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Liberdades. 18
| Publicação do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais | nº 18 – janeiro/abril de 2015 | ISSN 2175-5280 |
Expediente | Apresentação | Entrevista | Spencer Toth Sydow entrevista Luis Ernesto Chiesa | Artigos | Globalização e o Direito Penal |
Carlo Velho Masi | Voltaire de Lima Moraes | A independência judicial e o inconsciente do julgador: um diálogo (im)possível? | Bruno
Seligman de Menezes | Algumas indagações sobre a desnecessidade da proibição de extraditar em casos de crimes políticos: seria o
terrorismo um crime político? | Gabriela Carolina Gomes Segarra | A perspectiva psicanalítica do crime e da sociedade punitiva |
Carlos Eduardo da Silva Serra | Labelling Approach: o etiquetamento social relacionado à seletividade do sistema penal e ao ciclo da
criminalização | Raíssa Zago Leite da Silva | El discurso de los menores bajo medida judicial | Concepción Nieto Morales | História |
O pensamento de Enrico Ferri e sua herança na aplicação do direito penal no Brasil contemporâneo | Maria Paula Meirelles Thomaz de
Aquino | Resenha de Livro |“Um preço muito alto: a jornada de um neurocientista que desafia nossa visão sobre as drogas”, de Carl
Hart | Roberto Luiz Corcioli Filho
resenha de
expediente sumário apresentação entrevista artigos história
livro
Expediente
e
Publicação do
Diretoria da Gestão 2015/2016 Instituto Brasileiro de Ciências Criminais
Expediente.........................................................................................................................2
e
Apresentação....................................................................................................................5
Entrevista
Artigos
História
Resenha de Livro
Apresentação
Inicia-se 2015. No ano que passou as edições da Revista Liberdades trouxeram textos que sempre nos provocaram
a reflexão. A primeira edição do novo ano, creio, conseguirá manter a linha.
Iniciamos com uma entrevista repleta de pontos polêmicos. Concedida pelo professor da Universidade de Nova
Iorque, Luis Ernesto Chiesa, a Spencer Toth Sydow, o entrevistado revela a importância de seus mestres George Fletcher
e Francisco Muñoz Conde, em uma formação em Direito Penal que reúne as visões continental e anglo-saxã sobre a
matéria. Fornece detalhes da analogia em Direito Penal possível no direito americano e expõe sua polêmica posição
determinista do agir humano.
Entre os artigos, Carlo Velho Masi e Voltaire de Lima Moraes retomam a Globalização, criminalidade internacional
e política criminal. Após uma abordagem histórica e teórica da globalização e duvidar de sua linearidade, preocupam-se
com seus efeitos sobre a produção em matéria penal.
Nesta edição, duas expedições sobre uma ciência sempre presente e pouco penetrada pelos operadores do Direito.
No primeiro artigo, Bruno Seligman de Menezes adentra no diversificado e fascinante mundo da psicologia para, à
luz do pensamento Freudiano, investigar a imparcialidade judicial.
Carlos Eduardo da Silva Serra, analisando correntes psicológicas diversas, investiga suas influências nas teorias
criminológicas sobre o delito e a culpa.
Gabriela Carolina Gomes Segarra discute o instituto da extradição e a diferenciação entre crimes comuns e crimes
políticos. Em especial a discussão gira em torno da dificuldade de conceituação do “político” que qualifica o delito e da
evidente preocupação com a classificação do terrorismo naquela categoria.
De forma direta e didática, Raíssa Zago Leite da Silva apresenta o labelling Approach, em um texto que tem como
maior mérito a fluidez e brevidade das ideias em, após descrever a teoria, relacioná-la com a seletividade do sistema penal
e suas consequências mais evidentes.
A perene preocupação com a formação socioeducativa dos adolescentes submetidos a medidas judiciais é explanada
por Concepción Nieto Morales. Em seu texto, investiga as causas da criminalidade juvenil espanhola analisando aspectos
como família, escola, amigos e drogas, e as confronta com a legislação da Espanha sobre a matéria.
Um preço muito alto é um livro de memórias escrito por Carl Hart. Roberto Luiz Corcioli Filho nos apresenta uma
resenha das memórias de um professor que ultrapassam a narrativa de fatos vividos e invadem um contexto de crítica
social sobre o tratamento das drogas e sua política proibicionista.
Na seção de história, Enrico Ferri, notório pensador positivista, é retratado por Maria Paula Meirelles Thomaz de
Aquino de forma cuidadosa e responsável. No texto, a autora consegue um retrato fiel e bem elaborado sobre as ideias
de Ferri, os institutos que auxiliou a criar e como tais contribuições afetaram e ainda afetam sistemas penais pelo mundo,
inclusive no Brasil. O Texto tem ainda outro mérito: foi produzido no seio do grupo de estudos avançados do instituto.
A primeira edição do ano marca também a passagem do cetro. Nas próximas edições, a revista contará com nova
coordenação, algo sempre necessário e salutar para sua sobrevivência. Certamente, a qualidade será superada e toda a
sorte é desejada ao trabalho que se inicia.
Boa leitura e um bom ano.
Alexis Couto de Brito
Coordenador-chefe da Revista Liberdades (gestão 2013-2014).
Resumo: O presente artigo tem a finalidade de descrever os alicerces da Escola Penal Positiva, suas inovações em relação à Escola
Clássica e seu papel fundamental nas diretrizes legislativas de inúmeros países do mundo, inclusive o Brasil. O foco, até então
inexistente, no criminoso, em suas “anormalidades” psíquicas, no meio em que ele habita, em suas características antropológicas
e genéticas e, por fim, na sua periculosidade, fundamentou o desenvolvimento de institutos como o Exame Criminológico e das
Medidas de Segurança que ainda está presente no ordenamento jurídico-penal brasileiro. Dessarte, o artigo pretende esclarecer a
origem de tais institutos para compreender seu funcionamento e suas práticas na atividade jurídica atual.
Palavras‑chave: Escola positiva; Enrico Ferri; periculosidade; penas indeterminadas; ciências naturais; medidas de defesa social;
determinismo; responsabilidade social.
