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ODIREITO ÀHISTÓRIA: O(A)HISTORIADOR(A)

COMO CURADOR(A) DE UMA EXPERIÊNCIA


HISTÓRICA SOCIALMENTE DISTRIBUÍDA.1
Valdei Lopes de Araujo (UFOP)1

Aos alunos, docentes e técnicos administrativos da UERJ que lutam hoje


pelo futuro da universidade e da democracia.

APRESENTAÇÃO
Muito do debate sobre o valor do historiador e da historiografia parte
de problemas ligados ao conhecimento da história, seja da realidade
ou sua representação. Sem abdicar dessa d.imen~ão, gostaria de refle-
tir sobre o desafio contemporâneo de responder à percepção de que
todos têm e fazem história, inclusive no sentido de serem cada vez
mais produtores e difusores de narrativas e apresentações históricas.
Este texto é um convite a repensar a função social do historiador de
modo a entendê-la também como reposta ao direito de todo huma-
no, em sendo histórico, poder ter essa condição reconhecida ao reali-
zar-apresentar suas histórias. Pretendemos assim juntar nossa voz ao
convite feito pelo Simpósio Nacional de História ao definir o tema de
seu XXIX encontro: "Contra os preconceitos: história e democracia'".

1. Ao longo do texto, mesmo não utilizando o recurso de apontar para as diferenças de gênero, espe-
ro que os leitores e leitoras tenham na mente, e no corpo, a experiência dessa presença da mulher, tão
importante em nosso campo de estudos, mas ainda assim não suficientemente reconhecida.
2. Professor Associado de Teoria da História na Universidade Federal de Ouro Preto, pesquisador do

CNPq e Membro do NEHM-PPGHIS-UFOP.


3. Este texto foi inicialmente produzido e apresentado por convite da Comissão Organizadora do
Simpósio Nacional de História da Anpuh. Agradeço igualmeme aos colegas Benito Bisso Schmidt,
Henrique Estrada, Mara Rodrigues, Eliana Outra, Pedro Teixerense, Rodrigo Perez, Rodrigo Turim, Ma-

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Gostaria de argumentar que historiografia poderia ampliar suas
funções tradicionais ligadas às expectativas de "aprender com a his-
tória" a partir das representações privilegiadas dos historiadores para
se tornar também um espaço de acolhimento, amplificação e críti-
ca das mais diversas apresentações históricas produzidas pelos ato-
res sociais. No lugar de se pensar apenas como um centro irradiador,
o campo historiográfico poderia projetar-se como espaço de acolhi-
mento e convergência crítica da pluralidade de histórias. De imedia-
to gostaria de salientar que essas duas funções não são contraditórias,
nem excludentes, embora não possam ser tomadas como idênticas.
O que esse movimento poderia significar na reestruturação da for-
mação do historiador? Qual o papel que o campo da Teoria & História
da Historiografia tem tido e poderá ter nessa transformação? O que
podemos fazer a partir de nossos cursos de história para qualificar
nossos alunos no enfrentamento desses desafios?

UM RÁPIDO PANORAMA DA CONJUNTURA


Desde 2013 que presenciamos o questionamento progressivo do alcan-
ce da democracia no. Brasil, quando foram para as ruas contingente
muito diverso de sujeitos sociais insatisfeitos com a representação po-
lítica e o papel do Estado brasileiro em seus diferentes níveis. Parte das
forças sociais liberadas em 2013 são conduzidas e ressignificadas de
modo a serem usadas como legitimação social para o golpe político-
-jurídico de 2016, que abriu a conjuntura de incertezas que vivemos e o
alçamento ao poder de forças políticas e sociais que conjugam velhas.
oligarquias corruptas e parte da elite econômica que vê no enfraqueci-
mento da democracia uma oportunidade para implementar sua agen-
da de reformas e uma concepção de sociedade desigual e hierárquica.

teus Pereira, Estevão de Rezende Martins e Temístocles Cezar pelas sugestões e textos que me roram
enviados à época da elaboração desre artigo. Pude discutir uma primeira versão das ideias aqui apre-'~
sentadas com os discentes da disciplina ~Teorias contemporâneas do tempo histórico~ que ministrei'
no primeiro semestre de 2017 no PPGHIS da UFOP.

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Como a construção das Ciências Humanas e da Historiografia es-
teve sempre intimamente relacionada com as fundações do Estado
nacional e suas instituições, esses questionamentos se retroalimen-
tarn. De todas as direções do espectro político-ideológico emergem
questionamentos e desafios às Humanidades. Bem antes de 2013, re-
forçado pela crise de 2008, multiplicam-se notícias sobre o desinves-
timento público nas Humanidades orientados por uma concepção de
ensino e pesquisa mercantilizado e, desde o Brexit e a última eleição
norte-americana, o questionamento agressivo das funções de media-
ção da universidade e das ciências humanas, em particular. A emer-
gência de uma direita "identitária" aparelhada por grandes grupos
econômicos interessados em saquear o Estado e a Sociedade alimen-
ta uma guerra cultural de escala inédita'.
Em nossos espaços universitários, observamos um movimento
crescente de questionamento de programas e ·bibliografias suposta-
mente indiferentes às novas demandas dos coletivos sociais que rei-
vindicam que suas questões, seus saberes, epistemologias e presen:
ças sejam reconhecidos nos currículos, programas e salas de aula. As
questões de raça, gênero e sexualidade não são apenas novos temas
ou problemas que poderiam ser simplesmente incorporados, os seus
sujeitos reivindicam novas epistemologias, novas disciplinas e insti-
tucionalidades.
A perda de espaço nos currículos de Ensino Médio, projeto que
surge antes do atual governo, mas que as condições de fragilização da
democracia que vivemos ajudou a acelerar, resultando na nova lei do
ensino médio que aboliu a obrigatoriedade do ensino de História nes-
.te segmento da educação básica, é outro exemplo bem concreto des-
:sas ameaças. A tentativa de redução do debate sobre a educação ao
numeramento e letramento, amplamente patrocinada pela OCDE,

4. Há um intenso debate global sobre os limites e as consequências das política identitárias na con-
juntura recente, ver, por exemplo, (MARK, 2017).

