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A educação

Uma referência à caracterização das personagens dos Maias que não passasse
pela problemática da educação seria forçosamente uma referência lacunar. Em primeiro
lugar, porque se trata de um sector fundamental da existência da personagem; e isto
sobretudo quando nos situamos no contexto da estética naturalista, mas também num
romance como Os Maias, parcialmente tributário ainda dessa estética, como se viu já.
Em segundo lugar, porque o tema da educação possui, nas obras de Eça de Queirós,
uma representatividade considerável: no Primo Bazilio e no Crime do padre Amaro
(ainda, portanto, na fase vigorosamente naturalista); na Relíquia e na Correspondência
de Fradique Mendes, passando pelos Maias, de que aqui nos ocupamos, sempre os
programas pedagógicos a que se sujeitam as personagens têm um lugar de relativo
destaque.
Nos Maias, a educação surge diversas vezes aflorada ao longo do romance; isso
acontece quando se trata de, através dela, delinear uma imagem das concepções que
sobre o assunto eram desposadas pela alta sociedade lisboeta cuja mentalidade deste
modo se vai precisando. É assim que, em certa altura, deparamos com uma das senhoras
do circulo dos Gouvarinhos sintomaticamente expressando a opinião de que «não havia
verdadeiramente senão uma coisa digna de se estudar, eram as línguas», pois tudo o
mais eram «coisas inúteis na sociedade» (p. 294). O próprio conde de Gouvarinho
(raciocinando, afinal, com base em esquemas mentais idênticos) insurge-se contra a
ginástica nos colégios; e pergunta ao deputado Torres Valente «se, na sua ideia, os
nossos filhos, os herdeiros das nossas casas, estavam destinados para palhaços!...» (p.
298).
Para devidamente nos apercebermos das limitações de que enfermavam estes juízos,
é preciso ter em conta o modo como nos Maias são confrontados dois sistemas
educativos opostos. E aqui voltamos ao processo de caracterização de Pedro (e agora
também Eusebiozinho) e Carlos.
Com o magistério a que o padre Vasques submete Pedro da Maia (p. 18), assistimos
ao desenvolvimento da típica educação portuguesa oitocentista e conservadora: o
primado da cartilha e com ela uma concepção essencialmente punitiva da devoção
religiosa; o latim como prática pedagógica fossilizada e não criativa; e sobretudo a fuga
ao contacto directo com a natureza e com as realidades práticas da vida. Tudo isto ganha
uma importância particular, quando reconhecemos no Pedro da Maia adulto, os reflexos
desta educação: a devoção histérica e a incapacidade para encarar e resolver as
contrariedades com que se defronta.
Estas normas educativas não se extinguem, porém, com a personagem que delas foi
vítima. Elas encontram-se presentes igualmente numa figura que, sobretudo por
pertencer à geração de Carlos, com ele mais abertamente contrasta neste (e noutros)
aspecto(s). Referimo-nos a Eusebiozinho, que o procurador Vilaça encontra em Santa
Olávia (cap. lII), em circunstâncias que facilitam um confronto imediato com Carlos.
Independentemente das considerações a formular noutro local a propósito do ponto
de vista assumido para representar os episódios contidos neste capítulo, é possível,
desde já, notar alguns factos irrefutáveis: o primeiro reside exactamente no contraste
físico verificado entre as duas crianças. Com efeito, enquanto Carlos patenteia uma
saúde exuberante, de Eusebiozinho diz-se que «nada mais melancólico que a sua
facezinha trombuda, a que o excesso de lombrigas dava uma moleza e uma amarelidão
de manteiga» (...) (p. 69).
Não se julgue, entretanto, que esta oposição é casual; ela surge fundamentalmente
como resultante necessária da execução de programas educativos antagónicos. Com
efeito, Carlos é submetido a uma educação tipicamente inglesa: privilégio da vida ao ar
livre, contacto com a natureza, exercício físico, aprendizagem de línguas vivas, des-
prezo pela cartilha e por todo o conhecimento exclusivamente teórico, eis alguns dos
elementos formativos com que depara Vilaça ao chegar a Santa Olávia (pp. 53 ss.).
Tudo isto com grande escândalo da família e dos amigos que viam no abade Custódio o
pedagogo ideal (porque tradicional) para Carlos (1).

Em contrapartida, com Eusebiozinho situamo-nos no extremo oposto:

“Mas o menino, molengão e tristonho, não se descolava das saias da titi: teve ela de o pôr de pé,
ampará-lo, para que o tenro prodígio não aluísse sobre as perninhas flácidas; e a mamã prometeu-lhe que,
se dissesse os versinhos, dormia essa noite com ela...
Isto decidiu-o: abriu a boca, e como de uma torneira lassa veio de já escorrendo, num fio de voz, um
recitativo lento e babujado;

É noite, o astro saudoso


Rompe a custo um -plúmbeo céu,
Tolda-Ihe o rosto formoso
Alvacento, húmido véu...

Disse-a toda - sem se mexer, com as mãozinhas pendentes, os olhos mortiços pregados na titi. A
mamã fazia o compasso com a agulha do crochet; e a viscondessa, pouco a pouco, com um sorriso de
quebranto, banhada no langor da melopeia, ia cerrando as pálpebras” (p. 76).

Em resumo: para além da já citada debilidade física - patenteada também numa


intrusão do narrador (pp. 68-69) em que os diminutivos («craniozinho», «crescidinho»,
«perninhas», «linguazinha») significam sobretudo fragilidade - estão em causa, neste
fragmento, os defeitos fundamentais de que enferma esta educação: a deformação da
vontade própria, através do suborno, traduzido na promessa da mãe de que «se dissesse
os versinhos, dormia essa noite com ela...» (p. 76); a imersão na atmosfera doentia e
melancólica do Romantismo decadente (2); finalmente, o recurso à, memorização, isto é,
a um atributo que implica a desvalorização da criatividade e do juízo crítico.
Ora, em função de tudo isto, como estranhar que, também quando adultos, Carlos e
Eusebiozinho continuem a ser personagens contrastivas? Como estranhar que
Euzebiozinho mergulhe numa vida de corrupção e decadência física? E como estranhar
que Carlos, pelo contrário, venha a disfrutar de um estatuto de privilégio no espaço
social em que opera?

(1) Não é por acaso que, justamente quando D. Ana Silveira elogia as virtudes do abade, este,
«suspeitando uma corrente de ar, (ergue-se) da mesa de jogo a fechar o reposteiro» (p. 75). É que assim se
continha, como que simbolicamente, uma mentalidade que privilegiava a vida enclausurada em
detrimento do contacto com o exterior.

(2) O poema que Eusebiozinho declama é a «Lua. de Londres», de João de Lemos, uma das mais
populares e soturnas composições do Ultra-romantismo português.

In Introdução à leitura d’Os Maias, Carlos Reis, Livraria Almedina

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