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Teoria Crítica em

Relações
Internacionais*
Marco Antonio de Meneses Silva**

Não podem restar dúvidas quanto ao revigoramento das discussões


teóricas em Relações Internacionais, sobretudo nas últimas déca-
1
das . A bem da justiça, não se afirma que a academia houvesse rele-
gado o campo teórico das Relações Internacionais a uma posição de
reduzida relevância, contudo, é razoável supor que as diversas tradi-
ções teóricas careciam de um debate real.

A eterna caracterização das relações internacionais como um diálo-


go meliano perpétuo, isto é, um conflito entre poder e moralidade,
entre força e justiça, não condiz à respeitável e diversificada produ-
2
ção teórica . As tradições realista e liberalista beneficiaram-se imen-
samente desse state of affairs, souberam tirar proveito para se fortale-
cerem na qualidade de perspectivas predominantes (a realista mais

* Artigo recebido em julho e aprovado para publicação em setembro de 2005.


** Mestre em Relações Internacionais pela University of Kent at Canterbury (Reino Unido), professor e
coordenador do curso de Relações Internacionais do Centro Universitário de Brasília (Uniceub).

CONTEXTO INTERNACIONAL Rio de Janeiro, vol. 27, no 2, julho/dezembro 2005, pp. 249-282.

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do que a liberalista), mesmo que disfarçando seu domínio, sugerindo


que houvesse um debate com a corrente rival. Quero dizer que, em-
bora seja aceito que majoritariamente os acadêmicos se identificas-
sem com um ou outro protagonista do chamado primeiro debate, tal
quadro não pode ser retratado às expensas das demais abordagens
que surgiram ao longo do século XX, ainda mais nas décadas finais.
Do contrário, trata-se de um desserviço ao estudo da evolução teórica
das Relações Internacionais.

Grosso modo, a chegada de novas correntes teóricas submete-se a


uma lógica. Trata-se de inovações que atingem outros campos de es-
tudo ditos das ciências sociais antes de alcançarem os domínios das
Relações Internacionais. Essa observação se baseia na histórica ten-
dência de os acadêmicos manterem a disciplina hermeticamente fe-
chada e rejeitarem questionamentos acerca dos postulados epistemo-
lógicos e ontológicos fundamentais das Relações Internacionais.
Identificamos nitidamente essa tendência no caso do pós-modernis-
mo e do pós-estruturalismo, assim como na teoria crítica, abordagem
ora em voga.

Não pretendo aqui me aprofundar na apresentação do advento de


correntes novas antes do início dos anos 1980. Esse momento sinali-
za o início de um processo de redescoberta das questões metateóri-
cas. Lembramos que, por metateoria, fazemos alusão aos aspectos
ontológicos e epistemológicos na produção de conhecimento. Esse
alerta se deu, em grande parte, pela chegada da teoria crítica às Rela-
ções Internacionais. Nisso, não há como menosprezar a influência de
Robert Cox.

Neste artigo, opto por iniciar examinando os pressupostos históricos


da teoria crítica, notadamente o pensamento político e social da cha-
mada Escola de Frankfurt, particularmente o trabalho de Max Hork-
heimer (1990). Desejo explicitar a estreita relação entre os frankfur-
tianos em sua busca pela emancipação, e a noção de limite sobre as

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Teoria Crítica em Relações Internacionais

possibilidades de realização dos ideais modernistas, e a conseqüente


distinção entre duas modalidades de teoria: a tradicional e a crítica.

Em seguida, apresento a teoria crítica em Relações Internacionais


per se examinando a contribuição de Robert Cox (1995b). Em um ar-
tigo que se tornou um marco para a teoria das Relações Internaciona-
is3, Cox em um só tempo inaugura uma nova época nesse estudo, so-
bretudo com a incorporação da reflexão sobre a influência do poder e
dos interesses na produção intelectual, além de apresentar sua pers-
pectiva teórica particular, fortemente inspirada no pensamento polí-
tico de Antonio Gramsci – o materialismo histórico. A questão da
transformação das realidades social e sobretudo política se apresenta
como uma preocupação central da teoria crítica coxiana, bem como
de seus seguidores.

A terceira seção deste trabalho se ocupa da apresentação da teoria


crítica internacional. Essa vertente teórica contemporânea é precipu-
amente associada à retomada da discussão sobre a busca da emanci-
pação. O nome central é o de Jürgen Habermas. Embora tenha acaba-
do de chegar aos temas e à agenda internacional, em que a figura cen-
tral tem sido a de Andrew Linklater, esse debate é cada vez mais in-
fluente na produção de muitos acadêmicos.

A Teoria Crítica da Escola


de Frankfurt

A teoria crítica nas ciências sociais tem uma extensa tradição intelec-
tual, representando, no princípio, uma variação do pensamento mar-
xista do início dos anos 1920, particularmente vinculada à Escola de
Frankfurt. O termo teoria crítica foi usado pela primeira vez em 1937
em um artigo de Max Horkheimer. Entre outros nomes ligados a essa
corrente estão os de Theodore Adorno, Herbert Marcuse e Walter
Benjamin. Em comum, entre outras coisas, todos eles possuíam uma
mesma origem comum no pensamento marxista.

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Seguramente, podemos afirmar que a preocupação central da teoria


crítica é a emancipação. Esses teóricos despertaram para o fato de
que as expectativas geradas em torno da expansão da experiência so-
cialista russa, sobretudo para o ocidente, não se concretizavam. Os
temores do mundo ocidental eram de que a revolução ocorrida em
outubro de 1917 se alastrasse para outros cantos, o que acabou não
ocorrendo. Pelo contrário, no ocidente não havia sinais de que os par-
tidos comunistas e socialistas estivessem próximos de chegar ao po-
der, pelas vias democráticas ou não.

Concentrando a atenção no trabalho de Max Horkheimer (1990), po-


de-se dizer que, afora ser talvez a figura mais influente da Escola de
Frankfurt, terá grande influência sobre as proposições epistemológi-
cas de Cox.

Para os propósitos deste trabalho, examinaremos uma das idéias


principais de sua obra: a dialética do esclarecimento. Horkheimer
chamava atenção para o papel da racionalidade restritiva no desen-
volvimento da civilização ocidental, no desencantamento do mundo.
Findada a era das explicações metafísicas, a racionalidade tomava
seu lugar como critério único e absoluto para a validação do conheci-
mento humano. Acreditava-se no caráter emancipatório desse novo
modo de conhecer. A racionalidade instrumental da ciência moderna
distanciou-se da busca pela emancipação, passando a prezar a subju-
gação da natureza pelo homem: conhecer para prever, prever para
controlar. Essa contradição precisava ser esclarecida. A busca pelas
regularidades do mundo real pouco serviu aos propósitos libertários
que a racionalidade moderna advogava. Pelo contrário, o domínio da
ciência serviu, por meio do desenvolvimento da técnica, para o domí-
nio do meio ambiente. Qual seria a implicação para o mundo social?

Horkheimer, apropriadamente, identificou um equívoco fundamen-


tal aqui. As chamadas ciências sociais não poderiam seguir os mes-
mos pressupostos epistemológicos das ciências naturais, as que sem-

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pre serviram de modelo para as demais, por uma razão muito sim-
ples: o mundo social distingue-se do mundo natural em diversos as-
pectos. Cientistas sociais não poderiam ser como seus colegas natu-
rais, no sentido de se considerarem desinteressados e independentes
da sua matéria de estudo porque fazem parte da sociedade que estu-
dam. Repetir os mesmos postulados epistemológicos das ciências
naturais impunha pesados custos sobre as ciências sociais.

A conclusão decorrente disso é a constatação da influência que inte-


resses impõem sobre a produção de conhecimento. Afinal, a aplica-
ção indiscriminada de metodologias das ciências naturais, com suas
posições epistemológicas subjacentes, tendia à reprodução da ordem
existente. Isso é problemático, porque, ao invés de avançar a emanci-
pação, no mundo moderno, constava-se a subjugação da natureza e a
dominação do homem pelo próprio homem. É nesse contexto que
Horkheimer propõe uma ruptura epistemológica.

É aí que surge a diferenciação entre a teoria tradicional e a teoria “crí-


tica”: a primeira enxerga o mundo como um conjunto de fatos que
aguardam ser descobertos pelo uso da ciência – positivismo. Hork-
heimer defendia que teóricos tradicionais estavam equivocados ao
propor que o “fato” a ser descoberto pudesse ser percebido indepen-
dentemente da estrutura social em que a percepção ocorria. Mas a si-
tuação era mais grave, já que a teoria tradicional estimulava o aumen-
to da manipulação de vidas humanas. Ela via o mundo social como
uma área para controle e dominação, como a natureza, e, portanto,
indiferente às possibilidades da emancipação humana.

Horkheimer propunha a adoção da teoria crítica. Esta não enxerga fa-


tos da mesma forma que a teoria tradicional. Para teóricos críticos,
fatos são produtos de estruturas sociais e históricas específicas. A
percepção de que teorias estão fixadas nessas estruturas permite que
os teóricos críticos reflitam sobre os interesses atendidos por uma te-
oria particular. O objetivo explícito da teoria crítica é promover a

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emancipação humana, o que significa que a teoria é abertamente nor-


mativa, assumindo uma função até no debate político. Nisso, diverge
radicalmente da teoria tradicional ou positivista, na qual a teoria deve
servir à neutralidade e se preocupar somente com a descoberta de fa-
tos preexistentes e de regularidades em um mundo independente e
externo.

Em uma contribuição significativa ao pensamento das ciências soci-


ais, Horkheimer defendia que haveria uma ligação entre conheci-
mento e poder. Para ele, dessa relação decorria o fato de que as mais
importantes forças para a transformação eram forças sociais, e não a
explicação de uma “lógica independente” a ser revelada. Enquanto o
4
conhecimento estivesse associado ao Estado , tenderia a reificar as
relações de poder existentes, sendo que qualquer alteração se subme-
teria aos interesses estatais. Desta forma, os cientistas comporiam
uma força social cujo dever principal não poderia deixar de ser a
transformação da realidade social de forma a expandir a emancipa-
ção humana.

A principal crítica que essa linha de raciocínio recebeu veio dos raci-
onalistas, e se fundamenta sobre a acusação de que o conhecimento
científico há que ser imparcial, neutro, não-normativo e puro. Para
eles, Horkheimer estava politizando, ideologizando a produção de
ciência. Defensores do racionalismo como Popper (1958) e Lakatos
(1978) argumentariam que a ciência se desenvolve seguindo critérios
racionais.

Percebemos, portanto, que divergências ontológicas se encontram na


base da discussão. Respostas distintas às indagações do tipo “o que e
como é a realidade social?”, “as realidades natural e social divergem
fundamentalmente, a ponto de significarem modos igualmente dis-
tintos de conhecê-las?” e “o conhecimento é puro, imparcial e neu-
tro?” trazem implicações essenciais à maneira como se percebe o co-
nhecimento. Tais dúvidas não se resolvem de uma forma intrínseca à

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racionalidade. Elas pressupõem um certo grau de subjetividade ex-


plicitado pelos postulados metateóricos do teórico/analista.

Desafios Epistemológicos
da Teoria Crítica em
Relações Internacionais

O pensamento frankfurtiano imprimiu um impacto profundo sobre a


produção científica nas ciências sociais já nas primeiras décadas do
século XX. Contudo, as discussões epistemológicas que vieram à
tona há muito se mantiveram além das fronteiras das Relações Inter-
5
nacionais. Desde sua gênese , as controvérsias que nutriam o desen-
volvimento desse campo de estudo eram assaz estreitas, se vistas a
partir das questões a serem levantadas pela teoria crítica. O primeiro
debate (realismo político versus idealismo) foi protagonizado por
correntes que talvez tivessem muito mais semelhanças do que dife-
renças no que se refere aos fundamentos epistemológicos. O chama-
do segundo debate (tradicionalistas versus comportamentalistas/ci-
entificistas), embora também conhecido como um debate metodoló-
gico, só fez sentido por apartar metodologias que também traziam si-
militudes epistemológicas. Por fim, o terceiro debate é ele próprio
motivo de debate: para uns, divide neo-realistas e neoliberais; para
outros, neo-realistas e globalistas; para outros ainda, epistemologias
positivistas e pós-positivistas. Portanto, não seria exagero afirmar
que um verdadeiro debate metateórico se inicia com a teoria crítica.

Preliminarmente, convém examinar o ponto de partida de Robert


Cox (1995a). Não há teoria propriamente dita dissociada de um con-
texto histórico concreto. A teoria é a maneira como a mente funciona
para compreender a realidade confrontada. É a autoconsciência da
mente, a consciência de como a experiência dos fatos é percebida e
organizada para ser compreendida. Além disso, a teoria também pre-
cede a construção da realidade no sentido de que ela orienta a mente

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daqueles que, por meio de suas ações, reproduzem ou transformam a


realidade.

Para apresentar os desafios da teoria crítica, explorei seus quatro ali-


cerces básicos, a saber: a relação entre o sujeito cognitivo e o seu ob-
jeto de estudo; a influência de interesses e valores sobre a teoria; a
mutabilidade da realidade social; e os modos de teoria que surgem.
Em seguida, examinarei com maior detalhamento esses alicerces.

A relação tradicional do cientista político com seu objeto de estudo é


de distanciamento para possibilitar a “descoberta” de leis universais.
Esse é um postulado da ciência moderna, aplicável aos demais cam-
pos de estudo. Imagina-se uma postura análoga à do cientista natural
que analisa seu objeto de estudo por meio de um microscópio. Nada
exemplifica melhor o distanciamento. O cientista não acredita que
faz parte de seu objeto, muito menos que pode nele interferir de algu-
ma maneira. Sua função se resume a encontrar regularidades que le-
vem à possibilidade de previsão.

Contudo, essa postura é inadequada para as chamadas ciências sociais,


por um motivo basilar: o cientista é ele próprio parte de seu objeto de
estudo. Lembremos que essa característica já fora identificada pela
Escola de Frankfurt. Em vez de reproduzir também suas conseqüên-
cias epistemológicas, nesse particular, chamo atenção para a impor-
tância que Cox (idem) atribui às ontologias.

A ontologia precede a investigação. Antes de iniciar a tarefa de tentar


tornar o mundo que nos cerca mais inteligível, as ontologias já estão
presentes, já se fazem evidentes na maneira como enxergamos o que
está em nossa volta. Para definir um problema, e esse é o ponto de
partida da investigação científica, da pesquisa, urge conhecer e reco-
nhecer as entidades envolvidas, bem como as relações entre elas. Te-
orias são construídas sobre tais premissas. Os termos que usamos
para identificar as entidades e as relações têm significados ontológi-
cos. Estes significados não são resultado de descobertas ou revela-

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Teoria Crítica em Relações Internacionais

ções, ou seja, pressupõem a ação do pesquisador. A ontologia central


do campo de estudo das Relações Internacionais tem sido o Estado.
Contudo, não se pode assegurar que o mesmo conceito signifique
coisas idênticas para teóricos distintos. Chama atenção, nesse senti-
do, a maneira divergente com que Platão e Hobbes conceituam a co-
munidade política (Cox, 2000).

A teoria segue a realidade, mas também a precede e a modela. Existe


um mundo histórico real em que as coisas acontecem. A teoria é feita
pela reflexão sobre o que nele aconteceu. Contudo, a separação entre
teoria e eventos históricos reflete uma certa maneira de pensar, por-
que a teoria alimenta também a história, em virtude da forma como
aqueles que fazem a história (indivíduos e coletividades) pensam so-
bre o que fazem, e dão significados às suas ações.

Dessa forma, os limites da ação individual e/ou coletiva são produtos


da teoria (e ditados pelos eventos históricos). Existe, portanto, uma
teoria dos livros (acadêmica) e uma teoria da vida (sentido comum).
A experiência histórica produz a ontologia das pessoas e incorpo-
ra-se ao mundo que estas constroem. É assim, portanto, que o enten-
dimento que temos do Estado, desprovido de existência física, apesar
de produzir conseqüências reais e físicas, explica-se. As ontologias,
por sua vez, são estruturas implícitas (subjacentes) de pensamento e
prática.

Elas se tornam problemáticas quando novos problemas que não po-


dem explicar ou resolver certezas ontológicas dão lugar ao ceticis-
mo. Não se procura a construção de um conhecimento universal e ab-
soluto, mas a criação de uma nova perspectiva adequada ao momento
atual, isto é, novas ontologias.

Por conseguinte, estabelecemos que, de certa maneira, há um aspec-


to de eleição subjetiva na maneira como assimilamos o meio em que
estamos inseridos. Isso é expresso pelo domínio das ontologias. Por
ontologia, entendemos desde a discussão dos conceitos, isto é, o con-

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ceito que usamos para designar uma determinada idéia, passando pe-
los diversos entendimentos que um conceito pode expressar, até che-
garmos à questão mais abrangente que entenderá que nossa(s) onto-
logia(s) é (são) também a representação de nossa visão de mundo.
Cox (1995a) afortunadamente aponta a importância que a historici-
dade exerce sobre essa(s).

Outra característica definidora do campo de estudo das Relações


Internacionais, para Devetak (1995), tem sido a omissão de conside-
rações acerca da relação entre conhecimento e valores. Esta relação
somente atraiu atenção por advertir contra os perigos que se apresen-
tam quando valores influenciam a pesquisa. O estado do conheci-
mento, a justificação de reivindicações da verdade – truth claims –, a
metodologia aplicada, o escopo e o alcance da pesquisa eram ques-
tões fundamentais que as Relações Internacionais ignoravam, em seu
próprio detrimento (idem).

A teoria é obrigatoriamente condicionada pela influência social, cul-


tural e ideológica, e cabe à teoria crítica a tarefa de revelar os efeitos
desse condicionamento. Busca, também, trazer à consciência pers-
pectivas latentes, interesses ou valores que dão origem a, ou orientam
qualquer teoria. O conhecimento que a teoria crítica persegue não é
neutro; é política e eticamente carregado por um interesse na trans-
formação social e política. Hoffman (apud Devetak, 1995) entende
que não é meramente uma expressão das realidades concretas da si-
tuação histórica, mas também uma força transformadora dessas con-
dições (Devetak, 1995:151).

É claro que a teoria crítica incorporará nitidamente a dimensão da in-


fluência dos interesses na produção teórica. Contudo, o mesmo tal-
vez não proceda na discussão da ação dos valores. A bem da verdade,
teóricos críticos têm sido freqüentemente acusados por teóricos nor-
mativos de se absterem das discussões normativas substantivas. A
acusação fundamenta-se no fato de a teoria crítica defender uma “or-

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Teoria Crítica em Relações Internacionais

dem alternativa”, presumivelmente “melhor”; concomitantemente,


não indica com clareza o que constitui uma ordem “boa”, em se tra-
tando da dimensão ética. Em que medida a ordem que se busca supe-
ra a ordem atual? Para a teoria normativa, somente o aprofundamen-
to das discussões sobre a ética e a moral nas relações internacionais
poderia oferecer algum tipo de resposta a tais indagações. Nisso, os
teóricos normativos aparentam ter razões ao assinalar o curioso si-
lêncio da teoria crítica a esse respeito.

O enfoque da teoria crítica, além de ser seu interesse manifesto, é a


transformação da ordem internacional, no que se refere à realidade
política, econômica e social. Mais do que isso, para a teoria crítica
qualquer perspectiva que parta da premissa de que existam aspectos
de tal realidade que sejam permanentes ou imutáveis é falaciosa.
Para sustentar essa censura, Cox (1995a) aponta para um equívoco
basilar da tradição realista: a suposição de que o Estado é sempre um
Estado. Dito de outra maneira, realistas tendem a não problematizar
o objeto básico do estudo tradicional das Relações Internacionais.
Ao contrário, sugerem que as cidades-Estados helênicas da Antigüi-
dade Clássica (Tucídides, 2002) têm muito em comum com as cida-
des-Estados da península itálica na Idade Média (Maquiavel, 1982),
que, por sua vez, não apresentam maiores disparidades se compara-
das aos Estados-nação do início da era moderna (Tratados de Paz de
Westfália, 1648), os quais não teriam sofrido mudanças fundamen-
tais até os dias de hoje. Será mesmo que não haveria dessemelhanças
entre essas formas de comunidades políticas distanciadas por milha-
res de anos? Ontologicamente, o conceito de Estado não significa a
mesma coisa para os contextos citados.

O pensamento realista procura regularidades no sistema internacio-


nal, que lhe permitam prever como as entidades políticas se compor-
tarão. Para isso, interpreta realidades distintas, buscando apontar ca-
racterísticas que sugerem continuidades. Mas será mesmo que a
composição e interação das idéias, a organização material e as insti-

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tuições que constituíam as comunidades políticas permitem que fale-


mos de um “Estado” que atravessa os tempos e não respeita as parti-
cularidades de cada contexto histórico? É aceitável propor que forças
sociais e as ordens mundiais geram somente um tipo de comunidade
política?

Há um compromisso normativo intrínseco com a manutenção da or-


dem, e com aqueles que se beneficiam dela. Por exemplo, o mecanis-
mo que regula e distribui poder entre entidades que se motivam pelo
mesmo objetivo (conquistar ou aumentar seu poder) é o equilíbrio ou
balança do poder. O realismo político é uma perspectiva teórica, por-
tanto, que poderá ser identificada com os interesses do Estado hege-
mônico.

Para a teoria crítica, por conseguinte, a ordem internacional está em


constante transformação. Essa mutação faz com que, por meio da
agência humana, se possa guiar alterações em direção à emancipa-
ção. A teoria cumpre, portanto, um papel de guia para a ação estraté-
gica, isto é, para a ação transformadora. Muito mais do que um reles
instrumento para analisar seu objeto de estudo, a teoria passa a ter
uma função nessa ação. Da mesma forma que cientistas não se de-
vem deixar iludir por um véu de pretensa neutralidade – já que eles
próprios compõem seu objeto de estudo, carregam e cultivam valo-
res, interesses particulares –, a ciência também não é neutra. Pode ha-
ver uma teoria interessada na manutenção da atual ordem das coisas,
como pode haver teorias interessadas em sua transformação. Para
Cox (1995a; 1995b), essa opção será o divisor de águas das teorias,
nos termos abaixo.

Em sua forma de distinguir as teorias, Cox (1995a; 1995b) propõe


uma heterogeneidade em três níveis. Entende que teorias devem ser
analisadas com base em três dimensões que permitem a comparação
e a conseqüente classificação dos modos de teoria: a perspectiva, a
problemática e o propósito.

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Teoria Crítica em Relações Internacionais

A perspectiva seria a localização espaço-temporal. Em sintonia com


a crença de que o contexto social do sujeito influi em suas definições
ontológicas, na maneira que elege para interpretar a realidade social,
a perspectiva reflete precisamente a extensão dessa função. Por
exemplo, o realismo político é intensamente associado a teóricos es-
6
tadunidenses (Morgenthau, Deutsch etc.) e britânicos (Carr etc.) . A
localização espaço-temporal aponta para uma coincidência: trata-se
de teóricos de nacionalidade de um Estado-nação hegemônico em
decadência (Grã-Bretanha, ao menos no momento em que Carr es-
creve) e de um Estado-hegemônico em ascensão (Estados Unidos,
principalmente no pós-Segunda Guerra Mundial). O fato de que o re-
alismo político principia seu domínio no período auge de domínio
estadunidense não pode ser relegado ao acaso. A corrente de pensa-
mento realista parece ter uma ligação clara com uma forma de inter-
pretar as relações internacionais que reflete e atende aos interesses
do Estado hegemônico. De forma semelhante, a aplicação do mesmo
raciocínio sobre os teóricos dependentistas revela uma característica
semelhante: estamos diante, nesse caso, de uma série de pensadores
7
oriundos de Estados periféricos ou semiperiféricos .

“O mundo é visto de uma posição definida em termos de nação ou


classe social; de dominação ou subordinação; de ascensão ou declí-
nio de poder; de um sentido de imobilidade ou de crise atual; de expe-
riências passadas e de esperanças e expectativas para o futuro. Uma
teoria jamais é a expressão pura e simples de sua perspectiva. Por ou-
tro lado, quanto maior a sua sofisticação, mais ela reflete sobre si e
transcende sua perspectiva. Por conseguinte, não existe teoria por si
só, divorciada de sua posição no tempo e no espaço. Quando uma te-
oria se apresenta como tal, faz-se necessário examiná-la como uma
8
ideologia, e tentar revelar sua perspectiva” (Cox, 1995a: 87) .

A crítica coxiana não leva a supor que a busca por um conhecimento


neutro ou imparcial deva inspirar o teórico. Ao contrário, afirma que
todo conhecimento refletirá particularidades de quem o produz, e das

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quais o teórico não pode se julgar imune. A perspectiva deve ser


compreendida como o contexto histórico a partir do qual a produção
teórica ocorre. Isso significa examinar de onde emerge o teórico; é o
seu ponto de partida fundamental. Sua teoria poderá transcender esse
ponto de gênese e adquirir uma percepção histórica, ou poderá se li-
mitar a ele.

Cada teoria também abrange uma problemática, ou mais. A proble-


mática refere-se às premissas da vida social que cada teoria deseja
abranger. Cada teoria também elege dentre os múltiplos aspectos da
realidade que compõem seu objeto de estudo, quais serão foco de sua
preocupação. Sendo assim, não é tarefa árdua identificar a problemá-
tica do realismo político: a questão da segurança internacional. A te-
oria da dependência também apresenta uma problemática claramen-
te distinguível. Trata-se de uma abordagem que busca compreender
o motivo que impedia países não-desenvolvidos de evoluírem em di-
reção ao desenvolvimento.

Uma teoria sempre serve a alguém e a algum propósito. É imprescin-


dível conhecer o contexto em que é gerada e usada; igualmente impe-
rativo é conhecer se o objetivo do teórico e de quem se utiliza da teo-
ria é manter a ordem social existente ou mudá-la. Esses dois propósi-
tos levam a duas espécies de teoria. A teoria de resolução de proble-
mas – problem-solving theory – aceita o mundo como um dado, e
aponta para a correção de disfunções ou problemas específicos que
emergem dentro da ordem existente. O objetivo geral da resolução de
problemas é fazer com que as relações e instituições prevalecentes de
dominação social e política funcionem bem por meio do enfoque das
origens específicas dos problemas. Como o padrão geral das relações
e instituições não é passível de crítica, problemas específicos são
analisados em relação às áreas especializadas de atividades em que
surgem. Portanto, a resolução de problemas representa uma modali-
dade de teoria que tende a colaborar com a manutenção das relações e
instituições sociais e políticas, ou seja, expressa um intento conser-

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Teoria Crítica em Relações Internacionais

vador da ordem social e política. Ela se interessa pelas reformas es-


pecíficas que têm por fim a manutenção das estruturas existentes.

A outra espécie de teoria, a teoria crítica, dedica-se à forma como a


ordem existente surgiu e às suas possibilidades de transformação. Ao
contrário da teoria de resolução de problemas, a teoria crítica não vê
as instituições e relações sociais e políticas como um dado, mas as
questiona, procurando entender como surgiram e se podem estar em
um processo de transformação. Ela é direcionada justamente para o
quadro de ação, ou problemática, que a resolução de problemas acei-
ta como seus parâmetros. Um dos objetivos centrais à teoria crítica é
esclarecer a diversidade de alternativas possíveis. Há um elemento
de utopia presente, já que se tenta representar um quadro coerente
para uma ordem alternativa, embora a utopia sofra as limitações im-
postas pela compreensão dos processos históricos. A teoria crítica
deve recusar alternativas improváveis, além de rejeitar a ordem pre-
valecente. Desta forma, serve de guia para a ação estratégica por le-
var à ordem alternativa, enquanto a resolução de problemas serve de
guia para a ação tática que, intencionalmente ou não, mantém a or-
dem existente. Dito de outra maneira, a teoria crítica interessa-se pela
exploração do potencial de mudança estrutural e pela construção de
estratégias para a transformação.

O Pensamento
Neogramsciano nas
Relações Internacionais

Uma das vertentes da teoria crítica mais influentes em Relações


Internacionais tem sido o pensamento de Antonio Gramsci, sobretu-
do na economia política internacional. Lembramos que esse cientista
político italiano não chegou a produzir um tratado teórico integrado:
ao contrário, sua obra capital, Cadernos do Cárcere (2000), é uma
coletânea de artigos escritos enquanto esteve encarcerado pelo regi-
me de Mussolini nas décadas iniciais do século XX.

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Marco Antonio de Meneses Silva

Nesta seção, examinarei algumas das idéias centrais do pensamento


gramsciano para, em seguida, observar a sua transposição para as re-
lações internacionais. Observa-se, novamente, o fruto do esforço de
Robert Cox (1995b), embora outros autores também nos sirvam de
referência (Gill, 1993; 1998; Jardim, 2002).

Gramsci é considerado por muitos o maior teórico neomarxista. Sua


preocupação fundamental resume-se em compreender as deficiênci-
as nas previsões que Marx havia feito acerca da expansão das expe-
riências revolucionárias socialistas, particularmente nas sociedades
capitalistas mais avançadas. Nisso há um paralelo com a primeira ge-
ração da Escola de Frankfurt. Enquanto os frankfurtianos identifica-
ram a influência da cultura, a burocracia, a natureza do autoritarismo,
a questão da razão e da racionalidade e discussões epistemológicas
para explicar o fracasso no alastramento do socialismo, Gramsci bus-
cou elucidar a influência da hegemonia nesse fenômeno. Todos tra-
balharam uma temática claramente situada na superestrutura.

Há que se ter em mente que o conceito de hegemonia de Gramsci


(2000) guarda pouca semelhança com o termo usado habitualmente
nas Relações Internacionais e com o conceito derivado do realismo.
Para realistas, trata-se do Estado dominante no sistema internacio-
nal, ou do Estado mais forte em uma região específica. Gramsci
(idem) buscou alargar esse entendimento em decorrência de seu con-
ceito mais amplo de poder.

O desenvolvimento do conceito gramsciano de hegemonia apresen-


ta-se como uma discussão produtiva. A noção de hegemonia como
uma ordem política relativamente incontestada, e habitualmente acei-
ta de maneira passiva, isto é, uma combinação da coerção e do con-
sentimento, abre múltiplas possibilidades de reinterpretação da rea-
9
lidade internacional . A hegemonia, exercida por forças sociais que
detêm o controle do Estado, tem por finalidade a produção do con-
sentimento nas demais. Gramsci (idem) entendeu que os valores mo-

264 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005


Teoria Crítica em Relações Internacionais

rais, políticos e culturais do grupo dominante são dissipados por


meio das instituições da sociedade civil, obtendo o status de signifi-
cados intersubjetivos compartilhados, daí a noção de consentimento.
As ideologias dominantes proliferam-se de tal maneira que passam à
qualidade de senso comum.

O sentido do termo “sociedade civil” aqui empregado diz respeito à


rede de instituições e práticas da sociedade que gozam de relativa au-
tonomia do Estado, por meio das quais grupos e indivíduos se organi-
zam, representam-se e expressam-se.

Dessa forma, as possibilidades de mudança surgem da noção de blo-


co histórico, ou seja, as relações entre a base material (in-
fra-estrutura) e as práticas político-ideológicas que sustentam uma
certa ordem. A transformação somente emergirá se a hegemonia for
contestada. O lócus para tal seria a sociedade civil, uma vez que inici-
ativas contra-hegemônicas devem desafiar a hegemonia a fim de que
surja um bloco histórico alternativo.

Outra implicação dessas premissas impõe que, se a perpetuação da


dominação da classe governante ocorre por meio da hegemonia, a
transformação só poderá advir se a hegemonia for contestada. Isso
compreende uma luta contra a ordem prevalecente no cerne da socie-
dade civil, compreende uma contra-hegemonia, em busca de um blo-
10
co histórico alternativo . A fim de transcender determinada ordem,
há que se ter em mente que na contra-hegemonia, a legitimidade polí-
tica e a mudança histórica representam estruturas historicamente li-
mitadas.

Nesse ponto, convém afirmar que uma transposição da teoria política


de Gramsci acerca da política doméstica italiana nas décadas de 1920
e 1930 para a esfera internacional ou para a política mundial não é ta-
refa das mais fáceis, nem pode ser feita de maneira direta. Em que pe-
sem essas dificuldades, os autores dessa corrente têm obtido um êxi-
to surpreendente, constatado a seguir.

265
Marco Antonio de Meneses Silva

Podemos creditar também a Robert Cox o mérito de ter introduzido


Gramsci no estudo da política mundial, em uma abordagem que
compreende o desenvolvimento de uma estrutura alternativa para a
análise dessa. Percebemos uma significativa influência do gramscia-
nismo no desenvolvimento do seu entendimento teórico sobre as or-
dens mundiais, que se apropriam das fontes de estabilidade de um
dado sistema, bem como da dinâmica dos processos de transforma-
ção. Para tal, Cox (1995b) defende que a hegemonia é um conceito
tão central para explicar a manutenção da estabilidade e continuida-
de no domínio internacional quanto para o nível doméstico. Sucessi-
vos Estados dominantes têm criado e moldado ordens mundiais da
forma mais conveniente aos seus interesses, graças às suas capacida-
des de coerção, bem como ao consentimento generalizado provoca-
do, mesmo entre aqueles que não (ou pouco) se beneficiam.

Cox (idem) procura entender as ordens mundiais como estruturas


históricas compostas por três categorias de forças: capacidades ma-
teriais, idéias e instituições. As capacidades materiais dizem respeito
à esfera econômica da estrutura social. Como tal, incluem o potencial
tecnológico e organizacional; portanto, denotam não somente como
qualquer sociedade se reproduz em sua base material, mas também a
maneira como essa reprodução é planejada, antecipada.

A esfera ideológica subdivide-se em duas partes. Por um lado, en-


contramos o conceito de significados intersubjetivos, que afetam a
conservação de hábitos e subsidiam expectativas quanto ao compor-
tamento social. Cox (idem) afirma que Estados são exemplos notóri-
os na política mundial, uma vez que representam formas generaliza-
das de comunidade política. Por outro lado, encontramos as imagens
coletivas da ordem social. Em sua essência, constituem juízos diver-
sos sobre os significados de justiça e dos bens públicos, sobre a legiti-
midade das relações de poder presentemente cultivadas. O choque de
posições adversárias representa a possibilidade da mudança, o po-
tencial para a produção de uma ordem alternativa. Enquanto signifi-

266 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005


Teoria Crítica em Relações Internacionais

cados intersubjetivos tendem a ser largamente generalizados em


dado contexto histórico, as imagens coletivas são significativamente
mais numerosas e divergentes.

As instituições são fundamentais. Segundo Cox (idem), desempe-


nham função vital na estabilização e perpetuação de uma ordem par-
ticular. Originalmente, tendem a reforçar as relações de poder esta-
belecidas, cultivando imagens coletivas compatíveis. Contudo, no
decorrer do tempo, imagens coletivas rivais ou até instituições con-
correntes podem ser criadas e lançadas. As instituições refletem, por
conseguinte, uma combinação específica de idéias e poder material,
entretanto, podem também transcender a ordem original e influenci-
ar o desenvolvimento de novas idéias e capacidades materiais.

Essa posição se clarifica quando se aplicam as estruturas históricas a


três níveis: formas de Estado, forças sociais e ordens mundiais. Exa-
minemos as implicações conseqüentes. A interação dos três níveis
proíbe qualquer hierarquia determinada a priori das relações. Além
do mais, cada nível é o resultado da luta entre estruturas rivais.

O nível inicial abrange os complexos Estado/sociedade. Chama-se


atenção para as formas e estruturas de Estado que sociedades especí-
ficas desenvolvem. A historicidade da forma de qualquer Estado é
uma derivação da configuração particular das capacidades materiais,
idéias e instituições, que é específica de um complexo Estado/socie-
dade.

A organização da produção, em especial das forças sociais partici-


pantes, constitui o segundo nível. À medida que evolui a produção,
observamos transformações expressas na gênese, no fortalecimento
ou no declínio de forças sociais específicas. Com a forma ainda do-
minante de um capitalismo hiperliberal, em uma escala global, as
forças sociais associadas à economia real em contraposição aos mer-
cados financeiros (como sindicatos) têm sido enfraquecidas, em fa-
vor do fortalecimento de investidores privados, por exemplo.

267
Marco Antonio de Meneses Silva

Por fim, o terceiro nível é representado pelas ordens mundiais. Estas


seriam a constituição precisa de forças que, em seqüência, determi-
nam a maneira como os Estados interagem. Cada contexto histórico
produzirá uma configuração específica das forças sociais, dos Esta-
dos, e da inter-relação entre eles que repercutirá como uma ordem
mundial particular. A título de exemplo, tem havido bastante discus-
são acerca de uma nova ordem mundial inaugurada pela resposta de
George W. Bush aos ataques de 11 de setembro de 2001, em referên-
cia clara ao princípio da ação preventiva (Política Externa, 2002). O
impacto gerado pela propagação desse conceito desencadeou a pers-
pectiva de uma mudança fundamental nos padrões atualmente acei-
táveis de conduta entre Estados.

Entre os três níveis, no entanto, não encontramos uma relação unili-


near. Forças sociais transnacionais têm influenciado Estados por
meio da estrutura mundial, conforme evidenciado pelos reflexos do
capitalismo expansivo do século XIX sobre o desenvolvimento de
estruturas de Estado no centro e na periferia. A conformação conjun-
tural das ordens mundiais é capaz de exercer influência sobre as for-
mas que assumem os Estados. Em resposta à sensação de ameaça à
existência de um Estado soviético, marcado por uma ordem mundial
hostil, surgiu o stalinismo. Já o complexo industrial-militar dos paí-
ses centrais justificou sua ingerência sobre os demais, apoiado sobre
um quadro conflituoso da ordem mundial de então. Este quadro se
configurou nos países periféricos com a existência de um militaris-
mo repressivo, sustentado pelo apoio externo do imperialismo, assim
como por uma peculiar conjunção de forças sociais internas nesses
países. Formas de Estado também afetam o desenvolvimento de for-
ças sociais pelos tipos de dominação que exercem, por exemplo,
avançando os interesses de uma classe, às expensas dos interesses de
outra.

Consideradas em separado, forças sociais, formas de Estado e ordens


mundiais podem preliminarmente ser representadas como configu-

268 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005


Teoria Crítica em Relações Internacionais

rações específicas de capacidades materiais, idéias e instituições.


Consideradas conjuntamente e, portanto, em direção a uma repre-
sentação mais completa do processo histórico, cada uma conterá as
demais, assim como será objeto da transformação destas.

Não restam dúvidas de que o pensamento gramsciano em Relações


Internacionais encontrou terreno fértil para se reproduzir. Nota-se
que a inspiração marxista dessa abordagem facilita a penetração de
tais idéias especialmente nos domínios da economia política interna-
cional. Não se deve cometer o equívoco, contudo, de crer na restrição
do alcance de Gramsci nas Relações Internacionais a questões clara-
11
mente econômicas .

Teoria Crítica Internacional

A teoria crítica internacional representa uma derivação do pensa-


mento coxiano. Seu expoente cardeal, Andrew Linklater, tem sua
trajetória acadêmica marcada por uma sintonia inicial com as idéias
de Cox e uma marcante evolução rumo a uma temática alternativa.

Para Devetak (1995), a tarefa da teoria crítica internacional, conso-


ante Linklater (1996), seria fornecer uma teoria social da política
mundial. Trata-se do alargamento do escopo tradicional das Rela-
ções Internacionais, não mais limitado por obsessões “estatocêntri-
cas”. Em comunhão com as preocupações atinentes à transformação
da realidade social e política, essa corrente deve muito às tentativas
de reconstrução do materialismo histórico, em particular ao trabalho
de Jürgen Habermas.

Encontramos, novamente, paralelos com o intuito gramsciano de bus-


car compreender melhor o papel que idéias, valores, ideologias, isto é,
a superestrutura, desempenham na construção e manutenção das es-
truturas sociais e políticas. A crítica intrínseca remete-nos a uma so-
brevalorização da dimensão material e das forças de produção. Marx

269
Marco Antonio de Meneses Silva

tendeu a imaginar a relação entre infra-estrutura e superestrutura de


maneira automática, ao passo que Habermas (1993) procura entender
a relevância das estruturas normativas, chegando a sugerir que a últi-
ma se sobrepõe à primeira. Devetak (1995) decifra a questão como
uma mudança paradigmática, do paradigma da produção e consciên-
cia em direção ao paradigma da linguagem. Subjaz à transformação o
esforço de diferenciar entre formas de racionalidade e o de compreen-
der a racionalidade comunicativa (ou agir comunicativo), tendo em
vista as formas da razão moral-prática na vida social.

Habermas (1993) propõe que o conhecimento guarda relação com a


idéia de interesses. O interesse técnico procura entender e controlar o
meio ambiente; o interesse prático guarda relação com entender ou-
tros sujeitos; e o interesse emancipatório busca a mudança. Sua teo-
ria da ação comunicativa é uma tentativa de combinar interesses prá-
ticos e emancipatórios.

Para Habermas, a razão não existe dentro do indivíduo isolado. Ela


requer o diálogo. Ele reforça a noção do sujeito como entidade racio-
nal, mas condiciona o surgimento da racionalidade a um quadro, uma
comunidade. Há normas constitutivas para o entendimento comuni-
cativo que devem ser acatadas pelos sujeitos para surgir uma situação
de “discurso ideal”.

Essa situação requer uma certa dose de tolerância no diálogo. Todos


os participantes devem ter oportunidades iguais de participar. Devem
exercer o direito de afirmar, defender ou questionar qualquer posição
normativa. Essa interação não deve ser impedida por papéis ativos ou
diferenças de status. Além disso, os participantes devem se inspirar
no desejo de atingir um consenso sobre a verdade das afirmações e a
validade das normas. Habermas não afirma prover uma prescrição
para dilemas éticos. O agir comunicativo é mais um procedimento,
em que a validação ocorre por meio de um processo de diálogo.

270 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005


Teoria Crítica em Relações Internacionais

A Linklater (1998) devemos o reconhecimento de ter introduzido e


12
avançado as idéias de Habermas nas Relações Internacionais . Seus
esforços estão em sintonia com a defesa da noção de que a emancipa-
ção no domínio internacional deva ser apreciada na forma da expan-
são das barreiras morais entre comunidades políticas. A emancipa-
ção constitui a perda de significado moral e ético das fronteiras dos
Estados. O foco passa a ser as múltiplas formas de inclusão e exclu-
são promovidas pela política mundial, dentre as quais se destaca o
Estado enquanto comunidade moral. Linklater (idem) defende o uni-
versalismo moral sem exclusão.

Esta pode ser compreendida de duas formas. Uma se refere àquilo de


que se tenta evadir-se (participação, recursos) intencionalmente (dis-
criminação visível) ou por meio das estruturas de poder ocultas,
como os discursos que negam, escondem ou marginalizam a diferen-
ça. Outro sentido entende exclusão como simplesmente o oposto da
inclusão.

Segundo Linklater, um relato compreensivo sobre a política mundial


requer a análise e múltiplas formas de exclusão. O autor defende que
a exclusão decorre de nós designarmos relevância moral a certas bar-
reiras entre pessoas (tais como fronteiras nacionais, de gênero, de
raça, de classe etc.).

A tarefa que temos adiante é (1) normativo-filosófica – refletir sobre


os critérios que determinam a legitimidade dos modos de inclusão e
exclusão –; (2) histórico-sociológica – examinar as origens, a repro-
dução e potencial transformação das barreiras morais –; e (3) política
– almejar atingir um equilíbrio justo entre o universal e o particular.

O argumento de Linklater (idem) é amplo e complexo, e não poderá


ser adequadamente resumido aqui. Está centrado no conceito de co-
munidade, revendo a separação entre as posições comunitarista e
13
cosmopolitista e a natureza das barreiras moralmente relevantes de
inclusão e exclusão da comunidade.

271
Marco Antonio de Meneses Silva

Sua idéia de comunidade política adota a forma de uma comunidade


dialógica: todos estão convidados a participar e qualquer posição
moral está propensa ao questionamento. Já que todos têm voz, e as
regras dizem respeito somente ao procedimento e não ao conteúdo
do diálogo, essa seria a forma mais adequada de determinar os me-
lhores arranjos para a ordem social e de evitar a exclusão enquanto se
celebra a diferença. O diálogo, dessa forma, expressa um valor por si
só, e seu objetivo é estabelecer o consenso. Está claro que estamos di-
ante de uma noção habermasiana de diálogo ou de ética do discurso.

Linklater (1998) acredita que o problema não é universalismo em si,


mas as versões em que se supõe que a razão individual possa desco-
brir um ponto de vista arquimediano que transcende as distorções e
limitações do tempo e do espaço. É possível uma moralidade reflexi-
va que reconhece (1) que a construção da identidade requer que se
evite a representação negativa dos outros e (2) que o direito à autode-
terminação comunitária há de ser exercido de maneiras que aceite o
princípio moral cosmopolita segundo o qual é legítimo que estrangei-
ros também reivindiquem bem-estar. A universalidade passa a ter a
forma de responsabilidade de engajamento com outros indivíduos
(independente de suas características raciais ou nacionais) em um
diálogo aberto sobre assuntos que comprometem seu bem-estar. A
questão para Linklater (idem), portanto, não é que a exclusão deixas-
se de existir, mas que, por meio do diálogo, a comunidade decidiria
sobre como e quem excluir ou incluir, por dar uma voz a todos. A ex-
clusão não seria “injusta”, mas legitimada. Adiante, comunidades di-
alógicas assim concebidas seriam, por definição, sempre abertas e
dispostas à expansão para incluir mais estrangeiros, e de fato seria
sua responsabilidade incluí-los, sempre que envolvesse o bem-estar
desses. Isso implicaria que as fronteiras não seriam fixas porque não
mais teriam relevância moral, visto que a priori não haveria razão
para excluir ninguém.

O aspecto complicado do esforço admirável de Linklater (idem) é a


tentativa de reconciliar “a celebração da diferença” com um projeto

272 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005


Teoria Crítica em Relações Internacionais

universalista. Ele escreve abertamente a partir de uma perspectiva li-


beral-democrática kantiana-hegeliana, o que gera sérios problemas
em sua argumentação. Acreditamos que essas dificuldades tornam
suas idéias no final das contas incapazes de realizar sua tarefa. Sem
nos referirmos a todas as críticas a Linklater (seu viés União Euro-
péia e a ausência de indicações quanto à institucionalização dos ar-
ranjos políticos pós-westfaliano), alguns problemas são relevantes à
nossa argumentação.

Primeiro, a dimensão do poder – a noção de comunidade dialógica


levanta questões do tipo: e se não houver consenso dentro da comuni-
dade? Quem terá a autoridade de arbitrar a decisão a ser tomada?
Quem definirá as regras do jogo? Parece que a comunidade dialógica
de Linklater (idem) está aberta apenas àqueles que aceitam as regras
do jogo. Que todos irão aceitá-las é uma questão à parte. Sua visão
procedimental sobre a ética obscurece as relações de poder existen-
tes entre os participantes. Como seria uma esfera pública aberta, li-
vre, não-manipulada? Como seria o acesso? Seria possível?

Em segundo lugar, a visão habermasiana de Linklater (idem) parte do


pressuposto de que as metas e valores das pessoas não seriam funda-
mentalmente incompatíveis, em outras palavras, que somos todos es-
sencialmente “iguais”, na verdade. Essa é uma visão particularmente
liberal. Considera, também, o indivíduo pré-social, abstraído de to-
dos os “outros” aspectos, como a cultura. No entanto, a cultura não
pode ser usada como vestimenta, a ser descartada a qualquer momen-
to. Nossos discursos (raciocínio, linguagem) são eles próprios cultu-
ralmente situados e constituídos – assim como os de Linklater
(idem).

Análise

Fica evidente que não se deve menosprezar a força do impacto que


teóricos críticos causaram nas Relações Internacionais, estenden-
do-se à economia política internacional. Essa repercussão, como vi-

273
Marco Antonio de Meneses Silva

mos, fundamenta-se sobre uma visão inovadora das discussões epis-


temológicas no âmbito das Relações Internacionais. Contudo, houve
quem recebeu a teoria crítica e sua vertente neogramsciana com me-
nos entusiasmo. Se não, vejamos os argumentos.

Um dos traços que mereceu censura diz respeito ao pessimismo que


teóricos críticos, em geral, têm demonstrado no que diz respeito aos
agentes da transformação social pretendida, particularmente quando
se trata de organizações não-governamentais (ONGs) e intergover-
namentais (OIGs).

De maneira semelhante, há críticas imbuídas de excesso de otimis-


mo, ou de utopia, quanto à mudança estrutural tão preconizada.

Observamos um curioso paradoxo no que se refere ao Estado. Há


desde aqueles que consideram os teóricos críticos por demais obce-
cados pelos Estados, o que constitui o já citado “estadocentrismo”,
até aqueles que diagnosticam a ausência de uma atenção apropriada
ao Estado.

O tema da globalização trouxe à tona as contribuições singulares dos


neogramscianos para a economia política internacional. Nesse caso,
trata-se da crítica quanto à despersonalização dos fenômenos. Tais
autores preferem enxergá-la como um processo conduzido por al-
guns Estados.

Em suas discussões, autores contemporâneos descendentes das tra-


dições marxistas, principalmente aqueles que têm devotado atenção
às problemáticas da identidade, aliados aos antropólogos, quei-
xam-se da subestimação das forças culturais, em favor de um reduci-
onismo fundado sobre a produção, sobre o materialismo.
14
O neogramscianismo pressupõe que haja uma “verdadeira cons-
ciência”, ou interesses objetivamente identificáveis. Este postulado
se encontra presente até mesmo na divisão epistemológica da teoria

274 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005


Teoria Crítica em Relações Internacionais

crítica, ao assegurar que não é possível conhecer a realidade a não ser


por um conjunto específico de valores. Segundo Griffiths (2004), a
eleição da emancipação enquanto valor supremo acaba exigindo
uma verdadeira conscientização – sem que indivíduos estejam cons-
cientes da opressão, não poderão ser emancipados. Não seria tarefa
singela, tampouco aberta às interpretações subjetivas, ao relativis-
mo, revelar as forças sociais e materiais que evitam que indivíduos
alcancem seus interesses reais. Ainda consoante Griffiths (idem),
essa posição assevera uma identificação da teoria crítica com o posi-
tivismo epistemológico, posição esta que diverge do refletivismo co-
mumente identificado por outros autores na teoria crítica.

Conclusão

Como reflexões finais, convém ressaltar o êxito obtido pela teoria


crítica, em suas diversas abordagens aqui apresentadas.

Preliminarmente, cabe rememorar os impactos profundos sobre as


discussões teóricas em Relações Internacionais que podem ser iden-
tificados como tendo origem nas indagações apresentadas por Ro-
bert Cox (1995a; 1995b; 2000). Esse ponto não deve ser menospre-
zado. Se hoje há um vibrante debate metateórico, para o regozijo de
alguns e tristeza de outros, isso se deve em grande parte aos teóricos
críticos e às perspectivas teóricas que se aproveitaram das questões
propostas. Entendemos que a teoria crítica representa uma guinada
importante, em uma nova direção, diante da encruzilhada em que se
encontrava o campo de estudos no início dos anos 1980.

Outra implicação observada remonta à diversificação do escopo teó-


rico das Relações Internacionais, que expandiu significativamente
seus horizontes, conduzindo tal escopo rumo a novas conceituações
dos fenômenos da política mundial. Expuseram-se as limitações
epistemológicas das tradições de pensamento convencionais das Re-
lações Internacionais. Diversas abordagens mais recentes podem,

275
Marco Antonio de Meneses Silva

por conseguinte, ter suas origens identificadas na teoria crítica, como


a teoria normativa, o pós-modernismo, algumas correntes do femi-
nismo, o construtivismo, e daí por diante.

Há outros pontos importantes a serem ressaltados nessa análise sobre


as realizações da teoria crítica. Linklater (1996) aponta-nos quatro
principais. Uma se atém aos desafios impostos ao positivismo episte-
mológico (racionalismo), uma vez que para a teoria crítica o conheci-
mento não surge do engajamento neutro do sujeito com uma realida-
de objetiva; ao contrário, reflete propósitos e interesses sociais pree-
xistentes.

A segunda grande realização seria a contestação da posição segundo


a qual as estruturas sociais atuais são imutáveis, já que essa noção
sustenta as iniqüidades estruturais de poder e riqueza que são por
princípio alteráveis. A preocupação recorrente com a emancipação
nas diversas correntes vistas aqui se sustenta sobre uma concepção
que deve apreciar a possibilidade de transformação da ordem social,
a despeito daquela posição epistemológica que defende uma posição
muito mais contemplativa.

É inegável, por outro lado, a influência do marxismo sobre a teoria


crítica. Esta representa uma tentativa de superação de debilidades
inerentes àquela ao rejeitar que a luta de classes é a forma fundamen-
tal de exclusão social, e que a produção é o determinante fundamen-
tal da sociedade e da história.

As vertentes mais recentes, particularmente o que chamamos de teo-


ria crítica internacional, julgam arranjos sociais pela sua capacidade
de abraçar diálogos abertos com todos e visualizar novas formas de
comunidade política que rejeitam a exclusão injustificada. Essa é a
quarta grande realização da teoria crítica segundo Linklater (1998).

Por fim, cabe afirmar que, consoante o nosso entendimento, não esta-
mos diante de abordagens que poderão ser nitidamente classificadas

276 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005


Teoria Crítica em Relações Internacionais

dentro da epistemologia pós-positivista. Aqui há um largo e (panta-


noso) terreno para debate. Pelo que entendemos, a teoria crítica pode
ser acusada consistentemente de carregar características híbridas15.
Se, por um lado, é responsável pela incorporação do refletivismo, da
incerteza sobre o alcance da racionalidade, por outro, a teoria crítica
não leva essa intenção adiante. Afinal, se teorias servem a alguém e a
algum propósito, como sustentar a defesa pela emancipação? Se há
uma posição normativa da teoria crítica rejeitando a ordem social
atual, como pode afirmar que a ordem almejada seria “melhor”? A
tarefa caberá ao pós-modernismo em Relações Internacionais, ver-
tente essa que produzirá uma censura consistente sobre os limites au-
to-impostos da teoria crítica.

Notas

1. Essa proposição é particularmente verdadeira nas academias européias,


principalmente na britânica, e encontra-se respaldada em Burchill e Linklater
(1996) e Smith e Booth (1996). Na academia brasileira das Relações Internacio-
nais, há que se registrar o louvável esforço de Rocha (2002).
2. Trata-se de um episódio relatado por Tucídides (2002) em que a dominado-
ra Atenas pretendia tomar a pequena ilha de Melos, suscitando uma discussão
entre ambas as cidades acerca do poder versus a moralidade nas relações entre
comunidades políticas.
3. Seguramente um dos artigos mais citados em textos desde sua publicação
em 1981. O artigo é mais conhecido por ser encontrado em Keohane (1986).
4. Para um exímio relato da proximidade (quase promíscua) entre as discipli-
nas científicas e o Estado, sua gênese e sua institucionalização, ver Wallerstein
(1996), sobretudo o capítulo primeiro.
5. Como tantas outras questões, também é motivo de debate nesse campo de
estudo. Para os britânicos, deu-se com a criação da cadeira Woodrow Wilson na
Universidade de Gales em Aberystwyth, no curso de Direito Internacional, em
1919.

277
Marco Antonio de Meneses Silva

6. Raymond Aron curiosamente fica às margens dessa caracterização. Isso,


contudo, não invalida a proposição. Não se trata de estabelecer uma lei univer-
sal. Podemos expandir a proposição para incluir Estados-nação centrais, mas
não hegemônicos, sem prejuízo para a validade da proposição (Griffiths, 2004).
7. Aqui, a tentativa de encontrar falhas torna-se mais custosa. No sentido estri-
to do dependentismo, não parece haver significativa contribuição de autores que
não fossem de países não-centrais: Teotônio dos Santos, Celso Furtado, Raul
Prebisch, Caio Prado Jr., Fernando Henrique Cardoso, Enzo Faletto, André
Gunder Frank, Said Amin, Giovanni Arrighi – todos tiveram seus nomes associ-
ados a essa corrente (Silva, 2002).
8. Tradução minha.
9. Maquiavel já o sugeriu com a analogia ao centauro (metade homem, meta-
de fera).
10. Para Craig Murphy (1990:25-46), isso não tem acontecido. Pelo contrá-
rio, haveria um bloco histórico conservando a dominância em escala global,
possivelmente composta por uma classe dirigente “atlântica” ou “trilateral”, por
classes subordinadas no interior de Estados industrializados e por classes diri-
gentes nos países em desenvolvimento. Em outro trabalho, Murphy (1994) ex-
plora as repercussões da escolha de uma análise gramsciana sobre o tema da or-
ganização e governabilidade internacionais, apontando a influência de idéias e
valores consolidados nas organizações institucionais e internacionais, visando
o bom funcionamento da economia política global.
11. Serve como exemplo a aplicação do neogramscianismo na temática da se-
gurança internacional (Lamazière, 1998).
12. O próprio Habermas (1993) tem dedicado atenção crescente ao universo
das relações internacionais, fazendo-o, porém, a partir de uma perspectiva que
tende a empobrecer e restringir por demais o alcance de suas idéias. A porta de
entrada de Habermas nos domínios da política internacional tem sido a noção da
construção de consensos por meio da firmação de tratados e convenções entre
Estados.
13. Trata-se da divisão doutrinária dentro da chamada teoria normativa em
Relações Internacionais. Ver Hoffman (1994) e Frost (1994).
14. O dilema remete inclusive à noção de “consciência de classe” marxiana.
Como verificar se essa consciência se encontra presente?
15. Há quem afirme que tal hibridismo é compartilhado pelo construtivismo
social. Para um exame aprofundado da matéria e suas implicações para as Rela-
ções Internacionais, ver novamente Rocha (2002).