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sem um enfretarnento político, levará ao aprofundamento dessa ten-
dência. Esse cenário de fragmentação e disputa ficou evidente nas
reações de hlstoriadores e não hlstoriadores às diversas versões sobre
o futuro do ensino de história que foram projetadas no texto da Base
Nacional Curricular Comum, colocando Jlill lados opostos as deman-
das por reconhecimento e acolhimento das lutas identitárias e aspec-
tos da tradição disciplinar.
A politização crescente dessa bandeira do esvaziamento e ataque
às Humanidades se revela com todo o seu risco no movimento au-
tointitulado "Escola Sem Partido''. Seu objetivo é nada menos do que
dissolver qualquer vestígio de autonomia docente, mas certamente é
a Historiografia o alvo preferencial dessas iniciativas. Corno destacou
Marco Napolitano (2017), para a direita identitária as Humanidades
são um aparelho doutrinador de esquerda, e para a direita liberal, re-
presentariam um gasto inútil de desempenho duvidoso'.
Nas redes sociais o historiador ficou mais exposto. Assim como os
demais especialistas; precisa negociar sua autoridade em outros esc
paços que não aqueles academicamente controlados. No Facebook,
Twitter, Youtube, blogs, dentre outras medias, esse espaço de indi-
ferenciação discursiva se alarga. Nele, o historiador fala, ao mesmo
tempo, corno cidadão, especialista e panfletário (militante partidá-
rio), sem os protocolos e códigos internos que o discurso disciplinar
produziu para diferenciar e autorizar o seu "discurso''. O cidadão co-
mum, por sua vez, mais do que nunca tem acesso aos meios de di-
fusão da comunicação. O comentário e outras seções de opinião ad-
quirem urna força "pessoal" e ·massiva, sem mencionar a captura e
distorção dessas novas formas de comportamento por grupos políti- ·
cos e empresariais, seja pela renovada fórmula da propaganda, seja·
pelo uso de robôs capazes de induzir comportamentos. Outro ele-'

5. Ver também (RODRIGUES, 2016), sobre a ideologia judicialista do movimento. O autor propõe a"
retomada a aprofundamento das dimensões de colegialidade como horizonte de enfretamento pro~.·
gressista das exigências por maior participação social no ambiente escolar e acadêmico.

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menta desafiador nessa conjuntura é a política de segredo que orga-
niza a economia dos algoritmos e códigos das grandes empresas que
controlam e moldam essa nova realidade social.
Do ponto de vista da produção científica, apesar da reversão re-
cente provocada pelo corte de verba_s e pelo retrocesso de expecta-
tivas abertas pelas leis que ampliavam o orçamento para a ciência e
educação, as avaliações em geral são positivas. O modelo de pesqui-
sa na Historiografia e nas Humanidades adaptou-se à lógica avaliati-
va construída ao longo das últimas décadas. A quantidade e qualida-
de da produção científica, o número de programas de pós-graduação,
periódicos e pesquisadores têm crescido solida e desconcentrada-
mente. Mas mesmo aqui não têm faltado sinais de certo esgotamen-
to do modelo, seja pelo risco de produtivismo, seja pelo insulamento
dessa produção, cujos impactos sociais são atualmente rediscutidos
(ARAUJO, 2016). Nada parece ter revelado mais a complexidade des-
se problema do que as batalhas de memória em tomo do significado
da ditadura civil-militar. Essa percepção tem levado a esforços varia-
dos na busca de novas formas de mediação entre a historiografia aca-
dêmica e seus públicos, seja no ensino de história ou nos debates da
história pública.
Nesta conjuntura de retrocessos dos valores e estruturas da demo-
cracia, a Juta pela regulamentação da profissão de historiador abriu
um saudável debate acerca da necessidade de repensarmos os cur-
·rículos e os modelos de cursos de graduação em história que temos
·hoje no Brasil. O cenário atual não parece apontar movimentos de su-
perficie, mas um novo status quo. Portanto, é urgente entender como
podemos não apenas nos adaptar a ele, mas trabalhar para extrair
:dessa nova situação suas potencialidades emancipadoras. Como po-
,deremos defender e ampliar nossa democracia? Como refundar o
pacto entre historiografia e democratização que tem marcado a his-
tória moderna, mesmo sem ignorarmos as ambivalências e retroces-
sos nessa relação?
Na seção seguinte faremos wn breve balanço de algumas respostas
a essas questões que pesquisadores brasileiros do campo da Teoria e
História da Historiografia têm oferecido. Nossa intenção não será es-
gotar essa bibliografia, mas apenas indicar alguns de seus caminhos.

FRONTEIRAS OA HISTORIOGRAFIA: PUBLICIDADE EDIVERSIDADE


Nas últimas duas décadas o campo da Teoria & História da Historio-
grafia se consolidou como um espaço dinâmico e articulado de de-
bates no Brasil. Vimos surgir eventos regulares e especializados, com
destaque para o Seminário Brasileiro de História da Historiografia,
que no ano de 2018 estará em sua décima edição; revistas dedicadas a
esses recortes, como a História da Historiografia, Revista de Teoria da
História, Revista Expedições, dentre outras. Diversos núcleos de pes-
quisa e linhas de investigação estão presentes em Programas de Pós-
-graduação espalhados pelo Brasil, com particular ênfase em institui-
ções como PUC-Rio, UFRGS, UFOP, UFES, UFG, UnB, UFMG, UERJ,
UFRRJ, UN!Rio, UFBA, UFCG, dentre outras. Fóruns de debates regu-
lares estão organizados e movimentam uma cena dinâmica, sem fa-
lar em iniciativas como o "Observatório da História'; recentemente
lançado por pesquisadores da Unifesp, que busca ser um espaço in-
terinstitucional de pesquisa da cultura histórica. É, portanto, razoável
perguntar-se como o campo tem respondido à conjuntura que des-
crevemos acima.
Em artigo publicado em 2009, Raquel Glezer & Sarah Albiere ana-
lisaram os impactos sobre a historiografia do que chamavam de obras
de fronteira, ou "quase-histórias"(GLEZER; ALBIERI, 2009). Refe-
riam-se à grande expansão no mercado editorial brasileiro de bio-.
grafias e outras obras voltadas para a demanda crescente de material'!
com conteúdo histórico. Enfatizavam que"[ ... ] nos anos 1990, ao se-~
rem lançados os primeiros volumes das edições que denominamos)
de "fronteiriças'; a comunidade se manifestou de forma contrária a:·:
tais produtos, com certo estardalhaço" ( GLEZER; ALBIERI, 2009: 19).C

