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Pensamento político clássico

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Pensamento político clássico

1. Introdução 3

2. A política no pensamento grego antigo 4

3. Platão: a vida pública 5


3.1. O pensamento político de Platão 10

4. Aristóteles: o homem é um animal político 20

5. O modelo jusnaturalista 23
5.1. O pensamento político de Hobbes: Hobbes contra Aristóteles 24
Sumário 5.2. Natureza humana: o homem que deseja 26
5.3. O estado de natureza: a manifestação das paixões 30
5.4. Medo e esperança: as paixões no estado civil 34

6. Conclusão 42

Referências 43

Anexos de leituras complementares em PDF: 44

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Congresso Nacional brasileiro – Brasília (DF)

1. Introdução
A ideia de aprofundarmo-nos nos fundamentos do agir político surge da necessidade de entender as ações humanas
no convívio social, ou seja, acreditamos que é necessário irmos às raízes da política para compreendermos, ou pelo
menos tentarmos compreender, como o homem age nos grupos. Em outras palavras, esta disciplina pretende refletir
a respeito das diversas maneiras de fundamentar o agir humano na perspectiva política. Para tal, escolhemos, num
primeiro momento, dois grandes modelos de pensamento político, a saber: o modelo clássico, também conhecido com
grego ou aristotélico, e o modelo jusnaturalista, também conhecido como hobbesiano. Evidentemente, essas duas
grandes escolas do pensamento político não são as únicas a pensar a questão, mas esse recorte é necessário para
delimitarmos os rumos da nossa disciplina.

Um autor que faz uma delimitação interessante a respeito dos modelos de fundamentação do pensamento político é
o filósofo italiano Norberto Bobbio. Bobbio delimita o tema da seguinte maneira: teorias historicistas de Estado (modelo
aristotélico) e teorias racionalistas de Estado (modelo hobbesiano). Vejamos nas palavras do filósofo como isso se dá:

No âmbito das doutrinas realistas de Estado, a distinção entre as doutrinas racionalistas e historicistas
acompanham toda a história do pensamento político. As primeiras enfocam antes de mais nada o problema
da justificação racional do fundamento do Estado e respondem à seguinte pergunta: Por que existe o Estado?
As segundas se colocam essencialmente o problema da origem histórica do Estado e respondem à incógnita:
“Como nasceu o Estado”? As primeiras evidenciam a contraposição entre estado de natureza anti-social e o
estado civil, que é a condição social; as segundas, ao contrário, evidenciam a continuidade entre as formas
primitivas de sociedades humanas que ainda não são Estado, como a família, a tribo ou o clã (antropólogos
também falam de sociedade sem Estado), e uma forma sucessiva de sociedade organizada que teria o
direito exclusivo de chamar-se “Estado”. Em outra ocasião, tratei de dois modelos: chamei o primeiro (O
RACIONALISTA) de jusnaturalista ou hobbesiano, pois seu inventor e rigoroso criador foi Hobbes; o segundo
(O HISTORICISTA) chamei de aristotélico, pois foi exposto com absoluta simplicidade nas primeiras páginas
da Política1. Dito de outro modo: de um lado o modelo segundo o qual o Estado é um corpo artificial que
nasce em contraposição ao Estado de natureza; do outro, o modelo segundo o qual o Estado é uma sociedade
natural que brota da evolução normal do primeiro núcleo organizado, a família. No primeiro, o ponto de partida

1 A Política é a principal obra de Aristóteles sobre política.

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é o homem, considerado como um ser naturalmente anti-social; no segundo, o ponto de partida é o homem
como “animal político” (BOBBIO, 2003, p. 82).

Com esse texto, Bobbio encaminhou boa parte dos trabalhos de nossa disciplina, pois sumariou os principais eixos
do pensamento político de que trataremos por aqui. Peço ao aluno que não fique assustado com o volume de conceitos
que são abordados por Bobbio, uma vez que eles serão retomados na medida em que o pensamento dos autores for
discutido. Obviamente, você não poderá perder de vista que o caminho por nós escolhido nesta disciplina passa pelos
referidos modelos, como já foi citado: pensamento grego ou aristotélico e pensamento jusnaturalista ou hobbesiano.
Como você pode perceber, vamos fazer um salto histórico enorme, pois o modelo chamado grego foi desenvolvido na
Grécia Antiga, entre os séculos V e III a.C, ao passo que o modelo hobbesiano surgiu no século XVII.

Apresentado o caminho que irá nos balizar, passo a expor os problemas que iremos debater.

Comecemos com as seguintes questões: por os homens formam associações? O que os leva a viver em sociedade?
E, ainda, por que eles tendem (ou não) à vida social? Quando faço essas perguntas, obtenho respostas como: “O ser
humano não foi feito para viver isolado”, ou “Viver em sociedade é uma forma de garantir a própria sobrevivência”, ou,
ainda, “Alguém precisa organizar tudo, por isso, a sociedade e as suas regras são necessárias”. Podemos notar que há
um consenso em relação à necessidade da vida coletiva, ou seja, boa parte das pessoas concorda que, sem a política,
seria impossível mantermos um nível mínimo de vida.

2. A política no pensamento grego antigo


Escolhemos para representar o modelo clássico de política Platão e Aristóteles, o primeiro representando as teorias
idealistas de Estado e o segundo, as teorias realistas, uma vez que Bobbio, no texto citado, começa com a seguinte
frase: “No âmbito das doutrinas realistas de Estado”. Segundo Bobbio, podemos dividir as teorias políticas em idealistas
e realistas. As realistas ainda podem se subdividir em historicistas e racionalistas. Veja o quadro abaixo:

Teorias idealistas

Racionalistas – Por que existe o Estado?


Teorias realistas
Historicistas – Como surgiu o Estado?

Podemos ver como o filósofo Bobbio (2003, p. 81) explicita ambas as teorias: “A primeira grande distinção no
universo das doutrinas políticas é a que contrapõe teorias de Estado perfeito, ou melhor, forma de governo, e as teorias
realistas”.

Em resumo, quando se fala em pensamento político, encontramos em Platão o principal representante das teorias
do Estado perfeito, uma vez que ele buscará a todo momento maneiras de pensar uma organização social que não
esteja sujeita à corrupção, ao desgaste e à transitoriedade. Ao passo que, entre os principais representantes das teorias
realistas de política, temos Aristóteles, Maquiavel, Hobbes, entre outros.

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3. Platão: a vida pública


O pensamento político de Platão é marcado pela vivência política dele na Grécia dos séculos V e IV a.C. Sendo assim,
para entendê-lo melhor, faz-se necessária uma viagem para o centro da vida na Atenas da época.

Platão nasceu em 427 a.C e morreu em 347 a.C. Era membro de uma família que pertencia à antiga nobreza, recebeu
educação clássica e foi aluno de um sofista famoso. Os sofistas eram mestres da retórica e da oratória, professores
itinerantes que ensinavam sua arte a cidadãos interessados em dominar melhor a técnica do discurso. Em outras
palavras, eles davam as ferramentas necessárias para o exercício da cidadania na Grécia, que ocorria por meio dos
debates em praça pública na polis. Mesmo sendo aluno de um sofista, Platão abriria guerra ao modo deles de fazer
política posteriormente em sua obra.

A Atenas na qual viveu Platão pode ser dividida em duas: a primeira, vigorosa e cheia de vida, do século de Péricles;
a segunda, prestes a ser derrotada pelos macedônios, em 338 a.C., revela o definhamento da estrutura da polis grega.

Platão tornou-se discípulo de Sócrates, fato que marcou profundamente a sua vida:

O grande acontecimento da vida de Platão ocorreu aos 20 anos: o encontro com Sócrates, com quem
conviveu durante nove anos consecutivos. Platão escreveu vários diálogos sob inspiração das teorias socráticas,
e também para defendê-lo das falsas acusações (RIBEIRO; SARDI, 2009).

Entre alguns fatos que marcaram o pensamento político de Platão, podemos destacar os seguintes: a condenação
injusta de Sócrates em Atenas e as três viagens feitas a Siracusa. Na realidade, Platão, assim como boa parte dos jovens
bem-nascidos de sua época, tinha interesse na política. Mas os acontecimentos supracitados foram suficientes para
sufocar o desejo do filósofo de tornar-se político. A morte de Sócrates, sob um tribunal injusto, faria com que ele tivesse
uma péssima visão da Atenas do seu tempo. E as três viagens a Siracusa o levariam a desiludir-se completamente da
política e a fundamentar a tese “do rei-filósofo”, ou seja, de que o governo deve ser exercido por aqueles que têm
capacidade intelectiva superior. Vejamos um pouco de cada um desses fatos, começando pela morte de Sócrates.

Jacques-Louis David. A morte de Sócrates, 1787.

Para Platão, era evidente que a morte de Sócrates aconteceu por questões políticas. Dito de outro modo, as acusações
que pesavam contra o filósofo, a saber, de não aceitar as os deuses do Estado, de introduzir novos cultos e de corromper
os jovens, não passavam de falsas acusações, pois o que mais incomodava os políticos atenienses eram os constantes

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questionamentos que lhes eram impostos por Sócrates em praça pública. Em outras palavras, os políticos atenienses
não suportaram o peso do questionamento socrático e, por isso, condenaram-no à morte. Foram três os principais
acusadores de Sócrates: Meleto, Ânito e Lícon.

Neste texto da Apologia de Sócrates, de Platão (2003), o filósofo defende-se da acusação feita por Meleto de
corromper os jovens:

— Agora, diz-me, Meleto: não é verdade que te importa bastante que os jovens se tornem cada vez
melhores, tanto quanto possível?
— Sim, é certo.
— Vamos, pois, diz-lhes quem os torna melhores; é claro que tu o deves saber, sendo coisa que te preocupa,
tendo de fato encontrado quem os corrompe, como afirmas, uma vez que me trouxeste aqui e me acusas.
Continua, fala e indica-lhes quem os torna melhores. Vê, Meleto, calas e não sabes o que dizer. E, ao contrário,
não te parece vergonhoso e suficiente prova do que justamente eu digo, que nunca pensaste em nada disso?
Mas diz, homem de bem, quem os torna melhores?
— As leis.
— Mas não pergunto isso, ótimo homem, mas qual o homem que sabe, em primeiro lugar, isso exatamente,
as leis.
— Aqueles, Sócrates, os juízes.
— Como, Meleto, esses são capazes de educar os jovens e os tornar melhores?
— Como não?
— Todos, ou alguns apenas, e outros não?
— Todos.
— Muito bem respondido, por Hera: Vê quanta abundância de pessoas úteis! Como? Também estes, que
nos escutam, tornam melhores os jovens, ou não?
— Também estes.
— E os senadores?
— Também os senadores.
— É assim, Meleto. Não corrompem os jovens os cidadãos da Assembléia, ou também todos esses os
tornam melhores?
— Também esses.
— Assim, pois, todos os homens, como parece, tornam melhores os jovens, exceto eu. Só eu corrompo os
jovens. Não é isso?
— Isso exatamente afirmo de modo conciso.
— Oh! Que grande desgraça descobriste em mim! E responde-me: será assim também para os cavalos? Que
aqueles que os tornam melhores são todos os homens e que só um os corrompe? Ou será o contrário, que um
só é capaz de os tornar melhores, e bem poucos aqueles que entendem de cavalos, e os mais, quando querem
manejá-los e usá-los, os estragam? Não é assim, Meleto, para os cavalos como para todos os animais? Sim,
certamente, ainda que tu e Ânito o neguem ou afirmem. Pois seria uma grande fortuna para os jovens que um
só os corrompesse e os outros lhe fossem todos úteis. Mas, em realidade, Meleto, mostraste o suficiente que
jamais te preocupaste com os jovens, e claramente revelaste o teu desmazelo, e que nenhum pensamento te
passou pela mente, disto que me acusas.

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— E, agora, diz-me, por Zeus, Meleto: o que é melhor: viver entre virtuosos cidadãos ou entre malvados?
Responde, meu caro, não te pergunto uma coisa difícil. Não faz os malvados alguma maldade aos que são seus
vizinhos, e alguns benefícios os bons?
— Certamente.
— E haverá quem prefira receber malefícios a ser auxiliado por aqueles que estão com ele? Responde,
porque também a lei manda responder. Há os que gostam de ser prejudicados?
— Não, por certo.
— Vamos, pois, tu me acusas como pessoa que corrompe os jovens e os torna piores, voluntariamente, ou
involuntariamente?
— Para mim, voluntariamente.
— Como, Meleto? Tu, na tua idade, és mais sábio do que eu, tão velho, sabendo que os maus fazem sempre
mal aos mais próximos e que os bons fazem bem: eu, pois, cheguei a tal grau de ignorância que não sei nem
isso, que se tornassem maus alguns daqueles que estavam comigo, correria o risco de receber dano, se é que
faço um tão grande mal, como dizes.
Não creio em ti, Meleto, quanto a isso, e ninguém tampouco acredita, penso eu. Mas, ou não os corrompo,
ou, se os corrompo, é involuntariamente, e em ambos os casos mentiste. E, se os corrompo involuntariamente,
não há leis que mandem trazer aqui alguém, por tais fatos involuntários, mas há as que mandam conduzi-lo
em particular, instruindo-o, advertindo-o; é claro que se me convencer, cessarei de fazer o que estava fazendo
sem querer. Tu, ao contrário, evitaste encontrar-me e instruir-me, não o quiseste; e me conduzes aqui, onde a
lei ordena citar aqueles que têm necessidade de pena e não de instrução.

Nesse texto, fica evidente o método socrático de argumentação: o diálogo irônico. Sócrates vai, por meio de perguntas
sucessivas, colocando o interlocutor em contradição. A primeira parte do diálogo tem a seguinte temática: quem (o que)
faz dos jovens pessoas virtuosas? As respostas de Meleto são as seguintes: as leis, os juízes, os auxiliares do tribunal,
os conselheiros e todo o povo (a assembleia). Sócrates, então, contesta esses argumentos de maneira irônica, ou seja,
segundo ele, se todas as pessoas contribuem para a boa formação dos jovens e somente ele lhes causaria algum dano,
nesse caso, o problema dos jovens de Atenas estaria resolvido. Pois, se todos os atenienses fazem-lhes bem, ou seja,
ele é o único a causar-lhes mau, sendo assim, o problema dos jovens atenienses não seria dos piores. Em seguida,
Sócrates levanta o seguinte argumento: como posso corromper pessoas que depois de corrompidas podem se voltar
contra mim? Ou seja, indaga se não seria temerário corromper um jovem, pois este depois poderia tomar atitudes que
o prejudicassem. Em outras palavras, ele quer dizer que, ao corromper aqueles que estavam próximos a ele, o risco de
prejudicar-se era iminente.

