A ars historica em debate nos Dialoghi

della Historia de Francesco Patrizi

Helvio Moraes
Universidade do Estado de Mato Grosso

Resumo
Este estudo tem o objetivo de apresentar os Diece dialoghi della Historia
de Francesco Patrizi da Cherso, publicados em Veneza em 1560. Nas primeiras
partes, fornecemos uma síntese das questões relativas ao gênero da ars historica e
da historiografia humanista até Maquiavel, e buscamos compreender o ambiente
intelectual em que os Dialoghi foram escritos: a Accademia della Fama, na Veneza
pré-contra-reformista. Tais considerações servirão como fundamento para nossa
leitura da obra, apresentada na última parte.

Palavras-chave
Ars historica, Historiografia Humanista, Filosofia da História, Neoplatonismo
Renascentista, Retórica.

Helvio Moraes é professor da Universidade do Estado de Mato Grosso – Unemat. É

membro do grupo de pesquisa U-Topos, onde, orientado pelo Prof. Dr. Carlos Eduardo
Ornelas Berriel, prepara sua tese de doutorado, que prevê o estudo e a tradução dos Diece
Dialoghi della Historia de Francesco Patrizi da Cherso. No mestrado, traduziu e analisou,
do mesmo autor, o pequeno tratado utópico La cittá Felice, sob a mesma orientação. É co-
editor da revista Morus – Utopia e Renascimento. É bolsista do CNPq – Conselho Nacional
de Desenvolvimento Científico e Tecnológico.
HELVIO MORAES

I
O gênero da ars historica teve uma duração relativamente breve
no início da era moderna, difundindo-se, sobretudo, na Itália, durante
os anos do Concílio Tridentino e adentrando o século XVII, para então
exaurir-se em enunciações carentes de vigor, no momento em que a
tentativa de se determinar regras para a escrita historiográfica, assim
como a reflexão sobre a utilidade e o significado da História (próprias
do gênero), cedem lugar ao método, sendo possível aplicarmos, a partir
daí, o termo Filosofia da História, quando o conhecimento histórico
começa a ser visto como um legítimo objeto de investigação filosófica.
É também relativamente recente o interesse despertado pela ars historica,
assim como, somente após a década de 80, assistimos à proliferação de
estudos sobre a historiografia humanista ou concernentes a reflexões
sobre a História, em autores que vão de Petrarca a Campanella (para
nos limitarmos à Itália), passando por nomes como Coluccio Salutati,
Leonardo Bruni, Lorenzo Valla, Giovanni Pontano, Sperone Speroni,
entre tantos outros. Incisivo e resistente parece ter sido, portanto, o juízo
de Fueter (1911) sobre a irrelevância de tais escritos para a concepção
historiográfica moderna, primeiramente pela primazia dos artifícios
retóricos utilizados pelos humanistas, privilegiando, a seu ver, questões
de estilo em detrimento da verdade do relato historiográfico, e, em
segundo lugar, pelo nítido distanciamento, no período, entre teóricos
da historiografia e historiadores – o trabalho dos primeiros em nada
interferindo na produção destes. Cochrane procura preencher a lacuna
deixada por Fueter, em seu Historians and Historiography in the Italian
Renaissance (1981), um catálogo volumoso e exauriente de historiadores
do período e suas obras. Porém, o pequeno espaço concedido aos
tratadistas de artes historicae parece trair certa intolerância em relação às
primeiras tentativas de elaboração de uma teoria da História, parecendo
até mesmo ecoar alguns passos de Fueter, permanecendo aquém de
alguns textos pioneiros, que se propõem a investigar questões relativas à
concepção historiográfica no Renascimento, como os de Spini (1948),
Vegas (1964) e Cotroneo (1971). Uma nova direção para a abordagem
do problema será apontada por Vasoli (1992), num penetrante estudo
em que sugere a supressão desta linha que separa “a ‘narração’ histórica
e a reflexão sobre o seu caráter e sua natureza”, tendo em vista que
tais aspectos são “próprios de uma cultura que era comum tanto aos
historiadores quanto aos teóricos, se reportava às mesmas fontes e levava
em consideração os mesmos ‘modelos’” (VASOLI, 1992, p. 6). Isto lhe
permite justapor, em um mesmo exame, autores de ambos segmentos,
e lhe possibilita observar que nem é estranha ao historiador certa atitude
especulativa (mais facilmente perceptível nos prefácios de seus escritos
historiográficos), nem escapam ao teórico questões relativas à escrita da
História.
Ocupa um lugar importante nas reflexões destes estudiosos os
Diece dialoghi della Historia, do filósofo Francesco Patrizi da Cherso

270
A ARS HISTORICA EM DEBATE NOS DIALOGHI DELLA HISTORIA DE FRANCESCO PATRIZI

(1529-1597), pela polêmica que instaura contra a tradição historiográfica

que o precede, propondo (ou buscando propor) o desligamento da
História do campo disciplinar das artes do discurso, que tem como
matéria principal a Retórica. Tais diálogos são o objeto de nosso estudo,
em que tentaremos compreender a relação antagônica entre Patrizi e
outros autores de artes historicae, e as idéias que avança a partir desta
oposição.

II
Partimos da constatação mais imediata de que a inserção
dos Dialoghi no amplo debate em torno da crítica histórica, que se
intensificará na segunda metade do Cinquecento, concorre para uma
revisão dos pontos centrais da literatura concernente ao gênero da ars
historica. Ao mesmo tempo, Patrizi aponta seus limites e empreende uma
inquieta busca, não de todo conclusiva, por uma nova teoria da História,
mais abrangente e autônoma, como primeiro passo de uma “sua tão alta
empresa de toda a eloqüência” (PATRIZI, 1560, p. A2)1.
Quase a totalidade da historiografia humanista precedente, que
remonta aos escritos de Leonardo Bruni, é fortemente marcada pelos
postulados clássicos de Aristóteles e Cícero, daí sua forte relação (Patrizi
diria subordinação) com a Retórica. Grande importância é atribuída aos
exempla, e a História, desta maneira, passa a ser vista como um vasto
repertório de grandes feitos realizados por ilustres personagens, que,
manipulados de forma adequada, servem a várias finalidades, que vão
desde a glorificação de príncipes e cidades até a edificação moral do
homem. Atenção a um estilo elegante, um modo de “vestir a História
de forma a torná-la uma forma de literatura” (ULLMAN, 1973,
p. 326), em contraste com o estilo das crônicas medievais, assim como
um cuidado maior com a dispositio do discurso histórico (ausente nos
anais), são aspectos que determinam o caráter de tais escritos. De fato,
parece haver uma primazia da forma sobre o conteúdo, uma precedência
do “apelo sensual (...) sobre o método racional” (REYNOLDS, 1992,
p. 115), característico do discurso de persuasão, que tende a fornecer ao
relato uma combinação de voluptas e utilitas (KELLEY, 2000, p. 748). 1
De fato, Patrizi leva a cabo
Quanto à reflexão do primeiro humanismo sobre a História, tal “impresa”, a seguir, com a
podemos dizer que é também amplamente inspirada nos cânones da publicação dos Dieci Dialoghi
della Retorica, em 1562, e,
Antigüidade e que passou por muito tempo despercebida justamente por fim, dos diálogos Della
por não encontrar-se compilada em escritos exclusivamente dedicados Poetica, cujas primeiras partes
ao assunto, mas, sim, dispersa nos prefácios e dedicatórias das obras (Deca istoriale e Deca disputata)
são publicadas em 1586,
historiográficas, ou em cartas, discursos, invectivas, sendo que, somente ainda que leve mais dois anos
no fim do Quattrocento, será publicada a primeira ars historica tout court, o para terminar o conjunto de
diálogo Actius de Giovanni Pontano, síntese das discussões humanistas diálogos, que permaneceram
inéditos até 1969, quando
precedentes sobre o tema, em que se estabelece um forte vínculo entre
então receberam uma edição
História, Poesia e Retórica, seguindo, principalmente, os preceitos de organizada por Danilo Aguzzi
Cícero, Quintiliano e Luciano de Samósata. De forma geral, embora Barbagli.