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o artigo concentra-se em um esforço de estabilizar as fronteiras entre
0 histórico (disciplinar) e o quase-histórico, distinção que, as autoras
reconhecem, o público ignora. Já apontavam as transformações epis-
temológicas do final do século XX como uma das causas dessa cres-
cente indiferenciação:

[... ]a fragmentação das identidades individuais faz com que o passado as-
suma[ ... ] a característica de ser objeto de busca de algo mitificado como
homogêneo, como contraponto do momento vivido, ou como curiosida-
de pela diferença e exotismo, mas deva, por outro, estar inserido no mer-
cado de consumo e lazer cultural [... ]. (CHESNEAUX)

Tais processos teriam levado à"[ ... ] fragmentação do que parecia


ser um campo homogêneo - a história-ciência cedeu espaço a cam-
pos historiográficos diversos, cada qual com seus objetos, fontes, me-
todologia, conceituai analítico, resultados e forma de apresentação''.
(GLEZER; ALBIERI, 2009: 24). As autoras concluíam afirmando a ne-
cessidade de qualquer campo científico diferenciar-se das práticas de
divulgação e mesmo da falsa ciência, embora admitissem que essa
distinção é mais possível no enfrentamento de casos concretos do que
a partir de uma definição teórica fechada. Sua resposta apontava ain-
da o papel heurístico positivo que esses discursos de fronteira pode-
riam ter ao inspirar o campo científico por seu uso mais abundante da
imaginação e por operar por fora dos constrangimentos da ciência.
Uma de suas afirmações parece ter adquirido contornos mais dramá-
ticos desde então:

Contudo, há um razoável consenso quanto a todas as especialidades aca-


dêmicas serem produtoras de conhecimento confiável - incluindo as hu-
manidades. E nesse sentido, as falsas representações dos pseudo-histo-
riadores seriam de natureza muito semelhante àquelas dos alqtúmistas
ou criacionistas (Idem: 26).

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Hoje esse consenso parece mais ameaçado quando os governos
desafiam o discurso da ciência e da autoridade em geral, colocando
em risco o pacto frágil entre Estado democrático e produção de co-
nhecimento.
Em artigo publicado na Revista "História da Historiografia'; Juran-
dir Malerba deslocava o problema das relações entre a história acadê-
mica e a história leiga para o campo da "Public History'; no contexto
do debate acerca do projeto de regulamentação da profissão de his-
toriador. Após um relevante balanço do debate internacional, apon-
ta que "Desde o final dos anos 1990, nos Estados Unidos, a Public His-
tory encontra--se institucionalizada dentro das universidades" (2013:
29). Segue demonstrando como por diferentes formas esse novo cam-
po de atuação do historiador vai se desenvolvendo em países como
Austrália e Grã-Bretanha. Fica evidente o aspecto central da produção
de história como entretenimento, controlado por grandes grupos em-
presariais de mídia, nessa configuração a atuação do historiador não
é distinta daquela de outros profissionais da indústria. Como o au-
tor resume de modo lapidar: "Hoje o passado significa "negócios" e,
não menos importante, "poder"! (Idem: 32). Passando pela análise de
franquias como Eduardo Bueno, Laurentino Gomes e Leandro Nar-
loch, Malerba demonstra como esse segmento do mercado editorial
e do entretenimento tem no confronto caricato com a historiografia
acadêmica uma de suas marcas de definição, juntamente com a ma-
nipulação e amplificação de preconceitos e valores antidemocráticos,
além de ignorarem as conquistas cognitivas da historiografia desde o
século XIX. (Idem: 36). O artigo conclui com um amplo chamamento
aos historiadores acadêmicos entrarem na disputa e na crítica dessa
chamada "história pública" (Idem: 43). Embora já aqui apareçam al-
gumas referências acerca da conjuntura política, em especial o pro-
cesso de eliminação da disciplina nos currículos a partir de iniciati-
vas dos Estados e alguns municípios, não há ainda a conexão que hoje
parece bastante evidente entre essa "história pública" e o seu apare-

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lhamento direto por grupos políticos cuja agenda passa pelo enfra-
quecimento dos valores democráticos e a promoção da ignorância e
do preconceito.
Analisando questões semelhantes Marcelo Abreu e Marcelo Ran-
gel (UFOP), em artigo de 2015 publicado na revista "História e Cultu-
ra'; analisam as modalidades de resposta quando o ensino de história
é desafiado pelas tensões do mundo contemporâneo. Para os autores,
as condições de produção da memória no mundo atual, que parece
desafiado pela austeridade econômica e, ao mesmo tempo, marcado
por pressões homogeneizadoras que se organizam em torno de fenô-
menos corno o Presentisrno e o Presente Amplo, nos convidam a pen-
sar a aula como o "terreno em que memórias múltiplas podem ga-
nhar expressão'; e em que a

[... ] a autoridade do discurso histórico escolar·( ... ] é questionada a todo


momento na medida em que ecoam na sala de aula as incessantes pro-
duções de passados efetivadas no mundo da comunicação/informação
e outros âmbitos da "cultura histórica''. Para competir com essas fontes
o discurso histórico escolar seria preciso, segundo os autores, "( ... ] fazer
das aulas um exercício de sensibilidade histórica" ao lado dos "[ ... J inves-
timentos já consolidados da razão histórica" (ABREU; RANGEL, 201s: 21).