Sumário: Introdução – 1. Surgimento do pensamento positivo-criminológico e suas bases fundamentais: 1.1 O método experimental ou
indutivo; 1.2 Determinismo e negação do livre-arbítrio; 1.3 Responsabilidade Social e as medidas de defesa social – 2. Periculosidade
inserida no conceito de Enrico Ferri: 2.1 Responsabilidade social e defesa social; 2.2 Adaptabilidade da sanção ao criminoso; 2.3
Periculosidade social (anterior ao crime) e criminal (após o crime); 2.4 Avaliação da periculosidade do agente criminoso; 2.5
Instituição de penas por prazo indeterminado – 3. Herança do pensamento de Ferri no Brasil de outrora e contemporâneo: 3.1 Exame
criminológico; 3.2 Medidas de segurança no Brasil – A (des)necessidade de prazos mínimos e máximos de sua duração – Conclusão
– Bibliografia.
Introdução
Dentro de um contexto fortemente permeado pelas ciências naturais, o positivismo de Augusto Comte e as ideias
evolucionistas de Darwin e Spencer tiveram grande relevo. Tal período, conhecido como “Científico”, trouxe à tona ideias
e avanços relacionados à Sociologia, Antropologia, Psiquiatria, Biologia e, dessarte, proporcionaram grande influência às
diversas disciplinas correntes. Logo, o Direito Penal não conseguiu escapar a tal explosão cientificista da época.
O empirismo e o método indutivo de estudo no âmbito acadêmico tiveram seu ápice no século XIX, e a Escola
Positiva no Direito Penal começou a se desenvolver em fins do mesmo século. Com o intuito de se adequar aos padrões
cientificistas da época, os fundadores de tal Escola desenvolveram teorias nas quais todos os elementos, conceitos e
técnicas utilizadas pelas ciências naturais pudessem ser integralmente aplicados no âmbito jurídico-penal existente.
Os principais autores dessa corrente filosófica do Direito Penal são: Cesare Lombroso, Enrico Ferri, Rafael Garófalo.
Suas ideias estiveram presentes na criação de inúmeros Códigos Penais pelo mundo, e tiveram relevante importância na
América Latina, em especial no Brasil.
Este artigo tem o escopo de salientar a responsabilidade dessa corrente de pensamento do século XIX na feitura de
nossas leis, tanto as de outrora, como as atuais.
1 SMANIO, Gianpaolo Poggio; FABRETTI, Humberto Barrionuevo. Introdução ao direito penal – Criminologia, princípios e cidadania. 2. ed. São Paulo: Atlas,
2012. p. 43.
2 FERRI, Enrico. Sociología criminal. Madrid: Centro Editorial de Góngora. t. II, p. 153.
Admitia, também, que a forte tendência da época em desenvolver inférteis teorias ecléticas com o escopo de conciliar
ideias do velho pensamento com as que estavam emergindo na sociedade jurídica e acadêmica (a Escola Positiva) somente
provaram que o velho pensamento clássico já estava morto, arcaico, vago, e que nada mais o faria ressuscitar. No que
tange à teoria da responsabilidade penal, Ferri considerava que tais teorias eram apenas “variações verbais” do velho tema
da responsabilidade moral, baseada por elas sobre a liberdade moral, não absoluta e, sim, relativa e limitada.3
Nesse ínterim, a mudança do foco do estudo do Direito Penal foi radical. O conceito de crime, com o advento das
ideias de Ferri, v.g., toma outros contornos e deixa de ser uma fórmula “sacramentada” com viés puramente jurídico
e abstrato, como pregava Francesco Carrara, e passa a ser um ato imbuído de complexidades tanto individuais quanto
sociais para essa linha de pensamento jurídico-criminal. Assim explica Jiménez de Asúa: “Os positivistas comprovaram
que a ação punível é um ato natural e social, motivados por três ordens de fatores: antropológicos, físicos e sociais.
Portanto, o delito é, ao mesmo tempo, um fenômeno individual e um fenômeno social”.4
Era imprescindível, na visão dos positivistas, o foco no ser humano, no delinquente, de tal forma que a compreensão
do seu meio ambiente e os fatores que o levaram a delinquir serão, pois, objetos de estudo. A ciência positiva não se
limitou somente a mera descrição dos fatos, mas, também, a explicação das causas. Dessa forma, entender e estudar o
homem delinquente (tanto em quesitos físicos, antropológicos ou sociais) era trivial para poder puni-lo de maneira eficaz
e, assim, reduzir a taxa de criminalidade existente.
A aplicação do positivismo penal se dá de acordo com os seguintes preceitos mencionados e discutidos abaixo:
endógenas ou exógenas que determinariam seu comportamento. Sustentavam que havia uma ordem moral obrigatória
para todos, sendo necessário o cumprimento das normas oriundas dessa ordem para o equilíbrio social. Dessarte, cabia ao
Direito Penal apenas retribuir o mal cometido pelo infrator com o instrumento da pena.
Em contrapartida, os positivistas, através de um olhar particular, supostamente imparcial e individualizado em
relação a determinado crime ou criminoso, constatavam resultados que eram, em seguida, generalizados e, analogicamente,
se tornavam fórmulas matemáticas, químicas ou físicas, aplicáveis a todo caso concreto.
“Precisamente, para os partidários da escola positiva, a essência de sua doutrina reside no método instaurado.
Desde a obra de Lombroso, os livros desenvolvidos pelas novas tendências antropo-sociológicas se distinguem, a mais
superficial inspeção, dos construídos com o método claramente lógico-abstrato: mapas, gráficos, fotografias e desenhos
se ostentam em suas páginas.”5
Anota Thompson também que:
“O objeto da ciência positiva tem que ser de modo estável, definido, absoluto. Ora, a definição das infrações pelos
preceitos legais caracteriza-se pela fluidez, pela mutabilidade, pela extraordinária variação em função de sua colocação
em termos de tempo/espaço.
Agir de certa maneira pode ser crime hoje e aqui, mas pode ser lícito hoje lá ou tê-lo sido aqui ontem ou vir a sê-
lo aqui amanhã. Como observou um autor: ‘Uma criminalidade que é regulada em parte pela cronologia, em parte pela
longitude, não se presta facilmente para uma discussão científica.’”6
Em relação à imparcialidade do cientista proposta pelos positivistas, o que tem por desiderato uma espécie de
neutralidade na observação e concretização de suas pesquisas, é alvo de críticas contundentes. Uma delas é oferecida
também por Thompson que deixa transparente o problema da interpretação de fenômenos humanos de criminalidade e,
portanto, complexos, à luz das ciências naturais e exatas.
