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Analise da peca Júlia

As invenções tecnologias sempre estiveram presente nas artes da cena. Já no palco grego
as máscaras auxiliavam a voz do ator a se projetar no espaço a longa distância. A
Mechané era uma máquina suspensa por grua ou guindaste utilizado para retirar ou
colocar um ator no espaço de atuação de forma espetacular; o periactes era outro
dispositivo cênico que se constituía por prisma cenográfico para mudança de
ambientação. A maquinaria do palco grega demonstra que o uso da tecnologia no campo
teatral é algo tao antigo quanto o proprio teatro. Para a semioticista Santaella “em cada
período histórico, a cultura fica sob o domínio da técnica e ou tecnologia de comunicação
mais recente”. E os benefícios gerados da relação entre arte e tecnologia são mútuos,
visto que as artes tambem fornecem inspiração, modelo e reflexão crítica para o campo
tecnológico, já que o artista tem a sensibilidade para descortinar as relações do homem
tecnológico do presente e tambem apontar para desenvolvimentos futuros.

Dando um salto temporal, a descoberta da iluminação elétrica permitiu o aparecimento


oficial do encenador no final do século XIX, e o desenvolvimento da ciencia da imagem e
do som, o surgimento da fotografia e do cinema. O que possibilitou, por um lado, o teatro
procurar suas especificidades para se diferenciar da nova arte e, por outro, experimentar a
hibridação entre teatro e cinema. Os exemplos são inúmeros: de Meyerhold a Piscator,
pioneiros da época. E essas experimentações vão se adensando e se multiplicando ao
longo dos tempos, com os dispositivos tecnologicos cada vez mais acessíveis, maleáveis,
portáteis e potentes. O que inevitavelmente levanda questões, entre elas, a fusão do teatro
com outras mídias, bem como o papel do ator e sua preparação no palco tecnológico.

Essas poderiam ser algumas das questões levantas pela encenadora Christiane Jatahy no
seu espetáculo carioca Júlia. Não somente neste trabalho, mas em outros(Corte Seco e A
Falta que nos Move) que fazem parte da sua pesquisa teórica e prática sobre o assunto. A
peça se utiliza das tecnologias da imagem e do som para criar um jogo entre elenco e as
imagens de luz. Jogo desafiante para os atores em cena, ao exigir que se equilibrem numa
técnica de atuação para o teatro e para o cinema concomitantemente. Mas, antes de
abordar o trabalho de representaçao dos atores, se faz necessário reflir melhor sobre a
estetica proposta para este espetáculo.

Julia é um espetáculo precedido por um texto dramático, ou seja; uma historia com
fábula onde as cenas servem de suporte para a construção de um mundo ficcional, com
personagens, conflitos e ações definidas e coerentes. Totalidade, ilusão e representação
estao na base do modelo drama, já afirmava Peter Szondi. E a história é uma adaptação
do texto clássico de Strindberg, que conta o embate entre uma jovem aristocrata e um
criado, com quem acaba se relacionando sexualmente e perdendo, com isso, a honra
dentro dos padrões morais do final do século XIX, onde o desfeixo é trágico: Júlia se
suicida. A história é adaptada para o Brasil de hoje, em um espaço ficcional que revela
uma casa de familia abastada contemporânea.

Até aqui poderia ser uma das tradicionais atualizações de textos clássicos - que mantém,
mais ou menos, os conflitos originais do texto, mas que deslocam a ficçao para um
tempo/espaço mais recente, com o intutito de aproximar os conflitos com a realidade do
espectador contemporâneo - não fosse o palco invadido por dispositivos tecnológicos e
imagens digitais. Seria bom recordar que, segundo Patrice Pavis, no seu livro A análise
dos espetáculos, o espectador de hoje habita um corpo midiado ou seja, este já se
acostumou e assimilou as regras do funcionamento das mídias no contemporâneo. O que
torna a utilização do vídeo e do som um procedimento mais que conhecido pelo público,
através da tv, cinema e computadores, sem contar os inúmeros encenadores que ja
apelaram para esse recurso, tornado –o, muitas vezes, banal e esvaziado de sentido.

O que confere qualidade e originalidade ao espetáculo Júlia é a maneira como esses


dispositivos tecnologicos sao utilizados, que transformam a representação num jogo
duplo entre imagens virtuais e atores de carne e osso, entre cinema e teatro. A cenografia
é dinâmica, que vai desde teloes para receber as imagens, que se fragmentam e se
deslocam pela cena, até pedaços de cenários que identificam diversos cômodos de uma
casa, mas que também pode ser um set de filmagem. Em julia o teatro se faz cinema ao
vivo, e as estruturas cinematograficas são expostas ao espectador, desfazendo a ilusão
teatral, diluindo fronteiras entre linguagens artísticas e possibilitando novas camadas de
percepção a plateia, que assiste a tudo numa espécie de “encenação revelada”.

O jogo relacional entre o teatro e o cinema em julia é explorado em seus limites, onde um
filme é feito e projetado em cena. Durante o espetáculo se percebe a realização, o
processo de feitura e o produto cinematográfico. Mas também é teatro, já que está sendo
feito ao vivo, na frente de uma platéia. O que transforma o processo do “fazer” do filme a
própria peça, segundo a próprias diretor em entrevista. Processo cenico que lida com as
estruturas das duas artes ao mesmo tempo. Que solicita uma constante tomada de decisão
por parte do público que precisa optar em qual meio direcionar seu olhar a cada
momento. Segundo Béatrice Picon-Vallin, “se o principio estrutural do teatro é a relaçao
multipla, a troca entre os seres humanos reunidos, quando a tecnologia das imagens
permite transformar, modificar essa relaçao, essa interaçao, sem anestesiar, mas tornar
mais consciente e/ou mais sensivel, ela toca no coração do teatro”.

