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1992: a redescoberta

da Natureza
MILTON SANTOS

universidade escolhe, ela própria, os seus grandes momentos,

A sem sujeição aos relógios telúricos, nem aos cronômetros do


mercado ou do Estado. Este reencontro é um desses momentos,
destinado a celebrar a vontade comum da renovação e da continuidade.
E isso mesmo o que significa pertencer a uma geração e é essa a grande
distinção da universidade, pois ela reúne homens e mulheres de idades
diversas, todos dedicados a viver o seu tempo e a interpretá-lo.
Tenho a consciência desta oportunidade e da responsabilidade que
encerra. Esta é, sobretudo, uma ocasião de crítica e autocrítica. A auto-
crítica é — no caminho — a busca de revisão do caminho. A crítica é o
próprio caminho, uma visão, sempre a se renovar, do mundo, que es-
panta as imagens batidas e os conceitos surrados e propõe novas inter-
pretações, novos métodos, novos temas. Nesse sentido, todos estamos
chamados a filosofar e a filosofia não é mais um privilégio dos filósofos.
O tema " 1992: a redescoberta da Natureza" é um desses que a
atualidade nos impõe, mas deve ser abordado cautelosamente, já que
nesse assunto a força das imagens ameaça aposentar prematuramente os
conceitos. Por isso, cumpre, urgentemente, retomá-los e, eventualmente,
refazê-los. Nessa tarefa, não nos devemos deixar circunscrever pelos di-
tames de uma pesquisa automática, instrumentalizada, nem aceitar o
pré-requisito de nenhum enunciado. Somente a história nos instrui sobre
o significado das coisas. Mas é preciso sempre reconstruí-la, para incor-
porar novas realidades e novas idéias ou, em outras palavras, para levar-
mos em conta o tempo que passa e tudo muda.
E sempre perigoso buscar reduzir a história a um esquema. Mas
aqui a simplificação se impõe, com todos os seus riscos, para apontar o
início de um processo e o seu estágio atual.
Referimo-nos ao que podemos chamar de Sistemas da Natureza
sucessivos, onde esta é continente e conteúdo do homem, incluindo os
objetos, as ações, as crenças, os desejos, a realidade esmagadora e as
perspectivas.
Com a presença do homem sobre a Terra, a Natureza esta sempre
sendo redescoberta, desde o fim de sua historia natural e a criação da
natureza social, ao desencantamento do mundo, com a passagem de uma
ordem vital a uma ordem racional. Mas agora, quando o natural cede
lugar ao artefato e a racionalidade triunfante se revela através da Natu-
reza instrumentalizada, esta, portanto domesticada, nos é apresentada
como sobrenatural.
A questão que se colocam os filósofos é a de distinguir entre uma
Natureza mágica e uma Natureza racional. Em termos quantitativos ou
operacionais, a tarefa certamente é possível. Mas é talvez inútil buscar o
momento de uma transição. No fundo, o advento da ciência natural
(Capei, 1985, p. 19) ou o triunfo da ciência das máquinas não suprimem,
na visão da Natureza pelo homem, a mistura entre crenças, mitigadas ou
cegas, e esquemas lógicos de interpretação. A relação entre teologia e
ciência, marcante na Idade Média, ganha novos contornos. " A magia, ' o
poder de fabulação', como diz Bergson, é uma necessidade psicológica,
tal corno a razão...". Os sistemas lógicos evoluem e mudam, os sistemas
de crenças religiosas são recriados paralelamente à evolução da materia-
lidade e das relações humanas e é sob essas leis que a Natureza vai se
transformando.

Da Natureza amiga à Natureza hostil


Em resumo, essa história pode, assim, ser escrita em seu momento
original e em sua resultante atual.
Ontem, o homem escolhia, em torno, naquele seu quinhão de Na-
tureza, o que lhe podia ser útil para a renovação de sua vida: espécies
animais e vegetais, pedras, árvores, florestas, rios, feições geológicas.
Esse pedaço de mundo é, da Natureza toda de que ele pode dispor,
seu subsistema útil, seu quadro vital. Então há descoordenação entre
grupos humanos dispersos, enquanto se reforça uma estreita cooperação
entre cada grupo e o seu meio: não importa que as trevas, o trovão, as
matas, as enchentes possam criar o medo: é o tempo do Homem amigo
e da natureza amiga. Assim como Michelet escreveu no Tableau de la
France (1833): "A natureza é atroz, o homem é atroz, mas parecem
entender-se".
A história do homem sobre a Terra é a história de uma rutura
progressiva entre o homem e o entorno. Esse processo se acelera quando,
praticamente ao mesmo tempo, o homem se descobre como indivíduo e
inicia a mecanização do Planeta, armando-se de novos instrumentos para
tentar dominá-lo. A Natureza artificializada marca uma grande mudança
na história humana da Natureza. Agora, com a tecnociência, alcançamos
o estágio supremo dessa evolução.
Enquanto esperamos o "dia eterno" com auroras boreais artificiais
em todas as latitudes, na previsão de J. Ellul (1954), já conhecemos a
criação humana de tempestades, cataclismos, tremores de terra, heca-
tombes, fantasticamente artificiais, fantasticamente incompreensíveis
(Ettore Sottsass, 1991, p. 40).
O homem se torna fator geológico, geomorfológico, climático e a
grande mudança vem do fato de que os cataclismos naturais são um
incidente, um momento, enquanto hoje a ação antrópica tem efeitos
continuados, e cumulativos, graças ao modelo de vida adotado pela hu-
manidade. Daí vêm os graves problemas de relacionamento entre a atual
civilização material e a Natureza. Assim, o problema do espaço humano
ganha, nos dias de hoje, uma dimensão que ele não havia obtido jamais
antes. Em todos os tempos, a problemática da base territorial da vida
humana sempre preocupou a sociedade. Mas nesta fase atual da história
tais preocupações redobraram, porque os problemas também se acumu-
laram.

No começo dos tempos históricos, cada grupo humano construía


seu espaço de vida com as técnicas que inventava para tirar do seu pedaço
de Natureza os elementos indispensáveis à sua própria sobrevivência.
Organizando a produção, organizava a vida social e organizava o espaço,
na medida de suas próprias forças, necessidades e desejos. A cada cons-
telação de recursos correspondia um modelo particular. Pouco a pouco
esse esquema se foi desfazendo: as necessidades de comércio entre cole-
tividades introduziam nexos novos e também novos desejos e necessi-
dades e a organização da sociedade e do espaço tinha de se fazer segundo
parâmetros estranhos às necessidades íntimas ao grupo.

Essa evolução culmina, na fase atual, onde a economia se tornou


mundializada, e todas às sociedades terminaram por adotar, de forma
mais ou menos total, de maneira mais ou menos explícita, um modelo
técnico único que se sobrepõe à multiplicidade de recursos naturais e
humanos (Santos, 1991).
É nessas condições que a mundialização do Planeta unifica a Na-
tureza. Suas diversas frações são postas ao alcance dos mais diversos
capitais, que as individualizam, hierarquizando-as segundo lógicas com
escalas diversas. A uma escala mundial corresponde uma lógica mundial
que, nesse nível, guia os investimentos, a circulação das riquezas, a distri-
buição das mercadorias. Cada lugar, porém, é ponto de encontro de
lógicas que trabalham em diferentes escalas, reveladoras de níveis diver-
sos, às vezes contrastantes, na busca da eficacia e do lucro, no uso das
tecnologias e do capital e do trabalho.
Se o modelo técnico se tornou uniforme e a força motora — a
mais-valia em nível mundial — é também única, os resultados são os
mais disparatados. É assim que se definem e redefinem os lugares: como
ponto de encontro de interesses longínquos e próximos, mundiais e lo-
cais, manifestados segundo uma gama de classificações que está sempre
se ampliando e mudando.
Sem o homem, isto é, antes da história, a Natureza era una. Con-
tinua a sê-lo, em si mesma, apesar das partições que o uso do Planeta
pelos homens lhe infligiu. Agora, porém, há uma enorme mudança.
Una, mas socialmente fragmentada, durante tantos séculos, a Natureza
é agora unificada pela história, em benefício de firmas, estados e classes
hegemônicas. Mas não é mais a Natureza amiga, e o Homem também
não é mais seu amigo.

A Natureza abstrata
Dentro do atual sistema da Natureza, o homem se afasta em defi-
nitivo da possibilidade de relações totalizantes com o seu próprio qui-
nhão do território. De que vale indagar qual a fração da Natureza que
cabe a cada indivíduo ou cada grupo, se o exercício da vida exige de todos
uma referência constante a um grande número de lugares? Ali mesmo,
onde moro, freqüentemente não sei onde estou. Minha consciência de-
pende de um fluxo multiforme de informações que me ultrapassam ou
não me atingem, de modo que me escapam as possibilidades hoje tão
numerosas e concretas de uso ou de ação. O que parece estar ao alcance
de minhas mãos é concreto, mas não para mim. O que me cabe são
apenas partes desconexas do todo, fatias opulentas ou migalhas. Como
me identifico, assim, com o meu entorno? Sem dúvida, pode-se imaginar
o indivíduo como um ser no mundo, mas pode-se pensar que há um
homem total em um mundo global?

Sem dúvida, o trabalho, entendido como sistema, é cada vez menos


local e é cada vez mais universal. Na medida, porém, em que a mais-valia
igualmente se torna mundial (essa lei do valor à escala universal que,
invisível, proíbe medidas) ocultam-se os parâmetros do meu próprio
valor que, assim, se reduz. Aqui nos referimos ao valor-trabalho aplicado
à produção mundializada, medido em termos de dinheiro.
Fomos rodeados, nestes últimos 40 anos, por mais objetos do que
nos precedentes 40 mil. Mas sabemos muito pouco sobre o que nos
cerca. A Natureza tecnicizada acaba por ser uma Natureza abstrata, já
que as técnicas, no dizer de G. Simondon (1958), insistem em imitá-la e
acabam conseguindo.
Os objetos que nos servem são, cada vez mais, objetos técnicos,
criados para atender a finalidades específicas. As ações que contêm são
aprisionadas por finalidades que, raramente, nos dizem respeito.
Vivemos em um mundo exigente de um discurso, necessário à in-
teligência das coisas e das ações. É um discurso dos objetos, indispen-
sável ao seu uso, e um discurso das ações, indispensável à sua legitima-
ção. Mas ambos esses discursos são, freqüentemente, tão artificiais como
as coisas que explicam e tão enviesados como as ações que ensejam.
Sem discurso, praticamente entendemos nada. Como a inovação é
permanente, todos os dias acordamos um pouco mais ignorantes e in-
defesos. A rainha Juliana, da Holanda, assistindo à demonstração de um
computador eletrônico em uma exposição em Amsterdam, exclamou:
"Não posso entender isso. Nem posso entender as pessoas que enten-
dem isso" (W. Buckinggam, 1961, p.27).
A técnica é a grande banalidade e o grande enigma, e é como enig-
ma que ela comanda nossa vida, nos impõe relações, modela nosso en-
torno, administra nossas relações com o entorno.

Se, ontem, o homem se comunicava com o seu pedaço da Natureza


praticamente sem mediação, hoje, a própria definição do que é esse en-
torno, próximo ou distante, o local ou o mundo, é cheia de mistérios.

Agora, que todas as condições de vida profundamente enraizadas


estão sendo destruídas (A. Wellmer, 1974), aumenta exponencialmente
a tensão entre a cultura objetiva e a cultura subjetiva e, do mesmo modo,
se multiplicam os equívocos de nossa percepção, de nossa definição e de
nossa relação com o meio.

Estaremos de volta ao mundo mágico, onde o fantasioso, o fantás-


tico, o fantasmagórico prometem tomar o lugar do que é lógico e o
engano pode se apresentar como o verdadeiro?

Diante de nós temos, hoje, possível (e freqüente), com a falsifica-


ção do evento, o triunfo da apresentação sobre a significação, ainda que
reclamando uma ancoragem. Na questão do meio ambiente, que revela
essa faceta da história contemporânea, essa ancoragem chama-se buraco
de ozônio, efeito-estufa, chuva ácida; e a ideologia se corporifica no
imenso território da Amazônia.

Num mundo assim feito, não há propriamente interlocutores,


porque só existe comunicação unilateral. Não há diálogo, porque as pa-
lavras nos são ditadas e as respostas previamente catalogadas. Trata-se de
uma fala funcional e o caráter hipnótico da comunicação é a contrapar-
tida do " estiolamento da linguagem pela perda progressiva da criativi-
dade" (E. Carneiro Leão, 1987, p. 20).
No dizer de Marcuse (1964, p. 95), essa linguagem "constante-
mente impõe imagens e contribui, de forma militante, contra o desen-
volvimento e a expressão de conceitos ". Já que " o conceito é absorvido
pela palavra", "espera-se da palavra que apenas responda à reação pu-
blicizada e estandardizada. A palavra torna-se um clichê e, como clichê,
governa o discurso ou o texto; a comunicação, desse modo, afasta o
desenvolvimento genuíno da significação" (p. 85).

A Natureza da mídia
A mediação interessada, tantas vezes interesseira, da mídia, con-
duz, não raro, à doutorização da linguagem, necessária para ampliar o
seu crédito, e à falsidade do discurso, destinado a ensombrecer o enten-
dimento. O discurso do meio ambiente é carregado dessas tintas, exa-
gerando certos aspectos em detrimento de outros, mas, sobretudo, mu-
tilando o conjunto.
O terrorismo da linguagem (H. Lefebvre, 1971, p. 56) leva a con-
traverdades mediáticas, conforme nos ensina B. Kayser (1992). Este
autor nos dá alguns exemplos, convidando-nos a duvidar do próprio
fundamento de certos discursos das mídias. Por exemplo, " Sobre o aque-
cimento da terra e o efeito-estufa. Pode-se estar certo de que, apesar do
contínuo crescimento do teor em CO2 da atmosfera desde os começos da
era industrial, o clima não conheceu aquecimento no século 20. As nor-
mais medidas entre 1951 e 1980, em relação às do período 1921-1950,
mostram, ao contrário, uma baixa (não significativa) de -0,3°. De qual-
quer modo, a evolução é muito lenta, e dezenas de anos são necessários
para que se registre uma mudança climática. O apocalipse anunciado —
fusão de glaciares, elevação do nível do mar, etc. — não é seguramente
para amanhã. Se é necessário lutar contra a poluição, a degradação do
meio ambiente, devemos fazê-lo com os olhos abertos, com base em
análises científicas e não nos limitando a gritar: ' está pegando fogo!' ".
Se antes a Natureza podia criar o medo, hoje é o medo que cria
uma Natureza mediática e falsa, uma parte da Natureza sendo apresen-
tada como se fosse o todo.
O que, em nosso tempo, seja talvez o traço mais dramático, é o
papel que passaram a obter, na vida quotidiana, o medo e a fantasia.
Sempre houve épocas de medo. Mas esta é uma época de medo perma-
nente e generalizado. A fantasia sempre povoou o espírito dos homens.
Mas agora, industrializada, ela invade todos os momentos e todos os
recantos da existência a serviço do mercado e do poder e constitui, jun-
tamente com o medo, um dado essencial de nosso modelo de vida.
O império universal do medo e o império universal da fantasia são
criações sobrepostas. Já Freud (1920) escrevia que "A criação do domí-
nio mental da fantasia tem reprodução na criação de ' reservas' e ' par-
ques naturais' em lugares onde as incursões da agricultura, do trânsito
ou da indústria ameaçam transformar... rapidamente a terra em alguma
coisa irreconhecível. A ' reserva' se destina a manter o velho estado de
coisas que foram lamentavelmente sacrificadas à necessidade em todos os
outros lugares; ali, tudo pode crescer e expandir-se à vontade, inclusive
o que é inútil e até o que é prejudicial. O domínio mental da fantasia é
também uma reserva assim recuperada das invasões do princípio da rea-
lidade" (Leo Marx, 1976, p. 12).
Quanto ao medo, lembra-nos Ramsey Clark que ele "já nos induz
a pensar mais na incolumidade do que na justiça" e Furio Colombo
(1973, p. 56) utiliza esse testemunho para explicar as violações da lei
cada vez mais freqüentes, no mundo, pelos próprios órgãos legais.
E a mídia o grande veículo desse processo ameaçador da integri-
dade dos homens. Virtualmente possível, pelo uso adequado de tantos e
tão sofisticados recursos técnicos, a percepção é mutilada, quando a mí-
dia julga necessário, através do sensacional e do medo, captar a atenção.
Muitos movimentos ecológicos, cevados pela mídia, destroem, mutilam
ou reprimem a Natureza...
Quando o meio ambiente, como Natureza-espetáculo, substitui a
Natureza histórica, lugar de trabalho de todos os homens, e quando a
Natureza cibernética ou sintética substitui a Natureza analítica do pas-
sado, o processo de ocultação do significado da história atinge o seu
auge. É, também, desse modo, que se estabelece uma dolorosa confusão
entre sistemas técnicos, Natureza, sociedade, cultura e moral.
Bradamos contra certos efeitos da exploração selvagem da Natu-
reza. Mas não falamos bastante da relação entre sua dominação tecnica-
mente fundada, as forças mundiais que insistem em manter o mesmo
modelo de vida e o fato já apontado, desde os anos 50, por G. Fried-
mann, de que a tecnicização está levando ao condicionamento anárquico
do homem moderno. A racionalização da existência, tão dependente das
relações atuais entre técnica e sociedade, é um dos seus pilares.
Ontem, a técnica era submetida. Hoje, conduzida pelos grandes
atores da economia e da política, é ela que submete. Onde está a Natu-
reza servil? Na verdade, é o homem que se torna escravizado, num mun-
do em que os dominadores não querem se dar conta de que suas ações
podem ter objetivos, mas não têm sentido. O imperativo da competitivi-
dade, uma carreira desatinada sem destino, é o apanágio dessa dissocia-
cão entre moralidade e ação que caracteriza a implantação em marcha da
chamada nova ordem mundial, onde os objetivos humanos e sociais ce-
dem a frente da cena, definitivamente, a preocupações secamente eco-
nômicas, com papel hoje onímodo da mercadoria, incluindo a merca-
doria política. Não só a Natureza é apresentada em frangalhos, mas tam-
bém a moral, e, na ausência de um sentido comum, já dizia o Marx da
Miséria da filosofia, " é fácil inventar causas místicas".
Não basta, porém, o criticismo, para exorcizar esses perigos que
nos rondam. Já em 1949, Georges Friedmann nos aconselhava a consi-
derar que esse meio técnico " é a realidade com a qual nos defrontamos"
e que, por isso, "é preciso estudá-la com todos os recursos do conheci-
mento e tentar dominá-la e humanizá-la".