“Com efeito, o sucesso do método empírico ou positivo depende, medularmente, da neutralidade e desinteresse por
parte do sujeito quando da captação dos elementos relacionados com o objeto do estudo, de sorte a conseguir apreendê-
los em sua realidade. Da certeza e pureza dos dados assim recolhidos é que se poderá sistematizar o conhecimento
obtido, dele retirando todas as consequências encaminhadoras à ampliação da área pesquisada. Como, contudo, será
possível encontrar neutralidade por parte do cientista enquanto trabalha no terreno das ciências humanas?”7
Com a crítica posta, a questão que se constrói é: como um ser humano, dotado de características tais que o fazem
ser semelhantes aos outros, por óbvio, tem a capacidade de se mostrar imparcial aos fatos criminosos que são cometidos
também por humanos? Ele investiga, portanto, seu próprio eu; sendo parte do objeto investigado.8
Acrescenta, ademais, “Como ser social – ou, para usar expressão mais elucidativa, ser político – é-lhe impossível
descartar toda essa gama de circunstâncias condicionantes, a ponto de conseguir visualizar o meio a que pertence como
alguma coisa que não lhe diz respeito e, dessa forma, observá-lo com a distância necessária para fazê-lo um objeto
alienado de seus interesses: ‘(...) algo como se uma ameba saltasse rapidamente da lâmina de um microscópio para o
visor, e do visor para a lâmina, tentando observar a si própria’. Só na mais cândida das abstrações será viável conceber
alguém capaz de enxergar o grupo humano sem fazê-lo através de representações de valor (...)”.9
1.º Natos ou instinctivos, que se distinguem pela falta congênita do senso moral e pela imprevidência das
consequências de suas acções.
Os assassinos e ladrões são os typos mais communs dessa classe. A falta de senso moral denuncia-se pela
insensibilidade manifestada perante os soffrimentos e os damnos causados às victimas, e perante os seus soffrimentos e
os dos cumplices ; e tambem pelo cynismo ou apathia do criminoso no correr do processo e nas penitenciarias, facto que
determina muitos outros symptomas psychologicos secundarios como a nenhuma repugnancia à idéa do delicto, a falta
de remorso depois de perpetrado este.
Da imprevidencia resultam as manifestações imprudentes, anteriores e posteriores ao crime, e a indifferença pelas
penas comminadas na lei (sic).”11
Isso demonstra a inclinação dos caracteres biológicos e hereditários na conduta do agente pelas ideias positivistas
em voga. Além de Cândido Motta, o também jurista brasileiro, Moniz Sodré, faz uma interessante citação de um biólogo
o qual demonstra a aplicação de sua disciplina no comportamento do criminoso e na dependência do mesmo às heranças
genéticas:
“À GONÇALO MONIZ tomamos as seguintes palavras escriptas com a elevação de vista e criterio superior de
um biologista affeito às sciencias experiementaes , nas quaes está contido, sobre o assumpto, todo o nosso pensamento:
‘Não ha espontaneidade nos phenomenos vitaes: desde o simples movimento ameboide do protozoario até a mais elevada
manifestação da actividade psychica humana, até o acto voluntario, consciente e deliberado, tudo, como no mundo
inorganico, é o resultado, a reacção fatal, mais ou menos proxima ou remota, de determinadas provocações ou excitações,
simples ou multiplas. O acto voluntario, do mesmo modo que qualquer phenomeno cosmico, está, em suma, subordinado
à severa lei do determinismo.’ (sic)”12
11 MOTTA, Candido. Classificação dos criminosos – Introdução ao estudo do direito penal. São Paulo: Estab. Graphico – J. Rosseti, 1925, p. 48-49.
12 ARAGÃO, Antonio Moniz Sodré. As três escolas penaes – Classica, anthropologica e critica (estudo comparativo). 2. ed. Rio de Janeiro: Jacintho Ribeiro
dos Santos, 1917, p. 54.
assim, comete o delito. De tal feito, o agente do crime deve ser punido com uma pena (castigo) correspondente ao fato
cometido, tendo essa função meramente retributiva do mal causado.
Em contrapartida, a corrente positiva se desprende da responsabilidade moral do indivíduo, de sua autodeterminação
(como já foi visto) e coloca como o cerne da responsabilidade a sociedade em si. Dessa forma, como já dizia Ferri,
o homem só comete delitos porque vive em sociedade, sendo essa perfeitamente responsável para se defender contra
eventuais ameaças.
Jiménez de Asúa deixa claro que, ao passo que o indivíduo é fatalmente determinado por fatores externos ou internos
a cometer algum delito, a sociedade também é igualmente determinada a defender suas condições de existência.13 A partir
dessa assertiva é possível fazer a conexão entre responsabilidade social e medidas de defesa social.
Essas últimas foram desenvolvidas para substituir a pena-castigo. Sua finalidade precípua é defender a sociedade
com certo caráter preventivo. Ao atestarem a ineficácia da sanção meramente retributiva, os estudiosos vislumbraram
outras finalidades as quais pudessem, além punir pela conduta infratora, impedir sua perpetuação. Estimularam, assim, a
finalidade preventiva, adotando a inocuização e o tratamento como meios efetivos de proteção social.14
Partindo da ideia de que o criminoso é influenciado tanto por fatores endógenos quanto exógenos no cometimento
de um crime, é imprescindível que haja um tratamento coerente e eficaz que impeça uma provável reincidência. Ele
deverá ser “corrigido” por meio das medidas de defesa social. Como salienta Ferri,
“Sob o ponto de vista natural não pode ser delinquente senão quem seja um anormal. Anormal por condições
congênitas ou adquiridas, permanentes ou transitórias, por anormalidade morfológica ou bio-psíquica ou por doença,
mas sempre, mais ou menos, anormal”.15
Desse modo, o criminoso, dotado de anormalidades, será colocado em isolamento durante um período indeterminado
(tudo depende de sua “melhora” ou “cura”) para que, findo esse prazo, retorne ao meio social com plena capacidade de
interagir e se relacionar com outros indivíduos sem possíveis ameaças para estes.
A doutrina positivista, em sua forma sociológica, foi a que obteve grande sucesso, como exemplo, no âmbito penal
soviético. Enrico Ferri já dizia, pouco tempo antes de falecer que, “como realização concreta de seu sistema, estão os
Códigos Penais Soviéticos de 1922 e 1926”. O jurista e professor de Direito Penal Donnedieu de Vabres acrescenta que
esse sistema trouxe, com efeito, a noção de responsabilidade legal – ao invés da responsabilidade moral – do delinquente
e a substituição das penas por “medidas de defesa social”.16
16 VABRES, H. Donnedieu de. La politique criminelle des États autoritaires. Paris: Libraire du Recueil Sirey, 1937, p. 146. (tradução livre).