271
HELVIO MORAES

estes primeiros humanistas salientem a importância da veracidade do

relato histórico, para muitos o emprego do ornamentum e da amplificatio
é visto como um expediente legítimo, principalmente quando se recorre
ao uso de discursos (que será tema polêmico em tratados dos séculos
seguintes), na maior parte dos casos, para mostrar e explicar as diferentes
posições de adversários quando em debate ou na iminência de batalhas,
ou até mesmo para revelar juízos do próprio historiador.
Tais considerações, contudo, não se pretendem julgamentos
negativos sobre o modus operandi dos humanistas. São, antes, constatações
da forma como estes intelectuais elaboram seu pensamento, do modo
como, numa cultura solidamente fundada na tradição retórica, dão início
a novas indagações acerca do conhecimento histórico, reivindicando até
mesmo, em certos casos, uma posição de autonomia da História em
relação aos demais campos do saber humano. Extremamente atual
(embora pouco lembrado) parece-nos o estudo de Seigel (1968), em
que percebe haver uma busca constante, por parte dos humanistas, de
unir sabedoria e eloqüência de forma tal que a “fragilidade” da primeira
– o conhecimento filosófico, por si mesmo, não teria forças suficientes
para agir sobre os homens – fosse amparada pelo poder persuasivo
da segunda, e, inversamente, guiada pela filosofia, a eloqüência seria
colocada a serviço da verdade, o que impediria seu uso para fins ignóbeis.
Além disto, como afirma Vasoli (1992, p. 7), a acusação que se faz aos
humanistas por terem

concebido a História no âmbito das artes do discurso (...) tem menos

fundamento do que frequentemente se imagina, seja porque não considera
o dado óbvio de que qualquer operação historiográfica, no fim, tem
sempre a ver com os instrumentos da argumentação, seja porque esquece
que, justamente por meio de sua legitimação como uma das facultates do
discurso, a historiografia conquistou uma sua própria autonomia.

III
Um procedimento diferente começa a se operar em Florença, com
os escritos de Maquiavel, embora sejam, em grande medida, influenciados
pela historiografia humanista que os precedera. Como seus antecessores,
Maquiavel acredita numa utilidade da História, na sua capacidade de
ensinar algo. Porém, “trata-se de evocar o passado, não mais com fins
genéricos, mas específicos, em função de uma explicação do presente e,
sobretudo, de um aconselhamento à ação política” (PLASTINA, 1992,
p. 51). O próprio autor explicita tal convicção no início dos Discorsi,
que podem ser vistos como uma aplicação desta idéia:

“(...) achei necessário redigir, a propósito de cada um dos livros de Tito

Lívio (...), uma comparação entre fatos antigos e contemporâneos, de
modo a facilitar-lhes a compreensão. Deste modo, meus leitores poderão
tirar daqueles livros toda a utilidade que se deve buscar no estudo
histórico.” (MAQUIAVEL, 1979, p. 19)

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A ARS HISTORICA EM DEBATE NOS DIALOGHI DELLA HISTORIA DE FRANCESCO PATRIZI

De fato, Maquiavel restringe os “ensinamentos” da História ao

campo da ação política2, apontando para uma mudança do emprego
dos exempla, do ponto de vista do comportamento individual, para o
entendimento da situação política como um todo, conforme explica
Bouwsma (1984, p. 21):
Quando a História deixou de ser ensinamento ético por
meio de exemplos, mas política, os fatos reais e as conexões entre si
tornaram-se importantes: e não somente os fatos do passado, que agora
solicitavam investigação e meditação cuidadosas, mas também aqueles
pertencentes ao presente, para os quais as lições do passado poderiam
ser, esperançosamente, aplicadas.
Embora alguns estudiosos tendam a circunscrever o pensamento
de Maquiavel ao âmbito da Filosofia Política (dada esta posição
de subordinação que assinala ao conhecimento histórico), não há
como ignorar sua contribuição para as reflexões em torno do tema da
História. Primeiramente, em alguns escritos que evidenciarão seu caráter
eminentemente público e esta visão mais abrangente da utilitas (sendo
os Dialoghi de Patrizi os primeiros na Itália, contemporâneos do de Fox-
Morcillo e presentes em certos pontos do método proposto por Bodin3).
Outro ponto se refere à noção de que há, no presente, situações
movidas por causas semelhantes às do passado e que, por isso, podemos
saber como agir, de acordo com as “lições” dos antigos. Tal noção
pressupõe uma visão cíclica da História, plenamente elaborada no Livro
V da História de Florença:

Costumam as províncias, as mais das vezes, nas mudanças a que estão

submetidas, da ordem vir à desordem, e novamente, depois, passar da
desordem à ordem: porque não estando na natureza das coisas deste
mundo o deter-se, quando chegam à sua máxima perfeição, não mais
podendo se elevar, convém que precipitem; e de igual maneira, uma vez
caídas e pelas desordens chegadas à máxima baixeza, necessariamente
não podendo mais cair convém que se elevem: assim, sempre do bem
se cai no mal e do mal eleva-se ao bem. (MAQUIAVEL, 1998, p. 229, 2
“Quem estudar a história
grifo nosso) contemporânea e da
antiguidade verá que os
O termo grifado parece servir como um atenuante a esta visão mesmos desejos e as mesmas
tão fatalista da História. Com efeito, Maquiavel já havia proposto, paixões reinaram e reinam
ainda em todos os governos,
nos Discorsi, uma solução: sua teoria da renovação das instituições, um em todos os povos. Por isto
“retorno ao seu princípio” (MAQUIAVEL, 1979, p. 309), estritamente é fácil, para quem estuda
dependente da ação humana. Como exemplo contemporâneo, a com profundidade os
acontecimentos pretéritos,
estabilidade de Veneza devia-se ao fato de poder “refazer o governo a
prever o que o futuro reserva
cada cinco anos” (ibid., p. 311). Assim, segundo Heller (1982, p. 268), a cada Estado (...)” (grifos
“a necessidade global do “movimento cíclico” não está em contradição nossos) (MAQUIAVEL,
com a possibilidade de, em casos concretos, este movimento poder não 1979,133).

se realizar”. E, neste caso, o conhecimento histórico é fundamental, 3

A influência de Patrizi
a ponto de podermos ler os Discorsi, na sua “comparação entre fatos no pensamento de Bodin é
antigos e contemporâneos”, como uma proposta de renovação das sugerida por KRISTELLER
instituições da Florença republicana. (1999, p. 114) e REYNOLDS
(1992, p. 134).