278 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005


Teoria Crítica em Relações Internacionais

Referências
Bibliográficas

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Resumo

Teoria Crítica em Relações


Internacionais

Este artigo tem por objetivo apresentar a tradição da teoria crítica em Rela-
ções Internacionais. Entende-se que haja uma lacuna nos debates teóricos
com a reduzida atenção dedicada a essa tradição no Brasil. O revigora-
mento dos debates teóricos contribui para o enfraquecimento das tradi-
ções teóricas convencionais. O papel da teoria crítica nessa tendência é
primordial. A teoria crítica da Escola de Frankfurt é examinada como pre-
cursora filosófica e metateórica da teoria crítica em Relações Internacio-
nais. Em seguida, as bases epistemológicas dos desafios da teoria crítica
às teorias convencionais são apresentadas, com ênfase especial dedicada
ao trabalho de Robert W. Cox. O pensamento neogramsciano é inspecio-
nado à luz da busca pela transformação social nas relações internacionais.
A vertente da teoria crítica internacional é vista como fonte de inspiração
para muitos autores que trabalham com a emancipação. Examina-se a pro-
dução de Andrew Linklater por representar a busca por transformação das
comunidades políticas por meio da expansão de suas fronteiras morais.
Em seguida, busca-se uma avaliação crítica dos impactos trazidos pela te-
oria crítica ao campo de estudos das Relações Internacionais. Conclui-se
que a teoria crítica tem méritos na guinada das discussões teóricas em dire-
ção a questionamentos ontológicos e epistemológicos, debate esse que
tem caracterizado esse campo de estudo nas últimas décadas, por meio da
exposição das limitações conseqüentes do domínio das teorias convencio-

281
Marco Antonio de Meneses Silva

nais. Não obstante, a associação da teoria crítica ao pós-positivismo epis-


temológico constitui atitude premeditada.

Palavras-chave: Teoria das Relações Internacionais – Teoria Crítica –


Escola de Frankfurt – Gramsci

Abstract

Critical Theory in International


Relations

This article aims to present Critical Theory in International Relations. It is


understood that there has been a lacuna in theoretical debates with little
attention paid to this tradition in Brazil. The current revival in theoretical
discussions contributes to the weakening of conventional theories. The role
of Critical Theory in this trend is fundamental. Frankfurt School Critical
Theory is examined as a philosophical and metatheoretical forerunner to its
International Relations’ counterpart. There follows the epistemological
bases for the challenges Critical Theory poses to conventional approaches,
with particular regard to the work of Robert W. Cox. Neo-Gramscian
thought is thus in the light of concerns for social transformation in
International Relations. The Critical International Theory perspective is
subsequently scrutinized as a source for emancipatory concerns of IR
scholars. The work of Andrew Linklater is presented due to the search for
the transformation of political communities by way of the expansion of
moral boundaries. A critical assessment of the impacts of Critical Theory to
the field of International Relations is thus presented. This article concludes
that Critical Theory is largely accountable for the turn towards the
ontological and epistemological issues that have distinguished this field of
study within the last few decades, by exposing the consequential
shortcomings of the predominant conventional theoretical approaches.
However, Critical Theory is deliberately associated to post-positivist
epistemologies.

Key words: International Relations Theory – Critical Theory – Frankfurt


School – Gramsci

282 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005


Além do Ocidente,
além do Estado e
muito além da Moral:
Por uma Política
Eticamente
Responsável em
Relação à Diferença –
O Caso Ruandês*
Ana Cristina Araújo Alves**

Introdução

Em 6 de abril de 1994, o avião que trazia os presidentes Juvenal


Habyarimana e Cyprien Ntaryamira, de Ruanda e Burundi respecti-
vamente, foi misteriosamente derrubado. As autoridades voltavam
de um encontro em Dar es Salaam (Tanzânia) sobre a formação do
governo de transição em Ruanda. Os eventos imediatamente poste-
riores ao desastre foram prontamente classificados pela imprensa in-
ternacional, pelas Nações Unidas e pelas próprias partes em conflito
o
como um retorno à guerra civil iniciada em 1 de outubro de 1990. O

*Artigo recebido e aceito para publicação em outubro de 2005.


**Mestre em Relações Internacionais pelo Instituto de Relações Internacionais da Pontifícia Universida-
de Católica do Rio de Janeiro (IRI/PUC-Rio) e professora do IRI/PUC-Rio.

CONTEXTO INTERNACIONAL Rio de Janeiro, vol. 27, no 2, julho/dezembro 2005, pp. 411-463.

411
Ana Cristina Araújo Alves

episódio também é relatado dessa forma pelas principais narrativas


1
acadêmicas contemporâneas sobre Ruanda . Em retrospecto, sa-
be-se que simultaneamente à guerra civil, ou como estopim da mes-
ma, um genocídio foi colocado em marcha, resultando em centenas
de milhares de mortes.

O genocídio ruandês de 1994, além de ofender profundamente a


consciência da humanidade pelo caráter, dimensão e velocidade das
atrocidades cometidas, também engendrou uma crise humanitária
regional de escala sem precedentes. Suas conseqüências não se limi-
taram ao quase um milhão de vítimas diretas. Juntamente com a luta
entre a Frente Patriótica Ruandesa (FPR) e as Forças Armadas Ruan-
desas (FAR), a violência genocida forçou a fuga de cerca de 250 mil
ruandeses para a Tanzânia e de quase 2 milhões de ruandeses para
campos de refugiados no Zaire e na zona francesa protegida pela
2
Operação Turquesa (Jones, 1995:244; 2001:136-137) .

O presente artigo tem por objetivo fazer uma análise da decisão da


Organização das Nações Unidas (ONU) tomada em 21 de abril de
3
1994 sobre o estabelecimento da Unamir como resposta à violência
em Ruanda naquele momento. A ênfase recai sobre a avaliação da
responsabilidade ética da organização, à luz da rearticulação radical
dos conceitos de ética, responsabilidade e subjetividade proposta por
Emmanuel Levinas (1999). Buscaremos as implicações dessa deci-
são em termos das conseqüências que ela permitiu – a saber, o geno-
cídio ruandês, o prolongamento da violência possibilitado pela Ope-
ração Turquesa e a reorganização do movimento genocida nos cam-
pos de refugiados. Nesse sentido, a decisão da ONU de retirar a maio-
ria de suas tropas do território ruandês, deixando apenas 270 peace-
keepers com um mandato limitado à busca de um cessar-fogo entre o
governo interino ruandês e a Frente Patriótica Ruandesa, mesmo que
embasada e justificada pelos critérios de peacekeeping, não constituiu
uma atitude responsável, tampouco ética.

412 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005


Além do Ocidente, além do Estado e muito
além da Moral: Por uma Política Eticamente...

Além disso, trataremos de um outro aspecto, mais profundo, que


subjaz as condições permissivas dessas trágicas conseqüências: a do-
minação do princípio do Estado-territorial-soberano na imaginação
política contemporânea. Nosso argumento é de que as rijas fronteiras
entre dentro/fora, Estado/campo de refugiados, doméstico/internaci-
onal derivadas deste princípio impuseram também uma comparti-
mentalização na seara da formulação de políticas para lidar com a
crise humanitária que se seguiu ao genocídio. Essa forma fragmenta-
da de lidar com um problema complexo e multifacetado, por sua vez,
resultou em políticas que distorceram as prioridades, minaram a efe-
tividade dos programas de assistências e alienaram o novo governo
instalado (Khan, 2000:174). Destarte, o fracasso em Ruanda diz res-
peito não apenas à premência da necessidade da reaproximação entre
ética e relações internacionais, no sentido da formulação de políticas
eticamente responsáveis em relação ao Outro. Esse triste evento tam-
bém demanda que se repensem as próprias fundações da teorização
em relações internacionais, em termos de suas implicações para a
prática política.

Este artigo se desenvolve em torno de dois grandes temas. O primeiro


diz respeito à compreensão da ONU sobre a situação ruandesa após a
invasão da FPR. Isso pode ser avaliado por meio do status e compe-
tência atribuídos à Unamir, como descritos no mandato pelo qual a
missão foi instituída, bem como nas demais resoluções da ONU e re-
latórios do secretário-geral sobre o assunto. A forma como a ONU
identificou e classificou a situação ruandesa foi determinante para a
escolha das políticas sobre esse conflito. A partir daí, podemos fazer
uma consideração sobre as conseqüências da adoção de um tipo de
suposição em detrimento de outros, inclusive em termos da possibili-
dade de responsabilidade ética em relação à alteridade.

O segundo tema refere-se às intervenções humanitárias iniciadas


após o genocídio ruandês. Na forma como foram implementadas, es-
tas intervenções: (a) negligenciaram as vítimas do genocídio, (b) não

413
Ana Cristina Araújo Alves

distinguiram entre génocidaires e refugiados e (c) com isso permiti-


ram a reorganização política e militar dos perpetradores do genocí-
dio. Nosso argumento é de que essas conseqüências são reflexos do
princípio do Estado-territorial-soberano sobre o qual essas interven-
ções foram concebidas. Ao associar território e identidade, esse prin-
cípio converteu automaticamente todos os indivíduos identificados
como “tutsis” em “vencedores” da guerra civil ruandesa e todos
aqueles identificados como hútus refugiados em países vizinhos em
“perdedores”, “perseguidos” e necessitados de socorro. O princípio
da territorialidade impediu que a ajuda humanitária pudesse ser tam-
bém dirigida aos tutsis sobreviventes do genocídio, por estarem sob
os auspícios do novo – e falido – governo ruandês.

Para cumprir os objetivos traçados, discutiremos em primeiro lugar o


arcabouço teórico que nos permite lançar esse novo olhar sobre o
conflito e o genocídio ruandês. Em seguida, procederemos à análise
da postura internacional em relação a Ruanda nos meses prévios ao
genocídio. Buscaremos inferir como a visão que a comunidade inter-
nacional tinha de Ruanda, somada aos critérios de peacekeeping, re-
sultaram na decisão de 21 de abril, bem como no estabelecimento das
causas permissivas para o genocídio. Finalmente, apresentaremos
nossas conclusões sobre o caso.

Pós-modernismo,
Pós-estruturalismo,
Responsabilidade,
Subjetividade e Ética

Os objetivos acima delineados requerem o manuseio de dois arca-


bouços teóricos que, à primeira vista, podem parecer incompatíveis:
a abordagem pós-moderna/pós-estruturalista em relações internaci-
onais (RI) e a rearticulação radical entre ética, subjetividade e res-
ponsabilidade proposta por Emmanuel Levinas (1999). Por um lado,
o pensamento pós-moderno/pós-estruturalista diz respeito ao questi-

414 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005


Além do Ocidente, além do Estado e muito
além da Moral: Por uma Política Eticamente...

onamento de qualquer fundação segura e universal como critério


para julgar argumentos de verdade. Por outro, a proposta de Levinas
é marcadamente normativa, trazendo em si, ou constituindo-se ela
mesma, um tipo ideal de relação Eu/Outro. Cabe, portanto, a essa se-
ção apresentar ambos os arcabouços, evidenciando sua utilidade na
busca dos objetivos aqui propostos, além de demonstrar sua compa-
tibilidade e complementaridade.

Dentro da vasta e diversificada literatura pós-moderna/pós-estrutu-


ralista, destacam-se duas de suas contribuições correlatas mais rele-
vantes na seara deste artigo: o questionamento das fronteiras disci-
plinares e o conseqüente desafio ao princípio do Estado-territorial-
soberano como definidor das relações internacionais4. Segundo Rob
Walker (1993), o cerceamento da imaginação política contemporâ-
nea deriva do estabelecimento do princípio do Estado soberano
como marco e limite espaço-temporal da comunidade política. O
Estado-territorial-soberano, criado como uma resolução espa-
ço-temporal historicamente específica, foi convertido em uma cate-
goria ontológica que informa os lugares possíveis da política e, por
conseguinte, da ética. Nesse sentido, Walker (idem) afirma que as te-
orias modernas de RI podem (e devem) ser lidas como expressões de
uma compreensão historicamente específica do caráter e da localiza-
ção da vida política.

Espacialmente, o princípio do Estado soberano fixa uma clara de-


marcação: a comunidade política só é possível dentro do Estado. As
relações entre os Estados são consideradas necessariamente “apolíti-
cas” e, portanto, “aéticas”. A resolução espacial permite um corolá-
rio temporal. Dentro dos Estados, a comunidade política progride
historicamente. Entre eles, a ausência de comunidade implica a im-
possibilidade de história como uma teleologia progressiva, e assim
há possibilidade de mera recorrência e repetição.

415
Ana Cristina Araújo Alves

Essa compreensão permitiu que emergisse uma falsa dicotomia entre


teoria política e teoria internacional como reinos autônomos do co-
nhecimento. Consoante Steve Smith (1995:9-10), o principal objeti-
vo da disciplina de RI desde sua emergência tem sido o de estabele-
cer-se como uma área separada de conhecimento, por meio da cria-
ção de uma teoria própria de política internacional. Isso significa tra-
tar a arena internacional como se fosse um domínio distinto das teori-
as política e social, sem falar dos debates filosóficos e/ou morais. O
problema desse tipo de raciocínio é que ele cria uma oposição entre
teoria política e teoria internacional, cuja conseqüência é a “apoliti-
zação” das RI. Assim, as RI passam a evitar questões de ordem políti-
ca, tais como comunidade política, obrigação, liberdade, autonomia,
entre outras. Como discursos sobre limites e perigos, sobre supostas
fronteiras da possibilidade política no espaço e no tempo do Estado
moderno, as teorias de RI expressam e afirmam os horizontes neces-
sários da imaginação política moderna (Walker, 1993:6).

Segundo Walker (idem), as profundas transformações espaço-tem-


porais contemporâneas têm demandado formas alternativas de práti-
cas políticas. Contudo, o autor afirma que alternativas convincentes
são difíceis de ser encontradas devido ao profundo arraigamento do
princípio do Estado soberano no pensamento e na prática moderna.
Ou seja, nossas compreensões das transformações contemporâneas e
das práticas políticas alternativas permanecem presas dentro dos ho-
rizontes discursivos que expressam as configurações espaço-tem-
porais de outra era. Nesse sentido, a contenda não é sobre a presença
ou ausência do Estado, mas sobre até que ponto o princípio do Estado
soberano oferece uma explicação plausível das práticas políticas
contemporâneas. Ou seja, o que está em disputa não é o Estado, mas o
complexo Estado-nação-autonomia como uma entidade reificada
fundamental para a vida internacional. Destarte, o caminho apontado
pelos autores pós-modernos para superar essa limitação é restituir o
caráter “político” às RI, considerá-las como um aspecto integral da
teoria e prática política.

416 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005


Além do Ocidente, além do Estado e muito
além da Moral: Por uma Política Eticamente...

Isso é possível devido à concepção alargada que a abordagem


pós-moderna/pós-estruturalista tem de prática. De acordo com
Ashley (1989:279-280), qualquer e toda prática é uma prática arbi-
trária de poder e é, portanto, uma prática política. Posto que as rela-
ções humanas em todos os níveis envolvem uma pessoa tentando
controlar a conduta da outra, toda prática social se dá no contexto de
uma relação de poder. Assim, o poder não está aqui ou ali, mas em
todo lugar, de maneira que a política também está em todo lugar.
Dessa forma, é possível rechaçar a compreensão de que o Estado-ter-
ritorial-soberano, convertido em uma categoria ontológica, informa
os lugares possíveis da política e, por conseguinte, da ética. Nossa
compreensão de política vai além do Estado e se estende a todas as
áreas sociais.

Nesse sentido, o pós-estruturalismo é, por definição, uma perspecti-


va enfaticamente política. No entanto, recusa-se a privilegiar qual-
quer linha política. Seu discurso reconhece que todos os fundamen-
tos são igualmente arbitrários, igualmente efeitos de tentativas de de-
cidir o indecidível e igualmente sujeitos à incessante disputa política
(idem:278-279). Dessa forma, o pós-estruturalismo não pretende
oferecer uma posição ou perspectiva alternativa porque não existe
fundação alternativa sobre a qual ele possa se estabelecer
(idem:278). É por não privilegiar qualquer linha política que o
pós-estruturalismo oferece emancipação e liberação (Campbell e
5
George, 1990:280-281) .

Assim, o pós-estruturalismo deve assumir sua feição política de for-


ma persistente e aberta em sua teoria. Deve compreender que a práti-
ca teórica é tão inescapavelmente política quanto qualquer outra prá-
tica. Mesmo que não abertamente politizada, a prática teórica cons-
trói significado, atribui poder e fixa limites a modos socialmente re-
conhecidos de objetividade, subjetividade e conduta. É ainda uma
prática arbitrária de poder pela qual a proliferação do significado é
disciplinada e a estrutura narrativa é imposta à história (Ashley,

417
Ana Cristina Araújo Alves

1989:282). Portanto, a reivindicação pós-estruturalista por integri-


dade teórica depende de sua prontidão em colocar em questão seu
próprio ponto de vista subjetivo, sua competência para fazer teoria e
não ideologia.

Destarte, se por um lado a restituição do caráter ético às relações in-


ternacionais requer que nos orientemos por alguma concepção de éti-
ca, por outro lado deve ficar claro que esse critério é apenas um entre
muitos, derivado de um ponto de vista subjetivo, da necessária e ines-
capável perspectiva da autora deste artigo em um tempo e espaço po-
lítica e historicamente específicos. Assim, a leitura que será feita do
papel da ONU no genocídio ruandês será balizada por mais um mar-
co: a inter-relação radical entre responsabilidade, subjetividade e éti-
ca, inserida em uma condição de “alteridade infra-estrutural” (Levi-
nas apud Campbell, 1994:460). Essa escolha tem duas implicações
no que se refere ao nosso juízo de valor sobre as questões analisadas.

Em primeiro lugar, entendemos que o Eu só existe mediante sua rela-


ção de responsabilidade ética com o Outro. Nesse sentido, todas as
relações e formas de subjetividade devem ser pautadas e incessante-
mente questionadas pela responsabilidade ética. Levinas (1999) en-
tende que a origem do sujeito é sua própria sujeição ao Outro, uma
sujeição que precede consciência, identidade e liberdade. Não com-
pete ao sujeito decidir colocar-se nessa posição. Seu ser é posto em
questão pela existência prévia do Outro. Sujeitos são constituídos
por sua relação com o Outro, uma relação de interdependência radi-
cal. Assim, na forma radical de Levinas repensar a ética e a responsa-
bilidade, há uma responsabilidade inescapável que é anterior à pró-
pria consciência do Eu e à sua capacidade de comunicação
(idem:103).

Nesse contexto, a ética não é mais independente da subjetividade,


como se fosse um conjunto de regras e regulamentos adotados por
um agente pré-dado, autônomo; ela se torna indispensável ao próprio

418 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005


Além do Ocidente, além do Estado e muito
além da Moral: Por uma Política Eticamente...

ser do sujeito. Dispensando a subjetividade idealizadora da ontolo-


gia, que reduz tudo a si, a subjetividade ética é descentrada e se torna
um efeito da responsabilidade pelo Outro. A ética é então compreen-
dida em termos da responsabilidade primária que firma nosso ser so-
bre a afirmação de nosso direito de ser em relação ao Outro (Levinas
apud Campbell, 1994:460). O homem não pode ser autonomamente
livre até que assuma sua responsabilidade por outro homem. Parado-
xalmente, é qua alienus – estrangeiro e outro – que o homem não é
alienado. Nesse sentido, não é possível que o Eu opte por não fazer
parte de uma relação com o Outro, dizendo “não me diz respeito”. A
responsabilidade pelo Outro é uma “não-escolha” singular.

Em segundo lugar, deve ficar claro que nossa proposta de apreciação


da diferença e da alteridade não implica uma aceitação imediata e
acrítica da diferença simplesmente enquanto diferença. Esta deve
passar pelo crivo da consideração de suas práticas em relação ao Ou-
tro vis-à-vis a responsabilidade ética. Assim como é mister combater
o fundamentalismo universalista que nega a alteridade e se dedica a
converter tudo mais em mesmice, opomo-nos abertamente à absolu-
tização da diferença, isto é, à idéia de que todas as diferenças são boas
e dignas de preservação simplesmente por serem diferenças. O res-
peito pela diferença nada tem a ver com indiferença, com
não-posicionamento, com não-questionamento (Bauman, 2003:74,
96). O respeito pela diferença não deve ser despolitizado, muito pelo
contrário. O conflito e a contestação são aspectos inerentes à ativida-
de política. O que não deve fazer parte dela são as formas violentas de
conflito e contestação. É necessário que a diferença seja abertamente
politizada, para que não incorramos no risco do totalitarismo. Assu-
mir um ethos crítico significa não se deixar levar pela balela de que o
respeito se dá na ausência de relações de poder, inescapáveis a todas
as práticas sociais.

Em face das questões levantadas até então, a pergunta a ser formula-


da é: como um sujeito pode realizar suas práticas de au-

419
Ana Cristina Araújo Alves

to-representação sem impor ao Outro uma condição de inferiorida-


de? É a qualidade de inferioridade do Outro inerente à hierarquiza-
ção logocêntrica6 entre Eu e Outro que permite rotulá-lo, reduzi-lo
ao “outro-como-objeto”, a um status de coisa, constituindo uma rela-
ção Eu-Isso em detrimento de uma relação Eu-Tu7 (Levinas, 1999.
Ver também Warner, 1996). Desumanizar o outro é o que sustenta
discursos e práticas de exclusão e aniquilação. E, estritamente relaci-
onada à qualidade da relação Eu/Outro, coloca-se a questão da res-
ponsabilidade ética: que tipos de relação entre identidade (Eu) e dife-
rença (Outro) cumprem a promessa radical da responsabilidade éti-
ca?

O desafio é, portanto, escolher estratégias políticas que contestem re-


lações Eu-Isso em termos da responsabilidade pré-original que essas
relações diminuem. Segundo Campbell (1994), o modo como a rela-
ção pré-original de Levinas pode ser transposta para um contexto de
uma-a-muitos sem perder seu caráter de interdependência radical é
viabilizado pela intervenção da responsabilidade heterônoma nos ar-
gumentos sobre liberdade autônoma. Para Campbell, essa possibili-
dade pode ser pensada por meio de Derrida (apud Campbell,
1994:468): “A desconstrução é, em si, uma resposta positiva a uma
alteridade que necessariamente a chama, coloca em questão ou moti-
va. A desconstrução é portanto uma vocação – uma resposta a um
chamado”.

Sobre as Modalidades de
Violência e a
Responsabilidade que Elas
Requerem

A resolução de conflitos, em primeiro lugar, depende da classifica-


ção do problema, do que se trata aquilo com o que estamos querendo
lidar. Diferentes tipos de violência demandam diferentes respostas e
medidas por parte de diferentes agentes responsáveis. Essa seara evi-

420 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005


Além do Ocidente, além do Estado e muito
além da Moral: Por uma Política Eticamente...

dencia um dos pontos discutidos acima: a relação entre prática políti-


ca e teoria – ou melhor, o caráter inerentemente prático da teoria.
Consoante Steve Smith (1996), nossa racionalização do internacio-
nal é em si constitutiva da prática internacional. A teoria internacio-
nal é a base de edificação da prática internacional, não obstante o
grande hiato entre as questões levantadas pela teoria e a absorção
gradual dessas questões no debate político. Uma vez estabelecidas
como senso comum, as teorias tornam-se incrivelmente poderosas,
posto que delineiam não apenas o que pode ser conhecido, mas tam-
bém o que pode ser falado e sugerido. Em outras palavras, a teoria
não se limita a definir as possibilidades explicativas. Seu impacto na
prática é muito mais profundo, pois ao delimitar nossos horizontes
éticos e práticos as teorias nos informam sobre as possibilidades de
ação humana (idem:13). Assim, ao divorciar ética de política, a teoria
promove uma compreensão das práticas internacionais pautada em
uma “razão” isenta de preocupações morais e éticas (Smith,
1995:2-3).

Nesse sentido, expor o caráter contestável dos pressupostos ontoló-


gicos embutidos nas representações sobre o conflito e o genocídio
ruandês é muito mais do que um mero exercício teórico: é uma refle-
xão e incursão sobre a prática. Esta seção versa sobre as implicações
práticas da caracterização ou nomenclatura conferida à violência em
Ruanda – isto é, as práticas discursivas de “guerra civil” e/ou “geno-
cídio”. Essa classificação diz respeito não somente à ontologia da vi-
olência, mas principalmente ao direcionamento de sua solução. Por-
tanto, essa discussão visa a evidenciar como a compreensão sobre o
conflito ruandês nos termos do princípio do Estado-territorial-sobe-
rano delineia não apenas o que pode ser conhecido, mas também o
que pode ser falado e sugerido. Destarte, o fio condutor desta seção é
o argumento de que toda interpretação traz em si imperativos políti-
cos, ou seja, as representações de um dado evento sugerem e delimi-
tam as ações possíveis em resposta a ele.

421
Ana Cristina Araújo Alves

Conflitos – armados ou não – são parcialmente baseados em funda-


ções intelectuais ou mapas mentais da história. Segundo Catharine
Newbury (1998), que escreve sobre a região dos Grandes Lagos, es-
sas fundações ou mapas geram visões distintas e concorrentes do
passado, adotadas pelas partes para legitimar suas demandas. É o que
a autora chama de “política da história” (idem:7). Similarmente, Jean
Vansina (1998) afirma que as versões “históricas” dos conflitos exer-
cem um impacto imediato na situação presente, posto que as partes
envolvidas citam essas versões para sustentar suas posições. Elas
usam porções da historiografia escrita por autores respeitados para
derivar novas interpretações de fatos supostamente
bem-estabelecidos, reforçando mitos políticos ubíquos e justifican-
do assim suas ações (idem:37, 39). Não obstante as intenções de seus
autores, as narrativas históricas podem ser alimentadoras dos confli-
tos, sendo portanto constitutivas da realidade.

No que concerne à sociedade ruandesa, é ampla a literatura sobre


como as histórias e mitos sobre a cultura e o povo ruandês moldaram
as relações que constituíram as identidades tutsis e hútus, refugiados,
rebeldes e governo, liberais e conservadores em Ruanda (ver New-
bury, 1998; Newbury, 1997; Vansina, 1998; Malkki, 1995). No en-
tanto, a forma como a cultura constitui as identidades dos atores é
freqüentemente negligenciada quando se trata da temática da inter-
venção, especialmente da intervenção humanitária. Via de regra, o
interventor é apresentado como uma presença acabada, uma identi-
dade estável e que, por estes predicados, é habilitado a prescrever e
implementar medidas destinadas a reordenar um conjunto complexo
de relações sociais e políticas. Supõe-se que o interventor possa ser
neutro, apolítico e possuir um conhecimento objetivo da situação.

Contudo, também os interventores têm uma perspectiva, contingente


no tempo e no espaço, que diz respeito ao que existe, ao seu status em
relação ao que existe, e às formas de ação que esse status requer e per-
mite. É esse ponto de vista subjetivo que define como, quando e por

422 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005


Além do Ocidente, além do Estado e muito
além da Moral: Por uma Política Eticamente...

que atores que se intitulam “externos” podem e/ou devem intervir no


que eles compreendem ser essencialmente “um problema domésti-
co”. Nesse sentido, o discurso cantado em prosa e verso sobre os
princípios de neutralidade, imparcialidade e consenso não nos deve
deixar a impressão de que interventores descansam sobre um ponto
arquimediano a partir do qual é possível aferir “a” verdade. É preciso
então pensar a relação entre ruandeses e atores externos como sendo,
entre outras, uma relação de poder entre atores que existem indepen-
dentemente, mas que têm suas identidades reproduzidas no curso de
sua interação.

Portanto, é necessário considerar as histórias sobre Ruanda como


parte do conhecimento socialmente compartilhado entre ruandeses e
interventores e, nesse sentido, como algo que exerce uma influência
sobre as práticas desses atores – em relação ao outro e a eles mesmos.
Assim, os mapas mentais sobre Ruanda que informaram as práticas
de ruandeses e atores externos foram determinantes para o desfecho
do conflito e do genocídio ruandês. As suposições ontológicas a res-
peito do povo e da política em Ruanda fundamentaram a compreen-
são intersubjetiva sobre o caráter do conflito, que por sua vez influen-
ciou a compreensão da ONU sobre sua identidade e seu papel em re-
lação aos ruandeses. Esse conjunto de concepções, juntamente com
os critérios da ONU sobre intervenção e peacekeeping, excluiu auto-
maticamente representações alternativas do evento e limitou o leque
de ações cabíveis.

Definir a violência ruandesa como um caso de guerra civil, limpeza


étnica ou genocídio diz respeito não somente às medidas apropriadas
para sua solução, mas envolve também a questão da responsabilida-
de e da urgência para a ação. Uma das versões correntes sobre o tema
afirma que os Estados Unidos e as Nações Unidas teriam deliberada-
mente se recusado a admitir que um genocídio estivesse em marcha,
a fim de evitar responsabilidades e custos – humanos e materiais
(Des Forges, 1999; Des Forges e Kuperman, 2000; Uvin,

423
Ana Cristina Araújo Alves

2001:88-90). Sem negar essa possibilidade, acreditamos que a reso-


lução 912 do Conselho de Segurança da ONU, de 21 de abril de 1994,
vai muito além de um caso em que se teria optado por definir a situa-
ção ruandesa da forma mais conveniente. A questão diz respeito tam-
bém, e principalmente, à estrutura poder-saber dominante (Foucault,
2004) e ao regime de verdade que ela constitui. A questão passa a ser
então até que ponto os tomadores de decisão e oficiais da ONU real-
mente acreditavam na lisura e legitimidade do que estavam fazendo.
Devemos considerar o quanto as suposições ontológicas atribuídas a
Ruanda estão arraigadas no pensamento das partes envolvidas (ex-
ternas e domésticas) de forma a inibir outras representações.

A forma como a história do genocídio de 1994 foi reproduzida influ-


enciou grandemente as respostas dadas ao evento pelos atores envol-
vidos (domésticos e externos). A concepção divulgada pelo governo
interino ruandês, propalada por grande parte da mídia internacional e
aceita pelas Nações Unidas era de que a violência em Ruanda era
8
uma guerra civil decorrente de “ódios étnicos primordiais” . “Por
mais trágico que fosse, havia muito pouco que a comunidade interna-
cional pudesse fazer quando grupos étnicos estavam determinados a
matar um ao outro” (Barnett, 2002:105). Em face desse cenário, e
orientadas pelos “princípios” de neutralidade, imparcialidade e con-
senso, as autoridades internacionais optaram por reduzir a Unamir
em vez de reforçá-la, e centenas de milhares de vidas foram perdidas.

Durante os três anos que precederam o genocídio, Ruanda foi vista


como um caso de guerra civil de baixíssima intensidade, mitigada e
remediada por esforços significativos (Jones, 2001:2-3). Poucos dias
o
após a invasão da FPR em 1 de outubro de 1990, o governo belga en-
viou a Ruanda uma missão de paz composta pelo primeiro-ministro,
o ministro das Relações Exteriores e o ministro da Defesa. O trio en-
controu-se com o presidente Habyarimana em Nairobi, em 14 de ou-
tubro. A comitiva belga fez visitas ao Quênia, Uganda, Tanzânia e
Organização da Unidade Africana (OUA), dando início a um proces-

424 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005


Além do Ocidente, além do Estado e muito
além da Moral: Por uma Política Eticamente...

so regional para lidar com a crise ruandesa. Em junho de 1992, o go-


verno ruandês concordou em iniciar negociações políticas abrangen-
tes rumo a um acordo de paz. Os acordos de Arusha foram assinados
9
pelo governo ruandês e pela FPR em 4 de agosto de 1993 . Nas pala-
vras de Jones (idem:2):

“A extraordinária ironia é que essa matança escalou a partir de uma


guerra civil tão baixa em intensidade que ela escapou ao radar do mo-
nitoramento internacional de conflitos. [...] Aliás, o número de mor-
tes na guerra era tão baixo que o Stockholm International Peace Re-
search Institute categorizava a luta como ‘disputa’”10.

No papel, a Declaração de Arusha resolvia as mais importantes ques-


tões subjacentes ao conflito, tais como o direito dos refugiados de re-
tornar a Ruanda e a integração das Forças Armadas. Parte da Decla-
ração era um programa de implementação que previa o desdobra
11
mento da Unamir , o estabelecimento do governo de transição e elei-
ções multipartidárias a se realizarem no máximo até 1995 (Jones,
1995:242-243). Em suma, Ruanda foi apresentada à ONU como uma
operação “fácil”: havia um cessar-fogo estável, um tratado de paz
apoiado pelas partes, acordos que prometiam reconciliação nacional,
democracia e a promessa de fazer dos ódios étnicos um legado do
passado (Barnett, 2002:69; Jones, 2001:109).

A Unamir foi instituída em resposta à demanda das partes contratan-


tes da Declaração de Arusha por uma Força Neutra Internacional
(FNI) que tivesse um papel ativo na implementação e monitoramento
dos acordos. Os proponentes de Arusha esperavam que a FNI garan-
tisse a segurança geral no país, provesse segurança para os civis, de-
tectasse fluxos de armas e neutralizasse grupos armados (Barnett,
2002:62). Por sua vez, a Unamir refletia um mandato extremamente
restrito, dentro do capítulo VI da Carta da ONU, com o uso de armas
autorizado apenas para a autodefesa, mas que ainda assim fazia senti-
do adiante da expectativa de que “seria uma operação fácil”. A reso-

425
Ana Cristina Araújo Alves

lução 872 adotada pelo Conselho de Segurança da ONU em 5 de ou-


tubro de 1993 estabelecia a Unamir conforme o seguinte mandato
(United Nations, 1993, 3o parágrafo):

“(a)contribuir para a segurança da cidade de Kigali inter alia dentro da zona


livre de armas estabelecida pelas partes em torno da cidade;
(b) monitorar a observação do acordo de cessar-fogo, que demanda o esta-
belecimento de zonas de aquartelamento e reunião e a demarcação da
nova zona desmilitarizada e outros procedimentos de desmilitarização;
(c) monitorar a situação de segurança durante o período final do mandato
do governo de transição, rumo às eleições;
(d) assistir na limpeza de minas, primariamente mediante programas de ca-
pacitação;
(e) investigar, por demanda das partes ou por iniciativa própria, casos de
suposta não-observação das provisões do Acordo de Paz de Arusha re-
lativos à integração das Forças Armadas, verificar quaisquer desses ca-
sos com as partes responsáveis e relatá-los como apropriado ao secretá-
rio-geral;
(f) monitorar o processo de repatriação dos refugiados ruandeses e o reas-
sentamento de pessoas deslocadas para verificar se o processo está sen-
do implementado de maneira segura e ordenada;
(g) assistir na coordenação de atividades de ajuda humanitária juntamente
com operações de socorro;
(h) investigar e relatar incidentes concernentes a atividades de gendarme-
rie e polícia”.

Contrariamente às expectativas internacionais, houve uma contínua


deterioração da situação política e de segurança em Ruanda desde a
assinatura dos acordos de Arusha. Em retrospecto, vários autores sa-
lientam a polarização da política ruandesa, a demonização da FPR e
o repúdio a Arusha como sendo as dinâmicas que pavimentaram o
caminho para o genocídio ruandês (Jones, 2001:103, 111-113; Bar-
nett, 2002:74-77; Mamdani, 2001:215-218; Hintjens,
1999:259-267; Lemarchand, 1999:20-21). Em 30 de março de 1994,
o contexto doméstico ruandês era descrito por Boutros Bou-
tros-Ghali da seguinte forma:

426 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005


Além do Ocidente, além do Estado e muito
além da Moral: Por uma Política Eticamente...

“Apesar do fato de o governo ruandês e a Frente Patriótica Ruandesa (FPR)


haverem concordado em Kinihira em 10 de dezembro de 1993 em estabele-
cer o governo de transição e a Assembléia Nacional de Transição antes de 31
de dezembro, isso não ocorreu como resultado da incapacidade das partes
em questão de concordar sobre modalidades relevantes, incluindo as listas
dos membros do governo de transição e da Assembléia Nacional de Transi-
ção. [...] O prolongado atraso em estabelecer as instituições de transição tem
não apenas impedido a Unamir de realizar suas tarefas de acordo com a
agenda de implementação aprovada pelo Conselho de Segurança, como
também contribuído para a deterioração da situação de segurança no país e
colocado uma ameaça ao processo de paz” (United Nations, 1994a, pará-
grafos 6-9).

Segundo o secretário-geral, o estabelecimento das instituições de


transição agendado para 22 de fevereiro de 1994 não foi realizado
“como resultado de um estouro repentino de violência em Kigali e
em outras regiões do país, começando em 21 de fevereiro” (idem, pa-
12
rágrafo 13, ênfase no original) . O relatório continua da seguinte
forma:

“Apesar das crescentes tensões e insegurança engendradas pelo impasse po-


lítico descrito acima, o cessar-fogo, em termos gerais, pareceu vigorar du-
rante o período sob revisão. [...] Devido em parte ao continuado impasse po-
lítico, o período sob revisão tem visto uma deterioração rápida e dramática
na situação de segurança em Kigali. Em janeiro e fevereiro, foram vistas
crescentes demonstrações de violência, bloqueios rodoviários, assassinatos
de líderes políticos, assaltos e assassinatos de civis [...]. Enquanto a maior
parte dos incidentes pode ser atribuída a roubos e à violência armada, que
têm crescido como um resultado da pronta disponibilidade de armas, crimes
de motivação étnica e política, incluindo assassinatos políticos, também
têm aumentado” (idem, parágrafos 23-36).

As passagens acima retratam a violência como um caso de desordem


civil, sendo sua causa atribuída ao impasse político decorrente do
atraso em estabelecer as instituições de transição. A solução prescri-
ta pelo secretário-geral, e corroborada pelo Conselho de Segurança
na resolução 909 de 5 de abril de 1994, era o retorno às metas de im-

427
Ana Cristina Araújo Alves

plementação de Arusha, como garantia da permanência da Unamir


em território ruandês.
“Como eu [Boutros Boutros-Ghali] tenho declarado, o apoio contínuo da
Unamir depende da plena e rápida implementação do acordo de paz de
Arusha pelas partes. A presença das Nações Unidas pode ser justificada
apenas se as partes mostrarem a vontade política necessária para se subme-
terem a seus compromissos e implementarem o acordo” (idem, parágrafo
47).

“[O Conselho de Segurança] decide estender o mandato da Unamir até 29


de julho de 1994 [...] [e] relembra no entanto que o contínuo apoio para a
Unamir, incluindo a provisão de 45 monitores adicionais da polícia civil,
como descrito no parágrafo 38 do relatório do secretário-geral, dependerá
da plena e pronta implementação do Acordo de Paz de Arusha pelas partes”
(United Nations, 1994b, parágrafos 2 e 5).

Em 5 de abril, o Conselho de Segurança contemplava uma Ruanda


que passava por problemas, mas ainda parecia estar comprometida
com o processo de paz, respeitadora do cessar-fogo e fazendo algum
progresso em direção à implementação de um governo de transição.
Em 7 de abril, o retrato de Ruanda havia sido invertido. Sabemos em
retrospecto que concomitantemente à guerra civil ocorria uma carni-
ficina dantesca que mais tarde veio a ser oficialmente chamada de
13
“genocídio” .

O genocídio estava longe de ser a única leitura possível dos eventos


iniciados em meados de abril de 1994; aliás, era a menos cogitada de-
las. Vários autores insistem que a questão crítica no que concerne a
Ruanda foi o fracasso da comunidade internacional em distinguir en-
tre a guerra civil e o genocídio e que, nesse sentido, o ponto crucial é
se teria sido possível prever o planejamento do genocídio (Khan,
2000:196-197; Hintjens, 1999; Des Forges e Kuperman, 2000; Des
Forges, 1999). Contudo, mesmo que ambíguos, alguns sinais não po-
deriam ter sido ignorados, tais como os faxes e telefonemas do gene-
ral Romeo Dallaire (principalmente o controverso fax de 11 de janei-
ro), a descoberta de depósitos de armas; os relatórios dos informan-

428 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005


Além do Ocidente, além do Estado e muito
além da Moral: Por uma Política Eticamente...

tes, as transmissões de rádio e os avisos belgas, culminando na retira-


da das tropas belgas em 12 de abril. Segundo Barnett (2002), mesmo
que o fax de 11 de janeiro deixasse inúmeras dúvidas quanto à proba-
bilidade e a natureza da violência que se seguiria, os dois telefone-
mas diários de Dallaire ao Departamento de Operações de Peacekee-
ping (DPKO) proviam uma descrição meticulosa e detalhada da vio-
lência. Esses comunicados caracterizavam a violência como limpeza
étnica “em sua forma mais sinistra” (idem:109, 160).

A Bélgica foi o único membro do grupo de contato que decidiu que as


novas informações contidas no fax de 11 de janeiro e a crescente in-
segurança requeriam uma presença militar mais forte (idem:89). Em
11 de fevereiro, o ministro do Exterior belga avisou ao secretá-
rio-geral da ONU que a situação em Ruanda passava por um impasse
e poderia resultar em nova violência (Jones, 2001:114). A Bélgica,
que já vinha pedindo um contingente maior havia alguns meses, rea-
giu à morte de Habyarimana e às primeiras mortes civis pedindo re-
forços. Em 8 de abril, um dia depois de saber que havia perdido dez
soldados, o gabinete belga decidiu que retiraria seu contingente se o
mandato da Unamir não fosse aumentado e reforçado por tropas não
belgas. Não sendo atendida, a Bélgica notificou formalmente o se-
cretário-geral sobre a retirada de suas tropas em 12 de abril (Barnett,
2002:104).

Os sinais eram poucos e chegaram tarde, no começo de 1994, mas


ainda assim não deixavam de ser perturbadores. É consenso entre al-
guns analistas que esses sinais, por si sós, e sem o privilégio da clari-
vidência, não eram indícios contundentes de genocídio (ver Kuper-
man, 2000:102-103; Uvin, 2001:89; Jones, 2001:114-115; e Barnett,
2002:80-82). Contudo, apesar de não se sustentarem como um aviso
claro de um evento futuro, eles certamente sublinharam um crescente
risco ao acordo de paz bem como à Unamir. A possibilidade de rea-
ção contra Arusha, mesmo em uma escala menor do que a ocorrida,
já era razão suficiente para preparar planos de contingência e reforçar

429
Ana Cristina Araújo Alves

a missão (Jones, 2001:114-115). Afinal, não havia cessar-fogo; o


processo de paz estava em frangalhos; dez peacekeepers haviam sido
brutalmente assassinados e todo um contingente se encontrava em
perigo imediato; e políticos e civis estavam sendo mortos em Kigali e
14
redondezas (Barnett, 2002:99) .

A Unamir havia sido estabelecida para supervisionar os acordos de


Arusha e monitorar o cessar-fogo. Posto que não havia cessar-fogo, o
mandato da Unamir estava tecnicamente terminado. Cabia ao Con-
selho de Segurança considerar qual seria a nova raison d’être da mis-
são, e a resposta a essa questão dependia de como Ruanda seria defi-
nida. A forma como os burocratas da ONU interpretaram e descreve-
ram a violência em Ruanda trouxe em si não apenas suposições que
condicionaram a avaliação daquela realidade, indicando “o que”
aquilo era, como também as medidas específicas que derivavam des-
se entendimento. O diagnóstico da situação ruandesa, por sua vez,
dependeu das concepções prévias da ONU sobre a história, o povo e
o conflito ruandês, e a prescrição para esse caso foi influenciada ain-
da pelo entendimento da ONU de seu próprio papel.

Era fato que a FPR e o governo haviam retomado a guerra. Mas a ten-
dência em categorizar automática e exclusivamente toda a violência
como guerra civil derivava da uma compreensão anterior sobre a na-
tureza do conflito ruandês e sobre a contribuição da ONU para sua re-
solução (idem:102-103). Entendia-se que a violência estava relacio-
nada ao impasse no processo de transição, o que poderia causar um
retorno à guerra civil. Os relatórios do secretário-geral descreviam
uma situação em Ruanda em que a dimensão étnica do conflito apa-
recia subordinada ao processo político, e por isso uma solução políti-
ca (no sentido de não militar) para o conflito ruandês era supervalori-
zada. Assim, Ruanda era vista como sendo ao mesmo tempo uma
“guerra civil”, um “conflito étnico” e um “Estado fracassado” (Hil-
len, 2000:179), o que parecia evocar naturalmente as idéias de “pea-
cekeeping” e “consenso” (Barnett, 2002:102-103). A partir dessa

430 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005


Além do Ocidente, além do Estado e muito
além da Moral: Por uma Política Eticamente...

compreensão, o secretário-geral ofereceu, em 20 de abril de 1994,


três alternativas quanto ao futuro da missão:
“A primeira alternativa é baseada na conclusão, descrita acima, de que não
existe nenhuma perspectiva realista de que as duas forças opostas concor-
dem com um cessar-fogo efetivo no futuro imediato. Sem um cessar-fogo, o
combate entre elas continuará, assim como a anomia e os massacres de ci-
vis. Essa situação só poderia ser mudada por um reforço imediato e em mas-
sa da Unamir e uma mudança em seu mandato de forma a equipá-la e autori-
zá-la a coagir as forças opostas a um cessar-fogo, e a tentar restaurar a lei e a
ordem, colocando um fim às matanças. [...] [N]a segunda alternativa [...] um
pequeno grupo liderado pelo comandante da Força, com a equipe necessá-
ria, permaneceria em Kigali para agir como intermediário entre as duas par-
tes na tentativa de trazê-las a um acordo sobre um cessar-fogo, sendo esse
esforço mantido por um período superior a duas semanas, como o Conselho
de Segurança preferir. [...] Essa equipe requereria o apoio de uma compa-
nhia de infantaria para prover segurança, bem como um número de observa-
dores militares para monitorar a situação, além de uma equipe civil, sendo o
total estimado em 270 [pessoas]. O restante do pessoal da Unamir seria reti-
rado, mas a Unamir, como uma missão, continuaria a existir. O representan-
te especial, com uma pequena equipe, continuaria seus esforços como inter-
mediário nas negociações políticas, com o objetivo de trazer os dois lados de
volta ao processo de paz de Arusha. [...] A terceira alternativa, à qual eu não
sou favorável, seria a retirada completa da Unamir (United Nations, 1994c,
parágrafos 13-19).

“O inferno discursivo da guerra civil consumia o oxigênio para todas


as outras possibilidades” (Barnett, 2002:103). Uma vez que a equipe
da ONU havia categorizado o conflito em Ruanda como uma guerra
civil, o leque de respostas foi restrito às alternativas baseadas no con-
senso. O argumento de que os acontecimentos em Ruanda eram uma
guerra civil reforçava a crença de que a única função da ONU sob es-
sas circunstâncias era tentar negociar um cessar-fogo. Assim, em 21
de abril de 1994, o Conselho de Segurança decidiu que:
“Profundamente preocupado com a contínua luta, roubos, criminalidade e a
queda da lei e da ordem, particularmente em Kigali, [...] [o Conselho de Se-
gurança das Nações Unidas] demanda o cessar imediato das hostilidades
entre as forças do governo de Ruanda e a Frente Patriótica Ruandesa e o fim

431
Ana Cristina Araújo Alves

da violência sem sentido e da carnificina que açambarcam Ruanda; [...] [e]


decide à luz da situação atual em Ruanda ajustar o mandato da Unamir da
seguinte forma: para (a) agir como um intermediário entre as partes na ten-
tativa de assegurar um acordo de cessar-fogo; (b) assistir na continuação das
operações de assistência humanitária, na medida do possível; e (c) monito-
rar e relatar os desenvolvimentos em Ruanda, incluindo a segurança dos ci-
vis que buscam refúgio na Unamir” (United Nations, 1994d:2-3).

Esta decisão é motivo de controvérsia no que diz respeito à avaliação


da responsabilidade da ONU em relação ao genocídio ruandês. Por
um lado, existem autores como Alan Kuperman (2000), que afirmam
que os Estados Unidos e a ONU não poderiam ter sabido que um ge-
nocídio estava em marcha pelo menos até 20 de abril de 1994. Além
disso, mesmo que a hipótese de genocídio fosse confirmada nessa
data, o envio imediato de reforços militares seria inviável. Segundo o
autor, uma “intervenção máxima” (uma divisão de 13.500 soldados e
27 mil toneladas de equipamentos, veículos, armamentos, provisões)
teria levado pelo menos quarenta dias para ser desdobrada em Ruan-
da, e teria salvado cerca de 125 mil tutsis. Já uma “intervenção míni-
ma” (uma brigada aérea composta por 2.500 soldados e 4.500 tonela-
das de equipamentos, veículos, armamentos e provisões) teria levado
quatorze dias para chegar a Ruanda e teria salvado aproximadamente
75 mil tutsis (idem:105-106). Ou seja, uma intervenção militar (má-
xima ou mínima) não teria evitado o genocídio.

Por outro lado, autores como Des Forges (em Des Forges e Kuper-
man, 2000) sustentam que a administração Clinton tomou conheci-
mento do genocídio em 8 (e não 20) de abril, por meio de um relatório
do Departamento de Estado, cujas informações haviam sido obtidas
pelo pessoal da embaixada americana em Ruanda, bem como de
franceses e belgas. Além disso, Des Forges (idem:141) afirma que,
durante as cruciais primeiras semanas, a ONU, sob pressão nor-
te-americana, teria ordenado que os mais de 2 mil peacekeepers em
Ruanda não fizessem nada para deter a matança. Segundo a autora,

432 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005


Além do Ocidente, além do Estado e muito
além da Moral: Por uma Política Eticamente...

os peacekeepers da ONU e a força de evacuação poderiam ter detido


as matanças se tivessem agido prontamente.

De acordo com Barnett (2002), a avaliação da responsabilidade da


ONU em relação ao genocídio só pode ser feita a partir da reconstru-
ção do universo moral que influenciou e legitimou a decisão da Orga-
nização naquele momento particular. Para o autor, a centralidade e
distinção desse universo moral são freqüentemente ignoradas, por
uma simples razão: os autores de muitas das mais populares versões
sobre o genocídio permitem que o genocídio governe sua leitura do
passado. Isto é, muitas pesquisas transferem seus próprios parâme-
tros morais, sensibilidades, compromissos e categorias para um mo-
mento histórico radicalmente diferente, resultando em uma leitura
radicalmente a-histórica do passado (idem:5).

A reconstrução desse universo moral requer o reconhecimento da


consangüinidade entre o normativo e o empírico: a responsabilidade
moral depende da responsabilidade causal. É injusto responsabilizar
alguém moralmente por um resultado sobre o qual não se teve con-
trole (idem:17). Assim, Barnett insiste que a avaliação da responsabi-
lidade da ONU depende da compreensão que se tem do envolvimen-
to dela em Ruanda e dos parâmetros morais empregados, ou seja, da
consideração (1) da forma como a ONU interpretou a situação ruan-
desa, (2) do contexto de responsabilidades múltiplas e concorrentes e
(3) do critério para julgar entre elas.

Dessa forma, Barnett afirma que a decisão do Conselho de Seguran-


ça pode ser razoavelmente defendida na medida em que a violência
em Ruanda foi compreendida como uma guerra civil e como “o últi-
mo e mais sangrento episódio de um ciclo secular de violência étni-
ca” (idem:130). Segundo o autor, a ONU falhou em detectar que a vi-
olência em Ruanda era mais do que uma guerra civil por dois moti-
vos: (1) carência de conhecimento específico sobre a cultura e a polí-
tica ruandesa e (2) a influência da cultura burocrática da ONU sobre a

433
Ana Cristina Araújo Alves

percepção de mundo de seus agentes. Barnett (idem:58-59) afirma


que os formuladores de política da ONU não possuíam uma compre-
ensão antropológica ou um conhecimento histórico sobre Ruanda
(Jones, 2001:116). Aqueles enviados ao campo foram selecionados
por sua disponibilidade, não por seu conhecimento sobre o conflito.
Além disso, o autor argumenta que a escassez de tempo produziu
uma abordagem altamente instrumental da informação:
“Que o conflito ruandês era enraizado em políticas étnicas era importante
saber. Os detalhes concernentes à sua natureza socialmente construída eram
irrelevantes. Era claramente relevante que as partes haviam assinado um tra-
tado de paz para pôr fim a seu conflito. A ‘cultura da violência’ que os ana-
listas têm agora exumado raramente fazia parte da conversação porque não
podia ser traduzida imediatamente em conhecimento usável. Saber algo so-
bre o terreno político, particularmente como a liberalização e democratiza-
ção haviam produzido uma competição entre os novos partidos políticos,
era importante. Mas não havia lugar para uma compreensão detalhada dos
atores políticos e das frouxas alianças nos resumos de duas páginas que
eram dados aos oficiais de alto escalão. A presença de partidos radicais que
abominavam a idéia de dividir o poder era relevante, mas não alarmante. To-
dos os compromissos políticos geram oponentes, inclusive extremistas. Sa-
ber exatamente quem eram os extremistas em Ruanda era relevante, mas o
que importava era que o governo e a FPR pareciam estar comprometidos
com o acordo” (Barnett, 2002:59).

Temos de convir que, mesmo que os oficiais do Departamento de


Operações de Peacekeeping (DPKO) não fossem antropólogos e/ou
historiadores, a questão a ser colocada não é “o que eles não sabiam”,
mas o que eles poderiam ter sabido. Essa falha decorre não de suas
formações acadêmicas, mas da falta de sensibilidade dentro das Na-
ções Unidas em relação à cultura política e à história ruandesa e prin-
cipalmente às falhas de comunicação na transferência de responsabi-
lidade da OUA para a ONU. Por mais que a equipe central do DPKO
não dispusesse de conhecimento regional específico, este certamente
existia. Ao assumirem a direção da pacificação ruandesa, as Nações
Unidas deliberadamente afastaram dois atores de maior envolvimen-
to, conhecimento e análise política sobre Ruanda e Arusha, a saber,

434 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005


Além do Ocidente, além do Estado e muito
além da Moral: Por uma Política Eticamente...

15
OUA e Tanzânia . Não aproveitar essas fontes de conhecimento
contribuiu para piorar a situação em solo ruandês. Certamente, todos
esses problemas, somados ao interesse limitado no conflito ruandês
por parte das grandes potências e à ausência de planos de contingên-
cia, reforçaram-se mutuamente.

Além disso, a ONU teria falhado em detectar o aspecto étnico da vio-


lência em Ruanda devido à sua cultura organizacional. Barnett
(2002) argumenta que a forma como as organizações categorizam o
mundo tem um impacto profundo sobre como os formuladores de
políticas vêem esse mundo. As categorias burocráticas fazem muito
mais do que simplesmente separar informações relevantes; elas pro-
duzem uma perspectiva específica sobre Ruanda e definem parâme-
tros claros para a ação e julgamento entre responsabilidades concor-
rentes (idem:59-60). Assim, a cultura organizacional da ONU teria
sido um fator relevante ao prover significado para a violência em Ru-
anda, para o papel da organização em face dessa violência, e ao servir
como parâmetro de julgamento entre as responsabilidades concor-
rentes que constituíam o contexto da tomada de decisão. Contraria-
mente aos filósofos morais que, segundo o autor, estão preocupados
com deveres abstratos e normas ideais de aplicação universal, é a
existência de muitas morais que ajuda a definir as ações da ONU e
que, portanto, demanda nossa atenção (idem:xii). É nesse sentido
que a não-intervenção pode ser considerada como uma atitude ética
para Barnett.