A universidade e a ordem atual das coisas


Avulta, neste ponto, o papel da Universidade nessa busca do co-
nhecimento. Mas essa tarefa vem sendo ameaçada exatamente pelo pres-
tígio crescente do cientismo e pela importância que este vem ganhando
entre os que, atualmente, dirigem o ensino superior.
Num mundo em que o papel das tecnociências se torna avassa-
lador, um duplo movimento tende a se instalar. De um lado, as disci-
plinas incumbidas de encontrar soluções técnicas, as reclamadas soluções
práticas, recebem prestígio de empresários, políticos e administradores
e desse modo obtêm recursos abundantes para exercer seu trabalho.
Basta uma rápida visita às diferentes faculdades e institutos para cons-
tatar a disparidade dos meios (instalações, material, recursos humanos)
segundo a natureza mais ou menos mercantil e pragmática do labor de-
senvolvido. De outro, o prestígio gerado pelo processo de raciona-
lização perversa da universidade é o melhor passaporte para os postos de
comando.
Desse modo, um grave obstáculo a que se instale um processo de
reflexão conseqüente é o contraste crescente, na Universidade, entre os
seus grandes momentos e esse cotidiano tornado miserável pela ameaça
já em marcha de uma gestão técnica e racionalizadora, que leva ao assas-
sinato da criatividade e da originalidade.
Em nome do cientismo, comportamentos pragmáticos e raciocí-
nios técnicos, que atropelam os esforços de entendimento abrangente da
realidade, são impostos e premiados. Numa universidade de resultados,
é assim escarmentada a vontade de ser um intelectual genuíno, empur-
rando-se mesmo os melhores espíritos para a pesquisa espasmódica, esta-
tisticamente rentável. Essa tendência induzida tem efeitos caricatos,
como a produção burocrática dessa ridícula espécie dos pesquiseiros, for-
tes pelas verbas que manipulam, prestigiosos pelas relações que entretêm
com o uso dessas verbas, e que ocupam assim a frente da cena, enquanto
o saber verdadeiro praticamente não encontra canais de expressão.
Como uma racionalidade burocrática perversa ameaça invadir até
mesmo aqueles recantos que não sabem viver sem espontaneidade, cor-
remos o risco de assistir ao triunfo de uma ação sem pensamento sobre
um pensamento desarmado.
Nessas condições, devemos reconhecer, toda reação é difícil e a
muitos pode aparecer como um verdadeiro suicídio, já que a carreira
universitária não mais precisará ser uma carreira acadêmica. O grande
risco é que a recusa à coragem e a falta de crença se convertam em rotina.
Como nos libertar, então, da internalização da violência de que fala
Horkheimer (1974), ou da "sujeição das almas" apontada por Lenoble
(1990, p. 77) ao se referir à maneira atual de representar a Natureza?
Lembremos Heisenberg (1969) ao dizer que "... na ciência, o objeto de
investigação não é a Natureza em si mesma, mas a Natureza submetida
à interrogação dos homens". Não se trata, aqui, de uma interrogação
unilateral, técnica, menor, mas de uma interrogação abrangente, sequio-
sa de entendimento, uma tarefa intelectual.
Outrora, os intelectuais eram homens que, na universidade ou fora
dela, acreditavam nas idéias que formulavam e formulavam idéias como
uma resposta às suas convicções. Os intelectuais, dizia Sartre, casam-se
com o seu tempo e não devem traí-lo. Foi desse modo que o filósofo
francês criticava a indiferença de Balzac face às jornadas de 48 e a in-
compreensão de Flaubert diante da Comuna (L. Bassets, 1992, p. 15).
Que fazer quando na própria Casa fundada para o culto da Ver-
dade, a organização do cotidiano convida a deixar de lado o que é im-
portante e fundamental?
Num discurso endereçado à agremiação norte-americana de eco-
nomistas, um economista-filósofo, Kenneth Boulding (1969), ante os
descaminhos já clamorosos de sua profissão, reclamava a necessidade de
heroísmo, para pôr fim ao conformismo, fugir aos raciocínios técnicos,
recusar a pesquisa espasmódica, abandonar a vida fácil e, afinal, enfrentar
o entendimento do mundo.
O empenho com que nos convocam para tratar, seja como for, as
questões do meio ambiente, sem que um espaço maior seja reservado a
uma reflexão mais profunda sobre as relações, por intermédio da técnica,
seus vetores e atores, entre a comunidade humana assim mediatizada e a
Natureza, assim dominada, é típico de uma época e tanto ilustra os riscos
que corremos, como a necessidade de, em todas as áreas do saber, agir
com heroísmo, se desejamos poder continuar a perseguir a verdade.

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Resumo
Com a presença do homem sobre a Terra, a natureza está, sempre, sendo redescoberta, com
a criação da natureza social. É a história de uma rutura progressiva entre o homem e o en-
torno, acelerada pela mecanização. Mediante a tecnociência, a natureza artificializada alcan-
ça seu estágio supremo, onde a natureza e o homem tornam-se reciprocramente hostis. Com
a globalização da economia, da política e da cultura, não há mais relações totalizantes entre
a sociedade e o meio. A natureza tecnicizada se impõe como algo abstrato, exigindo um
discurso.
A questão do meio ambiente é um aspecto dessa evolução e reclama um estudo abrangente,
para permitir uma correta interpretação. Para alcançar essa interpretação, a universidade
deve fugir dos raciocínios técnicos e conformistas e enfrentar o entendimento do mundo
como um todo.

Abstract
With man on Earth, Nature is being permanently rediscovered through the creation of social
nature. The progressive rupture between man and his surrounding is quickened by
mechanization. More recently, with globalization of economy, politics and culture, there are
no longer totalizing relations between society and environment. Through technoscience,
nature and man become reciprocally hostile. Tecnicized nature emerges as an abstraction
that demands a discourse.
Environmental problems are only an aspect of this evolution, and ask for a comprehensive
approach, in order to reach its correct interpretation. University must fly away from
technical and conformicist reasonning and face the understanding of the world as a whole.

Milton Santos é professor titular de Geografía Humana da Universidade de São Paulo


(FFLCH). Ensinou em diversas universidades estrangeiras, como a Sorbonne (Paris), Co-
lumbia (N. York), Central (Caracas), Dar-es-Salaam (Tanzânia) e é autor de inúmeros li-
vros, em diversos idiomas, dentre os quais Metamorfoses do espaço habitado, Hucitec, São
Paulo, 1991 (2ª ed.) e Espaço e método, Nobel, São Paulo, 1992 (3ª ed.).

Aula inaugural da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de


São Paulo, em 10 de março de 1992.
GEOGRAFIA:
ALÉM DO PROFESSOR?1

MILTON SANTOS
In memoriam

Esta sala é para mim um presente. Tentarei colocar-me à altura desta


sala e à altura da mocidade oferecendo-lhes uma aula, isto é, um momento
de reflexão sisudo e maduro, para o qual naturalmente peço atenção porque
uma aula é lugar no qual toda contrição tem que ser posta para que o
trabalho comum se possa fazer. Foi-me sugerido um tema, dobrei-me à
ordem, e isso me causou um problema: não é a primeira vez que, nos meus
55 anos de ensino, encontro desafios dessa natureza – "A Geografia: além
do professor?"
O que querem dizer esses meninos, quando me pedem que venha
falar sobre este tema, “além do professor?” Professor, a sala de aula esses
contatos que não são burocráticos, mas que se dão em uma temporalidade
prevista por alguma forma dita burocrática também, porque são encontros
marcados antecipadamente nas mesmas horas, nos mesmos dias durante
um período. O ensino, o aluno que aprende pode se tornar professor, o que
me parece ser uma das questões que os geógrafos brasileiros estão
enfrentando.
O que fazer além de ser professor? Será que entrando numa
faculdade de Geografia, não há outro destino, senão esse, grandioso sem
dúvida, mas estreito diante daquilo que a Geografia pode oferecer e,
sobretudo, daquilo que a nação necessita, que venha de parte dos
geógrafos. Mas há também uma outra vertente a partir do que fazemos em
faculdades como a de Geografia, porque eu não me contento com a ideia
de que a Geografia seja um Departamento, a Geografia é por ela mesmo
uma Faculdade. Que todo o Brasil tem certamente a Geografia mais
dinâmica do hemisfério, dessa coisa chamada o Ocidente. E há o outro lado
1
O presente artigo, na integra, foi a conferência de abertura do 1º Encontro Regional de
Estudantes de Geografia do Sudeste realizado na UFJF em Juiz de Fora, Minas Gerais em
maio de1996. Transcrição: gentileza de Cláudio Ubiratan Gonçalves.

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das possibilidades abertas a quem chega aqui e a quem sai daqui, a
pesquisa; e isso que as universidades descobriram, como se fosse alfa e
ômega, e que se eu tivesse algum poder eliminaria do nosso vocabulário:
essa palavra horrível, a extensão. Como se o trabalho acadêmico bem feito
não fosse algo posto naturalmente à disposição da sociedade.
Eu creio que há essas duas coisas, vamos trabalhá-las agora na
medida do possível. O que é essa extensão possível a partir da Geografia?
De um lado há o que se chamou e se chama menos hoje: Geografia
aplicada. A Geografia aplicada é algo que é criado nos anos 50 pelo prof.
Jean Tricart, meu mestre. É quem, usando esta expressão, propõe esta
palavra, Geografia Aplicada, o que causou certo frisson em seu país, a
França, já que a universidade buscava resguardar-se de todo contato com o
mercado e, até certo ponto, com os governos, de modo a preservar a
liberdade total de pensamento dos mestres, porque não há universidade
onde não há também liberdade total de pensamento e de expressão do
pensamento.
Eu me recordo da polêmica que se estabeleceu, então, tendo de um
lado meu mestre Jean Tricart e, de outro lado, aquele que se tornou o
mestre de todos nós, ainda que à distância, Pierre George. Ele dizia, e com
ele outros, que se toda boa Geografia será aplicável para que chamá-la de
Geografia aplicada? E Jean Tricart respondia: é que chamando a Geografia,
Geografia aplicada, nós chamamos atenção dos que não são geógrafos, dos
que estão nos gabinetes do poder, do poder público ou do poder privado,
para a existência de uma disciplina suscetível de ter um papel na produção
de um novo espaço e, quem sabe, na produção de uma nova sociedade.
Essa discussão que se tornou no momento azeda (desculpe, contar esse
fuxico aqui) [risos], foi amenizada pelas esposas dos dois, que intervieram
para evitar que a discussão azedasse mais ainda.
É um momento importante da história da Geografia, disciplina criada
nas faculdades de Letras e Filosofia com a vocação de descrever o mundo,
às vezes de maneira crítica, e relegada também na França a um papel
menor do que aquele que merecia, na medida em que o grosso da tropa se
dirigia à tarefa de ensino, que é central, mas não preenche todas as
possibilidades oferecidas pela nossa disciplina. Geografia aplicada.
Aplicada a quê? Aplicada ao espaço das entrâncias? Aplicada ao espaço
dos fluxos? Aplicada ao espaço banal? Espaço banal é o espaço de todos os
homens, é o espaço de todas as instituições, é o espaço de todas as
empresas.

8
Geografia aplicada ao espaço das empresas – eu vi o discurso do
representante do Banco Real, estamos contentes em saber que o Banco
Real ajudou a montar esta reunião e oferece créditos a estudantes e
professores, mesmo os que não são de Juiz de Fora, o que significa que
amanhã pela manhã eu me apresentarei [risos] para atender ao gentil
convite do diretor do Banco. Na França os bancos empregam muitos
geógrafos, é comum que os bancos franceses empreguem geógrafos, é um
país capitalista. Por conseguinte é um país onde há uma concorrência que
se extremou com a competitividade pelo mercado. O mercado é sinônimo
de território, então a conquista do mercado significa o conhecimento do
território pelo Banco, pela empresa jornalística, pelo supermercado, pelo
shopping center, por outras grandes organizações que têm que conhecer
como o território é, para conquistar o território. Isto é, conquistar o
mercado.
E aí está o geógrafo sendo chamado, quer dizer que o Banco Real vai
criar emprego para os geógrafos. Só que o Brasil é um país que não
organiza os seus fluxos em benefício da competitividade. E aí passamos
para a questão dos espaços e dos fluxos a serem estudados pela Geografia,
através dessa Geografia aplicada, de tal maneira que as grandes empresas
não necessitam se preocupar com o território.
Quando eu falo território não estou falando na superfície nua do país,
eu estou me referindo a um território usado, isto é, o território com seus
homens dentro, tal como eles são, eis o território que interessa ao geógrafo.
Mas não o território que interessa apenas às grandes empresas, o território
que interessa a todas as empresas. A todas as instituições, a todas as
pessoas, indiferentemente do que elas são, as instituições, indiferentemente
do que elas são, as empresas, indiferentemente do que elas são, do seu
poder.
Esse território é o espaço banal, é o espaço do geógrafo. O geógrafo
se interessa pelo território habitado, vivido, trabalhado, sofrido por todos.
O geógrafo não escolhe as empresas, o geógrafo não escolhe as
instituições, sobretudo, o geógrafo não pode escolher as pessoas, todas
constituem juntas aquilo que faz do território um espaço. O território
utilizado de maneira comum, ainda que de forma diversa por todos.
Então, para voltar à questão que a gente havia colocado no começo.
Geografia aplicada, mas aplicada a quê? Aplicada às empresas apenas?
Aplicada aos fluxos? E nós sabemos que os fluxos são comandados e nós
sabemos que há uma diferença entre produzir e caminhar. Isto é, entre criar
as massas e criar o movimento, o movimento é criação do poder. E quando
9
a gente fala em espaço de fluxo, a gente está ao mesmo tempo dizendo que
há instituições, empresas, pessoas que podem mover-se no território e
outras que não podem, mas nós geógrafos nos interessamos por todos.
Todas as empresas, todas as instituições, todas as pessoas, é isso que faz o
espaço banal, que é o espaço do geógrafo.
O espaço do geógrafo não é o espaço do economista. O espaço do
geógrafo não é o mesmo espaço das outras disciplinas humanas ou sociais.
O espaço do geógrafo se distingue, sobretudo, do espaço chamado social
exatamente porque há o território. O território que participa da sociedade
como um fator, ele não é sofrido pela sociedade, ele não é um pano de
funda da vida social, ele é um fator, um ator. Ele é um ator porque tem
gente, é isso que o marketing distingue de outras frações do território.
Uma outra possibilidade de uma Geografia fora da escola, além do
professor, é a Geografia do militante. Importante, sem dúvida, mas
igualmente insuficiente e frequentemente enganosa. A militância vista de
forma autônoma, ela pode conduzir a inverter a cadeia causal no processo
de produção do conhecimento, colocando o efeito antes da causa, porque
com frequência a militância aponta para soluções ou remédios mesmo
antes da análise. A militância, para ser adequada, deve ser posterior à
análise e não anterior à análise.
O grande risco da vida acadêmica hoje, da produção científica, é
exatamente este, o risco de o efeito ser dominante sobre a causa. E é isto
que corrompe, e no Brasil isto é claro, esta corrupção de uma boa parte do
trabalho das ciências exatas e das ciências naturais que, neste país, provém
do fato de que o efeito é quem comanda a pesquisa. O efeito buscado,
porque reduz a possibilidade de encontrar, de abraçar a verdade.
Evidente que eu não posso comparar a militância do ponto de vista
moral à entrega que fazem algumas disciplinas a um interesse exclusivo de
certas empresas, não é a mesma coisa do ponto de vista moral. Mas do
ponto de vista epistemológico, há uma certa familiaridade entre os dois
métodos. A força do intelectual, a força do pesquisador, é o seu total
descompromisso. A força do pesquisador é a sua total incapacidade de ser
preconceituoso. É a sua disponibilidade permanente para busca, sobretudo
nos momentos em que as mudanças são muito rápidas.
É muito fácil imaginar que aquilo que é passado ainda está presente,
e é somente através da análise feita sem nenhum preconceito, que nós nos
encontramos com o novo. Quem não se encontra com o novo, quem não
tem essa capacidade, esta força de esquecer, tampouco é capaz de produzir
um "corpus" científico suscetível de ter influência, inclusive política. Pois
10
a política se faz cada vez mais de forma científica. Ela é feita de forma
científica a partir de formas simbólicas. Daí, nós vivemos uma democracia
que não chega a sê-lo, porque democracia de mercado é o que temos neste
país e na América Latina de uma maneira mais geral, e cujo fermento, é o
marketing. Então a maneira que as eleições são frequentemente momento
de consumo político, mas não de política. Ora, se nós fazemos esta crítica
devemos estendê-la a nossa própria atividade intelectual.
O maior perigo, neste caso, é confundir aquilo que o grande
antropólogo Marcel Mauss chamou de fato social total com a totalidade.
Não é trocar uma coisa pela outra. Mauss dizia: devemos trabalhar o fato
social total. E muitos geógrafos, durante a maior parte deste século,
escreveram isso, basta ler a literatura geográfica francesa, alemã,
americana, inglesa e brasileira nas pegadas dessas escolas projetam
frequente alusão ao fato social total.
O que é o fato social total? É, ver todos os aspectos de uma
determinada coisa, ver todos aspectos de uma determinada coisa, ver todos
aspectos de uma determinada área, ver todos os aspectos de um
determinado lugar. Vejamos todos esses aspectos, vejamos até mesmo
todas as relações locais, mas a coisa só se entende a partir da totalidade das
coisas. Nenhuma coisa tem significado sozinha. As coisas só têm
significado a partir da totalidade. Na realidade o que dá significado às
coisas é muito mais que a totalidade, é o movimento da totalidade.
Voltaremos a isso daqui a pouco.
Então, o que estou sugerindo, para que a Geografia possa enfrentar
as tarefas do presente e, sobretudo, do futuro, é discutir novamente aquela
ideia do [inaudível, provavelmente Pierre George], para quem havia muitas
Geografias, quer dizer, ele adjetivava as geografias. Então haveria uma
geografia do transporte, uma geografia da indústria, uma geografia não sei
mais do quê. O que é Geografia? Não vou dizer que não se façam essas
Geografias particulares, essas Geografias adjetivadas, essas Geografias
singulares, essas Geografias específicas. Mas, o que nós precisamos fazer é
a Geografia sem adjetivo, isto é, a Geografia.
O espaço banal é o que nos interessa, porque se eu tomo um aspecto,
transporte ou agricultura, estarei cometendo um erro parecido com aquele
de tomar um grupo de empresas, um grupo de pessoas, um grupo de
instituições. É evidente que o trabalho de análise é necessário, e que não
posso ver tudo, então eu divido o trabalho: você vai trabalhar a indústria,
você vai trabalhar o comércio, o outro trabalha os transportes, e nós
produziremos a Geografia. Mas temos que ter em mente esse tipo de
11
preocupação, por que sem isso, nós não faremos outra coisa senão ensinar.
Porque ensinar é chegar diante de uma sala e dizer o que deu em nossa
cabeça, com mais ou menos preparo, evidentemente [risos].
Só que a Geografia, hoje, tem grandes dificuldades de crescer
porque o mundo não quer. Mas quem é que disse que esse mundo vai ser
assim todo tempo? Quem é que disse que a globalização tem que ser
perversa? No Brasil não nos deixam sequer pensar que há outra coisa, além
dessa globalização perversa. E o Brasil tem requinte de perversidade. Na
produção da globalização, cada dia a gente acorda com uma perversidade
maior, não sabemos se quem organiza a globalização no Brasil quer ser
cômico ou cínico. E como a coisa é dita com tanta ênfase, acaba-se por
acreditar que não há outros caminhos.
Mas há outros caminhos. Só que, onde o social se torna residual, que
é o caso do Brasil, o que interessa às pessoas neste país? Três séculos de
afirmação do homem, depois que o homem é descoberto com o
Iluminismo, se dá uma conquista lenta, gradual, que parecia segura, a da
civilização, a da cultura. De repente, o homem não é mais o centro do
mundo, o centro do mundo é o dinheiro, mas não o dinheiro como o capital
a ser aplicado para produzir trabalho, para produzir coisas, para desviar o
esforço do homem, mas o dinheiro em estado puro, tudo para o dinheiro
em estado puro – a tal ponto de aceitarmos a situação oposta, nada para o
homem.
Nesse clima, a Geografia não tem como prosperar, se nós nos
interessamos por todas as instituições, por todas as empresas e por todos os
homens. Não há lugar para a Geografia num país que decidiu que o homem
é residual. Mas o homem não é residual, nós nos enganamos, às vezes,
porque frequentamos a classe média e nos esquecemos que, entre os
pobres, há uma produção social e cultural de enorme riqueza. Nós não os
tratamos suficientemente nos bancos da universidade, porque os pobres são
tratados como as pessoas perigosas da nossa sociedade. E o tratamento da
pobreza é quase como o tratamento do perigo na produção do medo.
Quando na realidade os pobres nas cidades brasileiras, sobretudo, estão
produzindo uma nova cultura que não conhecemos. Esta cultura é
fundamental, pois está intimamente relacionada com o território urbano. E
não é apenas a produção de uma cultura, é também a produção de uma
economia, e é uma produção, ainda que fragmentária, de um eixo político
que a cidade oferece.
Num mundo que não deseja totalizações, a Geografia tem
dificuldades de se instalar, ela é certamente a única disciplina que não
12
aceita tombar ao comando total do mercado. Mercado que é uma palavra
muito grande, porque os que fazem parte deste mercado, cada qual está
lutando por sua fatia. Por conseguinte, os que aparecem como fatores do
mercado global, cada um deles tem uma linha de comportamento própria
que oferece no mundo da competitividade. Por conseguinte, esses agentes
da globalização são exigentes de soluções intelectuais pulverizadas,
fragmentárias, lineares. O que escapa da ideia central de nossa disciplina,
que trata o espaço banal, espaço de todas as pessoas, empresas e
instituições.
Daí o círculo vicioso em que nos encontramos. Mas a Geografia só
tem o mercado da escola, então vamos trabalhar com a escola ou vou
trabalhar com SIGs ou vou trabalhar para uma ONG, ou vou empregar uma
parte do meu talento a uma campanha ecológica qualquer. Quando o
espaço que interessa é o espaço de todos os homens, o espaço
historicamente construído. Então, com as solicitações do CREA ou
CONFEA etc., estabelecemos currículos que são uma cópia do mercado.
Se aceitamos currículos que são cópia de mercado, o que queremos? Se
não nos subordinamos ao mercado, se o mercado é apenas do professorado,
o que vamos fazer de outra forma?
Sendo assim, dá a impressão de que não temos mais fé, de que não
acreditamos que mudanças são possíveis, e que a globalização perversa não
tem a possibilidade de mostrar outra cara, numa fase de desemprego
provocado, porque só as técnicas não produzem desemprego e sim a
política. A técnica não é responsável, como ouvimos e lemos nestas
explicações simplórias dadas pelo poder, de que a modernização, a
globalização, o progresso tecnológico, levam obrigatoriamente à queda do
emprego. Não é verdade. A técnica só tem existência histórica a partir da
política. É a política que decide: 1º) a técnica que escolho; 2º) a forma
como as combino e 3º) onde as combino.
Quem aqui é testemunha da maneira como se faz o ensino, sabe que
se poderia multiplicar por três o número de professores se o ensino fosse
feito de uma forma decente. Quem, aqui, conheceu a doença, sabe que os
hospitais, as casas de saúde poderiam empregar quatro vezes mais gente
porque os nossos doentes não são bem tratados. Então não é a tecnologia a
responsável pelo desemprego, mas a política. Isto se vê melhor através da
Geografia, à medida em que ela examina a história se fazendo, pois a
história não se faz sem o espaço, então a forma de tomar as técnicas,
historicizá-las, supõe o conhecimento e a maneira como o espaço se
organiza a cada momento.