Finalmente, é evidente no discurso de Sócrates que a sua condenação à morte pelas acusações feitas não se
justificava, pois, com poucos argumentos, mostrou aos seus acusadores que, se havia da parte dele algum erro, teria
sido involuntário. Sendo assim, ele deveria ser corrigido, segundo as leis da cidade, e não punido. Platão, como já
foi dito acima, percebeu que a condenação de Sócrates foi injusta, o que traria nele um desgosto ainda maior com o
modelo político de Atenas, no caso, a democracia.

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Platão não tinha boas referências da democracia, pois, segundo ele, a maioria nunca estará apta a chegar à verdade.
Na realidade, o filósofo percebeu que, na ágora, as pessoas votavam muito mais influenciadas pela retórica dos sofistas
do que pelo interesse na busca da verdade.

No próximo trecho da Apologia de Sócrates (PLATÃO, 2003), Meleto acusa Sócrates de ateísmo e contradiz-se.
Vejamos:

— Mas, cidadãos atenienses, os fatos evidenciaram o que eu sempre disse. Nunca Meleto prestou atenção
a tais coisas, nem muita, nem pouca. Todavia, explica, Meleto, o que significa a tua expressão, dizendo que
corrompo os jovens. É claro, segundo a acusação escrita por ti mesmo, que ensino a não respeitar os Deuses
que a cidade respeita, porém, outras divindades novas. Não dizes que os corrompo, ensinando tais coisas?
— Sim, é isso mesmo que eu digo, sempre que posso.
— Assim, pois, Meleto, por estes mesmos Deuses, de que agora está falando, fala ainda mais claro, a mim
e aos outros. Não consigo entender se dizes que eu ensino a acreditar que existem certos Deuses – e em
verdade creio que existem Deuses, e não sou de todo ateu, nem sou culpado de tal erro – mas não são os da
cidade, porém outros, e disso exatamente me acusam, dizendo que eu creio em outros Deuses. Ou dizes que
eu mesmo não creio inteiramente nos Deuses e que ensino isso aos outros?
— Eu digo isso, que não acreditas inteiramente nos Deuses.
— Admirável Meleto, a quem disse eu isso? Não creio, pois, do mesmo modo que os outros homens, que o
sol e a lua são Deuses?
— Não, por Zeus, ó juízes: ele disse de fato que o sol é uma pedra, e a lua, terra.
— Tu acreditas acusar Anaxágoras, caro Meleto; e me desprezas tanto e me consideras tão privado de letras
a ponto de não saber que os livros de Anaxágoras Clazomênio estão cheios de tais raciocínios? De modo que
os jovens aprendem coisas de mim, pelas quais podem talvez, pagando todos no máximo uma dracma, rir-se
de Sócrates, quando se lhe atribui arrogância, embora isso pareça estranho. Mas, por Zeus, assim te parece,
que eu creio que não exista nenhum Deus?
— Nenhum, por Zeus, nenhum mesmo.
— És de certo indigno de fé, Meleto, e também a ti mesmo, me parece, tais coisas são inacreditáveis. Porque
este homem, cidadãos atenienses, me parece a própria arrogância e imprudência, e certamente escreveu essa
acusação por medo, intemperança e leviandade juvenil. De fato ele, para mim, se assemelha a alguém que
proponha um enigma e diga, interrogando-se a si mesmo: Perceberá Sócrates, o sábio, que eu estou zombando
dele e me contradigo, ou conseguirei enganá-lo e aos outros que me ouvem? E, ao contrário, me parece que,
no ato da acusação, se contradiz de propósito, como se dissesse: Sócrates comete crime, não acreditando nos
Deuses, mas acreditando nos Deuses. E isso, na verdade é fazer zombaria.
— Considerai, pois, comigo, ó cidadãos, de que modo me parece que ele diz isso. Responde-nos tu, Meleto,
e vós, como pedi a princípio, não façais tumulto contra mim, se conduzo o raciocínio desse modo. Existem
entre os homens, Meleto, os que acreditam que há coisas humanas e que não há homens? Que responda ele, ó
juízes, sem resmungar ora uma coisa ora outra. Há os que acreditam que não há cavalos, e coisas que tenham
relação com os cavalos sim? Ou acreditam que não há flautistas, e coisas relativas à flauta sim? Não há? Ótimo
homem, se não queres responder, digo-o eu, aqui, a ti e aos outros presentes. Mas, ao menos, responde a isto:
Há quem acredite que há coisas demoníacas, e demônios não?

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— Não há.
— Oh! Como estou contente que tenhas respondido de má vontade, constrangido por outros! Tu dizes, pois,
que eu creio e ensino coisas demoníacas, sejam novas, sejam velhas; portanto, segundo o teu raciocínio, eu
creio que há coisas demoníacas e o juraste na tua acusação. Ora, se creio que há coisas demoníacas, certo
é absolutamente necessário que eu creia também na existência dos demônios. Não é assim? Assim é: estou
certo de que o admites, porque não respondes. E não tomo em apreço os demônios como Deuses ou filhos de
Deuses? Sim, ou não?

— Sim, é certo.
— Se, pois, creio na existência dos demônios, como dizes, se os demônios são uma espécie de Deuses, isso
seria propor que não acredito nos Deuses, depois, que, ao contrário, creio nos Deuses, porque ao menos creio
na existência dos demônios. Se, por outra parte, os demônios são filhos bastardos dos Deuses com as ninfas,
ou outras mulheres, das quais somente se dizem nascidos, quem jamais poderia ter a certeza de que são filhos
dos Deuses se não existem Deuses? Seria de fato do mesmo modo absurdo que alguém acreditasse nas mulas,
filhas de cavalos e das jumentas, e creditassem não existirem cavalos e asnos. Mas, Meleto, tua acusação foi
feita para me pôr à prova, ou também por não saberes a verdadeira culpa que me pudesses atribuir: por que,
pois, te arriscas a persuadir um homem, mesmo de mente restrita, de que pode a mesma pessoa acreditar na
existência das coisas demoníacas e divinas e, por outro lado, essa mesma pessoa não admitir demônios, nem
Deuses, nem heróis? Isso não é possível.

Após evidenciarmos aspectos da condenação à morte de Sócrates que influenciaram o pensamento de Platão, resta-
nos ainda falar das três viagens que o autor fez a Siracusa. Vamos expor brevemente os motivos que o levaram a essa
cidade e quais os reflexos dessas viagens para a formação do seu pensamento político.

Platão fez a primeira viagem à Siracusa logo após a morte de Sócrates, com o intuito de afastar-se de Atenas. Lá, o
pensador conheceu o jovem Dion, que se entusiasmou pelas ideias políticas dele e propôs a Dionísio I que as utilizasse
para dar uma Constituição à cidade, mas isso não foi possível.

Com isso, Platão regressou a Atenas trazendo na “bolsa” mais um fracasso político. Em outras palavras, foi percebendo
aos poucos que pensar a política é mais fácil do que influenciá-la. O mesmo fracasso ocorreria nas duas viagens
subsequentes.

Comparando Platão com o século XXI, é possível perceber que os fracassos logrados pelo filósofo na Antiguidade
grega podem se aproximar de maneira considerável da decepção que muitos cidadãos têm com a política. Em outras
palavras, parece que as coisas que aprendemos sobre democracia, direito, justiça e governo pouco se aproximam da
verdadeira prática política, ou seja, a dissonância entre a teoria e a prática é tão grande que não é necessário ser um
grande pensador para notar o abismo que há entre o ideal e o real, no que diz respeito à vivência política da atualidade.

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3.1. O pensamento político de Platão


O Platão político deve ser entendido na integralidade do seu pensamento, ou seja, há um dinamismo entre teoria
política, teoria do conhecimento, ética e psicologia (teoria da alma) no filósofo. Esse dinamismo vai aparecendo na
medida em que apresentamos o pensamento político do autor. O principal é percebermos, como já aludimos ao expor
a vida de Platão, que o filósofo constata na cidade (polis) uma política doente e contaminada pela retórica dos sofistas.
Sendo assim, qual seria o melhor remédio a ser adotado para conter essa patologia política, cívica?

O pensador vai cuidadosamente expondo o remédio para, aos poucos, conter a degradação da cidade e o antídoto
para evitar que as boas formas de governo voltem a se degradar.

Para caminharmos no pensamento político de Platão, é necessário que atentemos para a questão de que a estrutura
da política platônica não está desligada da ética e da “psicologia” (entenda-se psicologia, nesse caso, como estudo
da “alma”). “A política, porém, pressupõe uma antropologia e funda-se numa psicologia” (VEGETTI, 2010, p. 40). Em
outras palavras:

Onipresente em Platão, a dimensão política nunca pode, portanto, ser isolada dos outros âmbitos que a
fundam e a orientam, e este aspecto filosófico decisivo pode contribuir por si mesmo para explicar as incertezas
exegéticas do vastíssimo leque de interpretações que marcaram a tradição do Platão político (VEGETTI, 2010,
p. 41).

Vejamos primeiro quais foram as principais contribuições de Platão para a sistematização de alguns temas importantes
para o pensamento político. Encontram-se sistematizados nos textos platônicos temas como as formas de governo e o
governante ideal.

Primeiramente, Platão delimita as formas de governo e, para cada uma, propõe que exista uma cópia degradada, ou
seja, degenerada. Para facilitar a leitura e a compreensão delas, elas estão dispostas no quadro seguinte.

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Forma de governo Cópia degradada

Monarquia Tirania

Aristocracia Oligarquia

Democracia Anarquia

De acordo com Platão, os regimes políticos podem mudar de forma conforme o interesse de quem está no poder.
Sendo assim, há um dinamismo natural na política que depende sobremaneira de quem está no comando. Dito de outro
modo, Platão inova ao dar às formas de governo um dinamismo interno próprio do sistema político:

“[...] Os regimes políticos podem passar de uma forma para outra em uma ordem de sequência que
é sempre a mesma: a monarquia se transforma em aristocracia, e esta em democracia; e a ideia de um
movimento de degradação posterior a essa sequência: a democracia, degenerando em anarquia faz surgir a
oligarquia que, por sua vez, degenera em tirania. (CHAUÍ, 1994, p. 219).

O professor Mario Vegetti (2010, p. 39) dá uma contribuição importante para entendermos a lógica dessas
transformações:

Qualquer regime político, por mais próximo que esteja da perfeição, está porém destinado à criação e à
transição para outras formas. Isto deve-se, em primeiro lugar, à instabilidade ontológica estrutural da época
histórica e à instabilidade estrutural antropológica da natureza humana, natureza esta exposta – apesar dos
condicionamentos educativos – à pressão de componentes irracionais do eu e, além disso, às contradições que
são inevitavelmente inerentes a qualquer sistema de governo.

Outra contribuição significativa encontra-se no fato de que Platão considera a política uma ciência e, portanto,
que pode ser ensinada. Com isso, a ideia tradicional de política como arte ou técnica é abandonada em favor da
nova concepção de que ela encontra-se no espaço destinado as ciências. É por isso que Platão, em seus diálogos, vai
empreender debates intermináveis com os sofistas a respeito da possibilidade ou não do ensino da virtude, a areté.
Ela pode ser ensinada? O que é a virtude? E, ainda, qual a relação entre educação (paideia) e política? Em Platão,
prevalecerá a noção de que a política é pedagogicamente definidora das virtudes. Dito de outro modo, “o homem
deve ser formado e educado para ser antes de tudo e sobretudo um cidadão e que a política é a verdadeira e suprema
paidéia, definidora de areté” (CHAUÍ, 1994, p. 220).

Afinal, como é possível a política balizar as noções de virtude em uma sociedade? Ou seja, é da responsabilidade da
política garantir que os cidadãos sejam virtuosos? Na tentativa de responder a essas questões, Platão destinará parte
considerável da República à seguinte pergunta: o que é a justiça?

Selecionamos alguns textos importantes para entendermos o pensamento platônico, textos que debatem questões
como a virtude e a possibilidade de ensiná-la, a justiça como principal virtude política e a estrutura da natureza humana.
Acreditamos que é importante deixar o filósofo “falar” e que o contato com esses textos é de fundamental importância
para a compreensão do pensamento do autor. Vale ressaltar que expusemos apenas trechos que consideramos
importantes. Sendo assim, cabe ao aluno a leitura desses textos na íntegra.

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Mênon: Podes dizer-me, Sócrates: a virtude é uma coisa que se ensina? Ou não é coisa que se ensina, mas
que se adquire pelo exercício? Ou nem coisa que se adquire pelo exercício nem coisa que se aprende, mas
algo que advém aos homens por natureza ou por alguma maneira? (PLATÃO in MARCONDES, 2009, p. 23)

Nesse trecho inicial, Mênon dirige a Sócrates uma pergunta tradicional a respeito do ensino da virtude. Sócrates, por
sua vez, inverterá a pergunta: ao invés de questionar se a virtude pode ser ensinada, questionará o que ela é. Vejamos:

Sócrates: Eu próprio, em realidade, Mênon, também me encontro nesse estado [Sócrates havia reclamado
que os cidadãos de Atenas estavam longe da sabedoria]. Sofro com os meus concidadãos da mesma carência
no que se refere a esse assunto, e me censuro a mim mesmo por não saber absolutamente nada sobre a
virtude. E quem não sabe o que uma coisa é, como poderá saber que tipo de coisa ela é? Ou te parece possível
alguém que não conhece absolutamente quem é Mênon, esse alguém saber se ele é belo, se é rico e ainda se
é nobre, ou se é mesmo o contrário dessas coisas? Parece-te isso possível?

Mênon: Não, a mim, não. Mas tu, Sócrates, verdadeiramente não sabes o que é a virtude, e é isso que, a
teu respeito, devemos levar como notícia para casa? (PLATÃO in MARCONDES, 2009, p. 23)

Nesse trecho da conversa, temos a decepção de Mênon com Sócrates, uma vez que ele esperava do filósofo uma
resposta para o problema. E o pior, além de afirmar não saber responder a questão, Sócrates ainda diz não conhecer
que a saiba. Podemos notar que Platão está absolutamente convencido de que o conhecimento da virtude é a condição
primária para o exercício dela. Sendo assim, o primeiro passo é definir o que é a virtude. Ou seja, a questão não é saber
se pode ou não ser ensinada, uma vez que o primeiro passo é delimitar o que ela é.

O texto continua com os argumentos de Mênon e Sócrates. No trecho a seguir, Mênon enumera uma série de
virtudes, fato que será questionado por Sócrates:

Mênon: Não é difícil dizer, Sócrates, Em primeiro lugar, se queres que eu diga qual é a virtude do homem,
é fácil dizer que é esta a virtude do homem: ser capaz de gerir as coisas da cidade, e, no exercício da gestão,
fazer bem aos amigos e mal aos inimigos, e guardar-se ele próprio de sofrer coisa parecida. Se queres a
virtude da mulher, não é difícil explicar que é preciso a ela bem administrar a casa, cuidando da manutenção
do seu interior e sendo obediente ao seu marido. E diferente é a virtude da criança, tanto a da menina quanto
a do menino, e a do ancião, seja um homem livre, seja de um escravo (PLATÃO in MARCONDES, 2009, p. 25).