Existe uma tendência instintiva em acreditar que o combate ao geno-


cídio e aos crimes contra a humanidade são mais importantes do que
todas as outras obrigações morais. Barnett argumenta que, antes de
aceitarmos isso que ele chama de fundamentalismo moral, precisa-
mos reconhecer que a ONU, como todas as instituições, assume em
um único momento um enorme número de responsabilidades e obri-
gações (idem:6). Cumprir um conjunto de responsabilidades pode le-
var a negligenciar outras, e é dessa forma que o autor vê que a inação

435
Ana Cristina Araújo Alves

pode ter uma base ética. Face às muitíssimas obrigações simultâneas


vis-à-vis uma capacidade de resposta restrita, a ONU apela a uma sé-
rie de regras e critérios para discernir sobre a viabilidade das opera-
ções e assim optar entre elas. Os critérios que determinam quando o
peacekeeping é a ferramenta certa para o trabalho e pode ser, portan-
to, autorizado são os seguintes:
“[...] se existe uma situação que pode colocar em perigo ou ameaçar a paz e a
segurança internacionais;
se há organizações ou mecanismos regionais ou sub-regionais com capaci-
dade para ajudar a resolver a situação;
se existe um cessar-fogo e se as partes estão comprometidas a iniciar um
processo de paz com o fim de chegar a um acordo político;
se existe um objetivo político claro e que pode ser expresso no mandato;
se é possível formular um mandato preciso para uma operação das Nações
Unidas; e
se é possível garantir razoavelmente a segurança do pessoal das Nações
Unidas e, sobretudo, se é possível obter das principais partes ou facções ga-
rantias razoáveis no que diz respeito ao pessoal das Nações Unidas” (United
Nations, 1994e:2).

Além disso, os peacekeepers em campo deveriam seguir os princípi-


os de neutralidade, imparcialidade e consenso (Barnett, 2002:10).
Barnett ainda salienta que a ONU tinha responsabilidades não ape-
nas em relação aos ruandeses, mas também em relação ao seu pessoal
em campo e à integridade da instituição, que poderia ser gravemente
abalada por outro fracasso como o da Somália. Segundo o autor, a
partir das supracitadas regras de peacekeeping, o Conselho de Segu-
rança concluiu que Ruanda era certamente um pesadelo humanitário,
mas não uma ameaça genuína à paz e segurança internacionais
(idem:102). Assim, a cultura da ONU poderia fazer da não-interven-
ção algo não somente pragmático, mas também legítimo e apropria-
do – mesmo em face de crimes contra a humanidade. Ainda que con-
frontado pelas chocantes escala e velocidade das matanças, a conclu-
são do Conselho foi de que havia pouca coisa que a ONU poderia ou
deveria fazer além de tentar negociar um cessar-fogo entre os comba-

436 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005


Além do Ocidente, além do Estado e muito
além da Moral: Por uma Política Eticamente...

tentes. Todas as demais alternativas eram inadequadas, tanto pela au-


sência de tropas disponíveis quanto pela inadequação do peacekee-
ping para aquelas circunstâncias.

Barnett argumenta que a moralidade da não-intervenção deriva das


regras que balizaram e legitimaram a decisão da ONU. O autor consi-
dera os critérios para autorização de operações de peacekeeping
como princípios morais para a ação e afirma que “o voto foi influen-
ciado por razões e regras que estavam conectadas a um propósito
mais alto e assim serviram para dar à decisão uma fundação ética”
(idem:127-128). A partir dessas colocações, pode-se aferir que Bar-
nett entende ética como um conjunto de regras e códigos morais ex-
terno a um sujeito autônomo e por ele aplicado na mediação de suas
relações como fonte de legitimidade para a ação. Essa lógica em que
o Eu precede a ética reflete a metafísica da subjetividade, ou seja, a
noção do “Homem” como fundamento essencial, soberano e univer-
sal para o conhecimento.

No entanto, o ethos crítico ubíquo neste artigo – expresso na rearticu-


lação radical entre ética, subjetividade e responsabilidade proposta
por Levinas (apud Campbell, 1994) –, que parte da própria afirmação
da vida, impele-nos a rechaçar a argumentação de Barnett. Esse ethos
insta uma figuração diferente da política, para a qual a principal preo-
cupação passa a ser a luta por – ou em nome da – alteridade. É por isso
que a metafísica da subjetividade deve ser rejeitada: porque a violên-
cia associada à soberania do Eu – e principalmente o desrespeito ao
Outro que ela requer – faz essa construção insuficientemente huma-
na. Rejeitamos então a concepção do sujeito autônomo e soberano
que fundamenta a proposição de Barnett e abraçamos a compreensão
de que o sujeito só se torna sujeito em uma situação necessariamente
relacional. Essa atitude envolve um duplo reconhecimento: (1) da in-
terdependência radical entre Eu e Outro e (2) de nossa responsabili-
dade inescapável pelo Outro.

437
Ana Cristina Araújo Alves

Destarte, afastamo-nos dos argumentos de liberdade autônoma – em


que a ontologia de um ser preocupado consigo mesmo pode levar ao
totalitarismo e à supressão da alteridade – a favor da responsabilida-
de heterônoma, uma responsabilidade inescapável que é anterior à
própria consciência do Eu (Levinas, 1999:103). “Uma responsabili-
dade anterior à deliberação, para a qual eu fui exposto, dedicado, an-
tes de ser dedicado a mim mesmo” (idem:105), conseqüência da “al-
teridade infra-estrutural”. Sendo a subjetividade compreendida
como uma derivação da relação de alteridade, ela não tem nenhuma
garantia anterior à responsabilidade inerente à relação com o Outro.
“Toda relação com o Outro é uma relação com um ser para com quem
eu tenho obrigações” (idem:101). De algo independente da subjetivi-
dade, isto é, de um conjunto de regras adotadas por um agente autô-
nomo, a ética é transformada em algo inerente e integral à subjetivi-
dade. Nesse sentido, não há circunstância em que se possa dizer “não
me diz respeito”. Assim, o argumento de que “Ruanda era certamen-
te um pesadelo humanitário, mas não uma ameaça genuína à paz e se-
gurança internacionais” (idem:102) não exime a ONU de responsa-
bilidade, mesmo em face de obrigações concorrentes. A responsabi-
lidade pré-original pode ser questionada, ofuscada, suprimida, mas
não apagada.

De fato, a responsabilidade pelo Outro é perturbada na relação


um-a-muitos, porque a “terceira parte é simultaneamente outro em
relação ao outro, e me faz um entre outros” (Levinas apud Campbell,
1994:464). A inevitável entrada da terceira parte coloca um dilema:
como comparar Outros – únicos e incomparáveis? Quem está mais
próximo de mim? Quem é o outro? Essas questões podem ser abor-
dadas se considerarmos que a responsabilidade ética não se contenta
só e simplesmente em evitar, conter, combater ou negar as formas
(muitas vezes violentas) de supressão da alteridade. A responsabili-
dade ética requer uma estratégia utópica. A “indecidibilidade”16 é
um pré-requisito para a responsabilidade. O indecidível, que é o pró-

438 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005


Além do Ocidente, além do Estado e muito
além da Moral: Por uma Política Eticamente...

prio contexto da decisão, não a impede e tampouco evita sua urgên-


cia. Se não houvesse decisões a serem tomadas, se todas as escolhas
fossem erradicadas pela pré-ordenação de um único caminho, a res-
ponsabilidade – a habilidade de responder a diferentes critérios e pre-
ocupações – seria ausente (Campbell, 1994:471).

Como declara Derrida (apud Campbell, 1994:473, ênfase no origi-


nal), “a condição de possibilidade dessa coisa chamada responsabili-
dade é uma certa experiência e experimento da possibilidade do im-
possível: o teste da aporia do qual se pode inventar a única invenção
17
possível, a invenção impossível” . Trata-se do confronto com a apo-
ria, um espaço político indecidível e sem fundamento, em que ne-
nhum caminho é “claro e dado”, em que “nenhum conhecimento se-
guro já preparou o caminho”, em que “nenhuma decisão já foi toma-
da”. Se não houvesse aporia, não haveria política, pois na ausência da
aporia toda decisão seria pré-ordenada, seria a implementação de um
programa. A responsabilidade parece consistir em acenar para dois
imperativos contraditórios – estar pré-obrigado a todo e cada Outro,
em meio a uma multidão de Outros. Deve-se, portanto, tentar inven-
tar novos gestos, discursos, práticas político-institucionais que ins-
crevam a aliança desses dois imperativos, dessas duas promessas. É
por isso que não podemos falar de um código moral universal para to-
dos os tempos e lugares: não é fácil imaginar em que tais invenções
consistiriam, mas não poderia ser de outra forma, pois “não há res-
ponsabilidade que não seja a experiência e o experimento do impos-
sível” (Derrida apud Campbell, 1994:476). Lançada como um em-
preendimento apolítico ou não político, marcado pelo compromisso
da organização com os princípios de neutralidade, imparcialidade e
consenso, a ONU opera identificando as causas dos problemas e sa-
nando-as. Ao pré-determinarem o curso da decisão e, conseqüente-
mente, acabarem com a aporia inerente à política, os critérios de au-
torização de operações de peacekeeping despolitizaram o voto de 21
de abril de 1994.

439
Ana Cristina Araújo Alves

Logo após este voto, os sinais de genocídio tornaram-se inconfundí-


veis e inegáveis, subvertendo o álibi para inação e rapidamente trans-
formando o que antes poderia ter sido prudência e autocontrole em
complacência e indiferença. À medida que o genocídio se alastrava
pelo país, a comunidade internacional falhava em distinguir entre a
responsabilidade moral de parar um crime deliberado e ficar neutra
em uma guerra civil (Khan, 2000:7). Mesmo que o termo “genocí-
dio” aparecesse com cada vez mais freqüência – e causasse cada vez
mais mal-estar – ao se falar dos eventos em Ruanda, a guerra civil
permanecia no centro e à frente de muitas discussões. Na visão do
Conselho de Segurança, a guerra civil havia sido responsável por cri-
ar as condições para o genocídio, e um cessar-fogo era requerido an-
tes que a Unamir II pudesse ser desdobrada (Barnett, 2002:142). Em
seu relatório do dia 13 de maio de 1994, o secretário-geral declarava:

“Será relembrado que a retomada do conflito civil que se seguiu aos eventos
trágicos de 6 de abril de 1994, e a decorrente violência e massacres, criaram
uma situação que colocou em questão a habilidade da Missão de Assistên-
cia das Nações Unidas para Ruanda (Unamir) de cumprir seu mandato sob a
resolução 872 (1993) do Conselho de Segurança de 5 de outubro de 1993.
[...] A situação em Ruanda permanece altamente instável e insegura, com
violência generalizada. O combate entre as forças do governo ruandês e a
Frente Patriótica Ruandesa (FPR) continua, apesar de tanto as forças do go-
verno quanto a FPR haverem separadamente expressado sua prontidão em
entrar em um cessar-fogo. [...] Milícias armadas e outros elementos desobe-
dientes continuam a operar, não obstante com menos freqüência do que no
começo do conflito, matando e aterrorizando civis inocentes. [...] Obvia-
mente, um acordo de cessar-fogo é o primeiro passo para o estabelecimento
de um ambiente estável e seguro no país, permitindo assim a prestação de
ajuda humanitária organizada, coordenada e segura e a reativação do pro-
cesso de paz de Arusha. Nas condições prevalecentes, contudo, é essencial
que as Nações Unidas considerem quais medidas podem ser tomadas mes-
mo antes que um cessar-fogo seja alcançado” (United Nations, 1994f, pará-
grafos 2-4, ênfase nossa).

E ainda:

440 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005


Além do Ocidente, além do Estado e muito
além da Moral: Por uma Política Eticamente...

“A solução para a crise em Ruanda deve, em meu julgamento, ser encontra-


da por meio da implementação do acordo de Arusha, que ambos os lados di-
zem aceitar. Para que isso seja alcançado, é claramente necessário que um
cessar-fogo seja acordado e colocado em efeito na data mais próxima possí-
vel. [...] Enquanto isso, existe uma requisição urgente para que as Nações
Unidas aumentem seus esforços em tratar da desesperadora crise humanitá-
ria criada pelo conflito” (idem, parágrafos 27-28).

Esse mesmo relatório faz uma detalhada descrição da situação dos


refugiados e deslocados, mas nenhuma estimativa dos números de
mortos é citada. O aspecto étnico das matanças também é completa-
mente obliterado. Apenas em 17 de maio de 1994 estes aspectos são
mencionados em uma resolução do Conselho de Segurança: “Relem-
brando nesse contexto que a matança de membros de um grupo étni-
co com a intenção de destruir tal grupo, no todo ou em parte, constitui
crime punível sob a lei internacional, [o Conselho de Segurança]
urge fortemente todas as partes a cessarem qualquer incitamento, es-
pecialmente por meio da mídia de massa, à violência ou ao ódio étni-
co” (United Nations, 1994g:2). E somente em 31 de maio de 1994
Boutros Boutros-Ghali admite que, “com base na violência que
emergiu, há poucas dúvidas de que [essa violência] constitui genocí-
dio, uma vez que têm havido matanças em larga escala de comunida-
des e famílias pertencentes a um grupo étnico particular” (United
Nations, 1994h, parágrafo 36). No mesmo documento, o secretá-
rio-geral afirma que “é axiomático que qualquer esperança de resol-
ver as tensões históricas em Ruanda devam descansar nas perspecti-
vas de compromisso político” (idem, parágrafo 27, ênfase nossa).

A insistência em priorizar o cessar-fogo e o fim da guerra civil como


solução para a catástrofe humanitária em Ruanda deriva do arraiga-
mento do paradigma do Estado-territorial-soberano na imaginação
política contemporânea. A fixação no Estado soberano convertido
em categoria ontológica e estabelecido como marco e limite espa-
ço-temporal da comunidade política funciona como uma viseira que
permite que se vejam apenas temas correlatos ao Estado territorial –

441
Ana Cristina Araújo Alves

daí o poder sugestivo da guerra civil –, desfocando representações al-


ternativas. A determinação de que a violência provinha tão-somente
(ou majoritariamente) da frente de batalha entre a FAR e a FPR, prin-
cipalmente na capital Kigali, desviou a atenção dos tomadores de de-
cisão acerca da violência muito maior que acontecia no interior do
país, longe dos exércitos da FPR.

Enquadrar os eventos em Ruanda como guerra civil – supondo que


esta pudesse ser uma categoria estanque e não problemática – signifi-
cava que os acordos de Arusha haviam soçobrado devido à falha de
ambas as partes em cumprir seus compromissos. Sob tais circunstân-
cias, a ONU teria a obrigação de tentar negociar um cessar-fogo, mas
o ônus da responsabilidade seria das partes. Por outro lado, categori-
zar as matanças em Ruanda como limpeza étnica significava que ha-
via uma campanha armada deliberada contra a população civil. Nes-
se contexto, a ONU teria um dever moral de intervir muito maior
(Barnett, 2002:120). Barnett afirma que, se Boutros-Ghali tivesse
querido uma intervenção, poderia ter retratado as mortes como resul-
tado de uma limpeza étnica e se referido especificamente à popula-
ção identificada como tutsi como o principal alvo dos assassinatos.
Ao contrário, o secretário-geral e sua equipe retrataram a violência
como “caótica”, projetando uma imagem de que a matança era recí-
proca e multilateral. Aliás, os relatórios do secretário-geral freqüen-
temente se referem a “civis”, no sentido mais amplo e genérico (ibi-
dem).

Por um lado, classificar Ruanda como uma “guerra civil” teve a con-
seqüência de diminuir a “carga” de obrigação moral dos tomadores
de decisão internacionais. Uma vez que a idéia de guerra civil evoca a
noção de que a solução e os resultados dependem quase que absolu-
tamente da vontade das partes, o papel e a responsabilidade dos ato-
res internacionais é diminuído a um status de coadjuvante. Por outro
lado, um foco excessivo no genocídio – utilizado por muitos autores
que discorrem sobre o tema – enfraquece, em vez de fortalecer, o ar-

442 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005


Além do Ocidente, além do Estado e muito
além da Moral: Por uma Política Eticamente...

gumento para a ação internacional. Esse enfoque requer a prova de


algo que é extremamente difícil de se antever, e aceita implicitamen-
te a noção de que apenas em um caso extremo a ação internacional
deve ser contemplada (Uvin, 2001:91).

Pela Humanização das


Intervenções Humanitárias
“Quando as pessoas que recebem assistência humanitária naqueles campos
vierem nos matar, o que a comunidade internacional vai fazer – mandar
mais assistência humanitária?” (Joseph Karemera, ministro da Saúde de
Ruanda, em 1996 apud Gourevitch, 2000:343).

Em 13 de maio de 1994, diante da “violência generalizada” (United


Nations, 1994f, parágrafo 3) em Ruanda e da “desesperadora crise
humanitária criada pelo conflito” (idem, parágrafo 28), Boutros
Boutros-Ghali requereu ao Conselho de Segurança uma extensão do
mandato da Unamir. O objetivo expresso era habilitar a Unamir a
“apoiar e prover condições seguras para pessoas deslocadas e outros
grupos em Ruanda que têm sido afetados pelas hostilidades ou pas-
sam por necessidades, e ajudar na prestação de assistência feita por
organizações humanitárias” (idem, parágrafo 11). A missão, que
passou a ser referida como Unamir II, teria seus esforços coordena-
dos àqueles das organizações humanitárias operando em Ruanda
e/ou engajadas na ajuda a refugiados ruandeses em países vizinhos,
“em cooperação com as autoridades locais sempre que possível”.

Em 17 de maio de 1994, o Conselho de Segurança aprovou a exten-


são do mandato da Unamir “para propósitos humanitários”, como
sugerida pelo secretário-geral no capítulo VII da Carta das Nações
Unidas. Não obstante o caráter de urgência da missão, até 20 de ju-
nho o desdobramento da Unamir II não havia sido ainda viabilizado
devido à carência de fundos, tropas e equipamentos necessários para
tanto. Diante de tal paralisia, o Conselho de Segurança endossou a
sugestão do secretário-geral (United Nations, 1994i) e aprovou a ex-

443
Ana Cristina Araújo Alves

pedição francesa para Ruanda segundo a resolução 929 de 22 de ju-


nho de 199418.

Quando a Operação Turquesa foi estabelecida, a maioria dos tutsis já


havia sido morta, o genocídio já havia sido praticamente completa-
do; ainda assim, a operação salvou 10 mil vidas. Não obstante sua
motivação “humanitária” e seu caráter “imparcial” serem altamente
19
questionáveis , Jones (1995) afirma que a expedição francesa teve
uma importante função humanitária ao prover segurança e apoio lo-
gístico às operações de socorro humanitário. No entanto, esse mes-
mo autor (2001:125) afirma que o aspecto mais importante da Opera-
ção Turquesa foi seu impacto dentro da zona turquesa – a zona de se-
gurança humanitária – e dos campos de Goma sobre o curso dos
eventos subseqüentes. Embora não exista dúvida de que a prestação
de assistência humanitária salvou vidas e diminuiu o sofrimento de
centenas de milhares de ruandeses, algumas considerações devem
ser feitas.

A versão mais popular divulgada pela mídia era aquela que confun-
dia os dois eventos – o genocídio e a fuga de refugiados –, tratando-os
como um momento único: todos aqueles vindos de Ruanda eram ro-
tulados como refugiados (Barnett, 2002:149). Se tantas pessoas ha-
viam fugido em tão horríveis circunstâncias, deviam estar fugindo de
algo ainda mais horrível. Consoante Jones (2001:123-124), evidên-
cias sugerem que o movimento dos refugiados para o Zaire foi ape-
nas em parte uma fuga espontânea da violência em Ruanda. Mais
fundamentalmente, os génocidaires teriam coagido populações in-
ternamente deslocadas a fugirem com eles para o Zaire. Ao ceder Ru-
anda à FPR e conduzir vastas multidões para o exílio, os líderes do
Poder Hútu puderam conservar o controle sobre seus súditos, estabe-
lecer um Estado de “refugiados” em campos mantidos pela ONU e
continuar dizendo que seus piores temores tinham sido justificados
(Gourevitch, 2000:185; Mamdani, 2001:214, 254-455; Barnett,
2002:149). Durante a travessia, os refugiados teriam sido usados

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Além do Ocidente, além do Estado e muito
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como um escudo humano entre os génocidaires e a FPR. Ao declarar


uma zona livre e ameaçar responder militarmente a qualquer incur-
são a essa zona, a Operação Turquesa criou um porto seguro para os
líderes do genocídio e para algumas unidades da FAR. Isso possibili-
tou que parte dos mentores e organizadores do genocídio saísse in-
tacta de Ruanda, estabelecendo-se no Zaire. Nas palavras de Goure-
vitch (2000:189), “o feito marcante da Opération Turquoise foi per-
mitir que a matança de Tutsis continuasse por um mês extra, e garan-
tir ao comando genocida uma travessia segura, com grande parte de
suas armas, para o Zaire”.
“Tropas do Zaire haviam alegado estar desarmando os ruandeses à medida
que eles atravessavam a fronteira, e grandes pilhas de facões e revólveres
acumulavam-se de fato ao lado dos barracões de imigração. Mas, sentado
em seu carro, em meio à torrente humana que trafegava por Goma, um ofici-
al militar norte-americano telefonou para Washington e elencou um espan-
toso arsenal de artilharia, carros blindados e armas leves que a ex-FAR car-
regava consigo. Sob a égide desse exército amplamente intacto, e da intera-
hamwe, os acampamentos rapidamente se organizaram como réplicas per-
feitas do Estado do Poder Hutu – a mesma disposição comunitária, os mes-
mos líderes, a mesma hierarquia rígida, a mesma propaganda, a mesma vio-
lência” (idem:195).

Nenhuma medida foi tomada para evitar que os líderes extremistas se


rearmassem e retivessem o controle sobre a massa de refugiados nos
campos. A FAR, as milícias e o governo interino ruandês puderam se
reagrupar e reafirmar o controle político sobre a população. Ironica-
mente, os campos, particularmente os do Zaire e da Tanzânia, passa-
ram a ser controlados pelos mesmos prefeitos, burgomestres e líderes
políticos que haviam encabeçado o genocídio em Ruanda. Os meca-
nismos para tanto incluíam o controle político sobre o processo de
socorro nos campos, a continuação da campanha de retórica e intimi-
dação para evitar que a população retornasse a Ruanda e a forjadura
de alianças com atores locais, que poderiam assisti-los política e mi-
litarmente. O controle da população refugiada servia a três propósi-
tos: (1) os refugiados eram uma forma de base política para o regime

445
Ana Cristina Araújo Alves

deposto; (2) os refugiados atraíam grandes fluxos de ajuda financei-


ra, possibilitando a cobrança de taxas; e (3) a prestação de ajuda no
leste do Zaire, que deveria operar com o consentimento das autorida-
des deste país, criava uma nova aliança de interesses entre o antigo
regime e seus anfitriões, tanto em nível local quanto nacional (Jones,
2001:144-145).

A habilidade do regime deposto de controlar o processo de socorro


no leste do Zaire, e por meio disso estabelecer o controle político e a
cobrança de taxas, deu-se em parte em função dos esforços das agên-
cias de ajuda humanitária. Ao intervir de uma maneira formalmente
neutra, as organizações não-governamentais (ONGs) e agências da
ONU contribuíram para reciclar a violência em Ruanda, ao hospedar
e alimentar alguns dos perpetradores do genocídio e permitir que eles
se reagrupassem em um espaço internacionalmente protegido (Jo-
nes, 1995:245). As agências humanitárias declaravam que não com-
petia a elas se engajar em análises políticas, mas sim prover socorro
humanitário aos necessitados. Ninguém questionava o controle ad-
ministrativo e político do antigo regime sobre os campos. Essa ques-
tão só foi encarada quando se tornou aparente que uma grande pro-
porção da ajuda humanitária tão generosamente distribuída aos cam-
pos de refugiados estava sendo convertida para fins bem menos no-
bres: treinamento militar, compra de equipamentos militares e pre-
paração para outra rodada de violência por meio do envio de guerri-
lhas armadas a Ruanda (Jones, 2001:145; Khan, 2000:204).

Um segundo aspecto a ser considerado refere-se ao tratamento gene-


roso dado aos refugiados pelas agências internacionais e comunida-
de doadora, em contraste com a excessiva parcimônia mostrada às ví-
timas do genocídio. O posicionamento da comunidade internacional
em relação aos necessitados nos campos de refugiados vis-à-vis
aqueles em território ruandês parecia incongruente. De acordo com
Shaharyar M. Khan (2000:2), representante especial do secretá-
rio-geral da ONU em Ruanda e responsável pela Unamir II, a ajuda

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Além do Ocidente, além do Estado e muito
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humanitária aos campos de refugiados no Zaire e na Tanzânia che-


gou a 2 milhões de dólares por dia. “A dispensa dessa ajuda não foi
inserida em nenhum arcabouço político porque ninguém parecia
pensar no fato de que a maioria dos refugiados não estava em perigo
real” (idem:35), mas havia fugido sob o comando de seus líderes. Por
outro lado, parecia não haver nenhuma provisão ou orçamento dis-
poníveis para reviver um país totalmente devastado, reconstruir sua
infra-estrutura e/ou assistir as vítimas do genocídio que permaneci-
am em Ruanda.

Khan explica que os fundos para as operações de peacekeeping ad-


vêm da contribuição proporcional obrigatória dos Esta-
dos-membros, e são disponibilizados apenas para sustentar os pea-
cekeepers e seu apoio logístico. Toda a ajuda destinada ao desenvol-
vimento, humanitarismo ou emergência provém das “contribuições
voluntárias” da comunidade doadora, devendo ser distribuída a todas
as agências especializadas da ONU. Assim, o sistema da ONU man-
tém um olhar cuidadoso para assegurar que os fundos de peacekee-
ping não sejam voltados para domínios que deveriam ser mantidos
por contribuições voluntárias. O resultado final dessa rígida compar-
timentalização foi que, enquanto uma vultosa quantia pôde ser gasta
para manter os peacekeepers, nenhuma parte desse fundo pôde ser
dirigida para reparos de pós-conflito e funções emergenciais
(idem:90).

Em outubro de 1994, já existia um governo em Ruanda, mas ele não


possuía escritórios, transportes, telefones e verbas para pagar salári-
os essenciais. A comunidade internacional esperava que o governo
mostrasse resultados em muitas áreas, incluindo o encorajamento ao
retorno voluntário dos refugiados. No entanto, essa e outras tarefas
não podiam ser viabilizadas, pois os servidores civis não podiam ser
pagos, não havia colheitas e os serviços básicos não estavam funcio-
nando devido à falta de recursos financeiros e materiais. Segundo
Khan (idem:93-94), era frustrante ver milhões de dólares sendo gas-

447
Ana Cristina Araújo Alves

tos em alimentos, cobertores e remédios e nenhum centavo poder ser


disponibilizado para reparar energia elétrica, água, telecomunica-
ções ou serviços que colocariam o país novamente em funcionamen-
to. Além da intimidação nos campos por parte dos génocidaires e do
medo da vingança por parte do novo governo ruandês, havia uma ter-
ceira razão para que os refugiados não desejassem voltar a Ruanda:
eles gozavam de um padrão de vida nos campos que não poderiam
esperar encontrar em sua terra. Nos campos, eles tinham refeições,
leite para as crianças, roupas, medicamentos, água potável, escolas
etc. Os campos no Zaire e na Tanzânia tinham cinemas, clubes notur-
nos, igrejas e muitos outros recursos que uma família rural normal
não encontraria em casa (idem:146).

Se a comunidade internacional avançou na investigação do genocí-


dio e punição dos culpados, estabelecendo um Tribunal Internacio-
nal, ela falhou grandemente ao incorporar as implicações do genocí-
dio no desenho e na implementação dos programas de assistência em
Ruanda. Ela tratou a crise como “apenas mais uma” guerra civil, sen-
do sua única responsabilidade intervir a fim de amenizar o sofrimen-
to da população. Tal abordagem distorceu as prioridades, minou a
efetividade dos programas de assistências e alienou o novo governo
instalado (idem:174). Como conseqüência, houve a reorganização
política, militar e financeira dos perpetradores do genocídio, reno-
vando assim as fontes de conflito, e também negligência em relação à
população flagelada pela violência dentro das fronteiras ruandesas.

Em relação a tudo aquilo que estava circunscrito ao território ruan-


dês, imperou o discurso da guerra civil e da soberania. Como resulta-
do, nenhuma ajuda por parte da ONU pôde ser dada ao novo governo
ruandês e à sua população para a reconstrução do país. Por outro
lado, atenção e recursos foram abundantemente dispensados aos
campos de refugiados, um domínio (territorial e discursivo) regulado
pela economia discursiva do genocídio, associado ao sofrimento hu-
manitário e fora do alcance da soberania estatal. Ou seja, a noção de

448 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005


Além do Ocidente, além do Estado e muito
além da Moral: Por uma Política Eticamente...

nação-território-identidade fez com que o sofrimento humanitário


fosse pensado como uma característica exclusiva dos campos de re-
fugiados. Dessa forma, a ONU e a comunidade doadora internacio-
nal sentiram-se moralmente obrigadas para com os “refugiados”,
que se supunha carecessem do conforto e segurança providos por um
“Estado”. Por outro lado, esses mesmos atores se sentiram desobri-
gados – ou apenas ligeiramente obrigados – para com aqueles cir-
cunscritos à fronteira territorial do Estado ruandês.

Destarte, a ubiqüidade discursiva da guerra civil não somente permi-


tiu que o genocídio continuasse por mais tempo, como teve conse-
qüências práticas no pós-genocídio. O pensamento em termos de
Estados territoriais soberanos compartimentou o senso de responsa-
bilidade pelo sofrimento humano em dois reinos, concebidos como
esferas separadas e independentes: “dentro de Ruanda” versus “fora
de Ruanda” ou “refugiados ruandeses” versus “civis ruandeses”.
Nosso argumento é de que essas conseqüências são fruto do princí-
pio do Estado-territorial-soberano, expresso também na dicotomia
guerra civil/genocídio.

Isso se traduz na prática por meio da noção de humanitarianism


(Campbell, 1998), a saber, intervenções humanitárias concebidas
como um bem inquestionável e caracterizadas pela caridade impar-
cial para com uma humanidade comum. Ou seja, pelo entendimento
de que os celebrados valores de imparcialidade e neutralidade fazem
das intervenções humanitárias algo “apolítico” ou não-político, um
domínio de compaixão, distinto de questões de interesse nacional ou
autodefesa. Assim, esse tipo de humanitarismo fica reduzido à apli-
cação das regras de imparcialidade, neutralidade e universalidade,
20
que expressam o princípio do Estado-territorial-soberano . Esses
imperativos estão expressos na célebre Agenda para Paz de 1992,
proposta por Boutros Boutros-Ghali, e foram acolhidos e reproduzi-
dos na resolução 929 do Conselho de Segurança que autorizou a
Operação Turquesa:

449
Ana Cristina Araújo Alves

“Nessas situações de crise interna, as Nações Unidas necessitarão respeitar a


soberania do Estado; o contrário não estaria em conformidade com a compre-
ensão dos Estados-membros em aceitar os princípios da Carta. A Organiza-
ção deve permanecer ciente do equilíbrio cuidadosamente negociado dos
princípios-guias anexados à resolução 46/182 da Assembléia Geral de 19 de
dezembro de 1991. Aquelas orientações enfatizavam, inter alia, que a assis-
tência humanitária deve ser provida de acordo com os princípios de humani-
dade, neutralidade e imparcialidade; que a soberania, integridade territorial e
unidade nacional dos Estados devem ser plenamente respeitadas de acordo
com a Carta das Nações Unidas; e que, nesse contexto, a assistência humani-
tária deve ser provida com o consentimento do país afetado e, em princípio,
com base no apelo desse país” (United Nations, 1992, parágrafo 30).

“Enfatizando o caráter estritamente humanitário dessa operação que deve


ser conduzida de uma forma imparcial e neutra, e não deve constituir uma
interposição de forças entre as partes, [...] [o Conselho de Segurança] Aco-
lhe também a oferta pelos Estados Membros (S/1994/734) de cooperar com
o secretário-geral a fim de alcançar os objetivos das Nações Unidas em Ruan-
da por meio do estabelecimento de uma operação temporária sob comando
e controle nacionais destinada a contribuir, de uma forma imparcial, à segu-
rança e à proteção de pessoas deslocadas, refugiados e civis sob risco em
Ruanda, na compreensão de que os custos de implementação da oferta serão
o
arcados pelos Estados-membros concernidos” (United Nations, 1994j, 2
parágrafo).

Esses dois exemplos deixam clara a tensão entre o dever moral para
com a humanidade e a manutenção, afirmação e reprodução do siste-
ma de Estados soberanos. Nesse sentido, a neutralidade e a imparcia-
lidade refletem o imperativo de “não causar dano” ou de não interfe-
rir, não em relação à situação em campo, mas principalmente quanto
ao próprio princípio da soberania. Enquanto a nobreza moral do hu-
manitarismo lhe permite ultrapassar as fronteiras da soberania esta-
tal, esta passagem deve ser mais do que consentida. Ela deve sobre-
maneira afirmar a primazia do princípio da “soberania, integridade
territorial e unidade nacional dos Estados”.

Não é possível falar do Estado soberano como um ser ontológico –


como uma identidade política – sem tratar da prática política que o

450 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005


Além do Ocidente, além do Estado e muito
além da Moral: Por uma Política Eticamente...

constitui enquanto tal, e isso requer antes de tudo tratar da prática po-
lítica de estabilização do significado de “Estado soberano”. Essa es-
tabilização se dá na história por meio das práticas dos teóricos e das
práticas de intervenção política, um instrumento que faz emergir a
própria questão da soberania. Assim, a relação entre a soberania e seu
suposto oposto conceitual – a intervenção – não é de oposição, nega-
ção ou exclusão, mas de co-constituição e afirmação, em constante
processo de dissolvimento uma na outra (Walker, 1993:25).

Na prática da intervenção humanitária, intervenção e soberania dei-


xam de funcionar como termos opostos e se transformam em dois
significantes que podem ser mutuamente substituídos: “soberania é
intervenção e intervenção é soberania” (Weber, 1995:127). A inter-
venção humanitária, por ser soberania, não pode negar a si mesma.
Para evitar que isso aconteça, os princípios de neutralidade, imparci-
alidade e consenso são invocados. Esses valores permitem ao huma-
nitarismo ser lançado como um empreendimento apolítico e, assim,
como um domínio de compaixão, sem contudo “causar dano” ou in-
terferir nas dinâmicas locais. No entanto, isso incorpora um conjunto
particular de suposições sobre uma ontologia social. O humanitaris-
mo, que tem sua base na primazia da preocupação com os povos opri-
midos e devastados, constrói pessoas e povos como vítimas, incapa-
zes de agir sem intervenção. Ele manifesta uma postura que assume
que “nós” somos capazes de nos distanciar dos outros, diagnosticar
um conjunto complexo de relações sociais e políticas, conceber
ações e práticas desenhadas para cumprir certos objetivos e imple-
mentá-las como planejado. Acima de tudo, a noção de “não causar
dano” falha em articular um objetivo político afirmativo (Campbell,
1998:500; Walker, 1993:8).

Códigos e princípios são, assim, supostamente associados a resulta-


dos predefinidos, se não preditos. A “razão moral” é favorecida sobre
o “conflito político aberto”. A preferência da modernidade por “deri-
var normas epistemologicamente em vez de decidi-las politicamen-

451
Ana Cristina Araújo Alves

te” significa que estamos inclinados a acreditar que a construção de


arcabouços normativos pode resolver questões políticas (Campbell,
1998:500-501). Contudo, privilegiar prescrições epistemológicas e
metodológicas que simplesmente tomam as opções ontológicas mo-
dernas historicamente específicas como dadas tem o efeito de apagar
a crítica (Walker, 1993:8) e fechar a política ao acabar com a “indeci-
dibilidade”.

Conclusão

A fixação no discurso da guerra civil, juntamente com os critérios de


autorização de operações de peacekeeping, funcionou de forma a ex-
cluir representações alternativas dos eventos iniciados em 1994 e,
por conseguinte, limitou o leque de ações cabíveis. Essas conseqüên-
cias não se restringiram às condições permissivas para os assassina-
tos em massa, mas se estenderam negativamente às políticas formu-
ladas pela comunidade internacional para lidar com a crise humani-
tária decorrente do genocídio. Em primeiro lugar, os princípios de
neutralidade, imparcialidade e consenso que embasaram os discur-
sos e as práticas da guerra civil continuaram a guiar o pensamento
político mesmo diante da conclusão de que um genocídio havia
acontecido. O caso de Ruanda mostra-nos que, ainda que uma catás-
trofe como aquela clame por uma intervenção humanitária, existe
uma grande tensão entre a responsabilidade pelo ser humano
vis-à-vis a necessidade de manutenção do sistema de Estados sobera-
nos.

Não podendo negar a si mesmo, o princípio do Estado-territorial-so-


21
berano – cuja prática estabilizadora é a própria intervenção – solu-
ciona temporariamente essa tensão por meio da compartimentaliza-
ção territorial entre dois discursos: da soberania versus intervenção;
guerra civil versus genocídio. Por um lado, circunscrito pelo territó-
rio ruandês, existe o lugar da guerra civil, da soberania, do consenso e
do cessar-fogo. Por outro, em qualquer lugar fora das fronteiras ruan-

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Além do Ocidente, além do Estado e muito
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desas, existe o lugar do genocídio, da intervenção humanitária, das


operações de socorro. Dessa forma, é possível manter o princípio da
“soberania, integridade territorial e unidade nacional dos Estados”
(United Nations, 1992, parágrafo 30) e ao mesmo tempo cumprir um
dever moral para com uma humanidade comum. Contudo, essa solu-
ção falha em incorporar as implicações do genocídio no desenho e na
implementação dos programas de assistência em Ruanda.

Por um lado, o discurso da guerra civil e da soberania requer do Esta-


do responsabilidade irrestrita por seu território e por seus nacionais,
mesmo diante da carência de infra-estrutura e recursos financeiros.
Por outro lado, o tema “intervenção humanitária” evoca a noção de
“vítimas”, de pessoas e/ou grupos incapazes de agir por si sós, neces-
sitados de assistência. Assim, a compartimentalização discursi-
vo-territorial – que alinha de um lado da fronteira (física) guerra civil
e soberania, e do outro lado genocídio e intervenção – permitiu que
os perpetradores do genocídio se reorganizassem política e militar-
mente nos campos de refugiados e ao mesmo tempo negligenciou as
populações necessitadas dentro das fronteiras ruandesas. Essa irôni-
ca contradição é conseqüência da aplicação irreflexiva de princípios
predeterminados em detrimento da decisão tomada em seu próprio
contexto de indecidibilidade, e foi responsável por um resultado de-
sumano.

Essas foram as conclusões a que chegamos na feitura desse artigo, e


acreditamos que trazem duas grandes contribuições.

Em primeiro lugar, chamam a atenção para a premência de se lançar


um novo olhar sobre o Terceiro Mundo. O legado do colonialismo
nessas sociedades não deve ser obliterado, mas é mister que pense-
mos nesses povos como agentes, como “Eus” e Outros, e não como
meros objetos das políticas ocidentais.

Em segundo lugar, o caso ruandês é relevante porque a imprevisibili-


dade do genocídio dá ensejo à seguinte questão: até quando esperar?

453
Ana Cristina Araújo Alves

Que tipo de violência pode ser tolerado, e até que ponto? Essas per-
guntas nos remetem àquela colocada por Daniel Warner (1996):
quando a responsabilidade é ativada?

Responde-se a essa questão com outra: a responsabilidade precisa


ser ativada? De acordo com Emmanuel Levinas (1999), não. A res-
ponsabilidade “é anterior à própria consciência do eu e à sua capaci-
dade de comunicação” (idem:103), é inescapável.

Assim, ainda que Ruanda não fosse “uma ameaça genuína à paz e se-
gurança internacionais” (Barnett, 2002:102) e mesmo diante de obri-
gações concorrentes, a conclusão de que “não lhe dizia respeito” não
isentou a ONU de responsabilidade. Mas como comparar Outros
únicos e incomparáveis e julgar entre eles sem contudo acabar com a
universalidade da responsabilidade ética? Essa questão, aparente-
mente sem resposta, significa que a responsabilidade ética requer
uma estratégia utópica: o indecidível, a aporia, a necessidade de ace-
nar para dois imperativos contraditórios com o objetivo de inventar
novos gestos, discursos e práticas.

Notas

1. Sobre a imprensa internacional, ver Hintjens (1999:248). Sobre as Nações


Unidas, ver United Nations (1994c), Jones (2001:15-16) e Uvin (2001:75). So-
bre as partes em conflito, ver Hintjens (1999:248) e Kuperman (2000:102-103).
Sobre as narrativas acadêmicas, ver Jones (2001), Barnett (2002), Kuperman
(2000), Uvin (2001), Khan (2000), Gourevitch (2000) e Mamdani (2001). Uma
exceção é Hintjens (1999), que comenta os impactos da invasão da Frente
Patriótica Ruandesa (FPR) em 1990, mas praticamente ignora a retomada da
guerra civil em 1994 como conseqüência do início do genocídio. Em uma breve
e implícita menção à guerra civil, a autora diz que “a FAR [Forças Armadas
Ruandesas] e as milícias estavam tão ocupadas em matar civis desarmados que
em junho a FPR foi capaz de tomar o país” (idem:269, tradução nossa).

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Além do Ocidente, além do Estado e muito
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2. A Frente Patriótica Ruandesa foi formada em 1987 por um grupo da segun-


da geração de refugiados ruandeses que haviam buscado exílio em Uganda em
1959. Grande parte deste grupo havia nascido em Uganda e nunca havia estado
em Ruanda. Inicialmente, a FPR foi concebida em parte para organizar um re-
torno militar dos refugiados ruandeses em Uganda (Jones, 2001:23).
3. Do inglês, United Nations Assistance Mission for Rwanda (Missão de
Assistência das Nações Unidas para Ruanda).
4. Muito mais do que a rejeição ao positivismo, o caráter antifundacionalista
aproxima grandemente pós-modernos e pós-estruturalistas, tanto que se torna
difícil fixar os limites entre uma e outra perspectiva. David Campbell e Jim Ge-
orge (1990:270, nota 2) afirmam que as duas perspectivas compartilham um re-
conhecimento da “natureza constitutiva da linguagem” e uma antipatia por sis-
temas “fechados” de conhecimento “nos quais análise e identidade são reduzí-
veis a oposições binárias”. Ambas as abordagens colocam em questão a lingua-
gem, os conceitos, os métodos e a história – leia-se os discursos dominantes –
que constituem e governam uma “tradição” ou pensamento. É possível perceber
que não há um consenso sobre o que pós-estruturalismo e pós-modernismo são
– e tampouco parece haver interesse em se chegar a uma definição precisa. Ri-
chard Devetak (1996:179) afirma que não é possível encontrar uma definição de
pós-modernismo sobre a qual haja um consenso geral; e, de forma similar, Chris
Brown (1994:223) diz que o pós-estruturalismo é peculiarmente resistente a
frases como “o pós-estruturalismo é...”. A busca por definições precisas, fecha-
das, de ambos os termos não só é vã como vai de encontro ao cerne da argumen-
tação de ambas as perspectivas. Sendo assim, também eu me eximo da tarefa de
oferecer uma definição acabada de pós-modernismo e pós-estruturalismo. Con-
sideraremos os principais traços e contribuições dessas abordagens, sem nos
preocuparmos em definir os limites entre uma e outra, e muito menos em rotular
autores como se pudessem ser encaixados em categorias hermeticamente fecha-
das.
5. Dentro desse arcabouço, entende-se a emancipação não por meio do des-
mascaramento do poder, da opressão e da ideologia, mas pela demonstração de
exemplos concretos – via pesquisa histórica detalhada – de como o poder é em-
pregado em todos os rincões da sociedade.
6. O funcionamento do procedimento logocêntrico pode ser mais claramente
visto em oposições práticas familiares, tais como dentro/fora, literal/figurativo,
centro/periferia, continuidade/mudança, objetivo/subjetivo. Em face dessas e
de outras oposições, o sujeito participante no regime da modernidade é inclina-
do pelo procedimento logocêntrico a impor uma hierarquia ao identificar sua
voz de interpretação e prática com um ponto de vista subjetivo, um centro inter-
pretativo soberano. A partir desse posicionamento, um dos lados de tais oposi-

455
Ana Cristina Araújo Alves

ções pode ser concebido como uma realidade maior, pertencente ao domínio do
logos, ou como presença pura e indivisível sem necessidade de explicação. O
outro termo de cada par é então definido somente em relação ao primeiro termo,
com uma denotação de inferioridade ou derivação. Ao privilegiar um dos ter-
mos, o procedimento logocêntrico dá efeito a uma hierarquia na qual o outro ter-
mo se torna uma negação, uma manifestação, um efeito, uma disfunção
(Ashley, 1989:261).

7. Do inglês, “I-Thou” e “I-It”. O primeiro caso constitui uma relação com o


outro-como-sujeito, enquanto o segundo caso designa uma relação com o ou-
tro-como-objeto.

8. O governo interino foi estabelecido em 9 de abril de 1994, mas deixou Ki-


gali em 12 de abril, devido à violência na cidade. Ver Barnett (2002:146).

9. Esses processos são descritos em detalhes por Jones (2001:53-66). As ne-


gociações de Arusha também são detalhadas em Jones (idem:69-84).

10. Os textos não disponíveis em língua portuguesa foram traduzidos livre-


mente pela autora deste artigo.

11. O termo “desdobramento de tropas” refere-se ao equivalente do inglês de-


ployment, cujos significados são: “1. O movimento de forças entre áreas de ope-
rações; 2. A passagem de forças para a posição de batalha; 3. A realocação de
forças e material para determinadas áreas de operações; 4. Desdobramento in-
clui todas as atividades da sede ou instalação de origem até o destino [...]; 5. As
atividades necessárias para preparar e mover uma força, seus equipamentos e
suprimentos para a área de operações em resposta a uma crise ou desastre na-
tural” (FM 101-5-1, 1997:1-51 apud Conjuntura Internacional [portal da
PUC-Minas, disponível em <http://www.pucminas.br/conjuntura/index1.
php?tipoãform=glossario&menu=1195&cabecalho=29&lateral=6>, acessado
em 12/3/2005]).

12. Esse trecho refere-se ao episódio do assassinato de Mr. Félicien Gatabazi


(secretário-geral do Partido Social Democrata) e Mr. Martin Buchyana (presi-
dente da Coalizão para Defesa da República).

13. Estima-se que 250 mil tutsis tenham sido brutalmente assassinados até 21
de abril de 1994 – em apenas quatorze dias desde o início do genocídio (Kuper-
man, 2000:96-98). Em termos comparativos, esse número equivaleria a aproxi-
madamente 2 milhões de pessoas na França, 4 milhões em Bangladesh, 5 mi-
lhões no Brasil e 9 milhões nos Estados Unidos (United Nations, 1994h, 5o pará-
grafo). No período compreendido entre a segunda semana de abril e a terceira
semana de maio, estima-se que 5% a 10% da população ruandesa (que antes do

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genocídio era de 7 milhões de pessoas) tenha sido brutalmente exterminada


(Hintjens, 1999:241).

14. Segundo o relatório especial do secretário-geral apresentado ao Conselho


de Segurança em 20 de abril de 1994 (United Nations, 1994c, 2o parágrafo), esse
“trágico incidente [a queda do avião no aeroporto de Kigali, que matou, entre
outros, os presidentes Juvenal Habyarimana, de Ruanda, e Cyprien Ntayamira,
do Burundi] deu início a uma torrente de matanças generalizadas principalmen-
te em Kigali, mas também em outras partes do país. A violência parece ter di-
mensões políticas e étnicas. Nenhuma estimativa confiável das mortes foi dis-
ponibilizada até agora, mas poderiam ser de dezenas de milhares”.

15. Sobre os papéis desempenhados pela OUA e pela Tanzânia, ver Jones
(2001:74-79).

16. Do inglês, undecidibility.

17. Texto tirado da obra de Derrida, The Other Heading: Reflections on To-
day’s Europe, de 1992.

18. A chamada “Operação Turquesa” (do francês Opération Turquoise) era


composta por 2.500 homens e recebeu um mandato de dois meses de acordo
com o capítulo VII da Carta das Nações Unidas. No dia seguinte à sua aprovação
pelo Conselho, as primeiras tropas francesas da Operação Turquesa desloca-
ram-se de Goma para o noroeste de Ruanda (Gourevitch, 2000:183; Jones,
2001:123; e Barnett, 2002:149). Para Jones (2001), está claro que a França pre-
tendia intervir em Ruanda com ou sem a autorização do Conselho de Segurança.
Os planos de intervenção francesa foram trazidos para a apreciação do Conse-
lho em 20 de junho, e no dia seguinte a França já começou a mover suas tropas
de suas bases africanas na República da África Central e no Chade em direção a
Goma, antes da autorização do Conselho em 22 de junho (idem:123-124).

19. Ver Jones (1995:231; 2001:123), Gourevitch (2000:183-185), Barnett


(2002:148), Mamdani (2001:214), Uvin (2001:87) e Hintjens (1999:273). Ver
também François-Xavier Verschave (Complicité de Genocide? La Politique de
la France au Rwanda, de 1994) e Jean-Claude Willame (Diplonatie Internatio-
nale et Génocide au Rwanda, de 1994) (apud Uvin, 2001:87).

20. Doravante, o emprego do termo “humanitarismo” neste artigo se refere à


noção de humanitarianism como definida acima.

21. Isso acontece porque a intervenção é a prática política per se que estabiliza
o significado da soberania. Ou seja, intervenção e soberania são as próprias con-
dições de existência uma da outra. Assim, a fronteira entre esses termos é apaga-

457
Ana Cristina Araújo Alves

da e eles deixam de se excluir mutuamente e passam a ser significantes que tra-


zem à existência o mesmo sentido.

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461
Ana Cristina Araújo Alves

Resumo

Além do Ocidente, além do Estado


e muito além da Moral: Por uma
Política Eticamente Responsável
em Relação à Diferença – O Caso
Ruandês

A partir de uma abordagem pós-moderna/pós-estruturalista em relações in-


ternacionais, o presente artigo tem por objetivo fazer uma análise da deci-
são tomada pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 21 de abril de
1994 sobre o estabelecimento da Unamir como resposta à violência em Ru-
anda naquele momento. A ênfase recai sobre a avaliação da responsabilida-
de ética da organização, à luz da rearticulação radical dos conceitos de éti-
ca, responsabilidade e subjetividade proposta por Emmanuel Levinas. Bus-
cam-se as implicações dessa decisão em termos das conseqüências que ela
permitiu – a saber, o genocídio ruandês, o prolongamento da violência pos-
sibilitado pela Operação Turquesa e a reorganização do movimento genoci-
da nos campos de refugiados. Além disso, debruça-se sobre um tema mais
profundo, que subjaz as condições permissivas dessas trágicas conseqüên-
cias: a dominação do princípio do Estado-territorial-soberano na imagina-
ção política contemporânea. As rijas fronteiras entre dentro/fora, Esta-
do/campo de refugiados, doméstico/internacional derivadas desse princí-
pio impuseram também uma compartimentalização na seara da formulação
de políticas para lidar com a crise humanitária que se seguiu ao genocídio.
Essa forma fragmentada de lidar com um problema complexo e multifaceta-
do, por sua vez, resultou em políticas que distorceram as prioridades, mina-
ram a efetividade dos programas de assistência e alienaram o novo governo
instalado.

Palavras-chave: Ruanda – Genocídio – Responsabilidade – Ética

462 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005


Além do Ocidente, além do Estado e muito
além da Moral: Por uma Política Eticamente...

Abstract

Beyond the West, beyond the


State, and much beyond the
Moral: For an Ethically
Responsible Policy Towards the
Difference – The Rwandan Case

Drawing on a post-modern/post-structuralist approach in International


Relations, this article aims to make an analysis of the UN´s decision taken in
April 21, 1994 about the establishment of Unamir as a response to the
violence in Rwanda. We emphasize the assessment of the ethical
responsibility of the organization, in terms of the radical re-articulation of
the concepts of ethics, responsibility, and subjectivity, as proposed by
Emmanuel Levinas. We look for the implications of that decision in terms
of the consequences it permitted – that is, the Rwandan genocide, the
increasing of the violence over time allowed by Turquoise Operation, and
the reorganization of the genociders in the refugees´ camps. Besides, we
intend to look upon a deeper theme, which underlies the permissive
conditions of those tragic consequences: the sovereign-territorial-state
principle domination in the contemporary political imagination. The hard
boundaries between inside/outside, state/refugee camp,
domestic/international derived from that principle imposed also a
compartmentalization in the arena of formulation of policies to deal with
the humanitarian crisis that followed the genocide. This fragmented way to
deal with such a complex and multifaceted problem, for its turn, resulted in
politics that distorted the priorities and undermined the effectiveness of the
assistance programs, as well as alienated the newly installed government.

Key words: Rwanda – Genocide – Responsibility – Ethics

463
Os Estados Unidos e
as Relações
Internacionais
Contemporâneas*
Luis Fernando Ayerbe**

O fim do mundo bipolar, que concentrou as principais atenções nos


debates sobre a estrutura das relações internacionais da segunda me-
tade do século XX, traz como um de seus desdobramentos intelectu-
ais e políticos mais importantes o ressurgimento do imperialismo
como foco de reflexão sobre a ordem mundial em formação.

Para diversos analistas, tanto conservadores como críticos em rela-


ção ao capitalismo, a atual supremacia desse sistema e a emergência
dos Estados Unidos como única superpotência global, apesar de in-
questionáveis, trazem como elemento de indagação seu significado
histórico, seja como fase inaugural de um período de paz e prosperi-
dade, seja como estágio final de um modelo civilizatório que teve no
Ocidente seu grande impulsor.

* Artigo recebido em agosto e aceito para publicação em setembro de 2005.


** Professor do Departamento de Economia da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e do programa
de Pós-Graduação em Relações Internacionais da Unesp/Unicamp/PUC-SP.

CONTEXTO INTERNACIONAL Rio de Janeiro, vol. 27, no 2, julho/dezembro 2005, pp. 331-368.

331
Luis Fernando Ayerbe

Evidentemente, não é a primeira vez na história do capitalismo que


essas questões se fazem presentes. O mesmo dilema acompanhou os
debates sobre a longevidade do sistema e as possibilidades estru-
turais da hegemonia ocidental na transição do século XIX para o XX.
Diante do impasse na II Internacional, decorrente de profundas con-
trovérsias sobre os impactos das mudanças sistêmicas na estratégia
da revolução socialista, as teses de Lênin sobre imperialismo funda-
mentam o programa político que orientou a vitória bolchevique na
Rússia. Para Lênin, o imperialismo representa a negação, via expan-
são externa, das contradições internas do modo de produção capita-
lista nos países centrais. A partilha do mundo entre as grandes potên-
cias e a expansão do capitalismo financeiro gera uma nova divisão in-
ternacional do trabalho, deslocando os sintomas agudos da gravida-
de da crise do centro para a periferia do sistema. É aqui que se locali-
zam os elos fracos da cadeia imperialista, junto com as condições ob-
jetivas da revolução.

Analistas da evolução mais recente do capitalismo, como Michael


Hardt e Antonio Negri (2001), dão por encerrada a fase imperialista
caracterizada por Lênin. Para eles, a expansão territorial impulsiona-
da pelos Estados-nação deu lugar ao Império, abarcador da totalida-
de. Já não há lado de fora, instalou-se o reino do mercado mundial,
tornando obsoletas as separações de países com base nas noções tra-
dicionais de hierarquia dos mundos. Na nova ordem mundial, perdeu
sentido a diferenciação entre espaços internos e externos.

Do ponto de vista das abordagens legitimadoras da nova realidade, o


Império representa o fim da história; nesse sentido, os autores reco-
nhecem as bases concretas que alimentam perspectivas como a de
Fukuyama, para quem desapareceram definitivamente as alternati-
vas ao capitalismo, eliminando as bases de conflito originárias de
forças externas ao sistema. Para Hardt e Negri (idem), que se situam
entre os críticos da ordem, o Império representa um avanço em rela-

332 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005


Os Estados Unidos e as Relações
Internacionais Contemporâneas

ção ao imperialismo, da mesma forma que o capitalismo expressa


um processo evolutivo sobre os modos de produção que o antecede-
ram.

Diferentemente dos autores de Império, que questionam a relevância


das perspectivas orientadas pela lógica do Estado-nação, Arrighi e
Silver (2001) centralizam sua análise do capitalismo atual no papel
exercido pela sua potência hegemônica, que consideram em estado
de crise sistêmica. Analisando os períodos de transição hegemônica
holandês–britânico e britânico–norte-americano, apontam para a
existência de padrões comparáveis de crise e reorganização marca-
dos por “três processos distintos mas estreitamente relacionados: a
intensificação da concorrência interestatal e interempresarial; esca-
lada dos conflitos sociais; e o surgimento intersticial de novas confi-
gurações de poder” (idem:39).

Independentemente das especificidades de cada situação histórica,


as três crises hegemônicas apresentam como elemento comum as ex-
pansões financeiras, que permitem ao líder dominante um acesso pri-
vilegiado aos recursos financeiros mundiais, contribuindo para adiar
temporariamente o fim da sua liderança.