13
Mais uma vez, a Geografia poderia ser uma fiel ajudante da
elaboração de políticas, a começar pela política de emprego. Na Europa
capitalista de hoje, a busca praticamente inútil de produção de novos
empregos está se dando a partir do território. O ministro do Interior da
França, que é quem se preocupa com o território, declarou recentemente
que aumentar o número de empregos só será possível a partir de uma
política territorial adequada.
Vejam aqui uma outra possibilidade para a Geografia, quando se
decidir uma política de emprego neste país. Isto significa que é um engano
insistir no pragmatismo na elaboração dos programas de ensino. É uma
diminuição imaginar que estamos despreparados para as coisas mais altas.
Outro dia eu falava em termos parecidos a propósito de outro tema, para
uma jornalista, e ela, no fim da entrevista, disse: “E o senhor não tem medo
que digam que o senhor é utópico?” Porque eu vou ter medo em dizer que
sou utópico?
O que distingue o homem dos outros animais é o projeto, então
aquele que não é utópico é aquele que quer ser o objeto. Eu sei que tem
muita gente que quer ser objeto, e felizmente não estão nesta sala [risos]. O
velho Sartre, de quem me lembro sempre, dizia que cada um de nós pode
ser objeto para o outro, mas jamais objeto para si mesmo. E, é isso que
produz a cada momento um programa na consciência, é que nós sabemos
que, mesmo sendo objeto para os outros, não somos objetos para nós
próprios.
Então a Geografia se assemelha a uma filosofia, não há disciplina
que seja mais próxima à Filosofia que a Geografia, porque a Geografia
estuda o espaço banal, isto é, o espaço de todos. Por conseguinte ela tem
que ser uma disciplina abrangente. Não é aquilo que se dizia no início do
século: a Geografia como rainha das disciplinas, única capaz de fazer a
ligação entre ciências naturais e ciências humanas, vã glória boba! Estou
me referindo a uma Geografia modesta que propõe uma filosofia modesta,
mas capaz de ser atuante. Capaz de ajudar a entender e, por conseguinte, a
propor, isto é, uma disciplina com papel certo na produção da política.
A Geografia brasileira está bem colocada para este papel, não há
disciplina mais dinâmica no Brasil e não há Geografia mais dinâmica que a
brasileira. O Norte, escravo das escolas, dos preconceitos, opondo conceito
sobre conceito, só excepcionalmente produz uma Geografia exemplar,
como casos da Geografia anglo-saxônica2. Basta ver as principais revistas

2
Esta última frase foi de difícil compreensão na transcrição.
14
norte-americanas que notamos uma grande quantidade de temas de extrema
relevância mas, frequentemente, também, sem relevância. Dissertações
frequentemente vazias sobre filosofias de que não se entende, amarrações a
temas durante longos e longos anos sem que isso desemboque sobre um
entendimento das coisas e um progresso da disciplina.
A Geografia brasileira parte da realidade nacional, ela é inspirada nas
fontes da sociedade. A Geografia brasileira tem a vantagem de que o Brasil
tem o maior público de Geografia no Ocidente, não há país que tenha o
público que nós temos, somos 200 departamentos de Geografia e há 17
milhões de pessoas que, no Brasil, são obrigadas a estudar Geografia. Isso
não existe em nenhum outro país, isso significa que temos no Brasil, de um
lado, uma vocação a uma Geografia que nasce do debate, que se impõe a
partir da própria sociedade, sem escravizações de escolas e, por outro lado,
temos a nossa crítica para realizar essa Geografia.
É evidente que os autores de livros didáticos são, de uma maneira
geral, copiadores dos que pensam e se esforçam para criar uma Geografia.
Não importa que sejamos plagiados quotidianamente por esses autores de
livros didáticos, que têm tiragem milionária, e que, de uma forma ou de
outra, levam a esses 17 milhões de brasileiros, através da pressão que é
feita hoje, por entidades que vocês organizam, uma Geografia que sem
dúvida tem uma grande qualidade e que mantém nestes últimos 25 anos,
um debate extraordinário.
Por conseguinte, nós não podemos nos queixar da sorte. Acabamos
por entender que a produção dita utópica é essa que tem futuro, num
mundo que não pode fazer nada que não seja a partir das ideias. Esses 25
anos de história recente da Geografia brasileira mostram o triunfo de
algumas ideias levantadas por um punhado de geógrafos que, com enorme
dificuldade, sem organização, sem meios, acabou por se impor à Geografia
brasileira, inclusive com aqueles que não estão a favor, que não estão a
favor dessas ideias.

15
MODO DE PRODUÇÃO TÉCNICO-CIENTíFICO
E DIFERENCIAÇÃO ESPACIAL

MILTON SANTOS *

Techno-scientilic-informational mode 01production


and spatial differentiation

80th geographical space and produc- tions, creating horizontalities, the


tion modes change together creating banal space of geographical science.
globalized spaces in wtiicn an forming a spatial continuity.
techno-scientific-informational milie u Subspaces are redefined according
super poses to the natural and tech- to difterent leveIs of technical, infor-
nical milieux. mational and communicational den-
Networks have become a central et- sity. Technícal density commands
ement in a world where there is a immediate labor, while informational
convergence of techniques. Theyare density controls externaI relations of
simultaneously global and local. As each place and the creation of locally
a global fact, they are vectors ot mo- íntersubjective relations; cu/ture de-
dernity, creating verticalities, lhe so- pends on communicational density.
called flows spaces, constituted by Each place is defined by a specific
different interconnected points. As a combination of these three types of
local fact, networks are the material densities, responsible by its behav-
basís of labor and local social rela- ior regarding globalization.

A questão exige, em primeiro lugar, uma clarificação de conceitos. Es-


tabelecido por Marx e Engels, como ponto nodal de sua teoria da história, o
termo "modo de produção" não recebeu uma verdadeira definição dos seus
fundadores. Talvez por isso mesmo, esse conceito foi, depois, objeto de uma
grande controvérsia, na qual se envolveram marxistas e não-marxistas, so-
bretudo nos anos 60 e 70, antes de cair em relativo desuso, ao menos entre
geógrafos. E a palavra "espaço", da qual a expressão "diferenciação espaci-
al" é uma decorrência, tem sido utilizada com a maior imprecisão no vocabu-

• Professor Titular do Departamento de Geografia da FFLCH da Universidade de


São Paulo e Pesquisador do CNPq. Texto redigido em novembro de 1998.
fi Revista TERRITÓRIO, ano IV, nº 6, jan./jun. 1999

lário da Geografia. Como juntar esses dois termos ambíguos numa tentativa
de interpretação geográfica do mundo atual?

I~Uma clarificação dos conceitos

Segundo Marx, a noção de modo de produção é central porque, a cada


etapa de evolução da sociedade, os homens participam de um processo uni-
tário, que inclui formas materiais de produção, relações dos homens entre si
e com as coisas (naturais e artificiais) e os seus próprios modos de ser, isto é,
as maneiras como os indivíduos expressam sua vida.
Parece haver acordo quanto ao fato de que a vida social, tomada como
um todo, se caracteriza pela incessante renovação das forças produtivas e
das relações de produção, isto é, dos modos de produção. Cada modo de
produção constitui uma etapa na produção da história e se manifesta pelo
aparecimento de novos instrumentos de trabalho e novas práticas sociais.
Como produzir e produzir espaço são sinônimos, a cada novo modo de pro-
dução (ou a cada novo momento do mesmo modo de produção) mudam a
estrutura e o funcionamento do espaço.
O espaço pode ser definido como um conjunto indissociável de siste-
mas de objetos (instrumentos do trabalho) e de sistemas de ações (práticas
sociais). Modos de produção e espaço geográfico evoluem juntos, movidos
por uma lógica unitária.
Nos primórdios da história, modos de produção e formações econômi-
co-sociais se confundiam. A ação dos modos de produção sobre o espaço se
dava praticamente sem mediações.
A partir do século XVI, com a expansão do capitalismo, cria-se a possi-
biIidad e de trocas extensas, interconti nentais e transoceân icas, de p Iantas,
de animais e de homens, com seus modos de fazer e de ser. Modos de produ-
ção antes separados tendem a convergir e as áreas atingidas por esse movi-
mento unificador experimentam, desse ponto de vista, uma história comum.
Eram as "economias-mundo", segundo a seminal explicação de Fernand
Braudel.
A marcha do capitalismo marca um alargamento e aprofundamento
dessa lógica, incluindo cada vez um número maior de sociedades e territó-
rios. O modo de produção tende a ser único.
Mas, a ação sobre os diversos territórios desse modo de produção
tendencialmente único passa pela mediação das formações sociais constitu-
ídas sob a égide do estado nacional.
Com a globalização, pode-se, hoje, pensar que, de novo, o processo
espacial seja uma emanação direta do modo de produção? Aqueles que acre-
ditam na morte do estado e no fim das fronteiras diriam que sim. Na verdade,
a mediação do Estado, da sociedade civil e da própria configuração territorial
herdada são dados fundamentais para explicar as diferenças do impacto do
Modo de produção lécnico-científico e diferenciação espacial 7

modo de produção sobre os diversos países e regiões. Mas também é certo


qUe, em nenhuma outra época, um modo de produção teve uma difusão tão
generalizada e uma presença tão profunda e eficaz, em todos os recantos da
terra. Esse modo de produção global é um dado explicativo maior da realida-
de geográfica atual.

11 - O fenômeno técnico e a inteligência planetária

Entendida como o conjunto de realidades e fenômenos contemporâne-


os e que distinguem a época atual dos períodos anteriores, a globalização
pode ser tomada como um verdadeiro paradigma.
Tal ponto de partida pode suscitar objeções: a globalização é incom-
pleta, ela se dá desigualmente, ela é perversa, ela não constitui um período
novo, mas apenas um prolongamento da fase anterior. Desse modo, faltar-
lhe-iam as condições para servir como paradigma.
Sem dúvida, a globalização é incompleta. Mas que outra época histó-
rica se manifestou de maneira homogênea em toda a face da terra ou obte-
ve parar o progresso afim de se mostrar plenamente presente? As épocas
se sucedem umas às outras sem interrupção e ao mesmo tempo em que se
impõem, guardam vestígios do passado. Alguns dos novos vetores conhe-
cem uma difusão mais rápida e extensa (é o caso atual da informação ge-
rai), enquanto outros se espalham mais lentamente e mais seletivamente (é
o caso da moral). Agravando desigualdades, criando novas formas de de-
pendência e de escassez, as formas atuais de globalização também se ma-
nifestam como um processo perverso. Mas é, também, um fato que o pro-
cesso de internacionalização iniciado com a implantação do capitalismo co-
merciai conhece um estágio supremo com o atual capitalismo tecnológico
glo bal izado.
O mundo, estruturado como um todo, se torna "unido" ("united") (R.
ROBERTSON, 1990: 18), com a produção de uma totalidade espaço-tempo-
ral ("a spatio-temporal whole") (BACH, 1980). Por isso, teses elaboradas no
passado recente já não são eficazes, conforme mostram Peter DICKEN (1992:
95) quanto à leo ria do comércio e da local ízação e C. A. M ICHAL ET (1993: 3)
em relação ao modelo tradicional da economia internacional.
O antigo processo de internacionalização alcança um novo patamar
(ROCHEFORT, 1998: 149), agora que o capitalismo "atinge uma escala pro-
priamente mundial" (IANNI, 1992: 36-39), a ecologia se revela um problema
planetário (MORIN, 1990) e o acontecer de todos os países se torna solidário
(DRUCKER, 1993: 9) com a realização da universalidade da história (VATIINO,
1992).
Como afirma Otavio PAZ, (1990: 20) o novo não é exatamente o mo-
derno, salvo quando é portador de uma carga duplamente explosiva, isto é, a
negação do passado e a afirmação de algo diferente ("Ie nouveau n'est pas
8 Revista TERRITÓRIO, ano IV, nº 6, jan./jun. 1999

exactement le moderne, sauf s'il est porteur de la double charge explosive, à


savoir: être la négation du passé et être I'aftirmation de quelque chose de
diftérenf'). É o caso atual da globalização. Uma nova combinação de fatores,
diferente da que comandava o sistema anterior, vai ter um papel fundamental
no sistema novo. Conforme disse G. BARRACLOUGH (1964-1965: 50-51),
nós somos testemunhas de um período em que progressos espetaculares se
devem á aliança entre ciência e tecnologia, com poderes "para transformar
para sempre as bases materiais de nossa vida, em uma escala que era incon-
cebível há, apenas, meio século". Essa interdependência entre ciência e téc-
nica, agora sob o comando da técnica, verifica-se em todos os aspectos e é
uma situação que se encontra em todas as partes do mundo.
Tais conteúdos de técnica, de ciência e de informação constituem a
nova variável motora que permite reconhecer um novo sistema temporal, com
a organização de um novo espaço.
Se o novo modo de produção é global, ele somente o é por ser, tam-
bém, um modo de produção técnico-científico.
A partir das características atuais do fenômeno técnico, as transforma-
ções atuais da sociedade e do espaço geográfico podem ser examinadas e
entendidas se levamos em consideração três dados constitutivos de nossa
época, a um tempo causa e efeito uns dos outros e solidários á escala mundial.
Esses três dados são: a unicidade técnica, com a universalidade das
técnicas; a convergência dos momentos, com a percepção universal da si-
multaneidade; a unidade do motor da vida social, com a universalização da
mais-valia.
Por unicidade técnica, entendemos o fato de que as técnicas atuais
formam sistema á escala do globo, cada lugar abrigando fragmentos ou pe-
ças interdependentes (SIMONDON, 1958) dessa verdadeira "mecano univer-
sal", no dizer de Abraham MOLES (1971: 82).
Todos os sub-espaços participam dessa "planetarização da técnica"
(TAVARES O' AMARAL, 1987: 35), ainda que isso se produ za com graus d ife-
rentes de presença e complexidade.
Antes, os sistemas técnicos eram apenas locais ou regionais. Na au-
rora da história, havia tantos sistemas técnicos quantos eram os lugares.
Quando apresentavam traços semelhantes, não havia contemporaneidade
entre eles e muito menos interdependência funcional. A história humana é
igualmente a história da diminuição progressiva do número de sistemas téc-
nicos autônomos (relativamente) sobre a face da terra. O movimento de
unificação, acelerado pelo capitalismo, hoje alcança o seu ápice, com a
predominância em toda parte de um único sistema técnico, base material da
global ízação,
Reconheçamos, agora, a convergência dos momentos. Durante milê-
nios, a história do homem se fez a partir de momentos divergentes, como
uma soma de aconteceres dispersos, disparatados, desconexos. Já a histó-
ria do homem da nossa geração é aquela em que os momentos convergem, o
Modo de produção técnico-cientffico e diferenciação espacial 9

acontecer de cada lugar podendo ser imediatamente comunicado a qualquer


outro, graças a essa unificação do tempo e do espaço à escala planetária,
A instantaneidade da informação globalizada aproxima os lugares, tor-
na possível uma tomada de conhecimento imediata de acontecimentos si-
multâneos e cria, entre lugares e acontecimentos, uma relação unitária à es-
cala do mundo. Hoje, cada momento compreende, em todos os lugares, even-
tos que são interdependentes, inclufdos em um mesmo sistema global de
relações.
Os progressos técnicos, por intermédio dos satélites, nos permitem a
fotografia do planeta, permitem também a visão empírica da totalidade dos
objetos instalados na face da Terra, Como as fotografias se sucedem em
intervalos regulares, obtemos, assim, um retrato da própria evolução do
processo de ocupação da crosta terrestre. A simultaneidade retratada é fato
verdadeiramente novo e revolucionário para o conhecimento do real e, tam-
bém, para o correspondente enfoque das ciências do homem, alterando,
assim, os paradigmas.
O conhecimento empírico da simultaneidade dos eventos e o entendi-
mento de sua significação interdependente - bases para a empiricização da
universalidade (SANTOS, 1984) - são um fator determinante da realização
histórica. Os atores hegemônicos da vida econômica, social e política podem
escolher os melhores lugares para sua atuação e, em conseqüência, a loca-
lização dos demais atores é condenada a ser residual.
A unidade do motor da vida social se verifica a partir dessa trama. Im-
põe-se um mercado global. fundado no intercâmbio global e numa lei do valor
universal (DOS SANTOS, 1993: 3).
Pode-se, desse modo, falar de uma mais-valia em nível mundial, asse-
gurada pela ação convergente das grandes organizações, sejam elas priva-
das ou públicas, nacionais ou supranacionais.
Essa mais-valia, tornada mundial pela produção e unificada pelo siste-
ma financeiro, constitui o motor da vida econômica e social em todo o Planeta.
Os principais vetores desse processo são as empresas multinacionais
e os bancos transnacionais. Numa situação de competitividade, a busca indi-
viduai do maior lucro não tem outra fronteira senão a própria capacidade de
criar e utilizar inovações produtivas e organizacionais. A cada momento, a
maior mais-valia está sempre buscando ultrapassar a si mesma.
Suprema ironia: essa mais-valia tão fugaz não pode mais ser medida
e, ao mesmo tempo, se torna a principal alavanca, se não o motor único das
ações mais características da economia globalizada.
Unicidade técnica, convergência dos momentos, unicidade do motor,
são realidades cuja interdependência assegura a produção dessa inteligên-
cia planetária, que é o suporte do processo atual de globalização,
Mas o fenômeno técnico, que está na raiz dessas grandes transforma-
ções, tem sido insuficientemente utilizado como ponto de partida para a expli-
cação geográfica.
10 Revista TERRITÓRIO, ano IV, nl! 6, jan./jun. 1999