273
HELVIO MORAES

4
Talvez o exemplo maior seja
o de Gasparo Contarini, que
promovera a reelaboração,
em moldes humanistas, do
que comumente chamamos
“Mito de Veneza”, destinada
a ter uma ampla difusão não
só na Itália como em várias
partes da Europa e pela qual
a imagem da Sereníssima
torna-se o paradigma da
melhor efetivação dos
ideais republicanos. O De
magistratibus et republica
Venetorum configura-se como
uma grande sistematização
dos elementos mais caros
ao patriciado veneziano,
uma renovada confiança na
extraordinária durabilidade
da república e na solidez de
suas instituições, que não
sucumbiram mesmo após uma
experiência tão traumática
quanto a da derrota de
seu exército contra a Liga
de Cambrai, na batalha
de Agnadello, em 1509.
Este episódio, juntamente
com outras situações que
representaram sérios riscos à
estabilidade política veneziana
por todo o século XVI – como
a crescente ameaça, por parte
de Roma, de impor limites
não só à sua autonomia
eclesiástica, mas também à sua
atuação política e econômica,
principalmente após a última
reunião do Concílio de Trento,
e a perda da hegemonia no
comércio de especiarias para
os portugueses – deveria
suscitar uma busca por uma
atitude mais realista em relação
ao conhecimento histórico.
No entanto, ao invés de uma
apreciação crítica de seus
métodos historiográficos, o
que percebemos é uma postura
contrária: a exaltação de seus
valores de forma estática,
sistemática, aliada a um
revigoramento do sentimento
cívico. De fato, já em 1517,
Veneza havia recuperado
a grande maioria de suas
possessões em terraferma,
perdidas para as diversas
potências que compunham a
Liga. Assim, o que poderia
Somente na segunda metade do Cinquecento (à distância de
aproximadamente quatro décadas de Maquiavel), percebe-se, no Vêneto,
uma tendência à abordagem histórica em termos análogos ao do pensador
florentino. A historiografia anterior, assentada sobre os fundamentos
aristotélicos do Studio de Pádua, caracteriza-se por uma repetição de
temas relacionados à defesa dos ideais aristocráticos da Serenissima,
propostos na forma convencional da ars historica4, vista acima. Segundo
Bouwsma (1984, p. 164-8), esta nova tendência está ligada ao círculo
de Patrizi – para o qual “Veneza certamente está começando a parecer
parte do mundo temporal” –, e se torna evidente com a publicação de
seus Dialoghi della historia, que discutiremos a seguir.
IV
Os Dialoghi della historia5 marcam o início de uma “segunda fase”
da vida intelectual de Patrizi, quando, após a conclusão de seus estudos
em Pádua, por volta de 1553, se estabelece em Veneza, em 1556. Neste
ínterim, um retorno à sua cidade natal, Cherso, e uma viagem a Roma,
para resolver uma questão litigiosa impetrada contra um tio, é tudo o
que se sabe da vida do filósofo (p. 54v-55r). De volta ao Vêneto, Patrizi
estreitara ou renovara as suas relações com aqueles homens de letras e de
cultura que, na capital lagunar, haviam encontrado o lugar mais propício
para a sua tumultuosa atividade poligráfica e editorial, favorecida pela
excepcional expansão da tipografia e das várias iniciativas acadêmicas
promotoras de uma cultura mais aderente às necessidades do patriciado
e da burguesia. (VASOLI, 1989, p. 26-7)
Vasoli se refere, especificamente, à relação de Patrizi com a
Accademia della Fama. Seu nome aparece entre os signatários da Accademia
em 1559, e tudo leva a crer que dela tenha diretamente se desvinculado
apenas para assumir o cargo de governador das terras do conde de Zaffo,
em Chipre, no ano seguinte.
Fundada em 1557 por Federico Badoer6, nobre veneziano que
ocupou cargos importantes, entre os quais o de embaixador7, a Accademia
não chegaria a ter cinco anos de existência. Contudo, abarcou um ousado
programa de renovação cultural, baseado na proposta de uma ampla
difusão, um “volgarizzamento”, de textos clássicos e contemporâneos,
de forte teor platônico8. Promovido, em grande parte, pela própria
intelectualidade aristocrática veneziana, dele não se excluem fortes
intenções de ação política. Segundo Bolzoni (1980, p. 26),
A cultura elaborada e fornecida pela Accademia propunha-se, de fato, não
apenas genericamente, elevar o prestígio da República no exterior, mas
também contribuir para a formação de seu pessoal político e diplomático.
Os crescentes reconhecimentos oficiais concedidos à Accademia por parte
das autoridades demonstram que tal projeto não era presunçoso.

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A ARS HISTORICA EM DEBATE NOS DIALOGHI DELLA HISTORIA DE FRANCESCO PATRIZI

Além disso, num momento em que a Igreja da Contra-Reforma ser visto como prenúncio de
um colapso iminente, caso
começa a insurgir-se mais fortemente contra seus opositores, às vésperas
não houvesse uma rápida
da primeira lista do Index (1559) e pouco antes da decisiva reunião do adaptação da República às
Concílio de Trento (1562-3), a Accademia conserva uma atmosfera de vicissitudes do momento, foi
significativa tolerância religiosa, abrigando ou mantendo vínculos com sentido como uma horrenda
prova a que, após certos
vários intelectuais de pensamento não ortodoxo9. percalços, triunfou. Trata-se
Junto à Accademia, Patrizi faz alguns trabalhos de editoração de algo muito mais próximo
(prepara e comenta as Rime de Luca Contile e parte das Opere de Giulio de uma convicção religiosa,
o que fortalece a crença no
Camillo Delminio). O mais importante, porém, é ressaltar a influência mito e a necessidade de sua
deste ambiente e das discussões ocorridas ali, na gênese de sua “empresa conservação. É neste clima que
de toda a eloqüência”10. A maior parte dos Dialoghi della historia se passa Contarini escreve o grosso de
sua obra capital em 1523-4,
em Veneza, e seus protagonistas são, na maioria, jovens intelectuais,
com a intenção de codificar,
pertencentes ao patriciado, relacionados, direta ou indiretamente, à em moldes humanistas, os
Accademia11. Também não é estranha aos Dialoghi uma atitude de ideais de equilíbrio e harmonia
inconformismo em relação aos métodos humanísticos de abordagem da correspondentes ao espírito
conservador da sociedade a que
história, de base aristotélica, que haviam sido elaborados em Pádua, há pertence (ver BOUWSMA,
menos de duas décadas, por Sperone Speroni e Francesco Robortello. 1984, p. 144-153).
Speroni foi a figura central da academia dos Infiammati, que teve
5
Serão publicados em Veneza,
grande relevância na difusão do pensamento aristotélico em “volgare”,
por Andrea Arrivabene,
nos moldes propostos por Pomponazzi, a que a Accademia della Fama em 1560, sob a seguinte
pode ser vista como uma contra-imagem. Em resumo, percebemos que, denominação: Della historia
para o jovem filósofo, a Accademia serviu como meio de corroboração diece dialoghi di M. Francesco
Patritio ne’ quali si ragiona
de seu pensamento ainda em formação e nada ortodoxo, e seu ambiente di tutte le cose appartenenti
intelectual, um estímulo ao amadurecimento destas idéias. all’historia, & allo scriverla, &
Assim, dentro da mais atuante linha do neoplatonismo all’osservarla. A partir deste
ponto, citaremos apenas a
renascentista, Patrizi dirigirá sua crítica corrosiva às auctoritates e, por página em que se encontra o
meio delas, aos métodos historiográficos nos moldes dos humanistas do trecho citado.
Quattrocento, na tentativa de elaborar uma completa teoria da História,
não mais “por meio da observância dos três únicos gêneros, mas por via 6
Patrizi dedica um poema a
Badoer. Escrito entre 14 de
da ciência, das causas e dos princípios primeiros do falar (p. A2r). Surge,
setembro e 1º de outubro de
então, a necessidade de uma nova definição da História, assim como de 1558, o poema testifica a data
seu objeto, sua finalidade, seu registro e sua utilidade. de inscrição de Patrizi junto à
Accademia.