O atual contexto de expansão financeira, que tem como centro os


Estados Unidos, representa para os autores um sinal de crise hege-
mônica que, no entanto, apresenta algumas peculiaridades em rela-
ção às fases anteriores:

1) A potência em declínio não tem concorrentes no campo militar,


mas tornou-se dependente, na administração do seu poder, de recur-
sos financeiros de outros centros de acumulação de capital, marcada-
mente Europa ocidental e Japão.

2) Diferentemente do processo de globalização das últimas décadas


do século XIX, em que os Estados-nação eram protagonistas funda-

333
Luis Fernando Ayerbe

mentais da internacionalização do capital, há uma diminuição do seu


poder em detrimento do setor privado transnacional.

3) Em comparação ao aumento dos conflitos sociais que acompa-


nhou os períodos de transição holandesa e britânica, especialmente
os vinculados à luta antiescravista e ao movimento operário, os auto-
res identificam uma perda conjuntural de poder dos movimentos so-
ciais. No entanto, os efeitos estruturais desagregadores da atual con-
figuração global criam novas fontes de conflito para as quais não
existe capacidade adequada de resposta.

4) Nas transições hegemônicas anteriores, a emergência de uma nova


potência precipitou o desmoronamento do antigo poder: Inglaterra
em relação à Holanda, Estados Unidos em relação à Inglaterra.
Embora os autores coloquem em evidência a crescente expansão
econômica do Leste da Ásia, isto não configura uma ameaça ao po-
derio militar estadunidense. Esta situação impõe uma marca peculiar
à atual mudança no sistema mundial, cujo desfecho poderá ser mais
ou menos problemático dependendo da atitude dos Estados Unidos:

“[...] essa nação tem uma capacidade ainda maior do que teve a Grã-
Bretanha, cem anos atrás, para converter sua hegemonia decrescente em
uma dominação exploradora. Se o sistema vier a entrar em colapso, será so-
bretudo pela resistência norte-americana à adaptação e à conciliação. E, in-
versamente, a adaptação e a conciliação norte-americanas ao crescente po-
der econômico da região do Leste da Ásia é condição essencial para uma
transição não catastrófica para uma nova ordem mundial” (idem:298).

As respostas do governo dos Estados Unidos aos atentados de 11 de


setembro de 2001 representaram um teste importante para os argu-
mentos da crise de hegemonia. Sem rejeitar completamente as teses
de Arrighi e Silver (idem), Ana Esther Ceceña (2002:181) sustenta
que “a hegemonia estadunidense está em decadência ao mesmo tem-
po em que se encontra mais forte e consolidada do que nunca antes na
história”.

334 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005


Os Estados Unidos e as Relações
Internacionais Contemporâneas

Em apoio a essa afirmação, aparentemente contraditória, Ceceña


destaca os fatores que sustentam e comprometem a manutenção da
posição hegemônica. Paralelamente à supremacia militar apontada
por Arrighi e Silver (2001), adquirem relevância as dimensões eco-
nômica e cultural.

No plano econômico, verifica-se a


“Superioridade tecnológica em quase todos os campos estratégicos da con-
corrência [...]; superioridade no controle de fontes naturais de recursos es-
tratégicos; rede produtiva de maior amplitude e densidade do mundo; mane-
jo do mercado de trabalho mais diverso do ponto de vista cultural, geográfi-
co e de níveis e tipos de conhecimento; capacidade de controle dos mecanis-
mos de organização econômica mundial tais como políticas gerais (BM,
OMC e outros), dívida (FMI, FED e outros), protocolos de regulamentação
etc.” (Ceceña, 2002:168-169).

No âmbito cultural, reconhece a


“Capacidade para generalizar, ainda que com contradições, um paradigma
cultural correspondente ao american way of life – e ao que este significa tra-
duzido a outras situações e culturas – que coincide com a homogeneização
de mercados, a estandardização da produção e a uniformização das visões
sobre o mundo” (idem:169).

No interior do governo dos Estados Unidos, consolidam-se as posi-


ções favoráveis ao aprofundamento da hegemonia, conduzindo a um
intervencionismo que incorpora no seu discurso as três dimensões
apontadas por Ceceña (idem): as invasões do Afeganistão e do Ira-
que, anunciadas como resposta militar às novas ameaças terroristas,
em países situados em uma área geográfica estratégica em termos de
acesso a reservas petrolíferas, governados por regimes políticos em-
blemáticos da oposição ao “modo de vida ocidental”.

Em relação aos fatores limitantes da hegemonia, a autora coincide


com Arrighi e Silver (2001) na caracterização dos impasses sociais
gerados pelo sistema, não deixando aos setores populares outra alter-
nativa fora da sua negação. “Um sistema sem opções, sem saídas,

335
Luis Fernando Ayerbe

sem soluções para as imensas maiorias negadas que não têm maneira
de se sustentar e criam, como dizia Marx, as condições da sua auto-
destruição” (Ceceña, 2002:182).

Choque de Civilizações:
Uma Ideologia Nacional

O reconhecimento de que a hegemonia dos Estados Unidos se tornou


uma realidade incontestada da Nova Ordem Mundial abre espaço
para um processo de debates no interior do establishment vinculado à
política externa do país sobre a caracterização da nova etapa e a for-
mulação de uma estratégia internacional adequada. A substituição
do paradigma da Guerra Fria requer uma redefinição dos interesses
nacionais, desafios e ameaças a enfrentar.

A partir de uma perspectiva conservadora, Samuel Huntington cha-


ma a atenção para as conseqüências negativas do unilateralismo da
política externa norte-americana do pós-Guerra Fria. Diferentemen-
te de Arrighi e Silver (2001), que situam na história do capitalismo as
referências do que consideram uma crise da atual potência hegemô-
nica, Huntington preocupa-se com os fatores que podem corroer a
continuidade da civilização ocidental e, conseqüentemente, dos
Estados Unidos como nação.

Em artigo publicado em 1993 na revista Foreign Affairs, Huntington


(1993) propõe uma nova abordagem sobre a dinâmica das relações
internacionais, desencadeando um amplo debate. Na sua caracteriza-
ção da Nova Ordem Mundial, quatro aspectos são destacados: 1) a
derrota do socialismo, promotor de um sistema econômico que ques-
tionava a propriedade privada dos meios de produção; 2) a dissemi-
nação global da lógica do mercado; 3) o controle das instituições
econômicas multilaterais (FMI, Banco Mundial, OMC) pelos países
do capitalismo avançado; 4) a conquista da superioridade militar por
parte da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN).

336 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005


Os Estados Unidos e as Relações
Internacionais Contemporâneas

O autor considera que as principais fontes de conflito na ordem em


configuração não serão políticas, ideológicas ou econômicas, elas vi-
rão das linhas que separam as diversas culturas e civilizações: oci-
dental, confuciana, japonesa, islâmica, hindu, eslava ortodoxa, lati-
no-americana e africana.

Da perspectiva de Huntington (1997), a noção de que a derrota do ini-


migo soviético elimina o último obstáculo ao avanço triunfal da de-
mocracia liberal, do capitalismo de mercado e dos valores da civili-
zação ocidental é questionável. Colocando-se na contramão das pos-
turas ufanistas, explicita sua oposição às teses do fim da história, des-
tacando os genocídios que emergem após a queda do muro de Ber-
lim, de freqüência mais comum do que em qualquer período da Guer-
ra Fria: “O paradigma de um só mundo harmônico está claramente
divorciado demais da realidade para ser um guia útil no mundo
pós-Guerra Fria” (idem:33).

Em uma ordem mundial em que as principais fontes de conflito são


de origem cultural, a afirmação de identidades adquire especial rele-
vância, implicando em desdobramentos específicos na definição do
interesse nacional. Referindo-se aos Estados Unidos, Huntington
destaca a necessidade de se estabelecer um consenso sobre as bases
constitutivas da cultura do país, antes de definir quais são seus inte-
resses. No entanto, como o próprio autor reconhece, “nós só sabemos
quem somos quando sabemos quem não somos e, muitas vezes,
quando sabemos contra quem estamos” (idem:20).

Com o fim da Guerra Fria, desaparece o “outro” que encarnava a ne-


gação do modo de vida americano e justificava a necessidade de uma
postura nacional coesa e militante. As transformações demográficas,
com novas ondas migratórias de população de origem predominante-
mente hispânica, influenciam mudanças raciais, religiosas e étnicas
que podem colocar obstáculos à tradicional capacidade do país de as-

337
Luis Fernando Ayerbe

similar outras culturas. Nessa perspectiva, a afirmação da identidade


requer uma nova demarcação das fronteiras em relação aos outros.

Essa tarefa tem dimensões internacionais e domésticas. O mundo das


civilizações é um campo de muitas incertezas, em que a ação dos ato-
res responde a diversos tipos de racionalidades, muito mais comple-
xas do que a lógica bipolar da Guerra Fria. Conhecer-se e conhecer os
outros exige cautela. Na política externa, Huntington recomenda
uma postura não intervencionista. Os Estados Unidos devem reco-
nhecer os espaços civilizacionais e os seus respectivos Esta-
dos-núcleos, evitando o envolvimento nos conflitos internos das ou-
tras civilizações.

Analisando a inserção internacional do país após o fim da Guerra


Fria, Huntington (2000) identifica três etapas: 1ª) um breve momento
unipolar, tipificado na ação unilateral na Guerra do Golfo; 2ª) um sis-
tema unimultipolar em andamento, que prepara a transição para a
terceira etapa; 3ª) etapa multipolar. No contexto atual, o autor perce-
be uma contradição entre o sistema unimultipolar e a política externa
adotada a partir do governo Clinton, que mantém características típi-
cas da unipolaridade, com uma postura imperialista que provoca a in-
satisfação dos aliados tradicionais e estimula a solidariedade entre os
adversários. Essa política se expressa em ações bastante evidentes
como
“[...] pressionar outros países a adotar valores e práticas norte-americanas
no que diz respeito aos direitos humanos e à democracia; evitar que outros
países adquiram capacidade militar que possa constituir um desafio à supe-
rioridade de seu arsenal de armas convencionais; impor o cumprimento de
suas próprias leis fora de seu território a outras sociedades; atribuir classifi-
cações aos países de acordo com seu grau de aceitação aos padrões nor-
te-americanos no que concerne a direitos humanos, drogas, terrorismo, pro-
liferação de armas nucleares e de mísseis ou, mais recentemente, liberdade
de religião; aplicar sanções aos países que não atendam tais padrões; pro-
mover os interesses empresariais norte-americanos sob a bandeira do livre
comércio e da abertura de mercados; influenciar as políticas do Banco Mun-

338 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005


Os Estados Unidos e as Relações
Internacionais Contemporâneas

dial e do Fundo Monetário Internacional segundo esses mesmos interesses


corporativos; intervir em conflitos locais de pouco interesse direto para o
país; impor a outros países a adoção de políticas econômicas e sociais que
beneficiarão os interesses econômicos norte-americanos; promover a ven-
da de armas para o exterior ao mesmo tempo procurando evitar vendas de
natureza semelhante por parte de outros países” (idem:15).

Referindo-se ao contexto posterior ao 11 de Setembro e ao debate so-


bre as posições que deverão ser assumidas na defesa dos interesses
nacionais do país, Huntington (2004) sistematiza três abordagens di-
ferentes: 1) cosmopolita, que envolveria a renovação das concepções
favoráveis à abertura ao mundo antes do ataque terrorista; 2) impe-
rial, vinculada aos setores neoconservadores presentes no governo
Bush, que defendem a estruturação do mundo à imagem e semelhan-
ça do american way of life; e 3) nacional, próxima da sua própria
perspectiva, que busca preservar e enaltecer os valores, princípios e
qualidades que estariam presentes nas origens da construção da na-
ção. Dessa perspectiva, o “cosmopolitismo e o imperialismo procu-
ram reduzir ou eliminar as diferenças sociais, políticas e culturais en-
tre a América e as outras sociedades. Uma abordagem nacional reco-
nheceria e aceitaria aquilo que distingue a América de outras socie-
dades” (idem:364).

A grande repercussão das teses de Huntington nos debates sobre a


nova configuração das relações internacionais após o fim da bipolari-
dade não esteve isenta de controvérsias, com críticas que destacam
desde a ausência de rigor conceitual na caracterização das civiliza-
ções existentes até a adoção de um culturalismo com nítidas conota-
ções ideológicas, que enaltece as virtudes da “civilização ocidental”
em detrimento do “resto” e influencia posturas isolacionistas na polí-
tica externa, animadas por argumentos discriminatórios em relação
às outras civilizações (Ayerbe, 2003).

Sem desconsiderar a validade desses questionamentos, se avaliada à


luz da sua intencionalidade explícita de defesa dos interesses nacio-

339
Luis Fernando Ayerbe

nais dos Estados Unidos, a análise de Huntington apresenta uma ra-


cionalidade estratégica de longo alcance que nos parece relevante.

Para o autor, a derrota da União Soviética colocou o Ocidente em


uma situação de inquestionável supremacia global. Na ausência de
uma superpotência inimiga do sistema, os apoios incondicionais e a
noção de “guardião do mundo livre” perdem significado. Os assun-
tos mundiais ganham outra dimensão. Perdas e danos na concorrên-
cia por mercados, ou situações de desequilíbrio político geradoras de
conflitos regionais, deixam de ser vistos com lentes ideológicas.
Nesse contexto, assumir perspectivas missionárias pode levar a últi-
ma superpotência a um processo de isolamento. A administração da
hegemonia exige um cuidadoso trabalho de geração de novas alian-
ças e tratamento negociado das divergências, buscando amenizar ou,
no melhor dos casos, eliminar o caráter antagônico das contradições,
o que torna contraproducentes as posturas arrogantes e intervencio-
nistas. Na raiz do seu culturalismo, está a crescente preocupação com
novas fontes de conflito que, embora não coloquem em questão o sis-
tema, podem afetar a governabilidade. Para Huntington, após as vitó-
rias da Guerra Fria, não há nada decisivo a ser conquistado.

Nesse sentido, há uma diferença substancial em relação à análise de


Arrighi e Silver (2001), que situa na história do capitalismo as refe-
rências atuais do que consideram uma crise da hegemonia nor-
te-americana. A principal preocupação de Huntington não é com as
ameaças externas. Embora chame a atenção para o crescente poderio
da China, não vê possibilidades de riscos que ponham em questão a
existência do sistema. O principal dilema é a continuidade dos funda-
mentos culturais que colocaram a civilização ocidental, e os Estados
Unidos, na liderança do mundo. Uma vez atingido o ápice dessa tra-
jetória, como evitar os sinais de declínio presentes em alguns valores
e comportamentos que tendem a minar a identidade nacional?

No âmbito internacional, a crescente ampliação do abismo entre a ri-


queza e a pobreza, uma das tendências da atual realidade mundial so-

340 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005


Os Estados Unidos e as Relações
Internacionais Contemporâneas

bre a qual existe bastante consenso, sinaliza que a prosperidade


anunciada pela vitória do capitalismo liberal é estruturalmente restri-
ta. Deste ponto de vista, qual o sentido de estimular expectativas so-
bre a inevitável disseminação global do american way of life?

Diferentemente de Hardt e Negri (2001), Huntington não deixa dúvi-


das sobre o caráter imperialista da ação integrada envolvendo o Esta-
do, o setor privado e os organismos multilaterais. A imposição de
modelos econômicos que, em nome da liberdade de mercado, pro-
movem basicamente a maximização dos lucros das empresas nor-
te-americanas no exterior, pode ter conseqüências danosas nos paí-
ses e regiões com menor capacidade de adaptação à competição glo-
bal, acentuando as disparidades entre ricos e pobres e contribuindo
para inflamar sentimentos fundamentalistas.

É com base nesses pressupostos que critica explicitamente a aborda-


gem do “fim da história”, típica da tradição imperial do Ocidente,
que prescreve ao resto do mundo modos universais de convívio hu-
mano. Se bem considera essa perspectiva válida em outros contextos,
ajudando a promover sua expansão, deixou de ser aconselhável. No
plano internacional, pelas conseqüências antes mencionadas, inter-
namente, porque estimula um clima intelectual propício à acomoda-
ção no desfrute da vitória e à perda de vigilância em relação aos ini-
migos.

Para Chalmers Johnson (2004), um crítico da política externa de Ge-


orge W. Bush, a atuação internacional dos Estados Unidos aparenta
adotar a tese do Choque de Civilizações, embora em um sentido
oposto do isolacionismo prescrito por Huntington, recriando um
“missionarismo” fundamentalista cristão. Apesar de avaliar negati-
vamente os custos econômicos da dominação militar do mundo, que
desvia recursos da economia privada e contradiz o espírito de livre
iniciativa, Johnson (idem:310) não assume uma posição definitiva
sobre o futuro: “deve-se reconhecer que qualquer estudo sobre o nos-

341
Luis Fernando Ayerbe

so império é um trabalho em andamento. Mesmo que possamos co-


nhecer seus resultados eventuais, não está totalmente claro o que
vem depois”.

Unilateralismo/Multilatera-
lismo: A “Doutrina Bush”

Na era das armas nucleares, não é possível imaginar a emergência de


novas superpotências como resultado da derrocada militar das anti-
gas. Como mostra a experiência da ex-União Soviética, a implosão
pode resultar da incapacidade do sistema de responder às pressões
originárias de um cenário internacional cuja dinâmica se torna in-
compatível com a manutenção da ordem vigente.

A Rússia apresenta-se como o elo fraco das crises que inauguraram e


fecharam o curto século XX delimitado por Hobsbawm. A revolução
vitoriosa de 1917 gerou um modelo de desenvolvimento que trans-
formou o país em protagonista central das relações internacionais,
cabendo-lhe papel de destaque na vitória dos aliados na Segunda
Guerra e compartilhando com os Estados Unidos o status de super-
potência nas décadas da Guerra Fria. No entanto, sucumbiu perante
os desafios da radicalização de antagonismos promovida pelo gover-
no Reagan. Os crescentes esforços econômicos exigidos pela manu-
tenção do equilíbrio de poder minaram a capacidade de sustentação
do sistema, em um contexto em que os rápidos avanços no campo
tecnológico aprofundam as disparidades entre os países que lideram
o processo de inovação, marcadamente as potências capitalistas, e
aqueles como a antiga URSS, cujo crescimento permanece forte-
mente dependente da disponibilidade de mão-de-obra e de recursos
naturais.

No caso dos Estados Unidos, é possível caracterizá-lo, na perspecti-


va de Arrighi e Silver (2001), como o atual elo fraco da cadeia impe-

342 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005


Os Estados Unidos e as Relações
Internacionais Contemporâneas

rialista? Como bem mostra Ceceña (2002), a hegemonia do país não


se dá apenas no campo militar, mas também no econômico e cultural.

Do meu ponto de vista, o unilateralismo da política externa de Geor-


ge W. Bush não é uma resposta improvisada aos atentados de 11 de
setembro, é uma marca característica da sua gestão. Desde a posse,
redefine a posição do país frente a importantes tratados internacio-
nais, sinalizando várias diferenças em relação à administração ante-
rior, como as decisões contrárias à ratificação do protocolo de Kyoto,
à criação do Tribunal Penal Internacional (TPI) e à proposta de revi-
são do Tratado Anti-mísseis Balísticos (TAB).

Os atentados contribuem para consolidar no interior do establish-


ment as posições favoráveis à entronização dos Estados Unidos
como principais responsáveis pela vigilância e punição dos inimigos
da ordem, já não como guardiões do “mundo livre”, mas como prote-
tores das fronteiras que separam a “civilização” da “barbárie”, dotan-
do a guerra declarada ao terrorismo de contornos bem amplos. A ca-
racterização dos grupos patrocinadores do terrorismo é suficiente-
mente ambígua, como que para justificar a inclusão ou exclusão de
organizações ou movimentos de acordo com os interesses conjuntu-
rais do país. Conforme explicitou Colin Powell (2001), secretário de
Estado no primeiro mandato de Bush: “Qualquer organização que
esteja interessada em operações terroristas para subverter os gover-
nos legítimos, democraticamente eleitos, ou governos que represen-
tam a vontade de seu povo, é uma ameaça”.

A despeito do apoio internacional recebido pelos Estados Unidos no


ataque ao Afeganistão, a rápida vitória militar contribuiu para forta-
lecer o unilateralismo. O resultado foi a formulação de uma nova
concepção na orientação das relações internacionais do país, que
passou a ser conhecida como “Doutrina Bush”, cujo alvo imediato
foi o regime iraquiano de Saddam Hussein.

343
Luis Fernando Ayerbe

Conforme explicita o documento “A Estratégia de Segurança Nacio-


nal dos EUA” (NSC, 2002), dado a conhecer pela Casa Branca em
setembro de 2002, a contenção e a dissuasão, que nortearam a políti-
ca externa nas décadas da Guerra Fria, perdem centralidade para a
preempção e a prevenção, justificando ataques contra Estados e orga-
nizações suspeitos de planejarem atos de hostilidade contra o país e
os seus aliados.

“Na Guerra Fria, especialmente no contexto da crise dos mísseis cubanos,


nós geralmente enfrentamos um status quo, um adversário com aversão ao
risco. A contenção era uma defesa eficaz. Mas a contenção baseada somente
na ameaça da retaliação tem menos probabilidade de funcionar contra líde-
res de Estados fora-da-lei com maior disposição para assumirem riscos, jo-
gando com as vidas de seus povos e a riqueza de suas nações. Para prevenir
ou impedir tais atos hostis por parte dos nossos adversários, os Estados Uni-
dos, se necessário, atuarão preventivamente” (idem:15).

A nova postura está animada pela exaltação das virtudes do capitalis-


mo e da democracia liberal, pilares de um modo de vida que se pre-
tende universal: “Os grandes conflitos do século XX, travados entre a
liberdade e o totalitarismo, terminaram com a vitória decisiva das
forças da liberdade – e com um único modelo sustentável para o êxito
de uma nação: liberdade, democracia e livre iniciativa” (idem:1).

A opção pelo unilateralismo, apresentado como custo inevitável do


combate às novas formas de terrorismo, recebe críticas de funcioná-
rios da administração anterior, que se posicionam em favor de uma
concepção multilateral das relações internacionais. De acordo com
Joseph Nye Jr. (2004), secretário adjunto da Defesa no governo Clin-
ton, o unilateralismo estaria solapando as bases do poder brando (soft
power) do país, pautado pela atração exercida por seus valores, insti-
tuições e ideologia, levando a uma exacerbação pouco inteligente do
poder duro (hard power), associado à capacidade de induzir a deter-
minados comportamentos.

344 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005


Os Estados Unidos e as Relações
Internacionais Contemporâneas

Na era informacional, a distribuição global do poder entre as nações


não pode ser reduzida ao plano militar. Nye Jr. identifica três dimen-
sões. No topo, o militar, que é nitidamente unipolar; no meio, uma
economia em que vários pólos disputam o jogo e os Estados Unidos
vêem limitada sua hegemonia diante de atores do porte da União Eu-
ropéia; e na base, relações de caráter transnacional: “o poder está
disperso de forma caótica e não tem sentido utilizar termos tradicio-
nais como ‘unipolaridade’, ‘hegemonia’, ou ‘império americano’”
(idem:137). Se o governo dos Estados Unidos concentrar sua estraté-
gia em um jogo unilateral basicamente direcionado à dimensão mili-
tar, descuidará das duas dimensões em que o poder tende a diluir-se
em uma gama ampla de atores. De uma perspectiva de amplitude glo-
bal, essa postura pode redundar em perda crescente de influência.
Para Nye Jr. (idem:146-147),
“A administração de Bush identificou corretamente a natureza dos novos
desafios que enfrenta a nação e reorientou conseqüentemente a estratégia
americana. Mas tanto a administração, como o Congresso e a população, di-
vidiram-se entre diversas abordagens sobre a posta em prática da nova estra-
tégia. O resultado tem sido uma mistura de êxitos e falhas. Estamos tendo
mais sucesso no domínio do poder duro, em que investimos mais, treinamos
mais, e temos uma idéia clara do que estamos fazendo. Temos acertado me-
nos nas áreas do poder brando, em que a nossa diplomacia pública tem sido
preocupantemente inadequada e a nossa negligência com os aliados e insti-
tuições têm criado um sentimento de ilegitimidade que desgasta nosso po-
der de atração”.

A lógica do governo Bush foi bem sintetizada por Paul Wolfowitz


(apud Gardels, 2002), secretário adjunto da Defesa no primeiro man-
dato, para quem os Estados Unidos estariam exercendo um papel de
liderança no resguardo de interesses que envolvem a comunidade in-
ternacional, combatendo os países hostis que fomentam o terroris-
mo.
“Para nós, poder militar é muito mais um meio de defesa. A grande força dos
EUA não é seu poderio militar, mas seu poder econômico. E mais potente

345
Luis Fernando Ayerbe

ainda é nossa força política – aquilo que significamos. No mundo todo, mes-
mo em países cujos regimes nos odeiam, o povo admira o nosso sistema [...].
Claro que há diferença de interesses entre países, mas por causa do modo
como definimos nossos interesses existe uma compatibilidade natural de in-
teresses entre os EUA e os outros países” (idem:A25).

De acordo com Wolfowitz, não há unilateralismo, mas exercício le-


gítimo do poder por parte de um Estado que utiliza sua força em
nome do interesse geral. Para ele, o poderio militar norte-americano
é “uma espécie de cerca protetora em torno da liberdade. Permite-nos
fixar certas fronteiras; não admite que exércitos numerosos atraves-
sem fronteiras” (ibidem).

O (Novo) Imperialismo
Norte-americano

Ivo Daaler e James Lindsay (2003), ex-funcionários do Conselho de


Segurança Nacional no governo Clinton e pesquisadores da Broo-
1
kings Institution , atribuem à política externa de George W. Bush um
caráter revolucionário, não tanto por causa das metas, que não dife-
rem no essencial das administrações anteriores, mas pelos meios
adotados. Para os autores, duas crenças orientam a atuação internaci-
onal dos Estados Unidos:
“A primeira é que, em um mundo perigoso, a melhor – senão a única – ma-
neira de proteger a segurança da América passa pela rejeição dos constran-
gimentos impostos por amigos, aliados e instituições internacionais. Maxi-
mizar a liberdade de ação da América é essencial pela posição única ocupa-
da pelos Estados Unidos, que os transformou no alvo mais provável de todo
país ou grupo hostil ao Ocidente. Os americanos não poderiam contar com
outros para protegê-los; inevitavelmente, os países ignoram as ameaças que
não os envolvem [...]. A segunda crença é que essa América desprovida de
amarras deve usar sua força para mudar o status quo no mundo” (idem:13).

A partir do reconhecimento da incontestável superioridade militar, a


contribuição “revolucionária” de Bush seria sua vontade e decisão de
utilizá-la, enfrentando a resistência dos aliados e forçando definições

346 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005


Os Estados Unidos e as Relações
Internacionais Contemporâneas

em relação às prioridades da agenda internacional. No entanto, a


aposta do presidente trouxe um resultado inesperado, com a rápida
percepção dos limites que cercam o exercício do poder, enfrentando
grandes dificuldades para conquistar e manter apoios para a segunda
Guerra do Golfo.

A partir da invasão ao Iraque, tornam-se mais explícitas as controvér-


sias entre os que vêem na intervenção uma exacerbação contraprodu-
cente do poderio militar, os que vislumbram mais um sintoma de cri-
se de hegemonia e os que defendem o papel dos Estados Unidos
como nação indispensável, única disposta a adotar medidas extremas
de acordo com a natureza dos desafios.

Entre os primeiros, a principal linha de questionamento passa pelas


bases conceituais e argumentos políticos que fundamentam a pre-
empção e a prevenção. Para Zbigniew Brzezinski (2004), assessor de
Segurança Nacional na presidência de James Carter, as ações unila-
terais do governo Bush pautam-se por uma visão do mundo em preto
e branco que não admite matizes, cujo sustentáculo é uma doutrina
de eficiência estratégica questionável.
“A preempção pode se justificar na base do supremo interesse nacional na
presença de uma ameaça iminente, e assim, quase que por definição, é plau-
sível que seja unilateral [...]. A prevenção, ao contrário, deve ser precedida,
se possível, pela mobilização da pressão política (incluindo o apoio interna-
cional) a fim de prevenir que ocorra o indesejável, e deve envolver o recurso
da força somente quando outros remédios foram esgotados e a contenção
não é mais uma alternativa digna de crédito” (idem:37).

Caso a superpotência cometa erros de avaliação na caracterização do


tipo de ameaça a enfrentar, pode terminar iniciando uma guerra pre-
ventiva unilateral travestida de preempção. Embora reconheça a im-
portância dos Estados Unidos como a única nação capaz de manter a
ordem em um mundo em constante turbulência, Brzezinski aposta na
sua capacidade para liderar um esforço multilateral em favor da cria-
ção de uma comunidade global de interesses compartilhados. No en-

347
Luis Fernando Ayerbe

tanto, a nova doutrina, com sua decorrência imediata de invasão ao


Iraque, tem levado a um isolamento crescente, configurando um cu-
rioso paradoxo: “A credibilidade militar global americana nunca foi
tão alta, no entanto, sua credibilidade política global nunca foi tão ba-
ixa” (idem:214).

O viés militar da política externa dos Estados Unidos é enfatizado


por Michael Mann (2004) na caracterização do que denomina “im-
pério incoerente”. Apesar dos argumentos universais invocados pela
administração Bush em favor da democracia, a liberdade e a prospe-
ridade econômica, o autor chama a atenção para uma prática pautada
basicamente na promoção dos interesses das elites dominantes, tanto
daquelas mais próximas do Estado, como das que representam o po-
der dos chamados mercados, defensoras da disseminação global do
neoliberalismo. A incoerência entre o discurso e a realidade estaria
comprometendo cada vez mais a credibilidade internacional do país,
sendo que a resposta das autoridades governamentais tende a pau-
tar-se pela exacerbação do poderio militar, marca do novo imperia-
lismo em construção.

Para Mann (idem:25-26), a superação do impasse ao qual o país está


sendo levado pela administração Bush deverá vir fundamentalmente
da mudança na correlação de forças na política nacional que se segui-
rá ao fracasso da atual política externa: “Com um pouco de sorte, a
isso seguirá o abandono voluntário do projeto imperial por parte dos
estadunidenses, o que, por sua vez, preservará em grande medida a
hegemonia norte-americana”.

Respondendo à pergunta sobre o que seria uma visão realista da atual


configuração mundial do poder, em entrevista a Harry Kreisler
(2003), do Instituto de Estudos Internacionais da Universidade da
Califórnia, Kenneth Waltz resgata a atualidade das políticas de con-
tenção e dissuasão:

348 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005


Os Estados Unidos e as Relações
Internacionais Contemporâneas

“Não importa o quão freqüentemente as pessoas da administração Bush di-


gam que a ‘contenção e a dissuasão não funcionam’, funcionam da mesma
forma que sempre em relação às finalidades para as quais sempre pensamos
que estavam projetadas. Isto é, deter outros países de usar suas armas de for-
ma que coloquem em perigo interesses manifestamente vitais dos Estados
Unidos ou daqueles a quem dão apoio”.

No caso da invasão ao Iraque, Waltz considera inadequada a aplica-


ção dos argumentos em favor da preempção e da prevenção. O regi-
me de Saddam Hussein não representava uma ameaça iminente de
ataque aos seus vizinhos ou aos Estados Unidos, mantendo-se em
uma posição defensiva. Por outro lado, sua capacidade potencial de
transformar um país com um produto bruto de 15 bilhões de dólares,
sob constante vigilância e controle por parte da Organização das Na-
ções Unidas (ONU) e dos Estados Unidos, em uma futura potência
nuclear estava fora de cogitação.

Para Waltz, o ex-dirigente do Iraque, assim como os demais líderes


dos chamados Estados fora-da-lei, são sobreviventes de situações
adversas que se estendem por longos períodos. “As pessoas insanas
não se mantêm no poder contra um grande número de inimigos, seja
internamente como externamente” (idem). Como sujeitos racionais
que buscam permanecer no poder, são suscetíveis à contenção e à
dissuasão.

O mesmo se aplica às redes terroristas como Al Qaeda, na eventuali-


dade de chegarem a governar algum país, mesmo um que tenha ar-
mas nucleares, como o Paquistão. Para Waltz, as redes terroristas se-
riam socializadas pela lógica do poder estatal, amenizando seu radi-
calismo ideológico, principalmente o que justifica e estimula ataques
suicidas. Nesse sentido, defende a contenção nuclear como estraté-
gia de eficácia comprovada, independentemente da inimizade radi-
cal de certos regimes em relação aos Estados Unidos, citando como
exemplo a trajetória da China de Mao Tse-Tung, que transitou da tur-

349
Luis Fernando Ayerbe

bulência esquerdista dos anos da Revolução Cultural aos acordos


com Nixon na década de 1970.

Em relação à situação de supremacia estadunidense que marca o pe-


ríodo pós-Guerra Fria, Waltz descrê da capacidade de autocontrole
da superpotência. “A característica-chave de um mundo unipolar é
que não há nenhuma restrição e contrapeso a esse poder, então ele
está livre para seguir sua fantasia, está livre para agir por seus capri-
chos” (idem).

Reafirmando a atualidade do realismo, Waltz (2002) vê a unipolari-


dade como um momento transitório por definição. O futuro surgi-
mento de grandes potências a partir da projeção internacional da
União Européia, Japão, China e Rússia acabará restaurando o equilí-
brio de poder, tendência predominante das relações interestatais des-
de a segunda metade do século XVII.

Essa certeza é questionada por Ikenberry (2002a), que vê no ordena-


mento pós-Guerra Fria uma peculiaridade que considera persistente
e estável: a cooperação entre as democracias do capitalismo avança-
do convivendo com a ausência de equilíbrio de poder. A permanência
desta situação deve muito ao caráter liberal da hegemonia dos Esta-
dos Unidos, que Ikenberry considera inédito comparativamente às
potências anteriormente predominantes no mundo ocidental. As
marcas distintivas seriam a relutância em assumir explicitamente a
primazia dos EUA, seu caráter penetrante, que gera transparência e
se abre a Estados secundários, e sua alta institucionalidade, que per-
mite o estabelecimento de mecanismos de interação pautados por re-
gras consensuais.

As características apontadas outorgariam ao país a credibilidade ne-


cessária para consolidar uma liderança benigna e, conseqüentemen-
te, aceitável para outros Estados, na promoção de uma ordem “cons-
truída em torno de interesses e valores comuns entre os países indus-
triais avançados e ancorada no capitalismo e na democracia. Mas

350 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005


Os Estados Unidos e as Relações
Internacionais Contemporâneas

também uma ordem politicamente projetada, construída com base


no poder americano, relações institucionais, e negociações políticas,
particularmente com Europa e Japão” (idem:216).

A continuidade da tendência inaugurada pelo fim da bipolaridade de-


pende da capacidade dos governos dos Estados Unidos de percebe-
rem os ganhos estratégicos da autolimitação do uso do poder, apos-
tando no fortalecimento das instituições, que Ikenberry considera
um investimento hegemônico em uma ordem mais previsível e per-
manente “que proteja seus interesses no futuro” (idem:221).

Ikenberry situa suas posições em um campo distante do realismo e da


hegemonia, abordagens estado-centristas que considera inadequa-
das para explicar a dinâmica dominante de uma ordem ocidental ba-
seada em instituições, cuja salvaguarda não se assenta no equilíbrio,
mas na liderança de uma potência essencialmente liberal, que poderá
ter uma continuidade indeterminada, estreitamente vinculada à sabe-
doria com que exerça seu poder.

Em relação a esse último aspecto, o autor manifesta preocupações


com as tendências unilaterais que marcam desde o início a adminis-
tração Bush, acentuando-se após o 11 de Setembro, com a nova dou-
trina de segurança, que classifica como neo-imperial, ameaçadora
das conquistas obtidas pelo país na construção da sua liderança. A
persistência no unilateralismo seria altamente custosa, principal-
mente em quatro aspectos: 1) ao explicitar a decisão de agir preventi-
vamente, poderia estimular respostas defensivas de outros países,
que buscariam no desenvolvimento de programas de armas nuclea-
res uma forma de dissuasão a eventuais ataques estadunidenses; 2) as
intervenções militares trazem como conseqüência a implementação
de ações de manutenção da paz e construção de nações que, depen-
dendo do número e extensão das guerras movidas pelo país, gerarão
uma carga econômica capaz de configurar o fenômeno da expansão
excessiva; 3) a postura imperial dificulta as alianças, justamente em

351
Luis Fernando Ayerbe

um contexto de luta contra o terrorismo que torna cada vez mais ne-
cessária a divisão de responsabilidades com sócios confiáveis; 4) ao
superestimar seu próprio poder, o país pode cair na armadilha em que
caíram no passado outros Estados imperiais, o autofechamento, le-
vando os demais países a buscar alternativas que descartem uma do-
minação estadunidense.

Para Ikenberry (2002b:60), “mais do que inventar uma nova grande


estratégia, os Estados Unidos deveriam revigorar as antigas, que se
baseavam na idéia de que seus sócios em matéria de segurança não
são meras ferramentas, mas elementos-chave de uma ordem política
mundial a preservar dirigida pelos Estados Unidos”.

A idéia de que o unilateralismo poderia representar o prenúncio de


uma futura perda de hegemonia é compartilhada por diversos analis-
tas, que apresentam um conjunto de fatos econômicos e políticos que
fortaleceriam essa hipótese.

No âmbito da economia, a percepção de crise torna-se mais visível a


partir da administração Bush, com a diminuição do ritmo de cresci-
mento que caracterizou o período de Clinton, paralelamente ao au-
mento do desemprego e à forte expansão dos gastos com defesa, cujo
orçamento teve, em 2003, um incremento de 37 bilhões de dólares
em relação ao ano anterior, chegando a 355 bilhões e 400 milhões de
dólares, ou quase 17% do orçamento nacional total do país, de 2 tri-
lhões e 100 bilhões de dólares (Montoya, 2003). Para o ano fiscal de
2006, o secretário da Defesa solicitou 419,3 bilhões de dólares, o que
representa, segundo os cálculos do próprio Departamento, uma ele-
vação de 5% em relação ao ano anterior e de 41% em relação a 2001
(Department of Defense, 2005). De acordo com Chalmers Johnson
(2004:288), “93% das alocações para assuntos internacionais estão
indo para a área militar e apenas 7% para o Departamento de Esta-
do”.

352 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005


Os Estados Unidos e as Relações
Internacionais Contemporâneas

Para além do aumento de gastos do governo Bush, alguns autores


chamam a atenção para indicadores que expressam uma tendência de
deterioração econômica que vêm de períodos anteriores: crescente
déficit comercial, que passa de 100 bilhões de dólares em 1990 para
450 bilhões em 2000, necessitando de entradas financeiras de 1 bi-
lhão por dia para cobri-lo; concentração da renda, que para os 5%
mais ricos passa de 15,5% em 1980 para 21,9% em 2000 e para os
80% menos ricos cai de 56,9% para 50,6% (Todd, 2003); dependên-
cia energética, dado que o país conta com apenas 5% da população
mundial, 2% das reservas globais de petróleo e 11% da produção pe-
troleira mundial, mas consome quase 26% do total extraído no mun-
do, sendo que, para os próximos vinte anos, calcula-se um incremen-
to no seu consumo de 6 milhões de barris diários (Rifkin, 2002).

A dimensão petroleira é um dos aspectos destacados por David Har-


vey (2004) na sua caracterização das motivações do militarismo de
Bush no Oriente Médio. Situando-se no campo do marxismo, sua
abordagem toma como referência a interação entre as estratégias do
Estado e do capital, como atores centrais da variedade capitalista do
imperialismo. Dessa perspectiva, a ação no Iraque articula interesses
que vão além do conjuntural em termos de garantir a presença de um
governo confiável em um país que detém as segundas maiores reser-
vas de petróleo, favorecendo um aumento da produção capaz de di-
minuir o mais rapidamente possível os preços do barril. Consideran-
do que grandes competidores internacionais dos Estados Unidos nos
campos da produção e das finanças, como Europa, Japão e o Leste da
Ásia, incluindo a China, são fortemente dependentes do petróleo da
região do Golfo Pérsico, Harvey (idem:30) formula duas questões
importantes sobre as motivações do intervencionismo de Bush:
“Que melhor forma de os Estados Unidos evitarem essa competição e ga-
rantirem sua posição hegemônica do que controlar o preço, as condições e a
distribuição do recurso econômico decisivo de que dependem esses compe-
tidores? E que modo melhor de fazê-lo do que usar a linha de força em que
os Estados Unidos ainda permanecem todo-poderosos – o poder militar?”.

353
Luis Fernando Ayerbe

Essa postura, embora expresse uma racionalidade estratégica, é reve-


ladora da ausência de outras opções capazes de reverter um quadro
de crescente deterioração da competitividade internacional da eco-
nomia dos Estados Unidos. Neste aspecto, Harvey partilha das posi-
ções de Arrighi e Silver (2001) de que está em andamento um proces-
so de transição hegemônica, em que o declínio busca ser compensa-
do com políticas explícitas de dominação.

No campo dos argumentos políticos, alguns autores europeus come-


çam a questionar a relevância mundial que os Estados Unidos se atri-
buem. Para Emmanuel Todd (2003), os fatores econômicos acima
apontados geram uma crescente necessidade de inflacionar ameaças,
alimentando o ativismo internacional do país. Isto levaria seu gover-
no a assumir um “militarismo teatral” composto por três característi-
cas principais:
“– Nunca resolver definitivamente um problema, para justificar a ação mili-
tar indefinida da ‘única superpotência’ em escala planetária.
– Fixar-se em micropotências – Iraque, Irã, Coréia do Norte, Cuba, etc. A
única maneira de continuar politicamente no centro do mundo e ‘enfrentar’
atores menores.
– Desenvolver novas armas que supostamente poriam os Estados Unidos
‘muito à frente’, numa corrida armamentista que não pode mais cessar”
(idem:32).

Todd (idem:98) aposta na insustentabilidade do império americano,


cuja desaparição ocorreria antes de 2050, por duas razões básicas:
“Seu poder de coerção militar e econômica é insuficiente para manter o ní-
vel atual de exploração do planeta; seu universalismo ideológico está em de-
clínio e não lhe permite mais tratar os homens e os povos de maneira iguali-
tária, para garantir-lhes a paz e a prosperidade tanto quanto para explo-
rá-los”.

Na mesma direção de Todd, Alain Joxe (2003) critica a fragilidade


das premissas em que se apóia o atual poderio americano, que carac-
teriza como império do caos, ao assumir uma ação de combate aos

354 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005


Os Estados Unidos e as Relações
Internacionais Contemporâneas

sintomas e não às causas dos conflitos que se disseminam pelo mun-


do, construindo um “sistema que apenas se consagra a regular a de-
sordem por meio de normas financeiras e expedições militares, sem
um projeto de permanência no terreno conquistado” (idem:21). Caso
continue predominando essa postura na política externa dos Estados
Unidos, o autor vê como tendência a emergência de um regime anti-
democrático mundial, diante do qual propõe a recuperação da tradi-
ção republicana européia, que considera menos maniqueísta na abor-
dagem dos conflitos, pautando suas relações exteriores pelo respeito
à pluralidade, pela tolerância, a não-intervenção e a busca de uma
maior eqüidade econômica e social. Nessa tradição, a tirania
“[...] não é considerada como não humana senão como um modo de governo
antidemocrático; a luta de classes não é um crime senão um estado normal
das sociedades desenvolvidas que deve pacificar-se na democracia, mas não
‘desaparecer’. A redistribuição da renda mediante um procedimento volun-
tário de partilha eqüitativa é o abc da ciência política desde Aristóteles, e
não o pensamento delirante de um subversivo louco. A visão européia em
relação ao Outro, concebida como oposição política, é portanto essencial-
mente diferente da dos estadunidenses, que a constroem como exclusão”
(idem:239-240).

Para Ulrich Beck (2004), a União Européia exemplifica as possibili-


dades de construção de um sistema estatal transnacional e cosmopo-
lita, resposta necessária a uma dinâmica global que já não pode ser
interpretada por meio de leituras nacionais. O conceito adequado é o
de “metajogo” da política mundial, cenário no qual interatuam seus
três grandes protagonistas, os Estados, o capital e a sociedade civil
global, configurando um equilíbrio de poderes em que nenhum ator
tem condições de impor seus interesses.
“Todos necessitam coligar-se para tornar realidade seus objetivos respecti-
vos, o que põe em funcionamento uma dinâmica de entrelaçamento, [...] um
regime de inimigos sem inimigos, ou seja, um regime que integra os opo-
nentes mediante a reprodução inclusiva, com o que está perfeitamente em
situação de gerar e renovar o dissenso-consenso que assegura seu próprio
espaço de poder” (idem:377; 379).

355
Luis Fernando Ayerbe

Em termos estratégicos, o desenvolvimento desse processo de trans-


nacionalização da economia e da política conduziria à conformação
de um Estado cosmopolita, capaz de reconhecer e defender a igual-
dade e a diversidade nas dimensões étnicas e nacionais. Para Beck, a
política externa dos Estados Unidos pós-11de setembro caminha em
direção contrária a essa tendência, na medida em que atribui ao Esta-
do nacional um papel vigilante e interventor com autonomia para sa-
crificar a legalidade dentro e fora do país em nome do combate ao ter-
rorismo, ao mesmo tempo em que promove de forma sistemática a
universalização dos valores do seu modo de vida, edificando um
“despotismo cosmopolita”.

Entre os europeus, existem vozes discordantes sobre o questiona-


mento do unilateralismo de George W. Bush e os anúncios de uma
Europa “essencialmente diferente”. Para Jean-François Revel
(2003), há uma obsessão antiamericana que, além do envolvimento
dos atores mais óbvios à esquerda, traz para o primeiro plano gover-
nos aliados dos Estados Unidos, cujas manifestações contra a sua po-
lítica externa tendem muitas vezes a superar as dos partidários e sim-
patizantes do comunismo dos anos da Guerra Fria.

Sem desconhecer os méritos nacionais da atual preponderância nor-


te-americana, Revel (idem:46) chama a atenção para os fatores que se
originam do vazio de poder provocado por situações criadas externa-
mente: “a falência do comunismo, o naufrágio da África, as divisões
européias e os atrasos democráticos da América Latina e da Ásia”.
Por outro lado, questiona a atribuição da principal responsabilidade
pelos conflitos e calamidades econômicas e sociais que assolam o
mundo à vocação imperial da superpotência. Afinal, muitos desses
problemas carregam o peso de um passado recente em que a Europa
foi um protagonista essencial.
“À situação criada pelas tentativas européias de suicídio, constituídas pelas
duas guerras mundiais e a propensão dos europeus para engendrar os regi-
mes totalitários, estes também intrinsecamente suicidas, veio juntar-se, a

356 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005


Os Estados Unidos e as Relações
Internacionais Contemporâneas

partir de 1990, a obrigação de absorver o campo de ruínas deixado pelo co-


munismo, após seu colapso” (idem:47).

A decadência européia tem seqüelas nos conflitos presentes em re-


giões que eram parte dos seus impérios coloniais, cuja desagregação
deixou marcas permanentes no chamado “terceiro mundo”. O reco-
nhecimento do peso das suas ações e omissões como um dos fatores
responsáveis pela preponderância dos Estados Unidos e a adoção de
uma posição que, além de cooperativa, exerça um papel vigilante
contra os eventuais abusos da superpotência, são as principais reco-
mendações de Revel para a recuperação de um maior protagonismo
europeu. A continuidade do antiamericanismo obsessivo só fortale-
cerá o unilateralismo, na medida em que o governo dos Estados Uni-
dos, contando de antemão com o posicionamento crítico dos aliados
ocidentais, tenderá a agir cada vez mais por conta própria, sendo que,
ao menos por um bom tempo, conta com os recursos de poder neces-
sários para isso.

No âmbito dos conservadores norte-americanos, as posições defen-


didas por Revel têm uma presença muito mais expressiva. Entre os
nomes de destaque está Robert Kagan (2003), um dos fundadores,
junto com William Kristol, do Project for the New American Cen-
2
tury . Para ele, a existência de visões divergentes entre os Estados
Unidos e a Europa é incontestável, especialmente “na importantíssi-
ma questão do poder, da eficácia do poder, da moralidade do poder,
da vontade de poder” (idem:7).
“A Europa está afastando-se do poder, ou, em outras palavras, está cami-
nhando para além do poder, rumo a um mundo isolado repleto de leis, nor-
mas, negociações e cooperação internacional. Está entrando num paraíso
pós-histórico de paz e relativa prosperidade, a concretização da ‘paz perpé-
tua de Immanuel Kant. Os Estados Unidos, entretanto, continuam chafur-
dando na história, exercendo o poder num mundo hobbesiano anárquico,
onde as leis e as diretrizes internacionais não são dignas de confiança, a ver-
dadeira segurança, a defesa e a promoção da ordem liberal ainda dependem
da posse e do uso do poderio militar” (ibidem).

357
Luis Fernando Ayerbe

A despeito do reconhecimento da diversidade de percepções e posi-


ções, os contrastes não expressariam a oposição entre uma Europa
essencialmente pacifista e democrática e uns Estados Unidos com
vocação natural ao exercício realista do poder, mas capacidades dife-
renciadas, embora ao mesmo tempo complementares, de uso da for-
ça. Para Kagan, mais que uma escolha baseada em princípios, a atual
postura da Europa não difere daquela adotada pelos Estados Unidos
no século XIX, então militarmente pouco expressivos, cujo cálculo
estratégico de acúmulo de poder recomendava uma política de afas-
tamento das disputas hegemônicas entre as potências européias, cuja
visão do mundo refletia o momento de auge do seu poder econômico,
militar e colonial. Nos dias atuais, as posições invertem-se, e Estados
Unidos e Europa assumem posições equivalentes ao seu peso nas re-
lações internacionais. No entanto, há um paradoxo na posição euro-
péia, cuja

“[...] passagem à pós-história dependeu do fato de os Estados Unidos não fa-


zerem tal passagem. Por não ter disposição nem capacidade de proteger seu
próprio paraíso e impedir que seja invadido, tanto espiritual quanto fisica-
mente, por um mundo que ainda não adotou a lei da ‘consciência moral’, a
Europa tornou-se dependente da disposição americana de usar seu poderio
militar para conter e derrotar aqueles que, ao redor do mundo, ainda são par-
tidários da política do poder” (idem:75).

As expedições armadas que atacam os sintomas e não as causas das


crises, que Joxe (2003) associa a um Império do Caos, são funcionais
à indisposição da Europa para assumir um maior envolvimento, es-
pecialmente quando se desencadeiam em seu próprio território,
como aconteceu com os conflitos nos Bálcãs nos anos 1990.

Para Kagan (2003), tanto a posição adotada pela Europa quanto a dos
Estados Unidos não vão sofrer alterações substanciais. A não ser que
aconteça uma catástrofe militar ou econômica cujas proporções aba-
lem a continuidade do poder estadunidense, “é razoável presumir

358 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005


Os Estados Unidos e as Relações
Internacionais Contemporâneas

que acabamos de ingressar numa longa era de hegemonia america-


na” (idem:90).

Alguns indicadores tendem a reforçar essa avaliação, especialmente


os que se referem aos custos de manutenção da atual política para a
economia nacional, que não seriam insuperáveis. Em relação aos dé-
ficits externos, o financiamento do consumo americano seria funcio-
nal à estabilidade da economia mundial, garantindo superávits co-
merciais para diversos países e regiões, como mostram os dados do
Quadro 1.

Quadro 1
Balança Comercial dos Estados Unidos com Países e Regiões Selecionados
– 2003 e 2004
País/Região Déficit Comercial dos Estados Unidos
2003 2004
China –124,068.2 –161,938.0
Japão –66,032.4 – 75,562.1
Europa Ocidental –100,320.3 –113,378.8
México –40,648.2 –45,066.5
América do Sul e Central –26,882.8 –37,183.3
Coréia do Sul –13,156.8 –19,755.5
Israel –5,876.5 –5,382.4
Rússia –6,170.7 –8,930.3

Fonte: Elaborado com base no U.S. Census Bureau, Department of Commerce: Country Data
(http://www.census.gov/foreign-trade).

No âmbito dos gastos dos EUA com despesas militares como por-
centagem do Produto Nacional Bruto (PNB), conforme assinala o
próprio Todd (2003), houve uma queda considerável, passando de
7% no fim dos anos 1980 para 5,2% em 1995 e 3% em 1999. No auge
da hegemonia inglesa, entre 1815 e a década de 1870, os gastos esta-
dunidenses com as forças armadas variava entre 2% e 3% do PNB
(Kennedy, 1989).

359
Luis Fernando Ayerbe

Niall Ferguson (2004), um defensor explícito da necessidade do im-


pério estadunidense como fator de estabilidade e progresso mundial,
relativiza o impacto dos gastos militares na economia do país. Há um
problema de déficits crônicos das finanças nacionais que não se ori-
ginam dos compromissos externos assumidos pelas forças armadas.
Para sustentar seu argumento, compara o volume dos gastos milita-
res dos Estados Unidos, que excedem o conjunto dos orçamentos de
defesa da União Européia, China e Rússia, com a parcela que conso-
me do PNB, correspondente a uma média de 3,5% na primeira meta-
de da década de 2000, bem menor do que os 10% dos anos 1950. Des-
ta forma, conclui: “Assim como o império liberal britânico um século
atrás, o nascente império liberal americano é surpreendentemente
barato para funcionar” (idem:262).

Para Ferguson, o mundo necessita mais do que nunca de um império


benigno, liderado pelos Estados Unidos, mas que busque trazer para
seu lado a União Européia, cujo caráter liberal não apenas
“[...] subscreve a troca internacional livre dos produtos, do trabalho e do ca-
pital, mas também cria e sustenta as condições sem as quais os mercados
não podem funcionar – a paz e a ordem, o império da lei, uma administração
não corrupta, políticas fiscais e monetárias estáveis, assim como fornece
bens públicos, tais como infra-estrutura para o transporte, hospitais e esco-
las, que não existiriam de outra maneira” (idem:2).

Embora Ferguson considere o império uma condição inerente à his-


tória dos Estados Unidos, nem sempre se assumiu enquanto tal, o que
estaria mudando a partir da administração Bush e do 11 de Setembro.

O Desafio Conservador

Sistematizando as posições dos autores que vinculam o unilateralis-


mo com a perda de capacidade dos Estados Unidos para gerar con-
sensos na administração do sistema internacional, destacam-se três
argumentos: 1) a exacerbação do poder duro, apesar de eventuais ga-
nhos conjunturais, tende a comprometer a posição de supremacia a

360 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005


Os Estados Unidos e as Relações
Internacionais Contemporâneas

médio e longo prazo; 2) a manutenção do status de única superpotên-


cia global torna-se cada vez mais dependente de respaldo financeiro
externo, em um contexto de crise da economia e fortalecimento cres-
cente do setor privado transnacional; 3) o aprofundamento das desi-
gualdades promovido pelo modelo econômico vigente, incapaz de
responder às demandas da maioria dos excluídos do sistema, está
cristalizando um impasse social.

No contexto atual, o impasse social assume formas diversas: funda-


mentalismo antiocidental, com desdobramentos na perpetração de
atentados terroristas como os de 1998 nas embaixadas de Quênia e
Tanzânia, ganhando maior fôlego a partir do 11 de Setembro; as cri-
ses financeiras inauguradas pela desvalorização do peso mexicano
em dezembro de 1994, atingindo posteriormente a Coréia do Sul, a
Rússia, o Brasil e a Argentina; movimentos sociais contra a agenda
de liberalização dos mercados, que assumem maior visibilidade a
partir das manifestações de rua paralelas à reunião da OMC em Seat-
tle, em novembro de 1999; fortalecimento de partidos críticos da or-
dem nos eleitorados do “terceiro mundo”, com possibilidades con-
cretas de alcançar o poder governamental, tendo-se Venezuela, Bra-
sil e Uruguai como exemplos mais emblemáticos na América Latina.

Diante desse cenário, a percepção do caráter irremediável e irreversí-


vel da polarização entre países e setores sociais – pelo menos a curto
e médio prazo – conduz o governo dos Estados Unidos a optar pela
explicitação dos limites que demarcam a segurança do sistema, de-
flagrando uma campanha de amplo espectro destinada a diminuir ní-
veis de incerteza, combatendo os “novos bárbaros” que se dissemi-
nam pelos territórios do império.

A radicalização de posições por parte do governo Bush não está asso-


ciada ao abandono do consenso hegemônico, decorrente da acelera-
ção de uma crise de caráter estrutural que impõe a dominação aberta
como única alternativa. O que se verifica é uma sinalização em favor

361
Luis Fernando Ayerbe

do endurecimento, como ação preventiva contra os fatores de insta-


bilidade associados a uma conjuntura de transição entre o mundo bi-
polar e a nova ordem em configuração.