A questão que Platão levanta por meio de Sócrates é a seguinte: “A definição deve dar conta da unidade de uma
multiplicidade” (PLATÃO in MARCONDES, 2009, p. 26). Ou seja, Mênon expõe uma gama de ações virtuosas, mas, não
diz o que é a virtude. Ao longo do diálogo, Sócrates atenta para a necessidade de uma definição que comporte todas
as virtudes. Sendo assim, vamos percebendo que a construção do cidadão passa, necessariamente, pelo conhecimento
(ou seja, saber) daquilo que deve ou não ser praticado. Dito de outro modo, Platão acredita seriamente que o exercício
da cidadania na polis estava intimamente ligado ao conhecimento da virtude e dos vícios. Com isso, a educação das
crianças e dos jovens deveria contemplar esse tema, pois, de acordo com o pensador, agirá bem quem possui o
conhecimento do bem.

Evidentemente que a formação proposta por Platão está distante do relativismo dos sofistas, já que, para ele, a
formação do cidadão deveria estar alicerçada sobre os fundamentos da verdade. Nesse caso, o relativismo ético dos

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Pensamento político clássico

sofistas é um empecilho à educação do homem grego, pois, para os sofistas, não havia critério de verdade, que estaria
no próprio homem que examina a questão, conforme o seu interesse. Quando olhamos para a atualidade, vamos nos
dar conta de que o pensamento dos sofistas é muito mais presente do que o platônico, uma vez que essa ideia de
verdade absoluta vem perdendo a cada dia a sua força.

Levanto aqui uma questão: como deve ser a formação dos jovens para a cidadania na atualidade? Parece que essa
questão ainda não está bem resolvida, pois muitos países enfrentam inúmeros problemas para “educar” sua juventude.
Nesse caso, o interessante é compreender a atualidade do pensamento platônico, ou seja, a dificuldade encontrada por
Platão para pensar um caminho para o exercício da vida coletiva é a mesma que encontramos no tempo presente. Sendo
assim, nós também podemos postular a questão outrora feita pelo filósofo: o que fazer para que os cidadãos pensem no
bem comum no lugar de seus próprios interesses? Parece uma questão de difícil resolução, pois, naquilo que chamamos
de pós-modernidade, o individualismo reina soberanamente.

Segundo Platão, os homens, quando não educados corretamente, tendem a seguir os seus próprios interesses,
ou seja, são conduzidos por seus afetos e paixões. Platão nutria um verdadeiro pavor ao comportamento que não
fosse orientado pela razão. Para que você entenda melhor, ele não visualizava como algo positivo um comportamento
que fosse orientado pelos sentimentos, pois os considerava voláteis e transitórios, por isso, não poderiam ser fonte
inspiradora da verdade, que é permanente e perene.

Em suma, as duas primeiras contribuições do pensamento platônico para o pensamento político são as formas de
governo e a necessidade da formação política do cidadão para o exercício da cidadania.

O terceiro ponto a expor diz respeito à noção de justiça. Platão vai discutir na República: o que é a justiça? Para ele,
é uma espécie de somatória de todas as virtudes. Vamos percorrer o seguinte caminho: primeiramente, aquilo que ele
não considera ser a justiça, com base no diálogo de Sócrates com Glauco que está no livro II da República; em seguida,
como o filósofo imagina que deva funcionar a cidade justa. Para tal, ele enveredará pelos caminhos da antropologia e
da psicologia.

O texto a seguir, da professora Marilena Chauí (1994), apresenta brevemente os pontos principais do início da
República:

Como já vimos, a República indaga: o que é a justiça?

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Pensamento político clássico

O diálogo, que transcorre entre Sócrates, dois irmãos de Platão (Glauco e Adimanto) e um comerciante, Polemarco,
é interrompido pelo aparecimento de vários atenienses que passam pela casa de Polemarco e do sofista Transímaco. No
início do diálogo, Polemarco diz que a justiça é dar a cada um o que lhe é devido (pensamento típico do comerciante,
que logo pensa em dívidas que devem ser pagas e mercadorias que devem ser entregues). Polemarco exprime o senso
comum.

Transímaco, porém, afirma que a justiça é o poder do mais forte, seja porque este tem o poder para dominar os
mais fracos, seja porque aos mais fortes encontram formas astuciosas para se fazerem mais fortes e dominar os fortes.
Glauco afirma que a justiça é praticada somente porque os homens temem os castigos se forem injustos e, a propósito,
narra o mito do anel de Giges.

Leiamos o mito do anel de Giges:

[359b-360a] Glauco: vamos provar que a justiça só é praticada contra a própria vontade dos indivíduos e
devido à incapacidade de se fazer a injustiça, imaginando o que se segue. Vamos supor que se dê ao homem
de bem e aos injustos igual poder de fazer o que quiserem, seguindo-o para ver até onde os leva a paixão.
Veremos com surpresa o homem de bem tomar o mesmo caminho que o injusto, este impulsionado a querer
sempre mais, impulso que se encontrar em toda natureza, mas ao qual a força da lei impõe limites. O melhor
meio de testá-los da maneira como digo seria dar-lhe o mesmo poder que, segundo dizem, teve Giges, o
antepassado do rei da Lídia.

Giges era um pastor a serviço do então soberano da Lídia. Devido a uma terrível tempestade e a um
terremoto, abriu-se uma fenda no chão no local onde pastoreava o seu rebanho. Movido pela curiosidade,
desceu pela fenda e viu, admirado, um cavalo de bronze, oco, com aberturas. E ao olhar através de uma das
aberturas viu um homem de estatura gigantesca que parecia estar morto. O homem estava nu e tinha apenas
um anel de ouro na mão. Giges o pegou e foi embora.

Mais tarde, tendo os pastores se reunido, como de hábito, para fazer um relatório sobre os rebanhos ao
rei, Giges compareceu à reunião usando o anel. Sentado entre os pastores, girou por acaso o anel, virando a
pedra para o lado de dentro de sua mão, e imediatamente tornou-se invisível para os outros, que falavam dele
como se não estivesse ali, o que o deixou muito espantado. Girou de novo o anel, rodando a pedra para fora,
e tornou-se novamente visível. Perplexo, repetiu o feito para certificar-se de que o anel tinha esse poder e
concluiu que ao virar a pedra para dentro tornava-se invisível e ao girá-la para fora voltava a ser visível.

Tendo certeza disso, juntou-se aos pastores que iriam até o rei como representantes do grupo. Chegando
ao palácio, seduziu a rainha e com a ajuda dela atacou e matou o soberano, apoderando-se do trono.

Vamos supor agora que existam dois anéis como este e que seja dado um ao justo e outro ao injusto. Ao
que parece não encontraremos ninguém suficientemente dotado de força de vontade para permanecer justo
e resistir à tentação de tomar o que pertence a outro, já que poderia impunemente tomar o que quisesse no
mercado, invadir as casas e ter relações sexuais com quem quisesse, matar e quebrar as armas dos outros.
Em suma, agir como se fosse um deus. Nada o distinguiria do injusto, ambos tenderiam a fazer o mesmo e
veríamos nisso a prova de que ninguém é justo porque deseja, mas por imposição.

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Pensamento político clássico

A justiça não é, portanto, uma qualidade individual, pois sempre que acreditarmos que podemos praticar atos
injustos não deixaremos de fazê-lo. De fato, todos os homens creem que a injustiça lhes traz individualmente
mais vantagens do que a justiça, e têm razão, se levarmos em conta os adeptos dessa doutrina. Se um homem
que tivesse tal poder não consentisse nunca em cometer um ato injusto e tomar o que quisesse de outro,
acabaria por ser considerado, por aqueles que conhecessem o seu segredo, como o mais infeliz e tolo dos
homens. Não deixariam de elogiar publicamente a sua virtude, mas para disfarçarem, por receio de sofrerem
eles próprios algumas injustiças. Era isso o que tinha a dizer (PLATÃO in MARCONDES, 2009, p. 29).

O mito do anel de Giges faz alusão à ideia de que os homens são justos unicamente por medo dos castigos, ou seja,
qualquer um no lugar do pastor faria o mesmo ou, quem sabe, até coisas piores. O que me chama a atenção quando
eu conto essa história é notar o desejo que as pessoas que a ouvem têm de estar no lugar de Giges. Esse é o meu
próprio desejo. Então, pergunto-me, qual seria o motivo que nos leva a querer agir na escuridão? Você já imaginou o
que seria um anel de Giges nas mãos de um membro de algum dos três Poderes? A tentação de agir sem que ninguém
nos questione a respeito de nossas ações é enorme e, no caso de uma pessoa que exerce o poder, maior ainda. Por isso,
temos instâncias que, quando funcionam bem, servem para vigiar as ações daqueles que estão no poder, por exemplo,
Ministério Público, Tribunal de Contas, a própria sociedade civil, entre outros órgãos.

Quanto a Platão, saliente-se que essa tese do anel de Giges é aquela com a qual o filósofo menos concorda. Para
ele, não faz sentido uma justiça que esteja alicerçada sobre uma paixão, no caso, o medo. Pois a justiça deve ser
dirigida pela razão e, nesse caso, estaria totalmente submetida a uma paixão, como já dissemos, o medo da punição. O
professor Clóvis de Barros Filho, da Universidade de São Paulo, em uma de suas aulas a respeito da justiça em Platão,
no curso de Relações Públicas, disse o seguinte:

A tese com que Platão não concorda e que, por algum motivo, foi colocada na boca do seu irmão,
posteriormente irá se transformar na tese que motivará as reflexões a respeito do Estado moderno, ou seja,
até aquilo com que Platão não concorda virou fina filosofia.

Tendo apresentado o contraponto à noção de justiça em Platão, passo agora a discutir como o filósofo trata essa
questão.

Como aludimos anteriormente, o filósofo sustenta o seu pensamento político nos alicerces da psicologia e da
antropologia, ou seja, as noções de “alma” e ser humano serão importantes para a formulação do seu entendimento a
respeito da melhor forma de governo. Segundo ele, os critérios para estabelecer a boa política, ou seja, o bom governo,
devem passar longe da proposta dos sofistas, que, por dever de ofício, trabalhavam em praça pública para fazer
prevalecer o argumento que mais correspondesse aos seus interesses.

Segundo Platão, assim como a alma humana tem três partes e está dividida hierarquicamente, o bom governo é
aquele que organiza os homens em sociedade conforme a sua finalidade. Nesse caso, segundo ele, a sociedade humana,
ou seja, o corpo social deve respeitar a mesma ordem da hierarquia da alma. Sendo assim, caberá ao governante
colocar cada membro da sociedade conforme a sua destinação.

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Pensamento político clássico

De acordo com o pensador, são três as partes da alma: a parte racional (cognitiva); a parte irascível (colérica); e,
finalmente, a parte apetitiva (concupiscente). Observemos melhor a definição de cada uma dessas partes:

A alma apetitiva ou concupiscente, que busca comidas, bebidas, sexo, prazeres, isto é, tudo o que é
necessário para a conservação do corpo e para a geração de outro.

A alma colérica ou irascível, que se irrita contra tudo quanto possa ameaçar a segurança do corpo e da
vida, tudo o que cause dor e sofrimento; porque incita combater perigos contra a vida.

A alma racional, faculdade do conhecimento, parte espiritual e imortal, sede do pensamento e situada na
cabeça; é a faculdade ativa e superior (CHAUÍ, 1994, p. 213).

Os guerreiros representam a alma irascível, segundo Platão.

Para uma melhor compreensão da noção de alma em Platão, o que é importante para avançarmos no seu pensamento,
essas noções são apresentadas num esquema:

A alma racional A classe dos governantes (magistrados): o seu


principal prazer é a busca do conhecimento e da
verdade. Por isso, eles poderão ser chamados de
filósofos, ou seja, amigos do conhecimento.

A alma irascível A classe dos guerreiros: o desejo pela


glória é o seu principal prazer.

A alma apetitiva A classe dos agricultores, comerciantes e artesãos: o


desejo pelos bens materiais é o seu principal prazer.

Espero que a apresentação tenha clareado a noção que Platão tem de alma e como essa noção será transposta
para o pensamento político dele. Mais uma vez, acredito que o melhor seja deixar o filósofo falar por meio dos seus
textos. Por isso, em seguida, apresenta-se como esses grupos devem articular-se no corpo social. No texto do livro IX
da República, que veremos a seguir, Platão expõe as suas ideias a respeito de cada classe de cidadãos.

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Pensamento político clássico

Sócrates — Pois bem. Eis uma primeira demonstração. Vê agora se esta segunda te parece ter algum valor.
Glauco — Qual?
Sócrates — Se, assim como a cidade está dividida em três corpos, a alma de cada indivíduo está dividida
em três elementos, a nossa tese admite, ao que me parece, outra demonstração.
Glauco — Qual é?
Sócrates — Visto que há três elementos, parece-me que há também três espécies de prazeres próprios de
cada um deles e igualmente três ordens de desejos e de mandamentos.
Glauco — Como explicas isso?
Sócrates — Digamos que o primeiro elemento é aquele pelo qual o homem aprende, e o segundo, aquele
pelo qual se irrita. Quanto ao terceiro, como tem muitas formas diferentes, não pudemos encontrar para ele
uma denominação única e apropriada e designamo-lo pelo que tem de mais importante e predominante;
chamamos-lhe concupiscível, por causa da violência dos desejos referentes ao comer, ao beber, ao amor e aos
outros prazeres semelhantes. Também o consideramos amigo do dinheiro, porque é sobretudo por meio deste
que se satisfazem estas espécies de desejos.
Glauco — E tivemos razão.
Sócrates — Pois bem. Se afirmássemos que o seu prazer e o seu amor estão no ganho, não estaríamos
em condições, tanto quanto possível, de nos apoiarmos na discussão sobre uma noção única que o resume, de
modo que, sempre que falássemos deste elemento da alma, víssemos com clareza do que é? Assim, ao chamá-
lo de amigo do ganho e do lucro, lhe daríamos o nome mais adequado, não achas?
Glauco — Acho.
Sócrates — Mas não dissemos que o elemento irascível não pára de aspirar totalmente ao domínio, à
vitória e à fama?
Glauco — Dissemos.
Sócrates — Se, portanto, lhe chamássemos amigo da vitória e da honraria, a designação seria apropriada?
Glauco — Totalmente apropriada.
Sócrates — Quanto ao elemento pelo qual conhecemos, não fica claro aos olhos de todos que tende sem
cessar e inteiramente a conhecer a verdade tal como é e que é ele o que menos se preocupa com as riquezas
e a glória?
Glauco — Está certo.
Sócrates — Chamando-lhe amigo do saber e da sabedoria daremos a ele, então, o nome que lhe é
adequado.
Glauco — Sem dúvida.
Sócrates — E também não é verdade que nas almas existe este elemento que governa ou um dos outros
dois, conforme o caso?
Glauco — Sim, é verdade.
Sócrates — Por isso é que dizíamos que há três classes principais de homens: o filósofo, o ambicioso e o
interesseiro.
Glauco — Com certeza.
Sócrates — E três espécies de prazeres análogos a cada um desses caracteres.
Glauco — Efetivamente.
Sócrates — Agora, sabes bem que, se perguntasses alternadamente a cada um desses três homens qual
é a vida mais agradável, cada um elogiaria sobretudo a sua. O homem interesseiro diria que, em comparação
com o ganho, o prazer das honras e da ciência não é nada, a não ser que com ele seja possível fazer dinheiro.