17 FERRI, Enrico. Princípios de direito criminal... cit., p. 281.
18 FERRÉ OLIVÉ, Juan Carlos; NÚÑEZ PAZ, Miguel Ángel; OLIVEIRA, William Terra de; BRITO, Alexis Couto de. Direito penal brasileiro: parte geral:
princípios fundamentais e sistema. São Paulo: RT, 2011, p. 133.
19 FERRI, Enrico. Princípios de direito criminal... cit., p. 282.
órgãos não têm existência biológica no corpo do animal a não ser como partes de um conjunto; ao passo que, o homem, a
família, a comunidade não têm a existência sociológica senão como membros de uma sociedade mais vasta.20
A sociedade ou o Estado, em sua expressão jurídica, tem a necessidade natural de se defender e de se conservar a
qualquer momento em que esteja numa situação de desconforto ou perigo. Como qualquer animal o faria. O indivíduo
determinado pelas condições já expostas (motivos físicos, antropológicos ou sociais) sofrerá a reação da sociedade, porém,
não como sacramentavam os clássicos na sua forma de punição meramente retributiva. Tal reação se dará porque os atos
foram cometidos no convívio social e, por isso, a sociedade (ou Estado) terá, em conformidade com um “determinismo
universal” de castigar ou defender sua integridade.21
“Se o delinquente obedecesse a uma necessidade moral e se o Estado fosse moralmente livre, é certo que toda
pena infligida por este a um ato que não pudesse deixar de ocorrer seria absurda; mas se o Estado também, ou quem
o represente, se encontra na necessidade de castigar, isto é, de se defender, então tudo chega a ser lógico e natural, se
conforma perfeitamente com o determinismo universal.”22
Assim, a partir do que foi supramencionado, passarei a analisar o processo de aplicação da pena ao agente criminoso
e de que forma ele é definido em lei.
“O juiz deve fazer um silogismo perfeito. A maior deve ser a lei geral; a menor, a ação conforme ou não à lei;
a consequência, a liberdade ou a pena. Se o juiz for constrangido a fazer um raciocínio a mais, ou se fizer por conta
própria, tudo se torna incerto e obscuro.”23
Com o criminalista italiano, toda essa vertente sofre mudanças. A pena deve servir e se adequar perfeitamente ao
indivíduo criminoso pelo crime por ele perpetrado, com o escopo de prevenir possíveis reincidências. A sanção não deve
ter como foco o fato criminoso. Esse será apenas uma “condição preliminar de procedibilidade (punibilidade)”.
Tal individualização deve ser feita pelo juiz, demonstrando a inversão do pensamento de Beccaria, em suma, do
pensamento clássico.
“Pelo que, até quem, muito embora ecleticamente insistisse sobre a ‘individualização da pena’, distinguido-a
em individualização legal-judiciária-administrativa, declarou que não pode existir uma ‘individualização legal’. E isso
pela formalistica (sic) razão de que a lei, devendo estabelecer ‘normas gerais e impessoais’, não tem possibilidade de
individualizar o criminoso, o que pode fazer-se sómente (sic) pelo juiz e depois na execução da sentença.”24
Para Ferri, a vida e a ciência trouxeram como imposição à justiça penal não mais a observação da relação jurídica
de infração da norma penal, com suas consequências jurídicas já previstas, mas também e, sobretudo, a expressão da
personalidade do agente criminoso. Tal argumento é justificado, pois a causa primordial e provável para um crime futuro
é a personalidade psíquica do agente. A sanção será útil, assim, tanto para defesa social, como para cura ou tratamento do
criminoso respeitando suas particularidades. Ademais, transparece aqui sua função preventiva.
Nesse ínterim, a individualização penal se dá de acordo com a maior ou menor periculosidade do indivíduo,
isto é, circunscrita a sua personalidade que será apreciada e constatada pelo juiz criminal. Dependendo do seu grau de
periculosidade – que será examinado a partir da “exterioridade física da sua acção (sic) e desta chegar à sua intimidade
psíquica” – será possível individualizá-lo na lei, no julgamento e na execução da condenação.25
Contudo, ressalta Ferri, todos, sem distinção, deverão receber uma sanção pelo único fato de ter cometido um crime,
reafirmando, assim, a teoria da responsabilidade social, em que a sociedade é a plena detentora dos direitos de se conservar
na forma que acreditar ser válida. Cada delinquente teria diferentes condições biopsíquicas e seria tratado de maneiras
23 BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Trad. Paulo M. Oliveira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011, p. 29-30.
24 FERRI, Enrico. Princípios de direito criminal... cit., p. 193-194.
25 Idem, ibidem, p. 222.
diversas pela defesa social: criminosos adultos em relação aos menores; criminosos ocasionais e não reincidentes em
relação aos habituais; o louco delinquente de modo diverso do criminoso instintivo.26
É possível aferir que, de acordo com seu posicionamento, todos os membros da sociedade que cometem ações
antissociais, em seu grau de periculosidade específico, são anormais. Deverão suportar as respectivas sanções para
assegurar, como ele mesmo diz, “o mínimo de disciplina social, sem o que não é possível nenhum consórcio civilizado”.27
A demonstração dos clássicos de que a pena somente terá eficácia quando cominada àqueles capazes de entender seu
escopo e sua coação psicológica, sendo excluídos taxativamente os loucos, menores, embriagados e surdos-mudos (como
sustentava o Código Penal italiano em 1931, em voga na época da publicação da obra de Ferri) foi rebatida pela Escola
Positiva por meio da argumentação científica de que todo homem delinquente é um anormal. Ferri afirma ser incontestável,
ademais, a anormalidade psíquica, ainda que ínfima, que o “homem normal”, isto é, o homem não criminoso apresenta.
Ela somente não é exteriorizada pelo motivo determinista de que ele “sabe se adaptar ao ambiente em que vive” e também
pela responsabilidade social, no que tange ao respeito às normas exigidas na sociedade com o escopo único de manter a
ordem e a defesa.