O antecedente mais próximo dessa postura na política externa é a ad-


ministração de Ronald Reagan, que enfrentou um contexto mais de-
licado, envolvendo diversas frentes: no aspecto econômico, o segun-
do choque do petróleo, a recessão mundial e a perda de posições do
país em relação ao Japão e à então Alemanha Ocidental; no âmbito
político, as seqüelas da derrota no Vietnã e do escândalo Watergate,
paralelamente à expansão da esfera de influência da União Soviética
e às revoluções no Irã e na Nicarágua.

O unilateralismo daquele momento, com a diplomacia do dólar forte


e o combate ao “império do mal”, foi a opção de uma equipe oriunda
3
de círculos neoconservadores , cuja influência se estende às admi-
nistrações de Bush pai e filho. A convicção desses modernos adeptos
do big stick de que a derrota soviética e a retomada da hegemonia dos
Estados Unidos decorrem fundamentalmente do sucesso das políti-
cas adotadas nos anos 1980 fortalece o favoritismo em prol da defla-
gração de uma nova cruzada.

Diferentemente daquele contexto, não se visualizam no horizonte


novos inimigos do sistema. As organizações que defendem progra-
mas anticapitalistas, além de pouco expressivas, não contam com o
respaldo de potências nucleares com ambições internacionais hege-
mônicas. Nos países governados por partidos originários da esquer-
da, predomina uma postura internacional pautada pela negociação
das diferenças e respeito da legalidade. Na América Latina, isto in-
clui regimes políticos de partido único, como Cuba, e regimes de de-
mocracia representativa, como o Brasil. Os movimentos sociais anti-
globalização questionam, basicamente, seus desajustes, especial-
mente a exclusão, diferentemente da esquerda comunista, que colo-
cava o acento da crítica na propriedade privada dos meios de produ-

362 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005


Os Estados Unidos e as Relações
Internacionais Contemporâneas

ção e na extração de excedente no processo de trabalho, buscando


atingir os fundamentos do capitalismo.

Expandir o acesso e a inclusão torna-se um dos desafios estratégicos


da ordem proclamada pelos Estados Unidos. No entanto, enquanto
não se verificam ganhos significativos nesse campo, a opção pelo en-
durecimento busca tornar mais explícitos os limites estruturais da
mudança possível, colocando a economia de mercado e a democra-
cia liberal como fundamentos inegociáveis de um modo de vida a
preservar. Tendo essa perspectiva estratégica como referência cen-
tral, o governo Bush entra em campo na disputa pelo apoio político
dos “ganhadores” da globalização, deixando claro que, se o momen-
to é de guerra, a defesa das hierarquias conquistadas antepõe-se a
perdas conjunturais e localizadas de liberdade e bem-estar material,
exigindo o fechamento de fileiras contra o crescente ativismo dos
“perdedores”, que estaria contaminado por uma irracionalidade com
fortes componentes de ressentimento e destruição. A partir do mo-
mento em que se configure um desenlace favorável no combate aos
novos inimigos, será possível restabelecer a normalidade. Enquanto
isso, caberá aos “falcões” cuidar da governabilidade sistêmica, assu-
mindo os custos políticos do Estado de exceção.

Da minha perspectiva, a atuação internacional dos Estados Unidos


tem uma dimensão essencialmente estrutural. As diferenças entre o
“unilateralismo” republicano e o “multilateralismo” democrata, os
defensores dos poderes brando ou duro, as abordagens cosmopolitas,
imperiais ou nacionais, realistas ou liberais, referem-se mais aos
meios do que aos fins da política externa. Neste contexto, não se vis-
lumbram ameaças à continuidade da ordem mundial cuja defesa ani-
ma o espírito da Doutrina Bush.

Ao longo de sua história, e de acordo com os desafios de cada época e


de cada país, o capitalismo conviveu com regimes monárquicos, de

363
Luis Fernando Ayerbe

democracia representativa, totalitarismos nazifascistas, ditaduras mi-


litares, nacionalismos populistas. Por que desta vez seria diferente?

Da mesma forma ocorrida na transição do século XIX para o XX, o


exercício da hegemonia do imperialismo atual busca respaldo em
parcela significativa das audiências nacionais e dos governos dos pa-
íses do capitalismo avançado e atrasado, construindo um poder que
se pretende incontestável nas dimensões econômica, militar, política
e cultural.

Notas

1. A Brookings Institution é considerada o mais antigo Think Tank dos Esta-


dos Unidos. Fundada em 1916, atua nas áreas de educação, economia, política
externa e governança. Em termos políticos, assume uma opção explícita pelas
posições moderadas, acima de definições partidárias, embora seja considerada
tradicionalmente próxima ao Partido Democrata. William Cohen, secretário da
Defesa, Lawrence Summer, secretário do Tesouro, e Joan Edelman Spero, sub-
secretária do Departamento de Estado para Economia, Negócios e Agricultura
do governo Clinton, pertenceram à instituição.

2. O Project for the New American Century, criado em 1997, tem entre os
membros fundadores intelectuais conservadores, como Norman Podhoretz e
Francis Fukuyama, e figuras que têm forte protagonismo na administração de
George W. Bush, como Elliott Abrams, Jeb Bush, Dick Cheney, Paula Dobri-
ansky, Zalmay Khalilzad, Lewis Libby, Donald Rumsfeld e Paul Wolfowitz.

3. O neoconservadorismo tem uma forte presença intelectual nos Estados Uni-


dos, que envolve principalmente a participação em Think Tanks como o Ameri-
can Enterprise Institute e The Project for the New American Century, e a veicu-
lação de idéias por meio de publicações periódicas, em que se destacam Com-
mentary, The Public Interest e The Weeckly Standard. Em termos de influência
política, adquiriu grande visibilidade durante o governo Reagan, que se ampliou
na administração de George W. Bush, especialmente após o 11 de Setembro de
2001, quando os neoconservadores assumiram a liderança na formulação das
novas diretrizes da política externa.

364 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005


Os Estados Unidos e as Relações
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Resumo

Os Estados Unidos e as Relações


Internacionais Contemporâneas

O artigo analisa a posição dos Estados Unidos nas relações internacionais


pós-Guerra Fria, tomando como referência as controvérsias sobre os alcan-
ces e limites da sua postura hegemônica, que adquirem maior impulso a par-
tir da formulação da chamada “doutrina Bush”, sistematizada no documen-
to “A Estratégia de Segurança Nacional dos EUA”.

No tratamento da temática proposta, enfatizam-se os seguintes aspectos:


estabelecimento de um paralelo entre a transição dos séculos XIX-XX e
XX-XXI, situando as características do imperialismo de cada época; uma
análise da atual política externa dos Estados Unidos, enfocando o debate
entre unilateralismo e multilateralismo, com destaque para as reações gera-
das pela intervenção no Iraque; uma discussão crítica das abordagens que
visualizam na agenda de segurança da administração Bush um indicador de
perda de hegemonia, que imporia a substituição da busca do consenso pela
dominação aberta.

Palavras-chave: Bush – Unilateralismo – Multilateralismo – Hegemonia

367
Luis Fernando Ayerbe

Abstract

The United States in the Present


International Relations

This article analyzes the position of the United States in the post-Cold War
world, considering as a reference the controversies on the extension and
limits of its hegemonic posture, which acquires greater relevance after the
formulation of the “Bush Doctrine”, systematized in the document “The
National Security Strategy of the United States of America”.

Our approach will lay emphasis on the following aspects: establishment of a


parallel between the transition of the XIX-XX and XX-XXI centuries, from
studies that point out the characteristics of imperialism at different times;
an analysis of the current foreign policy of the United States, focusing on
the debate between unilateralism and multilateralism, emphasizing the
reactions caused by the intervention in Iraq; a critical argument of the
approaches that visualize in the security agenda of the Bush administration
an indicator of a loss of hegemony, which would impose open domination
over the search of consensus.

Key words: Bush Doctrine – Unilateralism – Multilateralism –


Hegemony

368 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005


Autonomia e
Relevância dos
Regimes*
Gustavo Seignemartin de Carvalho**

Introdução

Segundo teorias institucionalistas na disciplina de relações interna-


cionais (RI), regimes – definidos genericamente como um conjunto
de normas e regras formais ou informais que permitem a convergên-
cia de expectativas ou a padronização do comportamento de seus
participantes em uma determinada área de interesse – são criados
com o objetivo de resolver problemas de coordenação que tendem a
resultados não pareto-eficientes. Para Robert Keohane (1993), por
exemplo, a constatação de que, em algumas situações, decisões ne-

*Artigo recebido em abril e aceito para publicação em setembro de 2005. Este artigo foi desenvolvido a
partir de um trabalho final preparado para a disciplina de Economia Política, ministrada pelo professor
Luis Manoel Rabello Fernandes. O autor gostaria de agradecer ao professor Luis Fernandes pelo incenti-
vo e apoio recebidos na preparação deste artigo.
** Mestrando em Relações Internacionais pelo Instituto de Relações Internacionais da Pontifícia Univer-
sidade Católica do Rio de Janeiro (IRI/PUC-Rio).

CONTEXTO INTERNACIONAL Rio de Janeiro, vol. 27, no 2, julho/dezembro 2005, pp. 283-329.

283
Gustavo Seignemartin de Carvalho

gociadas e tomadas de forma coletiva seriam mais eficientes do que


quando tomadas de forma unilateral e individual explicaria a de-
manda por regimes internacionais por parte dos Estados: “os regi-
mes facilitam a cooperação, propiciando regras, normas, princípios
e procedimentos que auxiliam os agentes a superar barreiras à coo-
peração identificadas pelas teorias econômicas como falha de mer-
cado” (idem:182)1.

No entanto, uma definição meramente funcionalista de regimes, ba-


seada em sua “eficiência”, não parece suficiente para explicar sua
efetividade. Desta forma, o presente artigo propõe uma definição di-
ferente de regimes: a de arranjos políticos que permitem a redistri-
buição dos ganhos da cooperação pelos participantes em uma deter-
minada área de interesses em um contexto de interdependência. Eles
possuiriam efetividade em virtude de sua autonomia e relevância, ou
seja, por possuírem existência objetiva autônoma com relação a seus
participantes e influenciarem o comportamento e as expectativas
destes de maneiras que não podem ser reduzidas à ação individual de
qualquer um deles.

Este artigo se inicia com uma breve discussão sobre as dificuldades


terminológicas associadas ao estudo de regimes e a definição dos
conceitos de autonomia e relevância. Em seqüência, classifica os di-
versos autores participantes do debate em duas perspectivas distin-
tas, uma negando (não-autonomistas) e a outra atribuindo (autono-
mistas) aos regimes autonomia e relevância, e faz uma breve análise
dos autores e tradições mais significativos para o debate, aprofun-
dando-se nos autonomistas e nos argumentos que reforçam a hipóte-
se aqui apresentada. Ao final, o artigo propõe uma decomposição
analítica dos regimes em quatro elementos principais: normativida-
de, atores, especificidade da área de interesses e interdependência
complexa como contexto, que em conjunto possibilitam a autonomia
e relevância apresentada pelos regimes.

284 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005


Autonomia e Relevância dos Regimes

Regimes

Desde sua primeira formulação no artigo pioneiro de John Ruggie


(apud Keohane, 1984:57), a definição de regimes tem sido alvo de
acirradas disputas. Para Susan Strange (1982:484), por exemplo, a
imprecisão terminológica do conceito é um dos problemas que colo-
cam em dúvida o estudo de regimes: “‘Regime’ é mais um conceito
vago que se torna uma fonte fértil de discussões simplesmente por-
que as pessoas querem dizer coisas diferentes quando o empregam”.
Outro problema identificado por Strange (idem:486), associado à
imprecisão terminológica, é o viés normativo embutido no conceito:
“o termo regime é carregado de valoração; ele traz implícitas algu-
mas coisas que não deveriam ser pressupostas sem discussão”. O pe-
rigo seria duplo: a palavra “regime” evocaria não apenas a idéia de
algo necessário à melhoria da “saúde” do sistema internacional anár-
quico, mas também, por sua associação com a política interna dos
Estados, a idéia de governo político ou de ordenação do sistema: “em
suma, governo, domínio e autoridade formam a essência da palavra,
e não consenso, justiça ou eficiência na administração” (ibidem). Em
conseqüência, “ela [a palavra regime] assume que o que todos dese-
jam é mais e melhores regimes, que mais ordem e interdependência
administrada devem ser o objetivo coletivo” (Strange, 1982:487).

A crítica de Strange é repetida por outros autores. Para John Mears-


heimer (1995), a definição de regimes é tão vaga que permite o en-
quadramento no conceito de qualquer padrão regularizado de com-
portamento na esfera internacional. Para ele,

“[...] definir instituições como ‘padrões reconhecíveis de comportamento


ou práticas em função dos quais as expectativas convergem’ permite que o
conceito compreenda praticamente qualquer padrão regular de atividade
entre os Estados, desde a guerra até a redução de tarifas negociadas sob o
Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT), o que o torna em grande
medida desprovido de sentido” (idem:8).

285
Gustavo Seignemartin de Carvalho

Fazendo uma crítica à epistemologia racionalista no estudo de regi-


mes, Friedrich Kratochwil e John Ruggie (1986:763) defendem que
a literatura sobre o tema sofre de grande imprecisão quanto ao objeto
de estudo e aos limites da teoria: “não há consenso na literatura se-
quer sobre questões básicas, tais como os limites de utilização do
conceito: onde um regime termina e outro começa? O que diferencia
um regime de um ‘não-regime’?”. Em sua opinião, a refinação do
conceito de regimes, apesar de necessária, seria possível apenas até
certo ponto. Como regimes não teriam existência objetiva e constitu-
iriam o que os autores chamam de “construções conceituais”, uma
certa indeterminação seria inerente a seu estudo em virtude do cará-
ter subjetivo e normativo do conceito, o que seria reforçado pela im-
possibilidade de separação efetiva entre sujeito e objeto. Nas pala-
vras dos próprios autores:
“[...] as definições podem ser refinadas, mas apenas até certo ponto [...] não
existe um ponto ‘arquimediano’ externo a partir do qual os regimes possam
ser vistos como ‘verdadeiramente’são, porque regimes são criações concei-
tuais e não entidades concretas. Como ocorre com qualquer construção ana-
lítica nas ciências humanas, o conceito de regimes reflete o senso-comum,
as preferências dos atores e os objetivos particulares para os quais a pesqui-
sa está sendo conduzida. Portanto, o conceito de regimes, da mesma manei-
ra que os de ‘poder’, de ‘Estado’ e de ‘revolução’, permanecerá um ‘concei-
to discutível’” (ibidem).

Além disso, ao enfatizar normas, princípios e convergência de ex-


pectativas, as definições de regimes propostas pelas tradições mains-
tream acabariam impondo a uma ontologia melhor estudada com
base em uma epistemologia não-fundacionalista as limitações ine-
rentes a uma epistemologia racionalista. O resultado para os autores
seria “ontologia contra epistemologia” (Kratochwil e Ruggie,
1986:764).

Refletindo sobre tais críticas, Oran Young (1999) sugere que essa
tensão entre ontologia e epistemologia se faria sentir em diversos ní-
veis, levantando dúvidas quanto à validade epistemológica da sepa-

286 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005


Autonomia e Relevância dos Regimes

ração entre sujeito e objeto e, sobretudo, quanto à premissa “raciona-


lista” que assume que os interesses dos atores nos regimes são exoge-
namente constituídos: “as instituições podem ter um papel importan-
te na constituição das identidades de seus membros e, mais especifi-
camente, podem influenciar a maneira pela qual estes atores definem
seus interesses” (idem:204). Como princípios, normas e regras seri-
am construídos intersubjetivamente, influenciariam não apenas sua
interpretação como também sua aplicação pelos atores. A conclusão
“não-fundacionalista” seria que “estes padrões prescritivos não pos-
suem existência exterior às mentes dos sujeitos a eles submetidos”
(idem:206). Regimes seriam melhor estudados como uma prática so-
cial ou como formas discursivas internalizadas pelos atores:
“Na verdade, os regimes tornam-se partes integrantes de complexos com-
portamentais e não arranjos exógenos criados e mantidos por atores que
procuram evitar ou diminuir problemas de ação coletiva associados a vários
complexos comportamentais” (idem:208).

Outros autores diretamente ligados ao estudo de regimes mostram-se


preocupados com a indeterminação das definições normalmente for-
necidas. Para Arthur Stein (1990:26), por exemplo, “muitos estudio-
sos definem ‘regimes internacionais’ de maneira tão vaga que é pos-
sível abranger na definição todas as relações internacionais ou todas
as interações internacionais em uma determinada área de interesse”.
Quando não-especificados, “‘regimes’ não possuem status de concei-
to; eles não delimitam os padrões normais de comportamento inter-
nacional” (ibidem).

Contudo, ainda que os obstáculos ao estudo de regimes apontados


pelos críticos sejam relevantes, não são intransponíveis. Um certo
grau de indeterminação é inerente a qualquer discussão sobre concei-
tos e terminologia dentro das ciências sociais. O fato de os regimes
serem “construções conceituais” não impede que possuam elemen-
tos objetivos que tenham efeitos verificáveis sobre os comportamen-
tos de seus participantes. Como bem nota Young (1999:208), “[regi-

287
Gustavo Seignemartin de Carvalho

mes] devem afetar o curso da política mundial por meio da influência


sobre o comportamento de seus membros e o de outros que estejam
sujeitos às suas determinações”. Para ele, regimes possuiriam exis-
tência objetiva e poderiam ser estudados empiricamente a partir da
análise das convenções sociais que os compõem e das percepções
que os atores delas possuem. Não obstante as dificuldades inerentes a
este tipo de estudo, “os atores normalmente possuem percepções re-
lativamente precisas quanto à existência de convenções sociais. Por-
tanto, há espaço considerável para a utilização de métodos diretos de
pesquisa (por exemplo, pesquisas de opinião)” (Young, 1982:734).

Uma discussão metodológica mais aprofundada encontra-se fora do


escopo deste artigo. No entanto, a defesa do estudo de regimes a par-
tir de uma perspectiva epistemológica racionalista é viável, assumin-
do-se a possibilidade de separação entre sujeito e objeto. Natural-
mente, isso não significa dizer que perspectivas não-racionalistas se-
jam desprovidas de importância ou coerência; diferentes perspecti-
vas e métodos podem possuir validade quando aplicadas a diferentes
aspectos do problema. Como ressalta Young (1999:208),
[...] tanto o modelo de comportamento da escolha racional quanto o modelo
construtivista são capazes de capturar aspectos importantes do papel prota-
gonizado por instituições na sociedade internacional; nenhum deles [...] dá
conta de todas as suas variações”.

Quanto à normatividade do conceito de regimes, condenada de for-


ma tão contundente por Strange (1982), há muito a epistemologia
nas ciências sociais admite que as teorias são indissociáveis de valo-
res ou de elementos normativos, que inevitavelmente as informam.
Max Weber (s/d a:16) entendia como inevitável o papel dos valores e
da ética na investigação científica: “o método científico dos juízos de
valor não se limitará a compreender e reviver os fins propostos e os
ideais em que se baseiam, como também se propõe ensinar a ‘ajuizar’
de modo crítico”. Para ele, desde que o método científico fosse obje-
tivo, poderia ser utilizado na avaliação das conseqüências decorren-

288 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005


Autonomia e Relevância dos Regimes

tes dos valores e das teorias, permitindo desta forma sua comparação
e a escolha entre umas e outras.

Para Karl Popper (s/d:32), o processo de formulação de teorias cien-


tíficas tem por base elementos ou impulsos “irracionais” ou valorati-
vos: “não existe um método lógico de conceber idéias novas [...] mi-
nha maneira de ver pode ser expressa na afirmativa de que toda des-
coberta encerra um ‘elemento irracional’ ou uma ‘intuição criado-
ra’”. Devido à carga valorativa que as teorias possuem, Popper cons-
trói sua epistemologia a partir da idéia da incomensurabilidade do
marco teórico em que elas estão inseridas.

Assim, o que os autores dedicados ao estudo de regimes possuem em


comum é a visão destes como instituições sociais relevantes e autô-
nomas, que produzem efeitos sobre os atores que delas participam (e
que podem mesmo ser influenciadas pelo comportamento coletivo
dos atores). Logicamente, o conceito de regimes é uma construção
que nos permite estudar analiticamente fenômenos ou instituições
sociais desprovidos de existência física, principalmente quando não
formalizados. Mas este fato não impede que os fenômenos que con-
substanciam um regime produzam efeitos objetivos e verificáveis de
maneira independente dos atores que dele participam. O estudo de
relações sociais e seus efeitos não está restrito à perspectivas
pós-modernas ou não-fundacionalistas.

Vale notar que aceitar um certo grau de imprecisão no conceito de re-


gimes não é o mesmo que negligenciar sua definição. Por ocasião de
uma conferência sobre o tema realizada em 19822, estudiosos de
perspectivas diversas procuraram diminuir a confusão conceitual
existente por meio da formulação de uma definição “consensual”.
Segundo Krasner (1982:186), que reproduz esta definição, regimes
são “princípios, normas, regras e procedimentos para a tomada de
decisões, implícitos ou explícitos, em função dos quais as expectati-

289
Gustavo Seignemartin de Carvalho

vas dos atores convergem em uma determinada área das relações in-
ternacionais”.

Apesar da importância que a definição consensual adquiriu na disci-


plina de RI, a conceituação de regimes ainda é fruto de divergências.
Conforme dito na Introdução, o presente artigo procura classificar
diversos autores que participaram deste debate em duas perspectivas
distintas, de acordo com a relevância e autonomia por eles atribuída
aos regimes.

Com o conceito de relevância, procura-se expressar o grau de in-


fluência que os regimes possuem sobre o comportamento dos atores.
Não se trata aqui de analisar a relevância dos regimes no caso concre-
to, ou seja, se um determinado regime é forte ou fraco, mas sim quan-
ta influência as diferentes perspectivas atribuem aos regimes em teo-
ria.

Por meio do conceito de autonomia, procura-se expressar a dissocia-


ção entre o regime e os atores que o compõem, mesmo no caso de re-
gimes não formalizados. Depois de constituídos por um grupo de
atores, os regimes produzem efeitos sobre todos, independente da
vontade individual dos participantes.

Relevância e autonomia não se confundem, apesar de estarem intrin-


secamente ligadas. Para algumas formulações da teoria da estabili-
dade hegemônica, por exemplo, regimes podem ter relevância sem
serem autônomos, na medida em que legitimam ou intermedeiam a
atuação direta da potência hegemônica. Por outro lado, podem ser
vistos como possuindo autonomia, mas, por diversas razões, tendo
influência reduzida no comportamento dos participantes.

Na perspectiva que, para efeito de simplificação, é aqui chamada de


“não-autonomista”, temos os autores que não atribuem relevância
nem autonomia aos regimes internacionais, mas no máximo uma
função meramente instrumental ao conceito. Em contraposição a es-

290 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005


Autonomia e Relevância dos Regimes

tes autores, temos, em uma segunda perspectiva, autores que, mesmo


em graus diversos e partindo de concepções ou epistemologias dife-
rentes, atribuem relevância e autonomia aos regimes – esta perspec-
tiva será chamada de “autonomista”.

O estudo de cada perspectiva será iniciado com uma breve análise de


algumas teorias, tradições e autores não-autonomistas representati-
vos, após o que os autores autonomistas, que interessam mais direta-
mente ao tema do presente artigo, serão analisados em mais detalhes.

Perspectiva
Não-Autonomista

Muitos dos autores não-autonomistas podem ser identificados com a


tradição realista na disciplina de RI.

Realismo

Como já mostrado anteriormente, Strange (1982) parte de uma pers-


pectiva realista associada à economia política internacional (EPI)
para questionar o conceito de regime. Para a autora, deve-se “consi-
derar o Estado e os governos nacionais como os verdadeiros determi-
nantes dos resultados” (idem:480). Em sua visão, regimes, assim
como as organizações internacionais, servem a três propósitos espe-
cíficos diretamente relacionados aos agentes estatais:
“Estes [propósitos] podem ser definidos de maneira ampla como estratégi-
cos (ou seja, servem como instrumentos da estratégia estrutural e da política
externa do Estado ou dos Estados dominantes); adaptativos (ou seja, forne-
cem a concordância multilateral a quaisquer arranjos que sejam necessários
para permitir que os Estados gozem de autonomia política sem o sacrifício
dos dividendos econômicos derivados dos mercados mundiais e de estrutu-
ras mundiais de produção); e simbólicos (ou seja, permitem que todos se de-
clarem a favor da verdade, da beleza, da bondade e de uma comunhão mun-
dial, enquanto os governos permanecem livres para perseguir os interesses
nacionais e para fazer o que desejarem)” (idem:484, ênfase no original).

291
Gustavo Seignemartin de Carvalho

Na visão de Strange (idem), regimes são claramente destituídos de


relevância e autonomia. Quando muito, serviriam apenas como um
instrumento do poder estatal.

Mearsheimer (1995) analisa o impacto dos regimes na área de segu-


rança e conclui que possuem influência apenas marginal sobre o
comportamento dos Estados: “as instituições não exercem quase ne-
nhuma influência sobre o comportamento estatal” (idem:7). Ele mes-
mo resume sua posição da seguinte maneira: “eles [os regimes] se ba-
seiam no cálculo dos interesses próprios das grandes potências e não
exercem efeito independente sobre o comportamento estatal” (ibi-
dem).

Os Estados seriam assim atores racionais e egoístas que, por interagi-


rem em um sistema internacional anárquico, teriam preocupação em
primeiro lugar com sua segurança, procurando ativamente atingir
uma posição de proeminência perante os demais: “a vida diária é es-
sencialmente uma luta pelo poder, na qual cada Estado procura não
apenas ser o ator mais poderoso do sistema como também assegurar
que nenhum outro Estado alcance a mesma posição de proeminên-
cia” (Mearsheimer, 1995:9). Dentro desta lógica, a preocupação com
ganhos relativos torna-se relevante, uma vez que “os Estados procu-
ram maximizar suas posições relativas de poder no sistema internaci-
onal com relação aos demais” (idem:11). Já as possibilidades de coo-
peração e de formação de regimes seriam limitadas: “a cooperação
entre os Estados é limitada principalmente porque é constrangida
pela lógica da competição por segurança” (idem:9).

De maneira um pouco diferente de Strange e Mearsheimer, mas ain-


da dentro da tradição realista, a crítica de Joseph Grieco (1993) dire-
ciona-se aos efeitos atribuídos pelo institucionalismo liberal aos re-
gimes. Segundo este autor, a tradição realista demonstraria que, ape-
sar de os Estados terem conseguido cooperar “por meio de institui-
ções internacionais até mesmo nos duros anos 70” (idem:121, ênfase

292 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005


Autonomia e Relevância dos Regimes

no original), regimes e organizações internacionais não possuiriam


relevância pois “são incapazes de mitigar os efeitos restritivos exer-
cidos pela anarquia sobre a cooperação interestatal” (idem:116). Ao
contrário do que entenderiam autores institucionalistas liberais, os
Estados, por serem posicionalistas, estariam preocupados não ape-
nas com ganhos absolutos, mas também com os ganhos dos demais
Estados com a cooperação: “para os realistas, um Estado se preocupa
tanto com os ganhos absolutos quanto com os ganhos relativos da co-
operação” (idem:118). Assim como Mearsheimer, Grieco entende
que a preocupação dos Estados com a segurança em um ambiente in-
ternacional anárquico os levaria a enxergar os ganhos dos demais
“competidores” como o fortalecimento de eventuais inimigos no fu-
turo: “como resultado, os Estados precisam dar muita atenção aos
ganhos obtidos pelos parceiros” (ibidem).

Teorias da Estabilidade
Hegemônica
3
A formulação clássica da teoria da estabilidade hegemônica dentro
da EPI foi apresentada por Charles Kindleberger (s/d) em seu estudo
da Grande Depressão e da instabilidade política e econômica que
atingiu o sistema capitalista na década de 1930. Para o autor
(idem:28),
“[...] o sistema econômico e monetário internacional necessita de liderança,
de um país que esteja preparado, consciente ou inconscientemente, sob um
sistema de regras que tenha internalizado, a determinar padrões de conduta
para outros países, a tentar fazer com que outros o sigam, a arcar com uma
carga desproporcional dos custos do sistema e, em particular, sustentá-lo na
adversidade, recebendo o excesso de matérias-primas nele produzido, man-
tendo um fluxo de capitais para investimento e descontando seus títulos”.

A estabilidade de uma determinada “ordem” no sistema internacio-


nal dependeria da liderança de um Estado disposto a arcar com os
custos da estabilização do sistema. Diante desta necessidade, a ca-

293
Gustavo Seignemartin de Carvalho

racterística mais importante para determinar a estabilidade do siste-


ma internacional seria a assimetria de poder e de capacidades entre a
potência hegemônica e os demais participantes: “a simetria não é a
característica do mundo em todas as épocas e lugares” (idem:292).
Para o autor, a longa duração da crise, de 1929 a 1939, teria suas raí-
zes em parte na ausência desta liderança:
“[...] parte da razão para a duração e grande parte da explicação para a pro-
fundidade da depressão mundial são a inabilidade dos britânicos em conti-
nuar atuando como garantidores do sistema e na relutância dos Estados Uni-
dos em assumir este papel antes de 1936” (idem:28).

Apesar de não tratar diretamente de regimes, a teoria da estabilidade


hegemônica, como formulada por Kindleberger (idem), traz conclu-
sões interessantes para seu estudo na medida em que a coordenação
do sistema pelo líder hegemônico passa pela formação de arranjos e
regras para orientar e até mesmo determinar a conduta dos demais
participantes.

A despeito de sua inspiração realista, algumas características desta


formulação a diferenciam dos realistas clássicos. Logicamente, se o
sistema necessita da atuação direta de um líder para sua estabilização
e ordenação, então os regimes não possuem autonomia, não se disso-
ciam do ator que os estabeleceu. Além disso, a atuação direta e cons-
tante desse líder é necessária para que os regimes por ele estabeleci-
dos tenham relevância ou efetividade.

Todavia, ao contrário de outros autores realistas, a visão de Kindle-


berger da hegemonia e de sua atuação na manutenção de regimes
possui uma conotação menos conflituosa. Apesar da assimetria de
poder e do elemento de dominação inerente à idéia de hegemonia,
Kindleberger (idem:292) enxerga a estabilização do sistema como
um “bem público”: “quando todos os países passaram a proteger seus
interesses nacionais particulares, o interesse público do mundo foi
para o buraco e com ele se foram os interesses privados de todos”.

294 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005


Autonomia e Relevância dos Regimes

Além disso, apesar de a estabilidade ser um bem público e interessar


a todos os atores, isso não seria suficiente para promover a conver-
gência dos interesses divergentes do líder hegemônico e de cada um
dos demais participantes. Na visão do autor, para que haja estabilida-
de, é necessária acima de tudo a atuação e liderança de uma potência
hegemônica consciente da necessidade de sacrificar seus interesses
de curto prazo em prol dos interesses de estabilização a longo prazo,
por intermédio da assunção dos custos necessários à “cooptação” dos
demais.

É curioso que apesar de se apoiar claramente no poder para sua eficá-


cia, a hegemonia, como entendida por Kindleberger (idem), não é
exercida explicitamente para a promoção dos interesses do líder he-
gemônico. Sem dúvida, seus interesses seriam melhor atingidos por
meio da estabilidade, mesmo que isto venha em detrimento de seus
interesses de curto prazo: “os economistas têm argumentado que [...]
é mais provável que um ator exerça tal liderança quando se vê como
um dos grandes consumidores dos benefícios de longo prazo produ-
zidos pelo regime” (Keohane e Nye, 1989:44). Mas para Kindleber-
ger (s/d), o exercício da liderança pelo líder hegemônico parte de
uma concepção internalizada da ordem dentro do sistema ou do regi-
me, algo que transcende o simples cálculo racional dos interesses dos
participantes e possui uma conotação adicional que evoca a idéia de
responsabilidade: “se a liderança é entendida como o fornecimento
do bem público da responsabilidade e não como a exploração do pró-
ximo ou a busca do bem privado do prestígio, ela permanece uma
idéia positiva” (idem:307).

Outro ponto interessante da aplicação da teoria da estabilidade hege-


mônica de Kindleberger ao estudo de regimes está na visão que os
participantes possuem dos ganhos relativos. Ao contrário de realistas
como Mearsheimer e Grieco, a teoria de Kindleberger sugere que os
ganhos relativos não são tão importantes para os participantes de um
regime, até porque a assimetria de poder é da própria natureza do ar-

295
Gustavo Seignemartin de Carvalho

ranjo político entre todos os participantes e é fundamental para sua


estabilidade.

Robert Gilpin (1981) apresenta uma versão diferente da teoria da es-


tabilidade hegemônica e do papel das potências na manutenção do
sistema e dos regimes:

“[...] os atores entram em relações sociais e criam estruturas sociais para


promover conjuntos específicos de interesses políticos, econômicos ou de
outros tipos [...]. [O]s interesses mais favorecidos por estes arranjos sociais
tendem a refletir os poderes relativos dos atores neles envolvidos [...].
[A]pesar dos sistemas sociais imporem restrições ao comportamento de to-
dos os atores, os comportamentos recompensados ou punidos pelo sistema
coincidirão, ao menos inicialmente, com os interesses dos membros mais
poderosos do sistema social” (idem:9).

Regimes, como meios de ordenação do sistema, seriam para Gilpin


(idem) criações dos Estados para promover seus próprios interesses,
principalmente os dos Estados em posição de liderança. Como bem
lembram Keohane e Nye (1989:44), a concepção de “liderança” para
os realistas implicaria que “quando um Estado é suficientemente po-
deroso para manter as regras essenciais governando as relações inte-
restatais [...] pode ab-rogar as regras existentes, impedir a adoção de
regras às quais se oponha ou exercer o papel dominante na constru-
ção de novas regras”. Mas Gilpin (1981) qualifica o argumento rea-
lista ao reconhecer que os Estados não controlam totalmente estes ar-
ranjos políticos, os quais adquirem certo grau de influência sobre o
comportamento dos próprios Estados:

“[...] obviamente, eles [os Estados] não possuem controle absoluto sobre
este processo. Uma vez que esteja em funcionamento, o próprio sistema in-
ternacional tem uma influência recíproca no comportamento estatal; ele
afeta as maneiras pelas quais indivíduos, grupos e Estados procuram alcan-
çar seus objetivos. O sistema internacional oferece um conjunto de cons-
trangimentos e oportunidades sob os quais grupos e Estados procuram pro-
mover seus interesses” (idem:25).

296 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005


Autonomia e Relevância dos Regimes

Teorias Autonomistas

Ainda que partilhem de algumas premissas, existem diferenças mar-


cantes entre autores institucionalistas liberais e realistas. Partindo de
perspectivas liberais ou institucionalistas liberais, o estudo de regi-
mes acabou concentrando autores de tradições diversas em torno da
relevância e da autonomia dos regimes internacionais.
Alguns desses autores, como Arthur Stein (1990), expressam a rele-
vância (em maior grau) e a autonomia (em menor grau) dos regimes
ao identificá-los como variáveis intervenientes que se situam, nas pa-
lavras de Krasner (1982:189), “entre as variáveis causais básicas
(sendo as mais importantes poder e interesses) e resultados e com-
portamento”. Nesta formulação (que podemos chamar de “causal”),
regimes, criados a partir dessas variáveis independentes e por elas in-
formados, teriam uma relação de causalidade com o comportamento
dos atores, o que demonstraria sua relevância, e não se resumiriam a
um mero conjunto de interesses ou a um mero reflexo do poder dos
atores, o que demonstraria sua autonomia. Segundo Krasner
(idem:190), para esses autores, “o impacto independente dos regi-
mes é uma questão analítica crucial”. Ele finaliza sua análise desta
primeira vertente apresentando o esquema da Figura 1.

Figura 1
Representação Gráfica da Vertente “Causal”

Variáveis Causais Básicas Regimes Comportamentos e Resultados

Fonte: Krasner (1982:189).

Para outros autores dentro da perspectiva autonomista, como Young,


os regimes se desenvolveriam a partir de padrões ou da repetição do
comportamento dos agentes. De acordo com Krasner (idem:192),
“padrões de comportamento que persistem ao longo de extensos pe-
ríodos são impregnados de significância normativa” e “isto leva a um
comportamento convencional no qual existe alguma expectativa de
repreensão em caso de desvio”.

297
Gustavo Seignemartin de Carvalho

Regimes adquirem para estes autores uma conotação mais próxima do


que Hasenclever et alii (1997:2) chamaram de “escola de pensamento
cognitivista”, na medida em que o aspecto intersubjetivo inerente aos
regimes é enfatizado. Regimes, apesar de autônomos com relação a
seus autores, influenciam ao mesmo tempo em que são influenciados
pelo comportamento dos participantes. Krasner (1982) apresenta o se-
guinte esquema gráfico para resumir a visão destes autores:
Figura 2
Representação Gráfica da Vertente “Cognitivista”

Regimes

Variáveis Causais
Básicas
Comportamentos e Resultados

Fonte: Krasner (1982:193).

Outros autores possuem uma visão “estrutural” da formação dos re-


gimes. Keohane e Nye (1989:8) conceituam regimes como institui-
ções da ordem internacional que afetam as inter-relações dos atores
em um contexto representado pela “interdependência complexa”, ou
seja, por dependências mútuas entre os diversos atores marcadas pela
complexidade e diversidade dos laços e canais de dependência e co-
municação (idem:24). Assim, regimes internacionais são “conjuntos
de arranjos de governação que causam efeitos em relações de inter-
dependência” (idem:19) e, quando presentes as condições estruturais
de interdependência, desenvolvem-se a ponto de possuírem relevân-
cia e autonomia frente aos atores.

Para Keohane e Nye (idem), a estrutura do sistema internacional é


dada pela distribuição de capacidades (não apenas militares) entre
unidades similares e não se confunde com os processos políticos por
meio dos quais essas capacidades são redistribuídas dentro do siste-

298 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005


Autonomia e Relevância dos Regimes

ma. Regimes possuem autonomia e relevância quando a lógica dos


processos de redistribuição passa a ser constrangida pelas formas de
interdependência complexa, ou seja, quando a lógica do sistema
muda da anarquia defendida pelos realistas para uma anarquia condi-
cionada pela interdependência complexa, e os processos e capacida-
des econômicas assumem importância perante as questões militares
e de segurança. Assim, regimes adquirem importância fundamental
por servirem de arcabouço para os processos de redistribuição de ca-
pacidades: “regimes internacionais ajudam a fornecer o arcabouço
político dentro do qual ocorrem os processos econômicos internacio-
nais” (idem:38).

É interessante notar que, nesta formulação, a estrutura não aparece


de forma clara como a variável independente, já que ela é também in-
fluenciada pelos regimes, e estes não podem ser definidos como va-
riáveis intervenientes, uma vez que as unidades possuem papel im-
portante na criação e alteração de regimes:

“[...] a interdependência afeta a política mundial e o comportamento dos


Estados; mas as ações dos governos também influenciam os padrões de in-
terdependência. Ao criar ou aceitar procedimentos, regras ou instituições
para certos tipos de atividades, os governos regulam e controlam as relações
transnacionais e interestatais” (idem:5).

Para Keohane e Martin (1995:46), “a teoria institucionalista conceitua


instituições tanto como variáveis independentes quanto como variáveis
dependentes”. É possível estabelecer o seguinte diagrama para repre-
sentar graficamente a vertente “estrutural” de Keohane e Nye:
Figura 3
Representação da Vertente “Estrutural”

Interdependência
Regimes Comportamento estatal
(estrutura)

299
Gustavo Seignemartin de Carvalho

Internacionalistas Liberais
(Vertente Estrutural)

Os autores que se definem como internacionalistas liberais ou sim-


plesmente liberais constituem a maioria dos autores associados à
perspectiva autonomista. Pode mesmo ser atribuída ao liberalismo,
desde os autores clássicos, como Adam Smith (1983) e David Ricar-
do (1987) na EPI e Norman Angell (2002) em RI, a primazia no estu-
do do fenômeno da cooperação entre os Estados. Este foco foi esten-
dido ao estudo das formas pelas quais o sistema internacional é orde-
nado e, principalmente no pós-guerra, ao fenômeno das organiza-
ções internacionais. Segundo Kratochwil e Ruggie (1986:754), “o
campo de estudos das organizações internacionais sempre se preocu-
pou com o mesmo fenômeno: nas palavras de um texto de 1931, é
uma tentativa de descrever e explicar ‘como a moderna Sociedade de
Nações se governa’”. Gradualmente, conforme a distância entre a si-
tuação política internacional e as organizações formais “começou a
aumentar de uma maneira que era difícil de ser conciliada” (Martin e
Simmons, 1998:736), o objeto de estudo da tradição liberal ampli-
ou-se para compreender outros aspectos da ordem no sistema inter-
nacional, como os regimes internacionais. Para Kratochwil e Ruggie
(1986:753), “estudiosos das organizações internacionais mudaram
sistematicamente seu foco das instituições internacionais para for-
mas mais amplas de comportamento internacional institucionaliza-
do”. Martin e Simmons (1998:729) entendem da mesma maneira:

“[...] um dos avanços mais importantes para nosso entendimento das institu-
ições internacionais veio no começo dos anos 1970, quando uma nova gera-
ção de estudiosos desenvolveu idéias que originaram pesquisas para além
das organizações formais e criaram postos avançados para o estudo mais
amplo das instituições”.

Assim, em função de sua própria herança intelectual, o instituciona-


lismo liberal pode ser considerado como a principal tradição na dis-

300 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005


Autonomia e Relevância dos Regimes

ciplina de RI a estudar regimes e atribuir a eles relevância e autono-


mia, a despeito de adotar algumas premissas comuns ao realismo.

As definições de regimes fornecidas pelo institucionalismo liberal


partem da definição original apresentada por Ruggie em seu artigo,
“International Responses to Technology: Concepts and Trends”, de
1975. Para o autor (apud Keohane, 1984:57), regimes são um con-
junto de instrumentos que, quando aceitos pelos Estados, pautam
suas relações no campo internacional: “um conjunto de expectativas
mútuas, de regras e regulações, de planos, energias organizacionais e
compromissos financeiros, os quais foram aceitos por um grupo de
Estados”.

Na mesma linha de Ruggie, Keohane e Nye (1989:19) definem regi-


mes como “redes de regras, normas e procedimentos que regulari-
zam o comportamento e controlam seus efeitos”. Há uma diferença,
contudo, no papel atribuído por estes autores aos regimes na organi-
zação dos processos de redistribuição de capacidades dentro da es-
trutura do sistema. Como visto, para o institucionalismo liberal, ins-
tituições e regimes possuem autonomia e relevância mediante a
ocorrência de algumas condições específicas. Na visão de Keohane e
Nye (idem), regimes atuam dentro de condições de interdependência
complexa, as quais Axelrod e Keohane (1985:238) apontam posteri-
ormente para o “contexto da interação” (context of interaction).

Os autores divergem quanto ao que compõe o contexto de interação.


Para Ruggie (apud Axelrod e Keohane, 1985), por exemplo, ele é re-
presentado pelos valores e princípios internalizados pelos partici-
pantes do sistema, que comporiam sua “estrutura profunda” (deep
structure). Axelrod e Keohane (1985:238) definem o contexto de in-
teração como “o contexto de normas que são partilhadas, muitas ve-
zes implicitamente, pelos participantes”, e que se expressariam, em
uma perspectiva influenciada pela teoria dos jogos, em “questões
vinculadas (issue-linkage), conexões doméstico-internacionais e in-

301
Gustavo Seignemartin de Carvalho

compatibilidades entre jogos de diferentes grupos de atores”


(idem:239).

Como para os institucionalistas liberais a interação ocorre dentro do


contexto da interdependência complexa, a preocupação dos Estados
com ganhos relativos, privilegiada pela tradição realista, deve ser
qualificada. Uma vez que a interdependência complexa representa
4
uma mudança na “lógica” do sistema anárquico , pode-se esperar
uma mudança semelhante na importância atribuída pelos Estados
aos ganhos relativos. Keohane e Martin (1995:44) sugerem, assim,
que “duas questões possuem maior relevância: 1) as condições sob as
quais os ganhos relativos se tornam significantes; e 2) o papel das ins-
tituições quando problemas de distribuição se tornam significantes”.

É importante notar que, para os institucionalistas liberais, o estudo e


as definições de regime não podem estar dissociados do contexto em
que ocorrem as interações: “uma vez que os regimes internacionais
refletem padrões de cooperação e conflito ao longo do tempo, o foco
em seu estudo nos leva a examinar padrões de comportamento de
longo prazo em vez de tratar atos de cooperação como eventos isola-
dos” (Keohane, 1984:63).

Aplicações da Teoria dos


Jogos (Vertente Causal)

Aplicando a teoria dos jogos à teoria de RI, Stein (1990) procura de-
monstrar as condições em que a cooperação se dá na esfera internaci-
onal e o papel dos regimes em sua facilitação. Fazendo uma breve
análise do debate entre realistas e liberais, o autor (idem:4) conclui
que tanto cooperação quanto conflito são características do sistema
internacional: “as premissas subjacentes ao modelo conflituoso da
política internacional admitem uma grande dose de cooperação e as
premissas do modelo cooperativo também admitem o conflito”. Para
Stein (idem:24), o caráter competitivo das relações internacionais

302 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005


Autonomia e Relevância dos Regimes

pode inclusive levar a um comportamento verdadeiramente coopera-


tivo, “que não pode ser totalmente explicado apenas com base no in-
teresse nacional individualista”. Regimes, “arranjos mais ou menos
institucionalizados que estruturam relações internacionais em vários
campos” (idem:25) constituiriam um desafio para ambas as tradições
mainstream, realista e liberal, que não conseguiriam explicar o surgi-
mento de ordem na anarquia.

O autor possui uma preocupação particular com a especificidade


teórica do conceito de regimes. Em sua opinião, definições muito
amplas permitiriam a caracterização de quaisquer padrões de com-
portamento encontrados na esfera internacional como regimes, em
detrimento da precisão teórica do conceito. Por isso, ele procura es-
pecificar as condições sob as quais os regimes ocorrem: “existe um
regime quando a interação entre as partes é constrangida ou baseada
em decisões tomadas em conjunto” (idem:28). Quando os Estados,
entendidos como atores racionais maximizadores de utilidade, ob-
têm o melhor resultado preferível unilateralmente, não há a necessi-
dade de regimes. De igual forma, se um Estado obtém o melhor resul-
tado preferível, mas os demais obtêm o pior resultado possível, não
há cooperação – os Estados em desvantagem não possuem qualquer
incentivo à cooperação. Para Stein, portanto, somente há cooperação
quando ambos os Estados necessitam cooperar sob pena de termina-
rem com resultados não desejados ou sub-ótimos. Estas situações
são classificadas pelo autor (idem:32) como “dilemas de interesses
comuns” e dilemas de “aversões comuns” (“dilemmas of common in-
terests and dilemmas of common aversions”).

Dilemas de interesses comuns seriam caracterizados por situações


em que ambos os participantes preferem um resultado cuja situação
de equilíbrio não é pareto-eficiente. O exemplo típico utilizado para
demonstrar situações de dilema de interesses é o chamado “Dilema
do Prisioneiro”. Neste “jogo”, dois bandidos possuem interesses em
uma ordem de preferência, sendo o resultado preferido (4, também

303
Gustavo Seignemartin de Carvalho

chamado de “estratégia dominante”) denunciarem o comparsa sem


que o outro faça o mesmo; o segundo mais preferido é não entrega-
rem o comparsa, mas também não serem denunciados por ele (3); o
terceiro é serem incriminados pelo comparsa, mas entregá-lo tam-
bém (2); e o último é serem denunciados sem que entreguem o com-
parsa (1). Na tentativa de evitar o resultado menos preferido, ambos
procuram antecipar-se à reação do outro, acabando por se entregar
mutuamente, gerando um resultado (2, também chamado de “resul-
tado de equilíbrio”) que, apesar de não ser o pior na lista de preferên-
cias, não é pareto-eficiente. O Dilema do Prisioneiro segue a escala
de preferências (4,1; 3,3; 2,2; 1,4) para ambos os prisioneiros e pode
ser representado graficamente conforme ilustrado abaixo:

Figura 4
Representação Gráfica do “Dilema do Prisioneiro”

Prisioneiro B

B1 B2

A1 3,3 1,4*
Prisioneiro A

A2 4,1* 2,2**

* Estratégia dominante de cada prisioneiro


** Resultado de Equilíbrio

Fonte: Stein (1990:33).

Dilemas de aversões comuns, ao contrário, ocorrem quando os parti-


cipantes possuem preferência (1) não por um resultado, mas em evi-
tar pelos menos um resultado específico. Desta forma, dilemas de
aversão podem ter equilíbrios múltiplos, desde que evitem o resulta-
do menos preferido (0). O dilema de aversão comum mais simples

304 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005


Autonomia e Relevância dos Regimes

segue a escala de preferências (1,1; 0,0) para ambos os participantes


e pode ser representado graficamente da seguinte forma:

Figura 5
Representação Gráfica do Dilema de Aversão Comum Simplificado

Participante B

B1 B2

A1 1,1** 0,0
Participante A

A2 0,0 1,1**

** Resultado de Equilíbrio

Fonte: Stein (1990:37).

Contudo, nem sempre dilemas de aversão comum seguem o modelo


simplificado. Em muitos casos, apesar de possuírem o mesmo inte-
resse em evitar o resultado não desejado, os participantes discordam
quanto à estratégia a ser adotada, possuindo preferências diferentes
por equilíbrios diferentes. Neste jogo, ambos desejam evitar o mes-
mo resultado (1), mas possuem preferências diferentes por três ou-
tros resultados (2, 3 e 4). O jogo segue a escala de preferências (4,3;
3,4; 2,2; 1;1) para ambos os participantes e pode ser representado
graficamente conforme a Figura 6.

Para Stein (idem), regimes são importantes por possibilitarem que os


Estados lidem com dilemas de interesses e aversões comuns, ao abri-
rem mão da possibilidade de tomarem decisões unilateralmente e de
forma independente em favor da criação de procedimentos que cons-
tranjam seu comportamento futuro e permitam que haja uma conver-

305
Gustavo Seignemartin de Carvalho

Figura 6
Representação Gráfica do Dilema de Aversão Comum
Participante B

B1 B2

A1 2,2 3,4**
Participante A

A2 4,3** 1,1

** Resultado de Equilíbrio

Fonte: Stein (1990:38).

gência das expectativas dos participantes. Apesar de limitados em


sua autonomia – sendo criados pelos Estados “no seu interesse pró-
prio” (idem:39) –, regimes possuem relevância e não são meramente
instrumentais, já que, após estabelecidos, incluem-se no cálculo raci-
onal dos demais participantes, tornando-se auto-executáveis: “uma
vez criado, o regime em função do qual as expectativas convergem e
que permite que os atores coordenem suas ações é auto-executável;
qualquer ator que o desrespeite causa prejuízos apenas a si mesmo”
(idem:42). Ainda segundo o autor, regimes são auto-executáveis
quando “os custos do descumprimento arcados por um ator não são
potenciais, mas sim imediatos e causados por seus próprios atos e
não pela resposta dos demais a seu descumprimento” (ibidem5).

Outro aspecto reforçaria a autonomia dos regimes: o que Stein cha-


mou de “tomada de decisões em conjunto” (“joint decision ma-
king”). Padrões de comportamento na esfera internacional apenas
podem ser considerados como regimes quando os participantes
abandonam a possibilidade de tomarem decisões unilaterais em uma

306 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005


Autonomia e Relevância dos Regimes

área específica e procuram tomar decisões conjuntamente com os


demais participantes: “pode-se dizer que decisões são tomadas em
conjunto quando todos os atores participam na determinação das de-
6
cisões de cada ator” (Stein, 1990:45 ).

“Cognitivistas”

Oran Young defende uma visão alinhada com vertentes identificadas


por Hasenclever et alii (1997) como “cognitivistas”, para os quais o
foco do estudo no comportamento percebido dos atores não seria su-
ficiente para explicar o surgimento de regimes. Em conseqüência,
esta vertente seria caracterizada por “uma mudança de ênfase, não
mais no comportamento observado, mas no significado intersubjeti-
vo e em entendimentos compartilhados” (idem:16).

Segundo a definição de Young (1982:732), regimes são “instituições


sociais que governam as ações dos interessados em atividades espe-
cíficas (ou em conjuntos aceitos de atividades)”. Como instituições
sociais, regimes seriam uma resposta social a problemas de coorde-
nação em situações em que decisões negociadas e tomadas de forma
coletiva tenderiam a levar a resultados mais eficientes do que quando
feitas individualmente.

Apesar de enfatizarem aspectos diferentes, Young acredita que sua


definição não é incompatível com a de Krasner (1982), já que “como
qualquer instituição social, eles [os regimes] são padrões reconheci-
dos de comportamento ou prática em função dos quais as expectati-
vas convergem” (Young, 1982:732). Uma das características dos re-
gimes seria justamente esse caráter intersubjetivo, ou seja, uma con-
junção entre as expectativas dos participantes e padrões de compor-
tamento e prática na esfera internacional.

Apesar de necessária, para Young, a simples existência desta conjun-


ção entre expectativas e comportamento não é uma circunstância su-

307
Gustavo Seignemartin de Carvalho

ficiente para a formação de um regime, uma vez que pode informar a


ação dos atores na esfera internacional sem contudo eliminar o cará-
ter casuístico ad hoc das relações e acordos efetuados entre eles.
Apenas quando o cálculo dos custos e benefícios deixa de ser neces-
sário caso a caso é que se tem instituições sociais e regimes: “estes
são guias para ações ou para padrões comportamentais que os atores
consideram eficazes sem fazer cálculos detalhados para cada situa-
ção” (idem:733).

O conceito de regimes fornecido por Young permite que ele seja in-
cluído entre os autores da perspectiva autonomista. Apesar de não
possuírem existência “física”, pode-se dizer que para Young os regi-
mes possuem existência objetiva, ou melhor, autonomia e relevância.
O autor ressalta que regimes são construções sociais, mas isso não
quer dizer que possam ser reduzidos a seus participantes individual-
mente considerados, nem que possuam relevância ou que possam ser
alterados ou criados por simples ato de vontade:

“Regimes internacionais, como outras instituições sociais, são de um modo


geral produtos do comportamento de um grande número de indivíduos ou
grupos. Apesar de qualquer regime refletir o comportamento de todos aque-
les que dele participam, individualmente os atores têm pouca influência so-
bre o caráter do regime” (idem:734).

Decompondo Regimes

Observando o alerta de Stein (1990) e dos autores incluídos na pers-


pectiva não-autonomista, é necessário especificar o conceito de regi-
mes para que tenha precisão e aplicabilidade. Definições muito am-
plas permitiriam que fosse compreendido dentro do conceito de regi-
mes todo e qualquer padrão de comportamento entre Estados (ou ou-
tros atores), incluindo a balança de poder ou a guerra, como bem
aponta Mearsheimer (1995).

308 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005


Autonomia e Relevância dos Regimes

Apesar de os regimes ocorrerem em contextos de conflito, este deve


ser qualificado pela mudança na “lógica” da anarquia apontada por
Keohane e Nye (1989). Em um contexto de interdependência com-
plexa, os regimes possuem autonomia e relevância quando a nature-
za dos conflitos tem sua ênfase mudada de questões puramente rela-
cionadas à segurança e à sobrevivência para considerações econômi-
cas e de redistribuição política dos ganhos da cooperação.

Mesmo quando assumem como ponto de partida a definição “con-


sensual” de Krasner (1982), muitos autores autonomistas divergem
quanto aos elementos que diferenciam os regimes de padrões de
comportamento não compreendidos em regimes. Uma definição me-
ramente funcionalista de regimes, baseada em sua “eficiência”, não
parece suficiente para esta diferenciação e para explicar sua efetivi-
dade. Assim, na tentativa de determinar os elementos que conferem
aos regimes autonomia e relevância, o presente artigo apresenta uma
“decomposição” analítica do conceito de regimes em elementos bá-
sicos: normatividade, atores, especificidade da área de interesses e
interdependência complexa como contexto.

Normatividade

De acordo com a definição “consensual” de Krasner (idem:186), re-


gimes são “conjuntos de princípios, normas, regras e procedimentos
para a tomada de decisões, implícitos ou explícitos, em função dos
quais as expectativas dos atores convergem em uma área determina-
da das relações internacionais”.

Temos assim o primeiro elemento básico: regimes são padrões de or-


denação do comportamento dos atores na esfera internacional. Se-
gundo Young (1982:733), “isso é o que as pessoas normalmente têm
em mente quando dizem que instituições sociais incluem conjuntos
de normas reconhecidas ou exibem um elemento normativo”. Para
que padrões de comportamento se configurem como regimes e pos-

309
Gustavo Seignemartin de Carvalho

suam autonomia e relevância, devem estar revestidos de normativi-


dade.