111-O meio técnico-científico-informacional

Da mesma lo rma que OIivier BUC HES ENSCH UTZ (1987) lamenta que
os arqueólogos raramente se preocupem com os problemas tecnológicos (Ieia-
se processos técnicos) dos traços materiais deixados pelas atividades huma-
nas, não abordando de frente ess as questões, Françoi s SIGA UD (1981 ), tam-
bém se interroga a respeito da razão pela qual "os geógrafos evitam tão siste-
maticamente o estudo das técnicas, que estão no centro das relações socie-
dade-meio". Dir-se-á que há alguma injustiça nessa crítica, aliás reiterada em
1991 (SIGAUD, 1991), já que o tema das técnicas aparece em autores como
SORRE (1950), GOUROU (1973), GEORGE (1974), WAGNER (1974), FEL
(1978), J. E. SANCHEZ (1991) e outros. Mas é raro que o fenômeno técnico
haja merecido um esforço de generalização, uma preocupação sistemática
de tratá-lo como um dado explicativo capaz de servir à elaboração de uma
teoria ou epistemologia da geografia. A tão buscada filosofia das técnicas
muito teria a ganhar. E a reconstrução da teoria social receberia uma nova
versão.
A própria idéia de meio geográfico é inseparável da noção de sistema
técnico. Podemos admitir que a história do meio geográfico pode ser grossei-
ramente dividida em três etapas: o meio natural, o meio técnico, o meio técni-
co-c ientífico- informaciona I.
Quando tudo era meio natural, o homem escolhia da natureza aquelas
suas partes ou aspectos considerados fundamentais ao exercício da vida,
valorizando, diferentemente, segundo os lugares e as culturas, essas condi-
ções naturais que constituíam a base material da existência do grupo.
Desde o final do século XVIII vemos começar a mecanização do territó-
rio: o espaço se adensa com a presença das técnicas da máquina. Podemos
dizer, junto com SORRE (1948) e André SIEGFRIED (1955), que esse é o
momento da criação de um meio técnico, que se superpõe, em muitos luga-
res, ao meio natural, buscando substituí-lo. Já hoje não é mais de meio técni-
co que se trata, quando nos referimos às manifestações geográficas decor-
rentes dos novos progressos. Estamos diante da produção de algo novo, a
que estamos chamando de meio técnico-científico-informacional.
Da mesma forma como participam da criação de novos processos
vitais e da produção de novas espécies (animais e vegetais), a ciência e a
tecnologia, junto com a informação, estão na própria base da produção. da
utilização e do funcionamento do espaço e tendem a constituir o seu
substrato.
Cri a-se um verdadei ro tecn ocosm o (P RAD ES, 1992: 177), uma situ a-
ção em que a natureza natural tende a recuar, às vezes brutalmente. Segun-
do GELLNER (1989), "a natureza deixou de ser uma parte significativa do
nosso meio ambiente". A idéia de um meio artificial, avançada por LABRIOLA
em 1896 (em seu estudo intitulado Del materialismo stórico) faz-se uma evi-
dência. A técnica, produzindo um espaço cada vez mais denso, no dizer de
Modo de produção técnico-científico e diferenciação espacial 11

ROTENSTREICH (1985: 71) transforma-se no meio de existência de boa par-


te da humanidade,
Podemos então falar de uma cientificização e de uma tecnicização da
paisagem. Por outro lado, a informação não apenas está presente nas coi-
sas, nos objetos técnicos que formam o espaço, como é necessária à ação
real izad a sobre essas coi sas. A informação é o vetor fundamental do proces-
so social e os territórios são, desse modo, equipados para facilitar a sua cir-
culação.
Os espaços assim requalificados atendem sobretudo aos interesses
dos atores hegemônicos da economia, da cultura e da política e são incorpo-
rados plenamente às novas correntes mundiais. O meio técnico-científico-
informacional é a cara geográfica da globalização.
Ao mesmo tempo em que aumenta a importância dos capitais fixos
(estradas, pontes, silos, terra arada etc.) e dos capitais constantes (o
maqu iná rio, ve íc ulos, se mentes es pecial izad as, fe rti Iizantes, pestic idas etc.),
aumenta também a necessidade de movimento, crescendo o número ea.ur-.
portância dos fluxos, inclusive financeiros, e dando um relevo especial àvida
de relações.
Rompem-se os equilíbrios preexistentes e novos se impõem, do ponto
de vista da quantidade e da qualidade da população e do emprego, dos capi-
tais utilizados, das formas de organização, das relações sociais etc. Conse-
qüência mais estritamente geográfica, diminui a arena da produção, enquan-
to a respectiva área se amplia. Restringe-se o espaço reservado ao processo
direto da produção enquanto se alarga o espaço das outras instâncias da.
produção, circulação, distribuição e consumo.
Essa redução da área necessária, por unidade de tempo e de superfí-
cie, à produção das mesmas quantidades, havia sido prevista por Marx, que a
esse fenômeno chamou de "redução da arena".
O processo de especialização, criando áreas separadas onde a produ-
ção de certos itens é mais vantajosa, aumenta a necessidade de intercâmbio,
que agora vai se dar em espaços mais vastos, fenômeno a que o mesmo
Marx intitulou "ampliação da área".
As possibilidades, técnicas e organizacionais, de se transferirem à dis-
tância produtos e ordens faz com que essas especializações produtivas se-
jam solidárias mundialmente. Alguns lugares tendem a tornar-se especializa-
dos, tanto no campo como na cidade, e essa especialização se deve mais às
condições técnicas e sociais que aos recursos naturais.
Como se produzem, cada vez mais, valores de troca, a especialização
não tarda a ser seguida pela necessidade de mais circulação. O papel desta,
na transformação da produção e do espaço, torna-se fundamental. Uma de
suas conseqüências é, exatamente, o aprofundamento das especializações
produtivas, tendentes a convocar, outra vez, mais circulação. Esse circulo
vicioso - ou virtuoso? - depende da fluidez das redes e da flexibilidade dos
reg ulamentos.
12 Revista TERRIT6RIO, ano IV, nº 6, jan./jun. 1999

A dinâmica dos espaços da globalização supõe uma adaptação perrna-


nente das formas e das normas. As formas geográficas, isto é, os objetos
técnicos requeridos para otimizar uma produção, somente autorizam essa
otimização ao preço do estabelecimento e da aplicação de normas jurídicas,
financeiras e técnicas, adaptadas às necessidades do mercado. Essas nor-
mas são criadas em diferentes níveis geográficos e políticos mas. em vista da
competitividade mundial, as normas globais, induzidas por organismos
supranacionais e pelo mercado, tendem a configurar as demais. E as normas
do mercado tendem a configurar as normas públicas.
Os novos subespaços são mais ou menos capazes de rentabilizar uma
produção. Cada combinação tem sua própria lógica e autoriza formas de ação
específicas aos agentes econômicos e sociais. As ações hegemônicas se
estabelecem e se realizam por intermédio de objetos hegemônicos. Então,
como num sistema de sistemas, o resto do espaço e o resto das ações são
chamados a colaborar. Podemos, então, falar de produtividade espacial ou
produtividade geográfica, noção que se aplica a um lugar, mas em função de
uma atividade ou conjunto de atividades. Essa categoria se refere mais ao
espaço produtivo, isto é, ao "trabalho" do espaço. Sem minimizar a importân·
era das condições naturais, são as artificialmente criadas que sobressaem,
enquanto expressão dos processos técnicos e dos suportes geográficos da
informação.
Estaríamos diante de um determinismo de tipo novo, um neodelermi-
nlsrno do espaço artificial? Como nos períodos anteriores, essa nova mani-
festação do meio geográfico se geografiza de forma desigual, segundo os
continentes, os países e dentro de cada país. Em certos casos, como na
Europa Ocidental, a maior parte dos territórios nacionais é ocupada por esse
meio técnico-científico-informacional que em outros casos, como no Brasil,
abrange uma vasta extensão, mas está longe de cobrir a totalidade do territó-
rio. Na maior parte dos países, apenas se limita a manchas ou pontos.

IV - Horizontalidades, Verticalidades, Redes, Regiões

Nas atuais condições, os arranjos espaciais não se dão apenas, como


nas regiões do passado, através de figuras formadas por pontos contínuos
e contíguos. Hoje, também, ao lado dessas manchas, ou acima delas, há,
também, constelações de pontos descontínuos, mas interligados, que defi-
nem um espaço de fluxos reguladores. Tudo isto junto é o espaço. É a partir
dessas novas subdivisões, que devemos pensar novas categorias analíti-
cas.
As segmentações e partições presentes no espaço sugerem, pelo me-
nos, que se admitam dois recortes a que estamos chamando de horizontal i-
dades e verticalidades. De um lado, há extensões contínuas, formadas por
pontos que se agregam sem descontinuidade, como na definição tradicional
Modo de produção técnico-científico e diferenciação espacial 13

de região. São as horizontalidades. De outro lado. há pontos no espaço que.


separados uns dos outros, asseguram o funcionamento global da sociedade
e da economia. São as verticalidades.
No primeiro caso, as horizontalidades, a solidariedade entre os ele-
mentos formadores deve-se, sobretudo, ao processo direto da produção. Veja-
se como exemplo a relação cidade-campo, onde a atração entre subespaços
com funcionalidades diferentes, atende à produção propriamente dita, já que
a cidade, sobretudo nas áreas fortemente tocadas pela modernidade, é o
lugar da regulação do trabalho agrícola. No segundo caso, as verticalidades,
a solidariedade é obtida através da circulação, do intercâmbio e de sua
regulação. Veja-se como exemplo a relação interurbana.
A idéia e a realidade das redes são dados fundamentais para se enten-
der a dinâmica atual do território.
Noção considerada como eminentemente geográfica no Dicionário da
geografia (Dictionnaire de la Gé ographie , 1970: 336-368), dirigido por P.
George, a rede pode ser enxergada segundo, ao menos, três sentidos, con-
forme propõe H. BAKIS (1993: 4): a) polarização de pontos de atração e difu-
são, caso das redes urbanas; b) projeção abstrata, caso dos meridianos e
paralelos na cartografia do globo; c) projeção concreta de linhas de relações
e ligações, caso das redes hidroqràficas, das redes técnicas territoriais e tam-
bém das redes de telecomunicações hertzianas, apesar da ausência de li-
nhas e com uma estrutura física limitada aos nós.
Mas o que é rede? As definições se multiplicam, mas pode-se admitir
que se enquadram em duas grandes matizes: a que apenas considera a sua
realidade material e uma outra, em que o dado social também é levado em
conta. A primeira atitude leva a uma definição formal, que N. CURIEN (1988:
212) assim retrata: "Toda infra-estrutura permitindo o transporte de matéria,
de energia ou de informação que se inscreve sobre um território onde se
caracteriza pela topologia dos seus pontos de acesso ou pontos terminais,
seus arcos de transmissão, seus nós de bifurcação ou de comunicação."
Mas a rede é também social e política, em virtude das pessoas, men-
sagens, valores que a freqüentam. Sem isso, e apesar da materialidade com
que se impõe aos nossos sentidos, a rede seria uma mera abstração. Talvez
por isso O. DOLLFUS propõe (1971: 59) que o termo rede seja limitado aos
sistemas criados pelo homem, deixando aos sistemas naturais o nome de
circuitos.
A noção de um espaço reticulado, que tanto encontramos num psicólo-
go como G. N. FISCHER (1980: 28) como num geógrafo como Claude
Raffestin, vem dessa construção deliberada do espaço como quadro de vida,
pronto a responder aos estímulos da produção em todas suas formas materi-
ais e imateriais. Mediante as redes, "a aposta não é a ocupação de áreas,
mas a preocupação de ativar os pontos ... e linhas, ou de criar novos".
(DURAND, LEVY, RETAILLÉ, 1992: 21)
As redes são portadoras de informações, na forma de produtos, mer-
14 Revista TERRITÓRIO, ano IV, nº 6, jan./jun. 1999

cadorias, idéias, dinheiro, recados afetivos. Sua função fundamental é asse-


gurar ligações, nos seus mais diversos aspectos. Essa é sua força, tanto
maior quanto mais numerosa a variedade de comunicações que o seu con-
teúdo técnico é capaz de permitir.
As redes são, ao mesmo tempo, globais e locais. São globais porque
cobrem todo o ecúmeno e, na verdade, constituem o principal instrumento de
unificação do Planeta. Mas elas também são locais, já que cada lugar, atra-
vés de sua estrutura técnica e de sua estrutura informacional, acolhe uma
fração, maior ou menor, das redes globais. No lugar, elas servem ao trabalho
e ao capital (vivo) e determinam a sua natureza. Como nacionais ou mun-
diais, as redes presidem à divisão internacional do trabalho e determinam a
natureza da cooperação (M. L. SILVEIRA, 1994: 75-76).
Graças aos progressos técnicos e às formas atuais de realização da
vida econômica cada vez mais as redes tendem a ser globais: redes produti-
vas, de comércio, de transporte, de informação. B. KAYSER e A. BRUN (1993:
1) mostram como "o espaço rural francês mesmo em suas zonas aparente-
mente marginais é completamente integrado ao sistema sócio-econômico glo-
bal". Mas a forma mais acabada e eficaz de rede é dada pela atividade finan-
ceira (O. RETAILLÉ, 1992: 118: GOLDFINGER, 1986), graças à desmateriali-
zação do dinheiro e ao seu uso instantâneo e generalizado.
As redes são incompreensíveis, se apenas as enxergarmos a partir de
suas manifestações locais ou regionais. Mas estas são também indispensá-
veis para entender como trabalham à escala do mundo. Conforme escreveu
F. BRAUOEL (1979: 57, Le temps du monde), a partir do movimento privilegi-
ado que desejamos iluminar, podemos descobrir o movimento global através
dos movimentos particulares, já que "todos esses ciclos são contemporâneos
e sincronizados; eles coexistem, estão misturados e somam ou subtraem seus
movimentos diante das oscilações do conjunto".
O espaço é o teatro de fluxos com diferentes conteúdos, intensidades
e orientações. O espaço total é formado por todos esses fluxos e por todos os
objetos existentes. Estes são intermediários, formando redes desiguais e de
características diversas, que se superpõem, emaranhadas em diferentes es-
calas e níveis e se prolongam umas às outras, desembocando em magmas
resistentes à "resificação". O todo constitui o espaço banal, isto é, o espaço
de todos os homens, de todas as firmas, de todas as organizações, de todas
as ações - em uma palavra, o espaço geográfico.
O uso desse espaço é seletivo. O que tantas vezes abusivamente se
denomina espaço de fluxos (CASTELLS, 1989: 348) na verdade não passa
de um subsistema do espaço lotai, subsistema formado por objetos dotados
de propósito e de um nível superior de tecnicidade e de intencionalidade e de
ações marcadas por um nível superior de intencional idade e racionalidade.
São objetos e ações em que o conteúdo em informação é mais denso do que
em outros subsistemas do mesmo espaço.
Apenas os atores hegemônicos se servem de todas as redes e se utili-
Modo de produção técnico-científico e diferenciação espacial 15

zam de todos os territórios. Mas o espaço reticular é o de sua eleição. Eis por
que os territórios nacionais se transformam num espaço nacional da econo-
mia internacional e os sistemas de engenharia mais modernos criados em
cada país são mais bem utilizados por firmas transnacionais que pela própria
sociedade nacional.
Daí a freqüente menção a um espaço sem fronteiras (J. ELLUL, 1967:
17; Y. MASUDA, 1962: 90), e a um "capitalismo sem fronteiras" (P.
CICCOLELLA, 1993), em que as empresas multinacionais "curto-circuitam"
os Estados (R. PETRELLA, 1989) e são os negócios e não os governos que
governam. Acreditar, todavia, que o Estado se tornou desnecessário é um
equívoco. A emergência de organizações e firmas multinacionais realça o
papel do Estado, tornado mais indispensável do que antes (A. GIDDENS,
1964: 135; H. SILVER, 1992; G. BOISMENU, 1993: 13; GROUPE de
LlSBONNE, 1994).
Nessa mesma corrente pós-modernista se inclui também a negação da
idéia de região. É fato que o fenômeno mudou fundamentalmente de signifi-
cado, mas não se pode declarar que ele deixou de existir.
Na definição atual das regiôes, longe estamos daquela solidariedade
orgânica que fora o próprio cerne da definição do fenômeno regional. O que
temos hoje diante de nós são solidariedades organizacionais. As regiões exis-
tem porque sobre elas se impõem arranjos organizacionais, criadores de uma

se tornam o fundamento da sua existência.


nece das velhas definições de Região?
°
coesão organizacional, baseada em racionalidades de origens distantes que
que, nessas condições, perma-

No decorrer da história das civilizações, as regiões foram se configu-


rando por meio de processos orgânicos, expressos através da territorialidade
absoluta de um grupo, de que provinham suas características de identidade,
excl usividade e Iim ites. A diferença entre áreas se dev ia a essa rei ação d ireta
com o entorno, isto é, à única presença desse grupo, sem outra mediação.
Podemos dizer que, então, a solidariedade característica da região ocorria,
quase exclusivamente, em função dos arranjos locais. Daí a confusão às ve-
zes feita, nos primórdios da geografia científica, entre as noções de região e
de paisagem.
Mas a velocidade das transformações mundiais deste século, acelera-
das vertiginosamente nos pós-guerra, fez com que a configuração regional
do passado desmoronasse. Alguns falam inclusive na morte da região, tama-
nha é a dificuldade de se apreenderem os novos nexos regionais. Da mesma
forma como se diz, hoje, que o tempo apagou o espaço (P. VIRILlO, 1984,
entre outros), também se afirma que, nas mesmas condições, a expansão
da presença do capital hegemõnico em todo o espaço teria eliminado as
diferenciações regionais e, até mesmo, proibido de seguir pensando em
região.
Mas, nos dias atuais, os lugares são condição e suporte de relações
globais que sem eles (lugares) não se realizariam. As regiões se tornaram
16 Revista TERRITÓRIO, ano IV, nº 6, jan./jun. 1999

lugares funcionais do todo, espaços de conveniência, uma particularidade, o


que, no dizer de LUKACS (1970), significa "um campo de mediações".
Agora, neste mundo globalizado, com a ampliação da divisão interna-
cional do trabalho e o aumento exponencial do intercâmbio, dão-se, paralela-
mente, uma aceleração do movimento e mudanças mais repetidas, na forma
e no conteúdo das regiões.
O momento atual faz com que elas se transformem continuamente,
legando, portanto, uma menor duração ao edifício regional. Mas isso não a
elimina, apenas ela muda de conteúdo.
Acostumamo-nos a uma idéia de região como um subespaço
longamente elaborado, uma construção estável, tal como definiu B. B.
ROOOMAN (1973: 104). Mas o que faz a região não é a longevidade do edi-
fício, mas a sua coerência funcional. É isso que a distingue das entidades
congêneres, vizinhas ou não. O fato de ter vida curta muda a definição do
recorte territorial, mas não o suprime.
A espessura do acontecer é aumentada diante do maior volume de
eventos por unidade de espaço e por unidade de tempo. A região continua a
existir, mas com um nível de complexidade jamais visto pelo homem.
Agora, nenhum subespaço do planeta pode escapar ao processo con-
junto de globalização e fragmentação, isto é, individualização e regionalização.
No presente período histórico, a própria tecnologia "é implosiva nos seus efei-
tos" (O. SCHON, 1971, 1973: 24-25). E o tempo acelerado, acentuando a
diferenciação dos eventos, aumenta a diferenciação entre os lugares, en-
quanto o fenômeno de Região ganha universalidade. Estendendo-se sobre
todo o ecúmeno, tende a redividi-Io por completo.
Em uma palavra: caminhamos, ao longo dos séculos, da antiga comu-
nhão individual dos lugares com o universo para a comunhão hoje global: a
interdependência universal dos lugares é a nova realidade do território.