O “homem delinquente” não detém desse bom senso existente no “homem normal”. Suas anormalidades psíquicas,
portanto, “não só são mais graves, mas, sobretudo são mais numerosas no mesmo indivíduo”.28 Assim, no momento da
ação criminosa, há falhas relevantes na atividade psíquica do agente, demonstrando sua incapacidade de se adaptar ao
ambiente e às condições de existência social. Esse desvio mental está, portanto, perfeitamente vinculado à ação delituosa.
Ferri explica com exemplos das categorias antropológicas:
“Serão diversas as graduações deste defeito de adaptação psíquica ou deste anormal funcionamento da actividade
psíquica do delinquente passional (por exemplo, por honra ofendida) ao delinquente ocasional (réu, por exemplo, de
leve furto simples), até ao delinquente nato ou louco (réu, por exemplo, de parricídio), mas a anormalidade psíquica é
inseparável da acção (sic) delituosa. Naturalmente estas gradações diferentes de intensidade, fazem com que a lei penal
possa dar normas especiais sómente para os mais graves e aparatosos (delinquentes loucos, natos, habituais, passionais,
menores), considerando a maioria dos criminosos (ocasionais) atingida apenas por leves e não acumuladas anomalias.
(sic)”.29
26 Idem, p 232.
27 Idem, ibidem, p. 231.
28 Ibidem, p. 251.
29 FERRI, Enrico. Princípios de direito criminal... cit., p. 255.
A Escola Criminal Positiva trouxe, ademais, o que Ferri denominava “inovação metódica e funcional na justiça
penal, teórica e prática” no exame da lei, do processo penal e da execução penal. Contudo, esse exame se dava, também,
de acordo com a categoria antropológica do criminoso já prevista no texto legal e que desencadeava no momento da
execução penal.
“Na lei, quer dizer, nas normas gerais que a constitui, o delinquente vem individualizado, não só – indirectamente (sic)
– pela diversa gravidade do crime praticado, mas sobretudo e directamente (sic) pela diferente categoria antropológica,
que é sempre por si mesma índice de uma diversa temibilidade, e pela medida desta, segundo as circunstancias (sic) de
maior ou menor periculosidade, além das circunstancias especificas (sic) modificadoras de cada crime ou delito e além
de seus elementos constitutivos.
No processo penal, o delinquente vem individualizado com o exame particular das circunstancias objectivas (sic)
do crime e das condições pessoais do seu autor, antes, durante e depois do facto (sic).
Na execução da condenação, o delinquente, segundo a sua individualização contida na sentença, vem destinado a
um ou outro estabelecimento entre os da espécie estabelecida na sentença e, portanto vem sujeito ao tratamento higienico
(sic), educativo, disciplinar, juridico (sic) e econômico que melhor corresponda à sua personalidade, que pode ser mais
ou menos readaptável à vida social ou incorrigível ou incurável.”30
30 Ibidem, p. 197.
31 Ibidem, p. 285.
Houve críticas e objeções contumazes aos positivistas (em especial, Enrico Ferri) feitas pelos neoclássicos no que
concerne aos dois principais problemas do seu critério de análise da periculosidade do agente: a incerteza de sua definição
legal e o arbítrio do juiz ao apreciá-la.
No que tange à primeira objeção, Ferri constata que ela tem por foco a periculosidade social, em que se tem em vista
a polícia de segurança e o “perigo do crime”. Contudo, a periculosidade que interessa à justiça penal é a criminal, que
aplicará a sanção ao crime já perpetrado e se fundamentará a partir de circunstâncias reais e pessoais para que avaliação
do grau de periculosidade seja concretizada. Tal avaliação, de acordo com Ferri, não deixará de ser mais complexa e difícil
que a “avaliação probatória dos processos indiciários”.
Ferri cita a resposta de Grispigni a tal censura que diz que ela se dirigiria aos juízes que têm por escopo, ao aplicar
a pena, a prevenção geral (intimidação geral), utilizando os réus apenas com intermediários para tal fim.32
Em suma, a sanção deveria ser adequada ao criminoso tanto em uma análise moralmente culposa (como preferiam
os clássicos) quanto na sua potência ofensiva (periculosidade criminal), reiterando a necessidade da prática de um crime
para tal feito.
Em relação à segunda objeção, Ferri tem o seguinte argumento:
“Certamente o substituir, na justiça penal, ao critério objectivo (sic) do crime o critério subjectivo (sic) do
delinquente, leva necessariamente as mais amplas faculdades de indagações e de apreciações por parte do juiz: mas isto
não pode constituir uma ofensa aos direitos do indivíduo, se se (sic) pensar que nós invocamos uma magistratura penal,
distinta da civil, com adequados conhecimentos tecnicos (sic) acêrca (sic) do homem delinquente”.33
32 Ibidem, p. 292.
33 FERRI, Enrico. Princípios de direito criminal... cit., p. 293.
Vale salientar que Ferri deu ênfase e relevância aos dois últimos, dispensando ao primeiro o valor essencial para
determinação da periculosidade criminal, pois o fato criminoso pode ser insignificante, como um furto de um alimento,
contudo, o indivíduo pode ser potencialmente perigoso (loucos, menores, habituais, instintivos, v.g.). E, ao contrário, um
crime pode ser considerado gravíssimo, porém o “delinquente” tem o mínimo grau de periculosidade (crimes passionais,
v.g.).
Em todo crime há um aspecto causal, qual seja, a lesão a um bem jurídico ou quando esse é posto em perigo.
Ademais, há um aspecto sintomático, que seria a própria tendência criminosa do indivíduo, sua periculosidade. Frisa-se
que este último tem uma “importância preponderante”.34
Os motivos determinantes “dão o significado moral e jurídico a todo o ato humano”.35 São os móbeis para fomentar
o ato criminoso, podendo ser motivos: sociais ou antissociais; legítimos ou ilegítimos; egoístas ou altruístas.
A personalidade do criminoso é o cerne da constatação do grau de periculosidade. Nesse critério são inseridas
probabilidades científicas, caracteres genéticos, individualidade biopsíquica, isto é, ele será analisado como um ser-vivo
em sociedade, mas com métodos laboratoriais. Dependendo da personalidade, será submetido a um tratamento que se
enquadre às suas peculiaridades.
Além desses dados, cabe aqui reiterar que há o enquadramento do criminoso às diversas categorias antropológicas
previstas em lei.
Por mais absurdas que pareçam tais ideias, jamais devemos estudá-las e interpretá-las com uma perspectiva filosófica
contemporânea do século XXI. Devemos entender o contexto que propiciou seu surgimento e observar a “evolução”
desenvolvida até os dias de hoje.