A normatividade de um comportamento é o elemento (formal e ex-


plícito ou informal e implícito) que promove sua internalização pelos
atores e sua valoração, seja positiva ou negativa. Regimes influenci-
am o comportamento de seus participantes, não são um conjunto de
atos automáticos ou reflexos. No entanto, a normatividade não exclui
a “racionalidade” dos atores, sejam estes indivíduos, companhias
transnacionais, sindicatos, governos ou Estados. O grau de internali-
zação do regime pelo participante pode condicionar ou promover de
maneiras diferentes seu comportamento, mas como é capaz de fazer
juízos de valor, cada ator pode racionalmente optar por seguir ou não
os padrões de comportamento estabelecidos pelo regime, assumindo
desta forma os custos respectivamente associados ao cumprimento
ou ao desvio de comportamento.

Logicamente, os conceitos de “ordem” e “normatividade” possuem


fortes conotações ideológicas. No entanto, podemos interpretar “or-
dem” como um processo de ordenação da vida na esfera internacio-
nal, sem que tenhamos que considerar seus elementos valorativos
neste primeiro momento. Isto não quer dizer que pretendamos for-
mular teorias neutras ou “estudar a realidade” do ponto de vista do
“observador neutro”, como ressalta Robert Cox (1986:207): “a teo-
ria não existe por si mesma, dissociada de sua situação no tempo e no
espaço”. Por outro lado, o estudo de regimes é possível sem que se
caia na armadilha que Cox atribuiu às teorias de solução de proble-
mas (problem solving theories) (idem:208). Quando nos referimos à
ordem como conceito analítico, desinteressado de juízos de valor,
não pretendemos reificar o conceito de ordem, mas apenas indicar,
parafraseando Hedley Bull (2002), que em um regime os princípios,
normas e regras estão estabelecidos e relacionados entre si mediante
um padrão discernível. Naturalmente, todo padrão de ordenação
possui um objetivo, como entende Bull (idem:8): “ordem [...] [é] uma

310 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005


Autonomia e Relevância dos Regimes

estrutura de conduta que leve a um resultado particular, um arranjo


da vida social que promove determinadas metas ou valores”. Mas é
possível identificar estes arranjos sem a necessidade de um juízo de
valor a priori.

Outra característica da normatividade dos regimes é seu caráter exte-


rior aos Estados; ou seja, regimes, ao menos à luz da disciplina de RI,
não são elementos subestatais, mas fenômenos que se desenvolvem
na esfera “internacional”. Este é um dos motivos pelos quais os auto-
res autonomistas em geral se referem a “regimes internacionais” e
Keohane (1993:112) os define como “modelos regularizados de
comportamento cooperativo na política mundial”.

Naturalmente, os regimes são necessariamente internacionais quan-


do formados a partir dos Estados. Mas há outra razão. Se regimes são
normativos e visam à ordenação do comportamento de seus partici-
pantes, regimes “subestatais” atuariam como “competidores” inter-
7
nos dos Estados no “fornecimento” de ordem ou no provimento do
bem público da “estabilidade”, o que seria incompatível com a con-
ceituação do Estado como titular do “monopólio do uso legítimo da
violência física” (Weber, s/d b:56). Porém, dentro da esfera estatal,
os problemas de cooperação e de fornecimento de “estabilidade” e
“ordem” são resolvidos pelos próprios Estados.

Reconhecer o caráter “internacional” dos regimes não significa, no


entanto, negar suas ramificações nacionais. Regimes não apenas in-
fluenciam o comportamento de atores subestatais como muitas vezes
incorporam elementos e regras específicas de um Estado ou arranjo
subestatal. Segundo Keohane e Nye (1989:19),
“[...] na política mundial, regras e procedimentos não são tão completos ou
efetivos quanto em sistemas políticos domésticos bem ordenados, e tam-
pouco as instituições são tão poderosas ou autônomas. As regras do jogo in-
cluem algumas regras nacionais, algumas regras internacionais, algumas
regras privadas – e grandes áreas sem regra alguma”.

311
Gustavo Seignemartin de Carvalho

Contudo, mesmo quando incorporam atores subestatais, os regimes


não estão adstritos à ordem estatal e a transcendem, adquirindo desta
8
forma um caráter “transnacional” , mais do que meramente “interna-
cional”.

A transnacionalidade dos regimes, sua normatividade e exteriorida-


de com relação aos Estados questionam ainda de forma direta o que
9
se convencionou chamar de “soberania” estatal dentro do modelo
westphaliano difundido na disciplina de RI, entendida por Krasner
(1995:119) como sendo “um arranjo institucional para a organização
da vida política baseado na territorialidade e na autonomia”. Não é
objetivo deste artigo aprofundar esta discussão. No entanto, seu re-
gistro é fundamental; regimes, quando autônomos e influentes no
comportamento dos Estados, podem apresentar restrições à autono-
mia da ação estatal.

Passemos então ao próximo elemento da análise dos regimes: a defi-


nição de seus atores.

Atores

Na literatura sobre regimes, os Estados são considerados como os


principais (quando não os únicos) atores na esfera internacional e,
portanto, na formação dos próprios regimes.

Esta visão “estadocêntrica”, inclusive entre institucionalistas liberais,


remonta aos primórdios da disciplina de RI e, sobretudo, ao predomí-
nio da tradição realista no pós-guerra. Mas as premissas do realismo
não foram o único fator a contribuir para esta visão. Como apontado
por Kratochwil e Ruggie (1986), o estudo de regimes evoluiu a partir
do estudo das organizações internacionais após a Segunda Guerra
Mundial. Como demonstram Martin e Simmons (1998), pela própria
característica do sistema internacional na época, os primeiros auto-
res “institucionalistas” voltaram suas atenções para as organizações

312 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005


Autonomia e Relevância dos Regimes

interestatais, como a ONU, e os processos de decisão dos Estados no


foro destas organizações: “a atenção estava concentrada na eficiên-
cia com que estas novas instituições proviam soluções para os pro-
blemas que haviam motivado sua criação” (idem:730).

O “estadocentrismo” da teoria de regimes também decorre da opção


epistemológica adotada por diversos autores. A proposta de alguns
institucionalistas ao iniciar o estudo de regimes não era romper com
o realismo ou com abordagens mais clássicas, mas, ao contrário, se-
guir uma via média entre perspectivas que Keohane e Nye (1989:9)
chamaram, de um lado, de “modernistas” (que enfatizariam o caráter
transnacional das relações de interdependência e a relativização do
Estado) e, de outro, “tradicionalistas” (mais identificados com o rea-
lismo e que enfatizariam a continuação do Estado e sua predominân-
cia em questões de política internacional): “tentamos utilizar o con-
ceito de interdependência de forma a integrar e não dividir ainda
mais as perspectivas modernistas e tradicionais”.

A busca pela via média também levou à adoção pelo institucionalis-


mo de algumas das premissas realistas, descritas por Hasenclever et
alii (1997:23) como a visão dos Estados como atores “unitários”,
“egoístas” e maximizadores de utilidade atuando em um ambiente
anárquico:
“[...] Estados como atores que buscam resultados em seu próprio interesse e
cujo comportamento pode ser explicado pela maximização da utilidade in-
dividual [...]. [T]anto a política externa dos Estados quanto as instituições
internacionais devem ser reconstruídas como sendo o resultado do cálculo
de benefícios feito pelos Estados. Por sua vez, estes cálculos são informa-
dos, embora não determinados, pelas preferências (função de utilidade) dos
atores”.

A ênfase dada pelas teorias de regimes ao papel do Estado atraiu a


crítica de diversos autores, para os quais ele não apenas empobrece-
ria o debate como também negligenciaria o estudo dos efeitos decor-
rentes da atuação na esfera “internacional” de atores não-estatais e

313
Gustavo Seignemartin de Carvalho

do fenômeno da transnacionalidade. Além disso, acabaria por condi-


cionar o estudo de regimes às preferências estatais, que ditariam des-
ta forma a agenda de tal estudo. Como ressalta Strange (1982:491),
“[...] a atenção dada a estas questões sobre regimes deixa o estudo da econo-
mia política internacional excessivamente constrangido pelos limites im-
postos pelo paradigma estadocêntrico [...] portanto, a atenção dada aos regi-
mes confere em demasia aos governos o direito de definir a agenda da pes-
quisa acadêmica e direciona a atenção dos pesquisadores principalmente
para aqueles assuntos considerados importantes pelos membros do gover-
no”.

Mas, apesar da ênfase dada pelo institucionalismo liberal e por mui-


tos autores autonomistas ao papel do Estado na formação de regimes,
o conceito não exclui a presença e a influência de atores não-estatais
e até mesmo subestatais tanto na sua criação quanto na sua “manu-
tenção”.

Em primeiro lugar, as teorias de regimes são influenciadas de manei-


ra explícita por teorias econômicas. As questões relativas a dilemas
de cooperação levantadas por estas teorias não se restringem ao com-
portamento dos Estados, mas, ao contrário, foram adaptadas aos es-
tudos de RI a partir do estudo do comportamento no mercado de fir-
mas, consumidores e outros atores não-estatais.

Desta forma, as definições apresentadas pelos diversos autores insti-


tucionalistas ou não definem “atores” ou, apesar de explicitamente
direcionadas aos atores estatais, podem ser claramente adaptadas a
atores não estatais. Keohane e Nye (1989) sugerem o mesmo quando
tratam das características da interdependência complexa e descre-
vem o que chamam de “múltiplos canais” (multiple channels):
“Múltiplos canais conectam as sociedades, compreendendo laços informais
entre as elites governamentais, assim como arranjos diplomáticos formais,
laços informais entre as elites não-governamentais (pessoalmente ou por
meio de telecomunicações) e organizações transnacionais (como bancos
multinacionais ou corporações). Estes canais podem ser classificados como

314 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005


Autonomia e Relevância dos Regimes

relações interestatais, transgovernamentais e transnacionais. Relações inte-


restatais são os canais normais considerados pelos realistas. O termo trans-
governamental aplica-se quando se flexibiliza a premissa realista de que
Estados atuam como uma unidade coerente; o termo transnacional apli-
ca-se quando se flexibiliza a premissa de que os Estados são as únicas uni-
dades [de análise]” (idem:24, ênfase no original).

Como a formação de regimes depende, segundo Keohane e Nye


(idem), do contexto da interdependência complexa e esta, por sua
vez, atribui espaço e relevância à atuação de atores não-estatais, a
conclusão lógica é que regimes, em contextos de interdependência
complexa, podem em teoria ser formados e mantidos por atores esta-
tais, não-estatais e até mesmo subestatais.

Naturalmente, isto não significa dizer que o poder e a política perdem


significância para o estudo de regimes. A política não apenas está
presente como é responsável pela dinâmica dos processos de redistri-
buição dos ganhos da cooperação organizados pelos regimes. Ade-
mais, a política, entendida neste artigo como “o conjunto de esforços
feitos com vistas a participar do poder ou a influenciar a divisão do
poder” (Weber, s/d b:56), é inerente a toda instituição social.

No entanto, em um contexto de interdependência complexa, o poder


deixa de ser utilizado das mesmas formas em que em um contexto
anárquico “puro” e passa a ser qualificado pelas próprias característi-
cas da interdependência; a preocupação com ganhos relativos ganha
uma conotação diferente. E se o exercício do poder se torna condicio-
nado aos efeitos da interdependência complexa, os Estados passam a
sofrer restrições no uso desse poder, em detrimento de outras formas
de exercício de poder por atores não-estatais. Pode-se mesmo dizer
que a soberania estatal sofre restrições dentro deste contexto. Keoha-
ne e Nye (1989) identificam este fenômeno como uma segunda ca-
racterística da interdependência, “o papel diminuído da força mili-
tar” (minor role of military force):

315
Gustavo Seignemartin de Carvalho

“Especialmente entre países industrializados e pluralistas, a margem de se-


gurança percebida aumentou: o medo de ataques em geral diminuiu e o
medo de ataques entre si é praticamente inexistente [...]. [I]ntensas relações
de influência mútua existem entre estes países, mas na maioria deles a força
como instrumento de política é irrelevante ou deixou de ser importante”
(idem:27).

Os Estados continuam mantendo sua importância, mas a presença de


atores não-estatais se faz sentir de forma cada vez mais forte nos regi-
mes internacionais. Hasenclever et alii (2000:5) resumem a questão
da seguinte forma:

“[...] em resposta à acusação de estadocentrismo [...] tentou-se consi-


derar de forma mais sistemática o papel de atores não-estatais na cri-
ação, implementação e desenvolvimento de regimes internacionais
[...]. [E]studiosos começaram a se questionar sobre a possibilidade
teórica e a realidade empírica de regimes transnacionais, ou seja, ins-
tituições normativas com abrangência transnacional criadas e manti-
das por atores privados. Exemplos de tais regimes internacionais pri-
vados incluem a cooperação baseada em regras entre grandes com-
panhias transnacionais em setores como o de seguros, bancário e de
armação e navegação”.

Especificidade da Área de
Interesses

Outro elemento por meio do qual podemos caracterizar os regimes é


a especificidade da área em que se formam. Apesar de se constituí-
rem em uma forma de ordenação da esfera “internacional” (ou
“transnacional”), regimes aplicam-se a áreas específicas de in-
ter-relação entre os atores, também chamadas de issue-areas. Young
(1982) chama a atenção para essa característica. Regimes governari-
am assim “as ações dos interessados em atividades específicas (ou
em conjuntos aceitos de atividades)” (idem:732). Mas a formulação
clássica de tal característica coube à definição “consensual” de Kras-

316 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005


Autonomia e Relevância dos Regimes

ner (1982:186) – regimes são estabelecidos “em uma área determi-


nada das relações internacionais” – e levou à observação de Hasen-
clever et alii (2000:3) de que regimes “são criados para remover áre-
as específicas da política internacional da esfera da au-
to-assistência”.

Para Keohane (1984), regimes formam-se em áreas de interesse deli-


mitadas pela afinidade de temas e pela conveniência de tratá-los den-
tro de um mesmo arranjo político e segundo as mesmas regras: “en-
tendemos que o escopo dos regimes internacionais corresponde, em
geral, aos limites de áreas de interesses, uma vez que os governos cri-
am regimes para lidar com problemas que consideram tão ligados
que precisam ser tratados em conjunto” (idem:61).

A especificação da área de “atuação” de um regime é um de seus ele-


mentos fundamentais, mas ao mesmo tempo um dos pontos de ques-
tionamento dos críticos, principalmente por meio do que os estudio-
sos convencionaram chamar de “governança global”. Dentro dessa
vertente, os regimes são criticados pela sua rigidez conceitual e por
sua limitação, em contraposição à dinâmica apresentada pelo siste-
ma ou pela ordem mundial. Para James Rosenau (2000:21),

“[...] a definição das características dos regimes, que enunciamos anterior-


mente, e que é amplamente aceita, tem uma frase adicional [...] princípios,
normas, regras e procedimentos de qualquer regime convergem, por defini-
ção, ‘para uma área determinada das relações internacionais’, ou o que tem
sido denominado de issue-area, ou seja, ‘área temática’[...] em suma, como
dissemos, a governança inerente à ordem mundial é o conceito mais am-
plo”.

Apesar das críticas, a caracterização de regimes como arranjos polí-


ticos delimitados, circunscritos a uma área temática específica, é
também necessária para que o conceito tenha especificidade e aplica-
bilidade. As críticas de Stein (1990) e Mearsheimer (1995) são pro-
cedentes, uma vez que para muitos autores o conceito de regime é tão

317
Gustavo Seignemartin de Carvalho

amplo que compreende quaisquer comportamentos por parte dos


atores estatais ou não-estatais.

Nunca é demais enfatizar, no entanto, que regimes não se formam


isoladamente no sistema. Como corretamente apontado por Young
(1999:197), “apesar de alguns comentadores considerarem alguns
regimes específicos como auto-suficientes, a maioria dos regimes in-
terage extensamente com outras instituições”.

Além disso, uma das funções atribuídas por Axelrod e Keohane


(1985:239) aos regimes é possibilitar o que chamaram de “is-
sue-linkage”, ou seja, o entrelaçamento e condicionamento de deci-
sões dos autores em uma área de temas a decisões em outras áreas:
“neste sentido, a vinculação de questões envolve tentativas de se ob-
ter um maior poder de barganha por meio do condicionamento do
comportamento de um participante em uma questão ao comporta-
mento de outro em outra questão”. O que o conceito de issue-linkage
sugere é que os regimes, por adquirirem autonomia e relevância em
um contexto de interdependência complexa, permitem a seus partici-
pantes a barganha política em torno de temas relativos a outros regi-
mes e áreas temáticas diversas.

Interdependência Complexa
como Contexto

Como visto anteriormente, para os institucionalistas liberais, os regi-


mes ganham autonomia e relevância quando o contexto em que ocor-
re a interação é influenciado pela interdependência complexa.

Desenvolvido por Keohane e Nye (1989:8), o conceito de interde-


pendência complexa significa, basicamente, situações de dependên-
cia mútua entre um ou mais atores: “a interdependência na política
mundial refere-se a situações caracterizadas por efeitos recíprocos
entre países ou entre atores em diferentes países”. Stein (1990:45)

318 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005


Autonomia e Relevância dos Regimes

complementa o conceito da seguinte forma: “os ganhos obtidos por


um ator são uma função tanto das suas escolhas quanto das do outro.
Se os atores fossem independentes, no sentido de que suas escolhas
afetassem apenas seus ganhos, os regimes internacionais não teriam
fundamento”.

Apesar de identificado com o institucionalismo liberal, o conceito de


interdependência possui uma longa história dentro da disciplina de
RI, remontando a trabalhos clássicos de autores internacionalistas li-
berais, como Norman Angell (2002), e autores liberais clássicos em
EPI.

Adam Smith (1983) foi um dos primeiros autores em EPI a tratar da


questão da interdependência, ressaltando os aspectos positivos que o
comércio internacional e a divisão do trabalho possui para os Estados
envolvidos:

“[...] quaisquer que sejam os países ou regiões com os quais se co-


mercializa, todos eles obtêm dois benefícios do comércio exterior.
Este faz sair do país aquele excedente da produção da terra e do traba-
lho para o qual não existe demanda no país, trazendo de volta, em tro-
ca, alguma outra mercadoria da qual há necessidade [...]. [O] comér-
cio externo presta continuamente esses grandes e relevantes serviços
a todos os países entre os quais ele é praticado. Todos eles auferem
grandes benefícios dele” (idem:372).

Mas a interdependência é mais do que o intercâmbio ou o comércio


internacional entre os Estados. Para Keohane e Nye (1989:9), “inter-
conexão não é o mesmo que interdependência”. Para haver interde-
pendência, deve haver influências e efeitos recíprocos sobre os diver-
sos participantes: “onde as transações acarretam custos recíprocos
(apesar de não necessariamente simétricos), há interdependência.
Onde as interações não acarretam custos significativos, há apenas in-
terconexão” (ibidem). Estes efeitos da interdependência podem se

319
Gustavo Seignemartin de Carvalho

reforçar, ou seja, os efeitos e custos aos quais um dos atores está sujeito
podem reforçar os efeitos nos demais.

Os aspectos positivos da interdependência estão claramente presen-


tes na defesa que Smith (1983) faz da liberdade de comércio. Mas sua
natureza pode ser diversa em situações de crise e de guerra. A inter-
dependência não se mostra intrinsecamente positiva ou negativa.
Para Eichengreen (1996), os efeitos da interdependência, os quais
chama de “network externalities”, podem atuar também como um
entrave ao desenvolvimento de soluções necessárias à ordem inter-
nacional:
“[...] entretanto, descrever a evolução dos arranjos monetários internacio-
nais como a resposta individual de vários países a um mesmo conjunto de
circunstâncias seria enganoso. Na verdade, cada decisão nacional não se
deu independente das demais. A fonte desta interdependência está nas ex-
ternalidades sistêmicas que caracterizam os arranjos monetários internaci-
onais [...] o arranjo preferido por um país será influenciado pelos arranjos
nos demais [...] o sistema monetário internacional apresentará path depen-
dence” (idem:5, ênfase no original).

Da mesma forma, David Ricardo (1987:175) sugere que não apenas


os efeitos positivos da interdependência são recíprocos e reforçados,
mas também os negativos:
“[...] em todos estes casos, aqueles que atuam na manufatura de tais produ-
tos sofrerão consideravelmente e, sem dúvida, terão perdas. [...] O sofri-
mento não se limitará àquele país onde tais dificuldades se originaram, mas
será sentido nos países para os quais seus produtos eram anteriormente ex-
portados. Nenhum país pode continuar importando a não ser que também
exporte, ou pode continuar exportando a não ser que também importe”.

Dentro da disciplina de RI, Norman Angell (2002) retoma a discus-


são dos ganhos absolutos e relativos e procura demonstrar que a ri-
queza das nações não deriva necessariamente de seu poderio militar
ou político, mas está sujeita ao contexto da interdependência. Segun-
do ele, a guerra seria economicamente desastrosa, principalmente

320 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005


Autonomia e Relevância dos Regimes

para os países europeus, ligados por laços de dependência econômi-


ca mútua:
“Dizem-me que a dependência recíproca das nações é coisa antiga, que to-
dos esses fatores existem desde tempos imemoriais e que ela não contribuiu
para despojar a força militar das suas prerrogativas ou para modificar a con-
duta dos Estados entre si. [...] A dependência recíproca das nações foi invo-
cada como argumento, pela primeira vez com uma certa seriedade, por
Hume, em 1752, e trinta anos depois por Adam Smith [...] no entanto, no fim
do século XVIII, seus argumentos evidentemente ainda não tinham influen-
ciado a política geral [...]. Na realidade, a dependência vital dos Estados en-
tre si era praticamente muito limitada, como se pode ver pelos resultados do
sistema continental de Napoleão. [...] A Inglaterra ainda não tinha uma
grande indústria vinculada à prosperidade dos seus vizinhos [...] mas aí pela
terceira ou quarta década daquele século, fez-se sentir plenamente a divisão
de trabalho” (idem:120).

Angell aprofunda os argumentos apresentados por Smith e Ricardo


acrescentando um aspecto interessante da interdependência, sua in-
tersubjetividade:
“[...] uma autoridade financeira que já citei observa que essa dependência
mútua e complexa do mundo moderno se produziu a despeito de nós mes-
mos [...]. No fundo, os homens continuam prontos, hoje como em qualquer
época precedente, a apoderar-se de bens que não lhes pertencem e que não
adquiriram legitimamente [...]. Mas, quando a riqueza depende principal-
mente do crédito e do prestígio que têm no mercado os documentos que o re-
gistram, a má-fé revela-se tão improdutiva e arriscada quanto o trabalho
honrado em épocas anteriores” (idem:57).

A ênfase na intersubjetividade é reforçada na análise de Young


(1999). Para ele, regimes devem ser situados no contexto de regras e
princípios mais amplos, que comporiam o que ele chama de “socie-
dade internacional”:
“[...] cada regime atua dentro de um contexto mais amplo proporcionado
pela sociedade internacional, o que traz amplas conseqüências tanto para a
efetividade dos regimes em solucionar problemas quanto para as conse-
qüências mais gerais advindas das atividades exercidas em relação a cada
regime em particular” (idem:198).

321
Gustavo Seignemartin de Carvalho

Assim, regimes não podem ser analisados fora do contexto da inter-


dependência complexa. Sem dúvida, a preocupação com ganhos re-
lativos não desaparece quando os atores constituem regimes. Mas em
um contexto no qual a preocupação com a segurança deixa de ser ab-
soluta, a preocupação com ganhos relativos deve ser qualificada.

Isso não quer dizer que regimes ocorram em situações de harmonia


de interesses. Ao contrário, eles possuem funções específicas relaci-
onadas à coordenação de resolução de conflitos de interesses. Não há
regimes em que não haja conflitos, mas os conflitos podem ser resol-
vidos sem a utilização necessária do recurso da força, como preconi-
zado pela tradição realista em RI e, como Angell (2002) sugere, o
contexto da interdependência não apenas torna a utilização da força
militar menos premente, como também mais custosa e prejudicial.

Conclusão

Conforme visto, regimes apresentam um problema analítico para a


perspectiva não-autonomista. Como eles poderiam ter relevância se
o comportamento estatal na esfera internacional é pautado por preo-
cupações relacionadas ao poder e a ganhos relativos, como preconi-
zam os realistas clássicos, ou dependem e estão intimamente ligados
à hegemonia de uma potência capaz ou disposta a assumir os custos
de seu estabelecimento? Dentro da “lógica da anarquia” e do princí-
pio de auto-ajuda apresentados por Mearsheimer, Grieco, Gilpin e
outros realistas como sendo a característica do sistema internacional,
a idéia de regimes como instituições sociais autônomas e relevantes,
dotadas de normatividade, constituídas por atores estatais e
não-estatais, dentro de um contexto de interdependência complexa, é
incongruente com a premissa realista que considera os Estados como
atores racionais. Afinal, atores racionais, soberanos, atuando em um
sistema anárquico baseado no princípio da “auto-ajuda”, poderiam
submeter sua segurança e sobrevivência a “arranjos políticos” sobre
os quais não exercem controle direto? Como ficariam as preocupa-

322 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005


Autonomia e Relevância dos Regimes

ções com os ganhos relativos? O que aconteceria quando a potência


hegemônica deixasse de arcar com os custos da cooptação dos demais
Estados? E como fica o modelo de soberania westphaliano tão difun-
dido na disciplina de RI?

A solução apresentada pelos autores não-autonomistas é eliminar o


problema, simplesmente negando a possibilidade de autonomia aos
regimes e condicionando sua influência à ação direta das potências
dominantes. No entanto, eliminar o problema do ponto de vista teóri-
co não o elimina da vida social; por isso, as teorias de orientação
não-autonomista passaram a enfrentar dificuldades ao procurar for-
necer explicações para situações e fenômenos intensificados durante
os anos 1970, como por exemplo “constatações sobre a crescente in-
terdependência entre as sociedades e sobre a sobrevivência das insti-
tuições criadas no pós-Segunda Guerra, mesmo em face das crises
daquele período” (Herz e Hoffmann, 2004:52). Como notam Herz e
Hoffmann (idem:53), “a percepção de que as instituições internacio-
nais podem mudar as relações entre Estados é o grande divisor de
águas que separa liberais e realistas no debate”.

Ao contrário do que entendem os autores não-autonomistas, regimes


podem ser efetivos por possuírem autonomia, ou seja, uma existência
objetiva autônoma com relação a seus participantes, e por possuírem
relevância ao influenciarem o comportamento e as expectativas dos
participantes de maneiras que não podem ser reduzidas à atividade
individual de qualquer um deles.

Logicamente, o estudo de regimes não se encontra imune a críticas,


principalmente de cunho epistemológico. No entanto, como já de-
fendido, o estudo de instituições sociais, como os regimes, não é pri-
vativo de perspectivas não-fundacionalistas. Tanto as perspectivas
racionalistas quanto as não-fundacionalistas permitem a análise da
questão da ordem na “esfera internacional” em seus diferentes aspec-
tos. Esperamos que o presente artigo possa contribuir para este deba-

323
Gustavo Seignemartin de Carvalho

te e que o estudo dos regimes e do tipo de ordem no qual se inserem


possa se desenvolver sem que seja legado ao esquecimento como
mais uma “moda passageira”.

Notas

1. Os textos não disponíveis em língua portuguesa foram traduzidos livremen-


te por mim.
2. A conferência foi especialmente convocada para a preparação de um núme-
ro especial da International Organization dedicado ao estudo de regimes (ver
Keohane, 1984:57; Hasenclever et alii, 1997:8), o qual se tornou uma referência
sobre o tema (ver International Organization, vol. 36, no 2).
3. Segundo Gilpin (2002:86, nota 2), o termo foi cunhado por Keohane.
4. Para uma discussão da “lógica da anarquia” a partir de uma visão construti-
vista, ver Wendt (1992).
5. Cf. nota 34.
6. Cf. nota 44.
7. Para uma ampla discussão sobre este processo, ver Tilly (1996).
8. Para uma discussão mais aprofundada sobre o conceito de transnacionali-
dade e outros aspectos da globalização, ver Mann (1999).
9. Como referência à discussão da soberania, ver Krasner (1995).

324 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005


Autonomia e Relevância dos Regimes

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Resumo

Autonomia e Relevância dos


Regimes

Teorias institucionalistas na disciplina de relações internacionais usual-


mente definem regimes como um conjunto de normas e regras formais ou in-
formais que permitem a convergência de expectativas ou a padronização do
comportamento de seus participantes em uma determinada área de interes-
ses com o objetivo de resolver problemas de coordenação que tenderiam a
resultados não pareto-eficientes. Como estas definições baseadas mera-
mente na “eficiência” dos regimes não parecem suficientes para explicar
sua efetividade, o presente artigo propõe uma definição diferente para regi-
mes: a de arranjos políticos que permitem a redistribuição dos ganhos da

327
Gustavo Seignemartin de Carvalho

cooperação pelos participantes em uma determinada área de interesses em


um contexto de interdependência. Regimes possuiriam efetividade pela sua
autonomia e relevância, ou seja, por possuírem existência objetiva autôno-
ma da de seus participantes e por influenciarem seu comportamento e ex-
pectativas de maneiras que não podem ser reduzidas à ação individual de
nenhum deles. O artigo inicia-se com uma breve discussão sobre as dificul-
dades terminológicas associadas ao estudo de regimes e a definição dos
conceitos de autonomia e relevância. Em seguida, classifica os diversos au-
tores participantes do debate em duas perspectivas distintas, uma que nega
(não-autonomistas) e outra que atribui (autonomistas) aos regimes autono-
mia e relevância, e faz uma breve análise dos autores e tradições mais signi-
ficativos para o debate, aprofundando-se nos autonomistas e nos argumen-
tos que reforçam a hipótese aqui apresentada. Ao final, o artigo propõe uma
decomposição analítica dos regimes nos quatro elementos principais que
lhes propiciam autonomia e relevância: normatividade, atores, especifici-
dade da área de interesses e interdependência complexa como contexto.

Palavras-chave: Regime – Definição de Regime – Efetividade dos Regi-


mes – Autonomia e Relevância dos Regimes – Elementos dos Regimes

Abstract

The Autonomy and Relevance of


Regimes

Regimes are defined by institutionalist theories in the discipline of


International Relations as formal or informal sets of norms and rules that
create patterns of behavior and allow the convergence of the expectations of
their participants in specific issue areas, in order to solve coordination
problems that could lead to non-pareto-efficient outcomes. Considering
that such definitions based merely on the “efficiency” of regimes do not
seem to be sufficient to explain their effectiveness, the present article
proposes a different definition for regimes: political arrangements that
allow a redistribution of the gains of cooperation among the participants in
certain issue areas, within an interdependence context. Regimes would
thus be effective due to their autonomy and relevance – that is, due to their
objective existence autonomously from their participants and their
influence on the participants’ behavior and expectations in ways that
cannot be reduced to the individual action of any of them. This article
begins with a brief discussion about terminological problems related to
regime studies and with a definition of the concepts of autonomy and

328 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005


Autonomia e Relevância dos Regimes

relevance. Then it classifies the authors that take part in this debate
according to two distinct perspectives, one that denies (non-autonomists)
and the other that attributes (autonomists) autonomy and relevance to
regimes, briefly analyzing the authors and traditions that are more
significant for this debate, focusing on autonomist authors and on
arguments that back the hypothesis here presented. Finally, the article
proposes an analytic decomposition of regimes into four main elements that
give them autonomy and relevance: normativity, actors, specificity of the
issue area and complex interdependence as context.

Key words: Regime – Regime’s Definition – Regimes’ Effectivity –


Regimes’ Autonomy and Relevance – Regimes’ Elements

329
Parlamentos
Supranacionais na
Europa e na América
Latina: Entre o
Fortalecimento e a
Irrelevância*
Andrés Malamud** e Luís de Sousa***

Introdução

A moderna instituição parlamentar nasceu na Inglaterra do século


XVII, como instrumento de controle dos poderes monárquicos por
parte de uma burguesia ascendente. Não foi um acontecimento sin-
gular e isolado na história política européia, mas o resultado de um

* Agradecemos a Daniel Bach, Helena Carreiras, Anne-Sophie Claeys-Nivet, Olivier Costa, Helge Hve-
em e Laurence Whitehead pelos comentários a versões prévias deste artigo. Luís de Sousa também agra-
dece à Fundação Calouste Gulbenkian por ter financiado parte deste projeto no âmbito do Programa Gul-
benkian de Estímulo à Investigação 2003. Versões anteriores foram apresentadas no Fifth Pan-European
International Relations Conference (SGIR-ECPR), em Aia, Holanda, 9-11 de setembro de 2004; no
XXV Latin American Studies Association Congress (LASA 2004), Las Vegas, Nevada, 7-9 de outubro
de 2004; e no First Global International Studies Conference, World International Studies Committee
(WISC), Estambul, 24-27 de agosto de 2005. Artigo recebido em dezembro de 2004 e aceito para publi-
cação em agosto de 2005.
** Investigador auxiliar no Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES-ISCTE) de Lisboa e
professor auxiliar de Ciência Política na Universidade de Buenos Aires.
*** Investigador auxiliar no Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES-ISCTE) de Lisboa.

CONTEXTO INTERNACIONAL Rio de Janeiro, vol. 27, no 2, julho/dezembro 2005, pp. 369-409.

369
Andrés Malamud e Luís de Sousa

processo gradual de desenvolvimento institucional para o qual con-


tribuíram experiências da Antiguidade, tais como a assembléia geral
de archons e o areopagus da antiga Grécia, o senado da República
de Roma e os conselhos dos povos escandinavos. O Parlamento viria
reclamar para si três competências ou poderes fundamentais, nos
processos de governança: 1) a supremacia legislativa; 2) o poder úl-
timo de decisão e de fiscalização sobre as políticas de tributação e de
despesa pública; e 3) a possibilidade de intervir indiretamente no
processo de decisão, quer por meio da impugnação da escolha de um
ministro da coroa, quer pelo poder de votar a incapacitação do sobe-
rano. Este modelo de assembléia representativa seria, posteriormen-
te, exportado para o continente americano, onde se consolidaria
como órgão de soberania autônomo. Regressaria à Europa continen-
tal com a Revolução Francesa e seria, novamente, exportado para o
resto do mundo, afirmando-se, finalmente, como a instituição em-
blemática dos processos de deliberação política e legislativos na
maioria dos Estados modernos.

Assembléias legislativas análogas tiveram também a sua difusão ao


nível subnacional, em Estados (con)federados ou províncias autôno-
mas que, posteriormente, constituíram-se em Estados federais. Se os
Parlamentos subnacionais datam, pelo menos, do século XVIII, pois
já se encontravam presentes em algumas colônias americanas quan-
do foi proclamada a independência e jurada a Constituição, os Parla-
mentos supranacionais são criações recentes.

O primeiro Parlamento supranacional relevante foi o Parlamento Eu-


ropeu. Na definição dada pelo Tratado de Roma de 1957, o Parla-
mento Europeu é “composto por representantes dos povos dos Esta-
dos reunidos na Comunidade”. A legitimidade do Parlamento Euro-
peu baseia-se no sufrágio direto e universal dos seus membros – des-
de 1979 – e a sua investidura tem uma duração de cinco anos. Outros
1
processos de integração regional tentaram replicar este modelo de
assembléia legislativa supranacional, sendo a América Latina a re-

370 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005


Parlamentos Supranacionais na Europa e na
América Latina: Entre o Fortalecimento...

gião onde a experimentação ou mimetismo institucional teve maior


repercussão. Em junho de 2004, a International Parlamentary Union,
organização internacional que reúne de um modo associativo os vári-
os Parlamentos nacionais a nível mundial, era composta por 140
membros nacionais e cinco associados, estes últimos de carácter re-
gional/internacional: o Parlamento Andino, o Parlamento Cen-
tro-Americano, o Parlamento Europeu, o Parlamento Lati-
no-Americano e a Assembléia Parlamentar do Conselho da Europa.
Para além destes, a Comissão Parlamentar Conjunta do Mercosul re-
presenta também o embrião de uma instituição representativa supra-
nacional e merece, por isso, um escrutínio mais atento.

Este desenvolvimento político e institucional levanta várias ques-


tões. A primeira é saber por que razão os líderes políticos optaram
por estabelecer um Parlamento regional (Rittberger, 2003) quando o
processo de integração era, substancialmente, uma iniciativa de cariz
econômico. A segunda é estabelecer se os órgãos parlamentares regi-
onais constituem Parlamentos propriamente ditos ou algo diferente.
Finalmente, inquere-se por que razão os Parlamentos regionais se de-
senvolveram apenas em duas regiões do mundo, nomeadamente Eu-
ropa e América Latina, e quais as diferenças observáveis entre os
processos de integração regional nestas regiões. O artigo discute es-
tas questões por meio da análise comparativa de cinco Parlamentos
regionais, ditos supranacionais: todos aqueles anteriormente menci-
onados, menos a Assembléia Parlamentar do Conselho da Europa,
porque se trata apenas de um órgão de deliberação coletiva e não de
decisão, para o qual não se antevê nenhum novo desenvolvimento
institucional que aponte em outra direção.

O artigo está dividido em cinco partes iniciais que incidem sobre


cada um dos cinco Parlamentos regionais. Trata-se de uma breve
análise da evolução histórica e política destes organismos, examina-
dos na sua estrutura, competências e modo de funcionamento à luz de
quatro funções parlamentares clássicas: representação (legitimiza-

371
Andrés Malamud e Luís de Sousa

ção), legislação (processo de decisão), controle do Executivo e do


aparelho do Estado (fiscalização) e formação de elites e liderança po-
lítica (recrutamento e treino). A parte final do artigo apresenta um
conjunto de conclusões comparativas.

O Parlamento Europeu (PE)

Quem olhar pela primeira vez o tecido institucional da Europa ficará


surpreendido com a existência de vários arranjos institucionais que
se sobrepõem, interagem e se articulam de modo a tornar a União Eu-
ropéia (UE) um modelo único de integração regional. Tendo em con-
ta o nível de integração conseguido entre os vários membros e a ex-
tensão e intensidade das suas competências políticas, a UE é a estru-
tura organizacional central da Europa. Existe, contudo, uma série de
organizações anteriores aos Tratados de Roma de 1957 que deram,
cumulativamente, um contributo significativo para a singularidade
do processo de integração europeu – ainda que limitado, menos
abrangente e sem poder de decisão. Algumas delas sobreviveram ao
processo de integração europeu proporcionado pelas comunidades
dos Tratados de Roma, mas ficaram reduzidas a um papel deliberati-
vo secundário e simbólico – como, por exemplo, o Conselho da Eu-
ropa – ou foram, ultimamente, incorporadas pelas sucessivas revi-
sões dos tratados – tal como aconteceu com a União da Europa Oci-
dental, incorporada na política européia de defesa mediante o Trata-
2
do de Maastricht . Algumas destas organizações mantiveram a sua
filiação e caráter europeu; outras, tais como a Organização para Coo-
peração e Desenvolvimento Econômico (OCDE), expandiram suas
atividades para outros países e regiões além da Europa. Todavia, um
dos elementos comuns mais salientes a estas organizações continua
sendo a existência de Parlamentos ou assembléias de cariz regional
(Quadro 1).

Poderiam ainda ser mencionadas outras iniciativas de carácter inter-


parlamentar ou fóruns regionais, tais como: o Conselho Nórdico, que

372 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005


Quadro 1
Breve Análise Comparativa das Assembléias Regionais Européias

Organização Tratado fundador Objetivos Instituição parlamentar Principais características


União da Europa Tratado de Paris, 23 de Militares (de defesa). Assembléia Parlamentar da Papel consultivo e deliberação coletiva.
Ocidental (UEO/WEU) outubro de 1954 (que Diplomáticos. União da Europa Ocidental. Sem poderes de decisão.
completa o Tratado de Funcionamento não permanente: duas
Econômicos.
Bruxelas de 17 de março de sessões plenárias anuais de duração de
Sociais.
1948). Estatuto de 1955. duas semanas cada.
Culturais.
Membros nomeados pelos Parlamentos
nacionais.
Representação proporcional (hierarquia de
Estados).
Conselho da Europa Tratado de Bruxelas, 5 de Democracia. Assembléia Parlamentar do Debate sobre os grandes problemas,
(CoE) maio de 1949. Desenvolvimento. Conselho da Europa. temáticas e fatos da Europa.

Questões sociais. Papel consultivo e deliberação coletiva.


Fracos poderes de decisão e de controle.
Direitos Humanos (refugiados,
minorias, migração, gênero). Funcionamento semipermanente: quatro
sessões plenárias anuais de uma semana
Cultura e educação.
de duração cada. Comissão Permanente
Ciência e tecnologia.
assegura continuidade de trabalho.
Organização territorial.
Membros eleitos indiretamente ou
Ambiente. nomeados pelos Parlamentos nacionais.
Representação proporcional (hierarquia de
Estados).
América Latina: Entre o Fortalecimento...
Parlamentos Supranacionais na Europa e na

373
(continua)
(continuação)

374
Organização Tratado fundador Objetivos Instituição parlamentar Principais características
Organização do Sem natureza jurídica. Em Militares (defesa e segurança, Assembléia Parlamentar da Papel consultivo e interface entre o
Tratado do Atlântico 1953, o Parlamento controle democrático das OTAN. Conselho da OTAN e os Parlamentos
Norte (OTAN/NATO) norueguês aprovou uma Forças Armadas, diálogo nacionais. Sem poder de decisão.
Resolução que visava a transatlântico sobre políticas Funcionamento não-permanente: duas
criação de uma Assembléia da OTAN). sessões plenárias anuais.
na OTAN. A primeira
Membros designados pelos Parlamentos
Conferência de
nacionais.
Parlamentares teve lugar
Representação proporcional (hierarquia de
Andrés Malamud e Luís de Sousa

em 1955.
Estados).
Organização para a Declaração de Madri, abril Desenvolvimento de Assembléia Parlamentar da Papel consultivo e deliberação coletiva.
Segurança e de 1991. mecanismos de prevenção e OSCE. Sem poder de decisão.
Cooperação na resolução de conflitos. Funcionamento não-permanente: uma
Europa (OSCE) Consolidação da democracia. sessão plenária anual.
Membros nomeados pelos Parlamentos
nacionais.
Representação proporcional (hierarquia de
Estados).

Fonte: Nuttens e Sicard (2000).

CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005


Parlamentos Supranacionais na Europa e na
América Latina: Entre o Fortalecimento...

reúne os parlamentares dos países escandinavos; o Conselho de Con-


sulta Interparlamentar dos países que constituem o Benelux (Bélgi-
ca, Países Baixos e Luxemburgo); a assembléia dos países do Bálti-
co; a Assembléia Parlamentar de Cooperação Econômica dos países
do Mar Negro; ou mesmo a Conferência Parlamentar dos países da
Europa Central. Nenhuma destas iniciativas parlamentares regio-
nais/internacionais participa do processo de integração europeu de
forma tão relevante quanto o Parlamento Europeu. Contudo, tais ini-
ciativas não podem deixar de ser mencionadas, porque a sobreposi-
ção de afiliação institucional dos vários países europeus e das própri-
as competências destas instituições se destaca como um elemento
fundamental do modelo de integração política regional conseguido
pelos Estados-nação na Europa do pós-1945. A evolução do proces-
so de integração europeu seduz qualquer acadêmico que se debruce
sobre as razões que conduzem ao sucesso e fracasso de opções e mo-
delos institucionais. A integração européia construiu-se a partir de
vários projetos institucionais, que, embora apontassem para o mes-
mo objetivo último, isto é, a criação de uma unidade política regio-
nal, apresentavam métodos bastante diferentes e, conseqüentemen-
te, resultados díspares. Não só estes projetos coexistiram, como tam-
bém competiram entre si. Enquanto alguns obtiveram sucesso na im-
plantação e consolidação das suas instituições, outros foram relega-
dos a um papel secundário.

De todas as iniciativas parlamentares regionais acima mencionadas,


o Parlamento Europeu foi a única que desenvolveu poderes reais de
decisão, tornando-se, assim, um elemento central da estrutura com-
plexa de governança da UE. Para que melhor possamos compreender
a evolução do Parlamento Europeu, passando de uma entre várias
iniciativas parlamentares regionais ao primeiro Parlamento suprana-
cional, será conveniente rever brevemente a estrutura e processo da
Comunidade Européia (CE).

375
Andrés Malamud e Luís de Sousa

Evolução e competências do
Parlamento Europeu

Os fundadores dos Tratados de Roma de 1957 pretendiam uma rup-


tura com o passado. O fracasso do Conselho da Europa como respos-
ta institucional à idéia de uma Europa unida era apontado por alguns
ex-dirigentes do Conselho, como Paul-Henri Spaak, como um exem-
plo daquilo que o novo projeto deveria evitar a todo o custo. O novo
projeto institucional seria baseado em um equilíbrio sustentável, en-
tre intergovernamentalismo e supranacionalismo, e em um modelo
constitucional liberal tripartido: um Poder Executivo que tomasse e
implementasse as decisões; uma assembléia onde os vários assuntos
e problemas seriam debatidos e deliberados; e um corpo judicial in-
dependente, com capacidade de rever decisões e de resolver conflitos
que suscitassem problemas de legalidade.

A originalidade deste novo regime internacional reside no fato de


adaptar a clássica divisão tripartida dos Poderes – Executivo, Legis-
lativo e Judicial – aos novos arranjos institucionais que resultaram do
equilíbrio entre o caráter intergovernamental e supranacional dos
processos de decisão. Contudo, as competências dos três corpos polí-
ticos – Comissão, Conselho de Ministros e Parlamento Europeu –
encontram-se entrelaçadas a ponto de tornar difícil estabelecer uma
divisão clara dos Poderes Executivo e Legislativo.

A função executiva é partilhada pela Comissão Européia e o Conse-


lho de Ministros. A Comissão é um corpo político supranacional no-
meado de mútuo acordo entre os Estados-membros, mas os seus
membros exercem as suas prerrogativas independentemente das
vontades e interesses dos seus respectivos governos. A Comissão re-
presenta os interesses da comunidade, atua como “guardiã dos Trata-
dos” – no sentido de garantir a observância dos tratados e do Direito
Comunitário, mesmo que isto implique em infligir sanções a um
Estado-membro ou levá-lo a responder diante do Tribunal Europeu –

376 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005


Parlamentos Supranacionais na Europa e na
América Latina: Entre o Fortalecimento...

e continua sendo a interface central do sistema de decisão (Mény,


1998:24). O Conselho de Ministros é um modelo clássico de corpo
político intergovernamental composto por representantes dos Esta-
dos-membros que defendem os interesses dos seus próprios gover-
nos.

Embora estas duas instituições sejam denominadas de órgãos execu-


tivos, também desempenham funções legislativas. A Comissão de-
tém um quase-monopólio do direito de iniciativa legislativa, além de
ser responsável pela gestão e execução das políticas comuns, fiscali-
zação da aplicação do Direito Comunitário (conjuntamente com o
Tribunal de Justiça) e representação da UE em âmbito internacional.
Também pode tomar decisões, autonomamente ou mediante delega-
ção do Conselho, emitir pareceres e elaborar recomendações. O
Conselho, por sua vez, possui amplos poderes de decisão: pode ado-
tar regulamentos e diretivas, concluir acordos e tratados (que, no en-
tanto, terão que ser negociados com a Comissão), retificar lacunas ou
clarificar disposições nos tratados e partilhar competências orça-
mentais com o Parlamento.

O Parlamento Europeu, à semelhança dos Parlamentos nacionais, é


eleito por sufrágio universal desde 1979, mas, ao contrário da maio-
ria de regimes parlamentares europeus, o “governo europeu” não
emana da maioria ou coligação representada no Parlamento. Em ou-
tras palavras, as eleições para o Parlamento Europeu não visam punir
ou gratificar o “Poder Executivo europeu”, ainda que o Parlamento
Europeu tenha o direito de dissolver a Comissão por meio de um voto
de censura com maioria de dois terços. O Parlamento Europeu tem
também o poder de influenciar a adoção de legislação comunitária
por intermédio do procedimento de cooperação e de fiscalização.
Pode também iniciar ou instalar comissões de inquérito, questionar
os Comissários sobre matérias relativas às várias políticas comuns,
adotar resoluções e solicitar audiências com a Comissão, mas conti-
nua sem possuir competências legislativas gerais próprias. Exceto a

377
Andrés Malamud e Luís de Sousa

adoção do orçamento, competência que partilha com o Conselho e


que incide apenas sobre 3% da despesa comunitária global, o Parla-
mento não dispõe de capacidade legislativa própria, nem proporcio-
na aos eleitores a faculdade de escolherem diretamente o Executivo
nas urnas. Este déficit institucional e democrático explica, de certo
modo, a baixa participação nas eleições européias e a tendência de os
partidos nacionais utilizarem este escrutínio para testar a governabi-
lidade do partido ou coligação no poder.

Em adição a este “triângulo institucional” complexo, como é deno-


minado no jargão comunitário, não deverá permanecer esquecido o
“poder” vinculativo das decisões do Tribunal de Justiça das Comuni-
dades Européias. Este “gigante adormecido” constitui um dos maio-
res motores do processo de integração europeu:
“O Tribunal de Justiça das Comunidades Européias é o órgão comunitário
mais discreto e menos conhecido pelo público, mas também o maior res-
ponsável pela inesperada transformação da Comunidade (inicialmente com
objetivos bastante limitados) em uma espécie de quase-federação. Se o ‘go-
verno dos juízes’existe em algum lugar, é em Luxemburgo! Mesmo quando
o desenvolvimento político da Comunidade abrandou, ou mesmo paralisou,
durante os finais da década de 1960 até o início da década de 1980, o Tribu-
nal nunca desistiu de aplicar assertivamente a sua jurisprudência ‘federati-
va’, a qual viria a compensar a inércia dos governos nacionais e a incapaci-
dade da Comissão de impulsionar eficazmente o processo de integração”
3
(idem:25) .

Este sumário pretende dar uma idéia geral da complexidade do apa-


relho de decisão da UE e uma breve indicação das várias tensões e ba-
talhas de poder travadas entre as três principais instituições políticas
da comunidade quando da revisão dos tratados. Não será inoportuno
recordar que este aparelho de decisão se baseia em um equilíbrio, em
constante evolução e ajuste, entre três fontes de legitimação e de inte-
resses: os interesses e demandas do(s) povo(s) europeu(s), represen-
tado(s) pelos deputados e partidos que integram o Parlamento Euro-
peu; os interesses e exigências dos Estados-membros representados

378 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005


Parlamentos Supranacionais na Europa e na
América Latina: Entre o Fortalecimento...

no Conselho; e a missão e interesses comunitários – com expressão


nos tratados, no Direito Comunitário e na jurisprudência do Tribunal
Europeu – representados na Comissão.

O Fortalecimento do
Parlamento Europeu

Na sua gênese, o Parlamento Europeu não se diferenciava substanci-


almente da assembléia do Conselho da Europa no que se refere ao seu
desenho institucional e à amplitude das suas competências. O Parla-
4
mento Europeu, denominado “a Assembléia” até 1962 , era essenci-
almente um fórum composto por delegações nomeadas pelos Parla-
mentos nacionais. Detinha uma função consultiva limitada a um nú-
mero reduzido de temáticas e de propostas legislativas antes de virem
a ser submetidas à aprovação do Conselho.

No início dos anos 1970, a então Comunidade Econômica Européia


atravessava um período turbulento causado quer por condicionalis-
mos externos, como as sucessivas crises do petróleo, quer por dispu-
tas internas, como a posição intransigente do general de Gaulle adi-
ante da futura adesão do Reino Unido, e pelo enfraquecimento do
equilíbrio interno de poder entre as três principais instituições políti-
cas da Comunidade. O poder pendia a favor do Conselho, que então
detinha quase um monopólio sobre a adoção de legislação comunitá-
ria. Por outro lado, os interesses e preocupações dos cidadãos conti-
nuavam deficitariamente representados e permaneciam à margem
das discussões e opções políticas tomadas pelos seus ministros no
Conselho.

Em resposta a este déficit democrático e institucional que caracteri-


zava o sistema político europeu, o Conselho decidiu adotar a introdu-
ção de eleições diretas dos membros do Parlamento Europeu. As pri-
meiras eleições transnacionais européias ocorreram nos dias 7 e 10
de junho de 1979. Esta decisão revolucionária se tornaria crucial para

379
Andrés Malamud** e Luís de Sousa***

a consolidação do equilíbrio interno, na medida em que daria ao Par-


lamento Europeu a capacidade institucional necessária para lutar, em
pé de igualdade, por competências legislativas mais amplas e assu-
mir um papel de relevo no triângulo institucional. Ao mesmo tempo,
iniciava-se uma nova experiência de representação supranacional
(Corbett, 1998).

Desde 1979, portanto, o Parlamento Europeu é eleito diretamente


pelo voto dos cidadãos europeus para um período de cinco anos e é
constituído de acordo com uma distribuição das cadeiras parlamen-
tares que reflete, grosso modo, a dimensão geográfica dos vários
Estados-membros, embora se possa argumentar que favorece os
mais pequenos. O sistema de representação proporcional, que já era
aplicado na maioria dos círculos nacionais desde 1979, foi finalmen-
te adotado pela totalidade de Estados-membros durante as eleições
européias de 1999. Os Quadros 2 e 3 mostram a evolução da distribu-
ição de mandatos parlamentares em relação aos Estados-membros e
formações partidárias.

O Tratado de Roma de 1957 também atribuiu ao Parlamento Europeu


o poder de dissolver a Comissão por meio de um voto de censura com
maioria de dois terços. Embora este instrumento ainda não tenha sido
aplicado, a magnitude do seu efeito de dissuasão é considerável: em
1999, a simples ameaça de ser colocado em prática levou à demissão
da Comissão Santer. Contudo, os fundadores dos tratados não atribu-
íram competências próprias nem poder de veto para que o Parlamen-
to pudesse vir a assumir, a posteriori, um lugar central e um papel
preponderante no processo de integração europeu. Como observou
Olivier Costa (2001:19),

“Importa salientar que a existência do Parlamento Europeu não se deve tan-


to à vontade expressa dos fundadores de criar uma estrutura democrática su-
pranacional, mas sim à busca de maior eficácia e legitimidade e a um fenô-
meno de mimetismo institucional”.

380 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005


Parlamentos Supranacionais na Europa e na
América Latina: Entre o Fortalecimento...

Quadro 2
Parlamento Europeu: Cadeiras por Estado-membro e País Candidato*
1999-2004 2004-2007 2007-2009**
Bélgica 25 24 24
Bulgária – 18
Chipre – 6 6
República Checa – 24 24
Dinamarca 16 14 14
Alemanha 99 99 99
Grécia 25 24 24
Espanha 64 54 54
Estônia – 6 6
França 87 78 78
Hungria – 24 24
Irlanda 15 13 13
Itália 87 78 78
Letônia – 9 9
Lituânia – 13 13
Luxemburgo 6 6 6
Malta – 5 5
Países Baixos 31 27 27
Áustria 21 18 18
Polônia – 54 54
Portugal 25 24 24
Romênia – 36
Eslováquia – 14 14
Eslovênia – 7 7
Finlândia 16 14 14
Suécia 22 19 19
Reino Unido 87 78 78
Total 626 732 786

Fonte: <http://www.europa.eu.int/institutions/parliament/indexãen.htm> (Acessado em 26 de


agosto de 2004).
* Os países estão aqui listados em ordem alfabética de acordo com os nomes de cada país em
sua própria língua.
** Para 2007, prevê-se a adesão de dois países candidatos, Romênia e Bulgária, modificando o
número total de deputados.