Aproximando-se tanto dos problemas levantados por Glezer & Al-


biere e Malerba, deslocados para o espaço do ensino de história, rei-
vindicam a necessidade de "[... ]sustentar a didática da história na os-
cilação entre entendimento e imaginação, entre sentido e presença''.
O caminho para uma resposta eficaz estaria no equilfürio entre as de-
mandas disciplinares por consciência histórica e cognição e a deman-
das contemporâneas por presença e performance participativa.
Em outra dimensão deste debate, a história-memória da ditadu-
ra civil-militar tomou-se um espaço privilegiado para a observação
dos fenômenos da democratização da história e seus desafios para o

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historiador. Mateus Pereira, em artigo publicado na revista Varia His-
tória em 2015, observa dois movimentos contraditórios nesse cam-
po. Por wn lado, o awnento da negação e do revisionismo em relação
ao nosso último período autoritário, por outro, o desenvolvimento do
que chama de "inscrição frágil" da memória da ditadura, motivados
pelos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade.
Afirma, ao estudar as discussões nos fóruns de editores de verbetes
da Wikipedia que tratam de 64, que as "batalhas de Memória" acerca
do significado da Ditadura-Civil militar foram e estão sendo cotidia-
namente travadas e que muitos de seus elementos que pareciam la-
tentes emergiram nos últimos anos, produzindo novos lances em di-
ferentes constelações. Pereira procura responder à pergunta de como
a memória autoritária, fundada em gestos negacionistas e revisionis-
tas, consegue sobreviver aos esforços historiográficos de crítica e es-
tabelecimento factual. Conclui, que "ao contrário do que parece de-
fender Ricoeur em 'A memória, a história e o esquecimento' (2007),
conhecer a factualidade do que ocorreu anteriormente por meio da
lembrança talvez não tenha nenhum resultado terapêutico, pelo me-
nos ligado à cura, à reconciliação ou à pacificação" (PEREIRA, 2015:
880 ). Sendo assim, o papel da historiografia não se encerraria no es-
tabelecimento de uma verdade factual, mas passaria pela compreen-
são dos modos de funcionamento dessas complexas comunidades de
"memória em rede" (PEREIRA, 2015: 874)_ A crítica histórico-factual
por si só não seria capaz de refutar o discurso revisionista-negacionis-
ta, colocando-se para o historiador os desafios de compreender, me-
diar e (des )qualificar os movimentos táticos e estratégicos dessas co-
munidade de memória em conflito, além do imperativo ético de se
colocar ao lado da luta por reparação e justiça.
Em artigo ainda inédito intitulado "O professor universitário de
história é um professor? Reflexões sobre a docência de Teoria e Me-
todologia da História e Historiografia no Ensino Superior'; Mara Ro-
drigues e Benito Schrnidt (UFRGS) partem do diagnóstico semelhante

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aos que já temos tratado para se perguntar o quanto a área de Teoria e
História da Historiografia tem avançado em pensar as transformações
recentes em termos didáticos. Destacam a importância de ações polí-
tico-acadêmicas que visaram trazer a licenciatura e a função social do
historiador como professor da educação básica para o centro do de-
bate. Citam diretamente a criação do Pibid pelo CNPq e os Mestrados
profissionais voltados para o ensino em âmbito da Capes, em particu-
lar o Professor de História. Apesar disso, constatam"[ ... ] a carência de
discussões sobre a atuação do/a docente desta área de conhecimento
no Ensino Superior" (SCHMIDT and RODRIGUES, 2017).
Os autores nos convidam a diferenciar os objetivos do ensino de
História na universidade e no ensino básico. No primeiro seria formar
pesquisadores-historiadores, no segundo contribuir para a cidadania
plena, salientando a elasticidade desse objetivo, a depender do tem-
po e dos grupos sociais em disputa, a cidadania pode significar coisas
muito distintas e, por vezes, contraditórias. Destacam a democratiza-
ção do acesso e a maior diversidade de nossos cursos de história e se
perguntam como podem os nossos planos de curso e currículos per-
manecerem os mesmos? E ainda:

Como podemos manter nossa lista de leituras e estratégias de ensino sem


modificações, se quando as elaboramos, as pensamos, mesmo que in-
conscientemente, para um grupo de características genéricas (seriam lei-
tores e ouvintes universais, conformados a partir de um modelo branco,
masculino, de classe média, com um repertório de leituras e viagens rela-
tivamente comum?) e homogêneas? (Idem, p.10).

A partir de um diálogo com a hermenêutica de Ricoeur a Gadamer,


os autores destacam a necessidade de relativizar a concepção român-
tica de autoria que celebra a individualidade solar e o momento de
produção como uma espécie de isolamento na intimidade, para enfa-
tizar a leitura como evento constitutivo dos sentidos dos textos:

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Sob esta ótica, a abordagem do conhecimento histórico em sala de aula
não se restringiria à invocação de um passado histórico, mas se amplia-
ria às possibilidades abertas por um passado prático, "utilizável" por dife-
rentes grupos, instituições, pessoas particulares e agências, conforme sua
constituição identitária, subsidiando suas tomadas de decisões na vida
cotidiana (WHITE, 2014: XIII) (Idem: 11).

Insistem que as diferenças entre a história pesquisada e a história


escolar poderiam ser melhor definidas como entre uma história pes-
quisada e uma história ensinada, salientando o fato evidente de que
nossa prática acadêmica não se reduz à pesquisa, embora as pressões
do modelo de pós-graduação tendam a fazê-lo, mas envolve igual-
mente o ensino.
Rodrigo Turim (UNIRIO), em artigo disponibilizado para debate
(2017) na plataforma academia.edu, intitulado "Entre o passado práti-
co e o passado histórico: figurações do historiador no Brasil contem-
porâneo': aborda as consequências das transformações contemporâ-
neas do tempo para a história disciplina em seu formato universitário.
Analisa um conjunto de textos publicados no site da Anpuh nacional
que versa sobre os desafios atuais da historiografia, em particular o
projeto de profissionalização e a Base Nacional Curricular Comum.
Também aqui parte-se do mesmo diagnóstico que temos destacado:

[... ] o historiador vê sua autoridade sendo intensamente disputada na are-


na pública, esmaecendo aquela forte distinção entre profissionais e ama-
dores estabelecida desde o século XIX. O que resta dessa distinção? No
que, hoje, pode se sustentar a profissão do historiador e seu papel na so-
ciedade diante dessas novas experiências sociais e políticas? {TURIN,
2017:4).

Em sua análise percebe a continuidade de elementos justificativos


e virtudes epistêrnicas construídas pela disciplina desde o século XIX.