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Glauco — É bem verdade.


Sócrates — E o ambicioso? Deve considerar vulgar o prazer de amealhar e simples fumo e frivolidade o de
conhecer, quando não traz honra, não lhe parece?
Glauco — Assim é.
Sócrates — Quanto ao filósofo, que caso faz, segundo nós, dos demais prazeres, em comparação com o
conhecimento da verdade tal como é e o prazer semelhante que goza sempre ao aprender? Não pensa que são
muito diferentes dele e, se os considera realmente necessários, não é em virtude da necessidade que tem de
usá-los, visto que prescindiria deles, se pudesse?
Glauco — Estamos certos disso.
Sócrates — Visto que discutimos os prazeres e a própria vida de cada um desses três caracteres de
homens, não para saber qual é a mais honesta ou a mais desonesta, a pior ou a melhor, mas a mais agradável
e a mais isenta de dificuldade, como reconhecer qual deles é que fala mais verdade?
Glauco — Não sei responder.
Sócrates — Examina o caso, amigo Glauco, do seguinte modo: quais são as qualidades requeridas para
julgar bem? Não são a experiência, a sabedoria e o raciocínio? Existem critérios melhores do que estes?
Glauco — Não seria possível.
Sócrates — Então repara. Qual destes três homens tem mais experiência de todos os prazeres que
acabamos de referir? Achas que o homem interesseiro, se se dedicasse a conhecer a verdade em si mesma,
teria mais experiência do prazer da ciência do que o filósofo teria do prazer do ganho?
Glauco — A diferença é grande. Afinal é uma necessidade para o filósofo gozar desde a infância os outros
prazeres, ao passo que para o homem interesseiro, se ele se dedica a conhecer a natureza das essências, não
é uma necessidade gozar todo o regalo deste prazer e adquirir a sua experiência. Além do mais, seria difícil
para ele levar a coisa a sério.
Sócrates — Assim, o filósofo está bem acima do homem interesseiro, pela experiência que tem destas duas
espécies de prazeres.
Glauco — Sim, de longe.
Sócrates — E que dizer do ambicioso? O filósofo tem menos experiência do prazer ligado às honras do que
o ambicioso do prazer que acompanha a sabedoria?
Glauco — A honra favorece cada um deles quando atingem o objetivo que se propõem, porque o rico, o
valente e o sábio são honrados pela multidão, de modo que todos conhecem, por experiência, a natureza do
prazer ligado às honrarias. Mas ninguém, a não ser o filósofo, pode gozar o prazer que a contemplação do ser
proporciona.
Sócrates — Em conseqüência disso, no que diz respeito à experiência, dos três, é ele quem julga melhor.
Glauco — De longe.
Sócrates — E é o único em quem a experiência é acompanhada da sabedoria.
Glauco — Com certeza.
Sócrates — Realmente, o instrumento que é necessário para julgar não pertence ao homem interesseiro,
nem ao ambicioso, mas ao filósofo.
Glauco — Que instrumento?
Sócrates — Dissemos que era preciso servir-se do raciocínio para julgar, não dissemos?
Glauco — Sim.
Sócrates — O raciocínio é o principal instrumento do filósofo, não é?
Glauco — Sem dúvida (PLATÃO, 1997).

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Para Platão, o Estado seria um prolongamento da alma humana, ou seja, assim como a alma está dividida em três,
a “alma” social também recebe essa divisão.

Para Platão, sendo o Estado uma espécie de prolongamento da alma, estaria também sujeito às mesmas intempéries
que afetam os seres humanos. Com isso, assim como a alma racional deve governar a alma irascível e a alma apetitiva,
o governo do Estado deve ser exercido por aqueles suficientemente capazes de usar a razão para controlar todas as
paixões. Ou seja, a classe dos governantes deve agir com a razão para dominar as duas outras, que constantemente
são levadas pelos seus afetos de honrarias e riquezas. Em outras palavras, o Estado justo e ideal é aquele no qual cada
membro ocupa a sua função no corpo político, como vimos no quadro acima.

Nesse caso, a infelicidade da cidade é o resultado do direcionamento equivocado das paixões, por isso, é a função
daquele que governa ordenar e dirigir as classes sociais para que elas cumpram as suas funções. Dito de outro modo,
a cabeça, onde estão os governantes, deve governar; o peito, onde se encontram os guardiões e guerreiros, deve
proteger a cidade; e, no estômago, os artesãos e comerciantes devem suprir economicamente a cidade.

No texto acima, é desvelada a proposta de Platão para que o governante seja um filósofo, ou, pelo menos, que
se torne um filósofo. O importante é perceber o quanto Platão tinha pavor dos comportamentos irracionais dentro
da sociedade: o homem que age movido por seus afetos age na irracionalidade. Desse modo, a classe inferior dos
comerciantes, artesãos e camponeses localiza-se no estômago do corpo político. Ou seja, o estômago é considerado o
local dos afetos desenfreados, sem controle e sem nenhuma racionalidade.

Na realidade, uma das principais preocupações de Platão era a de não deixar o Estado nas mãos de pessoas que
buscassem os próprios interesses. De acordo com o filósofo, alguém que agisse movido pela razão não seria capaz de
dar vazão aos afetos e, com isso, não deixaria os seus interesses particulares prevalecerem diante da coisa pública, ou
seja, da res pública.

Podemos pensar, com o auxílio de Platão, as questões da política na atualidade. Até que ponto os nossos políticos
agem movidos pelo interesse público? Um dos motivos que levou o filósofo a imaginar uma política firmada no interesse
coletivo foi a atuação dos sofistas. Eles eram pagos para defender os interesses privados na praça pública. Por isso,
Platão rechaçaria com veemência a noção sofística de que o melhor argumento é consequentemente o mais justo. No
nosso caso, a política brasileira é marcada por parlamentares que atuam na defesa de interesses privados na hora de
legislar. Com isso, a democracia brasileira fica cada vez mais restrita a um número pequeno de pessoas com poder
econômico para financiar campanhas e, dessa forma, ter uma espécie de despachante dos seus interesses nos altos
cargos da República. Digamos que boa parte dos políticos brasileiros não teria a menor chance de se tornar governantes,
para Platão.
Em resumo, a justiça para Platão ocorre quando cada um dos cidadãos está no local para o qual tem capacidade, ou
seja, a ideia de que todos os homens são iguais e têm os mesmo direitos não passa pela cabeça do pensador, uma vez
que são por ele classificados em uma escala que coloca alguns acima de outros.

Desvelamos parte considerável do pensamento político de Platão e, obviamente, ainda haveria muito mais a dizer,
o que será feito por meio de leituras complementares e nos momentos de interatividade do curso. Vale lembrar que,
quando tratamos do pensamento de um filósofo tão complexo como Platão, alguns aspectos não gozam de consenso
entre os estudiosos do autor. Sendo assim, ressalto mais uma vez a importância da interatividade para discutirmos esses
pontos de vista.

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4. Aristóteles: o homem é um animal político


O valor de Platão é incontestável no que diz respeito a sua contribuição para o pensamento político, mas é na
filosofia política de Aristóteles que aparecem as contribuições mais significativas para a fundamentação do político,
a partir da definição: o homem é um animal político. Em outras palavras, no entender de Aristóteles, o homem é
naturalmente destinado a formar associações e a viver em sociedade. O seu modelo político é tão importante que
passou para a história como modelo aristotélico. Sendo assim, alguns aspectos desse modelo serão importantes para
fazer o contraponto com o modelo jusnaturalista ou hobbesiano.

Aristóteles foi discípulo de Platão, possivelmente um dos mais importantes, mas, evidentemente, não concordou com
muitos aspetos do pensamento do seu mestre.

Aristóteles não foi um recluso intelectual: a vida de contemplação que ele recomendava não deve ser
passada numa poltrona nem numa torre de marfim. Embora nunca tenha sido político, ele foi com freqüência
uma figura pública bastante presente ao olhar público (BARNES, 2005).

Deixemos o filósofo “falar” por meio do seu famoso texto da Política no qual ele apresenta o homem como um animal
político:

É evidente que a cidade faz parte das coisas naturais. e que o homem é por natureza um animal político. E
aquele que por natureza, e não simplesmente por acidente, se encontra fora da cidade ou é um ser degradado
ou um ser acima dos homens, segundo Homero (Ilíada IX, 63) denuncia, tratando-se de alguém: sem linhagem,
sem lei, sem lar:

Aquele que é naturalmente um marginal ama a guerra, e pode ser comparado a uma peça fora do jogo. Daí
a evidência de que o homem é um animal político mais ainda que as abelhas ou que qualquer outro animal
gregário. Como dizemos freqüentemente, a natureza não faz nada em vão; ora, o homem é o único entre
os animais a ter linguagem [logos]. O simples som é uma indicação do prazer ou da dor, estando portanto
presente em outros animais, pois a natureza destes consiste em sentir o prazer e a dor e em expressá-las.
Mas a linguagem tem como objetivo a manifestação do vantajoso e do desvantajoso, e portanto do justo e do
injusto. Trata-se de uma característica do homem ser ele o único que tem o senso do bom e do mau, do justo
e do injusto, bem como de outras noções deste tipo. É a associação dos que têm em comum essas noções
que constitui a família e o estado (ARISTÓTELES in MARCONDES, 2009, p. 56).

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Pensamento político clássico

Na verdade, o que Aristóteles quer dizer quando afirma ser o homem um animal político é que ele não conseguirá a
plena satisfação e a felicidade fora da vida social, pois, de acordo com esse pensador, os homens não se associam por
vontade própria, mas o fazem naturalmente.

Na obra Política, sobretudo nos dois primeiros capítulos, Aristóteles desmonta o corpo social a fim de explicá-lo. Para
ele, a família é a célula de qualquer sociedade, é a comunidade natural. Diferentemente de Platão, que praticamente
propôs a extinção da família para fins políticos, Aristóteles irá colocá-la como fundamento da estrutura política. A fim de
facilitar o entendimento, o quadro a seguir mostra a ordem e a finalidade de cada um das comunidades naturais. Ressalto
o tema da finalidade, uma vez que a cidade será a única que a encontra em si mesma. Posteriormente, voltaremos à
questão teleológica de Aristóteles, ou seja, à noção de que tudo o que existe no cosmos tem uma finalidade. Vejamos
com ele estruturou o seu pensamento:

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Pensamento político clássico

Destacam-se duas principais características da cidade: a primeira está no fato de ela garantir a vida boa; a segunda
encontra-se na sua autossuficiência.

No que diz respeito à vida boa, a cidade é a única capaz de satisfazer todas as necessidades do homem, ou seja,
a polis é a garantia da plena realização da natureza humana. De acordo com Aristóteles, a felicidade humana está no
cumprimento da sua finalidade no cosmos. O pensador acredita que o cosmo é um todo organizado e que os homens,
assim como tudo o que existe no universo, tendem a uma finalidade. Para o filósofo, somente as feras e os semideuses
estão fora da sociedade. Já o homem tende naturalmente a criá-la.

Essa visão teleológica, a noção de que as coisas do universo tendem a uma finalidade específica será de fundamental
importância para a perfeita compreensão da visão mecanicista que será apresentada no século XVII por Thomas
Hobbes, formando o alicerce do seu pensamento político.

Os argumentos utilizados por Aristóteles para desenvolver a teoria da finalidade das coisas são os seguintes: primeiro,
a natureza das coisas está na realização do seu fim; segundo, o fim de uma coisa, ou seja, a sua finalidade, confunde-se
com o seu bem. Em outras palavras:

A tese de que a natureza de uma coisa é o seu fim significa, no primeiro sentido da palavra fim, que toda
mudança tende para o seu próprio acabamento e se acaba assim que o ser que muda tiver efetivamente
atingido aquilo que ele sempre era em potência. [...] O segundo argumento a favor da naturalidade da cidade
decorre do segundo sentido atribuído por Aristóteles à palavra fim: o fim de uma coisa coincide com o seu
bem (FRATESCHI, 2008, p. 22).

Nesse caso, viver na polis não é fruto de uma escolha, pelo contrário, é uma tendência natural que há nos homens.

Em suma, os principais aspectos do pensamento político de Aristóteles são: o homem é um animal político; a cidade
é a causa final do primeiro modelo de sociedade natural, que é a família; a finalidade da cidade é a de garantir a vida
boa; o homem somente alcança a felicidade plena, ou seja, o seu bem supremo na vida coletiva.

Finalmente, em Aristóteles, assim como em Platão, encontra-se a ideia de que a política tem por finalidade o bem
comum. A concepção de homem e de vida pública está muito presente nos dois autores. Sendo assim, é possível
classificar essa perspectiva de política fundamentada no bem comum como um dos principais pontos do modelo clássico
de política.

O modelo clássico de pensamento político servirá de alicerce para a política nos períodos antigo e medieval. Ele
perderá a sua força a partir do século XV, quando novas formas de pensar e estruturar a política terão início, sobretudo
no pensamento de Maquiavel, o que atingirá o seu ápice com Thomas Hobbes. Mesmo assim, é muito comum às
pessoas referirem-se aos homens como naturalmente políticos.

Com base no pensamento político de Aristóteles, podemos salientar a importância de formar cidadãos que visem
ao bem comum. Pois, como já aludimos, a ideia de homem público é muito forte em Platão e Aristóteles, ou seja,
no modelo clássico. O individualismo da atualidade sobrepõe-se a esse conceito de homem público, uma vez que o
exercício da cidadania limita-se ao voto e ao pagamento de impostos para a maioria das pessoas. Talvez, para boa parte
dos cidadãos, a vida pública fique relegada a um segundo ou terceiro plano.