v - Técnica, Informação, Comunicação:


uma tipologia dos subespaços

Sendo o espaço geográfico formado pelo conjunto indissociável de sis-


temas de objetos e de sistemas de ações (SANTOS, 1991), cada subespaço
inclui uma fração desses subsistemas.
Cada lugar, cada subespaço se definem também pela presença con-
junta, indissociável, de uma tecnoesfera e de uma psicoesfera, funcionando
de modo unitário. A tecnoesfera é o mundo dos objetos, a psicoesfera é a
esfera da ação. E os objetos, naturais ou artificiais, são híbridos - no sentido
proposto por ROTENSTREICH (1985), LATOUR (1991) e GRAS (1993) - já
que não têm existência real, valorativa, sem as ações. Assim, cada lugar,
cada subespaço tanto se define por sua existência corpórea quanto por sua
existência relacional. De resto, é assim que os sub-espaços existem e se
diferenciam uns dos outros.
Modo de produção técnico-cientrfico e diferenciação espacial 17

Os espaços da globalização apresentam cargas diferentes de conteú-


do técnico, de conteúdo informacional, de conteúdo comunicacional. Os luga-
res, pois, se definem pela sua densidade técnica, pela sua densidade
informacional, pela sua densidade com unicacional, atri b utos que se
interpenetram e cuja fusão os caracteriza e distingue. Tais categorias podem,
facilmente, ser identificadas na realidade empírica.
A densidade técnica é dada pelos diversos graus de artifício. As situa-
ções-limite seriam, de um lado, uma área natural jamais tocada pelo homem
- uma ecologia selvagem - e, de outro lado, uma área onde houvesse apenas
aq uilo a que SI MON DO N (1958) ch amo u de objetos técn icos mad uros, como
no centro de negócios de uma grande cidade, onde espaços inteligentes são
dispostos para atender prontamente às intenções dos que os conceberam e
produziram, objetos muito mais perfeitos que a própria natureza.
A densidade in forma cion ai deriva, em parte, da densidade técnica. Os
objetos técnicos, ricos, portanto, em informação, podem, todavia, não ser
agidos, permanecendo em repouso ou inatividade, à espera de um ator. A
informação apenas se perfaz com a ação. A densidade informacional nos
indica o grau de exterioridade do lugar e a realização de sua propensão a
entrar em relação com outros lugares, privilegiando setores e atores. A infor-
mação unívoca, obediente às regras de um ator hegemônico, introduz, no
espaço, uma intervenção vertical, que geralmente ignora o seu entorno, pon-
do-se ao serviço de quem tem os bastões de comando.
A densidade comunicacional resulta daquilo a que BERGER (1964:
173) chamou de "caráter humano do tempo da ação", já que o evento pode
°
ser vi sto com praxi s inte rs ubj ectiva (P ET IT, 1991) ou praxi s trans ind ivi dual
(SIMONDON, 1958: 248). Esse tempo plural do cotidiano partilhado é o tempo
conflitual da co-presença. Como lugar do acontecer solidário, esse espaço
banal da Geografia (e não o espaço especial, particular, adjetivado, do eco-
nomista, ou do antropólogo, ou do psicólogo, ou, ainda, do arquiteto ou do
filósofo) é criador da interdependência obrigatória e da solidariedade, gera-
das pelas situações de cara a cara de que fala SCHUTZ (1967: 60). Para
esse resultado, é essencial que "você e eu tenhamos o mesmo entorno", já
que "somente nessa situação"( ... ) "posso assumir, com maior ou menor cer-
teza, dentro da realidade diretamente vivida (experimentada) que a mesma
que estou vendo é a mesma, e a mesma em todas suas situações perspec-
tivas".
As relações técnicas e intorrnacíonaís não podem ser "indiferentes" ao
meio social ambiente. As relações comunicacionais são, ao contrário, uma
resultante desse meio social ambiente. As duas primeiras são mais depen-
dentes da esfera da materialidade, da tecnoesfera; as últimas o são mais da
psicoesfera, mesmo se, em todos os casos, tecnoesfera e psicoesfera
interagem. Mas as relações comunicacionais geradas no lugar, têm, mais
que as outras, um "geographic flavour", a despeito da origem, porventura dis-
tante, dos objetos, dos homens e das ordens que os movem.
18 Revista TERRITÓRIO, ano IV, n\! 6, jan./jun. 1999

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Manifesto

o PAPEL ATIVO DA GEOGRAFIA


UM MANIFESTO

Milton Santos=

The active role of Geography: A Manifesto

The active role of Geography in conccption which encompasses both the


Academia, in Planning and as a tool for aclive role of space as actor and its role
building up citizenship are discussed in as lhe object of action. It is only through
this Manifesto. Considering space as the adoption 01' such a perspective that
the central scientific category of the dis- geographers will effectively address the
cipline, the author proposes that one significam questions which face society
should view it as 'used territory ', a today.

1 Se tal conceituação não é


abrangente de todas as formas de
o papel atribuído à geografia e relação da sociedade com seu meio,
a possibilidade de uma intervenção as intervenções serão apenas parciais
válida dos geógrafos no processo de ou funcionais, e sua eficácia será Ii-
transformação da sociedade são mitada no tempo.
interdependentes e decorrem da ma- É verdade que, na linguagem
neira como conceituarmos a discipli- comum e no entendimento de outros
na e seu objeto . especialistas, assim como de políticos

. Colaboradores: Adriana Bernardes, Adriano Zerbini, Cilene Gomes, Edison Bicudo, Eliza
Almeida, Fabio Betioli Contei, Flávia Grimm, Gustavo Nobre, Lídia Antongiovanni, Maíra
Bueno Pinheiro, Marcos Xavier, María Laura Silveira, Marina Montenegro, Marisa Ferreira
da Rocha, Mónica Arroyo, Paula Borin, Soraia Ramos, Vanir de Lima Belo

Estudos Territoriais Brasileiros - Laboplan


Departamento de Geografia
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
Uni versidade de São Paulo

XII Encontro Nacional de Geógrafos - Florianópolis - Julho de 2000


104 Revista Território, Rio de Janeiro, ano V, n" 9, pp. 103-109,jul./dcz., 2000

e administradores, a geografia é fre- frouxas, as práticas políticas aImeja-


qüentemente considerada como a dis- das serão, no mínimo, enviesadas.
ciplina que se preocupa com localiza- A compreensão do espaço ge-
ções. Aliás, um bom número de ográfico como sinônimo de espaço
geógrafos trabalha com essa visão. banal obriga-nos a levar em conta
A geografia considerada como todos os elementos e a perceber a
disciplina das localizações, posição inter-relação entre os fenômenos.
aceita durante largo tempo, mostra-se Uma perspectiva do território usado
todavia limitante do rol de relações conduz à idéia de espaço banal, O
que se dão entre o homem e o meio e, espaço de todos, todo o espaço. Tra-
por essa razão, revela-se insuficiente. ta-se do espaço de todos os homens,
Mas esse não é o único enfoque não importa suas diferenças; o espa-
simplificador e deformador. ço de todas as instituições, não im-
porta a sua força; o espaço de todas
2 as empresas, não importa o seu po-
der. Esse é o espaço de todas as
Foi por isso que propusemos dimensões do acontecer, de todas as
considerar o espaço geográfico não determinações da totalidade social. É
como sinônimo de território, mas como uma visão que incorpora o movimen-
território usado; e este é tanto o to do todo, permitindo enfrentar cor-
resultado do processo histórico quan- retamente a tarefa de análise. Com
to a base material e social das novas as noções de território usado e de
ações humanas. Tal ponto de vista espaço banal, saltam aos olhos os
permite uma consideração abrangente temas que o real nos impõe como
da totalidade das causas e dos efeitos objeto de pesquisa e de intervenção.
do processo socioterritorial. Mas tal constatação não é suficiente.
Essa discussão deve estar É indispensável afinar os conceitos
centrada sobre o objeto da disciplina que tornem operacional o nosso
- o espaço geográfico, o território enfoque. A riqueza da geografia como
usado - se nosso intuito for construir, província do saber reside, justamente,
a um só tempo, uma teoria social e no fato de que podemos pensar, a um
propostas de intervenção que sejam só tempo, os objetos (a materialidade)
totalizadoras. Entre os geógrafos, in- e as ações (a sociedade) e os mútuos
cluindo aqueles convidados para tra- condicionamentos entretecidos com o
balhar com toda sorte de questões movimento da história. As demais ci-
voltadas ao planejamento, o problema ências humanas não dominam esse
do espaço geográfico como ente rico veio epistemológico.
dinamizador da sociedade é raramen- O território usado constitui-se
te levado em consideração. Ora, se como um todo complexo onde se tece
as bases do edifício epistemológico são uma trama de relações complementa-
o Papel Ativo da Geografia. Um Manifesto 105

res e conflitantes. Daí o vigor do vimento da disciplina e de seu papel


conceito, convidando a pensar proces- como ramo do conhecimento, particu-
sualmente as relações estabelecidas larrnente quando parecem tomar o
entre o lugar, a formação socioespacial lugar da geografia ou justificar auto-
e o mundo. nomamente sua existência.

3 4

Cada vez que, em lugar de Por vezes é a própria forma-


considerar o movimento comum da ção do geógrafo que se torna um
sociedade como um todo e do territó- convite à fragmentação do conheci-
rio como um todo, partimos de um mento e do trabalho.
dos seus aspectos, acabamos encon- Quando se toma apenas uma
trando Iineamentos que apenas são parte do corpus da disciplina e assim
aplicáveis a uma determinada área de mesmo o trabalho se torna exito o, há
atuação - uma instância da vida so- nas pessoas um reforço à crença
cial -, sem todavia autorizar uma in- numa disciplina parcializada. É comum
tervenção realmente eficaz para o con- a opinião de que propor intervenções
junto da sociedade. Em outras pala- é possível àqueles enfoques fundados
vras, tais soluções são ocasionais, mas em visões parciais, ainda que essas
não duradouras, remédios parciais, mas intervenções amiúde sejam funcionais
não globais. à política das grandes empresas. Será
Qualquer proposta de análise e esse o êxito que buscamos?
interpretação que pretenda inspirar ou No ensino da geografia é me-
guiar uma intervenção endereçada ao nos freqüente do que seria desejável
conjunto da sociedade não pode pres- a consideração da totalidade do co-
cindir, então, de uma visão desse todo. nhecimento geográfico. A geografia
Incapazes de gerar mudanças que en- é quase sempre apresentada ao estu-
globem a totalidade do território e da dante, desde o primeiro momento, de
sociedade, as intervenções parciais forma segmentada, dificultando a
atendem a interesses particulares ou apreensão de uma abordagem essen-
apresentam resu ltados efêmeros e cialmente geográfica e comprometen-
inoperantes. do a formação do profissional e o
Uma posição parcial da geogra- futuro da própria disciplina. Como
fia frente ao seu objeto encontra abri- resultado, muitas vezes o geógrafo
go nas fragmentações e dicotomias especializa-se em um ramo
presentes em seu próprio seio, o que operacional voltado ao restrito mer-
a toma teoricamente frágil. Conheci- cado de trabalho.
mentos operatórios e parcelares po- Acreditamos poder escapar à
dem tornar-se entraves ao desenvol- "parc ial iz.ação" da disciplina (e,
106 Revista Território, Rio de Janeiro, ano V, n" 9, pp. 103-109, jul.ldez., 2000

destarte, das intervenções a partir Soma-se a isto a consagração da frag-


dela), com a busca firme e continua- mentação no ensino em todos os pla-
da de uma ontologia do espaço geo- nos (nas aulas, nos livros, nas grades
gráfico. Esta busca pode ser entendi- curriculares). A situação é agravada,
da como a construção de um conjunto ainda, quando no ensino superior -
de proposições epistemológicas que, público e privado - adota-se uma es-
formando um sistema lógico coerente, pecialização cujo fim é atender a uma
e sendo fundada nos avanços certa política e ao mercado.
metodológicos já conseguidos pela
disciplina no século XX, aprimoraria o 6
que se pode chamar de "núcleo duro"
da geografia, desembocando, neces- Tanto o mercado como a polí-
sariamente, numa visão geográfica tica às vezes inspiram soluções desse
totalizadora. tipo. Não será o caso de certas pro-
Conseguiríamos, desse modo, postas fundadas por exemplo nas
um rechaço à "indolência epistemoló- geografias do turismo, do meio ambi-
gica" (situação que, aliás, não é só ente, da cultura, dos SIG's, ou de
brasileira) na produção do conheci- sugestões ditas de planejamento regi-
mento geográfico. onal mas que, na verdade, beneficiam
uma ou poucas atividades em um dado
5 momento?
Não é demais assimilar estas
o espaço é freqüentemente proposições a uma fragmentação da
considerado como espaço político, disciplina geográfica em outras tantas
espaço econômico, espaço antropoló- geografias, que desejam, na prática,
gico, espaço turístico. E esse é um impor-se como autônomas, quando seu
grande problema para a disciplina. papel auxiliar apenas as qualifica como
Fragmentada, a geografia não ramos operacionais de uma geografia
oferece uma explicação do mundo e mais complexa e unitária. Esta pare-
portanto passa a precisar, cada vez ce mais possível de alcançar através
mais, de adjetivos que expliquem a de uma perspectiva do território
sua finalidade. Ela perde substância e usado, uma vez que estamos levando
corre sérios riscos de não ser mais em conta todos os atores.
necessária nos currículos escolares. Buscando atender às exigênci-
Tal fragmentação é decorrente, de um as na formação de profissionais para
lado, da crescente impossibi Iidade, o mercado de trabalho, cursos de
socialmente gestada, de percebermos graduação têm privilegiado a especi-
que todos os elementos agem conjun- alização do saber em detrimento do
tamente (e separações podem ser conhecimento abrangente, afastando
feitas apenas para fins analíticos). o profissional do cidadão. Por outro
o Papel Ativo da Geografia. Um Manifesto 107

lado, políticas restritivas de financia- dade do mundo real. Todavia, no caso


mento provocam um distanciamento particular da geografia, essa idéia de
entre as várias áreas do saber, pri- unidade da Terra é contraposta por
vilegiando-se àquelas que possibili- aqueles que se apóiam em realidades
tam investigações aplicadas, consi- parciais para fundamentar argumen-
deradas de maior relevância econô- tações também parciais ou redutoras.
mica ou política. Assim, a geografia foi se firmando ao
Nesse contexto, muitos longo de sua história à base desse
geógrafos procuraram adaptar-se às confronto entre duas vocações bem
novas exigências por meio de saídas distintas. No plano do conhecimento
particularistas no ensino e na pesqui- ou das propostas de ação, a verdade
sa, enfatizando aspectos da realidade teria sido tomada por diversas formas
social como se fossem a totalidade do de engano.
fenômeno geográfico. Em nome de E hoje? Quando a própria glo-
uma modernização utilitária e produ ti- balização é vista como um resultado
vista, certos cursos de geografia cor- da vontade de integrar mercados se-
rem o risco de jogar fora princípios gundo um discurso único, ela não
que deveriam balizar e singularizar permite o reencontro de enfoques
esta área do saber. mais abrangentes.

7 8

Na evolução do pensamento o problema central é como


geográfico, a vontade de totalização e utilizar os conhecimentos sistematiza-
a formulação dos respectivos enfoques dos por uma disciplina no delineamen-
têm sido presentes, ainda que contra- to de soluções práticas e caminhos
riadas sempre por uma tendência à frente aos problemas concretos da
segmentação. sociedade. Dependendo das filiações
Vejamos um exemplo. Na épo- teórico-ideológicas dos autores, isso
ca de Vidal de la Blache, a possibili- parece ter sido possível a especialis-
dade de totalização, às vezes concre- tas da ciência política, da economia
tizada com a ajuda da política de um etc, cuja tarefa ultrapassa, sem maio-
Estado necessitado de um conhecimen- res dificuldades, o limite da simples
to geográfico, não sofria as investidas interpretação dos fenômenos para
do mercado tal como as conhecemos sugerir mudanças, isto é, para se erigir
hoje. Desse modo, opunha-se um di- como uma política.
que à fragmentação do saber geográ- Quando o esquema interpreta-
fico e das suas propostas de ação. tivo da sociedade, próprio à nossa
Enfoques totalizadores tendem província do saber dá conta da reali-
a buscar uma correspondência à uni- dade concreta em sua totalidade, ele
108 Revista Território, Rio de Janeiro, ano V, n" 9, pp. 103-109, jul./dez., 2000

pode ser o fundamento da construção compreender indissociavelmente obje-


de um discurso novo para a ação tos e ações.
política dos ator~s sociais responsá- O território usado, visto como
veis por sua prática, tais como parti- uma totalidade, é um campo privilegi-
dos políticos, movimentos sociais, ins- ado para a análise, na medida em que,
tituições etc. Um discurso socialmen- de um lado, nos revela a estrutura
te eficaz pode ser o conteúdo, a base global da sociedade e, de outro lado,
de intervenções "sistêmicas" na so- a própria complexidade do seu uso.
ciedade, em diferentes níveis do exer- Para os atores hegemônicos o
cício da política, entre os quais, o mais território usado é um recurso, ga-
abrangente seria a contribuição para rantia da realização de seus interes-
a elaboração de um projeto nacional, ses particulares. Desse modo, o
comprometido com a transformação rebatimento de suas ações conduz a
da sociedade em benefício da maioria uma constante adaptação de seu uso,
da população do país. com adição de uma materialidade
A idéia de intervenção supõe funcional ao exercício das atividades
um interesse político, entendido como exógenas ao lugar, aprofundando a
interpretação histórica mais ampla, que di visão social e territorial do trabalho,
implica um ideal de futuro como es- mediante a seletividade dos investi-
paço de resolução de problemas su- mentos econômicos que gera um uso
postamente arraigados nas sociedades. corporati vo do território. Por outro
lado, as situações resultantes nos
9 possibilitam, a cada momento, enten-
der que se faz mister considerar o
Não se trata de impor uma comportamento de todos os homens,
definição única. O conteúdo de uma instituições, capitais e firmas. Os dis-
geografia compreensiva pode certa- tintos atores não possuem o mesmo
mente responder a uma entre várias poder de comando levando a uma
linhas teóricas, segundo a escolha do multiplicidade de ações, fruto do con-
autor. Mas, a partir daí, é indispensá- vívio dos atores hegemônicos com os
vel dispor de um conjunto coerente hegemonizados. Dessa combinação
de proposições, onde todos os elemen- temos o arranjo singular dos lugares.
tos em jogo sejam considerados em Os atores hegemonizados têm
sua integração e em seu dinamismo. o território como um abrigo, buscando
A geografia deve estar atenta constantemente se adaptar ao meio
para analisar a realidade social total a geográfico local, ao mesmo tempo que
partir de sua dinâmica territorial, sen- recriam estratégias que garantam sua
do esta proposta um ponto de partida sobrevivência nos lugares. É neste
para a disciplina, possível a partir de jogo dialético que podemos recuperar
um sistema de conceitos que permita a totalidade.
o Papel Ativo da Geografia. Um Manifesto 109