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Valores como a objetividade do conhecimento histórico e seus com-
promissos com a nação precisam mediar sua relevância no contexto
de pluralização de narrativas identitárias, em suas palavras, a histo-
riografia estaria então entre este passado disciplinar " [... ] e um pas-
sado prático, constituído pelas pressões de wn cenário marcado pela
difusão e ampliação dos meios de representação do passado e pela
globalização das memórias sociais e nacionais" (Idem: 10 ).
Em outro artigo disponível para debate no site "Academia.edu'; e
agora publicado na Revista Maracanã, Francisco Sousa, Géssica Gui-
marães e Thiago Nicodemo, três professores do departamento de His-
tória da UERJ, refletem sobre os desafios da historiografia como res-
posta à terrível crise que atravessa aquela instituição. Perguntam-se,
muito diretamente, "como refletir sobre a história diante da experiên-
cia de desmantelamento da universidade pública?[ ... ]" (SOUSA et al,
2017: 01). Propõem pensar sobre a disciplina e as formas de engaja-
mento com o tempo presente, questão que retorna com força reno-
vada à ordem do dia desde o momento em que ficou evidente a arti-
culação antidemocrática de forças políticas que viam nas sequências
dos governos petistas e de suas políticas de inclusão a maior ameaça a
seus projetos de hegemonia econômica e social. O objetivo do artigo
é pensar a "reativação dos vínculos entre universidade e sociedade''.
Analisando o comprometimento de historiadores do começo do
século XX, Crocce, Bloch, Sérgio Buarque, com os vínculos entre pre-
sente e escrita da história, salientam a persistência do conceito mo-
derno da história como um singular-coletivo como um horizon-
te naturalizado. Afirmam que a manutenção dessa conjunção entre
disciplina, ciência e realidade como singular-coletivo resulta em que
"[ ... ] a história como disciplina tem participado do amplo movimen-
to de produzir para públicos cada vez mais concentrados" (Idem: 07).
No enfrentamento dessa conjunção, afirmam que a historiografia pre-
cisa enfrentar os efeitos limitadores de sua adesão a um conceito mo-
derno de autor que limita o processo da produção de conhecimento a

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uma concepção de linguagem difusionista. Retornam a Bakhtin para
pensar a linguagem como circulação, reivindicando uma nova ética
tanto na produção do conhecimento, quanto na sua configuração es-
colar, no acontecimento da aula. Assim, colocam a seguinte pergun-
ta: "Não é evidente hoje, por exemplo, se produzimos como arquipé-
lagos ou se seremos capazes de produzir conjuntamente" (Idem: oB)'.
Em conferência no g SNHH, cujo tema foi "O historiador brasi-
leiro e seus públicos'; Jurandir Malerba expandiu suas reflexões so-
bre história pública de 2014 para incorporar de modo decisivo aqui-
lo que estava ausente naquele texto: os impactos da revolução digital
e a mudança do enfoque das "audiências" para "'o público gerador de
história" (MALERBA, 2017: 141). O texto avança no debate ao propor
não apenas o reforço das fronteiras entre história disciplinar e leiga,
mas a compreensão de"[ ... ] como esse conhecimento vem sendo tes-
tado e negociado" (Idem: 144). O canúnho sugerido por Malerba pas-
saria por uma reafirmação da autoridade e responsabilidade do histo-
riador pela cultura histórica democratizada (idem, p. 147).

OHISTORIADOR COMO CURADOR


Parece-me que a ênfase hoje dada no debate a uma explosão da de-
manda por história e de novas formas de representação tende a exa-
gerar o seu aspecto recente, pois desde o XIX, pelo menos, que a his-
tória disciplinar teve de disputar e conviver com inúmeras outras
fontes de história. Nesse sentido, uma tarefa atual da História da His-
toriografia tem sido repensar essa relação que foi silenciada como
parte da estratégia discursiva da disciplina.
No século XIX, a escolarização do ensino de história universal e
nacional foi um passo ousado e importante naquela conjuntura em

6. •Nossa imaginação intelectual tendeu a ser configurada numa wliversidade de caráter excluden·
te (no sentido de um privilégio para poucos indivíduos), o que marca não apenas a questão do acesso,
mas também os procedimentos de pesquisa, o repertório de temas a serem investigados, de protocolos
de inclusão e exclusão social e de formas de comunicação com o público" (Idem, p. 16).

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que democratização da história, a ampliação de seu valor social, po-
lítico e cultural fez emergir novos sujeitos e cenários de disputa. Os
regimes de autonomia dos discursos históricos disciplinar e escolar
constituíram-se em competição aberta com o discurso histórico lite-
rário, consagrado no romance, com o regime compilatório e popular
que se espalhava pela imprensa periódica em expansão e pelo negó-
cio do livro. Portanto, não podemos exagerar o ineditismo da situação
contemporânea, com o risco de opor nosso estado atual a um passado
nostálgico cuja existência não resistiria a urna análise mais rigorosa. O
aspecto positivo dessa constatação é que podemos olhar para o pas-
sado da disciplina em busca de algumas respostas. Inúmeras pesqui-
sas em andamentos têm revelado urna rica "historiografia popular"
no século XIX que disputava e negociava fronteiras com a disciplina.
Nomes corno Justiniano José da Rocha, Francisco Solano Constân-
cio, Abreu e Lima, João Francisco Lisboa, Joaquim Felício dos Santos,
Mello Moraes, entre outros, têm se destacado nessas novas pesqui-
sas. Estes autores produziram no século XIX uma historiografia vol-
tada para o livro impresso ou mesmo para as folhas periódicas com o
duplo objetivo de intervir na vida prático-política e atender a um de-
sejo crescente por história.
Do mesmo modo, não podemos absolutizar a oposição entre his-
toriografia disciplinar e outras formas de discurso no esquema biná-
rio prático versus científico-teórico, como tem sido difundido a par-
tir da recepção das reflexões mais recentes de Hayden White acerca
dos "passados práticos''. Se deixarmos o campo das definições típi-
co-ideias para o da história da historiografia veremos facilmente
que nem o mais cientificista projeto historiográfico esteve despro-
vido de dimensões e objetivos práticos, éticos e políticos. A histó-
ria no século XIX só pôde tornar-se urna ciência no momento em
que conseguiu convencer a sociedade e o Estado das vantagens prá-
ticas evidentes do conhecimento que poderia produzir, em particu-
lar em sua pretensão de orientar na conjuntura, amplificar novas