7
Cf. CASTELLI (2002, p. 30).
V 8
Patrizi demonstra interesse
O primeiro diálogo, Il Gigante overo della historia, se passa em (e predileção) pela filosofia
platônica quando ainda era
Veneza e, ironicamente, começa com um elogio da História, feito por estudante em Pádua. Na
Alfonso Bidernuccio, que terá um papel semelhante ao de Fedro, no famosa carta autobiográfica,
diálogo homônimo de Platão. O elogio, uma espécie de súmula dos loci escrita ao florentino Baccio
Valori, afirma que, depois
communes da historiografia humanista, traz a imagem da História como de certas frustrações com os
ensinamentos aristotélicos dos
coisa sobremodo bela e útil (...) com que todo homem civil, todo senador mestres do Studio, que não “lhe
e todo príncipe deveria, com grande estudo, deleitar-se e se familiarizar, causaram prazer, (...) ouvindo
pois que é repleta de toda forma de vida, boa ou má (...) e nela, como num um frade de S. Francisco
espelho ou, mais verdadeiramente, num teatro, pode-se ver todas as coisas sustentar conclusões platônicas,
delas se enamorou, e após
humanas, e todos os seus felizes e desventurados acontecimentos (p. 1r).
ter feito amizade com ele,

275
HELVIO MORAES
pediu-lhe que o encaminhasse
pela via de Platão. [O frade]
lhe propôs como ótima via
a Teologia de Ficino, a que
se deu com grande avidez. E
tal foi o princípio do estudo
que depois sempre seguiu.”
(PATRIZI, 1975,
p. 47). La città felice, de 1551,
denota uma fase concordista
do pensamento patriziano,
certamente influenciada
pelas leituras de Pico. Mas
a tentativa de uma concordia
philosophae será rapidamente
abandonada, como veremos na
apresentação dos Dialoghi.
9
Cf. RINALDI (2001,
p. 13), “A orientação religiosa
dos intelectuais vênetos que
se reuniam em torno desta
Accademia era aberta às idéias
da Reforma: entre os seus
membros figuravam, de fato,
Bernardo Tasso, uma vez
secretário de Renata da França
quando de sua permanência na
corte estense; Francesco Patrizi,
que trazia consigo a suspeita de
heterodoxia que circundava sua
família; Ludovico Castelvetro,
o célebre expositor da poética
aristotélica, que tinha relações
com a cultura protestante.”
Em relação à heterodoxia de
Patrizi, à parte sua relação
de simpatia com o clima
intelectual da Basiléia, algumas
breves considerações: desde
seus primeiros escritos, o
filósofo elabora uma linha
de pensamento pontilhada
de elementos não ortodoxos,
embora muito mais contidos
no âmbito da filosofia que
no da religião. Tal idéia, ele
mesmo a explicita numa carta
de 1562: “Quanto à fé cristã,
creio-me dela ser muito bem
provido, e caso fosse forçado a
errar, e se me fosse concedido
poder escolher entre dois erros,
escolheria sempre errar em
espírito filosófico e no manual
de Epiteto, que podem me
tornar bom e contemplativo,
do que com o Espírito Santo
de Lutero, incapaz de fazer
alguém tornar-se bom, e que
276
A tão “belo elogio” (p. 1v) da História, Patrizi contrasta sua ironia
socrática, primeiramente, afirmando não saber “ainda, nem jamais [ter
podido] saber, que coisa seja a História” e, logo em seguida, recorrendo
aos amigos, por meio dos quais poderia “ser, tanto na História como em
muitas outras coisas belas, doutrinado” (p. 1v). A partir deste ponto, num
hábil manejo inspirado na forma dos primeiros diálogos platônicos12,
através do procedimento elenquístico, Patrizi demora-se na crítica e no
“desmantelamento” daquelas concepções de História que têm certos
débitos para com os preceitos da retórica tradicional, principalmente
as que seguem as linhas de autoridades como Cícero, Luciano13 e,
implicitamente citado no diálogo, Quintiliano. Giovani Pontano, o
famoso humanista napolitano, que no Actius expressava a idéia de uma
forte ligação entre Poesia e História, e que legava ao historiador a função
de explicar e adornar a verdade, é também alvo direto das confutações de
Patrizi. Seus escritos influenciaram toda uma geração de historiadores,
e isto torna mais compreensível a forma como Patrizi desenvolve sua
crítica: indo diretamente nas fontes e quase exclusivamente a elas
dispensando sua atenção, o filósofo abala todo o quadro da historiografia
humanista que o precede.
Dos escritos que compõem tal conjunto, talvez o que Patrizi tenha
mais em mente seja o Dialogo della Istoria de Sperone Speroni. Embora
nenhuma alusão seja feita ao mestre dos Infiammati, percebe-se que seu
diálogo constitui “muitas vezes, a secreta “filigrana” de muitas páginas
patrizianas” (VASOLI, 1989, p. 30). Speroni tenta propor uma autonomia
da História em relação à Retórica, por meio de Ieronimo Zabarella, um dos
protagonistas do diálogo: “tenho por certo que o orador, quanto melhor e
mais exercitado seja na eloqüência, pior historiador deva ser se, de orador
que fosse, quisesse tornar-se historiador” (SPERONI, 1996, p. 312).
A principal condição do historiador não é a eloqüência, mas a verdade,
que “distingue a História da Poesia e da Retórica, e das outras artes
sermocinais” (ibid., p. 312). Assim, a incumbência da escrita da História
deve ser dada a quem “possui a verdade (...) ou a quem a ama” (ibid., p. 315),
o sacerdote ou o filósofo. Em relação a estes pontos, veremos que Patrizi
não apresentaria objeções. No entanto, tais idéias não são desenvolvidas
e o próprio diálogo insere-se no âmbito das questões retóricas, desde o
início, em que Paolo Manuzio encontra-se preocupado em aconselhar
um amigo sobre “qual historiador antigo, grego ou latino que seja, deve
escolher como seu guia, seguindo o modo por ele tomado, para imitá-
lo e assemelhar-se-lhe o quanto a língua permitir, ao querer escrever em
italiano” (ibid., p. 213). Assim, várias páginas da segunda parte (o diálogo
é composto de duas) é dedicada ao topos renascentista do debate sobre a
primazia das línguas clássicas ou das vernáculas, em que Zabarella expõe
certas concepções de Pomponazzi sobre o “volgarizzamento” do saber. E
o encerramento do diálogo parece trair uma indisposição a estender-se
nas proposições aludidas acima, terminando abruptamente, na verdade,
inconcluso, quando o tópico da discussão refere-se à questão do estilo do
relato histórico14. Como afirma Vasoli (1989, p. 42-3),
A ARS HISTORICA EM DEBATE NOS DIALOGHI DELLA HISTORIA DE FRANCESCO PATRIZI