381
Quadro 3
Composição Política do Parlamento Europeu. Número de Mandatos por Grupo Político

Grupo Político Abreviatu- Primeira le- Segunda le- Terceira le- Quarta legis- Quinta legis- Sexta legisla-
ras (em gislatura gislatura gislatura latura latura tura

382
inglês) (1979-1984) (1984-1989) (1989-1994) (1994-1999) (1999-2004) (2004-2009)
Partido Popular Europeu PPE-DE 107 (EPP) 110 (EPP) 121 (PPE) 157 232 267
(Democrata-Cristão) e 64 (ED) 50 (ED) 34 (DE)
Democratas Europeus
União pela Europa UPE – – (34)* –
Partido dos Socialistas Europeus PSE 113 130 180 198 175 201
Partido Europeu dos Liberais, ELDR 40 31 49 43 52 89
Democratas e Reformistas (ALDE)
(desde 2004, Aliança dos Liberais
Andrés Malamud e Luís de Sousa

e Democratas pela Europa)


Esquerda Unitária Européia / GUE/NLG – 14 28 49 41
Esquerda Nórdica Verde (GUE)
Esquerda Unitária – 28 – –
Comunistas e Aliados 44 41 – –
Verdes / Aliança Livre Européia V/EFA – 30 23 45 42
Grupo Arco-íris – 20 13 – –
Aliança dos Democratas RDE 22 29 20 26 –
Europeus
Aliança Radical Européia ARE – – 19 –
Europa das Nações (desde 1999, EdN – – 19 23 27
União para Europa das Nações) (UEN)
Direita Européia – 16 17 – –

CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005


(continua)
(continuação)
Grupo Político Abreviatu- Primeira le- Segunda le- Terceira le- Quarta legis- Quinta legis- Sexta legisla-
ras (em gislatura gislatura gislatura latura latura tura
inglês) (1979-1984) (1984-1989) (1989-1994) (1994-1999) (1999-2004) (2004-2009)
Força Europa FE – – 27 –
Europa das Democracias e das EDD – – 18 –
Diferenças
Independência e Democracia IND/ DEM – – – 36
(criado em 2004)
Grupo de Coordenação Técnica 11 – – –
Não-inscritos NI 9 7 12 27 32 29
Total 410 434 518 567 626 732**

Fontes: <http://www.elections2004.eu.int/ep-election/sites/pt/yourparliament/outgoingparl/members/global.html> (acessado em 18 de novembro de 2005),


<http://www.europarl.eu.int/election/> (acessado em 18 de novembro de 2005) e Bardi (1996).
* A União para a Europa (UPE) resultou da fusão parcial do FE e do RDE e só existiu durante um período da Quarta Legislatura (1994-1999). Os 34 mandatos
resultam de alterações na composição parlamentar entre grupos políticos e do seu redimensionamento. Portanto, não foram adicionados ao total dessa
legislatura, porque já estavam contabilizados nos grupos políticos iniciais.
** No início da sexta legislatura, o PE é composto por 732 mandatos, aos quais serão acrescidos 54 referentes à Bulgária e à Romênia (após a sua adesão).
Até o final desta legislatura (2009), o PE contará com 786 mandatos, que serão posteriormente reajustados por país e reduzidos para 736.
América Latina: Entre o Fortalecimento...
Parlamentos Supranacionais na Europa e na

383
Andrés Malamud e Luís de Sousa

A criação e estruturação do Parlamento Europeu enquadra-se no pa-


drão de desenho institucional comum às demais organizações oci-
dentais de caráter regional e/ou internacional que tiveram origem no
pós-1945. A maioria destas organizações dispunha de um aparelho
de decisão semelhante: um conselho responsável pela tomada de de-
cisões e uma assembléia consultiva de natureza representativa mais
ou menos permanente, como, por exemplo, a Organização das Na-
ções Unidas (ONU), a União da Europa Ocidental, o Conselho da
Europa e a Organização do Tratado do Atlântico Norte
(OTAN/NATO). A dimensão simbólica associada a estas assembléi-
as foi fundamental na conjuntura da reconstrução pós-guerra: não só
serviram como interface entre o interesse coletivo das organizações
regionais e os interesses particulares dos membros nacionais, como
também facilitaram a socialização das elites políticas de países que
se tinham defrontado no palco de guerra, reforçando, conseqüente-
mente, os níveis de confiança mútua e de cooperação internacional.

Havia, contudo, algo de maior envergadura e de inovador no projeto


europeu visualizado por seus fundadores, Robert Schuman e Jean
Monnet: a partilha de soberania. A idéia de construir um projeto polí-
tico comum além do Estado-nação questionava o conceito tradicio-
nal de soberania territorial e levantava problemas de legitimidade, de
poder e de accountability. O caráter supranacional deste novo projeto
político seria desde o início confrontado com a adoção de uma as-
sembléia plenária onde pudessem ser representadas e expressas posi-
ções e idéias diferentes entre as partes contratantes e onde as decisões
aplicáveis à totalidade dos seus membros, que seriam tomadas em
um nível muito mais restrito, pudessem ser objeto de escrutínio cole-
tivo e sujeitas à deliberação da maioria. Era ainda prematuro falar de
um “Parlamento do(s) povo(s) europeu(s)” como parte integrante de
uma versão de democracia decalcada das experiências nacionais e
transposta para o nível regional, uma idéia demasiado inovadora que
não suscitaria o apoio ou aval de alguns países europeus, tais como o

384 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005


Parlamentos Supranacionais na Europa e na
América Latina: Entre o Fortalecimento...

Reino Unido. Em vez disso, fundadores procuraram apenas uma res-


posta pragmática para um problema específico: a criação de uma ins-
tituição parlamentar que controlasse e assegurasse a legitimidade
das atividades e decisões de caráter supranacional atribuídas à Alta
Autoridade da Comunidade Européia do Carvão e do Aço (CECA).

É, por isso, legítimo questionarmo-nos sobre os fatores que contribu-


íram para a metamorfose do Parlamento Europeu, que de uma as-
sembléia parlamentar internacional comum passou a ser um Parla-
mento supranacional único, com poderes de decisão concretos e um
papel central no processo de integração europeu. Não existe uma ex-
plicação simples e direta. Talvez o fortalecimento do Parlamento Eu-
ropeu se destaque como um processo de institucionalização singular,
porque os membros das demais organizações internacionais nunca
ambicionaram desenvolver uma estrutura política supranacional. De
qualquer forma, é lícito comparar a sua transformação e o seu papel
no processo de integração europeu com outras assembléias parla-
mentares regionais, cujos atores exprimiram uma intenção seme-
lhante, isto é, a de criar um tipo de Parlamento supranacional. Sem
pretender formular um modelo explicativo deste processo institucio-
nal, talvez possamos enumerar, com a ponderação devida, alguns
desses fatores:
l Enquanto a institucionalização da CE tem como gênese uma
organização edificada em torno de um problema transnacional
específico para o qual foi ambicionado um modelo de gestão
supranacional – a Comunidade Européia do Carvão e do Aço
–, as demais organizações internacionais européias – designa-
damente o Conselho da Europa – tiveram desde o início um en-
foque difuso sobre uma série de objetivos de carácter econômi-
co, social, militar e institucional, sem vocação ou força sufici-
ente para desencadear a criação de um aparelho de decisão su-
pranacional. A regulamentação supranacional da produção do
carvão e do aço – matérias-primas fundamentais quer para a in-

385
Andrés Malamud e Luís de Sousa

dustrialização, quer para a produção de materiais bélicos – re-


presentava apenas um pequeno passo para nações que se ti-
nham defrontado recentemente no campo de batalha pelo aces-
so e controle dos mesmos, mas provaria ser um salto gigantes-
co para o processo de integração europeu;
l Os atores, individuais e coletivos, por detrás deste empreendi-
mento foram também co-responsáveis pela singularidade do
percurso institucional da CE. Monnet, Schuman e Spaak exer-
ceram cargos de prestígio no Conselho da Europa, mas aban-
donaram posteriormente este projeto institucional como rea-
ção ao “euroceticismo” e relutância do Reino Unido em avan-
çar para novas formas de governo supranacionais. As posições
inovadoras dos três seriam apoiadas por um número restrito de
Estados – os Seis (Bélgica, França, Alemanha, Itália, Luxem-
burgo e Países Baixos) – empenhados na expansão do “método
comunitário” a novas áreas de política econômica e social.
Cada um destes países tinha razões fortes para acreditar no pro-
cesso de integração econômica europeu: os países que consti-
tuem o Benelux tinham já implementado, com sucesso, uma
união alfandegária; a gestão e funcionamento eficaz da Alta
Autoridade da CECA conseguira promover um clima de confi-
ança mútua e cooperação franco-alemã; e a Itália era berço de
importantes líderes e movimentos federalistas;
l A eleição direta do Parlamento Europeu em 1979, e a subse-
qüente emergência de formações partidárias européias (os “eu-
ropartidos”), seria o ponto de viragem no papel que esta insti-
tuição viria a desempenhar, quer no complexo triângulo insti-
tucional da CE, quer no processo de integração europeu. O for-
talecimento do Parlamento Europeu transformou-o na única
assembléia parlamentar supranacional do mundo a gozar, si-
multaneamente, de legitimidade democrática, capacidade de
decisão legislativa e poder de censura do governo. Trata-se, por
isso, de um fórum político singular, em que os parlamentares

386 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005


Parlamentos Supranacionais na Europa e na
América Latina: Entre o Fortalecimento...

europeus têm a possibilidade única de treinar as suas compe-


tências políticas em um ambiente genuinamente influente e su-
pranacional. Contudo, pesa o fato de os parlamentares euro-
peus serem freqüentemente recrutados entre políticos em fim
de carreira ou dissidentes partidários. O mandato europeu con-
tinua a ser interpretado, pelas formações políticas nacionais,
como um pára-quedas dourado para a reforma ou um esquema
de compensação para oponentes internos incômodos às dire-
ções partidárias nacionais (Bardi, 1996; Scarrow, 1997).

A evolução do Parlamento Europeu nos últimos cinqüenta anos foi


sintetizada de um modo elegante por Hix et alii (2003:191-192):

“Desde o seu modesto começo, o Parlamento Europeu […] permane-


ceu marginal ao desenvolvimento da integração européia e às políti-
cas da União Européia. Inicialmente, esta instituição era apenas uma
assembléia consultiva composta por delegados enviados pelos Parla-
mentos nacionais. Cinqüenta anos depois, o Parlamento agora eleito
por sufrágio direto possui competências legislativas e de investidura
(ou remoção) do Executivo importantes, assim como todas as carac-
terísticas e componentes de um Parlamento democrático resultantes
do exercício desses poderes: organizações partidárias poderosas; co-
missões de trabalho bem organizadas; uma burocracia de apoio pró-
pria; e o constante lobbying de grupos de interesses privados”.

Se, do ponto de vista interno, a institucionalização e fortalecimento


do Parlamento Europeu é um processo contínuo e não necessaria-
mente linear e progressivo, do ponto de vista externo, esta entidade
política é o arquétipo ao qual será comparado e medido o desempe-
nho de todo e qualquer projeto de Parlamento supranacional, em
anos vindouros. O Parlamento Europeu tornou-se um modelo para
aqueles que, em outras regiões, aspiram a institucionalizar os proces-
sos de integração em curso. Até a presente data, a América Latina é a
região onde a sua influência se fez sentir com maior intensidade.

387
Andrés Malamud e Luís de Sousa

O Parlamento
Latino-Americano
(Parlatino)

O Parlamento Latino-Americano (Parlatino) é a assembléia regional


unicameral composta pelos membros de 22 Parlamentos nacionais
5
da América Latina e Caraíbas . Fundado em Lima, Peru, em dezem-
bro de 1964, foi posteriormente institucionalizado por um tratado in-
ternacional celebrado em Lima, em novembro de 1987. Desde 1992,
a sua sede se encontra permanentemente localizada na cidade de São
Paulo, Brasil. De acordo com os seus próprios Estatutos, os objetivos
fundamentais desta entidade representativa regional são a defesa da
democracia, a promoção da integração regional e o fortalecimento da
cooperação entre parlamentares e Parlamentos em toda a América
Latina. Possui personalidade jurídica e um orçamento que lhe é atri-
buído por todas as partes que participam do tratado. As línguas ofici-
ais de trabalho são o espanhol e o português.

O Parlatino é integrado por delegações nacionais enviadas pelos Par-


lamentos-membros, à luz da experiência européia anterior a 1979.
Cada delegação nacional pode nomear no máximo doze representan-
tes, em uma proporção que reflete o peso dos grupos parlamentares
nacionais. Se a delegação for inferior a doze membros, cada um dos
representantes poderá acumular no máximo quatro votos (proxy vo-
ting), sem exceder o limite total de doze votos por delegação. Esta
disposição atribui a todos os países o mesmo peso dentro do sistema
de deliberação, independentemente da sua dimensão real. O quorum
é obtido quando mais da metade das delegações nacionais estão re-
presentadas, desde que os seus membros respectivos representem
pelo menos um terço do total de votos. O Parlatino reúne-se em ses-
são plenária uma vez por ano, na sua sede em São Paulo. Não tem po-
der de decisão, limitando-se apenas a aprovar acordos e a emitir reco-
mendações e resoluções sem qualquer efeito vinculativo para tercei-
ros.

388 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005


Parlamentos Supranacionais na Europa e na
América Latina: Entre o Fortalecimento...

Estranhamente, no Parlatino não está representado nenhum dos terri-


tórios de expressão francesa da região: nem o Haiti, único Estado in-
dependente de expressão francesa, nem os departamentos ultramari-
nos franceses (Guiana Francesa, Guadalupe e Martinica). Contudo, e
apesar do termo “latino” que figura na sua designação, o Parlatino in-
clui três membros de expressão holandesa: o Estado do Suriname e
duas colônias ainda dependentes da Holanda – Aruba e Antilhas Ho-
landesas.

No que diz respeito à sua representação territorial aberta, maleável e


alargada, o Parlatino está mais próximo do modelo da assembléia
parlamentar do Conselho da Europa que do Parlamento Europeu. A
sua natureza intergovernamental e as escassas competências que lhe
foram atribuídas, similares também à mencionada asssembléia euro-
péia, são comuns às demais assembléias regionais na América Latina
– como será mostrado adiante. Contudo, importa notar que, ao con-
trário das três assembléias regionais que iremos analisar, o Parlatino
não constitui o corpo representativo de uma organização regional
qualquer. Desde a sua fundação, possui um estatuto próprio e inde-
pendente.

O Parlatino ganhou algum reconhecimento internacional apesar das


suas limitadas influência e competências. Em 1972, assinou um
acordo com o Parlamento Europeu – que na época também era eleito
indiretamente pelos Parlamentos nacionais – no sentido de estabele-
cer contatos permanentes e instituir uma Conferência Interparlamen-
tar com periodicidade regular. A primeira ocorreu em Bogotá, em
1974, e a partir do ano seguinte seria repetida a cada dois anos com
sede rotativa: no primeiro ano, teria lugar em um país lati-
no-americano, no seguinte, em um Estado-membro da União Euro-
péia. Até a presente data, foram organizados dezesseis encontros,
tornando-se assim o fórum bilateral com maior durabilidade. Os de-
bates e resoluções produzidos são testemunho dos assuntos que do-
minaram a agenda transatlântica, das suas deficiências e da sua evo-

389
Andrés Malamud e Luís de Sousa

lução. A relevância deste fórum diminuiu à medida que a democracia


se consolidou e se estendeu à quase totalidade dos países da América
Latina e os Parlamentos nacionais viram a sua existência e continui-
dade salvaguardadas. No momento em que a longa batalha da Confe-
rência Interparlamentar em prol das instituições representativas e da
defesa dos Direitos Humanos obteve sucesso, a incapacidade do fó-
rum em encontrar uma missão de igual capacidade mobilizadora
conduziu a uma redução gradual da sua importância. Embora os no-
vos enfoques na qualidade das instituições e na reforma da adminis-
tração pública estejam longe de suscitar o mesmo interesse das temá-
ticas anteriores, a causa da integração regional encontrou novos de-
fensores nos blocos sub-regionais que (re)emergiram no início dos
anos 1990.

Apesar de existir um consenso generalizado em relação às matérias


sobre a agenda comum, algumas questões, em particular as que di-
zem respeito ao comércio internacional ou à dívida externa, revelam
uma assimetria persistente entre as duas regiões. A cooperação para
o desenvolvimento constitui uma área sensível, na medida em que
evidencia os desequilíbrios estruturais entre as duas regiões, mas
nunca suscitou controvérsia entre as partes, porque a sua gestão de-
pende, tão-somente, da vontade unilateral do “parceiro rico”: a
União Européia.

Em resumo, o Parlatino é mais uma instituição simbólica do que efe-


tiva, capaz de acolher a deliberação de assuntos regionais e in-
ter-regionais, mas sem qualquer perspectiva real de evolução para
um órgão de decisão; de fato, carece de significado político e de enra-
izamento social. O seu mérito histórico foi o de constituir um reser-
vatório de aspirações democráticas e procedimentos parlamentares
durante a idade negra das ditaduras latino-americanas. As suas prin-
cipais deficiências resultam, provavelmente, do fato de a sua existên-
cia, missão e funcionamento não estarem enquadradas em uma orga-
nização regional.

390 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005


Parlamentos Supranacionais na Europa e na
América Latina: Entre o Fortalecimento...

O Parlamento
Centro-Americano
(Parlacen)

O Parlamento Centro-Americano (Parlacen) constitui o órgão deli-


berativo do Sistema de Integração Centro-Americano (SICA). O
SICA foi estabelecido em 1991 como uma organização complexa
que reúne os países da América Central por um processo seletivo de
geometria variável e se encontra edificado sobre o Mercado Comum
Centro-Americano, fundado em 1960. Enquanto o SICA acolhe sete
países da América Central – Belize, Costa Rica, El Salvador, Guate-
mala, Honduras, Nicarágua e Panamá –, o Parlacen exclui dois des-
tes, Costa Rica e Belize, mas inclui um Estado das Caraíbas de ex-
pressão espanhola: a República Dominicana. À semelhança da UE, o
SICA também possui uma entidade judicial de caráter supranacio-
nal, a Corte de Justiça Centro-Americana, e uma alta autoridade in-
tergovernamental, a Cimeira Presidencial Centro-Americana. Intro-
duz também a figura do secretário-geral, responsável pela coordena-
ção de todo o sistema institucional. Embora o Parlacen tenda a ser
visto como órgão parlamentar do SICA, na realidade não desenvolve
nenhuma função legislativa.

A criação do Parlacen foi idealizada, pela primeira vez, na Declara-


ção de Esquipulas I, assinada pelos vários presidentes dos países da
América Central, com o intuito de pôr termo às rivalidades tradicio-
nais e de promover a democracia e a paz na região. A cimeira presi-
6
dencial, apoiada pelo Grupo Contadora, o Grupo de Apoio e a então
Comunidade Européia, teve lugar em maio de 1986. Em uma Decla-
ração posterior, que seria conhecida por Esquipulas II, produzida em
1987, os presidentes contratantes acordaram que a criação de um
Parlamento centro-americano deveria ser um bastião da liberdade,
independência e reconciliação em uma região devastada por anos a
fio de chacina e instabilidade política. Entre o final de 1987 e início
de 1989, Guatemala, El Salvador, Costa Rica, Nicarágua e Honduras

391
Andrés Malamud e Luís de Sousa

assinaram e ratificaram, sucessivamente, o Tratado Constitutivo do


Parlacen. Três protocolos adicionais foram assinados posteriormen-
te, de modo a permitir algum tempo útil para o atraso gerado na elei-
ção dos representantes nacionais e facilitar a adesão do Panamá ao
tratado, embora a sua incorporação tivesse lugar apenas em 1999. O
Parlamento foi, finalmente, estabelecido em outubro de 1991, quan-
do ocorreu a sua primeira sessão plenária na Cidade de Guatemala,
que passaria a ser a sua sede permanente. A Costa Rica viria a retirar
a sua participação, enquanto a República Dominicana passaria a fa-
zer parte do processo em 1999.

Desde 28 de outubro de 1991, o número de deputados do Parlacen


passou de um total de 65, representando quatro países e treze partidos
políticos, para os atuais 132 deputados, representando seis países e
42 partidos políticos. Os deputados são eleitos diretamente por um
período de cinco anos pelos cidadãos eleitores de cada Esta-
do-membro, podendo cada país preencher uma quota máxima de
vinte representantes. Cada Estado-membro tem o direito de enviar
dois deputados adicionais: o presidente e vice-presidente em fim de
mandato. O Parlamento está também aberto à participação de repre-
sentantes, com o status de observadores, dos demais Parlamentos re-
gionais, tais como o Parlatino, o Parlamento Andino e o Parlamento
Europeu, ou de Estados não signatários da região, como Porto Rico e
México. Os primeiros assistiram aos trabalhos do Parlacen desde a
sua criação, ao passo que os últimos se associaram pouco tempo mais
tarde. Os representantes nacionais dividem-se em três grupos parla-
mentares: o maior grupo representa o centro do espectro político, os
outros dois cobrem as alas ideológicas, esquerda e direita respectiva-
mente.

Tal como prevê o primeiro artigo do tratado fundador, as competên-


cias legislativas do Parlacen resumem-se à capacidade de proposta,
análise e recomendação. Contudo, o tratado também confere ao Par-
lamento o poder de eleger, nomear e dissolver o mais alto executivo

392 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005


Parlamentos Supranacionais na Europa e na
América Latina: Entre o Fortalecimento...

de todas as instituições pertencentes ao SICA. Por mais estranho que


pareça, todavia, este órgão parlamentar não foi provido de capacida-
de legislativa, mas foi capacitado para nomear e fiscalizar uma série
de técnicos e funcionários. Também compete a ele requerer informa-
ção sobre qualquer atividade da organização e emitir recomendações
sobre os relatórios de atividade dos demais órgãos do SICA que lhe
são submetidos para apreciação, sem, contudo, interferir no seu fun-
cionamento. No que diz respeito aos procedimentos de votação, o
Parlacen decide por maioria absoluta, exceto no que se refere à revi-
são dos seus estatutos internos: neste caso, é necessária uma maioria
qualificada. Quanto ao orçamento do Parlamento, todos os Esta-
dos-membros contribuem equitativamente.

Depois de mais de uma década de existência, o histórico do Parlacen


é misto: embora demonstre resultados positivos no que diz respeito à
ampliação da sua composição, não apresenta qualquer progresso sig-
nificativo no que se refere ao aprofundamento das suas competênci-
as. Se, por um lado, contribuiu para a pacificação e crescente interde-
pendência entre as sociedades que representa, por outro lado, não
evoluiu suficientemente para se tornar um ator crucial no, já por si
frágil, processo de integração da região centro-americana.

O Parlamento Andino
(Parlandino)

O Parlamento Andino (Parlandino) é o órgão deliberativo do Sistema


7
Andino de Integração (AIS). O Pacto Andino , antecessor do AIS,
foi fundado em 1969 com o objetivo de colmatar as lacunas e defi-
ciências da Associação Latino-Americana de Livre Comércio
(ALALC), um projeto regional mais vasto cujo insucesso se deve,
sobretudo, à reprodução interna da divisão entre países mais e menos
desenvolvidos – precisamente, o que em tempos, fora criticado em
relação ao funcionamento do sistema político internacional. Os fun-
dadores do Pacto Andino inspiraram-se no projeto europeu, que co-

393
Andrés Malamud e Luís de Sousa

meçava a consolidar-se nesse período, e decidiram formalizar o pro-


cesso de integração por meio da criação de um conjunto de institui-
ções que combinassem, simultaneamente, um sistema de votação
majoritário e autoridades com poder vinculativo supranacional. No
final dos anos 1980, após vários anos de turbulência e de paralisia
institucional causados por razões domésticas e pelo fracasso na cria-
ção da tão desejada interdependência econômica na região, os presi-
dentes nacionais decidiram relançar o processo de integração com
aspirações mais modestas e um desenho institucional sóbrio. Contu-
do, a estrutura institucional da região continua, de um modo geral,
semelhante à da UE: o complexo institucional compreende uma Co-
missão, um Parlamento, um Tribunal de Justiça, um Conselho de Mi-
nistros e um Conselho Presidencial, além de um conjunto de institui-
ções de caráter técnico, tais como agências financeiras, fóruns de
consulta junto da sociedade civil e, até mesmo, uma universidade.
Com o mérito que lhe é devido, na prática, as competências reais e
desempenho destas instituições regionais ficam aquém das do mode-
lo europeu.

Das várias instituições mencionadas, o Parlandino é o órgão de repre-


sentação dos povos da Comunidade Andina e possui caráter suprana-
cional. O seu tratado fundador foi assinado em 1979 e entrou em vigor
em 1984. A sua sede foi estabelecida em Bogotá, Colômbia, e em 1997
foi introduzida a eleição direta dos seus representantes. O processo
eleitoral devia ter início durante os cinco anos seguintes; todavia, até a
presente data, só Venezuela e Equador colocaram o pressuposto em
prática. Nos restantes países, a eleição direta ou está agendada para os
próximos anos, como é o caso da Colômbia e do Peru, ou está sujeita a
uma revisão constitucional prévia, no caso da Bolívia.

O Parlandino é composto por 25 deputados, cinco por cada Esta-


do-membro. Há cinco comissões permanentes, integradas por cinco
elementos, um de cada nacionalidade. O Parlandino pode aprovar
quatro tipos de atos – decisões, acordos, declarações e recomenda-

394 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005


Parlamentos Supranacionais na Europa e na
América Latina: Entre o Fortalecimento...

ções – mediante maioria absoluta, mas carece de qualquer poder de


decisão. As suas competências estão limitadas ao enquadramento e
fomento do processo de integração, por meio da promoção de legis-
lação entre os Estados-membros, da cooperação e coordenação de
iniciativas com os Parlamentos nacionais, países terceiros ou outras
organizações de integração regional que formulem recomendações
relativamente ao orçamento da Comunidade Andina.

Em 2004, o Parlandino celebrou o seu 25º aniversário, metade da ida-


de do modelo em que sempre se inspirou, o Parlamento Europeu. As
diferenças entre as duas assembléias regionais são evidentes: a co-
meçar pela prolongada e atrasada eleição direta dos seus represen-
tantes, seguida pela composição que não respeita as proporções de-
mográficas dos Estados-membros, e terminando na ausência de po-
deres de decisão. Embora o Parlandino já tenha trilhado bastante ca-
minho, tendo em conta a sua jovem existência, não deixa de ser uma
realidade que evoluiu pouco ao longo dos anos, tal como o bloco re-
gional em que se insere (Bonilla, 2001; Malamud, 2004). Os interes-
ses nacionais contraditórios, a instabilidade institucional, a turbulên-
cia econômica e os conflitos políticos entre os Estados-membros
transformaram a Comunidade Andina em um exemplo a não ser se-
guido. Precisamente, os primeiros passos do Mercosul seriam basea-
dos na tentativa de evitar a repetição dos fracassos andinos (Caputo,
1999; Pereira, 2000).

A Comissão Parlamentar
Conjunta do Mercosul
(CPCM)

O Mercosul, designação abreviada de Mercado Comum do Sul, é o


mais recente bloco regional da América Latina e integra dois velhos
rivais, Argentina e Brasil, e dois “Estados-tampão”, Paraguai e Uru-
guai. Fundado em 1991 pelo Tratado de Assunção e consolidado em
1994 no Protocolo de Ouro Preto, o Mercosul visava criar, primaria-

395
Andrés Malamud e Luís de Sousa

mente, um mercado comum no Cone Sul por meio da eliminação de


obstáculos intra-regionais à circulação de bens, capital e serviços –
embora algumas medidas também tenham sido tomadas em relação à
livre circulação de pessoas. Os fundadores deste novo projeto de in-
tegração regional tinham presente duas realidades históricas: a expe-
riência de sucesso da União Européia e a experiência negativa da in-
tegração na América Latina. Os riscos de insucesso seriam reduzi-
dos, por um lado, evitando uma institucionalização prematura e, por
outro, depositando o controle do processo nas mãos dos presidentes
nacionais (Malamud, 2003). Desde então, o Mercosul desenvol-
veu-se como uma organização estritamente intergovernamental: não
obstante a sua personalidade jurídica lhe permita tomar parte em ne-
gociações internacionais representando os seus membros, é sempre
necessária a unanimidade para adotar uma decisão coletiva. A sobe-
rania nacional não foi nem delegada nem partilhada e todos os órgãos
de decisão do Mercosul são compostos exclusivamente por altos re-
presentantes governamentais dos Estados contratantes (Peña, 1998).
Existem, porém, algumas instituições que, embora desprovidas de
poderes de decisão, convém serem analisadas, tais como a Comissão
Parlamentar Conjunta do Mercosul (CPCM).

A CPCM é o órgão do Mercosul que reúne as delegações dos quatro


Congressos Nacionais. Entre os cinco Parlamentos regionais anali-
sados neste artigo, a CPCM é a única que ainda não adquiriu o status
de Parlamento, pelo menos na sua designação oficial. O Tratado de
Assunção, celebrado em março de 1991, de fato indicava este órgão
como o mecanismo que proporcionaria a criação de um mercado co-
mum. Contudo, ainda não era claro o modo como a CPCM contribui-
ria para a realização do objetivo último de integração, pois o tratado
não lhe endossara qualquer tipo de atribuições específicas; em alter-
nativa, o mesmo tratado mencionara a obrigação dos Executivos na-
cionais manterem os respectivos Congressos Nacionais informados
dos progressos conseguidos no projeto de integração em curso.

396 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005


Parlamentos Supranacionais na Europa e na
América Latina: Entre o Fortalecimento...

Somente por meio do Protocolo de Ouro Preto, celebrado em dezem-


bro de 1994, é que foram definidos a estrutura institucional do Mer-
cosul e o formato atual da CPCM. Esta passou a constituir um órgão
representativo dos Parlamentos nacionais, responsável pela transpo-
sição acelerada dos procedimentos do Mercosul para a ordem jurídi-
ca dos Estados-membros. Adicionalmente, foi incumbida de desem-
penhar um papel subsidiário nas iniciativas de harmonização de polí-
ticas e um papel consultivo em relação ao Conselho do Mercado Co-
mum, o órgão regional supremo composto pelos ministros das Rela-
ções Exteriores e da Economia dos países signatários. Compete à
CPCM exercer as suas funções e competências mediante a elabora-
ção de recomendações, disposições e declarações (Caetano e Perina,
2000; 2003). Contudo, nenhum destes atos possui qualquer efeito
vinculativo. Neste contexto de reduzidos poderes de decisão, rece-
beu ainda a missão, pouco clara, de estudar e criar as condições ne-
cessárias para a eventual criação de um Parlamento regional para o
projeto Mercosul.

O Protocolo de Ouro Preto estabeleceu que a CPCM seria constituída


por um total de 64 membros. A cada país competia eleger, no máxi-
mo, dezesseis representantes entre prestigiados advogados, incluin-
do membros das duas Câmaras nacionais – notando-se que os quatro
Estados-membros do Mercosul possuem um sistema parlamentar bi-
cameral. Os representantes nacionais da CPCM são agrupados em
seções nacionais compostas por deputados e senadores. O Protocolo
recomendou a eleição por um termo de dois anos, de modo a possibi-
litar alguma continuidade de trabalho, mas deixou ao critério dos
Parlamentos dos Estados-membros a decisão final sobre a duração
do mandato e a definição da data e mecanismo de eleição.

O Protocolo também estabeleceu que a CPCM se reunisse, no míni-


mo, duas vezes por ano, com a ressalva de que a validade do encontro
dependeria da participação dos representantes de todos os Esta-
dos-membros. Mais ainda, todas as decisões da CPCM teriam que

397
Andrés Malamud e Luís de Sousa

ser tomadas por consenso entre as partes, a regra de ouro aplicável a


todos os órgãos constitutivos do Mercosul. O caráter extremamente
intergovernamental destas disposições neutraliza uma das principais
funções exercidas no seio de qualquer instituição parlamentar: a vo-
tação. Nem mesmo a presidência da CPCM é eleita pelo plenário,
não obstante um sistema de rotação, por um período de seis meses,
tenha sido adotado, à semelhança do estabelecido para a presidência
do Mercosul como um todo. Os vários órgãos de decisão que com-
põem o Mercosul são coadjuvados por um Secretariado Administra-
tivo Permanente. O secretário, que não pode exercer funções de de-
putado a nível nacional, é também nomeado, rotativamente, pelos
quatro Estados-membros, mas, ao contrário das presidências, a sua
comissão de serviço dura dois anos em vez de seis meses.

O Estatuto Interno da CPCM contempla a possibilidade de criar co-


missões de trabalho, desde que não tenham um caráter estatutário
permanente e funcionem apenas como instrumentos ad hoc. Esta
provisão não permite a especialização dos parlamentares, nem lhes
proporciona uma carreira estável ou uma formação progressiva das
suas aptidões. Como regra, a CPCM reúne-se no Estado-membro
que detém, temporariamente, a presidência. O seu orçamento é atri-
buído em iguais proporções pelos Estados-membros do Mercosul.
Desde, pelo menos, meados da década de 1990, um número crescen-
te de políticos, acadêmicos e líderes de opinião têm se mobilizado em
favor da criação e fortalecimento de um Parlamento do Mercosul
(Caetano e Antón, 2003; CEFIR, 1998; SM, 2004; Vazquez, 2001).
Até a data, permanecem apenas boas intenções.

Conclusões Comparativas

De todas as instituições internacionais designadas como Parlamen-


tos, apenas o Parlamento Europeu desenvolveu um caráter verdadei-
ramente supranacional e poderes efetivos próprios. Os restantes es-
tão ainda aquém desta realidade (ver também Vieira Posada, 2000).

398 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005


Parlamentos Supranacionais na Europa e na
América Latina: Entre o Fortalecimento...

A história, estrutura, competências e funções destas instituições são


bastante variáveis, tal como o grau de legitimidade de que gozam. A
análise dos Parlamentos regionais apresentada neste artigo teve
como objetivo, por um lado, a homogeneização dos conceitos utili-
zados nesta área de estudos e, por outro, a apresentação de uma ima-
gem comparativa de cinco instituições que reclamam a mesma de-
signação.

Depois de examinados os cinco Parlamentos regionais das duas re-


giões consideradas, as diferenças encontradas entre o Parlamento
Europeu e os quatro proto-Parlamentos da América Latina são signi-
ficativas, qualquer que seja a dimensão considerada. O Quadro 4 ofe-
rece uma comparação das principais diferenças (e semelhanças) en-
tre os cinco casos de estudo.

No que diz respeito à dimensão representativa, apenas o Parlacen de-


signa os seus membros por eleições diretas, à semelhança do Parla-
mento Europeu. Todavia, não são levadas em conta as diferenças de-
mográficas entre os vários círculos eleitorais, isto é, os Esta-
dos-membros. Em relação aos processos de decisão, a nenhum Parla-
mento regional da América Latina foram atribuídos quaisquer pode-
res legislativos. O Parlacen, novamente, destaca-se como o único que
possui competências de fiscalização sobre os restantes órgãos da or-
ganização. Contudo, tem tido resultados menos brilhantes do que o
Parlatino e o Parlandino no que se refere à institucionalização de co-
missões estatutárias permanentes e especializadas. Em contraste, o
Parlamento Europeu figura, cada vez mais, com capacidades nas
quatro dimensões consideradas. Vários fatores confluem para a ex-
plicação desta diferença. A seguir, mencionamos cinco que conside-
ramos fundamentais e sugerimos algumas pistas para uma investiga-
ção mais aprofundada sobre o assunto.

O primeiro fator que distingue a evolução dos Parlamentos regionais


nas duas regiões em análise é o tempo: existe uma diferença de duas a

399
Quadro 4

400
Diferenças e Semelhanças entre os Cinco Parlamentos Regionais*
Parlamento Parlamento Parlamento Parlamento CPC do Mercosul
Europeu Latino-Americano Centro-Americano Andino
Representação Eleição direta Sim Não Sim Em transição Não
Representação Proporcional Igualitária para Igualitária para Igualitária para Igualitária para
nacional todos os países todos os países todos os países todos os países
Grupos políticos Permanentes, Não Sim, mas vagos Não Não
fortes
Andrés Malamud e Luís de Sousa

Accountability dos Aos eleitores dos Aos Parlamentos Aos eleitores dos Em transição: dos Aos Parlamentos
deputados círculos nacionais nacionais círculos nacionais Parlamentos para nacionais
os círculos
nacionais
Legislação Aprovação do Sim Não Não Não Não
orçamento
regional
Competências Co-decisão, Não Não Não Não
legislativas consulta
Direito de Sim - Não Não Não
iniciativa
Mecanismo de Diferentes Pluralidade Diferentes maiorias Maioria absoluta Consenso
decisão maiorias

(continua)

CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005


(continuação)

Parlamento Parlamento Parlamento Parlamento CPC do Mercosul


Europeu Latino-Americano Centro-Americano Andino
Controle e Escolha do Sim Não Parcial Não Não
fiscalização governo
Censura do Sim Não Parcial Não Não
governo
Fiscalização Sim Não Parcial Não Não
da burocracia
Formação de Comissões Permanentes e Permanentes Ad hoc Permanentes Ad hoc
elites especializadas

Audições Sim Não Não Não Não


parlamentares
Salário e Sim Já possuem (por Sim Sim Já possuem (por
imunidade serem represen- serem represen-
tantes nacionais) tantes nacionais)
Socialização Forte Fraca Média Média Fraca

* Elaboração própria com base nos tratados internacionais e nos websites dos órgãos parlamentares.
América Latina: Entre o Fortalecimento...
Parlamentos Supranacionais na Europa e na

401
Andrés Malamud e Luís de Sousa

quatro décadas entre o início do processo de integração europeu e os


processos em curso na América Latina; portanto, algumas das dife-
renças de desenvolvimento institucional assinaladas poderão resu-
mir-se a uma questão de maturidade.

O segundo fator é a seqüência: a atual estrutura da UE foi construída


a partir do tão falado “método Monnet”, isto é, a função precede a
forma e o “incrementalismo” é preferido à institucionalização pre-
matura. Em contraste, algumas das experiências da América Latina
tentaram, sem sucesso, emular o resultado do processo de integração
europeu, mas descuidando do seu método.

Em terceiro lugar, existe uma grande disparidade no nível de integra-


ção conseguido: enquanto a UE é já um mercado comum e continua a
consolidar a sua união econômica, nenhum dos projetos lati-
no-americanos alcançaram sequer o nível de união aduaneira. Por
conseguinte, a estrutura institucional necessária para um tipo de or-
ganização poderá ser inadequada aos requisitos das outras.

Em quarto lugar, o grau de sucesso na criação de instituições regio-


nais não pode estar desassociado do modo efetivo como essas institu-
ições funcionam em nível nacional. Em outras palavras, o caráter
precário e de instabilidade das instituições nacionais não pode servir
de base estável para a construção de instituições que visam a integra-
ção política regional.

Em último lugar, a maioria dos países europeus constituem regimes


parlamentares ou semiparlamentares, enquanto todos os países da
América Latina são democracias presidencialistas. Uma conseqüên-
cia desta variação institucional é que o papel dos Parlamentos nacio-
nais em todo o processo de integração é inevitavelmente diferente em
uma e outra região: se, na Europa, os Parlamentos nacionais são en-
tendidos como instituições supremas, em que os governos são consti-
tuídos e dissolvidos, na América Latina, as eleições, autoridade e so-
brevivência dos governos são independentes da vontade parlamen-

402 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005


Parlamentos Supranacionais na Europa e na
América Latina: Entre o Fortalecimento...

tar. Portanto, é razoável esperar que os chefes de governo de regimes


presidencialistas tencionem replicar, em nível regional, um esquema
que lhes tem proporcionado dividendos em nível nacional (Mala-
mud, 2005).

O princípio que baseia este último argumento é o de que, mesmo nos


processos de integração regional, a natureza presidencialista ou par-
lamentar dos regimes dos Estados-membros importa e tem implica-
ções diretas, especialmente no que diz respeito à criação e desempe-
nho de Parlamentos regionais. Conseqüentemente, também os parti-
dos políticos cumprem um papel diferente em um ou outro contexto
institucional regional. Não seria inoportuno que os reformadores
destes processos levassem em consideração estas conclusões, pois,
como já foi referido por alguns autores, um sistema parlamentar po-
derá não ser a solução mais adequada para governar uma democracia
multiestatal (Fabbrini, 2004; McKay, 2001). Nota-se ainda que as
implicações desta hipótese dizem respeito não apenas ao futuro dos
Parlamentos regionais na América Latina, mas a qualquer processo
de integração política, incluindo o europeu. Fóruns birregionais, tais
8
como a Conferência Interparlamentar Europa-América Latina , po-
deriam desempenhar um papel mais significativo e de mútuo interes-
se, ajudando os Parlamentos nacionais a prevenir possíveis insuces-
sos geralmente associados à criação de expectativas quiméricas.

Os Parlamentos regionais podem contribuir para a criação, a longo


prazo, de alicerces complementares da integração, tais como: a cons-
trução de uma identidade regional entre as elites políticas; o fortale-
cimento da presença simbólica da organização regional no seio da
opinião pública e a sua promoção em países terceiros; e a intensifica-
ção da comunicação intra-regional. Contudo, estas funções não são
nem exclusivas, nem características fundamentais de uma instituição
parlamentar. Se a reforma dos Parlamentos regionais é para ser toma-
da seriamente, a distinção entre funções constitutivas e complemen-
tares não pode ser negligenciada. Como ensina a história, embarcar

403
Andrés Malamud e Luís de Sousa

em propostas pouco realistas, sejam elas baseadas na emulação acrí-


tica, sejam resultantes de uma compreensão insuficiente do contex-
to, condenará qualquer empresa ao fracasso ou, na melhor das hipó-
teses, à irrelevância.

Notas

1. Por regional, entenda-se a dimensão internacional e/ou os processos de de-


cisão de natureza intergovernamental ou supranacional em um espaço contíguo
que afeta várias jurisdições territoriais nacionais. Não se refere ao nível inter-
médio de governo entre o local e o nacional dentro de uma jurisdição estatal.
2. A Declaração de Roma de 27 de outubro de 1984 sublinhou a importância
de a União da Europa Ocidental vir a fazer parte do complexo da política de de-
fesa européia. Esta intenção política seria, posteriormente, posta em prática
pelo Tratado de Maastricht de 1991.
3. Esta e as demais citações de textos em língua estrangeira foram livremente
traduzidas por nós.
4. O Ato Único Europeu de 1986 tornaria, finalmente, oficial a designação de
Parlamento Europeu.
5. Os países signatários são: Argentina, Aruba, Bolívia, Brasil, Chile, Colôm-
bia, Costa Rica, Cuba, República Dominicana, Equador, El Salvador, Guatema-
la, Honduras, México, Antilhas Holandesas, Nicarágua, Panamá, Paraguai,
Peru, Suriname, Uruguai e Venezuela.
6. O Grupo Contadora foi fundado em 1983 com a participação do México,
Colômbia, Venezuela e Panamá. O Grupo de Apoio foi estabelecido, posterior-
mente, em 1985 e era composto pela Argentina, Uruguai, Brasil e Peru. A mis-
são de ambos os grupos era a de contribuir para uma solução negociada dos con-
flitos na América Central e os seus princípios diretores eram, fundamentalmen-
te, quatro: autodeterminação, não-intervenção, desmilitarização e democratiza-
ção. Em 1986, os dois grupos fundiram-se em um só, que viria a ser conhecido
como Grupo do Rio.
7. O Pacto Andino foi assinado pela Bolívia, Chile, Colômbia, Equador e
Peru. Em meados dos anos 1970, a Venezuela integrou-se ao processo, ao passo
que o Chile o abandonou.

404 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005


Parlamentos Supranacionais na Europa e na
América Latina: Entre o Fortalecimento...

8. Este fórum, cujo terceiro encontro teve lugar em Puebla entre 17 e 19 de


março de 2004, inclui a participação de delegados dos cinco Parlamentos regio-
nais analisados neste artigo.

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Parlamento Latino-Americano: <http://www.parlatino.org.br>.
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<http://www.ipu.org/english/home.htm>.

407
Andrés Malamud e Luís de Sousa

Resumo

Parlamentos Supranacionais na
Europa e na América Latina:
Entre o Fortalecimento e a
Irrelevância

Nenhum processo de integração regional está isento de críticas sobre o seu


alegado déficit democrático e/ou institucional. A razão destes déficits é,
freqüentemente, apontada como uma conseqüência da escassa accountabi-
lity e da falta de transparência dos sistemas de decisão em nível regional. Os
diferentes blocos regionais têm tentado responder a um ou ambos dos défi-
cits em causa, mediante uma variedade de métodos e opções institucionais.
A mais visível das fórmulas aplicadas é a criação e fortalecimento de um
Parlamento regional – ou seja, supranacional. Este artigo pretende analisar,
comparativamente, cinco Parlamentos regionais na Europa e na América
Latina – o Parlamento Europeu, o Parlamento Latino-Americano, o Parla-
mento Centro-Americano, o Parlamento Andino e a Comissão Parlamentar
Conjunta do Mercosul – com o objetivo de compreender o impacto que estas
instituições têm tido no âmbito da representação regional, dos processos de
decisão e do fortalecimento da accountability. As conclusões sugerem cin-
co fatores que os autores consideram pertinentes para a explicação das dife-
renças verificadas entre as duas regiões transatlânticas.

Palavras-chave: Parlamentos Supranacionais – Integração Regional –


Integração Latino-Americana – Integração Européia

Abstract

Regional Parliaments in Europe


and Latin America: Between
Empowerment and Irrelevance

Virtually no process of regional integration has been safe from the criticism
of allegedly suffering from either democratic deficit, institutional deficit or
both. These deficits, the argument goes, are the consequence of scarce
accountability and the lack of transparency in regional decision-making.
Different regional blocs have attempted in a variety of ways to confront one
or both of these deficits, the most visible of which is the creation and

408 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005


Parlamentos Supranacionais na Europa e na
América Latina: Entre o Fortalecimento...

empowerment of a regional parliament. This paper presents a comparative


analysis of five of these institutions in Europe and Latin America – i.e. the
European Parliament, the Latin American Parliament, the Central
American Parliament, the Andean Parliament, and the Joint Parliamentary
Commission of Mercosur – with the aim of understanding their impact on
regional representation, decision-making and accountability. The
conclusions pinpoint five plausible factors in accounting for the differences
found across the Atlantic divide.

Key words: Supranational Parliaments – Regional Integration – Latin


American Integration – European Integration

409
Resenha
Taming the Sovereigns*
Kalevi J. Holsti. Cambridge, Cambridge University Press, 2005, 349 páginas.

Marcelo Valença**

Kalevi Holsti aborda em seu livro a questão das mudanças e trans-


formações ocorridas na relação entre os Estados ao longo da história
e como estas são percebidas pelos estudiosos das relações internaci-
onais (RI). Por meio de uma análise empírica bem elaborada, a obra
aborda aspectos de um dos debates centrais da disciplina, que é a
questão da mudança nas RI. Para o autor, pontos de ruptura e marcos
históricos – que supostamente delimitariam o início de “novas eras”
e práticas – são aclamados a todo instante, quando, na verdade, tais
eventos não teriam a integralidade dos efeitos alegados. Esta aborda-
gem sugere que a idéia de mudança envolve um processo contínuo
na política internacional, mesmo que não implique em alterações
decisivas na forma como o mundo é visto e entendido: o sistema in-
ternacional seria dotado de dinamicidade e esta não se mostraria
apenas quando dos grandes eventos; ao contrário, seria percebida

*Resenha recebida em agosto e aprovada para publicação em outubro de 2005.


**Mestrando em Relações Internacionais pelo Instituto de Relações Internacionais da Pontifícia Univer-
sidade Católica do Rio de Janeiro (IRI/PUC-Rio).

CONTEXTO INTERNACIONAL Rio de Janeiro, vol. 27, no 1, janeiro/junho 2005, pp. 465-478.

465
Resenha

freqüentemente. O ataque de 11 de setembro, as grandes guerras e


Westphalia seriam pontos marcantes para as RI, mas as mudanças
não ocorreriam somente em momentos como estes: a alteração da
ordem faz parte de um processo contínuo.

A proposta de Holsti é fazer um estudo da estrutura institucional da


política internacional por meio da análise contextualizada das insti-
tuições e dos arranjos dispostos que conduzem às relações mútuas
entre os Estados. Para o autor, as bases da sociedade internacional de
Estados começaram a se constituir no século XVII com o surgimento
das instituições internacionais, mas foi apenas no período posterior
às guerras napoleônicas que a sociedade foi formada, firmando-se
definitivamente com o surgimento da Liga das Nações.

Para atingir seus objetivos, Holsti vai buscar padrões de mudança nas
instituições internacionais – o Estado, o território, a soberania, o di-
reito internacional, a diplomacia, o comércio internacional, o coloni-
alismo e a guerra –, seja na direção da institucionalização, seja na sua
erosão, comparando a sua relevância na política ao longo dos sécu-
los. A opção por utilizar estes referenciais – que ajudam a compor a
sociedade internacional de Hedley Bull (2002) – tem como finalida-
de estabelecer parâmetros “isentos” de comparação, pois as institui-
ções internacionais estariam diretamente ligadas ao contexto históri-
co analisado, assumindo postura crítica perante a política internacio-
nal, fugindo assim de explicações determinísticas. Ademais, estas
resistiriam a grandes eventos, como guerras e crises, tendo mais im-
pacto na vida social do que muitas das inovações tecnológicas obser-
vadas, e assumindo papel central na vida social. Os critérios para per-
ceber as mudanças e transformações seriam baseados nas práticas,
idéias, crenças e normas empreendidas em cada uma destas institui-
ções internacionais, que são analisadas e comparadas historicamente
em um capítulo exclusivamente dedicado ao estudo das mudanças
por elas sofridas.

466 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005


Resenha

É importante expor, inicialmente, que Kalevi Holsti vê como mudan-


ça a alteração dos componentes das instituições, por meio do acrésci-
mo ou retirada de seus elementos, levando ao aumento ou redução de
sua complexidade. Tais alterações implicariam na obsolescência ou
renovação destas instituições. Poderia implicar também na sua trans-
formação, isto é, alterações profundas nas estruturas da instituição
internacional, fazendo com que as novas estruturas constituam ver-
dadeiras antíteses daquelas anteriormente observadas. Haveria, as-
sim, seis tipos de mudança: renovação ou substituição; acréscimo ou
subtração; aumento ou diminuição de complexidade.

O livro pode ser dividido em duas partes. A primeira (do capítulo 2 ao


5) consiste na análise das instituições fundacionais – o território, a
soberania e o direito internacional –, que permitiriam a qualquer es-
tudioso perceber a existência de um sistema organizacional formado
por Estados e distinto de outras formas de organização política, como
impérios ou sistemas suseranos; as instituições são os componentes
que formam o sistema internacional moderno. De acordo com o au-
tor, elas não teriam passado por transformações, a não ser o esvazia-
mento do direito de conquista como atributo da soberania e como
norma do direito internacional, perdendo, assim, legitimidade. O Es-
1
tado, visto como ator e instituição, justamente por este caráter du-
plo, representaria o maior desafio na exposição de Holsti, mas é clas-
sificado por ele, ao menos a priori, como instituição fundacional.

A segunda parte (do capítulo 6 ao 9) é formada pela análise das insti-


tuições procedimentais – diplomacia, comércio internacional, colo-
nialismo e guerra – que constituiriam as práticas, normas e crenças
repetidas ao longo do tempo e que são decorrentes da interação entre
os diferentes atores internacionais em função dos princípios propos-
tos pelas instituições fundacionais. As instituições procedimentais
são importantes para se perceber as características essenciais do sis-
tema internacional, mas possuem importância secundária se compa-
radas às instituições fundacionais. As instituições procedimentais

467
Resenha

também não teriam passado por transformações, exceto o colonialis-


mo, que mais tarde se tornaria obsoleto. O conjunto de mudanças pe-
las quais as demais instituições deste tipo passaram levou o colonia-
lismo a se tornar algo ultrapassado, mesmo que a sua estrutura não te-
nha sofrido modificações: foram os efeitos combinados e decorren-
tes, por exemplo, de fatores econômicos associados a questões de so-
berania, como o princípio da autodeterminação dos povos, que o teri-
am levado a ser visto como ultrapassado. Assim, ainda que nenhuma
alteração estrutural profunda – isto é, uma transformação – tenha
acontecido, houve diversas mudanças que trouxeram às instituições
internacionais novos elementos e/ou alterações em sua complexida-
de que afetaram a capacidade operacional do colonialismo. Tais efei-
tos, se por um lado não se mostraram capazes de decretar a sua extin-
ção, por outro tornaram tal instituto demasiadamente oneroso, em
custos políticos e econômicos, desencorajando a sua manutenção e
instituindo seu desuso. Isto mostraria como os diversos mecanismos
que compõem a ordem internacional estão inter-relacionados e como
variações em um ou mais deles poderiam afetar os demais, ainda que
tais mudanças não estejam diretamente ligadas.

O que podemos apreender de Taming the Sovereigns é a tentativa de


promover uma releitura dos postulados da Escola Inglesa, especial-
mente do papel central ocupado pelas instituições constituintes da
sociedade internacional de Estados, perante os desafios propostos à
organização estatal neste início do século XXI, principalmente dian-
te dos processos de globalização, questionando, a todo instante, con-
ceitos centrais do Estado, como territorialidade e soberania.

Dentre as instituições fundacionais estudadas, o Estado é aquela que


apresenta mais nuances, o que torna sua análise mais delicada: ao
mesmo tempo que demonstra ter todas as características necessárias
para que se configure uma instituição internacional, ele se mostraria
como ator central da sociedade internacional criando, inclusive, as
instituições. Enquanto estas seriam “estruturas de normas, regras e

468 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005


Resenha

2
idéias que influenciariam o comportamento dos agentes” (:27) , os
Estados seriam entidades soberanas que apresentariam continuidade
temporal, delimitação territorial, governo centralizado e limites de
separação entre as idéias de público e privado, em uma forma natural
de organização política.

As mudanças que o Estado sofreu desde Westphalia implicaram no


aumento de sua complexidade – como na ampliação de suas funções,
antes restritas à taxação e ao exército para uma lista mais abrangente
de funções, ampliando também o seu aparelho burocrático.

Holsti critica aqueles que pregam a obsolescência do Estado. A insis-


tência na idéia de erosão de soberania ou permeabilidade das frontei-
ras constituiria um wishful thinkink dos acadêmicos que gostariam de
ver o mundo se reduzindo, formando uma vila global: fora do exem-
plo europeu, haveria poucos sinais de que isto realmente estivesse
ocorrendo. Como aponta Krasner (2001), algumas atividades ilícitas
desafiariam o Estado, mas ainda assim teríamos a preponderância
desta organização política.

Quanto às fronteiras, sua importância variou bastante ao longo do


tempo, especialmente até o século XVI, quando os monarcas come-
çaram a notar que a efetivação de seu poder dependia de uma área on-
de este pudesse ser exercido, principalmente após a Guerra dos Trin-
ta Anos: “Parte do jogo da soberania era definir precisamente onde a
lei ‘nacional’ prevaleceria sobre a estrangeira e sobre regras locais e
jurisdições” (:79). O território estava sujeito a alterações de tamanho
em função de, mas não se limitando a, conquistas, partições e casa-
mento dos regentes. A partir do século XVIII, o espaço tornou-se ins-
titucionalizado, com as normas de jurisdição territorial exclusiva so-
brepondo-se às antigas, sustentando as mudanças rumo às práticas
contemporâneas. Estas se referem não apenas à revisão do espaço,
mas também à sua administração, com os Estados detendo os recur-
sos para o controle dos fluxos através de suas fronteiras.

469
Resenha

As fronteiras assumiram a função de demarcar a legitimidade de uma


autoridade e da aplicação das suas leis, além de proteção contra a en-
trada de indivíduos e bens indesejados. Suas normas e regras desen-
volveram-se conforme a capacidade dos Estados de controlar seus
territórios e identificar a sua população. Diversos dispositivos acor-
dados entre os Estados a partir de 1960 reforçavam a idéia de que o
3
princípio do rebus sic stantibus não mais valeria. Com isso, o territó-
rio estatal entraria em um processo de mutação, passando a ser visto
como congelado e com as fronteiras assumindo valores sociais mais
amplos do que aqueles vislumbrados séculos antes: o território teria
passado por mudanças, mas ainda teria importância.

Holsti vê a soberania como uma instituição internacional construída


socialmente cuja prática é fundamentada pelo consenso dos Estados;
seria, pois, o ponto no qual repousa a idéia da sociedade internacional
de Estados, pois as demais instituições estariam relacionadas a ela de
maneira inseparável. A soberania é dividida em dois componentes:
normas e regras que constituem o Estado, definindo os atores do jogo
político, e aquelas que regulam as relações entre os Estados, isto é, as
regras do jogo. A preocupação de Holsti é trabalhar com as regras
constituintes da soberania, ajudando a criar e manter os Estados, de-
finindo e apontando os atores aptos a participar do debate político.

Ser considerado soberano consistiria em adquirir um status jurídico


atribuído pelos seus pares e que faz com que o Estado pertença ao
“clube”. Diferentemente do que é defendido por Krasner (2001), o
Estado depende deste status para ser soberano, não podendo ser de-
clarado como tal apenas por possuir determinados atributos: sem o
reconhecimento dos demais, o Estado seria apenas um ente político,
como uma ONG, por exemplo.

Todas as tentativas de romper a idéia de soberania – e, conseqüente-


mente, a de Estado moderno e territorialidade – foram malsucedidas,
contando com pronta reação da sociedade internacional. O que co-

470 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005


Resenha

meçou como uma maneira de reforçar o Estado perante o poder papal


acabou se tornando uma forma naturalizada de organização política,
mais completa que as já conhecidas, mesmo diante de constantes crí-
ticas (Osiander, 2001). Os processos de globalização acabaram por
levá-la a um anacronismo: com o rompimento jurídico e prático des-
ta idéia, a autoridade estatal distanciou-se do poder e da influência
outrora exercidos. Mas a decisão final de participar do jogo político
ainda pertence ao Estado. Este é, portanto, um conceito idealizado
que não corresponde ao processo observado na prática, o que não sig-
nifica que tenha perdido a sua importância na política internacional
contemporânea. Muitas de suas características originais foram-se
com o tempo – como o direito de conquista –, mas o seu núcleo duro
continua o mesmo, ainda que se percebam anomalias em seu corpo.