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5. O modelo jusnaturalista
O modelo jusnaturalista é associado a Thomas Hobbes (1588-1679), considerado o fundador do jusnaturalismo
moderno. O jusnaturalismo representa uma nova proposta para a formação da vida social diferente do modelo aristotélico.
Sua análise direciona para o centro da filosofia política os fundamentos da vida social. Trata-se da teoria política que
pensa os fundamentos da vida social a partir do estado de natureza. Suas principais características são a dicotomia entre
estado de natureza e estado civil, a antítese entre eles. No primeiro, em geral, mas não exclusivamente, os indivíduos
estão isolados e são iguais e livres entre si. Já a transição do primeiro para o segundo ocorre por meio do contrato entre
os indivíduos livres, e o que dá legitimidade a esse contrato é o consentimento (BOBBIO, 1991). No fundo, o modelo
jusnaturalista sustenta-se nos pilares da natureza humana e do estado de natureza para pensar a política.

Hobbes é considerado, ao lado de Jean-Jacques Rousseau, um dos principais expoentes do pensamento jusnaturalista.
Nesta disciplina, vamos nos prender ao pensamento hobbesiano. Passemos à análise de alguns momentos da vida do
pensador.

Thomas Hobbes figura entre os mais importantes filósofos da história da filosofia política. Nasceu em 1588, em
Malmesburg, na Inglaterra, e viveu durante o conturbado período da guerra civil inglesa. A tendência é considerar que
Hobbes teria sido profundamente influenciado pelos acontecimentos políticos da Inglaterra do século XVII, mas esse
fato não é consenso entre os estudiosos do autor. Segundo Julio Bernardes (2002, p. 8), no seu livro de introdução
ao pensamento do filósofo, “o período histórico no qual viveu Hobbes é marcado por contendas ideológicas, conflitos
políticos e religiosos e pelas recentes descobertas de novos continentes”. Em outras palavras, o ambiente no qual viveu
o autor está estremecido por diversos acontecimentos que mudaram os rumos da humanidade. Pode-se comparar os
séculos XV e XVI ao século XX, ou seja, um período de profundas transformações.

O trabalho que Hobbes desenvolveu como preceptor do filho do conde William Cavendish, primeiro conde de
Devonshire, colocou-o no centro dos principais debates filosóficos e políticos do século XVII. Por conta das viagens que
fez na companhia do seu pupilo, ele estabeleceu contato com pessoas influentes dos mundos acadêmico e político, bem
como com personalidades de Genebra e Roma.

Além da presença do filósofo no ambiente dessas personalidades, o contato com as mudanças provocadas pela
“nova ciência” também foi determinante na sua formação. A esse respeito, Bernardes (2002, p. 12) afirma: “Pode-se
dizer que duas coisas mudaram definitivamente a vida intelectual de Thomas Hobbes: o espanto com as verdades a
priori da geometria de Euclides e a física de Galileu”.

Hobbes será um apaixonado pela física do século XVII, tanto que ele pretendia escrever a sua obra em três partes:
na primeira, a física; na segunda a sua “antropologia”; e, finalmente, a política. Essa tendência pode ser observada na
introdução que Renato Janine Ribeiro faz em uma de suas principais obras de Hobbes, Do cidadão (no original, De cive)
(in HOBBES, 2002, p. 22):

Hobbes planejava escrever a sua obra em três etapas. A primeira se voltaria para o exame dos corpos; seria
sua física. Na segunda, consideraria, dentre os corpos, em particular o dos homens – o que em linguagem de
hoje chamaríamos sua psicologia. Na terceira, finalmente estudaria os homens enquanto cidadãos: a política.

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Pensamento político clássico

Nesse caso, a física também aparecerá com elemento importante na formulação do pensamento de Hobbes. Sendo
assim, destacam-se dois pontos importantes que podem ajudar na compreensão de um autor tão complexo: a influência
da conturbada Inglaterra do século XVII e as transformações da “nova ciência”, ou seja, das novas posturas científicas
que começam a ganhar força após a revolução científica.

Com o Renascimento, carreiras como a escolhida por Hobbes, isto é, ser preceptor do filho de um conde
e tradutor de textos clássicos, eram extremamente valorizadas. Para os renascentistas, conhecer os clássicos
era um meio de formar homens que pudessem, mediante a política, melhorar a vida social. A retomada da
literatura clássica, como a de Cícero, por exemplo, podia fazer do homem moderno um cidadão mais atuante
na transformação do seu meio social. Vejamos como Richard Tuck, na introdução do Leviatã, apresenta esse
contato dos renascentistas com Cícero:

“O objetivo do conhecimento dos clássicos era equipar um homem para o tipo de serviço público que
heróis como Cícero haviam desempenhado: o melhor modo de vida (acreditavam eles) era a do cidadão ativo
e comprometido, lutando pela liberdade da república ou usando as suas habilidades oratórias para convencer
outros cidadãos a lutar com ele” (ROCHA, 2010, p. 12).

Em resumo, Thomas Hobbes é um pensador envolvido com as questões do seu tempo, ou seja, boa parte de sua
filosofia está fundamentada na questão política da Inglaterra de sua época.

5.1. O pensamento político de Hobbes: Hobbes contra Aristóteles


Thomas Hobbes inaugura uma nova perspectiva de fundamentação do poder político, uma vez que procura fundar
a autoridade do governante fora da natureza, como fez Aristóteles, e não evoca o direito divino dos reis para basear o
seu pensamento. Em outras palavras, para ele, o Estado não é o resultado da natureza humana, e a autoridade do rei
não é obra de Deus, como acreditavam aqueles que defendiam o direito divino. Mas, pelo contrário, o Estado é artificial,
e a autoridade do governante é a consequência de um pacto entre os homens.

Muitas pessoas consideram-no um monarquista absolutista, mas o problema político de Hobbes vai além do sistema
político da Inglaterra do seu tempo. Em outras palavras, Hobbes não pode ser considerado um absolutista em sentido
estrito (stricto), pois não sustenta as bases da autoridade do governante no direito divino dos reis. No caso, a missão
do pensador será a de encontrar um ponto que dê estabilidade e unidade para o poder político.

Outro aspecto do pensamento político de Hobbes é que, a fim de pensar novas bases para o fundamento da política
e do Estado, ele torna-se um dos maiores combatentes do modelo clássico de política. Seu principal e primeiro foco
será Aristóteles e toda a sua tradição, em especial a tese aristotélica do homem como ser apto para a vida social.
Para facilitar a apresentação do modelo político de Hobbes, decidimos dividi-lo em alguns pontos principais, a saber:
primeiro, o combate que faz ao modelo aristotélico de política; depois, a análise da natureza humana e do estado de
natureza; finalmente, o pacto social como alternativa a esse estado de natureza. Vamos nos prender a duas obras de
Hobbes: De cive (Do cidadão), de 1642, e Leviatã, de 1652.

O modelo clássico de política será o primeiro que Hobbes atacará impiedosamente no De cive. Logo no início da obra,
ele afirma (HOBBES, 2002, p. 26):

24
Pensamento político clássico

A maior parte daqueles que escreveram alguma coisa a propósito das repúblicas ou supõe, ou nos pede ou
requer que acreditemos que o homem é uma criatura que nasce apta para a sociedade. Os gregos chamam-no
de zoon politikon; e sobre este alicerce eles erigem a doutrina social [...]. Axioma esse que embora acolhido
pela maior parte, é contudo sem dúvida falso – um erro que procede de consideramos a natureza humana
muito superficialmente.

Como podemos perceber no texto, o filósofo vai diretamente ao modelo aristotélico, ou seja, à premissa de que os
homens são naturalmente sociáveis. De acordo com Hobbes, essa ideia nasce de uma interpretação equivocada da
natureza humana, pois, segundo ele, os homens buscam a companhia dos outros por dois motivos: por glória ou por
lucro. Em outras palavras, eles não tiram prazer algum da companhia dos outros homens. Em suma, de acordo com o
próprio autor: “Toda associação, portanto, ou é para o ganho ou é para a glória” (HOBBES, 2002, p. 28).

O argumento utilizado pelo pensador para fundamentar tal afirmação de que os homens não encontram prazer na
companhia dos outros é o seguinte: se o amor entre eles fosse natural, ou seja, obra da natureza, não haveria motivo
para que se amassem a todos, sem exceção (HOBBES, 2002, p. 26). Nesse caso, Hobbes estava se contrapondo à tese
do amor natural de Cícero (FRATESCHI, 2008, p. 32). Em outras palavras, é forçoso não acreditar que a união entre os
homens seja natural, pois a experiência mostra o contrário, ou seja, normalmente eles associam-se por algum interesse.
Com isso, Hobbes inaugura um novo parâmetro para a política, que é a lógica do benefício próprio. Se, com Platão e
Aristóteles, temos a lógica do bem comum, em Hobbes, o homem age visando o seu próprio benefício. Discutamos
melhor esse conceito.

O princípio do benefício próprio parte da premissa de que os homens se associam visando à própria glória ou a
algum lucro. Nesse caso, o Estado seria apenas um meio para que eles possam atingir o seu fim. Dito de outro modo,
diferentemente de Aristóteles, para quem a política era a plena realização da finalidade humana, para Hobbes, ela é
apenas um meio, não um fim (HOBBES, 2002, p. 34). Sendo assim, os homens procuram em primeiro lugar o próprio
bem e, secundariamente, o bem comum.

Interessante é perceber como esse princípio do benefício próprio está envolto na vaidade e no lucro. Hobbes
percebeu que a natureza humana tem algumas tendências que a conduzem nessa ou naquela direção (abordaremos
isso posteriormente), por isso, ele entende ser esses dois pilares os que mais contribuem para que os homens não sejam
naturalmente políticos.

Dessa maneira, o filósofo começa a desmontar aos poucos a tese aristotélica de homem naturalmente apto à vida
política. Cabe ressaltar que Hobbes falará muitas vezes, sobretudo, do desejo que os seres humanos têm de vangloriar-
se, ou seja, dessa tendência natural que eles possuem de buscar honras e elogios. Esse aspecto fica evidente neste
trecho do De cive:

[...] Cada homem está mais afeito a se divertir com aquelas coisas que incitam à risada, a razão por que
pode mais subir em sua própria opinião quando se compara com os defeitos e deficiências de outrem; e
embora isto por vezes se faça de modo inocente e sem ofender, é porém manifesto que tais homens não se
deleitam tanto com a sociedade, mas com sua própria vã glória (HOBBES, 2002, p. 26).

25
Pensamento político clássico

Outro argumento que o filósofo utiliza é o seguinte: normalmente, em nossas reuniões, ferimos aos ausentes com
palavras. Dito de outra maneira, quando alguma pessoa do nosso grupo de amigos não está presente na roda de
conversa, ela torna-se o alvo de todas as outras. O autor dá até mesmo um conselho ao dizer que não é conveniente
ser o primeiro a ir embora numa reunião de amigos.

Evidentemente, essa tese que derruba o modelo clássico de política funda-se em uma análise profunda da natureza
humana. Ou seja, Hobbes vai desmontar e remontar a estrutura humana para poder entendê-la melhor. Esse desafio
de destrinchar o homem, ou melhor, a natureza humana é o principal argumento que ele usa para defender que esta,
ao contrário do que pensa Aristóteles, é belicosa. Em outras palavras, essa postura dos homens em relação aos outros
tem um fundamento na própria natureza humana, ou seja, na própria constituição natural deles.

Essa ideia de pensar a política com base na natureza humana, partindo dela, é o coração do jusnaturalismo. Por isso,
Hobbes será considerado o pai do jusnaturalismo moderno.

Em suma, segundo Hobbes, o modelo político empreendido pelos clássicos é, para ele, falso, pois parte de premissas
equivocadas. Sendo assim, o autor também se considera o fundador da ciência política moderna, uma vez que boa parte
do que foi feito até aquele momento estaria fundamentado sobre um equívoco, como ele mesmo alude no prefácio do
De Cive:

“[...] A ciência política deve ser de todas a primeira: porque ela diz respeito tão de perto aos príncipes, e
outros que têm por emprego governar a humanidade; e também porque a maior parte dos homens se deleita
com a falsa imagem sua (HOBBES, 2002, p. 10).

Portanto, quando alguém lhe disser que o homem é um animal político, afirme: para quem? De acordo com quem?
Pois, como podemos notar, essa tese não é uma unanimidade, assim como nada em política é unânime.

Enveredemos, em seguida, primeiramente, pelo campo da natureza humana e, posteriormente, pelo do estado de
natureza.

5.2. Natureza humana: o homem que deseja


Hobbes parte da análise da natureza humana para entender o homem num hipotético estado de natureza, ou estado
pré-social. Sendo assim, na primeira parte do Leviatã, ele se ocupará do homem, da sua essência e de todos os aspectos
que compõem a sua estrutura. Para tal, empreenderá uma análise das paixões humanas.

Já na introdução do Leviatã, o filósofo compara o corpo social à estrutura do corpo humano, obviamente numa
perspectiva diferente de Platão. Segundo ele, o Estado seria o homem artificial, e seu principal objetivo deveria ser o de
garantir “proteção” e “defesa” ao corpo natural daqueles que juntos formam esse corpo artificial, ou seja, os súditos.
Segundo o autor, a alma artificial é a soberania, pois ele entende que é esta que dá vitalidade a todas as partes do corpo:
“A soberania é uma alma artificial, pois dá vida e movimento ao corpo inteiro” (HOBBES, 2003, p. 11). Magistrados e
funcionários seriam as juntas desse corpo; a função dos nervos seria promover a recompensa e os castigos; a riqueza
e a prosperidade corresponderiam à força; os conselheiros seriam a memória; as leis, a vontade, a equidade e a razão
(HOBBES, 2003, p. 11). Já a concórdia corresponderia ao que é no corpo a saúde; a sedição, por sua vez, seria a
doença. Por fim, a guerra é concebida como a morte do corpo social (HOBBES, 2003, p. 46).

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Pensamento político clássico

Voltando ao tema das paixões, podemos destacar um aspecto que será importante na compreensão do tema: a física
do século XVII, ou seja, a visão mecanicista do homem, que estará presente na primeira parte do texto hobbesiano.

Da origem interna dos movimentos voluntários vulgarmente chamados de paixões; e da linguagem que os exprime
(HOBBES, 2003, p. 46). Com esse título, Hobbes inicia o capítulo seis do Leviatã, onde desenvolverá a sua teoria a
respeito das paixões humanas. O itinerário é o seguinte: primeiramente, ele define o que são paixões e, em seguida,
demonstra uma gama delas.

A temática das paixões está sempre presente na história do pensamento. É comum ver os pensadores analisando
as diversas questões humanas com base nelas, e, com Hobbes, não será diferente. Mas o que são as paixões para esse
autor? Para ele, elas são movimentos da mente na direção de algo, de algum benefício. Na realidade, esse movimento
é o que ele chama de desejo ou aversão. Em outras palavras, os homens tendem a ir em direção das coisas que lhes
proporcionam prazer e afastam-se daquelas que causam desprazer ou dor. Nas palavras de Hobbes:

Estes pequenos inícios de movimento, no interior do corpo do homem, antes de se manifestarem no andar,
na fala, na luta em outras ações visíveis, chamam-se geralmente esforço.