a conclusão do diálogo confirmava a natureza de “arte” própria da conduz à perda da saúde”

História, que pertence ao universo comum das “artes do discurso”, tem (In VASOLI, 1989, p. 131).
De fato, a sua crítica será
um domínio próprio específico e deve ser submetida a “normas” que
direcionada à dívida da Igreja
assegurem o controle racional da narração histórica, posta sob o selo da para com o pensamento e
veritas. Em que consistiria esta “verdade”, como seria definida e como método aristotélicos, tomando-
se verificaria, quais seriam os “métodos” e os “instrumentos” típicos da lhes como sua filosofia oficial.
História, Speroni não indicava. É na tentativa de propor uma
nova filosofia que a suplante,
mas tudo isto no seio da
Patrizi buscará dar respostas a estas questões, a começar pela
própria Igreja, que Patrizi
definição de História. Deste modo, após refutadas todas aquelas vislumbra a possibilidade de
definições sugeridas pelas auctoritates, que “não nos diz[em], portanto, o “errare”. Isto se dará em 1592,
que ela seja” (p. 4v), não podendo o filósofo, da mesma forma, prestamente com a publicação de Nova
de universis philosophia que,
fornecer a sua, dedicará todo o segundo diálogo, Il Bidernuccio overo della cinco anos mais tarde, será
diversità dell’historia, ao alargamento do seu campo: elenca um grande condenada pela Congregação
número de autores que escreveram “histórias do mundo maior [História do Index.
Natural] e (...) do menor [História Humana]” (p. 8v) e amplia, para 10
COUZINET (2000, p. 1) vê
muito além dos limites da historiografia tradicional, o rol de objetos a total inserção desta impresa
passíveis de uma abordagem pelo historiador. Não apenas a repúblicas, no “progeto enciclopédico
impérios, príncipes, precisa se ater a narração histórica, mas também a de reorganização de todos os
campos do conhecimento sobre
“partes do mundo celeste” (p. 8v), a fenômenos naturais, a descrições os fundamentos da filosofia
de lugares, às viagens “dos portugueses e dos castelhanos às Índias e ao platônica, que se traduz, em
novo mundo (...), [a] qualidades de certos animais e plantas” (p. 8v), Veneza, no grande progeto
editorial de traduções, edições
e mesmo a historia minore pode incluir a vida de gramáticos, artistas,
e comentários, em torno da
camponeses, navegadores, eremitas, assim como “modos de vida [das Accademia Veneziana .”
nações], dos costumes e das leis” (p. 10v). Em outros diálogos, o tempo
também é alargado (pode haver uma História do presente e do futuro,
11
O maior exemplo é
Leonardo Donà. Ligado, na
como é o caso das profecias) e, além da narração, são contempladas juventude, à Accademia, sob a
outras formas de expressão. Para Patrizi, como veremos, a História não é, influência de seu “programa de
necessariamente, narração, mas “memória das coisas humanas” (p. 18v), renovação cultural”, lidera os
giovani, um forte movimento
e, sendo assim, “não somente (...) se escreve a História, mas também se
de reforma administrativa que
esculpe e se pinta” (p. 14r)15. culmina com a sua eleição para
Esta ampliação ao extremo do domínio da História, além de o dogado, em 1606. Donà é
indicar as limitações a que levaria a observância das lições das auctoritates, um dos interlocutores do nono
diálogo della historia.
mostra a complexidade do plano de Patrizi, e não causa surpresa o fato
de os interlocutores do diálogo serem levados, no final, a um estado de 12
Comumente denominados
aporia. A isto, o próprio Patrizi (p. 11v) se curva, e o diálogo se encerra “diálogos aporéticos”, Patrizi
os chama de “tentativi” ou
inconcluso, com uma imagem de frustração que bem expressa aquele
“litigiosi” e demonstra ter
estado: compreendido bem seu
propósito e modo de proceder
Que maravilha é, portanto, meus senhores, que meu espírito, que na numa passagem do Dialogo
verdade nada sabe, jamais tenha conseguido sair de tão intrincado e tão dell’honore: “o divino Platão,
tenebroso labirinto, para saber-vos dizer que coisa fosse esta bendita em seus diálogos (...) que
História? Nenhuma, por certo. E heis as dúvidas que sempre mantiveram “tentativi” ou “litigiosi” se
chamam (...) confutando as
em suspenso meu espírito, e pelas quais ele jamais pôde aquietar-se com falsas opiniões de outrem,
as opiniões de Luciano ou de Pontano. pouco a pouco, por meio de
perguntas, vai descobrindo a
É somente a partir do terceiro diálogo, Il Contarino overo che verdade. Tal método, de pois
sia l’historia, que Patrizi começa a formar suas idéias sobre o tema, dele, ainda não vi ser usado
por nenhum escritor, nem
tentando organizar metodicamente a enorme variedade da matéria