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identidades políticas e mediar conflitos nas relações internacionais.
Esse processo de delimitação de fronteiras entre o prático e o cien-
tífico não foi linear nem carente de ambivalências, mas construído
por meio de disputas e polêmicas que podem e estão sendo recons-
truídas.(MALERVAL, 2015; VARELLA, 2011; SANTOS, 2013; FERREI-
RA, 2017; ARAUJO, 2015).
O cenário atual se destaca não tanto pela centralidade da noção
do público como audiência, mas pela reivindicação de uma cidada-
nia que quer ser pensada como polo ativo na produção de uma histo-
riografia socialmente distribuída, ou seja, da democratização das con-
dições de escrita e apresentação de histórias, aqui entendida como
intervenções sobre a historicidade que extrapolam os regimes discur-
sivos estabelecidos ao longo do processo de modernização. Esse fenô-
meno não pode ser visto apenas como uma ameaça à historiografia
profissional, mas como uma reação compensatória que não tem sido
suficientemente respondida no interior do campo.
Em artigo recente, procurei caracterizar o que chamei de "regime
de autonomia avaliativo'; fruto do modelo de pós-graduação implan-
tado e monitorado pela.Capes desde meados dos anos 1970. Sem ig-
norar os grandes avanços que este regime discursivo tem permitido,
dois aspectos precisam ser apontados: a exterioridade dos modelos
científicos e de avaliação construídos a partir de uma elite administra-
tiva fortalecida nas agências, e (2) a baixa comunicação e legitimida-
de social do conhecimento academicamente produzido neste contex-
to. A legitimação pelo desempenho, para retomar a reflexão clássica
de Lyotard, surge como efeito e, ao mesmo tempo, aprofunda a crise
de legitimação da ciência. Portanto, a cena atual não poderá ser res-
pondida apenas pelo reforço da lógica da produção de conhecimen-
to científico-especializado, embora essa mesma lógica precise ser, no
caso das Humanidades, defendida frente das forças destrutivas que
se levantam contra a disciplina. A legitimação pelo desempenho, ce-
lebrado no modelo de avaliação das agências, em especial da Capes,

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é não apenas uma força domesticadora das Humanidades, mas tem
igualmente aprofundado sua crise de legitimação.
Uma das direções da resposta passa necessariamente pelo apro-
fundamento crítico do modelo disciplinar, seja pelo enfrentamen-
to das armadilhas da política de desempenho e do modelo avaliativo,
que ampliam a pesquisa reduzindo seu auditório e impacto. A bus-
ca de novas ferramentas críticas passa por conceitos mais complexos
que atualizem a aporia do discurso histórico, para me utilizar da for-
mulação de Luiz Costa Lima. Para este autor, uma das condições de-
finidoras da escrita da história está na reivindicação de alguma au-
toridade na busca da verdade do que aconteceu. Naturalmente, as
formas pelas quais as sociedades administram seus regimes de ver-
dade são diversas e precisam ser continuamente recolocadas, mais do
que singelamente abandonadas. Como a intrigante epígrafe do gran-
de romance de João Ubaldo, "O problema da verdade é o seguinte:
não existem fatos, só existem histórias'; assim, o problema da verda-
de não começa ou termina pelos fatos, mas pelas condições de ver-
dade das histórias que tornam os fatos eventos significativos'. Ao lado
dessa tarefa, é urgente a busca de novas formas de organizar e repre-
sentar a avalanche de informações da era digital e a complexidade de
nosso mundo integrado. A promessa da chamada web 3.0 de transfor-
mar, através das redes semânticas, toda informação em dado, é, para
as Humanidades, ao mesmo tempo, uma ameaça e um desafio. Em
todas essas frentes, a disciplina precisa ser defendida e renovada.
Essa nova onda democratizante e esse desejo renovado por his-
tórias precisa ser respondido em diversas frentes que articulem um
conceito mais amplo de "direito à história''. Quando digo direito à his-
tória me refiro ao acesso às condições plenas de desenvolvimento e
experiência de nossa condição humana, e não uma espécie de difu-

1. Agradeço a Luana Melo ter chamado minha atenção para essa frase que abre o romance Viva o
po110 brasileiro.

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são de versões simplificadas de caráter pragmático a serviço de proje-
tos de estados, nações, especialistas ou mercados:

A afirmação da disciplina passou sempre pela consciência da dificuldade


em negociar constantemente suas fronteiras frente às múltiplas pressões,
afirmar que a historiografia foi apenas uma "ferramenta" dessas forças é
ignorar o que ela tem de mais fundamental, a capacidade de alargar nos-
sa experiência e conhecimento da história, de voltar-se contra si mesma,
mesmo que buscando fora de suas fronteiras os recursos para fazê-lo, pois
a ideia de autonomia disciplinar não é alheia à porosidade de suas fron-
teiras, muito antes a exige {ARAUJO, 2016: 89).

Portanto, há importantes diferenças na natureza do trabalho do


historiador quando definimos sua tarefa como a de garantir o "direi-
to à história" e, por outro lado, afirmar que "Saber história é um direi-
to'; como muito oportunamente foi definido pela ANPUH como urna
bandeira de luta para o campo. A disciplina produz um conhecimen-
to controlado e é natural que espere que a sociedade possa ter livre e
amplo acesso a esse "produto''. Por outro lado, isso não deve nos im-
pedir de reconhecer que o saber histórico sempre teve outras fontes,
em última instância pelo simples fato de, em existindo, o ser humano
constantemente produzir interpretações sobre sua situação. Produzir
historiografias depende da constante interprEltação da situação histó-
rica. É impossível separar completamente esses dois polos. O mundo
moderno tem constantemente democratizado o acesso às condições
para a escrita e representação da história. A representação especia-
lizada do historiador que desde o século XIX procurou garantir seu
valor privilegiado enfrenta hoje novos e renovados desafios, mas não
devemos ver esses desafios nem como um convite irrecusável para o
desfazimento das diferenças entre o conhecimento histórico discipli-
nar e aquele produzido fora da disciplina em diferentes âmbitos, nem
como um fenômeno marginal que possa ser simplesmente ignorado.