A última instituição fundacional analisada é o direito internacional.


Este se mostraria fundamental para a ordem vigente, com diversos
princípios mantendo-se, via de regra, intactos ao longo do tempo,
com exceção dos direitos humanos, da organização dos Estados, das
organizações internacionais, que ganharam complexidade, e do di-
reito de conquista, abolido. Outros, como a soberania e a igualdade
jurídica permanecem não apenas intactos, mas sustentando a socie-
dade internacional. Todas as leis são alteradas ao longo do tempo e
com as normas internacionais não é diferente: há uma síntese que
promove a renovação das regras, com princípios antigos se mesclan-
do a novos para promover a transformação da regra e torná-la mais
adequada às demandas. Não houve transformação do direito interna-
cional, mas mudanças inerentes ao decurso, incluindo a obsolescên-
cia de parte dele.

Holsti expõe que certas normas são aplicáveis em relação a grupos


distintos em diversos momentos históricos. Estas regras, essenciais,
constituem um regime de coexistência dos Estados na sociedade. A
aceitação delas, e sua transformação em princípios, foi o primeiro
passo rumo à institucionalização do direito internacional, juntamen-

471
Resenha

te com o consenso na forma de interpretá-las e o interesse dos Esta-


dos de mantê-las durante certo período de tempo. As normas e práti-
cas internacionais reforçavam a idéia original de soberania como
uma proteção dos Estados: atualmente, o conceito dirige-se às idéias
de autodeterminação dos povos e de igualdade jurídica. O caráter
constitutivo da soberania, como ressaltado anteriormente, acaba li-
mitando aqueles que tentam negá-la, pois para se ter certos direitos
seria preciso garantir os mesmos a outrem.

O entendimento da diplomacia como uma instituição internacional


remonta ao século XIV, prolongando-se até Westphalia. Sua origem
estaria ligada com o surgimento de embaixadas permanentes nas ci-
dades-Estados italianas e evoluiu até a exclusividade dos soberanos
4
de enviar representantes diplomáticos . No final do século XVII, a
diplomacia já era entendida como um conjunto de práticas consenti-
das, constantes e regularizadas; a capacidade de manter embaixadas
permanentes no estrangeiro era vista como atributo de soberania,
pois indicava que o Estado que autorizava a abertura destas represen-
tações via o requerente como ator soberano. As normas preocupa-
vam-se com a pessoa do embaixador, isto é, com quem poderia ocu-
par tal papel e quais direitos e garantias este teria. Um outro sinal de
institucionalização da diplomacia foi a burocratização do processo
diplomático, visando à sua padronização.

Durante o século XIX, não houve aumento na representação diplo-


mática, mas houve na sua profissionalização. A ascensão e escolha
dos diplomatas pelo seu mérito passaram a ser a regra na maioria dos
Estados. Apesar disso, pouco mudou nas funções tradicionais da di-
plomacia. Uma das mudanças foi a preocupação de se esgotar todos
os métodos diplomáticos antes de se apelar à força. A entrada de no-
vos agentes, como organizações não-governamentais (ONGs) e ne-
gociadores privados, tornou a prática diplomática mais complexa,
mas não consistiu em nenhuma transformação: os princípios cultiva-
dos desde o século XIV continuam em vigor, adequados ao período

472 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005


Resenha

histórico vigente. Questionamentos e rupturas como aquelas propos-


tas pela Revolução Chinesa desafiaram as normas tradicionais, mas
tiveram de ser revistas para que ocorressem os relacionamentos de
Estados como a China com os demais da sociedade internacional.

Como apontam os críticos, o uso de comissões de representação que


não são compostas por agentes do corpo diplomático estatal seria um
indicador de que a institucionalização deste instrumento estaria di-
minuindo: “[...] há diversas organizações políticas que não são Esta-
dos soberanos que atuam em atividade diplomática” (:202). Outras
críticas vêm da violação sistemática das normas de condução da di-
plomacia, além do surgimento de novas tecnologias, juntamente com
o rápido crescimento das relações transnacionais, que superariam o
uso das vias de comunicação diplomática. Holsti defende não a
transformação das relações diplomáticas, mas o aumento da comple-
xidade de tais relações diante da sua democratização. A atuação ad
hoc dos mediadores não-oficiais não provoca transformação do insti-
tuto, mas complementa a atuação dos Estados, aumentando a sua efe-
tividade.

No comércio internacional, especialmente durante o período das


grandes navegações, existia um sistema anárquico, quase hobbesia-
no, fugindo do domínio da sociedade. Os Estados atuavam conforme
seus próprios interesses, sem considerar vantagens comparativas ou
princípios regulatórios, ainda que houvesse tratados de cooperação.
A preocupação maior era de adquirir colônias para poder se aferir lu-
cros com a sua exploração: “[...] a idéia de que o comércio poderia ser
desenvolvido por vias pacíficas existia, mas a possibilidade de este
trazer benefícios mútuos estava além do pensamento mercantilista”
(:217).

O desenvolvimento do pensamento liberal de Adam Smith e David


Ricardo levou à mudança no pensamento econômico. Houve assim
uma adequação destes novos princípios às práticas outrora existen-

473
Resenha

tes, especialmente durante o século XIX. A grande depressão econô-


mica de 1929 promoveu um novo conjunto de mudanças. Hodierna-
mente, o surgimento de instituições como a Organização Mundial do
Comércio garantiu um nível considerável de institucionalização, por
meio de práticas e normas que romperam com o estado de natureza
outrora existente. Ainda que estas normas não cubram todas as possi-
bilidades, deixam claras as intenções de regulamentação. As idéias
tiveram papel importante nestas transformações, mas não podem ser
vistas como únicas responsáveis: houve mudança de práticas na área,
permitindo a maior recepção destas, especialmente porque a possibi-
lidade de ganhos mútuos passou a ser considerada pelos agentes en-
volvidos. As condições criadas permitiram a institucionalização,
mas não há indicadores de que estas mudanças se mantenham diante
das adversidades, como aquelas experimentadas com as guerras do
século XX e a crise de 1929. A institucionalização existe e é maior do
que a percebida em outras épocas, mas não provocou transformações
no campo econômico.

O colonialismo é uma exceção entre todas as instituições analisadas,


fundacionais ou procedimentais: apenas este se tornou obsoleto. A
formação de colônias ajudou no estabelecimento econômico e terri-
torial dos Estados modernos, estabelecendo padrões de segurança e
garantindo os recursos para a centralização do poder. Cada potência
impunha seu próprio modelo de colonização de acordo com os seus
interesses e os domínios coloniais eram mais ou menos respeitados
conforme se dava a relação entre os europeus. As colônias eram re-
forços para todas as outras instituições internacionais; mas, uma vez
consolidadas estas instituições, o colonialismo perdeu sua força. E
isto não ocorreu no pós-Segunda Guerra Mundial, como é corrente
afirmar: as bases que sustentaram esta prática se iniciaram no século
XIX, com as colônias americanas, mas a grande onda de descoloni-
zação ocorreu a partir da segunda metade da década de 1940.

474 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005


Resenha

A Organização das Nações Unidas (ONU) trouxe sistemas de admi-


nistração das ex-colônias para que estas pudessem passar pelo perío-
do de transição até se tornarem Estados livres. A distribuição de seus
territórios deixou de ser um espólio para os vencedores dos conflitos,
além de não fazer mais parte do conjunto de identidade das grandes
potências: as suas independências eram apenas questão de tempo. A
obsolescência das colônias, portanto, não foi algo que simplesmente
ocorreu, mas parte de um processo cultivado ao longo dos últimos sé-
culos, com as guerras do século XX atuando como um catalisador
destas mudanças. O colonialismo tornou-se obsoleto não apenas pela
questão da soberania, mas também pelos seus custos econômicos, in-
viáveis e insustentáveis.

A guerra, finalmente, é a forma primária de interação entre atores po-


líticos independentes ao longo da história. Ela era travada entre as en-
tidades políticas e não entre seus cidadãos: com a derrota de um dos
lados, os enfrentamentos encerravam-se e as baixas entre os soldados
também, impedindo que a violência se alastrasse. As idéias de Clau-
sewitz lastreavam tal postura, com a diplomacia complementando o
uso da força. A guerra era institucionalizada na medida em que as
práticas e comportamentos eram padronizados pelos diferentes exér-
citos, seja na organização hierárquica, seja no tratamento dado, por
exemplo, a prisioneiros de guerra, formando uma etiqueta da mesma.
Estas idéias possibilitaram a formação de distinções entre combaten-
tes e não-combatentes, combatentes e neutros, governo e exército e
entre guerra e paz.

Durante o século XX, houve mudanças no formato que os confrontos


assumiram, deixando de ser uma prerrogativa de entidades soberanas
para se tornar um instrumento utilizado também por grupos priva-
dos; a proliferação de milícias privadas é um sinal deste novo tempo,
remontando aos mercenários da Guerra dos Cem Anos. Não mais
importava reduzir as forças inimigas, mas causar o máximo de des-
truição possível. As condições socioeconômicas dos novos Estados

475
Resenha

ajudaram a explicar em parte esta quebra de institucionalização: por


se tratar de confronto entre grupos políticos dentro do mesmo espaço
territorial, uma das táticas adotadas era a de caracterizar o inimigo
como um ser inferior, provocando medo e aumentando o número de
baixas adversárias. Mas o sinal mais flagrante da quebra da instituci-
onalização da guerra foi o fim da separação entre paz e guerra: se an-
tes esta era declarada, demarcando claramente seu começo, tal práti-
ca não mais existe, sendo um processo que culmina no confronto en-
tre as partes.

Por outro lado, a utilização de novas tecnologias pareceu levar a


guerra novamente em direção à sua institucionalização: a idéia de
guerras cirúrgicas, com o alvo milimetricamente definido ajudaria a
reduzir a destruição causada, levando, novamente, aos ideais clause-
witzianos. A Guerra do Golfo, em 1991, e do Kosovo, em 1999, seri-
am exemplos desta mudança. Mas, em outras regiões do globo, os
novos conflitos continuam a existir, levando ao massacre de popula-
ções inteiras. Assim, ocorre um paradoxo no que diz respeito à per-
cepção da guerra como uma instituição, pois, dependendo da região
observada, teríamos diferentes mudanças. Poderíamos identificar
três tendências para a guerra: a sua obsolescência, tal como pregada
pela carta da ONU; a sua “re-institucionalização”, com a utilização
das armas “inteligentes”; e a quebra da institucionalização, nas for-
mas assumidas pelas novas guerras.

Com a análise das instituições trabalhadas no livro, Holsti conclui


que a única mudança mais profunda ocorreu com o colonialismo,
que se tornou obsoleto. Isto levou ao esvaziamento da idéia de con-
quista, tanto como um pressuposto da soberania estatal, quanto na
sua forma de norma internacional. As demais instituições internacio-
nais passaram por mudanças, mas por meio de processos que as tor-
naram mais complexas e adequadas às necessidades exigidas pelo
sistema, sejam em função do surgimento de novos atores internacio-
nais, sejam pelos desafios propostos pelos fluxos de globalização.

476 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005


Resenha

Holsti procura mostrar que a sociedade internacional é dinâmica e a


mudança é uma realidade que não se limita apenas a eventos marcan-
tes e que, na visão de muitos, marcariam o início de uma nova era. A
formatação das instituições internacionais às exigências impostas
pela sociedade internacional implica, além da inter-relação entre os
institutos, o aumento da complexidade de suas formas, tornando-as
mais adequadas à vida social e política.

Notas

1. O Estado é visto como ator porque seria ele quem criaria e manteria as insti-
tuições existentes, enquanto seria uma instituição fundacional porque é parte in-
tegrante e formadora do sistema internacional.
2. Todas as citações foram traduzidas livremente pelo autor deste artigo.
3. O princípio do rebus sic stantibus, segundo Holsti (:151), indica que o acon-
tecimento de eventos ou o surgimento de novas condições que proporcionem al-
terações na forma como o sistema é organizado não pode ser alegado para rei-
vindicar revisão arbitrária e sem o consentimento dos afetados no que diz respeito
às fronteiras já consolidadas. Toda e qualquer modificação nas fronteiras dos
Estados devem incluir, necessariamente, a aceitação dos envolvidos.
4. Esta inovação caracterizaria a continuidade das relações diplomáticas, algo
que não existia anteriormente, como pode ser percebido nas relações existentes,
por exemplo, entre as sociedades clássicas (Tucídides, 1987), que enviavam re-
presentantes apenas quando havia conflito de interesses.

477
Resenha

Referências
Bibliográficas

BULL, Hedley. (2002), A Sociedade Anárquica. São Paulo/Brasília,


IPRI/Imprensa Oficial de São Paulo/Editora da UnB.

KRASNER, Stephen. (2001), “Abiding Sovereignty”. International Political


Review, vol. 22, nº 3, pp. 229-251.

OSIANDER, Andreas. (2001), “Sovereignty, International Relations, and the


Westphalian Myth”. International Organization, vol. 55, nº 2, pp. 251-287.

TUCÍDIDES. (1987), História da Guerra do Peloponeso. São Paulo/Brasília,


IPRI/Imprensa Oficial de São Paulo/Editora da UnB.

478 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005


Resenha
Genocídio – A Retórica
Americana em Questão*
Samantha Power. São Paulo, Companhia das Letras, 2004, 693 páginas.

Maurício Santoro**

Genocídio – A Retórica Americana em Questão (má tradução para A


Problem from Hell: America in the Age of Genocide), excelente livro
de Samantha Power, é um estudo sobre a reação dos Estados Unidos
aos genocídios ocorridos no século XX. A autora examina o massa-
cre dos armênios pelos turcos, o Holocausto, o Khmer Vermelho no
Camboja, o extermínio dos curdos no Iraque e as guerras étnicas na
ex-Iugoslávia e em Ruanda. Embora o título mencione apenas os
Estados Unidos, o resultado é um painel mais amplo, abrangendo os
papéis desempenhados por governos, imprensa, organizações inter-
nacionais, políticos e organizações não-governamentais (ONGs) nas
crises internacionais que envolvem esse tipo de crime.

Power é irlandesa, formada em Direito por Harvard, onde leciona


Ciência Política. Seu interesse pelo tema do genocídio começou

* Resenha recebida em março e aceita para publicação em agosto de 2005.


** Doutorando em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj),
pesquisador do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (IBASE) e professor da
pós-graduação em Relações Internacionais da Universidade Candido Mendes.

CONTEXTO INTERNACIONAL Rio de Janeiro, vol. 27, no 2, julho/dezembro 2005, pp. 493-501.

493
Resenha

quando, com apenas 23 anos, cobriu como jornalista a guerra da Bós-


nia. Como outros personagens do livro, seu forte envolvimento emo-
cional com o assunto veio da experiência direta.

A autora constata que a norma é a não-intervenção da comunidade


internacional em casos de genocídio, pelo menos até que a força da
opinião pública leve os Estados mais poderosos a reagir. Outra obser-
vação é a recusa dos políticos e diplomatas em reconhecer a natureza
da catástrofe em andamento: “Representam a carnificina como algo
bilateral e inevitável, e não como um genocídio” (:19). Muito contri-
bui para essa posição o exame abstrato da noção de “interesse nacio-
nal”, realizado por pessoas que consideram os crimes em discussão
apenas como imagens distantes do cotidiano e que ainda por cima
atrapalham a agenda política do momento.

Um Crime com Nome

A palavra genocídio foi inventada no fim da Segunda Guerra Mundi-


al pelo jurista polonês Raphael Lemkin, um refugiado judeu que con-
seguiu asilo nos EUA. Power narra com simpatia o esforço de Lem-
kin para criar um termo que desse conta do que ocorria na Europa
ocupada pelos nazistas, algo que descrevesse “ataques a todos os as-
pectos da nacionalidade – físicos, biológicos, políticos, sociais, cul-
turais, econômicos e religiosos” (:66). A palavra foi cunhada por
Lemkin em um livro sobre a legislação racial promulgada nos territó-
rios conquistados por Hitler, livro que teve repercussão imediata na
imprensa e nos meios diplomáticos.

Após a guerra, Lemkin tornou-se um lobista incansável para que a


Organização das Nações Unidas (ONU) elaborasse uma convenção
contra o genocídio, que formasse a base legal para futuras interven-
ções militares. O jurista era especialmente preocupado em impedir
que a soberania pudesse ser utilizada por um Estado como pretexto
para perpetrar genocídio contra suas minorias populacionais: “Pare-

494 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005


Resenha

ce incoerente com nossos princípios de civilização que vender uma


droga a um indivíduo seja considerado um problema de interesse
mundial, enquanto envenenar com gás milhões de seres humanos
possa ser um problema de interesse interno” (:73).

A convenção foi aprovada em 1948, mas os EUA não a assinaram –


além de evitar o compromisso de se envolver em guerras, havia o te-
mor de que a convenção pudesse aplicar-se aos próprios atos do go-
verno norte-americano contra índios e negros.

O tratado, além de definir genocídio, estipula que a ONU é obrigada


a agir para impedi-lo. Embora a intenção fosse louvável, o resultado
prático foi a relutância dos governos em reconhecer uma determina-
1
da situação como “a palavra g” , preferindo eufemismos como “atro-
cidades” ou “crimes”. Ao contrário do que normalmente se imagina,
o genocídio não é definido a partir da aniquilação de toda uma popu-
lação, como no nazismo. Sua marca característica é a tentativa de eli-
minar as características de uma nacionalidade, não necessariamente
pelo assassinato, mas também pela ação cultural.

O fracasso da convenção tornou Lemkin um homem amargurado e


solitário. Apesar de ter sido indicado várias vezes para o Nobel da
Paz, ele nunca ganhou o prêmio e ao morrer era uma figura algo fol-
clórica entre os jornalistas que cobriam a ONU – um tipo curioso e
excêntrico, que deveria ser evitado.

Passividade: Camboja e
Iraque

Apesar de os detalhes do Holocausto terem se tornado conhecidos


nas décadas do pós-guerra, o mundo assistiu passivamente a um novo
genocídio, executado pelo Khmer Vermelho no Camboja. Power
examina os diversos fatores envolvidos na crise cambojana: o modo
como o país foi arrastado para o conflito vizinho entre o Vietnã e os

495
Resenha

EUA, sofrendo pesados bombardeios, a guerra civil que se seguiu e a


invasão vietnamita que pôs fim aos massacres do Khmer Vermelho –
apenas para que as potências ocidentais patrocinassem um refúgio
para o grupo na fronteira tailandesa, com o objetivo de apoiar adver-
sários do Vietnã.

Como era de se esperar, os cálculos da realpolitik – que levam em


conta apenas interesses econômicos e políticos, sem considerar valo-
res éticos, direitos humanos etc. – muitas vezes ignoram o genocídio
para favorecer um aliado que é estrategicamente importante. Isto
ocorreu no caso do Camboja e do Iraque, mas, de modo geral, trazer
temas humanitários à tona é considerado na burocracia governamen-
tal algo típico de encrenqueiros. A autora cita um dirigente do Depar-
tamento de Estado dos EUA que pergunta a um indignado subalter-
no: “Você conhece algum funcionário que tenha subido na carreira
porque falou em defesa dos direitos humanos?” (:111).

Power afirma que os argumentos utilizados para a não-intervenção


seguem o esquema observado por Albert Hirschman em seu livro A
Retórica da Intransigência, ou seja, enquadram-se em três categori-
as: futilidade (não vai adiantar), perversidade (o efeito será o contrá-
rio do pretendido) e perigo (trará mais problemas).

Às vezes, incidentes circunstanciais podem levar a reformulações na


política externa. No caso dos EUA, o país só assinou a Convenção so-
bre a Prevenção e Punição do Crime de Genocídio após uma crise cri-
ada quando o presidente Reagan visitou o cemitério de Bitburg, na
Alemanha Ocidental, onde estavam enterrados soldados da SS. O fu-
ror das entidades judaicas fez com que o governo norte-americano
precisasse dar uma resposta mostrando seu compromisso com a me-
mória do Holocausto e a determinação de impedir que algo seme-
lhante voltasse a ocorrer.

A gafe de Reagan é irônica, pois já existia uma campanha de dezeno-


ve anos do senador William Proxmire, que discursou 3.211 vezes no

496 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005


Resenha

Congresso – uma por dia –, defendendo a assinatura da convenção.


Mas o resultado de os EUA a terem assinado foi decepcionante:
“Longe de aumentar a probabilidade de os Estados Unidos fazerem
mais para impedir o genocídio, a ratificação pareceu apenas tornar as
autoridades mais cautelosas no uso do termo.” (:203). Além disso, os
EUA impuseram diversas restrições à convenção, tornando sua assi-
natura praticamente um gesto simbólico.

A resistência em agir ocorreu novamente quando o Iraque massacrou


sua população curda, mas então Saddam Hussein era um aliado oci-
dental contra o Irã – medidas contra Saddam só foram tomadas após
sua derrota na invasão do Kuwait, quando a ONU estabeleceu um en-
clave curdo no norte do Iraque.

Contudo, os meios de comunicação documentaram fartamente o ata-


que químico à cidade curda de Halabja. E as ONGs de direitos huma-
nos fundadas nos anos 1970, como a Human Rights Watch e a Anis-
tia Internacional, atuaram pela primeira vez no combate ao genocí-
dio, levantando informações, chamando a atenção da opinião pública
e até mesmo conduzindo sua própria investigação, recolhendo dados
que nem mesmo os governos tinham disponíveis.

As Crises nos Bálcãs

As guerras civis na Iugoslávia foram um caso à parte de genocídio – a


falta de ação inicial da União Européia e dos EUA acabou se transfor-
mando em uma intervenção militar, após pressão da imprensa e de
grupos políticos. Em casos como este, às vezes a motivação é pesso-
al: o senador republicano Bob Dole teve a vida salva na juventude por
um médico armênio, sobrevivente do genocídio cometido pelos tur-
cos, e tornou-se um importante defensor da atuação norte-americana
na Bósnia. Seu principal assessor diplomático, Mira Baratta, resu-
miu bem a influência da experiência em primeira mão: “Uma coisa é
ter uma inclinação natural para preocupar-se com os direitos huma-

497
Resenha

nos, mas outra bem diferente é ver pessoas que só desejam acenar
para americanos serem espancadas diante dos nossos olhos. Depois
de ver isso, não se pode virar as costas.” (:297).

As crises nos Bálcãs também provocaram reações dentro do Depar-


tamento de Estado, com diplomatas se demitindo em protesto peran-
te a passividade norte-americana, no que foi provavelmente a tensão
institucional mais séria desde o Vietnã. Houve ainda o fator CNN,
como admitiu um funcionário: “Nossa intenção era avançar um pas-
so, mas os noticiários avançaram dois” (:317).

Nada disso, evidentemente, foi feito sem inúmeras tensões, hesita-


ções e erros trágicos. O maior deles foi o fracasso em defender as áre-
as de segurança criadas pela ONU para os bósnios, freqüentemente
invadidas pelos sérvios. No caso mais sangrento, em Srebrenica,
mais de 7 mil pessoas foram assassinadas, o pior massacre na Europa
desde a Segunda Guerra Mundial. O paralelo com o Holocausto cho-
cou o Velho Mundo: cinqüenta anos depois de Auschwitz, os campos
de concentração estavam de volta.

A dificuldade da comunidade internacional em reagir provocou de-


clarações exaltadas de muitos políticos norte-americanos. Além do
republicano Bob Dole, o democrata Joseph Biden questionou a retó-
rica do seu correligionário Bill Clinton: “Conforme definida por essa
geração de líderes, segurança coletiva significa dar um jeito de culpar
uns aos outros pela inação, de maneira que todos tenham uma descul-
pa. Não significa enfrentarem juntos; significa esconderem-se jun-
tos.” (:349).

A Bósnia ensinou aos EUA as dificuldades de se operar na região e


enfrentar o governo sérvio. Quando o presidente iugoslavo Milose-
vic começou a perseguir sua minoria albanesa em Kosovo, Clinton
reagiu com a decisão inédita de atuar para prevenir o genocídio (e o
alastramento do conflito para países vizinhos, como Grécia, Albânia

498 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005


Resenha

e Macedônia), levando ao bombardeio da Sérvia pela Organização


do Tratado do Atlântico Norte (OTAN).

A Tragédia de Ruanda

Todavia, a Iugoslávia, com todas as suas tragédias, ficava na Europa –


foco principal da atenção internacional. Em Ruanda, perdida na África
Central, o interesse da imprensa foi pequeno e o genocídio que lá ocor-
reu em 1994 pode ter matado até 800 mil pessoas, em menos de um
ano. Os crimes executados pelos governantes hútus contra a minoria
tutsi aconteceram em um país sem recursos naturais importantes,
abandonado à própria sorte. A missão de paz da ONU presente em Ru-
anda chegou a ser quase completamente evacuada, para desespero de
seu comandante, o general canadense Roméo Dallaire, que ao pedir
reforços ouviu de um funcionário das Nações Unidas que aquela orga-
nização “não era a OTAN” e se encontrava incapaz de ajudá-lo.

Dallaire reconheceu a importância de mobilizar a opinião pública,


afirmando que “um repórter comunicando-se com o Ocidente valia
um batalhão em campo” (:406). De fato, na Bósnia, até mesmo uma
foto – como a imagem de uma jovem de 20 anos enforcada em uma
árvore, após se suicidar – podia fazer a diferença. Em Ruanda, nada
disso existia. O genocídio só foi detido pela ação de um grupo militar
rebelde, a Frente Patriótica Ruandesa.

O general voltou de sua missão com sérios problemas psicológicos;


hoje, vive à base de tranqüilizantes e foi dispensado do Exército ca-
nadense: “Minha alma está em Ruanda. Nunca voltou, e não sei se al-
gum dia voltará” (:443).

Ironicamente, o caso de Ruanda voltou a ser debatido recentemente,


por causa de um filme baseado na história verídica de um gerente de
hotel em Kigali que salvou diversas pessoas de serem assassinadas.
Se Ruanda não conseguiu ganhar as manchetes da seção internacio-
nal, talvez consiga melhor sorte nas páginas de cinema.

499
Resenha

No Banco dos Réus

A trágica experiência dos anos 1990 resultou na criação de tribunais


para lidar com os crimes de genocídio em diversos países. Power ana-
lisa o andamento das investigações, ressaltando o retorno do interesse
pelo trabalho do pioneiro Raphael Lemkin e o destaque obtido pelo
Tribunal de Haia, encarregado dos julgamentos nos Bálcãs. O réu mais
conhecido é o próprio ex-presidente Milosevic, entregue pela Sérvia
após ser derrubado do poder por uma insurreição popular.

Contudo, os tribunais ainda estão longe de se consolidar. Em muitos


casos, enfrentam problemas de infra-estrutura, pouca transparência
democrática, dificuldades de comunicação com os países que supos-
tamente protegem e assim por diante.

A autora observa, por exemplo, a resistência de países como EUA e


China em aderir ao recém-criado Tribunal Penal Internacional, cuja
atuação poderia ser um freio, ou ao menos um sinal de alerta, avisan-
do a possíveis genocidas que seus atos seriam julgados pela comuni-
dade internacional.

O livro de Samantha Power tornou-se uma das principais referências


sobre o tema do genocídio, rendendo à autora o prêmio Pulitzer de
2003 e o título de uma das cem pessoas mais influentes do mundo,
concedido pela revista Time. Seu estudo mostra que, embora os Esta-
dos sejam relutantes em agir durante crises humanitárias, podem ser
levados a isso em decorrência da pressão da opinião pública, incluin-
do aí imprensa e ONGs capazes de tornar os massacres parte da agen-
da política doméstica.

Power mantém-se um tanto cética quanto à idéia de estarmos em uma


era menos propensa aos genocídios, ressaltando que na década de
1990 já existia uma série de fatores que supostamente poderiam im-
pedir esse crime, como a atuação de ONGs internacionais de direitos
humanos, a difusão de meios de comunicação em massa em escala

500 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005


Resenha

global e mesmo a expansão da democracia para regiões anteriormen-


te marcadas por governos autoritários.

Aos leitores brasileiros, fica a frustração pela ausência de uma análi-


se sobre a questão do Timor Leste, onde a população de fala portu-
guesa e religião católica sofreu genocídio durante a ocupação indo-
nésia. A falta é ainda mais sentida por Power estar escrevendo uma
biografia de Sérgio Vieira de Mello, cuja carreira como funcionário
na ONU o levou diversas vezes a atuar em cenários de genocídio ou
reconstrução pós-conflito – como no Camboja, em Kosovo e como
administrador do Timor Leste.

Também seria interessante um exame mais detalhado do papel que as


organizações regionais podem desempenhar na prevenção e no com-
bate ao genocídio. Todos os casos analisados no livro foram crises
que tiveram impacto direto nos países vizinhos, em geral pelo êxodo
de refugiados. É de se esperar que articulações regionais fossem ca-
pazes de agir de modo mais decisivo do que as Nações Unidas.

Infelizmente, no início do século XXI permanecem as mesmas ten-


dências assustadoras do conflito étnico e do genocídio, como se evi-
dencia em Darfur, no Sudão – um crime que ocorre longe dos olhos
ocidentais, focados nas crises do Oriente Médio. Como afirma a au-
tora, cada ato de agressão não punido é um incentivo a futuros crimi-
nosos. O próprio Hitler, ao planejar o Holocausto, perguntou a seus
generais: “Quem hoje em dia fala dos armênios?”.

Notas

1. O termo “palavra g” é usado como uma maneira de se referir ao genocídio.


A expressão ironiza o medo que os governos têm de reconhecer que há um geno-
cídio em curso.

501
Resenha
Le Conseil de Sécurité dans
l’après 11 Septembre*
Serge Sur. Paris, LGDJ, 2004, 162 páginas.

Tarcisio Corrêa de Brito**

Principal órgão de uma organização quase sexagenária, o Conselho


de Segurança (CS) da Organização das Nações Unidas (ONU), ao
longo de décadas, sobreviveu às contradições e às tensões decorren-
tes de sua atuação, entre ambigüidades, fragilidade e sucesso. De um
ponto de vista mais amplo, inserida sua ação na perspectiva do siste-
ma de segurança coletiva, temas como o direito natural de legítima
defesa (artigo 51 da Carta da ONU), a responsabilidade principal do
CS em matéria de paz e segurança internacionais (artigo 24, capítulo
VII) e os limites e condições de controle de determinadas “situa-
ções” internacionais encontram-se, hoje, política, militar e midiati-
camente na ordem do dia da diplomacia multilateral. A eficácia des-
se sistema que repousa tanto sobre a fragmentação (sistemas de

* Resenha recebida em julho e aceita para publicação em setembro de 2005.


** Mestre em Filosofia do Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais; mestre em Relações Inter-
nacionais pela Faculdade de Direito da Universidade Panthéon-Assas, Paris; doutorando em Direito Pú-
blico, com especialidade em Direito Internacional na Faculdade de Direito da Universidade Pan-
théon-Assas; e juiz do Trabalho substituto do Tribunal Regional do Trabalho da Terceira Região, Minas
Gerais.

CONTEXTO INTERNACIONAL Rio de Janeiro, vol. 27, no 2, julho/dezembro 2005, pp. 479-491.

479
Resenha

equilíbrio) quanto sobre a aglomeração (sistemas de dominação) so-


mente será atingida a partir da realização de duas séries de objetivos
complementares: preventivo ou dissuasivo, de um lado, e corretivo
ou coercitivo do outro.

Conhecido pesquisador das questões relativas à paz e à segurança in-


ternacionais, o professor Serge Sur transita, com maestria, entre os
temas contemporâneos do direito internacional público e das rela-
ções internacionais, sendo hoje, reconhecidamente, um dos maiores
especialistas na área, em língua francesa. Sua mais recente obra, “Le
Conseil de Sécurité dans l’après 11 Septembre”, inserida no contexto
de continuidade de suas reflexões no domínio das relações internaci-
onais, oferece uma abordagem dinâmica do CS, convidando à refle-
xão e ao diálogo, em três perspectivas complementares: visão de lon-
ge (problemas permanentes em síntese), visão de perto (problemas
existenciais, considerando suas principais crises no pós-11 de Se-
tembro e as reações subseqüentes) e visão em movimento (dinâmica
e perspectivas da evolução e reforma do CS).

Sur considera que, visto de longe, o CS pode ser apreendido tanto a


1
partir da análise da ação dos membros permanentes (P5) , os “mes-
tres do sistema”, quanto da perspectiva do alcance e dos limites do
exercício do direito natural de legítima defesa previsto no artigo 51
da Carta da ONU. Na primeira perspectiva, torna-se evidente que as
deficiências estruturais do órgão se encontram calcadas na existência
do direito de veto de ordem constitucional. Do ponto de vista materi-
al, este direito, ainda que considerado em sua “lógica de fusível”,
funciona como um instrumento de discriminação legal entre os Esta-
dos-membros, contraditoriamente reconhecido no seio de uma orga-
nização fundada sobre o princípio da igualdade soberana de seus
membros (artigo segundo, parágrafo primeiro da Carta). Do ponto de
vista procedimental, a atuação dos membros do P5 acaba por criar
um “efeito de meio” imposto a cada membro do CS, uma lógica de
diplomacia multilateral, mesclando igualmente individualismo e co-

480 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005


Resenha

legiado, igualdade e hierarquia. Assim, no que diz respeito à compo-


sição do CS, prevalece a lógica de eficácia sobre a lógica de repre-
sentação: a primeira identifica-se com o poder efetivo de contribui-
ção político-militar de cada membro permanente (capacidade efetiva
de decisão e de ação); a segunda, com os membros não-permanentes
e o papel significativo a eles atribuído na composição de interesses
no caso de divergências no plano de decisão entre os membros do P5,
desde que não exercido, de maneira afirmativa, o direito de veto.

Superando essa aparente contradição inicial que privilegia a ação he-


gemônica do P5 em detrimento da igualdade formal entre os Esta-
dos-membros da ONU, Sur afirma, na segunda perspectiva, que a
discricionariedade e a arbitrariedade da atuação do Conselho é reco-
nhecida no capítulo VII da Carta (que trata da ação em caso de amea-
ça à paz, ruptura da paz e atos de agressão), além de sua lógica políti-
ca e hegemonia coletiva, baseadas mais nos interesses vitais do que
em uma consideração objetiva da paz e da segurança internacionais.
É, pois, esse aspecto que permite ao CS adaptar-se de maneira flexí-
vel à evolução dos problemas de segurança internacional, tais como
os conflitos regionais de caráter internacional, o hiperterrorismo e a
proliferação de armas de destruição massiva, o que explica por que se
preferiu criar um órgão político em vez de dotá-lo de uma natureza
judiciária ou de submeter suas decisões a tal controle.

Quanto à possibilidade desse controle, a resistência de Sur é infunda-


da, por algumas razões. Primeiramente, é importante observar que a
Corte Internacional de Justiça (CIJ) é um elemento do sistema para a
manutenção da paz estabelecido pela Carta da ONU, constituindo o
órgão judiciário principal do sistema onusiano. É inegável, ainda,
que a própria Carta distingue as competências conferidas ao CS e à
Corte no que diz respeito às questões relativas ao uso da força nas re-
lações internacionais e da legítima defesa, explicitadas pela CIJ em
vários casos por ela julgados: Companhia de Petróleo
Anglo-Iraniana (1952); Plataforma Continental do Mar Egeu

481
Resenha

(1978); pessoal diplomático e consular dos Estados Unidos em Teerã


(1980); atividades militares e paramilitares em Nicarágua (1984) ; e
questões de interpretação e de aplicação da Convenção de Montreal
de 1971 resultantes do incidente aéreo de Lockerbie (1992). Argu-
mentativamente, a Corte estabeleceu que, embora as questões sejam
submetidas ao CS, nada impede que a CIJ tome conhecimento delas,
podendo os dois procedimentos – político e judicial – serem conduzi-
dos paralelamente, situação, por certo, diferente daquela prevista no
artigo 12 da Carta.

Em segundo lugar, contrariamente à interpretação de Sur, a respon-


sabilidade principal reconhecida pela Carta ao CS nos moldes de seu
artigo 24 não significa exclusividade quanto ao sujeito da manuten-
ção da paz e da segurança internacionais, consagrando-se a idéia do
“paralelismo funcional” (artigo 36, parágrafo terceiro da Carta). Isso
demonstra, ainda, que o argumento da importância política do confli-
to, avatar moderno dos interesses de poder, não tem conseqüência ju-
rídica e não constitui obstáculo ao exercício de jurisdição da Corte.
Afinal, a política judiciária desta é inspirada nas exigências de manu-
tenção da paz. Inegavelmente, contudo, a utilização desse meio con-
tinuará sendo da livre escolha que emana da política jurídica exterior
dos Estados envolvidos. O que está em jogo não é uma análise de le-
gitimidade, mas de ilicitude com relação ao descumprimento das
obrigações oriundas da própria Carta, por eventual decisão do Con-
selho.

Isso não significa que se defenda a possibilidade de revisão de deci-


sões do CS, visto que a posição da Corte, nesse tema, já é conhecida
desde a decisão no Aviso Consultivo “Conseqüências jurídicas para
2
os Estados da presença contínua da África do Sul na Namíbia” . Por
certo, e reproduzindo a argumentação dessa sentença, se inexiste pre-
visão na Carta e no estatuto da CIJ autorizando a revisão judicial, a
mesma não é possível, não podendo valer-se o intérprete, para tanto,
da “teoria das competências implícitas”, distinguindo-se, pois, a na-

482 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005


Resenha

tureza política do Conselho e judicial da Corte. Contudo, com base


em suas funções, a Corte pode não se intimidar a se pronunciar pela
conformidade dos atos do Conselho com a Carta, tanto no caso da ju-
risdição contenciosa quanto dos avisos consultivos, o controle políti-
co sendo exercido pelos próprios Estados-membros a partir de uma
técnica de contra-poderes.

Visto de perto, Sur analisa o CS na linha de continuidade e/ou de rup-


tura da lógica de sua ação em quatro momentos paradigmáticos: a) da
crise de Cuba de 1962 ao fracasso das operações de paz na África, no
início dos anos 1990; b) a questão do Kosovo em 1999; c) o pós-11 de
Setembro de 2001; d) a segunda guerra dos Estados Unidos contra o
Iraque em 2003.

Se o período que vai de 1960 ao início de 1990 é marcado, grosso


modo, pelo confronto ideológico leste-oeste, dissuasão nuclear,
arms control, primeira guerra do Iraque e relativo fracasso de algu-
mas operações de paz na África (Somália, Serra Leoa, Libéria, Ruan-
da, República Democrática do Congo e Costa do Marfim), a solução
encontrada no âmbito do Conselho para “resolver” os conflitos no
Kosovo marcará uma antecipação das vicissitudes vivenciadas pelo
CS nos anos posteriores. Isso fica claro com a aprovação da Resolu-
ção 1.244 da ONU (1999) e com a atuação das forças da Organização
do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e da União Européia como
concorrentes do Conselho na questão da paz e da segurança interna-
cionais no Kosovo.

Já o tema do terrorismo internacional, embora não fosse inédito no


seio do CS, ganhará novo enquadramento após os atentados de 11 de
Setembro em Nova Iorque, com a aprovação das resoluções 1.368
(2001) e 1. 373 (2001), tema central da obra de Sur. A primeira reso-
lução considera o caso como questão de segurança internacional,
qualificando-o, com base no artigo 39 da Carta, como uma agressão
armada (mesmo que não se identificasse a ação direta ou indireta de

483
Resenha

um Estado) e reconhecendo aos Estados Unidos o exercício do direi-


to natural de legítima defesa, sem limitar, quanto à sua natureza e sua
intensidade, a reação militar americana. Mas é Sur quem observa
que, na condução da intervenção coercitiva propriamente dita, a ação
é realizada sob “autorização” do CS e não sob sua “autoridade”, o
que evidencia a sua efetiva “perda de responsabilidade” nessa gestão
da crise internacional.

Por outro lado, com a resolução 1.373 (2001), estabeleceu-se um ver-


dadeiro programa de prevenção e de luta contra o terrorismo interna-
cional, com um inegável poder normativo de natureza não legislati-
va. Seu texto comporta um programa amplo e obrigatório de coope-
ração para os Estados-membros e organizações internacionais, de
caráter civil, penal, policial e financeiro. Assim, seguindo-se uma ló-
gica contínua de enquadramento jurídico, a resolução 1.368 (que si-
tua a ação americana nos moldes da Carta) fundamenta a 1.373 (que
situa o Conselho no centro da ação jurídica), ainda que elas sejam
dissociadas em seus meios e técnicas de aplicação. Nesse caso, o que
se evidencia é que o artigo 51 da Carta acaba por exceder a competên-
cia do CS prevista no capítulo VII da mesma, constituindo a legítima
defesa uma modalidade particular de segurança coletiva, superior às
demais disposições da Carta.

Nessa linha de argumentação, o autor considera, ainda que de manei-


ra não explícita, que esse “enquadramento” condicionou todas as
ações internacionais subseqüentes quanto ao tema da paz e seguran-
ça (coletiva) internacionais, podendo-se citar, por exemplo, as reso-
luções 1.526 (2004), 1.530 (2004), 1.535 (2004) e 1.566 (2004). Po-
de-se dizer, contudo, que, com a resolução 1.530 (2004), o CS, con-
denando os atentados terroristas perpetrados em Madri no dia 11 de
março de 2004, de maneira apressada e equivocada, mas na mesma
lógica das resoluções que identificaram o Talibã e a Al Qaeda como
grupos terroristas, errou ao apontar o grupo radical basco ETA como
o principal responsável pelos atentados, constatação que se provou

484 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005


Resenha

falsa a posteriori. Nota-se, portanto, os riscos dessa interpretação do


artigo 51 e da possibilidade política de generalizar, flexibilizando ao
máximo e descontroladamente, a identificação de determinados gru-
pos terroristas. Em outra perspectiva, o reconhecimento pela Espa-
nha da competência universal de sua jurisdição para crimes contra a
humanidade e o início do julgamento de alguns dos implicados no
atentado demonstraram a importância reconhecida por esse país eu-
ropeu a esse modo pacífico de solução de controvérsias.

Por outro lado, a administração da crise iraquiana pelo CS, entre os


conflitos de 1991 e 2003, demonstrou a evolução dessa “situação” re-
gional que, segundo Serge Sur, não se fundamenta exclusivamente
na continuidade das resoluções motivadas pelos atentados de 11 de
setembro de 2001, a não ser pela inclusão do Iraque no denominado
“eixo do mal”. Relembre-se, por exemplo, a resolução 1.441 (2002),
que organizou um novo processo de inspeções coercitivas com o ob-
jetivo de realizar o desarmamento iraquiano e assegurar a eficácia
dos mecanismos de verificação do sistema onusiano. O debate públi-
co internacional decorrente disso se dividiu entre a posição america-
na (sistema de verificação negativa), com apoio britânico e de outros
países europeus, que pretendia o emprego imediato da força armada,
e a posição franco-germânica, que não recusava totalmente o recurso
à guerra, mas subordinava-o, como ultima ratio, a uma decisão do
Conselho se comprovada “flagrante” a violação pelo Iraque de suas
obrigações internacionais (sistema de verificação positiva).

Apesar de a ação unilateral americana, que se seguiu, parecer despre-


zar a responsabilidade principal do Conselho em matéria de paz e se-
gurança internacionais, Sur afirma que não se contestou o fato de
esse órgão agir (otimização restritiva) na “organização” da luta inter-
nacional contra o terrorismo. O novo dado que surge nesse contexto é
o da “guerra preventiva” ou “guerra por escolha ou por necessidade”,
que modifica, de certa maneira, a amplitude do recurso pretendido à
força. Se for apreendida institucionalmente, a resolução 1.483

485
Resenha

3
(2003) consagrará a criação de uma autoridade de ocupação – prin-
cipal responsável pela promoção do bem-estar da população iraquia-
na, assegurando uma administração eficaz do território e contribuin-
do ainda para restabelecer a segurança e a estabilidade, além de criar
condições de reconstrução futura do Iraque – e de um representante
especial do secretário-geral da ONU. Isso evidencia que, no conjunto
dos processos de reconstrução e de reconstituição de uma autoridade
política iraquiana, a atuação do CS não é nem residual, nem subalter-
na, ainda que permaneça, também em matéria de desarmamento, vir-
tual.

Para além da análise de Sur, no que diz respeito à situação precária do


Iraque, passadas as eleições gerais do início de 2005, permanece evi-
dente a dificuldade de administração da crise interna iraquiana pela
coalizão internacional e pela própria ONU, não se podendo esquecer
ainda do atentado que vitimou, em 2004, o primeiro representante es-
pecial no Iraque, o diplomata brasileiro Sérgio Vieira de Mello. Esse
contexto de instabilidade interna (atentados e seqüestros de estran-
geiros) desafia uma nova reflexão sobre os limites e conseqüências
do exercício do direito natural de legítima defesa (sua extensão “polí-
tica” a conflitos em outras regiões, como, por exemplo, no caso da
Rússia, Palestina, Afeganistão e da ação contra os “rogue states” –
Coréia do Norte, Síria e Irã –, integrantes do “eixo do mal”) e da pre-
valência da defesa de “interesses vitais” (realismo estratégico) con-
tra a implementação das obrigações convencionais internacionais
em vigor.

Vista em movimento, quanto às dinâmicas e perspectivas futuras do


CS, segundo Serge Sur, a discussão organiza-se em quatro itens: (I) a
continuação das ações ordinárias desse órgão no que diz respeito à
renovação e à ampliação das operações de paz; (II) os vínculos entre
as instituições internacionais nos domínios da segurança, entre a co-
operação e a concorrência; (III) a pretendida reforma do Conselho; e

486 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005


Resenha

(IV) a conservação, pelo CS, e para o futuro, de suas capacidades e


virtualidades.

Se é possível mencionar a existência de “gerações” de operações de


manutenção da paz fundadas nos capítulos VI e VII da Carta, por ou-
tro lado, na perspectiva de uma cooperação/concorrência na ação do
Conselho com outros órgãos da ONU ou organizações internaciona-
is, o especialista francês aponta o precedente histórico da Resolução
Acheson de 1950 perante a Assembléia Geral da ONU; a exclusão do
exercício do direito de veto nos limites propostos no Relatório
Evans-Sahnoun de 2001; a possibilidade discutível de controle juris-
dicional dos atos do Conselho pela Corte Internacional de Justiça e
mesmo a influência das organizações não-governamentais (ONGs)
no estabelecimento da Corte Penal Internacional. Como alternativas
a essa concorrência, discute-se o papel da Organização do Tratado do
Atlântico Norte (OTAN) como novo instrumento institucional de se-
gurança internacional; o G7/8 como instância de “concertação inter-
nacional”; e a Organização para Segurança e Cooperação na Europa
(OSCE) como idéia de uma “segurança cooperativa” herdada da
Conferência de Segurança e Cooperação na Europa (CSCE). Impor-
ta ainda relembrar a competência do Conselho em criar, como órgãos
de cooperação na manutenção e/ou restabelecimento (prevenção/co-
erção) da paz internacional, os tribunais penais ad hoc e especiais no
caso de violações ao direito humanitário internacional, verdadeiro
princípio/regra de jus cogens (ordem penal internacional e compe-
tência penal universal).

Em princípio, é inegável a flexibilidade do Conselho em criar tribu-


nais internacionais ad hoc, baseando-se em uma lógica não de paz
pelo direito, mas de considerações de ordem política, segundo a
apreciação e discricionariedade que são próprias ao Conselho. Serge
Sur poderia, pois, completar sua análise acrescentando que a criação
desses tribunais representa o fracasso do sistema de segurança coleti-
va, o que significa que tanto o mecanismo dissuasivo não funcionou

487
Resenha

quanto, no mais, o próprio Conselho não conseguiu impedir ou pre-


venir os comportamentos individuais ou coletivos “tipificados”
como (1) crime contra a paz, (2) de genocídio, (3) contra a humanida-
de ou (4) crime de guerra. Revitaliza-se, assim, a teoria da responsa-
bilidade individual originária dos tribunais militares de Tokyo e de
Nuremberg de 1945 e 1946.

Contudo, nota-se que o próprio CS não tem conseguido, embora sua


natureza assim o impusesse, a cooperação dos Estados no caso dos
tribunais penais internacionais ad hoc, o que tem retardado os traba-
lhos, da fase de inquérito e de entrega dos acusados a essas jurisdi-
ções internacionais (impossibilidade de julgamento por contumácia)
à finalização do procedimento e decisão final, após recurso. As su-
cessivas resoluções sobre esse tema demonstram que um compro-
misso internacional efetivo ainda não foi encontrado. A própria evo-
lução e desenvolvimento desses tribunais penais ad hoc para a
ex-Iugoslávia e para Ruanda, quando analisados de perto, demons-
tram a sua precariedade institucional, que representará um desafio,
inclusive, para a Corte Penal Internacional, diante da posição ameri-
cana, respaldada pelo próprio Conselho, e da possibilidade de cria-
ção de outros tribunais ad hoc concorrentes para situações especiais,
a critério do mesmo.

No que diz respeito à reforma do Conselho, o que se encontra em


jogo, segundo Sur, é o “espírito” mesmo da instituição, por ser inexe-
qüível o concerto político que prevalece apenas em um contexto de
paz estrutural. Para o autor, uma reforma calcada no estabelecimento
de um “regionalismo de descentralização” incluiria: fazer o exercí-
cio do veto preceder de um “concerto regional” ou de outro processo
de decisão formal; substituí-lo pela técnica do consenso, relativizan-
do o exercício desse direito em decorrência da ampliação do número
de membros permanentes. Na verdade, tais proposições contornam a
“lógica de eqüidade” que emana dessa reforma, contrária e incompa-
tível com a natureza desse órgão. Outra proposta a ser considerada é:

488 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005


Resenha

a criação de conselhos de segurança regionais ou de outro(s) órgão(s)


ad hoc de natureza consultiva, mantendo-se, porém, a competência
de decisão do CS. Esse procedimento poderia, pois, atualizar de ma-
neira menos radical a composição do Conselho, sem representar, na
base, um processo de fragmentação ou de desmembramento do ór-
gão.

Atualmente, a discussão da reforma do Conselho com a inclusão do


G4 (Brasil, Alemanha, Japão e Índia) sofre resistências regionais por
parte da Argentina, Colômbia, Nicarágua, México, Venezuela, Itália,
China e Paquistão, com base na acusação de que os países do G4 não
representam legitimamente as correspondentes regiões (América,
Europa e Ásia). Os países do G4 enfrentam ainda a falta de apoio do
continente africano, que procura apresentar candidatos próprios en-
tre Egito, Nigéria, África do Sul, Argélia, Quênia e Senegal. Recen-
temente, ainda em junho de 2005, a ação diplomática do G4 incluiu
até mesmo a tentativa de submeter uma proposta ao Conselho de Se-
gurança de renúncia por quinze anos do exercício do direito de veto,
propondo a ampliação do número de membros permanentes do CS
de cinco para onze.

Nesse contexto, por exemplo, o Brasil mobilizou-se quando do co-


mando da Força criada no âmbito da Missão das Nações Unidas para
a Estabilização no Haiti (Minustah), instituída pela resolução
S/RES/1542/2004 (que substituiu a Força Multinacional Interina es-
tabelecida pela resolução S/RES/1529/2004), prorrogada até junho
de 2005. Recentemente, a decisão de enviar militares nor-
te-americanos para a estabilização do Haiti reforçou a acusação de
falta de profissionalismo e de coesão do comando do general brasi-
leiro Augusto Heleno Ribeiro Pereira (substituído pelo General Ura-
no Bacellar), o que compromete a “publicidade eleitoral” em torno
dessa operação, que representa o maior contingente enviado ao exte-
rior pelo Brasil desde a Segunda Guerra Mundial.

489
Resenha

Sur afirma que o CS não pretende ser um espaço de representação,


mas de eficácia. Com isso, a contestável atuação da força internacio-
nal comandada pelo Brasil no Haiti, dentro, ainda, do contexto de
fracasso generalizado das operações de paz onusianas no continente
africano, torna discutível a reforma apressada e não refletida sobre a
composição dos membros permanentes do CS. Ainda que os Estados
que integram o P5 representem a lógica do pós-Segunda Guerra
Mundial, dificilmente se encontrará, para o respeito à eficácia de
suas decisões, uma “nova” composição que faça coabitar a legitimi-
dade decorrente de maior representação e a eficácia decorrente do
poder de mobilização para as situações que violem a paz e a seguran-
ça internacionais. O livro de Sur, por outro lado, tem o mérito de de-
monstrar que, mesmo a hiperpotência norte-americana, contra a qual
parece inexistir recurso, não prescinde das instâncias multilaterais e
do Conselho de Segurança enquanto instrumentos de legitimação,
pois esta não se fundamenta única e exclusivamente no seu exercício
individual de poder.

Por esse motivo, e conclusivamente, Serge Sur constata que o CS se


torna um instrumento complexo e sutil de cooperação entre as gran-
des potências e uma “câmara de eco” para os pequenos países. É um
catalisador, fonte de legitimidade internacional e não um mero ins-
trumento de hegemonia de um único Estado. Por outro lado, esse ór-
gão da ONU tem a necessidade de ser alimentado por fontes exterio-
res, principalmente pelos Estados. Criado em um momento de urgên-
cia, alterna hoje, instrumentalmente, a necessidade de correção de
(novas) situações e a adoção de medidas repressivas, ainda que pre-
cárias do ponto de vista de sua atuação operacional, baseada, sobre-
tudo, em uma lógica de eficácia.

A obra de Serge Sur representa, pois, de maneira inegável, um instru-


mento de consulta e de reflexão fundamental na apreensão do tema
central da paz e da segurança nas relações internacionais contempo-
râneas.

490 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005


Resenha

Notas

1. República da China, França, Rússia, Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlan-


da do Norte e Estados Unidos da América.
2. CIJ – Corte Internacional de Justiça. (1971), Aviso Consultivo, 21 de junho.
Recueil, pp. 16 e ss.
3. Representantes permanentes do Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do
Norte e dos Estados Unidos da América enquanto potências ocupantes agindo
sob comando unificado, em virtude do direito internacional aplicado.

491
Autores

Ana Cristina Araújo Alves mestre em Relações Internacionais pelo Instituto de Relações
Internacionais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (IRI/PUC-Rio,2005) e
professora da graduação em Relações Internacionais do IRI/PUC-Rio.

Andrés Malamud PhD em Ciência Política e Ciências Sociais pelo European University Institute,
em Florence. Atualmente, ocupa o cargo de pesquisador-assistente no Centro de Investigação e
Estudos de Sociologia do Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa, em Lisboa. É
também professor assistente de Ciência Política na Universidade de Buenos Aires. Suas áreas de
interesse são política latino-americana e européia, integração regional, partidos políticos e
comparação das instituições democráticas.

Gustavo Seignemartin de Carvalho mestrando em Relações Internacionais pelo Instituto de


Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (IRI/PUC-Rio).

Luis Fernando Ayerbe doutor em História pela Universidade de São Paulo(USP)e livre docente pela
Universidade Estadual Paulista(Unesp).Atualmente, é professor do Departamento de Economia da
Unesp, campus de Araraquara,e do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da
Unesp,Unicamp e PUC-SP.

Luís de Sousa PhD em Ciência Política e Ciências Sociais pelo European University Institute,
Florence. Atualmente, ocupa o cargos de pesquisador no Programa de Ciência Política no Research
School of Social Sciences of the Australian National University e de pesquisador assistente no
Centro de Investigação e Estudos de Sociologia do Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da
Empresa, em Lisboa.Suas áreas de interesse são política européia, parlamentos regionais, partidos
políticos,corrupção partidária e regulação política.

Marcelo Valença mestrando em Relações Internacionais pelo Instituto de Relações Internacionais da


Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (IRI/PUC-Rio).

Marco Antonio de Meneses Silva mestre em Relações Internacionais pela University of Kent at
Canterbury. Atualmente, é professor no Centro Universitário de Brasília e coordenador do curso de
Relações Internacionais.

Maurício Santoro doutorando em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio
de Janeiro (Iuperj), pesquisador do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (I B A S
E) e professor da pós-graduação em Relações Internacionais da Universidade Candido Mendes.

Tarcisio Corrêa de Brito mestre em Filosofia do Direito pela Universidade Federal de Minas
Gerais;mestre em Relações Internacionais pela Faculdade de Direito da Universidade Panthé on-
Assas, Paris; doutorando em Direito Público, com especialidade em Direito Internacional na
Faculdade de Direito da Universidade Panthé on-Assas; e juiz substituto do Trabalho do Tribunal
Regional do Trabalho da Terceira Região desde outubro de 1998.

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