Em um trecho da obra, Ferri sugere um estudo de personalidade do indivíduo desde a formação escolar, demonstrando
a acentuada incoerência aos olhares de hoje, porém, a plena coerência na visão do século XIX.
“Como já acentuei, se – além de especiais institutos de estudo bio-psíquico da individualidade humana – nas escolas
populares, por onde passa toda a população masculina e feminina de um Estado, este instituísse uma cedula individual,
confiada aos mestres e aos médicos escolares, para fixar – com os metodos tecnicos da pedagogia antropologica – os
dados mais caracteristicos da personalidade fisica, moral, intelectual de cada aluno, para lhe precisar as tendencias e
atitudes com relação à conduta social e ao trabalho; e se a este censo geral, se acrescentasse – como já fez o Governador
34 Ibidem, p. 298.
35 FERRI, Enrico. Princípios de direito criminal... cit., p. 301.
de Roma – o especializado para os estudantes deficientes anormais, não só intelectualmente, mas sobretudo moralmente
(candidatos à delinquência), é evidente que a defesa preventiva (...) e a defesa repressiva teriam à sua disposição dados
abundantes e seguros sobre a personalidade e periculosidade de todo o cidadão, que com a própria conduta irregular ou
defeituosa reclama sobre si a necessidade de providências preventivas e repressivas (sic)”.36
É transparente a observação de que, com esse tipo de sugestão para facilitar a defesa do Estado/sociedade, o método
de apreciação da personalidade se dá essencialmente com a tendência ou não de cometer crimes. “O crime é um resumo
da personalidade do agente e dela é quasi um simbolo vivo. (sic)”.37
Em agosto de 1925, o Congresso Penitenciário Internacional de Londres exprimiu sobre a necessidade de que
todos os indivíduos condenados fossem sujeitos a um exame físico e mental (como se instituiu no Brasil, o chamado
“exame criminológico”) por médicos experientes e especializados nesse ramo, ademais, a imprescindibilidade de se
instituir um laboratório em cada penitenciária. “Este sistema contribuirá para determinar as causas biológicas e sociais
da criminalidade e para precisar o tratamento adaptado a cada delinquente”.38
Conclui-se, portanto, que a personalidade do criminoso atestada pela sua individualidade biopsíquica fornece dados
suficientes para a graduação da periculosidade, em torno do qual a gravidade do crime e os motivos determinantes serão
de grande valia para se chegar ao objetivo final: adaptação legal da sanção ao criminoso.
36 Ibidem, p. 315-316.
37 DE SANCTIS apud FERRI, Problemi e programmi della Scuola Positiva na “Scuola Positiva”, 1921, p. 162; Idem, Il concetto moderno di alienazione mentale
nella criminologia, ibidem, Rio Janeiro, 1927.
38 FERRI, Enrico. Princípios de direito criminal... cit., p. 318.
ao “modelo geral de criminoso”, Ferri acredita ser este utópico, pois os criminosos têm características físicas, psicológicas,
antropológicas que se diferem de um para outro, por óbvio. Portanto, jamais devem ser tratados e sancionados da mesma
forma.
O trecho abaixo transcrito integra a obra Sociologia criminal de Ferri e o próximo, a obra do mesmo autor, Princípios
de direito criminal, demonstram a mesma ideia, sendo que o segundo faz a comparação do juiz ao médico e da penitenciária
ao hospital, reiterando as ideias de “anormalidade”, “doença”, “cura”, “tratamento”, utilizadas nas ciências biológicas,
que fazem com que o estudo do Direito Penal seja uma “anatomia jurídica”.39
“Para todo delito cometido, o problema penal não deve, de modo algum, consistir em fixar uma certa dose de pena,
que se acredita proporcionada à falta do delinquente: deve reduzir-se a decidir se, dadas as condições objetivas do ato
(direito violado e dano causado) e as condições subjetivas do agente (motivo determinante e categoria antropológica)
é necessário separar o indivíduo do meio social, para sempre ou por tempo maior ou menor, caso o condenado se
mostre readaptado ou não ao meio social; ou se deve contentar-se simplesmente com uma reparação rigorosa do dano
causado.”40
“Quando o juiz, presentemente – através dos cálculos das frações aritméticas para mais ou para menos – condena
um criminoso, por exemplo, a 9 anos, 7 meses e 20 dias de prisão, o absurdo do sistema é evidente, como se à porta do
hospital o médico prefixasse os meses ou os dias de permanência do doente, que tem de ficar aí até o fim do prazo, mesmo
se for curado antes, ou que tem de sair do hospital no termo designado, mesmo se ainda não estiver reestabelecido.”41
Logo, sua duração era decidida no decorrer da aplicação da sanção.
Jiménez de Asúa também, no seu livro El estado peligroso defende a instituição de penas e medidas de segurança
indeterminadas em relação ao seu caráter provisório, pois quaisquer sentenças que decretem o estado perigoso do agente
devem ser sujeitas a modificações ou reformas, sendo inadmissível a “santidade da coisa julgada”. E assim, a justiça
seria feita, de acordo com ele, impedindo que os criminosos ficassem isolados em um tempo superior ao que realmente
necessitavam para sua readaptação social. Em contrapartida, aos criminosos que necessitavam de um tempo maior ao que
seria previsto por uma pena fixa, ou até um sequestro absoluto, como determinava Ferri.
39 BARRETO, Plínio. Questões criminaes. Secção de obras d’ O Estado de S. Paulo, São Paulo, 1922, p. 40
40 FERRI, Enrico. Sociologia criminal cit., p. 266 (tradução livre).
41 FERRI, Enrico. Princípios de direito criminal... cit., p. 321.
Asúa também afirma que, em casos de erro na apreciação da periculosidade do criminoso, deveria ser decretada
imediatamente a inexistência de perigo, mesmo quando o condenado já estivesse cumprindo pena ou medida de segurança.
Assim, ele seria retirado do estabelecimento, pois não havia razão para ser tratado ou inocuizado.42
42 JIMÉNEZ DE ASÚA, Luis. El Estado peligroso. Madrid: Imprente de Juan Pueyo, 1922. p. 98 (tradução livre).
43 FERREIRA DE ALMEIDA, Gastão. Os projectos do Código Criminal Brasileiro (de Sá Pereira) e do Código dos Delictos para a Itália (de Ferri). São Paulo:
Edições e Publicações Brasil, 1937, p. 9-10.