10 território como ator e a sociedade


como objeto da ação. É essa, ao nos-
Somente assim responderemos so ver, a maneira de encontrar um
à questão crucial de saber como e enfoque totalizador, que autorize uma
porque se dão as relações entre a intervenção interessando à maior par-
sociedade como ator e o território te da população.
como agido e, ao contrário, entre o
DINIZ FILHO, L. L. Para que a Geografia mude sem ficar a mesma coisa

PARA QUE A GEOGRAFIA MUDE SEM FICAR A MESMA COISA1


For that geography changes without staying the same

Milton SANTOS2

Quando de sua primeira fundação oficial no fim do solidamente estabelecida, fundada, a um tempo, nos fatos
século XIX, a Geografia não pode tirar completamente as e na contribuição cada vez mais ampla de ciências que
conseqüências de nenhum dos fundamentos filosóficos então se renovavam ou criavam. Foi desse modo que as
que buscava: guardou uma retórica guardada para o condições se mostraram maduras para que a corrente já
homem, mas foi jogada, com os pés e mãos atados, a nascida utilitária, metamorfoseando antigas posições em
serviço de todo tipo de poder. A recém-criada Geografia novos aspectos e múltiplos disfarces, e ajudada pelas
Colonial, a idéia de região imbricada a gênero de vida, as novas exigências de realização da economia, terminasse
diversas modalidades de culturalismo, eram o lado prevalecendo.
instrumental que, na prática, faziam desaparecer a Conforme já o escrevemos alhures,3 a Geografia
possibilidade de realmente se alcançarem os proclamados acabou por se tornar a viúva do espaço, indiferente à sorte
princípios da atividade e da unidade da terra, assim como do homem. O que preocupa essa Geografia é o homem
outros postulados. médio e não o homem verdadeiro, e a sociedade
Como em toda fase de crise, como foi aquela em considerada como criadora de espaços é a sociedade
que a Geografia oficial se fundou, nem todos rezavam “global” e não a sociedade tal como ela é, dividida em
pela mesma cartilha, havendo os que propugnavam uma classes. Tal ponto de partida constitui, o essencial das
ciência mais engajada com a construção de um futuro preocupações e da pesquisa geográfica, e termina
melhor para o homem, onde ele estivesse. Mas a corrente aparecendo como se fosse o seu objeto, graças aos
instrumentalista ganhou, ainda que alguns propusessem recursos postos à disposição dos que, conscientemente
um discurso humanista e até, possivelmente, nele acredi- ou não, preferem tais idéias.
tassem. Felizmente, há os que se rebelam contra tal
Com as duas guerras e sobretudo após a segunda maneira de interpretar a face da terra a sua transformação
grande guerra, a mesma busca de renovação e o mesmo pelo trabalho dos homens. Há mais de dez anos, na
divórcio fundamental entre posições: de um lado, as Europa como na América Latina, nos Estados Unidos e
preocupações sociais, de outro os mandamentos do no Canadá como na Austrália, firmam-se relações em
utilitarismo. A primeira corrente deixou como herança uma múltiplas direções, revestindo uma direcionalidade maior
certa preocupação com o bem comum, mas faltava, em ou menor, mostrando sinceridade maior ou menor, num
bom número de casos, a elaboração de uma teoria movimento semelhante àquele que, sob a impulsão de

1
Artigo originalmente publicado no Boletim Paulista de Geografia, n. 59, p. 5-22, 1982. Agradecemos ao estagiário Luciano Félix da
Silva pelo trabalho de digitação do original.
2
Professor Adjunto Doutor do Depto. Geografia UFPR.
3
Tratamos amplamente desse assunto em nosso livro Por uma Geografia Nova, São Paulo: Hucitec, 1982.

126 R. RA´E GA, Curitiba, n. 9, p. 125-134, 2005. Editora UFPR


DINIZ FILHO, L. L. Para que a Geografia mude sem ficar a mesma coisa

Pierre George e Jean Dresch, se esboçara dentro das e dependentes em causas endógenas, mais culturais que
fronteiras da França após a Segunda Guerra Mundial e econômicas.
ainda agora produz os seus frutos. Pode-se dizer que as dificuldades com as quais
No âmbito internacional, a Geografia está hoje, se defronta o sistema capitalista no momento atual
novamente, marcada por uma oposição de tendências.4 exigem que a nova moralidade dos negócios, a ética das
De um lado, os que não desejam que a História se faça grandes empresas transnacionais, também encontre sua
em favor dos povos dependentes e das classes oprimidas. expressão nas ciências sociais. Estas são chamadas a
Do outro, os que pugnam por uma nova ordem social- dar sua contribuição à elaboração da nova ordem, através
mente mais justa. da codificação de novas regras de intercâmbio entre
Entre os primeiros, surgem novas formas de países, firmas e pessoas, em detrimento da moral
apresentação de velhas posições, tanto mais perigosas tradicional que o próprio capitalismo se havia imposto
quanto mais bem revestidas, mas há, também, uma em sua fase liberal. Trata-se, na verdade, da justificação
busca de parecer outra coisa, um mimetismo cuja do egoísmo em todas as escalas, desde a das relações
identificação nem sempre é fácil. A reencadernação da internacionais à das relações interpessoais. O
Geografia Cultural, o neodarwinismo redivivo sob a capa amoralismo ao qual as ciências do homem são convidadas
de sociobiologia e um humanismo de fachada, onde se parece indispensável para atribuir uma roupagem de idéias
incluem postulações fenomenológicas “sui-generis”. a um capitalismo tornado cada vez mais autoritário,
carapaça pseudocientífica indispensável a manter ao preço
da violência, se necessário, a dominação sobre os
NEOCULTURALISMO, NEODARWINISMO, recursos que constituem a base material do sistema,
SOCIOBIOLOGIA cada dia mais estreita.
É nessa mesma ordem de idéias que se busca
A Geografia Cultural de Sauer e de Gorou está reviver o neodarwinismo, através da sua renovação e
sendo novamente promovida como um enfoque incorporação às diversas ciências sociais.
fundamental à compreensão do espaço.5 Há cerca de 40 Uma certa Geografia já se havia apropriado no
anos, esse método conduzia a esconder as variáveis cuja passado da corruptela do darwinismo, a que Appleman
dimensão ultrapassava aquelas da área estudada6 e preferiu apelidar de “darwinisticismo”. Daí a observação
atribuía à cultura particular a uma sociedade um papel de Dickinson (1969, p. 189) ao escrever que o realmente
que, de fato, deveria ser buscado no âmbito de uma significativo desenvolvimento do conhecimento humano,
economia mais geral cujo funcionamento, sobretudo nos em sua relevância quanto ao desenvolvimento da geografia
países dependentes ou colonizadores (não se falava ainda moderna, deu-se no terceiro quartel do século XIX, com o
em subdesenvolvimento), pode ser explicado sem uma impacto do pensamento evolucionista de Darwin (após
vontade de ir procurar e localizar interesses distantes, 1859).7
os interesses das grandes potências, ao mesmo tempo Não deve causar espanto que, numa fase de crise
que as coisas internas. histórica aguda, um novo apelo seja feito às idéias de
Nos tempos atuais, os equívocos que o enfoque Darwin, como apoio à justificação do uso do poder dos
cultural suscitava se tornam mais numerosos e mais mais fortes sobre os mais fracos.
evidentes, devido à internacionalização da economia. A crise de nossos dias é feita também de
Regressar a esse método de interpretação da realidade confrontações numerosas entre detentores de matérias-
equivale a querer eliminar os efeitos perversos de uma primas e seus potenciais usuários, de fornecedores de
dependência econômica aumentada e a impor, como se trabalho e emprestadores de capital. Como os que
fosse legítima, uma interpretação segundo a qual deve- dominam a cena não desejam abandonar essa arena
se buscar explição para as dificuldades de países pobres privilegiada − embora cada vez mais contestada −, a

4
Um estudo fundamental das tendências recentes da Geografia é o de GILLES SAUTTER (1975), que constitui uma tentativa bem
sucedida de apresentar de modo objetivo − e também crítico − as diversas tendências filosóficas atuais e o modo como se apresentam na
prática geográfica em diversos países.
5
A propósito da renovação do enfoque culturalista ver, entre outros, NEWSON, Linda, Cultural Evolution: a basic concept for human
and historical geography, Journal of Historical Geography, n. 2, p. 239-255, 1976.
6
“O desenvolvimento da Geografia Cultural utilizou-se da reconstrução, em uma área, de culturas sucessivas, começando pela
mais antiga até chegar à mais recente de todas” (SAVER, 1962, p. 33).
7
Sobre esse tema consultar, por exemplo, Stoddart, D. P. Darwin’s Impact on Geography. Annals, Association of American Geographers,
v. 56, 1966, p. 683-689.

R. RA´E GA, Curitiba, n. 9, p. 125-134, 2005. Editora UFPR 127


DINIZ FILHO, L. L. Para que a Geografia mude sem ficar a mesma coisa

solução é o uso da violência, ainda que apresentada sob para sugerir as relações entre fenomenologia e Geografia,
novos modelos de sofisticação. A universidade teria que antes de publicar sua tese em 1973. Seu livro Place and
ser chamada a dar forma a novas justificações e, entre Placelesness (1980) é um grande esforço na mesma
as formas renovadas do darwinismo social, criou-se direção. Aliás, Yi-Fu Tuan havia, também, escrito nos
mesmo uma nova disciplina, cuja rápida expansão vai, Annals of the American Association of Geographers um
talvez, buscar sua explicação em sua utilidade. Referimo- artigo em sentido idêntico.
nos à Sociobiologia, que fornece também à Geografia Buttimer redigirá, em 1974 o seu belo ensaio sobre
um novo embasamento.8 Values in Geography, e, a pretexto de uma leitura dos
É, aliás, à mesma inspiração que se deve o esforço filósofos existencialistas, proporá, em 1976, em esboço de
de valorização da linguagem como forma de interpretação uma fenomenologia do espaço. Outros geógrafos, sobretudo
dos fatos correntes. Trata-se menos da linguagem como nos Estados Unidos, ocuparam-se de fenomenologia, como
expressão da sociedade e cuja construção se assemelha Walmsley (1974), Mercer e Powell (1972) e Billinge (1977)
à do espaço humano, e mais da linguagem chamada ou do humanismo, tais como Guelke (1974) e Entrikin (1976).
“ordinária”, resultado de um discurso da moda, hoje Mas outros esforços foram nessa mesma linha e, se não
imposto facilmente às populações, como mediação podemos citar todos eles, seria injusto esquecer o trabalho
perversa tomada indispensável entre a cultura profunda e pioneiro de Lowenthal (1961).
a cultura de massa. A “manipulação da linguagem” Todos esses estudos revelam diversas modalidades
sugerida por um geógrafo americano, constitui, de interesse pelo homem, na sua qualidade de
certamente, um novo disfarce para o neopositivismo, indivíduo,11 mas raramente concluem por fazer proposições
doutrina já surrada em nossa disciplina (SYMANSKI, concretas e viáveis em vista de uma mudança social que
1976).9 possa assegurar a chegada de uma nova situação. Pode-
Mas, o prato de resistência de Symanski é o seu se dizer que, em sua maioria, eles não ultrapassam o
estudo intitulado, em associação com Burley, Geography plano dos votos piedosos; ou que seu interesse humano é
and Natural Selection Revisited, uma espécie de apelo apenas literário. Também se poderia criticá-los pela falta
ao passado, como o título explicita.10 Para envolver-se de coerência filosófica que a abundância e o amontoado
com a moda da Sociobiologia, ele toma como ponto de de citações só faz tornar mais clara. Trata-se de um
partida um adepto fervoroso do chamado determinismo humanismo sem o homem verdadeiro e total, de uma
geográfico: Huntington (1924). moralidade sem conseqüência política. O discurso
A aplicação da Sociobiologia equivaleria à utilização epistemológico correspondente é freqüentemente confuso
de uma espécie de neodarwinismo moderno em e a escolha das bases filosóficas de discussão é parcial.
Geografia. Aos países e às regiões seria aplicado o Ensaios mais bem construídos, como os de Buttimer,
princípio da seleção natural, que acaba por consagrar os poderiam tirar mais partido do enfoque fenomenológico para
mais fortes e destruir os mais fracos, como resultado de mostrar como “o dinamismo do mundo vivo” depende de
uma lei inevitável que encontra similitude no próprio um processo que vai, incessantemente, da sociedade ao
comportamento da natureza. Tal lei da floresta aplicada espaço e vice-versa. Mas, o encasulamento nas idéias de
à Geografia mostra-se útil à explicação tanto das Heidegger acarreta uma concepção individualista e idealista,
diferenças também em outras frentes, como através do cujo resultado mais claro é o de substituir a praxis coletiva
humanismo e da fenomenologia. por uma praxis individual, suprimindo, assim, a possibi-
Entre os que pregam uma Geografia “humanística”, lidade de captar o movimento da sociedade e do espaço
a começar pela obra pioneira de Yi-Fu Tuan (1965, 1971, como dois dados contraditórios e, ao mesmo tempo,
1974) estão praticamente os mesmos que sugerem a complementares.
introdução de um enfoque fenomenológico em Geografia Aquilo que se chama a prática individual não pode
(e vice-versa). Edward Relph produzia, em 1970, um artigo ser confundido com a prática coletiva, ou melhor, com a

8
Sobre esta questão ver vários autores citados nas referências.
9
SYMANSKY, Richard The manipulation of ordinary language. Annals, Association of American Geographers, 1976, n. 4, v. 66, p.
605-614.
10
Esse longo trabalho de Richard Symansky e Nancy Burley foi publicado nas Discussion Paper Series n. 25, da Universidade de
Siracuso. O debate foi retomado aos cuidados de David J. Robinson, que reuniu trabalhos de nada menos que oito colegas, sob o título
Comments on Geography and Natural Selection, publicado na mesma coleção de 1977, sob o número 26.
11
... “o enfoque humanista jamais será realmente popular. A razão não vem apenas do fato de que ele parecerá muitíssimo menos
eficiente do que a manipulação direta do meio físico. Uma razão mais forte é que poucas pessoas se preocupam profundamente em si
mesmas com o seu próprio ser. O conhecimento de si mesmo, que é a mais alta recompensa da aventura humana, foi sempre coisa suspeita
na cultura ocidental” (YI-FU TUAN, 1976, p. 275/6).

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prática social. O que se chama de prática individual são Podemos acrescentar que, dessa maneira, não
os comportamentos dos indivíduos na vida corrente, apenas o passo definitivo não foi dado para a ingente
conjunto de atitudes e de gestos com os quais cada tarefa de filosofar em nossa disciplina, isto é, para a
homem se insere na vida de sua própria coletividade como expansão de uma filosofia do espaço concreto que se
produto e como cidadão. Desse tipo de prática, diz-se beneficiasse da contribuição daquilo que Moscovici (1977)
freqüentemente que ela comporta uma parcela importante chamou de história humana da natureza.12
de escolha pessoal, de indeterminação e do que se Falta-nos, na verdade, essa necessária articulação
chama sorte. entre o pensamento filosófico e o nosso objeto de
A prática social é, na verdade, coisa diferente. Ela conhecimento, o chamado espaço geográfico.
é um resultado direto das necessidades sociais, num Mais de uma vez, geógrafos têm falhado no seu
lugar dado e num momento dado e, dessa maneira, ela desejo de transportar para a Geografia noções apresen-
se impõe a todos os que participam da coletividade, seja tadas ou maduramente adquiridas no convívio dos livros
qual for sua categoria, nos mencionados lugar e momento: de filósofos. Usando mal essas muletas, é pouco
por isso, ela é exterior aos indivíduos e se sobrepõe a freqüente que consigam fazer avançar a nossa disciplina
todos e a cada qual como necessária, isto é, como uma neste ou naquele ponto.
necessidade. A questão não é simples. A filosofia na Geografia
É à prática social que se deve reservar a fórmula supõe, para sua eficácia, uma filosofia da Geografia. Em
simplificada de prática ou praxis. Sem isto, tornar-se-ia outras palavras, é preciso pensar a nossa disciplina
impossível apreender e materializar o próprio objeto da dentro, e não fora. Sem esse pensamento de dentro, o
atividade do conhecimento. Se levarmos em conta as que se obtém é, apenas, um fraseado elegante,
praxis individuais ou, melhor dito, as correspondentes a paramentado com citações bem arrumadas, mas só. Um
cada indivíduo, encontraríamos uma multiplicidade de grande número de artigos e mesmo de livros recentemente
objetos de referência. Desse modo, a realidade, o objeto publicados nos Estados Unidos corresponde ao modelo
real, pareceria pulverizado, dividido em tantos objetos acima desenhado.
particulares quantas são as pessoas a quem sua Qual a razão de um resultado tão reles? A razão
realidade concerne. Em outras palavras, o objeto em si está no simples fato de que, quando se trata de um ramo
perderia sua realidade e, então, nenhum conhecimento particular do conhecimento, a filosofia particular respectiva
dele como o que ele é, seria possível. só se pode fazer ao redor de um objeto compatível e
O que, na verdade, ocorre é que a prática, a praxis, previamente preciso. Em nosso caso, por exemplo, sem
é, antes do mais, uma realidade estrutural, estruturada e isso não há como começar, nem como terminar, assim
estruturante ao mesmo tempo; assim ela depende como a teoria da Geografia – se queremos ter uma – é a
estreitamente da totalidade social e não o contrário. Os teoria do espaço do homem, uma filosofia da Geografia,
comportamentos dos indivíduos, isto é, as praxis se for admitido utilizar essa palavra, será uma filosofia do
individuais, são subordinados, estruturados pela praxis espaço do homem. Isto supõe que dois termos se ponham
social. A liberdade que é freqüentemente reconhecida como princípio e fim do raciocínio: a natureza e a
aos agentes não é outra coisa senão sua participação produção. Assim, conhecemos o espaço tal qual ele é,
nas praxis coletivas, por intermédio de uma escolha soma de coisas “naturais” e de coisas “fabricadas” e
limitada de opções já incluídas na própria estrutura. síntese dialética dessas duas séries de coisas, movida
Smith (1979) sugeriu que, através da popularidade pela própria produção, isto é, pelo homem e sua história.
alcançada pela fenomenologia, a porta ficava aberta para Fora daí, do que podemos falar? Como transferir
uma renovação do positivismo geográfico, apresentado categorias universais e −, portanto − fixas e gerais para a
sob novas cores. interpretação do que tem vida graças ao fato de reproduzir,

12
“Para irmos além do empirismo e das debilidades do pragmatismo, é necessária uma discussão mais explícita da filosofia e da
sociedade. É necessário reformular o quadro conceitual e a filosofia social da Geografia. Geografia é menos interessante do que poderia
ser, em parte porque sua filosofia é geralmente implícita e conservadora e, na verdade, sua “filosofia” freqüentemente é pouco mais que
“metodologia”. Isso tem contribuído para a síndrome do “vagão banda de música”. Em vez de analisar suas insatisfações, alguns geógrafos
se tornam “beachcombers wading in the shallows of theyr disciplines” (por exemplo, a biologia). Isto também implica em que alguns tópicos
(por exemplo, a pobreza) são necessariamente mais fecundos que outros (como a indústria). Mas o que se necessita não é “a topical
veneer, or guiltridden introspection” acerca dos valores pessoais. Uma análise científica adequada dos “desprivilegiados” e a produção
como distribuição da riqueza. Deveria, igualmente, incluir a respectiva produção de ideologias. Isso exige um “rekinalling of geography’s
holistic and historical hadition” (como exemplificado na escola escocesa, com H. J. Fleure) e reintegrando-a com os ganhos obtidos com as
“revoluções” quantitativa e comportamental, das quais até certo ponto foi a vítima” (ANDERSON, 1973, p. 5).