277
HELVIO MORAES
grego, nem latino, nem vulgar,
sendo, contudo, muito belo e
cômodo.” (PATRIZI, 1553,
p. 20v-21 Apud BOLZONI,
1980, p. 90).
13
Patrizi tem sempre em mente
a famosa sentença de Cícero,
que define a História como
“testemunha dos tempos, luz
da verdade, vida da memória,
mestra da vida e mensageira
do passado”. Outras vezes, faz
seus interlocutores afirmarem
que a “História é uma coisa
feita, remota da memória dos
nossos tempos”. Ao longo dos
diálogos, o filósofo também faz
alusões implícitas a trechos do
Orator, como: “[A História]
envolve uma narrativa em
estilo ornamentado, tendo aqui
e ali a descrição de uma região
ou de uma batalha. Também
tem, ocasionalmente, arengas
e discursos de exortação. Mas
a finalidade é um estilo suave
e fluido, não a linguagem
concisa e vigorosa do orador”
(CÍCERO, 1988, p. 355).
E, por fim: “Ser ignorante
do que ocorreu antes de seu
nascimento é o mesmo que
conservar-se sempre como uma
criança. Pois qual é o valor da
vida humana, a menos que
ela seja entrelaçada na vida
de nossos ancestrais por meio
dos registros da História?
Além disso, a menção da
Antigüidade e a citação de
exemplos dão ao discurso
autoridade e credibilidade,
além de proporcionar o maior
prazer à audiência” (ibid.,
p. 395). Quanto ao tratado
de Luciano sobre a escrita da
História, são principalmente
colocadas em evidência as
idéias expostas na segunda
parte, que dizem respeito às
qualidades do historiador e
às especificidades do relato
histórico, como dicção e
estilo, brevidade, disposição
das palavras, introdução de
discursos, etc. Patrizi refutará a
ambos por considerar limitadas
as suas noções: a de Cícero, por
estabelecer uma antiguidade
278
histórica, que emerge dos diálogos anteriores, em um esquema que a
contemple inteiramente e que, necessariamente, deva sair do âmbito
restrito da Retórica. Já estabelecera, portanto, as condições essenciais
para propor que a História seja (re)conduzida ao campo da Filosofia.
Não por acaso, todo o diálogo é construído sob o signo do delírio, com
claras alusões a passagens do Fedro e do Político, de Platão. Patrizi-
protagonista, em estado febril, perscrutava “o livro da minha alma”
(p. 12r) – para surpresa de seus amigos que, a princípio, acreditavam que
ele “delirasse”, e só depois perceberam que estava “sob efeito dos delírios
de Platão” –, tentando encontrar “o que fosse a História” (p. 12v). À
pergunta de Giorgio Contarini sobre a possibilidade de encontrá-la em
“livros alheios”, sem que fosse necessário recorrer ao da alma, Patrizi
(p. 12v-13r) responde que “todas as coisas que encontro nos livros
escritos de fora (...) vou buscando também no livro da minha alma, no
qual muitas encontro e muitas, não. (...) Aquelas que encontro, estimo
que sejam verdadeiras, aquelas que não, estimo serem falsas”.
Extremamente significativa esta passagem em que o filósofo
subordina todos os “libri di fuori” – e aí a alusão aos livros anteriormente
mencionados é evidente – ao “livro da alma”. A partir daí, as reflexões de
Patrizi “tendem a “saltar” a dimensão histórica e a colocar-se sobre um
plano metafísico” (BOLZONI, 1980, p. 67). Esta busca filosófica encerra
uma forte convicção na possibilidade de uma comunicação perfeita entre o
homem e Deus e de uma recuperação do vínculo entre palavra e coisa, que
será a proposta central dos seus Dialoghi della retorica. A leitura do “livro
da alma”, sob o signo do furor, único meio de guiar a disposição intelectiva
do homem ao conhecimento da verdade, possibilita entender o modo como
a história humana (“minore”) insere-se numa dimensão cósmica (“Historia
del maggior mondo”). Isto Patrizi faz através do relato de um mito: o “das
corrupções do mundo e de seus renascimentos” (p. 15r).
Narrado a um tio de Patrizi por um velho eremita egípcio, o
mito representa o Egito como “templo de todo o mundo e imagem do
céu, (...) [que guarda] memória de duas corrupções universais e de dois
universais renascimentos de toda a máquina mundana”. Tais corrupções
são causadas por acidentes naturais (pestes, dilúvios, incêndios,
etc.), assim como por deliberação humana, como as guerras que, por
sua vez, são “movidas pelos céus por meio dos astros e dos influxos
das estrelas” (p. 15v). De fato, haveria no universo dois movimentos
opostos, de ascensão e de declínio, em eterna repetição, para tudo o que
nele existe. Assim, para os homens, também existiriam dois grandes
momentos que se sucedem eternamente: um em que Deus governa o
mundo, trazendo “renovação da vida e da imortalidade” (p. 17r); e um
momento posterior, em que este vínculo se desfaz, Deus se distancia
e, por um desordenamento dos astros, tais catástrofes se sucedem,
inaugurando uma era dominada pela corrupção e pelo medo. Portanto,
estas revoluções, embora sejam universais, não “corrompem por inteiro
todas as linhagens dos homens, (...) [porque] é necessário que estáveis
e incorruptos restem, de todas as espécies, apenas aqueles indivíduos
A ARS HISTORICA EM DEBATE NOS DIALOGHI DELLA HISTORIA DE FRANCESCO PATRIZI

que bastem para conservar o mundo corporal, conforme o seu exemplo” para o fato a ser relatado,
descuidando de acontecimentos
(p. 16r). Os poucos sobreviventes, coagidos a buscar refúgio nas florestas
contemporâneos ou de um
e montes, lentamente vão se unindo em pequenos grupos. O abrigo passado recente; e a do
encontrado no interior da pequena comunidade causa uma sensação de “burlesco” Luciano, por não
conforto que, a todo o custo, buscam manter e até mesmo aumentar. definir o que seja a História,
discorrendo apenas sobre
Daí começam a surgir todos os elementos constitutivos de uma civilização, como escrevê-la, o que pode
como as técnicas, a arte, a religião e as formas de convívio social, ser aplicado a qualquer tipo de
que se prolongarão por um tempo, até que, novamente corrompidos os escrito.
costumes, “do tudo no nada se desfaçam”16.
14
No Tomo I das obras
O Egito manteve-se incólume ao fim das duas últimas
completas de Speroni,
revoluções, porque “no incêndio somos defendidos pelo Nilo; e dilúvios, encontra-se um fragmento
não chovendo nunca aqui, não temos” (p. 16v). A memória de tais muito interessante, de um
“corrupções” foi inscrita num dos lados de uma coluna sagrada, que Dialogo della istoria, com
outros interlocutores. Consta
trazia, noutro lado, marcas, ainda mais antigas, das inundações do Nilo. de apenas cinco páginas,
Estas marcas serviam para a previsão de anos de fartura ou privação, mas cremos que ali estejam
conforme “o aumento das águas” (p. 14v). elencados os principais pontos
Com claras referências herméticas, Patrizi conclui que “a História do diálogo maior.