44 BRITO, Alexis Couto de. Análise crítica sobre o exame criminológico. Temas relevantes de direito penal e processual penal. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 6.
45 Idem, ibidem, p. 6.
46 Ibidem, p. 7.
47 Ibidem, p. 8.
48 BRITO, Alexis Couto de. Análise crítica... cit., p. 8.
O que cabe salientar é que, a partir de um anteprojeto realizado por Benjamin Moraes Filho, que previa a aplicação
do exame, suas ideias foram inseridas na Lei contemporânea, como deixa claro o professor Alexis Couto de Brito:
“Em 1984, com a edição das Leis 7.209 (nova parte geral do Código Penal) e 7.210 (que regulamenta a Execução
penal no país) é que o exame criminológico surgiu como algo definitivo em nosso sistema normativo. Mas, o que poucos
percebem, é que o anteprojeto de Frederico Marques e principalmente o de Benjamin Moraes Filho praticamente
serviram de base para a atual Lei 7.210/84, o que demonstra que a atual Lei é na verdade fruto do pensamento de mais
de quatro décadas. E pior, a Lei 7.210/84 manteve no ordenamento jurídico-penal um exame originariamente pensado
para o perigoso, como algo viável para o criminoso culpável.”49
Com a manutenção do exame criminológico ao criminoso culpável, há a tendência de eliminar de vez a lógica de
que ele teria fundamento apenas no que tange à aferição da periculosidade; e, como consequência, retoma-se e retifica-se
o pensamento do século XIX, à luz de uma investigação pericial baseada em métodos científicos, físicos, psicológicos
e comportamentais. Talvez por ser mais fácil simplificar a complexidade do fenômeno da criminalidade imputando-se a
culpa ao indivíduo criminoso por causas naturais oriundas de seu organismo biológico ou de seu meio social.
Antes da entrada em vigor da Lei 10.792/2003, o exame criminológico era facultativo para a progressão do regime;
atualmente, ele foi expulso do ordenamento e, portanto, sua exigência para progressão gera constrangimento ilegal por
ausência de previsão para tal ato.
A forma para se realizar o exame, ademais, nunca foi detalhada, como explica o professor, “Em nenhum momento
dos projetos ou mesmo de suas exposições de motivos há uma orientação de como o exame deverá ser feito e quais as
técnicas possíveis que seriam adotadas para se chegar às conclusões esperadas por tal exame, talvez porque sempre se
soubesse que tais conclusões fossem apenas especulações, ou mesmo um ato de fé no fato de que a ciência pudesse dar
causas tratáveis à criminalidade.”50
Em suma, a questão se põe à reflexão é: como um exame realizado por “médicos especialistas” que não tem uma
forma específica, detalhada, pormenorizada em lei, poderá definir a possível “melhora” ou não do criminoso, isto é,
sua capacidade de retornar ao convívio social, a partir de constatações tão abstratas como tal exame propõe? Frisa-se
que, com essa abstração, ocorre um possível constrangimento ilegal, pois submeter o indivíduo a algo não detalhado no
ordenamento jurídico parece ferir, danificar as bases democráticas de um Estado de Direito. O risco de arbitrariedades e
49 Idem, ibidem, p. 9
50 Ibidem, p. 10.
jogos de interesse político parece ser de uma obviedade transparente. Ademais, com sua instituição, a possibilidade de se
verificar a realidade dos fatos torna-se quase inalcançável, indemonstrável.
de se readaptar novamente”, ele será submetido à medida de segurança, em que se negava qualquer limite máximo da
duração. Logo, ela serviria como complemento à pena, ferindo por completo o princípio non bis in idem. Ao passo que,
para os irresponsáveis/inimputáveis, a pena seria automaticamente substituída pela medida de segurança.
“Segundo o Código Penal de 1940, a medida de segurança só cessaria quando o indivíduo estivesse totalmente
curado, fixando, por outro lado, absurdo lapso temporal mínimo obrigatório em sua execução, pouco se importando com
a cessação prévia do estado de periculosidade (art. 81).”
A necessidade de um tempo mínimo obrigatório, como veremos mais adiante, continua presente no ordenamento
jurídico brasileiro, sendo alvo de discussões contumazes.
Ademais, previa o então Código que, apesar de o indivíduo não ter perpetrado um delito, poderia presumi-lo
como delinquente apenas ao configurar elementos suficientes, como fatos perigosos – “quase crime” –, para atestar sua
periculosidade e admitir uma medida de segurança de cunho social.54
Com a Reforma de 1984 do Código Penal, foi exigida a prática de ilícito típico, somente, retirando a apreciação
da periculosidade social, isto é, uma presunção de periculosidade. Aboliu-se também o sistema do “duplo binário” e
adotou-se, em contrapartida, o sistema vicariante, que cindiu a resposta punitiva entre penas (imputáveis) ou medidas de
segurança (inimputáveis). Mesmo em casos de indivíduos inimputáveis, o juiz deverá escolher, prioritariamente, a pena,
porém reduzida (como aduz o art. 26, parágrafo único, do Código Penal) e, excepcionalmente, optar pela medida de
segurança, nos termos do art. 98 do mesmo Código.55
Apesar de tais avanços, a promulgação da Lei 7.210 (Lei de Execução Penal) trouxe retrocessos para o regime penal
no Brasil ao manter o prazo mínimo fixado para que o condenado inimputável faça o devido cumprimento. Aduz o art. 98
do Código Penal:
“Art. 98. Na hipótese do parágrafo único do art. 26 deste Código e necessitando o condenado de especial tratamento
curativo, a pena privativa de liberdade pode ser substituída pela internação, ou tratamento ambulatorial, pelo prazo
mínimo de 1 (um) a 3 (três) anos.”
Qual seria a justificativa encontrada pelos legisladores ao estabelecer a exigência desse prazo mínimo? O limite
da sanção, teoricamente, será quando for constatada a cessação da periculosidade. Não seria, então, contraditória tal
determinação legal? Salo de Carvalho faz a seguinte análise:
“Imaginem-se os casos em que o sujeito, ao longo de um processo criminal que pode durar anos, submeteu-se a
tratamento psiquiátrico e psicológico, e, no momento da sentença, está em plenas condições de convívio social, não
apresentando risco de reincidência maior do que aquele inerente a todas as pessoas. Situação similar seria a dos casos
em que o sujeito inicia o cumprimento da medida e é constatada a cessação da periculosidade antes do período mínimo.”56
Note-se que algo de retributivo, ainda que mínimo, permeia a aplicação dessas medidas. Há críticas no sentido de que
a compreensão do sofrimento psíquico do autor e as devidas formas de cuidado e tratamento para com ele são “esquecidas”
ou até “apagadas” em prol da existência de um crime “que permanece como dado congelado em sua biografia”.57
Vale salientar que existe a possibilidade de desinternamento ou liberação, condicionados pelo prazo de um ano.