E o jogo entre os meios acontece de inúmeras formas, onde pode-se utilizer como
parâmetro de analise algumas modalidades esquadrinhadas pela pesquisadora Marta
Isaacsson: por sobreposição, onde ator se posiciona em relação as imagens pré- gravadas
e compoem com ela significados; por continuidade, onde o ator sai de cena e aparece
logo em seguida na imagem pré- gravada ou vice versa; através da captaçao de imagens
ao vivo na cena e projetadas ao lado de imagens pre gravadas, gerando um efeito que
mistura tempos diversos; ou, ainda, a multiplicação e atomização da cena vista ao vivo
através da captação cinematográfica das interpretações dos atores projetada. Em Julia
esses procedimentos se desdobram em dois universos: o do real e o do virtual. O publico
se diverte com a coexistencia de duas maneiras de presença em cena. Tem-se a impressao
de estar vendo um filme sendo realizado no palco, onde os cenários se transformam em
pequenas locações, com a presença constante do fotógrafo com sua filmadora na mão e,
em outros, um filme sendo transformado em teatro.

Esse jogo de entra e sai de imagem real com imagem virtual, assim como a convivência
mutua entre os dois meios, exige do ator que ele atue de forma a ser crivel no palco do
teatro e no enquadramento da camera cinematográfica ao mesmo tempo. Sabe-se que
existem peculiaridades ao se representar para camera e para o palco. Nesse caso a atuação
realista se beneficia ao se utilizar as noções stanislavskianas de ação física, linha contínua
de ação ou superobjetivo. Noções que podem ser pensadas para a atuação para câmera
também já que dizem respeito a elementos que auxiliam o ator nao somente a ter
veracidade em cena, mas a invocar os processos criadores internos. Na atuação para o
cinema o “olho” da câmera capta e atomiza as mínimas reações do ator. Nesse caso a
ação interna se torna fundamental, já que esta se sobressai. (Lee Strasberg e Actor’s
Studio).

Quando se ve o espetaculo se percebe que os dois atores, que encenam um romance


fadado ao fracasso pela diferença de classe, se equilibram entre uma técnica de atuação
que exige focos múltiplos(ator, plateia, câmera e videomaker). Um trabalho de extrema
precisão espacial dos corpos, já que o ator precisa respeitar as marcas de deslocamento no
palco, mas precisa respeitar também as marcas do enquadramento de câmera,
extremamente delicados, transformando a fotografia videográfica instantânea refinada.
Em outros momentos os vídeos ditam o ritmo das cenas, determinando entradas e saídas
dos personagens, que mais uma vez precisam ser precisos ao entrar e sair do palco e
aparecer nas imagens pré-gravadas. Os atores nao tem um segundo de tranquilidade
devido ao olho insistente da câmera e dos microfones, que captam suas mínimas nuanças
psicofísicas e revelam a plateia, mesmo eles estando de costas, sabem que tem uma
camera que lhes mostra o rosto aumentado a plateia. Complexidade técnica equipara aos
desejos de Gordon Craig e sua metafória da uber-marionete.

O espetáculo Julia reafirma as palavras de Picon-Vallin acerca da necessidade de


preparação do ator contemporâneo: Em todas essas situações, o ator é colocado diante de
problemas a resolver urgentemente. Ele deve saber como manter-se ao centro, como lugar
principal da comunicação dramática com o espectador. Pois se trata de um novo espaço
de representação, composto por imagens e por sons produzidos por tecnologias
analógicas ou digitais, aberto a múltiplas janelas para outros registros de realidades,
outras temporalidades, um espaço-tempo híbrido que implica uma atuação diferente. É
preciso que o ator saiba filmar ou que ele saiba se prestar à filmagem. As imagens
colocam o ator polivalente diante de desafios a destacar. As tecnologias da imagem e do
som sublinham a necessidade de uma formação sólida, de um aprendizado eficaz, porque
desestabilizam as relações entre os parceiros de equipe e de criação, inauguram modos
diferentes de trabalho, em que o processo, o work in progress, torna-se objeto de todas as
atenções. Elas fazem da cena um lugar experimental e crítico para pensar, de forma
similar, as mutações da sociedade. Mas faltou, todavia, ao espetáculo repensar o papel
das midias digitais dentro de uma encenação, que pode, muitas vezes revelar as proprias
contradições da linguagem e fazê-la agir de forma contriária a maneira em que é
utilizada. Como, por exemplo, refletir como os atores podem nao ficarem jubjulgados e
comandados pelo olho da câmera, que, em ultima instância retrata a propria realidade do
mundo em que vivemos: estamos regularmente apassivados e adestrados pelo olho do
televisor, do computador, entao caberia ao teatro virar essa logica do avesso, fazendo a
máquina estar a serviço do trabalho do ator, e nao ao contrario. Reflexão filosófica que
não entrou em cena, já que o jogo de imbricamento entre cinema e teatro dita o tom da
encenação.

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