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em circunstâncias concretas específicas, a totalidade, Temas como o da luta de classes e o da


em mudança, do Ser? As próprias noções fundamentais, acumulação do capital são, também, muito freqüentes.
eternas e universais de essência, processo, função e Muitos se contentam de mencionar esses dois temas
forma ganham uma nova dimensão quando aplicadas, ao fundamentais, pelo fato de que falam por si mesmos. Nada,
conhecimento específico do uso do território, objeto de certamente, é mais enganador. Tanto a discussão sobre a
nossos esforços científicos. luta de classes quanto a que se faz sobre a acumulação
do capital são termos escorregadios. Freqüentemente
conduzem a tautologias que, por isso mesmo, em nada
SEDUÇÕES E RISCOS DO ENFOQUE MARXISTA contribuem para ajudar num esforço analítico, pois nem
uma nem a outra são objetos em si. Exigem, por isso
Diante desse projeto, o enfoque marxista aparece mesmo, um grande esforço intelectual, para permitir a
pleno de seduções: noções como a de modo de separação das variáveis que deixem entender os
produção e de formação social abarcam o todo e as respectivos processos. Não basta, em nenhum caso,
partes, permitem levar em conta o movimento da alinhar um conjunto de proposições de economia política
história, a interação entre a vida e as formas que cria em geral. Temos de partir do espaço como objeto concreto
ou encontrou. construído e a ele voltar, e assim contribuir, segundo os
Adotar um enfoque marxista também significa que pontos de vista propostos, para a edificação das bases,
o ponto de vista da economia política deve estar presente que tanto nos fazem falta, de uma teoria do espaço humano.
na análise do que chamamos regiões e nos estudos Será, sem dúvida, uma teoria menor embutida no bojo da
urbanos. teoria maior, que é a teoria social.
Eis como Vaggagini e Demmateis interpretam os Os diversos temas deveriam ser tratados segundo
recentes progressos do marxismo em Geografia. um ângulo espacial e à maneira sistêmica.13 Por exemplo,
como considerar um dado espaço, cidade ou região, através
Face à recusa (da geografia tradicional) em associar da espacialização de conceitos como forças produtivas,
as estruturas territoriais e as relações sociais de
meios de produção, força de trabalho, relações sociais de
produção, as quais são inteiramente funcionais em
produção, etc. Nesse sentido, um esforço sistemático
relação aos interesses das forças sociais domi-
nantes, que essa estrutura produz e transforma de globalizante ajudaria a dar ainda maior conteúdo às hipóteses
fato, a análise dialética e a teoria marxista abrem fundamentais propostas – luta de classes e acumulação
hoje seu caminho na geografia dos países capita- de capital –, vistas como elementos da construção (produção
listas e isto se dá tão rapidamente que, e da evolução) reprodução de uma dada fração de espaço
recentemente, as contradições do capitalismo e da problemática que tudo isso envolve.
atingiram aspectos de enorme gravidade no quadro A consideração do papel do Estado é importante.
de uma crise que interessa ao conjunto da Seria, igualmente, prudente, dar também relevo ao papel
sociedade ocidental e que se manifesta de uma
das outras instituições, acima e abaixo do Estado. A ação
forma mais ou menos clara através de uma
concreta, inclusive sobre o território, se faz por intermédio
utilização do espaço geográfico fundada sobre o
desperdício dos recursos e sobre a injustiça social dessas instituições ou organizações, formais ou
(VAGGAGINI, et al. 1976, p. 140). informais. A própria explicação do desenvolvimento
desigual no espaço encontra na dialética entre essas
Essa perspectiva deverá exigir um esforço instituições e seus aparelhos uma de suas explicações.
exemplar, uma vez que boa parte da literatura marxista Aí também se insere o tema do planejamento, cujos feitos
concernente ao espaço adota um cunho mais crítico do vão além da simples reprodução das forças produtivas,
que explícito, conduzindo, não raro, a um discurso porque conduz à criação deliberada de forças produtivas
apologético e ideológico, na medida em que vemos novas, algumas das quais até então insuspeitadas.
conceitos já estabelecidos brigando entre si, em lugar E em todos os casos, impõe-se dar ênfase a
de assistirmos a uma nova geração conceitual, a ser aspectos menos estudados da transformação do espaço
pacientemente obtida pela análise dos fatos. Sugerimos, geográfico como resultado da fase mais recente do
assim, que um ponto de vista substantivo seja desenvolvimento do capitalismo (o período científico-
escrupulosamente respeitado. técnico atual), enfatizando à luz das novas condições

13
“...Não é a primazia dos motivos econômicos na explicação histórica que constitui a diferença decisiva entre o marxismo e o
pensamento burguês, mas o ponto de vista da totalidade” George LUKACKS (1968).

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históricas, a nova significação das categorias marxistas particular, o ensinamento de Sartre é um bem mais
de análise, o que deveria levar à incorporação no instrutivo. Quando, através, e apesar da prática imposta
desenvolvimento teórico (se não nos exemplos concretos) pela sociedade, o indivíduo é capaz de superar-se, ele
de autores pós-marxistas. Isso não apenas ajudaria a entrevê novos caminhos para ele próprio e para a sociedade.
interpretação das realidades atuais, como reduziria o risco Sabemos das restrições que se fazem, entre
de dogmatismo. muitos marxistas, ao enfoque fenomenológico15 e às
posições existencialistas,16 o primeiro sendo apontado
como herético e o segundo como sendo revisionista. Mas
EXISTENCIALISMO E PRÁTICA MARXISTA a questão do fenômeno, definido como um aspecto do
real, somente encontra solução na busca do todo, de
Entre os grandes problemas da prática marxista onde vêm suas determinações. A decifração do fenômeno
continuam a estar a questão do encontro fecundo entre o tem de passar por uma metodologia capaz de, na prática,
teórico e o empírico e da redescoberta pelo indivíduo do realizar uma importante premissa marxista: a da união
seu próprio futuro, nas dobras do movimento social. Na dos métodos de dedução e de indução mediante o
medida em que a internacionalização da economia deu à caminho que leva do fato (como forma e como evento) ao
ciência geográfica, como teoria locacional da sociedade e conceito e deste, já sob uma feição teórica, regresse ao
teoria social dos lugares, uma nova dimensão, tanto uma fato. Como os eventos, junto com as formas, constituem,
fenomenologia bem entendida, como um existencialismo
em cada momento, a historicização geográfica do
à moda sartriana aparecem como instrumentos do
universo, as disciplinas geográficas não podem prescindir
conhecimento indispensáveis à ação e como componentes
desse método.17
de uma renovação do próprio enfoque marxista.
Sartre considerava o marxismo como uma filosofia Por outro lado, a questão da subordinação, cada
da qual o existencialismo seria uma interpretação. Desse vez maior, do homem às ideologias, coloca como crucial
ponto de vista, um esforço baseado no existencialismo o problema de sua liberação. O peso e a sofisticação
poderia ser de grande auxílio nessa busca. Jaspers das instituições e dos seus métodos de ação ensejam a
escreveu que “pensar o mundo objetivo é (...) negá-lo como elaboração administrativa de uma segunda natureza
subjetivo e anexá-lo à objetividade” (...) “mas o mundo humana, moldada à imagem do anti-homem. É pelo
objetivo não pode reivindicar a exclusividade ...”. Tal ponto mesmo mecanismo que se criam anti-espaços, dos quais
de vista pode conduzir a um encontro com os que, a partir as metrópoles – anti-cidades por excelência –, são o
da fenomenologia, recusam o papel histórico das praxis exemplo melhor. Pode o homem escapar ao império
coletivas, redutoras das praxis individuais.14 Nesse desta máquina que o tritura, ou sua objetificação é

14
“Pensar o mundo objetivo é, portanto, negá-lo como subjetivo e anexá-lo à objetividade. Mas o mundo objetivo, por sua vez, não
pode reivindicar a exclusividade, pois, no momento mesmo em que reduzo tudo a ele, eu me transformo numa pessoa que perde o prumo.
E isto pode ser entendido em dois sentidos. Por um lado, fico sendo o sujeito que não tem objeto, mero centro de referência para todo o saber
– o que equivale dizer que o princípio da imanência não pode ser deslocado. Por outro lado, quer dizer que o mundo objetivo se ordena no
mundo do sujeito que sou. É a partir do meu corpo que se desenrola o espaço, como a partir do meu presente (é) que se desenrola o tempo.
Sou eu o “hic et nunc” em que se apóia toda a realidade objetiva. E por mais despojada que ela seja, meu conhecimento fica sempre ligado
a meu ponto de vista. Por mais que eu queira deixar de ser o centro, nunca posso colocar-me do ponto de vista de Sírius, que seria o único
e o verdadeiro. (Karl Jaspers, visto como no livro de Michel Dufrenne e Paul Ricoeur Karl Jaspers et la Philosophie de l’Existence. Paris:
Editions du Seuil. Excerto de um trecho publicado na Folha de São Paulo, 16 abril 1978).
15
Fenomenologia. 1. Estudo descritivo de um fenômeno ou de um conjunto de um fenômenos em que estes se definem quer por
ocasião às leis abstratas e fixas que os ordenam, quer às realidades de que seriam a manifestação. 2 . Sistema de Edmund Husserl, filósofo
alemão (1859-1938) e de seus seguidores, caracterizado principalmente pela abordagem dos problemas filosóficos segundo um método
que busca a volta “às coisas mesmas”, numa tentativa de reencontrar a verdade nos dados originários da experiência (Novo Dicionário
Aurélio).
16
Existencialismo. Corrente de pensamento iniciada por Sören Kierkegaard, filósofo dinamarquês (1813-1855), na qual se distin-
guem Martin Heidegger, Karl Jaspers (1891) e Jean-Paul Sartre, e para a qual o objeto próprio da reflexão filosófica é o homem na sua
existência concreta, sempre definida nos termos de uma situação determinada, mas não necessária – o “ser-em-situação”, o “ser-no-
mundo” –, a partir da qual o homem, condenado à liberdade, por já não ser portador de uma essência abstrata e universal, surge como o
arquiteto da vida, o construtor do seu próprio destino, submetido embora a limitações concretas; filosofias existenciais; filosofias da
existência (Adaptado de Novo Dicionário Aurélio).
17
“O existencialismo, como o marxismo, dirige-se à experiência de forma a descobrir, por seu intermédio, sínteses concretas; ele
apenas pode conceber essas sínteses dentro de uma totalização progressiva e dialética que é nada mais do que história ou – do ponto de
vista estritamente cultural aqui adotado – a filosofia tornando-se o mundo (philosophy – becoming – the – world). Para nós, a verdade é algo
que está sempre surgindo ou nascendo de novo, ela já foi e ela, de novo, será. É uma totalização que está sempre sendo totalizada”.
(SARTRE, 1968, p. 30). “Fatos particulares não têm significado próprio; eles não são verdadeiros nem falsos até que sejam relacionados,
à realidade em processo, através da medição de várias totalidades parciais” (SARTRE, op. cit. p. 30-31).

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irremediável? O existencialismo de Sartre parece mostrar- Mas, porque toda classificação generalizadora pode
nos “cientificamente” que o homem não é um ser levar-nos à uma margem de equívoco, talvez nem seja útil,
completamente perdido para o humano, restaurando-nos apontar de forma inquisitorial, mas ingênua, quem são os
a confiança no futuro. Não é também esta a visão do “bons” e quem são os “vilões”. Parece-nos bem mais
marxismo, desde que uma despojada de uma crença importante realçar as formas larvares ou camaleônicas que
mecanicista no econômico ou de toda outra forma de a Geografia vem tomando de uns anos pra cá. São
dogma?18 manifestações para as quais se estão abrindo as portas
Ora, uma ciência do espaço que não se contente, das instituições mais comprometidas com a manutenção
somente, em constatar o presente e deseje contribuir de um capitalismo selvagem e que encontra os favores de
para a reconstrução social deve, forçosamente, valer-se uma certa finança, corporativa ou oficial, cuja ingerência
dos instrumentos cognitivos e teóricos que não só avaliem perversa na atividade intelectual mundial não é suficiente
as virtualidades latentes nos indivíduos, mas que através conhecida. Aliás, um traço essencial de sua própria política
da entrevisão e codificação das possibilidades, também é exatamente o aliciamento de intelectuais estabelecidos
acelerem seu encontro consigo mesmos, isto é, com o ou emergentes, chegando, mesmo, a empalmar, mediante
provir.19 pecúnia, associações profissionais já estabilizadas.
Todo cuidado é pequeno. É justamente nas fases
que a história se acelera, que os conceitos envelhecem
À GUISA DE CONCLUSÃO mais depressa, abandonados pela realidade em
manutenção rápida. É a própria realidade que temos de
No mercado das idéias geográficas, uma dicotomia apreender, para não vermos escapar de nossas mãos a
aparecia bem clara nos fins do século passado e no compreensão do Presente e a possibilidade de ganhar o
começo do atual. Ela foi de distinção menos fácil quando Futuro. Por isso também, em tais fases críticas da História,
da chamada “revolução teorética”. Agora torna-se mais podem-se distinguir, em matéria de proposições
confusa, exigindo um esforço maior de discernimento para interpretativas do real, duas modalidades extremas ou puras
separar o joio e o trigo, idéias genuínas e “marketing”, e uma infinidade de posições intermediárias. Cabe lembrar
gente que assume posições próprias e a malta dos que aqui a advertência de GRAMSCI: “... o problema da
se põem a serviço de idéias programadas. Uma primeira identidade da teoria e da prática se põe, especial-mente...
distinção seria distinguir entre os que utilizam dos Vem, aliás, desse interesse prático, que exige
recursos intelectuais para ajudar a servir o futuro e os urgente justificação, a possibilidade de uma grande
que se esforçam para salvaguardar o passado. Entre estes confusão: entre o que espelha o movimento da sociedade
últimos há aqueles cujos possíveis equívocos são o como um todo (ainda que sob um aspecto particular) e o
resultado de convicções cimentadas em uma prática que, como particular e se impondo à vista de todos, pode
pessoal irreversível que permite falar deles como de parecer geral, sem todavia, ultrapassar a condição de um
pessoas honestas, ao menos com si mesmos. E há os fenômeno específico, bem localizado no tempo e no
outros, os que se organizam à base de projetos espaço. A expressão de ambas as situações pode,
financiados por agências deliberadamente criadas para evidentemente, aparecer como se fosse teórica, em termos
isso. O objetivo destes últimos, nem sempre clara ou formais. Mas, de um lado, está a teoria baseada nos fatos,
imediatamente discernível, é encontrar argumentos para em sua expressão universal; de outro, a fetichização da
retardar a inevitável reconquista do homem por si mesmo, aparência ou a mistificação da parte como se fosse o todo
e atrasar a construção de um novo mundo. ou, ainda, do aspecto como se fosse o geral.

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R. RA´E GA, Curitiba, n. 9, p. 125-134, 2005. Editora UFPR 133


Boletim Gaúcho de Geografia http://seer.ufrgs.br/bgg

POR UMA GEOGRAFIA CIDADÃ: POR UMA ESPITEMOLOGIA DA EXISTÊNCIA

Milton de Almeida Santos


Boletim Gaúcho de Geografia, 21: 7-14, ago., 1996.

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Associação dos Geógrafos Brasileiros

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Data de publicação - ago., 1996


Associação Brasileira de Geógrafos, Seção Porto Alegre, Porto Alegre, RS, Brasil
BOLETIM GAÚCHO DE GEOGRAFIA II
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POR UMA GEOGRAFIA CIDADÃ: POR UMA


EPISTEMOLOGIA DA EXISTÊNCIA

Milton de Almeida Santos *

Vou começar como faço sempre, dizendo o seguinte: as aulas fáceis não têm o
menor interesse; os livros fáceis não têm o menor interesse; as conferências fáceis
são uma chantagem em relação aos que se dispuseram a escutá-las. Estou dizendo
isto com o temor de que para certos dos presentes algo do que vou dizer possivel-
mente venha a parecer complicado. Estou desde logo solicitando-lhes a tolerância,
mas também a atenção.
O tema que me foi encomendando é "Por Uma Geografia Cidadã". Tomei a li-
berdade de atribuir-lhe um subtítulo e esta conferência vai se chamar "Por Uma
Geografia Cidadã. Por uma Epistemologia da Existência". Esta conferência vai se
processar em quatro tempos ou pontos. Primeiro ponto: Por Uma Geografia Cida-
dã - por que uma Geografia Cidadã? Em outras palavras, para que trabalhamos
intelectualmente hoje? Pela necessidade da volta ao Homem. Segundo ponto: Geo-
grafias e Geografia, Espaços Adjetivados e Espaço Banal. Já falamos nisto em outro
lugar; voltaremos a isto nesta tarde. A discussão correta não é em torno da Geogra-
fia, mas do espaço, isto é, em torno do substantivo e do constitucional que é o espa-
ço e não a Geografia. Seria uma discussão sobre o valorativo e não sobre o adjetivo.
Terceiro ponto: O Cotidiano. Significa geografizar esta noção de cotidiano que os
geógrafos frequentemente incorporam a partir da Sociologia, quando é possível fazê-
lo a partir do próprio espaço, ou seja, da Geografia, o que nos deveria permitir en-
riquecer os enfoques sociológicos. Quarto ponto: Uma Epistemologia da Existên-
cia. Em outras palavras, trata-se da reconstrução do método através da vida, isto é,
do Homem vivendo.