Contudo, não significam a extinção da medida, pois, se o agente, antes do decurso de um ano, praticar ato indicativo de
sua periculosidade, a situação anterior será restabelecida.58
No que tange ao prazo máximo das medidas, prevê o art. 97, § 1.º, do Código Penal, seja ele indeterminado.
No entanto, conforme decisão do Supremo Tribunal Federal, o prazo máximo para as medidas de segurança devem
circunscrever-se ao prazo estabelecido à pena máxima prevista no ordenamento: 30 anos. Tendo se pautado, ademais,
no entendimento constitucional de que não é permitida, em território brasileiro, a prisão perpétua; apesar do texto
constitucional não regulamentar sobre as medidas de segurança.59
A crítica contumaz que se constrói a respeito do funcionamento das instituições no Brasil (tanto prisão quanto
manicômio) caminha para a transparência da incapacidade de realizarem minimamente suas finalidades: resocializar
o imputável e tratar, com as devidas cautelas, o inimputável. As condições de extrema precariedade das prisões e dos
manicômios, além de graves problemas inerentes a isso, confirmam que ambas as respostas penais ao crime estão fadadas
ao fracasso.
Como foi ressaltado acima, o caráter punitivo (ainda que ínfimo) das medidas de segurança e os problemas de sua
metodologia são analisados por Cirino dos Santos, citado por Salo de Carvalho no seguinte trecho:
“No caso específico das medidas de segurança, Cirino dos Santos demonstra que a crise decorre da inconsistência
dos métodos científicos de prever o comportamento futuro (periculosidade: prognóstico de delinquência futura) e da
incapacidade da medida de transformar condutas antissociais em condutas ajustadas: ‘a crise das medidas de segurança
estacionárias é a crise da prognose de periculosidade e da eficácia da internação para transformar condutas ilegais de
inimputáveis em condutas legais de imputáveis. A inconsistência desses pressupostos explica a convicção generalizada
sobre a necessidade de redução radical das medidas de segurança estacionárias.’”60
É possível perceber que os portadores de uma doença mental, ao cometer um delito recebem, imediatamente, a resposta
penal (medida de segurança) que tenha por escopo minimizar a periculosidade do agente com tratamentos psiquiátricos
decentes e cautelosos. Porém, tais características fundamentais do tratamento sublinhadas são, majoritariamente, deixadas
a segundo plano. O cuidado aos portadores de sofrimento psíquico deveria ser ampliado, seus direitos e garantias idem.
Ferri já ressaltava que “a medida de segurança é a miúdo mais severa que a pena”.61
Diante de tais infortúnios em relação ao tratamento dos portadores de sofrimento psíquico, promulga-se a Lei
10.216/2001 (Lei de Reforma Psiquiátrica) que repensou e reestruturou o modelo das medidas de segurança vigente.
O limite mínimo da medida, por exemplo, “deveria ser abandonado em prol da avaliação das condições psíquicas do
usuário do sistema de saúde mental”.62
Dentre os avanços que a Lei de Reforma Psiquiátrica trouxe, estão: ao ser diagnosticado o transtorno mental, os
substitutos penais previstos para os imputáveis na Lei 9.099 não deverão ser excluídos no processo; a proibição de qualquer
forma de tratamento manicomial; internação psiquiátrica torna-se subsidiária, sendo a prioridade o tratamento em ambiente
o menos invasivo possível, possibilitando a reinserção do paciente em seu meio (art. 4.º, parágrafo único).63 Ademais,
“redefine o portador de sofrimento psíquico como sujeito de direitos dotado de uma especial forma de compreensão dos
seus atos (culpabilidade sui generis)” impedindo qualquer tipo de sanção que seja de natureza segregadora.
Em suma, encontrar alternativas ao arcaico modelo “retributivo” de tratamento dos enfermos mentais infratores da
lei é perfeitamente possível. Com o amparo da Lei 10.216 torna-se crível uma igualdade de direitos e garantias (colocados
em risco nos julgamentos atuais) dos imputáveis e inimputáveis, não fazendo mais sentido que a pessoa que agiu com
plena consciência no ato delituoso seja mais respeitada nos seus direitos fundamentais (previstos ainda na Constituição)
e o enfermo mental, com clara vulnerabilidade perante os demais, seja esquecido e, não raro, tratado de forma violenta e
ilegal pelo sistema periculosista em vigor.
Conclusão
Por fim, o presente artigo teve por escopo salientar o grande peso que a filosofia criminal da Escola Positiva gerou
no desenvolvimento de Códigos Penais pelo mundo todo, além de contribuir para a criação de diversos institutos até então
inexistentes no contexto da época. Ela, portanto, modificou o objeto de estudo, retirou as bases “velhas” do classicismo e
inaugurou o pensamento “moderno”, “atual” e, em sua visão, indubitavelmente mais eficaz contra a criminalidade.
Ao “borbulhar” soluções exatas, matemáticas, práticas para o fenômeno criminal na Europa, a América Latina, e em
especial o Brasil, não escaparam dessa “onda” de modernidade europeia. Os Códigos Penais no Brasil criaram institutos
e soluções propostas por Ferri e pelos demais positivistas, deixando resquícios inevitáveis no século XXI.
Apesar de suas ideias terem contribuído demasiadamente para o surgimento da Criminologia, seus passos foram
retrógrados no que tange ao marco garantista. Fomentaram teses totalitárias por diversos países ao trazer a noção de
Direito Penal do autor – que significou também um retrocesso em relação ao classicismo, pois esse tinha como centro
da questão criminal o fato para, posteriormente, apreciar o autor – que permitiu que julgamentos ilegais ou deveras
complexos fossem solucionados, arbitrariamente, com instrumentos abstratos, provas insuficientes e alegações fracas e
duvidosas, baseadas na ciência antropológica e sociológica.
E tal corrente de pensamento ainda sobrevoa o atual terreno do Direito Penal brasileiro.
Até quando ele sobreviverá?
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