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A democratização das condições de produção de representações his-
tóricas é um fenômeno complexo e ambivalente, inseparável do pro-
cesso de modernização em geral, que tanto pode apontar para aba-
nalização e congelamento da experiência da história, quanto para o
seu alargamento. O historiador sempre teve e pode continuar a ter um
papel central nessa luta pelo direito à história.
A luta pelo direito à história não passa apenas por gestos indivi-
duais e voluntários, mas pela disputa institucional e política, como foi
aquela que permitiu a criação de arquivos, universidades e profissões
que garantissem as condições mínimas para a produção do conheci-
mento historiográfico moderno. Hoje essa luta passa pela regulação
da mídia, da propaganda, da circulação de notícias falsas, por uma
educação emancipadora que permita ao cidadão ter acesso às condi-
ções de reflexividade sobre sua situação existencial. A simples expan-
são do discurso sobre a história e a memória não pode ser confundida
com sua "democratização'; se algumas dessas fontes estão mais com-
prometidas com a afirmação de poderes, privilégios, preconceitos, ou
a edificação de lucrativos negócios. Não queremos apenas colaborar
com os processos de naturalização da temporalidade do mercado e
do capitalismo contemporâneo, ser mais uma fonte de distração e en-
tretenimento, não apenas ser atual, mas fazer a história colidir com o
"presente atualista"(ARAUJO; PEREIRA, 2016).
Assim como hoje o ensino de história não pode ser resumido à
ideia de transposição de um saber disciplinar para o espaço escolar,
também a relação com a demanda e produção social de histórias não
será atendida apenas pelas práticas de divulgação científica, embo-
ra elas sejam fundamentais, mas deve partir do reconhecimento dos
diversos sujeitos e suas produções locais e epistemologias, surgin-
do daí mais a imagem de uma circulação do que a de uma difusão
para auditórios cada vez mais amplos. Nesse circuito, talvez o histo-
riador possa desenvolver uma nova e distinta função social, apare-
cendo como "curador de histórias''. No capítulo "Memória coletiva

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como afirmação" da coletânea "Heritage and Social Media'; de 2012,
Neil Silberman e Margaret Purser assim resumem o problema a par-
tir da perspectiva das políticas de patrimônio, trata-se de: " [... ] capa-
citar comunidades contemporâneas a digitalmente (re)produzir am-
bientes históricos, narrativas coletivas e visualizações geográficas que
aglutinem essas perspectivas individuais em formas e processos de
lembrança" (GIACCARDI, 2012: 14)'. Os autores salientam que nes-
ses atos de curadoria o elemento central é o processo ativado, mais
do que simplesmente o produto final (Idem: 26). Este mesmo volume
traz o interessante estudo de Sophie B. Liu intitulado "Curadoria so-
cialmente distribuída do desastre de Bhopal'; em que estuda as for-
mas pelas quais a memória da catástrofe de 1984 foi reativada social-
mente através das medias digitais. A autora parte da premissa de que
"As emergentes tecnologias de informação e comunicação como as
medias sociais estão transformando as 'memórias digitais' em artefa-
tos que podem ser copiados, remixados, (re)presentados e, finalmen-
te, curados on /ine de modo distribuído" (GIACCARDI, 2012: 31)•.
Esses movimentos não estão apenas usando o passado, mas pro-
duzindo saberes históricos. Quarido comunidades como as de Bento
Rodrigues, cujo espaço de existência foi dizimado pela catástrofe da
Vale-Samarco-BHP, contam e produzem suas histórias no contexto da
luta por reparação, o trabalho do historiador não pode pretender ape-
nar substituir esses relatos por historiografias profissionais, mas tam-
bém, e fundamentalmente, contribuir para amplificá-los em suas di-
mensões cognitivas e prático-políticas. Um esforço para o qual o livro
"Vozes de Tchernóbil'; de Svetlaria Aleksiévitch, pode nos servir como
inspiração. O seu trabalho de promover, recolher, selecionar e editar

"enable contemporary communiries to digitally (re)produce historical environments, collective


narratives and geographical visualizacions that cluster individual perspectives into shared forms and
processes of remembering:
"Emerging ICfs lik.e social media are transforming 'digital memories' into artiíacts that can beco·
pied, remixed, (re)presented and ultimatelycurated online in a distributed fashion~

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relatos orais de pessoas comuns sobre a catástrofe está mais próximo
da tarefa de um curador do que da de um autor de histórias:

Quase vinte anos. Encontrei e conversei com ex-trabalhadores da cen-


tral, cientistas, médicos, soldados, evacuados, residentes ilegais em zonas
proibidas. [... J Essas pessoas conversavam, buscavam respostas. Nós pen-
sávamos juntos.(... ) O que a experiência de Tchemóbil nos deu? Terá nos
conduzido a esse mundo secreto e silencioso dos 'outros' (ALEKSIÉVITH,
i997: 47).

O mesmo poderia ser dito acerca das narrativas produzidas e di-


fundidas pelos movimentos sociais, os coletivos negros e de gênero,
o Movimento de Atingido por Barragens, dos Sem Terra e Sem Teto,
pelo Passe Livre e as ocupações, mas também por empresas e corpo-
rações a partir de outra lógica e posição, ou ainda pelas pessoas co-
muns, que graças às ferramentas "sociais': colaborativas e de com-
partilhamento da Web 2.0, cada vez mais têm acesso aos meios de
produção e difusão e sentem-se motivadas a contar as suas histórias.
O historiador pode e deve tratar essa pluralidade de fenômenos como
fontes para uma historiografia disciplinar, mas pode também atuar
tornando essa nova dimensão um problema em si mesmo. O foco
aqui seria menos a autoria e a produção, como na pesquisa, mas o
acolhimento crítico e a amplificação de oportunidades e ferramentas.
Não me parece, portanto, acidental que diversos trabalhos elenca-
dos nesse balanço reivindiquem a necessidade urgente de se pensar
novas formas de autoria e autoridade nas humanidades, apontando
para formas mais colaborativas e compartilhadas de produção de co-
nhecimento. Não deixa de ser promissor o fato de que muitos dos ar-
tigos citados são em co-autoria, o que pode ser um bom sinal da su-
peração da lógica romântica do autor com sua definição metafísica
de subjetividade, que se acopla à lógica liberal do trabalho intelectual
como equivalente à propriedade individual e privada.

