para agenciar quais seriam as melhores cidades para se acumular capitais. Sendo assim a função política (no sentido grego da palavra) dos governantes deu lugar à função empreendedora, no intuito de tornar sua cidade mais atrativa, como uma empresa, transformando muitas delas em cidades-produto. Viver: A poesia que extrapola o mapa e lhe dá significado
Dentro do exposto acima algumas inquietações nos perseguem:
Qual o papel das cidades na vida de cada um de nós, cidadãos? A simples materialidade e seus suportes funcionais para ir e vir? A rotina cotidiana e suas simulações inquestionáveis? As ações e apropriações automáticas dos espaços? Dessa forma, a cidade é o cenário para os cadáveres adiados que somos? E o devaneio? O sonho? A poesia? Há condições de aliar lucro e poesia nas cidades? Quais as preocupações do mercado mundial com essas questões para os habitantes de uma determinada vila, bairro, cidadezinha? E os lugares que não apresentam em seus espaços suporte materiais (equipamento urbanos, fibra óptica, highways) para o dinamismo capitalista? As cidades que não apresentam condições de serem atraentes para o capital estão fatalmente destinadas a serem ilhas, bolsões de pobreza? (Pobreza não apenas material, fique claro!) Essas cidades sem atrativo têm seus dias contados? Ajustar-se-ão ao modelo unilateral? Sabemos (e isso que nos assusta) que essas mudanças se dão de maneira vertical, ou seja, correspondem diretamente aos anseios do mercado econômico completamente desprovidos da preocupação com a horizontalidade, com a gente do lugar. Mais importante é ter uma hidrelétrica aqui! É melhor construir torres enormes ali, nem que seja preciso mudar a lei de zoneamento! Não merecem atenção as apropriações simbólico-afetivas de cada um de nós, nossas vivências prosaicas que extrapolam o mapa calculado do planejador urbano. “A dor da gente não sai no jornal!”, estamos sempre cantarolando. Talvez seja o caso de se nos resignarmos e continuarmos friamente trabalhando! Ou podemos “perder tempo” dando atenção à vida que vai comprar o leite, com a mãe que procura a creche mais próxima para deixar a criança e seguir para o trabalho, com o pedreiro que assobiando apruma os tijolos pré-moldados, pendurado no 9º andar da torre em construção; com meninos (sacis das metrópoles) e seus cachimbos artesanais que – fabricados sob angústia da próxima pedra e mutilados desde o ventre – dormem espremidos em bueiros, num misto de urina e frascos de iogurte. Dando atenção a esse povo que, afinal, somos nós. Que lota botecos, que tem um santo protetor, que assiste ao futebol, que ocupa e se reapropria dos espaços, dele extraindo sempre algum sorriso. Seja no deck da Av. Anchieta ou na porta do Sesc, na pista de skate do pavilhão. Seja no verão ocupando as calçadas com suas cadeiras de praia. Seja nas rodas de capoeira, no jogo ilegal das tampinhas das feiras clandestinas, nas bancas de DVDs falsificados, nas possessões nos terreiros de umbanda... Embora pareçamos estar passivos frente à cidade e seus concretos, suas câmeras, suas sacadas gourmets, seus vidros blindados... Não estamos. Procuramos, na distração do poder, uma fagulha de exuberância, golpeando sempre as imposições. Reinterpretamos a realidade à revelia, ocupando espaços, burlando normas e modelos. Mesmo que sem perceber, resistimos. Foi com a convicção de que essas resistências que acontecem até surdamente podem ser potencializadas se olharmos para elas de forma coletiva que decidimos “perder tempo” com as ninharias humanas ilhadas nos cotidianos individuais e com espaços imaginários que se rebatem simbolicamente sobre o espaço urbano real, podendo expandir nossa relação com ele. Sendo assim, o Projeto Arquipélago trabalha com a ideia de valorizar cartografias afetivas – tanto de espaços reais quanto imaginários. Vamos apresentar um mapeamento inicial por meio de cartografias de espaços da cidade de São José dos Campos e de espaços imaginários. Além disso, convidamos a todos para colaborarem com suas cartografias afetivas, por mais simples ou “banal” que possa parecer. O objetivo é retratar a cidade de modo oblíquo, na contramão do tráfego, da exigência de produtividade a que estamos somos impostos. Arquipélagos aqui significa um conjunto de ilhas que habitam uma vizinhança simbólica, ainda que possam não estar topograficamente próximas umas das outras. Seja bem-vindo!
|ARQUIPÉLAGOS é uma plataforma virtual com foco em CARTOGRAFIAS
AFETIVAS, idealizada por Charles Lima e Marcus Groza, prevista para ser lançada em setembro. A partir do lançamento, estará aberta a todos que quiserem colaborar com suas próprias cartografias. |