Este esforço, quando vai na direção de algo que o causam chama-se apetite ou desejo, sendo o segundo
o nome mais geral, e o primeiro frequentemente limitado a significar o desejo de alimento, nomeadamente
a fome e a sede. Quando o esforço vai na direção contrária a alguma coisa, chama-se geralmente aversão
(HOBBES, 2003, p. 47).

Podemos perceber que o pensamento do filósofo sobre a origem dos movimentos, ou seja, sobre a sua causa, tem
uma forte relação com a física. Na verdade, o que Hobbes faz com a sua teoria sobre o movimento dos corpos é uma
física do movimento. Ele começa o capítulo dois do Leviatã, no qual trata do tema da imaginação, com as seguintes
palavras: “Nenhum homem duvida da verdade da seguinte afirmação: quando uma coisa está em repouso, permanecerá
sempre em repouso, a não ser que algo a coloque em movimento” (HOBBES, 2003, p. 17). O movimento dos corpos
seria então o resultado de uma ação causal eficiente que, no limite, tende a fazê-los movimentarem-se ao infinito caso
não haja uma força contrária que os faça parar.

Seria o homem hobbesiano um corpo descontrolado? Aparentemente, sim. Pois, na verdade, as ações humanas são
o resultado de um corpo que busca a sua satisfação e, dado que o movimento é infinito, ou melhor, tende ao infinito,
as paixões (que são esses movimentos da mente) tendem à busca infinita do objeto de desejo. A esse respeito, procuro
sempre dar aos meus alunos o seguinte exemplo: vocês já imaginaram uma vida sem nenhum empecilho, sem nenhum
limite? Imagine o que seria um anel de Giges na atualidade? Como você acha que os seres humanos agiriam? Decerto
aconteceria todo tipo de coisa, pois os desejos são múltiplos e infinitos caso não haja um poder capaz de colocá-los em
ordem.

Em linhas gerais, poderíamos afirmar que a visão que Hobbes tem da natureza e dos corpos é uma visão mecanicista.
Sem entrar na complexidade e no mérito da questão, limitamo-nos a dizer a respeito que o autor deixa de lado a visão
teleológica de natureza, segundo a qual todos os corpos dirigem-se para um fim determinado, e passa para a visão
mecânica e causal, segundo a qual os corpos dirigem-se para um fim não determinado, mas almejado. Observemos a
mudança de paradigma na questão do movimento contrapondo muito rapidamente Hobbes e Aristóteles.

27
Pensamento político clássico

De acordo com Iara Frateschi (2008, p. 62), ao estudarmos Aristóteles, um dos alvos privilegiados da filosofia política
de Hobbes, pois encarna perfeitamente essa visão teleológica, podemos chegar à seguinte conclusão: “Para Aristóteles,
o movimento natural é teleológico, causado pela tendência natural do corpo a obter a sua completude, a atualizar a sua
essência”. O movimento dos corpos seria então o resultado de uma ação causal eficiente que, no limite, tende a fazê-los
movimentarem-se ao infinito caso não haja uma força contrária que os faça parar.

O que é importante salientar da tese hobbesiana das paixões é que os homens são levados a agir motivados por
impulsos, ou seja, as paixões estão a todo instante agindo neles e determinando as suas ações. Em outras palavras, a
natureza humana sofre com as leis da física, assim como qualquer outro corpo na natureza. A única diferença está nos
movimentos de vontade de deliberação. Quais são essas paixões que movem os homens? A fim de ajudar a sistematizar
as paixões em Hobbes, elas são expostas no quadro a seguir:

O apetite ligado à crença de conseguir O mesmo apetite, sem essa crença, chama-se
chama-se esperança. desespero.

A aversão ligada à crença do dano A mesma aversão, com esperança de evitar esse
chama-se medo. dano, chama-se coragem.

A coragem súbita chama-se cólera. A esperança constante chama-se confiança em si.

O desespero constante chama-se A cólera perante um dano feito a outrem chama-se


desconfiança em si mesmo. indignação.

O desejo do bem dos outros se chama Se for desejo de bem em geral, chama-se bondade
benevolência, caridade. natural.

O desejo de riquezas chama-se cobiça. O desejo de cargos chama-se ambição.

O desejo de coisas que não levam a O amor pelas pessoas, sob aspectos da convivência
nada chama-se pusilanimidade. social, chama-se gentileza.

O amor por uma só pessoa, junto com O desejo de causar dano a outrem, a fim de levá-lo a
o desejo de ser amado com exclusividade, lamentar qualquer um dos seus atos, chama-se vingança.
chama-se paixão de amor.

Expus algumas das que considero as principais paixões humanas, de acordo com o pensamento de Hobbes. Espero
que você tenha percebido como ele articula a noção de paixão ao desejo ou aversão que se tem de alguma coisa. As
duas paixões que mais se destacam são o medo e a esperança.

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Pensamento político clássico

Medo e esperança são duas paixões fundamentais na filosofia política de Hobbes.

Em suma, o pensamento político de Hobbes sustenta-se no patamar das paixões. Como dissemos, ele parte de uma
análise da natureza humana a fim de entender as ações do homem no estado pré-social, que é o estado de natureza,
e no estado civil.

Na verdade, não é possível fazer uma análise moral das paixões, pois elas são impulsos da natureza, e cabe aos seres
humanos o convívio com a sua estrutura. Nesse caso, Hobbes não está preocupado em demonstrar como os homens
deveriam ser, mas, pelo contrário, procura apresentar como a natureza humana é, ou seja, como ela se comporta.

Lemos no Leviatã que é o próprio homem quem determina o que é bom ou mal com base nesse critério de desejo
e aversão. Segundo ele, “seja qual for o objeto do apetite ou do desejo de qualquer homem, esse objeto é aquele que
cada um chama de bom; ao objeto do seu ódio e aversão chama de mau” (HOBBES, 2003, p. 48). Na verdade, o critério
para dizer o que é bom ou ruim é subjetivo, não sendo a moral, portanto, um conhecimento objetivo: “Descrição sobre
bom ou mal são projeções de nossas sensações internas sobre o mundo externo, assim como vermelho e verde” (TUCK
in HOBBES, 2003, p. 29).

Para Hobbes, o agir humano é determinado não por imperativos morais, mas por uma tendência natural, que é a
autopreservação. Ou seja, os homens procuram tudo o que lhes dá algum prazer e fogem das coisas que lhes causam
algum tipo de dor ou sofrimento.

Outro aspecto, além do desejo de autopreservação, está na questão da linguagem. O homem não apenas exprime
o desejo de fugir dos desprazeres e de procurar o prazer, mas também procura exprimir por meio da linguagem aquilo
que lhe parece bom ou ruim. Dito de outro modo, é por meio da linguagem e da sensação que a natureza humana
define o que é bem e mal.

Finalmente, o que fazer com esse ser humano que é movido por impulsos naturais? Como ele agiria sem nenhum
pressuposto? Para essas respostas, Hobbes formula o hipotético estado de natureza. É o que veremos no trecho a seguir.

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Pensamento político clássico

5.3. O estado de natureza: a manifestação das paixões


O estado de natureza é o estado pré-social dos seres humanos. Em outras palavras, é a situação do homem fora do
estado civil, ou seja, fora da sociedade. Dito de outro modo, o estado de natureza é a condição natural do homem sem
a sociedade, nesse caso, sem nenhum limite, poder ou autoridade.

No estado de natureza, os homens gozam de uma igualdade natural, tanto na força quanto na inteligência. Segundo
Hobbes (2002, p. 29), “a desigualdade que hoje constatamos encontra a sua origem na lei civil”. Ou seja, a desigualdade
é fruto do estado civil, pois este está organizado hierarquicamente, diferentemente do estado de natureza.

Como consideramos o contato direto com a obra de fundamental importância para um melhor entendimento,
passemos à leitura do capítulo 13 do Leviatã (HOBBES, 2003), que é fundamental para o pleno entendimento do que é
o estado de natureza.

A natureza fez os homens tão iguais, quanto às faculdades do corpo e do espírito que, embora por vezes
se encontre um homem manifestamente mais forte de corpo, ou de espírito mais vivo do que outro, mesmo
assim, quando se considera tudo isto em conjunto, a diferença entre um e outro homem não é suficientemente
considerável para que qualquer um possa com base nela reclamar qualquer benefício a que outro não possa
também aspirar, tal como ele. Porque quanto à força corporal o mais fraco tem força suficiente para matar
o mais forte, quer por secreta maquinação, quer aliando-se com outros que se encontrem ameaçados pelo
mesmo perigo.

Quanto às faculdades do espírito (pondo de lado as artes que dependem das palavras, e especialmente
aquela capacidade para proceder de acordo com regras gerais e infalíveis a que se chama ciência; a qual muito
poucos têm, é apenas numas poucas coisas, pois não é uma faculdade nativa, nascida conosco, e não pode
ser conseguida - como a prudência - ao mesmo tempo que se está procurando alguma outra coisa), encontro
entre os homens uma igualdade ainda maior do que a igualdade de força. Porque a prudência nada mais é
do que experiência, que o tempo igualmente oferece a todos os homens, naquelas coisas a que igualmente
se dedicam.

O que talvez possa tornar inaceitável essa igualdade é simplesmente a concepção vaidosa da própria
sabedoria, a qual quase todos os homens supõem possuir em maior grau do que o vulgo; quer dizer, em maior
grau do que todos menos eles próprios, e alguns outros que, ou devido à fama ou devido a concordarem com
eles, merecem sua aprovação. Pois a natureza dos homens é tal que, embora sejam capazes de reconhecer
em muitos outros maior inteligência, maior eloqüência ou maior saber, dificilmente acreditam que haja muitos
tão sábios como eles próprios; porque vêem sua própria sabedoria bem de perto, e a dos outros homens à
distância. Mas isto prova que os homens são iguais quanto a esse ponto, e não que sejam desiguais. Pois
geralmente não há sinal mais claro de uma distribuição eqüitativa de alguma coisa do que o fato de todos
estarem contentes com a parte que lhes coube.

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Pensamento político clássico

Até esse momento, Hobbes limitou-se a apresentar justificativas para fundamentar a igualdade natural dos homens.
No que diz respeito à igualdade natural, o filósofo afirma que até o mais fraco pode investir contra o mais forte, uma vez
que poderá empreender forças por um plano secreto, ou seja, à traição, ou então aliando-se com outros homens fracos.
No que concerne à igualdade natural quanto à inteligência, o pensador vai utilizar o argumento de que os homens são
vaidosos por natureza e se acham inteligentes, o que seria a maior prova da igualdade também quanto a esse fator.
Voltemos ao texto:

Desta igualdade quanto à capacidade deriva a igualdade quanto à esperança de atingirmos nossos fins. Portanto se
dois homens desejam a mesma coisa, ao mesmo tempo, que é impossível ela ser gozada por ambos, eles tornam-se
inimigos. E no caminho para seu fim (que é principalmente sua própria conservação, e às rezes apenas seu deleite)
esforçam-se por se destruir ou subjugar um ao outro e disto se segue que, quando um invasor nada mais tem a recear
do que o poder de um único outro homem, se alguém planta, semeia, constrói ou possui um lugar conveniente, é
provavelmente de esperar que outros venham preparados com forças conjugadas, para desapossá-lo e privá-lo, não
apenas do fruto de seu trabalho; mas também de sua vida e de sua liberdade. Por sua vez, o invasor ficará no mesmo
perigo em relação aos outros (HOBBES, 2003).

Perseguindo a lógica do pensamento de Hobbes, fica claro no texto a noção de que os homens, pelo fato de terem a
mesma estrutura e as mesmas possibilidades no estado de natureza, são conduzidos naturalmente à inimizade, ou seja,
o desejo que eles têm pelas mesmas coisas leva-os à disputa.

A disputa é a consequência da igualdade natural no estado de natureza.

E mais: não há segurança no estado de natureza, pois a igualdade natural vai gerar uma desconfiança perpétua entre
os homens, visto que, do mesmo modo que ele pode atacar o seu semelhante, também estará sujeito aos ataques de
outrem. Continuemos com Hobbes (2003):

E contra esta desconfiança de uns em relação aos outros, nenhuma maneira de se garantir é tão razoável
como a antecipação; isto é, pela força ou pela astúcia, subjugar a todos os homens que puder, durante o
tempo necessário para chegar ao momento em que não veja qualquer outro poder suficientemente grande
para ameaçá-lo. [...]

De modo que na natureza do homem encontramos três causas principais de discórdia. Primeiro, a
competição; segundo, a desconfiança; e terceiro, a glória.

A primeira leva os homens a atacar os outros tendo em vista o lucro; a segunda, a segurança; e a terceira, a
reputação. Os primeiros usam a violência para se tornarem senhores das pessoas, mulheres, filhos e rebanhos
dos outros homens; os segundos, para defendê-los; e os terceiros por ninharias, como uma palavra, um

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Pensamento político clássico

sorriso, uma diferença de opinião, e qualquer outro sinal de desprezo, quer seja diretamente dirigido a sua
pessoa, quer indiretamente a seus parentes, seus amigos, sua nação, sua profissão ou seu nome.

Aqui é importante refletir a respeito de cada uma dessas causas da discórdia entre os homens e pensar em nossas
atitudes. Mesmo no cotidiano, já no estado civil, essas três causas que o autor aponta ainda estão presentes, por
exemplo, a terceira, que é o desejo que todos nós temos de algum reconhecimento por parte dos outros homens.
Percebe-se como as pessoas sentem-se mal, por exemplo, quando o seu trabalho, seus estudos e seus empreendimentos
não são reconhecidos. De volta ao texto, Hobbes define o que é guerra e o que ele considera paz:

Com isto se torna manifesto que, durante o tempo em que os homens vivem sem um poder comum
capaz de mantê-los a todos em respeito, eles se encontram naquela condição a que se chama guerra; e uma
guerra que é de todos os homens contra todos os homens. Pois a guerra não consiste apenas na batalha, ou
no ato de lutar, mas naquele lapso de tempo durante o qual a vontade de travar batalha é suficientemente
conhecida. Portanto a noção de tempo deve ser levada em conta quanto à natureza da guerra, do mesmo
modo que quanto à natureza do clima. Porque tal como a natureza do mau tempo não consiste em dois ou
três chuviscos, mas numa tendência para chover que dura vários dias seguidos, assim também a natureza da
guerra não consiste na luta real, mas na conhecida disposição para tal, durante todo o tempo em que não há
garantia do contrário. Todo o tempo restante é de paz (HOBBES, 2003).