Por uma Geografia cidadã_ Por que uma Geografia cidadã? - Como primeira ob-
servação, lembremos que a cidadania se dá segundo diversos níveis. Sobretudo neste
país, todos não são igualmente cidadãos, havendo os que nem são cidadãos e haven-
do os que não querem ser cidadãos, aqueles que buscam privilégios e não direitos.
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Duas questões aqui se colocam do ponto de vista da nossa disciplina: a primeira


é como ajudar a construir a cidadania através da Geografia e a segunda é como
construir a Geografia através da idéia de cidadania, tarefas inseparáveis. O que se-
ria esta geografia do cidadão? Seria uma geografia engajada? Cabe conversar um
pouco sobre essa palavra. Quando utilizamos a expressão "geografia engajada", es-
taremos falando de uma geografia engajada a priori, decidida a encetar a tarefa da
crítica, mesmo antes de concluir a tarefa da análise. Mas isto pode ser apenas uma
geografia com um discurso vazio e vadio, incapaz de oferecer aqueles instrumentos
analíticos de que necessitamos para enfrentar a dura tarefa de interpretar a realida-
de social.
A análise tem que ser pertinente. Análise pertinente significa que o analista sabe
claramente o que está fazendo. Aliás, a dificuldade da participação da Geografia nas
interdisciplinaridades vem do fato de que raramente uma certa geografia sabe o que
está fazendo. Se os próprios geógrafos não são capazes de oferecer às outras discipli-
nas uma visão clara da sua pertinência, todo debate se torna impossível. O debate só
é possível quando o que fala ou escreve oferece claramente o sistema que preside a
indagação feita à realidade. Ora, esta geografia do cidadão, como a geografia taut
court, necessita de uma análise fundada nessa noção de pertinência.
Poderia também fazer uma outra pergunta: será que a geografia do cidadão se
opõe à geografia dos experts? Creio que sim. E aí perguntaria, em adição, se pode
haver um expert generalista? Pode ser que haja. O problema com o expert, pessoa
geralmente externa às coletividades às quais vem estudar, é a sua freqüente incapa-
cidade em participar do cotidiano e em perceber, sem partis pris, o funcionamento
político das coletividades. Na medida em que, a partir do cotidiano, o lugar hoje se
impõe como dado central das pesquisas em ciências sociais, daí vem a fragilidade
da geografia dos experts.
Não esqueçamos esta verdade cristalina: o valor do homem depende do lugar
onde está. Nossa dificuldade em rela"ção às outras ciências sociais é exatamente
esta, porque o lugar é praticamente desconhecido de disciplinas sociais, como a
economia, a sociologia e outras. É que a noção de espaço praticamente escapa a
estas disciplinas. O lugar deve ser considerado como um conjunto de objetos e, ao
mesmo tempo, o receptáculo de um feixe de determinações, não apenas de algu-
mas, como na economia (determinações económicas); ou na sociologia (determi-
nações sociais); ou na antropologia (determinações culturais); ou nas ciências po-
líticas (determinações políticas); mas de todas as determinações. Então, a geografia
do cidadão começa por recusar o economicismo triunfante, que faz do economista
não um especialista da sociedade, mas um servo da técnica, um trabalhador em
benefício da administração dos negócios aos quais as técnicas se aplicam, como se
fossem absolutas, sem necessidade de relativizá-las.
A geografia do cidadão sugere, também, o abandono do sociologismo simplório.
De uma maneira geral, os sociólogos nâo oferecem metáforas espaciais. lemos que
agradecer-lhes, já que as metáforas chamam a atenção para aspectos das questões e os
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põem em relevo. Só que as metáforas não constituem sistema e, por conseguinte, não
ajudam na produção de conceitos e nem de teorias, fora das respectivas disciplinas.

Geografia e geografias, espaços adjetivados e espaço banal- As diversas geo-


grafias, isto é, a geografia dos transportes, a geografia do comércio. a geografia da
população, a geografia da indústria, etc ... são parcialidades que levam em conta
aspectos isolados do acontecer, às vezes como se fosse possível, além de isolar
para a análise, fazê-lo, também, para síntese, o que é um grande risco. Estas espa-
cializações singulares, como os transportes que fluem numa área, ou como o co-
mércio, alteram o significado de uma região. Não é o espaço que se estuda assim,
mas sim fragmentos dele. Quando me refiro à realização da economia, da socie-
dade, da cultura, da politica, o que eu tenho são espaços adjetivados, o espaço
económico, o espaço cultural, o espaço político, o espaço social, mas o que quero
entender e preciso entender, é o espaço banal. O espaço banal é o espaço de todos
os alcances, de todas as determinações; o espaço banal é o espaço de todos os
homens, não importam as suas diferenças; o espaço banal é o espaço de todas as
instituições, não importa a sua força; o espaço banal é o espaço de todas as em-
presas, não importa o seu poder. O espaço desta cidade de Passo Fundo, onde
todas as pessoas - não importa a sua riqueza, a sua origem - participam, onde
todas as instituições presentes participam da vida, assim como todas as empresas
presentes, a isto se chama o espaço banal. E é este espaço banal que é o espaço da
Geografia, diferente, pois, dos espaços adjetivados. E existe este espaço banal?
Posso significá-lo através de um discurso como um dado objetivo?
O que é essencial, a partir desse espaço banal, é encontrar a fonna de analisá-lo,
isto é, de chegar à produção dos conceitos que permitam dividi-lo em pedaços, au-
torizando uma correta tarefa de análise. Diante de um sociólogo, de um economis-
ta, de um cientista político, de um químico, etc ... , podemos dizer que a Geografia
estuda o espaço, mas a nós mesmos é insuficiente dizer isto. Porque dizer isso, en-
tre geógrafos, significa, de alguma maneira, erigir uma tautologia em regra de tra-
balho, o que leva a nada. Isto é, tal esforço, puramente tautológico, deve ser substi-
tuído por um esforço analítico. Isto é, temos de encontrar os elementos suscetíveis
de permitir que, diante do que estou chamando de espaço, possamos entendê-lo e,
eventualmente, construir o discurso político da sua intervenção. E aí vem de novo
a questão que me preocupa há alguns anos: o que interessa à Geografia, é menos a
geografia e mais o espaço. Enquanto os geógrafos discutem entre eles, sobre a geo"
grafia, nào estão andando para lugar nenhum. O debate que permite avançar é a
discussão sobre o espaço, discussão que permite descobrir quais são as subdivisões
pertinentes do objeto que nos interessa.

o cotidiano - Gostaria de sugerir, para começar esta discussào do cotidiano que,


por gentileza, os senhores admitissem comigo que há possibilidade de trabalhar três
dimensões do homem: a dimensáo da corporeidade, a dimensão da individualidade e
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a dimensão da socialidade. A corporeidade ou corporalidade trata da realidade do corpo


do homem; realidade que avulta e se impõe, mais do que antes, com a globalização.
A outra dimensão é a dimensão da individualidade. Enquanto a corporalidade ou
corporeidade é uma dimensão objetiva que dá conta da fonua com que eu me apre-
sento e me vejo, que dá conta também das minhas virtualidades de educação, de ri-
queza, da minha capacidade de mobilidade, da minha localidade, da minha lugarida-
de, há dimensões que não são objetivas, mas subjetivas; aquelas que têm a ver com a
individualidade e que conduzem a considerar os graus diversos de consciência dos
homens: consciência do mundo, consciência do lugar, consciência de si, consciência
do outro, consciência de nós. Todas estas formas de consciência têm que ver com a
individualidade e lhe constituem gamas diferentes, tendo também que ver com a tran-
sindividualidade, isto é, com as relações entre indivíduos; relações que são uma parte
das condições de produção da socialidade, isto é, do fenômeno de estar junto. Esse
fenômeno de estar junto inclui o espaço e é incluído pelo espaço.
Há uma relação entre corporeidade, individualidade e sociaJidade. Essa relação
vai também definir a cidadania. Neste país, por exemplo, a cidadania dos negros é
afetada pela corporeidade. O fato de ser visto como negro já é suficiente paia infer-
nizar o portador desse corpo. Por conseguinte, a diferenciação entre "cidadanias",
dentro de uma mesma sociedade, é relacionada com a corporeidade. É evidente
que há individualidades fortes, permitindo uma tomada de consciência mais am-
pla. É, desse modo, que há uma produção, dentro do homem, do princípio de liber-
dade. Isto não tem nada que ver com a cidadania, nem com o corpo do homem.
Creio que estas três dimensões ajudam o estudo do cotidiano do ponto de vista
espaciaL Devemos ver, daqui há pouco, que o fato de estar juntos dentro de uma
área contínua tem reflexos na maneira como a espacialidade se dá, como a indivi-
dualidade evolui e como a corporeidade é sentida. Outras dimensões do cotidiano
são, todavia. centradas numa compleição geográfica de cotidiano. O cotidiano su-
põe o passado como herança. O cotidiano supõe o futuro como projeto. O presente
é esta estreita nesga entre o passado e o futuro e cuja definição depende das defini-
ções de passado e de futuro: desta existência do passado, da qual não nos podemos
libertar porque já se deu; e desse futuro, que oferece margem para todas as nossas
esperanças, exatamente porque ainda não existe. É que a base do fato é que cada
um de nós são dois, oscilando entre a necessidade e a liberdade, entre o que somos
e o que queremos ser, entre a dificuldade de afirmação diante das situações e a
crença de que podemos ser outra coisa e de que podemos construir outra coisa.
Esse duplo homem e esse duplo cotidiano nos remetem de volta às relações de cor-
poreidade, individualidade, socialidade e espacialidade.
O cotidiano também nos põe diante de outras categorias, como a da materiali-
dade e a da imaterialidade. O cotidiano são os dois, ele não é dado apenas pela
materialidade que nos cerca. A imaterialidade também é um constrangimento às
vezes mais forte de que a materialidade: essa idéia de tecnosfera e de psicosfera
que andamos tentando difundir, de um lado esta esfera técnica que envolve o ho·
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mem no fim do século, e, de outro, a esfera das paixões, das crenças, dos desejos,
tão objetiva em nossa vida quanto objetiva é a esfera da materialidade.
Mas o cotidiano também sugere um outro par de dimensões: de um lado as nor-
mas e, de outro lado, a espontaneidade. O mundo de hoje é o mundo de normas. A
propaganda do neo-liberalismo fala de desregulação, mas nunca o mundo foi tão
regulado, tão normado: normas públicas, nonnas das empresas que se impõem por
sobre ou que orientam as normas do poder público; normas formais, normas infor-
mais, normas sempre. Tudo ou quase tudo é feito a partir de normas, o que já é
indicativo da tendência ao empobrecimento simbólico que estamos vivendo: esta
proliferação e esta hegemonia da norma. Mas, felizmente, o cotidiano também nos
apresenta possibilidades para a espontaneidade. E tanto a norma como a esponta-
neidade têm que ver com o espaço, com a forma como o espaço se constitui.
Ainda há outro par de dimensões. De um lado, os pragmatismos indicando, su-
gerindo, propondo, exigindo comportamentos verticais. E, do outro lado, a origina-
lidade, a inventividade: essa oposição entre a rotina e o novo, entre a repetição do
passado e a produção do futuro. Também por aí pode-se e deve-se estudar a ques-
tão do cotidiano, opondo, de um lado, a preocupação com o resultado que leva ao
utilitarismo, à competitividade, ao egoísmo, e, de outro lado, à generosidade, à bus-
ca dos valores, ao projeto, à comunhão.
Esses pares de variáveis nos ajudam a enfrentar urna outra questão. O espaço,
considerado primeiro como tendo duas dimensões, depois como tendo três, depois
confonne Einstein, como tendo quatro dimensões, tem também uma quinta dimen-
são que é o cotidiano. O espaço tem esta quinta dimensão. Mas, sobretudo, o coti-
diano tem como dimensão essencial no mundo de hoje a dimensão espacial. A di-
mensão espacial é a dimensão talvez central do cotidiano do mundo de hoje.
Como trabalhar a dimensão espacial do cotidiano e o cotidiano como quinta
dimensão do espaço? Tudo isto tem que ver com a questão da cidadania, com a
questão do espaço do cidadão, com a questão do espaço banal. O cotidiano é mar-
cado, sobretudo nas cidades, com aquilo que Sartre chamou de efeito de residên-
cia. Esse cotidiano é delimitado peJo espaço contínuo e não por um espaço de pon-
tos, ou de fluxos. É no espaço contínuo, onde todos os tipos de homens, todos os
tipos de empresas, todos os tipos de instituições trabalham juntos, funcionam jun-
tos e juntos estruturam a vida da comunidade e o espaço ao mesmo tempo. É o que
estou chamando de horizontalidade e se completa com as verticalidades formadas
por pontos discretos povoados por agentes hegemónicos desinteressados da vizi-
nhança, despreocupados da co-presença. Este espaço contínuo, que é quadro de
ação e que é limite à ação; esse espaço contínuo é o quadro de um funcionamento
harmónico de tantos desiguais - ainda que não seja um funcionamento harmonio-
so. Se os agentes são tão diversos, e as empresas e as instituições tão desiguais, se o
seu trabalho não é harmonioso - mas apenas harmônico -, o que comanda este
trabalho harmónico não é somente o mercado, é também {l território. Não fora o
território, da forma como está organizado, o mercado não poderia sozinho exercer
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esse papel de forçar a "harmonia funcional" - não a harmonia teleológica - de to-


dos estes atores.
Dir~se-ia, em resumo, que, em tais circunstâncias, assistimos a um conflito na
cooperação e a uma cooperação no conflito. É a isso que nós presenciamos no espa-
ço geográfico, sobretudo no espaço urbano. Esta cooperação no conflito e este con-
flito na cooperação levam à negociação permanente, explícita ou implícita, mas
negociação sempre. Negociação onde uns perdem sempre; negociação onde outros
ganham sempre; negociação em que alguns ganham às vezes; negociação em que
alguns perdem às vezes; mas negociação sempre, que tem a ver com a maneira como
o espaço se dá.
Por quê? Cada homem, cada empresa, cada instituição se define em relação com
o que pode usar de um espaço dado. As instituições, as empresas, os homens não
encontram no mesmo espaço três respostas iguais aos seus desígnios e é isto que
faz a diferença entre as pessoas. Esta diferença em relação ao espaço criando esta
cooperação no conflito e este conflito na cooperação, porque numa cidade estamos
condenados a viver juntos. A cidade produz um destino coletivo que vem do fato
exatamente desta cooperação no conflito e deste conflito na cooperação. É curioso
que o papel privilegiado do ponto de vista do presente é dado aos atares hegemóni-
cos, mas do ponto de vista do futuro o papel privilegiado ê dado aos atares não
hegemónicos. São os pobres, são os migrantes, as minorias que são mais capazes de
ver, porque mais capazes de sentir. Por conseguinte, é um equívoco imaginar que o
futuro é portado pelos mais fortes. São os mais fracos, no espaço, que têm a força
de portar o futuro.
Uma forma de enfrentar a questão é a partir do fenômeno de rede, que entrou
em moda na Geografia, uma moda que pode ser devastadora se nós rapidamente
não antepusennos às metáforas os conceitos. A rede é global, mas também é local.
Ela é global, porque no mundo onde a produção se internacionalizou de forma ex-
trema, no mundo onde a própria técnica se unicisou, no mundo onde a infonnação
é mundializada, tudo isto sendo possível a partir das redes. Mas a rede também é
local, porque em cada lugar há troços destas redes globais. O trabalho de cada um
de nós se realiza sobre os pedaços localizados das redes globais, que são a condição
e o limite do trabalho e do capital no mundo de hoje. Só que cada lugar exerce, ao
mesmo tempo, um trabalho local e um trabalho global. Cada lugar exerce, ao mes-
mo tempo. estas duas formas de trabalho. Localmente, é aquilo a que Marx chamou
de trabalho direto, quer dizer, a forma técnica do trabalho: a pequena agricultura, a
pequena produção do pequeno industrial, a produção de serviços urbanos, que são
formas diretas de produzir condicionadas pelos traços locais das redes globais, en-
quanto as redes globais presidem a cooperação e a divisão do trabalho, presidem a
definição do valor universal dos capitais e dos trabalhos. Isto é, no lugar, através da
rede e de sua utilização cotidiana o homem descobre outra vez que são dois: aquele
que exerce o trabalho local, material, direto, que ele localmente sente e sofre todos
os dias, e aquele outro homem que é objeto de urna divisão do trabalho, vítima de
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uma cooperação que afinal descobrira um dia, ainda que não a entenda completa-
mente. É este o cotidiano dos homens neste fim de século, neste período de globa-
lização, frente às redes que são globais e são locais.
Ora, cuidem que estou falando da maneira como o espaço se organiza, como os
subespaços se articulam, e como cada espaço é constitucionalmente. E a qualidade
dita ativa do espaço inclui a sua capacidade de relação. Por conseguinte o que esta-
mos propondo é a construção de conceitos que se encaixam uns nos outros. E quando
é assim a teoria está feita. Creio que essa pode ser uma forma de enfrentar geogra-
ficamente a questão do cotidiano.
Os pobres, os migrantes, as minorias, aqueles que não têm a possibilidade de exer-
cer plenamente a modernidade, colocam-se mais facilmente com a possibilidade de
perceber as situações, ainda que confusamente, e devem ser ajudados pelos que sis-
tematizam o conhecimento relativo ao mundo de hoje. E este conhecimento, já vi-
mos, necessita da categoria "espaço geográfico" para ser corretamente sistematiza-
do. Daí o papel do geógrafo neste fim de século. O papel do geógrafo também se estende
à produção do político. O cotidiano é um produtor do fenômeno político na medida
em que mostra como as diferenças se estabelecem aconselhando a tomada de posi-
ções. É o caso dos agricultores, que se reúnem para defender interesses territoriais.
Tal comportamento éa priori economicista, mas para ter eficácia, deve ser, em segui-
da, um comportamento político. É essa produção do político mediatizada pelo espa-
cial que permite, a partir das metamorfoses do setorial em geral, do particularismo
em generalismo, as negociações explícitas e implícitas que permitem avançar, pri-
meiro na construção de um ente explicativo e, segundo, na construção de um projeto.

Uma Epistemologia da existência - E aí chega a questão da epistemologia da exis-


tência, forma, talvez, de enfrentar a questão sob um outro prisma. Seja qual for o
momento da história, o mundo se define como um conjunto de possibilidades. Isto é
que é o mundo. O mundo do tempo de Colombo ou de Cabral era fonnado por um
conjunto de possibilidades diferentes do mundo de Voltaire ou de nosso mundo. Isto
é o mundo: um conjunto de possibilidades. Estas possibilidades que estão por aí boi-
ando sobre nossas cabeças; que formam um universo e que são, um dia ou outro,
colhidas por atares que as realizam, transformando-as em fatos sociais, econômicos
e, certamente, num dia ou noutro, em fatos geográficos.
A totalidade do mundo é formada dessas variáveis que jamais estão em todas as
partes e, em nenhum momento, dão-se de maneira total. E é isto que faz a diferença
entre os homens, que também são a sede destas possibilidades realizadas, e é isto
que faz a diferença entre os lugares, que são a sede destas diferentes possibilidades
realizadas. Cada homem realiza um feixe de possibilidades, dadas num momento.
Cada lugar realiza um feixe de possibilidades, presentes num dado momento. A
totalidade das possibilidades existentes somente se dá de forma parcial, nunca de
fonna total, e é por isso que não há o espaço total. E se dá como função, como
função do todo, sobretudo nesta fase da globalização. O lugar é uma funcionaliza-
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ção do mundo; o espaço é uma funcionalização do mundo, através de suas formas


materiais e de suas formas não materiais E é por isso, também, que através do espa-
ço nós podemos abraçar de uma só vez o ser e o existir. Aliás, é considerando o
espaço como uma funcionalização do mundo que ficamos autorizados a fazer o
caminho entre o ser e o existir.
A sociedade glo'bal dos sociólogos existe através do espaço geográfico. É o espa-
ço geográfico que transforma em existência a sociedade global, este ser que é um
todo, mas um todo em potência. O existir, ser em ato, oferece esta idéia de episte-
mologia da existência, porque existindo estão todos. Existem todas as empresas,
existem todas as instituições, e todos os homens juntos existem, não importam as
suas diferenças. E os geógrafos não devem escolher entre empresas, e instituições e
muito menos entre pessoas. Todos constituem este espaço banal que é o centro de
nosso trabalho e por intermédio do qual nós mostramos nosso interesse pelo Mun-
do e pelo Homem.

* Professor titular de Geografia Humana na UniVCl1l1dadc de São hulo I Texlo redigido a purtll da gravação da
conferência de abertura do XV I Encontro Estadual de Professores de Geografia.

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