começou a ser escrita no Egito, não das ações dos homens, mas das cheias 15
Em outra passagem, o
e das inundações do Nilo (...) [como] memória dos efeitos daquela água” filósofo sintetiza esta idéia:
(p. 14v). Portanto, a primeira História que foi escrita versava sobre coisas “Mas se a memória pode
futuras, o que leva o filósofo a incluir a profecia no campo da História, constituir-se (...) – sem que
haja narração por palavras –,
alargando-o ao extremo, assim como havia feito com seu objeto, como somente com as imagens dos
vimos anteriormente. E o diálogo se conclui com a definição de que “a fatos, ou com outros signos
História é memória das coisas humanas” (p. 18v). materiais, ou com diversas
A visão cíclica decorrente do mito, embora permeada de formas de coisas, no modo que
ela foi, talvez, no princípio
elementos platônicos – podemos, de fato, dizer, fundada nos pressupostos escrita, não nos importa
do neoplatonismo –, permite uma aproximação do pensamento de que ela seja antes [feita] de
Maquiavel. Vasoli (1989, p. 229), em seu estudo sobre os escritos palavras do que por qualquer
outra forma de manifestação,
militares de Patrizi, o denomina “Il platonico machiavellico”, mas
contanto que seja memória”
não seria descabido estendermos a mesma designação ao autor dos (p. 14v).
Dialoghi. A partir do quarto diálogo, pari passo ao desdobramento de
uma argumentação de forte filiação platônica, caminha uma concepção 16
PATRIZI (1560, p. 17r).
desencantada da natureza humana, uma convicção de que os homens Patrizi enfatiza a corrupção
dos costumes como signo de
agem por interesse próprio, açulados pela necessidade ou pelo medo. Mas, um iminente colapso universal,
como em Maquiavel, isso não tolhe a possibilidade de uma intervenção que purgará a humanidade,
positiva do conhecimento histórico como regulador destas disposições, o no sentido de uma renovação.
Neste ponto, há uma
que imediatamente ressalta o caráter público da utilidade da História17.
grande consonância com o
Patrizi o elabora da seguinte forma: pensamento de Maquiavel,
que, nos Discorsi (...), afirma
Todos os desejos dos homens se restringem a três apenas, e não mais, os que “a natureza, assim como
quais são naturais e comuns a todos . Eles são o desejo de ser, de bem ser ocorre com os corpos simples,
e de sempre ser, (...) em que consiste toda a humana felicidade. E se cada ao reunir suficiente matéria
supérflua, muitas vezes se
homem tem estes três desejos no espírito por natureza, é razoável que os
move por si mesma e realiza
tenham todos os homens juntos em suas congregações e comunidades, uma purgação, que é a saúde
que são as famílias e as cidades. Donde, uma e outra devem ter por meta daquele corpo; o mesmo ocorre
e por fim a felicidade e este estar bem perpetuamente, o que deve ser nesse corpo misto da raça
o principal cuidado daqueles que estão no governo de uma e de outra humana, que (...) quando a
astúcia e a maldade humana
congregação. (...) Os modos de alcançar este fim são dois e não mais: a
chegam até onde podem
formação dos cidadãos e as leis. (p. 23v-24r) (grifos nossos)

279
HELVIO MORAES
chegar, é necessário que o
mundo se purgue (...) para
que os homens, passando a ser
poucos e tendo sido derrotados,
vivam mais comodamente
e se tornem melhores”
(grifos nossos). Conforme
PLASTINA (1992, p. 40),
outro ponto a ser salientado,
é que, assim como Maquiavel,
Patrizi aponta para uma
autonomia das conquistas
humanas: os homens “não
adquirem as técnicas como um
dom divino, mas as conquistam
açulados pela necessidade.”
17
MAQUIAVEL (1979,
p. 31): “(...) não se pode
esquecer que uma excelente
disciplina é a conseqüência
de leis apropriadas”; e
“é necessário que quem
estabelece a forma de um
Estado, e promulga as suas
leis, parta do princípio de que
todos os homens são maus,
estando dispostos a agir com
perversidade sempre que haja
ocasião” (ibid., p. 29).
280
Portanto, o fim da história é a felicidade humana, que, por sua
vez, só é alcançável dentro de uma “comunidade de homens felizes”
(p. 24r), pois somente “onde todos os cidadãos são felizes, cada um é
também feliz” (p. 51v). Para atingir este fim, três modos são possíveis:
“as contemplações universais”, incumbência do filósofo; “a cognição
dos casos particulares”, ocupação do historiador; ou, “uma e outra
juntamente” (p. 24r).
Tendo feito todo este percurso, Patrizi finalmente cumpre seu
propósito de unir conhecimento histórico e filosófico, em contraste com
a noção de uma pertença da História às arti del discorso, tributária do
famoso postulado aristotélico de que a Poesia está contida no âmbito da
Filosofia, enquanto a História, tratando do particular, filia-se à Retórica
(ARISTÓTELES, 1993, p. 53-4). De fato, como observa LEINKAUF
(2003, p. 230-1), para Patrizi, “a história deve ser, ao lado da filosofia como
ciência das causas e das razões, a ciência dos efeitos ou realidades que têm
seu fundamento em causas”. É neste sentido mais amplo que devemos
interpretar a “cognição dos casos particulares”. Não mais a ação em si, mas
o que importa são as causas que levam a cabo tal ação. Isso o leva a afirmar
que “a ação humana (...) me parece uma figura envolta em mil invólucros,
em forma de cebola” (p. 39r), em que os fatos constituem apenas “as
camadas exteriores” (p. 40r). O historiador, como um “mestre anatomista
de cebolas”, deve perscrutar suas partes internas, até chegar ao “miolo”.
Patrizi não se engana em relação à dificuldade, ou, até mesmo,
impossibilidade, deste procedimento, o que o leva a indagar se há uma
verdade histórica. Dois fatores estarão sempre presentes nas reflexões
acerca desta verdade: a intenção (ou uma possível condição) do historiador
em expressá-la e, o que é ainda mais árduo, o acesso completo aos reais
desígnios dos “atores”. Todo o quinto diálogo, Il Contile overo della verita
dell’historia, gira em torno do tema. Nestas páginas, umas das mais
céticas e irônicas da obra, a estrutura dos diálogos aporéticos de Platão é
intensamente retomada, e o método elenquístico possibilita a adoção de
certos pontos de vista que, posteriormente, serão refutados numa constante,
até que o diálogo se encerre com um sentimento de desolação: “Em suma,
a história se tornou Poesia. Ó, foi justamente este o golpe que cortou
completamente toda esperança que me podia restar de ver a História
verdadeira” (p. 30r). Isto porque Luca Contile, o protagonista do diálogo,
a princípio, nega que o historiador diga a verdade, pois, sendo “homem
do vulgo, (...) nos fará história das coisas da rua, e teremos belíssimas
novelas”, e sendo “homem de governo”, se submeterá a duas deusas: “A
adulação (...) e a paúra, uma das quais sempre engrandece com mentiras
as coisas relacionadas a seu príncipe, e a outra cala a verdade” (p. 27v).
Tendo, porém, a intenção de dizer a verdade, será obstado de participar do
conselho dos príncipes, “capitais inimigos da verdade” (p. 28r). Resta, por
fim, somente as “novelas da praça”. Por isto a alusão à poesia.
Não raro, nos diálogos seguintes, em que Patrizi trata do
objeto das histórias “universal”, “menor” e “da vida de outrem”, esta
visão melancólica surge como pano de fundo em algumas reflexões,
fazendo com que alguns estudiosos o acusem de “pirronismo histórico”,
A ARS HISTORICA EM DEBATE NOS DIALOGHI DELLA HISTORIA DE FRANCESCO PATRIZI

juntamente com o caráter “destrutivo” dos primeiros diálogos18.