No texto, está exposto o que há de fundamental no estado de natureza: a guerra de todos contra todos. Em outras
palavras, no estado de natureza, há uma guerra perpétua entre os homens, pois, mesmo quando eles não estão
lutando, ela existe como potencialidade. Essa postura generalizada de guerra constante inviabiliza muitas coisas: não
há justo ou injusto, uma vez que, na guerra, tudo é possível e permitido para a conservação da própria vida; também
não há nenhuma possibilidade de paz, pois não existem garantias de que o acordo será integralmente cumprido. Assim,
tudo o que há são as incertezas e a desconfiança permanente.

A guerra de todos contra todos é marca registrada do estado de natureza.

Portanto tudo aquilo que é válido para um tempo de guerra, em que todo homem é inimigo de todo
homem, o mesmo é válido também para o tempo durante o qual os homens vivem sem outra segurança senão
a que lhes pode ser oferecida por sua própria força e sua própria invenção. Numa tal situação não há lugar
para a indústria, pois seu fruto é incerto; consequentemente não há cultivo da terra, nem navegação, nem
uso das mercadorias que podem ser importadas pelo mar; não há construções confortáveis, nem instrumentos
para mover e remover as coisas que precisam de grande força; não há conhecimento da face da Terra, nem

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Pensamento político clássico

cômputo do tempo, nem artes, nem letras; não há sociedade; e, o que é pior do que tudo, um constante temor
e perigo de morte violenta. E a vida do homem é solitária, pobre, sórdida, embrutecida e curta (HOBBES,
2003).

Em outras palavras, não há lugar para a vida social durante o tempo do estado de natureza. Esse trecho é aterrorizante,
pois coloca o homem na perspectiva do que seria a sua vida fora da sociedade civil, em que o lado mais brutal dos seres
humanos estaria presente. Vez por outra, voltamos ao estado de natureza; para confirmar tal tese, basta consultar as
páginas criminais dos jornais diários. Prossigamos com Hobbes (2003):

Poderá parecer estranho a alguém que não tenha considerado bem estas coisas que a natureza tenha
assim dissociado os homens, tornando-os capazes de atacar-se e destruir-se uns aos outros. E poderá portanto
talvez desejar, não confiando nesta inferência, feita a partir das paixões, que a mesma seja confirmada pela
experiência. Que seja portanto ele a considerar-se a si mesmo, que quando empreende uma viagem se arma
e procura ir bem acompanhado; que quando vai dormir fecha suas partas; que mesmo quando está em casa
tranca seus cofres; e isto mesmo sabendo que existem leis e funcionários públicos armados, prontos a vingar
qualquer injúria que lhe possa ser feita. Que opinião tem ele de seus compatriotas, ao viajar armado; de seus
concidadãos, ao fechar suas portas; e de seus filhos e servidores, quando tranca seus cofres? [...] É pois esta
a miserável condição em que o homem realmente se encontra, por obra da simples natureza. Embora com
uma possibilidade de escapar a ela, que em parte reside nas paixões, e em parte em sua razão. As paixões
que fazem os homens tender para a paz é o medo da morte e o desejo daquelas coisas que são necessárias
para uma vida confortável, e a esperança de consegui-las através do trabalho. E a razão sugere adequadas
normas de paz, em torno das quais os homens podem chegar a acordo. Essas normas são aquelas a que por
outro lado se chama leis de natureza, das quais falarei mais particularmente nos dois capítulos seguintes.

Finalmente, no final do capítulo 13, Hobbes apresenta uma possível solução para a natureza humana no estado de
natureza. Ela reside em duas paixões, o medo da morte e a esperança de uma vida confortável, bem como na própria
razão, que sugere aos homens que busquem a paz.

Outro aspecto que é possível destacar do texto diz respeito às manifestações do estado de natureza mesmo durante
o estado civil. Em outras palavras, o estado de natureza continua latente mesmo com a existência do Estado e das leis
positivas. O IPEA (Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas) divulgou, no início de 2011, a percepção da população
brasileira a respeito de segurança pública. Os resultados estão na tabela a seguir:

Medo de assassinato por região - Brasil

Muito medo Pouco medo Nenhum medo

Centro-Oeste 75,0% 13,4% 11,6%

Nordeste 85,8% 8,2% 6,0%

Norte 78,4% 14,0% 7,6%

Sudeste 78,4% 10,9% 10,7%

Fonte: http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/SIPS/sips_segurancap_2010.pdf.

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Pensamento político clássico

Observando atentamente esse quadro, é possível perceber que o brasileiro pode não estar no estado de natureza,
pois existem as leis e o Estado para protegê-lo e dar-lhe segurança, mas ele tem a sensação de que está. Dito de outro
modo, o medo da morte, que é uma das principais características do estado de natureza, é mais do que presente na
vida dos brasileiros.

Observe no quadro como Hobbes articula o seu pensamento:

5.4. Medo e esperança: as paixões no estado civil


No estado de natureza, em que a desconfiança, a guerra e a disputa tomam conta dos homens, prevalece o
direito natural. Mas o que é isso? Segundo Hobbes, o direito natural é o direito que cada ser humano tem de usar dos
meios que achar convenientes para proteger a própria vida. Isso porque o fundamento da moral hobbesiana está na
autopreservação, ou seja, no dever que cada ser humano tem de garantir-se na própria existência. Nas palavras do
próprio autor no De cive (HOBBES, 2002, p. 31): “Por conseguinte, a primeira fundamentação do direito natural consiste
em que todo homem, na medida de suas forças, se empenhe em proteger sua vida e membros”. Dito de outra maneira,
o direito natural é a regra segundo a qual o homem pode empreender toda a sua energia na defesa da própria vida, ou
seja, ele é o principal direito humano.

Com isso, torna-se manifesto que o direito natural dá a cada homem a possibilidade de usar dos meios que achar
convenientes para defender a própria vida. Ele também dá, de acordo com Hobbes, direito de ter acesso a todas as

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Pensamento político clássico

coisas, ou seja, a vontade dele vai determinar as coisas que ele deve ter. Em outras palavras, cada homem é juiz de si
mesmo e de suas ações:

A natureza deu aos homens direito a tudo; isso quer dizer que, num estado puramente natural, ou seja,
antes que os homens se comprometessem por meio de convenções ou obrigações, era lícito cada um fazer o
que quisesse, e contra quem julgasse cabível, e portanto possuir, usar e desfrutar de tudo o que quisesse ou
pudesse obter (HOBBES, 2002, p. 32).

Nesse caso, no estado de natureza, não há nenhum critério para definir o que pertence a cada pessoa, ou seja, é a
simples vontade de cada um que estabelecerá a posse dos bens. Muito da belicosidade do estado de natureza encontra-
se no direito natural, ou seja, no direito que cada homem tem de todas as coisas e de usar de todos os meios para
preservar a própria vida.

Se, por um lado, o direito natural impulsiona os homens a usar de todos os meios para alcançar os seus objetivos,
por outro, a lei natural sugere a eles normas de paz. Mas o que é lei natural? É preciso muito cuidado para não confundir
direito natural com lei natural. Primeiramente, passemos à definição de lei natural; logo em seguida, vamos confrontá-la
com o direito natural.

Lei natural é uma regra estabelecida pela razão que obriga os homens a usar de todos os meios para conseguir a paz.
Na verdade, essa lei é aquela que sugere aos homens, por meio da razão, que eles busquem a paz e evitem a guerra.
Segundo Hobbes (2002, p. 38), “a lei da natureza: é o ditame da reta razão no tocante àquelas coisas que, na medida de
nossas capacidades, devemos fazer, ou omitir, a fim de assegurar a conservação da vida e das partes de nosso corpo”.

Após lermos as definições de direito natural e de lei de natureza, fica uma questão: não seriam elas coisas semelhantes,
na medida em que tanto um quanto a outra mandam usar dos meios para preservar a própria vida? A resposta seria não,
pois o direito é a liberdade que cada homem tem de usar ou não de todas as suas possibilidades para preservar-se, ao
passo que a lei obriga cada homem a essa atitude. Em outras palavras, a diferença entre direito e lei será fundamental
para entender o direito natural e a lei natural, como o próprio Hobbes (2003, p. 112) salienta no Leviatã:

Porque, embora os que têm tratado deste assunto costumem confundir jus e lex, o direito e a lei, é
necessário distingui-los um do outro. Pois o direito consiste na liberdade de fazer ou de omitir, ao passo que
a lei determina ou obriga a uma dessas duas coisas.

Na realidade, quando Hobbes fala de lei natural, ele afirma serem leis que provêm da natureza. Em primeiro lugar,
vamos refletir a respeito da primeira lei fundamental de natureza e, por conseguinte, da lei derivada que dela pode
ser auferida. São estas as duas principais leis de natureza: o direito de preservar-se com todas as forças e o dever de
transferir o direito a todas as coisas para garantir a própria existência. Vejamos como Hobbes (2002, p. 38) articula
essas duas leis:

A lei de natureza primeira, e fundamental, é que devemos procurar a paz, quando possa ser encontrada;
e se não for possível tê-la, que nos equipemos com os recursos da guerra. [...] E está é a primeira lei, porque
as demais dela derivam, e dirigem nossos caminhos que para a paz, quer para a autodefesa. Uma das leis
inferidas desta primeira e fundamental é a seguinte: que os homens não devem conservar o direito que têm,
todos, a todas as coisas, e que alguns desses direitos devem ser transferidos ou renunciados.

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Antes de passarmos para a análise do texto, observemos o gráfico:

Na citação do De cive que apresentamos, Hobbes discorre a respeito de da principal lei de natural e da sua
consequência. Segundo ele, o dever que o homem tem de buscar a paz é contraditório ao direito a todas as coisas.
Sendo assim, ele deve abrir mão do direito natural ou da lei natural. Obviamente, abre-se mão do direito natural, uma
vez que a lei é a obrigação, enquanto o direito é a liberdade de fazer ou não alguma coisa. Em outras palavras, os
homens só podem abrir mão do direito natural, pois a lei natural é uma obrigação imposta pela razão a eles.

Nesse caso, o direito natural deve ser transferido ou renunciado para que a vida de todos esteja garantida. Antes de
discorremos a respeito dessa transferência mútua de direito que dará origem ao Estado, exporemos as outras leis de
natureza. No total, são 20 leis de natureza, mas irei exemplificar com quatro delas para que se tenha uma noção básica
a respeito.

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Uma pergunta que se faz é: como é possível àquele que fundamenta a razão da sua existência na preservação da
própria vida empreender uma guerra perpétua? Dito de outra maneira, a guerra não é totalmente oposta à preservação
da própria existência?

De acordo com Hobbes, o medo da morte, que está intimamente ligado ao desejo de preservar a própria vida, vai
sugerir aos homens que abram mão, ou seja, que transfiram o seu bem maior, que é o direito natural, para um poder
único e capaz de garantir a todos em paz: “Porque enquanto cada homem detiver o seu direito de fazer tudo quanto
queira todos os homens se encontraram numa condição de guerra” (HOBBES, 2003, p. 113).

Em suma, os homens transferem, por meio de um pacto, o direito que eles possuem, por natureza, de preservar
a própria vida para o Estado. Nesse caso, cabe à figura estatal a função de gerir a vida humana e preservá-la. Sendo
assim, é da responsabilidade do Estado também o controle das paixões que se manifestam no estado de natureza, pois,
caso elas aparecem com muita frequência, os homens voltariam ao estágio anterior de guerra de todos contra todos.

Mas as leis de natureza, se fossem seguidas pelos homens, não seriam suficientes para garantir a paz? De acordo com
Hobbes, se elas fossem obedecidas, sim. Mas não é o que acontece. Dito de outro modo, a lei natural não é suficiente
para garantir a paz, pois, de acordo com o filósofo, os “pactos sem a espada não passam de palavras” (HOBBES, 2002).

Portanto, a primeira característica do pacto social está na necessidade de um poder capaz de obrigar os homens a
cumprirem o que foi estabelecido. Ou seja, caso haja alguma desconfiança de um possível não cumprimento do pacto
por uma das partes, ele torna-se nulo, e os homens voltam ao estado de natureza, como afirma o próprio Hobbes (2003,

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p. 117): “Quando se faz um pacto em que ninguém cumpre imediatamente a sua parte, e uns confiam nos outros, na
condição de simples natureza, a menor suspeita razoável torna nulo o pacto”.

Outro aspecto que aparece em Hobbes é a necessidade de um estado sem fissuras, ou seja, o pacto deve ser firmado
por muitos homens, pois somente um acordo firmado dessa maneira pode garantir a paz.

Uma terceira e fundamental característica do pacto social é a busca da paz. Em outras palavras, o Estado, na visão
de Hobbes, deve garantir a paz. Esse tema será uma constante na obra do autor. A todo momento, ele evoca o desejo
que os homens têm de uma vida pacífica, seja quando fala deles no estado de natureza, seja no estado civil (ROCHA,
2010, p. 74).

Nota-se, quando nos aproximamos dos textos de Hobbes, que o autor faz todo um caminho argumentativo para
justificar a necessidade da autoridade, ou seja, de comando. Não apenas isso, mas também a necessidade da submissão
e da obediência. Dificilmente saberemos até que ponto ele estava tomado pelos afetos da guerra civil inglesa do
século XVII. O mais importante é perceber que Hobbes tenta localizar um fundamento para o poder longe das esferas
tradicionais de fundamentação da política, ou seja, nas teorias políticas clássicas e na religião, com o direito divino dos
reis.

Destaca-se também, atualizando o pensamento do filósofo, o fato de ele visualizar a política no campo da disputa, ou
seja, a lógica do poder está permeada pela disputa. Quem está envolvido nela? Certamente, o Estado, que é repressor
das paixões e da natureza humana, de um lado e, do outro, os cidadãos e os seus desejos infinitos e hedonistas. Em
outras palavras, todo Estado existe para a opressão.

Nesse caso, não dá para exigir da política nada além da opressão e da submissão, ou seja, o Estado existe para
reprimir e conter. Alguém pode perguntar: não estamos em uma democracia? Ou seja, as pessoas não possuem o direito
de exercer o poder? Em tese, sim, mas, na prática, mesmo os Estados democráticos de direito existem para a opressão
dos cidadãos, ou seja, as pessoas são obrigadas a submeter-se à sua lógica econômica, política, social e educacional.

No que diz respeito à lógica econômica, o professor Francisco Oliveira, da Universidade de São Paulo, em seu texto
Democratização e republicanização do Estado (leitura complementar 1), aborda alguns aspectos. Primeiro, os cidadãos
não estão presentes na vida política do país, pois o exercício do poder está limitado a um grupo pequeno de pessoas,
ou seja, a uma oligarquia. E ainda, em nossa opinião, por maiores que sejam as possibilidades de acesso ao poder,
sobretudo nos sistemas democráticos, por meios de eleições, as pessoas mais desprovidas de recursos econômicos
dificilmente ascendem a ele. Em casos como o do Brasil, onde um ex-metalúrgico chegou à presidência da República,
mesmo assim, o ex-presidente Lula necessitou do poder econômico para chegar ao poder e para manter-se nele.

