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EXCESSO DE MEIOS, MÍNGUA DE FINS

Julho 14, 2018

1. O Evangelho deste Domingo XV do Tempo Comum, que


narra o envio em missão dos «Doze» (Marcos 6,7-13),
situa-se estrategicamente entre a rejeição de Jesus na sua
pátria (Marcos 6,1-6) e o martírio de João Batista (Marcos
6,14-29). O contexto é, pois, claro, intenso e dramático
acerca do destino dos missionários: entre a rejeição e
martírio. Mas este destino sai ainda acentuado se tivermos
em conta que o martírio do João Batista (Marcos 6,14-29)
está colocado entre o envio em missão dos «Doze» (Marcos
6,7-13) e o seu regresso (Marcos 6,30). Dado o contexto,
não é possível evitar o entrelaçamento de destinos de Jesus,
João Batista e os missionários. Em todos os casos, a
rejeição e o martírio derivam do facto de as pessoas (nós)
não acreditarem que a missão (claríssimo no caso de Jesus)
provém de Deus!

2. Mas este envio em missão dos «Doze» também não pode


deixar de ser visto no seguimento de Marcos 3,13-15, em
que do cimo da montanha Jesus chama os que quer
(fórmula de eleição), deles faz «Doze» (belíssima fórmula
de criação), para estarem com Ele (fórmula de aliança e de
assistência), e, finalmente, para Ele os enviar (fórmula de
missão). Bem se vê que o texto deste Domingo torna
operativo este último aspeto, sem anular, diminuir ou diluir
aquele fortíssimo «estar com Ele». Na verdade, quando
regressarem da missão, todos se reúnem à volta de Jesus
(Marcos 6,30), que é assim apresentado como o marco e a
referência fundamental da vida deles e da nossa.

3. Quer através dos verbos narrativos, quer dos elocutivos,


fica claro que a iniciativa da missão dos «Doze» é de Jesus,
que é o verdadeiro Senhor da missão: é Ele que chama
para a missão, que envia em missão, que dá autoridade
para o serviço da missão (Marcos 6,7-8), que define a
leveza do equipamento (Marcos 6,8-10) e o comportamento
a assumir no serviço da missão (Marcos 6,10-11). Note-se
bem aquelas levíssimas recomendações negativas: nada
para o caminho, nem pão, nem alforge, nem dinheiro
(Marcos 6,8). É fácil de ver que estas disposições tornam os
«Doze» mais pobres do que os destinatários a quem são
enviados.

4. Este despojamento, ou empobrecimento, ou leveza, está


na base da credibilidade da mensagem que devem
transmitir. O narrador anota no final que os «Doze»
cumpriram as diretivas de Jesus (Marcos 6,12-13). Bela
maneira de testemunhar que o dizer de Jesus tem, sobre os
missionários, carácter performativo: na verdade, não tendo
nada de próprio para oferecer, limitam-se a desempenhar o
encargo recebido e a transmitir a mensagem a eles confiada.
O uso do verbo «anunciar» (kêrýssô), que significa
transmitir, não a própria opinião, mas ser simplesmente
arautos ou mensageiros transparentes do seu Senhor,
define os «Doze» como completamente dependentes de
Jesus. E a exiguidade do equipamento é para realçar a
absoluta importância da mensagem, e que não se podem
ocupar de nenhum outro negócio.