- 211 -
Pensar uma nova estratégia de comunicação, circulação e demo-
cratização do direito à história não passa apenas ou sobretudo pela
reivindicação de que o historiador deveria escrever melhor, mais lite-
rariamente, seja lá o que isso signifique. Muitas vezes é apenas a con-
solidação de preconceitos linguísticos vindos de uma época em que o
auditório privilegiado do historiador era formado pelas elites letradas.
Trata-se, na verdade, de compreender os regimes de autonomia que
organizam a circulação dos discursos em nosso mundo e atuar em to-
das as suas dimensões. Ao lado do historiador-pesquisador e do his-
toriador-docente estamos vendo emergir o historiador-curador, para
isso precisamos reestruturar nossos cursos, em particular nossos ba-
charelados, hoje limitados pela tarefa de reproduzir quadros para a
universidade e a pesquisa. Precisamos transformar nossas gradua-
ções, criar instrumentos institucionais como laboratórios de audio-
visual, ampliar os produtos nos quais se espera que um historiador
possa se comunicar, redefinir os currículos de modo que possam atin-
gir um novo universo de competências, aproximar o campo de áreas
como a comunicação, a antropologia e as ciências da informação. Tal-
vez, explorando a dimensão curatorial do trabalho do historiador, po-
deremos enfrentar mais decididamente a extensão universitária, que
tem sido apontada por autores como Rodrigo Perez, da UFBA, como
uma das respostas na busca de uma epistemologia para tempos de
golpe e desmonte da democracia.
Ao destacar essas três vocações do trabalho do historiador nossa
intenção não é produzir qualquer tipo de isolamento. No limite, as
habilidades em jogo nas três áreas são muito parecidas, deslocando-
-se apenas as ênfases. Da mesma forma, espera-se que certas práticas
desenvolvidas em um âmbito possam contribuir para os demais. Tan-
to a sala de aula do ensino básico quanto a pesquisa podem se benefi-
ciar por conceitos como "produção distribuída" (crowdsourcing) e es-
paços comunitários de cooperação e aprendizado, duas práticas que
o historiador norte-americano Charles Upchurch nos convida a mo-

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bilizar nas salas de aula do ensino superior, cada vez mais complexifi-
cadas pelas demandas identitárias (UPCHURCH, 2017).
A curadoria de histórias como um espaço de promoção, seleção,
edição e reapresentação de histórias socialmente distribuídas e com-
partilhadas deve, entretanto, responder ao desafio de decidir que his-
tórias curar. A premissa da democratização e do acolhimento da di-
versidade não poderia nos levar ao risco de silenciar frente aos relatos
fundados no preconceito, no ódio e na manipulação? Mesmo aqui
devemos nos perguntar quais as aporias do discurso histórico disci-
plinar comprometido com o direito à história? Quais são seus valo-
res incontornáveis? Aqui listaremos apenas três que consideramos in-
contornáveis. A pergunta pela verdade do acontecimento, a defesa da
democracia e o respeito à diversidade. Celebrar e amplificar a diver-
sidade que celebre a diversidade, que saiba se alimentar do outro ao
mesmo tempo em que o edifica, e condenar a diversidade autorreferi-
da, que para se afirmar precise reduzir o outro a si mesmo. Certamen-
te que não poderemos contar com uma prescrição teórica que nos ga-
ranta uma fórmula para guiar nossas decisões concretas, mas como
historiadores sabemos que a sabedoria prática, a que vem da expe-
riência, é capaz de nos guiar nas decisões, ao mesmo tempo em que
nos mantém aberto à contínua reflexão. A democracia e a verdade são
valores aporéticos e condição para a universalização do direito à his-
tória que devem orientar o historiador em sua função social de cura-
dor de histórias. Isto nos permitiria desqualificar qualquer discurso
histórico que tenha como pressuposto a negação desses valores.
A curadoria de histórias em sua dimensão crítica certamente en-
volve o enfrentamento dos relatos de ódio e preconceito. A função de
"curador" aponta nessa direção, não apenas visando o silenciamen-
to dessas (anti)histórias, mas sim sua desestabilização. Muitas vezes
o deixar falar em um ambiente de diálogo paritário pode contribuir
para desestabilizar essas narrativas, isso para não dizer dos procedi-
mentos críticos, que precisam ser reforçados, mas que sozinhos não

- 213 -
resolvem. A curadoria em história deve igualmente contribuir para a
construção de políticas públicas que sejam eficazes na defesa do di-
reito à história, protegendo a sociedade de usos espúrios e da privati-
zação e mercantilização desses valores, certamente mais ameaçados
do que nunca quando a Web 3.0 promete tornar toda informação, no
limite todo o real; em um imenso banco de dados orgarúzado porre-
des semânticas cujas lógicas estruturadoras estarão a serviço dos in-
teresses que as promovem.
No debate acerca do movimento "Escola sem Partido" há uma ten-
dência de reforçarmos o papel quase doutrinal do Ensino de História.
Mesmo com as boas intenções de sempre, esse gesto é bastante arris-
cado por diversos motivos, a começar por alimentar a própria agen-
da supostamente anti-doutrinária dessas propostas. O ponto que gos-
taria de insistir é que o foco poderia deixar de ser apenas o "saber" ou
"conhecer" história, mas também a amplificação de nossa capacida-
de de contar e ouvir (ler, ver, tocar) histórias como gesto de alarga-
mento do humano, como condição de empatia e educação para a de-
mocracia.
Gostaria de concluir este artigo recordando as palavras de Temis-
tócles Cezar em recente artigo de balanço sobre os impactos do Giro
Linguístico na historiografia brasileira, considerado por ele uma "[... ]
brecha, um gap no sentido que lhe atribui Hannah Arendt, ou seja,
um "estranho entremeio no tempo histórico, onde se toma consciên-
cia de um intervalo no tempo inteiramente determinado por coisas
que não são mais e por coisas que não são ainda" (CÉZAR, 2015: 451).
Frente a esses momentos de crise, nos caberia"[ ... ] tentar nos reapro-
ximar do clima histórico marcado pela instabilidade, que, ao mes-
mo tempo, assusta e incita" (Idem, p. 455). Ou, em uma paráfrase de
Foucault, as ciências Humanas estarão em perigo enquanto forem
perigosas.
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