Outro ponto importante no texto do professor da Universidade de São Paulo é o de que o capitalismo está concentrando
cada vez mais o poder de decidir as coisas que dizem respeito à vida das pessoas nas mãos de poucos. Por exemplo, a
taxa de juros que é praticada, e que afeta a vida de milhões de pessoas, não passa por instâncias menores, ou seja, é
uma decisão de gabinete e de um grupo reduzidíssimo de pessoas.

A submissão e a opressão econômica estão na impossibilidade de escolhermos um modelo econômico que não seja
o neoliberalismo. Existe uma tendência dos grupos políticos que se revezam no poder de manter o modelo neoliberal na
economia. Qualquer proposta econômica que fuja a essa questão é imediatamente rechaçada pelos grupos políticos e

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pelos próprios meios de comunicação. Tanto que um dos maiores elogios que fizeram ao ex-presidente Lula foi o de ter
mantido o modelo econômico do seu antecessor, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Ou seja, é visível o quanto
a lógica econômica submete-nos todos a um mesmo modelo, no caso, aquele que interesse ao sistema capitalista.

Quanto à política, seguindo a mesma lógica do pensamento do professor Francisco Oliveira, pode-se afirmar que
as barreiras burocráticas são um verdadeiro problema para a participação popular, uma vez que é muito complicado o
acesso àqueles que possuem poder para transformar as questões políticas. Um exemplo forte dessa tendência no Brasil
é a impossibilidade de uma reforma política que contemple uma maior participação popular. Nesse caso, como é possível
esperar daqueles que estão no poder que deem maior acesso a outras pessoas que estão fora? Isso não é lógico.
Por isso, para os que se perpetuam no poder, o ideal é usar o Estado com a finalidade que citamos acima: reprimir e
submeter, uma vez que a submissão de todos passa ser a condição para que eles se mantenham nessa posição.

No campo social, a submissão é ainda maior. Muitos governos têm praticado a política do pão e circo, ou seja, a
manutenção da ordem vigente por meio do assistencialismo e do paternalismo. Nesse caso, o Estado não dá ao cidadão
condições de autonomia, pois a não submissão social pode representar o fim de grupos políticos que vivem da pobreza
e da miséria de inúmeras pessoas. A submissão social manifesta-se no acesso pouco democrático a saúde, educação e
segurança. Quanto maior for a dependência, maior será a submissão.

Toda essa submissão é feita via sistema educacional, uma vez que o modelo educacional está fundamentado na
proposta de formar cidadãos. O que isso significa, no entender do Estado? Formar cidadãos significa submetê-los
à ordem vigente, ou seja, tirar-lhe boa parte da sua autonomia. Em outras palavras, considerável parte do sistema
educacional reproduz o próprio sistema. Sendo assim, a educação no Estado moderno pouco tem relação com a geração
de pessoas livres e capazes de pensar por conta própria.

Dessa forma, o Estado pensado por Thomas Hobbes para submeter as paixões e contê-las hoje é também o
responsável por todas as submissões citadas. Por isso, devemos perder a ideia de que o Estado é “bonzinho” e cuida da
nossa vida, pois, como já aludimos, ele é tudo o que há de mais repressor na sociedade. O que queremos dizer é que
o Estado pensando por Hobbes foi aos poucos evoluindo e passando por transformações, mas a raiz dele está presente
no pensamento do autor.

Como salientamos, o Estado precisa submeter para preservar, ou seja, para garantir a vida de todos, todos precisam
ser reprimidos e contidos. Para tal, o Estado precisa de duas coisas: poder e consenso. Sem essas premissas, não há
como exercer a repressão. No caso, o poder é dado pelo consenso de todos. É o que Hobbes chama de transferência,
ou, ainda, de pacto social. Em outras palavras, é por meio do pacto comum entre os homens que começa a submissão.

O interessante é perceber que o Estado mudou de figura, ou seja, de Estado monárquico absolutista no século XVII
para Estado republicano democrático no século XXI, mas a tendência é a mesma, pois essa é a lógica da repressão
formal do estado de natureza.

De fato, há entre os Estados um estado de natureza, sobretudo no que diz respeito à questão política. É necessário
salientar que os órgãos internacionais de regulação política não possuem força suficiente para delimitar as relações
entre os Estados. Por mais que tenhamos órgãos como a ONU, que, em tese, deveriam garantir o direito de todos os
Estados, mesmo assim prevalece o direito dos mais poderosos ante aqueles com menor poder econômico e político. Em
outras palavras, os Estados vivem no estado de natureza, em que prevalecem o desejo e as paixões.

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Pensamento político clássico

Por exemplo, a invasão de um país por outro, na questão política, econômica, ideológica ou militar, expõe com maior
precisão um estado de natureza entre os Estados.

A invasão política ocorre quando um modelo político é idealizado como ideal e inquestionável, como acontece, por
exemplo, com a democracia norte-americana, cujo modelo político é posto a todos os Estados como o melhor. Não se
trata de uma defesa da ditadura, mas apenas de um questionamento da forma como a democracia é apresentada ao
mundo, em outras palavras, dos métodos pouco democráticos de levá-la a todos os países.

A invasão econômica, por sua vez, sustenta-se, assim como a questão política, na aceitação do modelo econômico
dos países ricos. Nesse caso, podemos tomar como exemplo o período da história conhecido como Guerra Fria, em
que as lógicas econômicas de dois países, os Estados Unidos e a antiga União Soviética, submeteram boa parte
das sociedades existentes. Não seria uma guerra de todos contra todos em bloco? Dito de outro modo, essa guerra
econômica e ideológica que aconteceu na segunda metade do século XX não é um sinal claro do estado de natureza na
relação entre os Estados? Em nossa visão, sim.

A invasão ideológica é praticada em todos os tempos da história do pensamento político. Isso significa dizer que,
a todo momento, um Estado está tentando impor as suas ideias aos outros. Foi assim com a Grécia e as cidades-
estados (por mais que elas permitissem certa autonomia aos conquistados). O mesmo aconteceu com a dominação
greco-romana, com os Estados cristãos da Idade Média, com a chegada dos europeus à América, entre tantos outros
exemplos.

Enfim, a invasão militar de um país por outro, muitas vezes é motivada por questões econômicas, também deve ser
alvo de reflexão. Nesse caso, é evidente a tensão que existe entre os Estados, que, muitas vezes, resulta na guerra. A
invasão do Iraque é um exemplo contundente dessa tensão natural que existe. Algum órgão internacional conseguiu
conter essa invasão? Ou seja, alguma instância superior conseguiu frear os interesses políticos e econômicos dos Estados
Unidos e da coalizão? E por que eles não foram impedidos de invadir um país independente e autônomo? Certamente,
porque esses órgãos internacionais estão submetidos e controlados pelos interesses econômicos desses países.

Vale ressaltar que, no estado de natureza, não há critérios para dizer o que é justo ou injusto. Mas e no caso das
relações estatais acima citadas? Existe injustiça nas ações de dominação entre os Estados? Se seguirmos a lógica do
pensamento hobbesiano a respeito do estado de natureza, não. Mas o bom senso e o senso de justiça parecem indicar
como injusta essa sobreposição de um Estado ao outro.

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Aproveito essa questão a fim de levantar outro ponto. Hoje, pouco se questiona se uma lei ou determinação, seja ela
de Estado ou internacional, é justa ou injusta. Em outras palavras, a regra é tomada como critério de justiça, ou seja,
muitas pessoas confundem lei com justiça. Isso acontece sobretudo com os operadores do direito: dura lex, sed lex.

Essa noção de que a lei e a justiça são a mesma coisa na Antiguidade já havia sido questionada por muitos, sobretudo
por Platão. No nosso caso, gostaria de destacar, para concluir a nossa disciplina, a tragédia de Antígona, que perdeu a
sua vida por contradizer a lógica da submissão ao Estado e a injustiça de algumas leis. Resumidamente, apresento o
enredo dessa tragédia de Sófocles.

A história narra a disputa entre os irmãos Etéocles e Polinice pelo trono de Tebas, onde estava o seu tio Creonte.
Essa disputa, como se costuma dizer, foi fratricida, ou seja, resultou na morte de ambos. Com isso, Creonte decidiu que
Etéocles teria direito a um enterro, ao passo que Polinice deveria ser deixado sem os rituais fúnebres nos portões da
cidade. Antígona, que era irmã deles, resolveu contrariar uma norma de Estado e enterrou Polinice. Por isso, o seu tio
Creonte ordenou que ela fosse enterrada vida.

Em um determinado momento da história, Antígona é levada à presença de Creonte. Interessa-nos sobremaneira


o diálogo travado com o tio, pois nele ela afronta a lei, ou seja, não aceita como justa uma norma que emana de uma
postura legítima de Estado. Vejamos o conteúdo do diálogo:

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(O diálogo deve ser colocado como simulador)


CREONTE
(Ao guarda) Podes ir para onde quiseres, livre da acusação que pesava sobre ti! (a Antígone) Fala, agora,
por tua vez; mas fala sem demora! Sabias que, por uma proclamação, eu havia proibido o que fizeste?
ANTÍGONE
Sim, eu sabia! Por acaso poderia ignorar, se era uma coisa pública?
CREONTE
E apesar disso, tiveste a audácia de desobedecer a essa determinação?
ANTÍGONE
Sim, porque não foi Júpiter que a promulgou; e a Justiça, a deusa que habita com as divindades
subterrâneas(10) ja­mais esta­be­leceu tal decreto entre os humanos; nem eu creio que teu édito tenha força
bastante para conferir a um mortal o poder de infringir as leis divinas, que nunca foram escritas, mas são
irre­vo­gá­veis; não existem a partir de ontem, ou de hoje; são eternas, sim! e ninguém sabe desde quando
vigoram!(11) — Tais decretos, eu, que não temo o poder de homem algum, posso violar sem que por isso me
venham a punir os deuses! Que vou morrer, eu bem sei; é inevitável; e morreria mesmo sem a tua proclamação.
E, se morrer antes do meu tempo, isso será, para mim, uma vantagem, devo dizê-lo! Quem vive, como eu, no
meio de tão lutuosas desgraças, que perde com a morte?(12) Assim, a sorte que me reservas é um mal que não
se deve levar em conta; muito mais grave teria sido admitir que o filho de minha mãe jazesse sem sepultura;
tudo o mais me é indiferente! Se te parece que cometi um ato de demência, talvez mais louco seja quem me
acusa de loucura! (SÓFOCLES, 2005).
Perceba que, na argumentação de Antígona, ela claramente questiona a lei positiva, ou seja, as leis do
Estado. Portanto, ela aparece a todos nós que pensamos a política como exemplo de não submissão. Em outras
palavras, faltam Antígonas entre os intelectuais da política.

6. Conclusão
A disciplina Fundamentos do pensamento político I discutiu alguns dos principais temas dessa área. Obviamente, foi
feito um recorte até mesmo nos temas que foram abordados.

Primeiramente, refletimos a respeito de Platão e Aristóteles, dentro do que é conhecido como modelo clássico.
Depois, para fazer um contraponto, sobretudo ao modelo aristotélico, discutimos o filósofo inglês Thomas Hobbes. E, na
medida do possível, atualizamos o pensamento desse autor.

No fundo, pensar o político é buscar novas maneiras de melhorar a vida dos seres humanos, ou seja, não há sentido
em estudar todas essas questões se não for para alimentar em nós o desejo de um Estado mais justo, como queria,
mesmo que de forma equivocada, Platão; de uma política voltada para o bem comum, como a de Aristóteles; e, por fim,
de garantir a vida e a sobrevivência de todos, como idealizou Thomas Hobbes.

Sendo assim, esta disciplina somente terá sentido se nós buscarmos por todos os meios melhorar o nosso sistema
político, pois o Brasil precisa com urgência de pessoas que pensem novos rumos para a política, uma vez que, se
dependermos da boa vontade dos nossos parlamentares, veremos por muitos anos ainda essa democracia oligarquizada,
uma democracia para poucos.

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Referências
BARNES, Jonathan. Aristóteles. São Paulo: Loyola, 2005. Trad. Adail Ubirajara Sobral e Maria Stela Gonçalves.

BERNARDES, Julio. Hobbes r a liberdade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.

BOBBIO, Norberto. Thomas Hobbes. Rio de Janeiro: Campus, 1991. Trad. Carlos Nelson Coutinho.

________. O filósofo e a política. Rio de Janeiro: Contraponto, 2003.

CHAUÍ, Marilena. Introdução à história da filosofia: dos pré-socráticos a Aristóteles. São Paulo: Brasiliense,
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FRATESCHI, Yara. A física da política: Hobbes contra Aristóteles. Campinas: Ed. da Unicamp, 2008.

HOBBES, Thomas. Do cidadão. São Paulo: Martins Fontes, 2002. Trad., apresentação e notas Renato Janine Ribeiro.

________. Leviatã. São Paulo: Martins Fontes, 2003. Apresentação Richard Tuck. Trad. João Paulo Monteiro e Maria
Beatriz Nizza da Silva.

LIMONGI, Maria Isabel. O homem excêntrico: paixões e virtudes em Thomas Hobbes. São Paulo: Loyola,
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MARCONDES, Danilo. Textos básicos de ética: Platão a Foucault. 4ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.

MATOS, Ismar Dias de. Uma descrição do humano no Leviathan, de Thomas Hobbes. São Paulo: Annablume,
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PLATÃO. A república de Platão. São Paulo: Abril, 1997. Trad. Enrico Corvisieri.

PLATÃO. Apologia de Sócrates. Pará de Minas, MG: Virtual Books, 2003. Disponível em: http://www.revistaliteraria.
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ROCHA, Emerson. O estado de natureza: medo e esperança em Hobbes. 2010. Dissertação de mestrado –
Departamento de Filosofia, Universidade São Judas, São Paulo.

SÓFOCLES. Antígone. [s.l]: eBooksBrasil, 2005. Disponível em: http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/antigone.


pdf, acesso em: 15.dez.2014.

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VEGETTI, Mario. Um paradigma do céu: Platão político, de Aristóteles ao século XX. São Paulo: Annablume,
2010. Trad. Maria da Graça Gomes de Pina.

Anexos de leituras complementares em PDF:


1. Democratização e republicanização do Estado.

2. Hugo Grotius: direito natural e dignidade.

3. Níveis e articulações do argumento contratualista de Hobbes.

4. Hobbes e a medida da desigualdade entre os homens.

5. Platão: Mênon.

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