5. A lição do profeta Amós (7,12-15), que hoje temos


também a graça de escutar, ilustra bem o Evangelho de
hoje. Amós era provavelmente um importante criador de
gado e agricultor bem sucedido ao serviço do grande rei
Ozias (787-736), de Judá, grande amante da terra e que
em muito desenvolveu a agricultura, como se pode ver na
descrição do Cronista (2 Crónicas 26,10). Amós seria, como
diz a maioria dos estudiosos de hoje, um alto funcionário
agrícola de Ozias. Mas quando Deus «pegou» nele, também
Amós se despiu da riqueza da sua vida regalada e bem
sucedida, e foi para o Reino de Israel, do Sul para o Norte,
equipado apenas com a mensagem que Deus o incumbiu de
anunciar. Amós tinha, portanto, a sua profissão de
agricultor e criador de gado, que lhe assegurava uma vida
tranquila. Mas foi-lhe por Deus dada uma vocação e
confiada uma missão. Nesse dia, acaba o profissional, o
funcionário, e nasce o profeta. «Profeta» não é uma
profissão, uma função ou uma herança. Não passa de pai
para filho. É uma vocação e uma missão. E é a Palavra de
Deus que, irrompendo sobre alguém, marca um final e um
começo novo, constituindo-o profeta: «Não era profeta eu,
nem filho de profeta eu, mas o Senhor…» (Amós 7,14-15).

6. Também São Paulo é modelo insigne de quem se sabe


amado e escolhido por Deus desde a eternidade, desde
antes de antes (Efésios 1,3-14). Por isso, não resmunga,
mas exulta e exalta o único verdadeiro Senhor da sua vida,
de quem dá a conhecer os desígnios da sua vontade, para
que também nós o possamos servir e amar de coração
inteiro.

7. João Batista, Jesus, os «Doze», Amós, Paulo, os


missionários. São todos figuras em contracorrente de uma
sociedade rica, insensível, anestesiada, dormente e
indiferente. Porque sabe que é rica, é que se sente agora
em crise! Estranha crise. Os textos de hoje ensinam-nos
que a boa e verdadeira crise é desencadeada em nós pela
Palavra de Deus. Só, de facto, Deus, Primeiro e Último,
pode pôr em crise o segundo e penúltimo. Infelizmente, a
crise que por aí anda parte do penúltimo e quer pôr em
crise o Último. Edmund Pellegrino, médico e filósofo da
medicina, recentemente falecido (2013), já nos advertiu
seriamente que, na campo da medicina, há excesso de
meios e míngua de fins. Mas podemos, sem medo de errar,
alargar a análise de Edmund Pellegrino a todas as áreas da
nossa sociedade de hoje, e dizer que vivemos na «noite do
mundo», mergulhados numa cultura de excesso de meios e
míngua de fins!
8. Escutemos, por isso, mais um pequeno extrato da
Palavra pertinente do Profeta de hoje: «Eis que virão dias,
oráculo do Senhor, em que enviarei a fome à terra; não
fome de pão nem sede de água, mas de ouvir a Palavra do
Senhor. Cambalearão de um mar a outro mar, andarão
errantes do norte até ao nascente, à procura da Palavra do
Senhor, mas não a encontrarão» (Amós 8,11-12).

9. O Salmo 85 é um canto de júbilo pela restauração pós-


exílica operada por Deus em favor do seu Povo maravilhado
e agradecido. Com Deus, que vem viver e caminhar
connosco, vem a paz, a justiça, a verdade, a fidelidade, a
salvação, o bem. A nossa terra exulta. O nosso coração
exulta. Mas também hoje podemos cantar esta ação
maravilhosa de Deus, que sabe sempre renovar a nossa
vida e a nossa história, mesmo quando, em pleno exílio,
pouco vemos. O grande filósofo e místico hebreu, Abraham
Joshua Heschel (1907-1972), já nos lembrava, há uns anos
atrás, que «estamos a perder a capacidade de cantar». E o
famoso poeta inglês John Milton (1608-1674) lerá assim os
versos 9-14 do nosso Salmo 85 numa Ode natalícia, datada
de 1629: «Sim, Fidelidade e Justiça, então,/ voltarão para
junto dos homens,/ envoltas num arco-íris, e,
gloriosamente vestida,/ a Bondade sentar-se-á no meio…/ E
o céu, como para uma festa,/ escancarará as portas do seu
palácio excelso». Em consonância com Isaías, que grita:
«Destilai, céus, lá do alto, e que as nuvens façam chover a
justiça, que se abra a terra e germine a salvação, e ao
mesmo tempo faça brotar a justiça». E a assinatura: «Eu, o
Senhor, criei isto!» (Isaías 45,8).

António Couto

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