Conquanto acreditemos que tais acusações sejam excessivas, o nono
diálogo, Il Donato overo dell’utilità dell’historia (talvez o mais importante
do conjunto19), abre com uma visão trágica do destino humano, numa
reelaboração do topos do grande teatro do mundo.
O relato começa com a idéia de que o homem, desde o
nascimento, traz consigo “o estudo da imitação” (p. 49r), não havendo
coisa que mais deleite possa lhe proporcionar, tanto que os grandes
escultores são capazes de infundir, “em algumas estátuas, espírito e vida
(...), no esforço de assemelharem-se aos deuses, que fizeram o homem
repleto de alma.” E como o homem se compraz no que lhe é semelhante,
os deuses também se deleitam com a sua criação, “por festa”. Assim, da 18
Cf.BOLZONI (1980, p. 72).
mesma forma que os histriões, na tragédia, que, para o “exemplo” e o
deleite dos homens, assemelham-se a “reis, rainhas, grandes homens”,
19
Podemos considerar que
este é o diálogo que conclui
sem os serem de fato, estes, para a eterna diversão dos deuses, imitam a obra, pois as principais
as ações divinas. A diferença seria que os atores desempenham seus idéias expostas anteriormente
papéis conscientemente, enquanto que os homens, não. E suas ações, de são aqui retomadas, e uma
síntese é apresentada no longo
divinas, têm somente a aparência. discurso de Leonardo Donà.
Diante desta visão desoladora da incapacidade humana de uma No décimo, Lo Strozza overo
cognição plena do mundo20, que, como vimos, vinha se insinuando desde della degnità dell’historia, após
a introdução – que evoca os
o quinto diálogo, rapidamente se contrasta o discurso de Leonardo
anos de aluno do Studio, pelo
Donà21, retomando alguns pontos dos primeiros diálogos e dando-lhes reencontro de ex-colegas, em
uma elaboração final. Há uma característica bastante singular neste Bolonha -, Patrizi, na segunda
diálogo, em relação a todos os outros: raras são as falas alternadas entre os parte, se atém a minúcias em
relação à disposição do relato
dois únicos protagonistas, e, quando acontecem, não têm a mesma função histórico, interrompendo-se
que nos outros diálogos: não visam à refutação da idéia exposta, seguindo bruscamente, deixando-o
o método socrático, nem buscam, graças ao movimento dialético que a inconcluso. Sinal de cansaço
é um dos motivos assinalados
forma proporciona, desenvolver um conceito que tenda a ser do consenso por VASOLI (1989, p. 89).
de todos. O que temos é a exposição de dois pensamentos que se chocam, Somos propensos a crer,
e não há sinais de uma possível conciliação (pelo menos não nestes contudo, que, fiel à forma
literária de que se serviu, o
Dialoghi). A presença do tema da tragédia, portanto, não é fortuita.
filósofo quisesse deixar em
Donà parte do pressuposto de que, assim como a tragédia pode aberto as questões trazidas a
“portar utilidade ao homem que entende” (p. 50r), a história também é debate, para retomá-las depois,
capaz de fazê-lo, convertendo, porém, “lição em ação” (p. 50v). O grande como fará, nos Dialoghi della
retorica.
quadro, previamente apresentado, se reduz drasticamente à utilidade
pública do conhecimento histórico, rejeitando, inclusive, seu emprego, 20
Patrizi, de fato, não indicará
pelo homem, para benefício próprio, pois “tira melhor vantagem da uma solução aqui. A questão
História quem o faz por sua pátria, ao invés de fazê-lo para si mesmo.” será resolvida, como dissemos,
no primeiro dos Dialoghi della
Donà reafirma que o fim da História é a felicidade, que “nada mais Retorica, através do mito de
é do que uma união que fazemos com Deus por meio da contemplação” uma língua universal, como
(p. 51r), surpreendentemente fazendo uso da definição platônica, tendo símbolo de uma comunicação
perficiente entre o homem e
sido apresentado, por Patrizi, como “aristotélico” (p. 50r). Contudo, a Deus.
seguir, pondera que a vida contemplativa é alcançada quando os afetos
são apaziguados pelas “virtudes e bons costumes, e as outras coisas a isto 21
Leonardo Donà reproduz
necessárias” o que se dá somente se o homem “se põe a viver com outros o discurso que ouviu de seu
tio, Giovanni, na época em
homens em comum”, na cidade, pois este é o único lugar propício para a que começara suas primeiras
satisfação de seus três desejos: “ser, bem ser e sempre ser” (p. 51r). leituras de “historie”.

281
HELVIO MORAES

O estado de paz é necessário para qualquer cidade que queira ser

feliz. Obviamente, a guerra deve ser evitada, ou, caso haja necessidade de
empreendê-la, que tenha como mira a paz, que advém com seu término.
Porém, ainda mais perigosa é a sedição, pois sendo ela

inimiga doméstica, (...) [destrói] o ser, pela matança e pelas mortes

que ela traz consigo. Destrói o bem estar, com as suspeitas e com as
inimizades, com privações de coisas e de honrarias, com os contínuos
afãs e com os contínuos temores, e com semelhantes e infindas misérias.
Anula também o sempre ser, matando, com a privação dos filhos e com
o banimento dos bons estudos e de outras obras egrégias, a tão desejada
eternidade (p. 52v).

As dissensões civis não têm fundamento numa cidade onde haja

“tranqüilidade no coração dos cidadãos”, e onde estes, “que são pelas leis
introduzidos às honras da cidade, para contentamento da parte animosa
de nosso espírito, delas são feitos partícipes”. Portanto, um cuidado
especial deve ser colocado “na sua formação, nas leis e nos cargos de cada
ordem da cidadania” (p. 51v), meios pelos quais a paz estará garantida.
Por fim, concorrem, para a excelência destas instituições, “duas
vias, otimamente: (...) a dos filósofos, e (...) a dos historiadores, uns dos
quais nos ensinam por meio das causas, estando voltados ao universal, e
os outros, por meio do particular e da experiência” (p. 51r).
Torna-se claro, portanto, que é no sentido de uma reunificação
de diferentes campos do saber que haviam encontrado, conforme cria o
filósofo, diferentes esferas de atuação, seguindo uma tradição fortemente
instituída nos princípios do pensamento aristotélico, que se encaminha a
proposição de Patrizi. Para ele, o conhecimento filosófico, se não englobar
o conhecimento histórico, torna-se inatingível. A história, por sua vez,
fora de uma concepção que a veja como único caminho para a cognição
do verdadeiro, vinculando-se à busca filosófica, termina por transformar-
se num instrumento promotor de mentiras, empregado para satisfazer as
aspirações de quem, num dado momento, detém o poder.
No encerramento do diálogo, temos a impressão de que aquela
imagem tão sombria, apresentada no início, de certo modo, é atenuada.
Isto, na forma característica do neoplatonismo patriziano:

Tal, portando, e tão alta, ó Patrizi, foi a argumentação do Senhor

Giovanni, que certamente muito me agradou, tendo ele conseguido
fazê-la penetrar de tal modo em minha alma, com a maneira forte do
seu dizer, que creio jamais poder me esquecer. E a vós, como vos parece?
Mas vos vejo atônito: e não me respondeis?

Bibliografia
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