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FACULDADE DE MÚSICA DO ESPÍRITO SANTO - “MAURÍCIO DE OLIVEIRA”

BACHARELADO EM MÚSICA

O CANTOR-ATOR: UM ESTUDO SOBRE O TRABALHO CRIATIVO CÊNICO-


MUSICAL DO CANTOR DE ÓPERA

PRISCILA RAQUEL AQUINO GOMES

VITÓRIA

2015
O CANTOR-ATOR: UM ESTUDO SOBRE O TRABALHO CRIATIVO CÊNICO-
MUSICAL DO CANTOR DE ÓPERA

por

PRISCILA RAQUEL AQUINO GOMES

Trabalho de Conclusão de Curso submetido ao


Curso de Bacharelado da Faculdade de Música do
Espírito Santo - “Maurício de Oliveira” como
requisito parcial para a obtenção do grau de
Bacharel em Música – Habilitação em Canto, sob
orientação da Profa. Dra. Gina Denise Barreto
Soares.
VITÓRIA

2015

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................................................................... 3
CAPÍTULO 1 - O GÊNERO OPERÍSTICO ................................................................................................ 7
CAPÍTULO 2 - ÓPERA: UMA BREVE TRAJETÓRIA .......................................................................... 12
2.1 CAMERATA FLORENTINA ......................................................................................................... 12
2.2 ÓPERA NO PERÍODO BARROCO ............................................................................................... 14
2.3 ÓPERA NO PERÍODO CLÁSSICO ............................................................................................... 16
2.4 ÓPERA NO PERÍODO ROMÂNTICO ........................................................................................... 18
2.5 ÓPERA NO SÉCULO XX ............................................................................................................... 21
2.6 A ÓPERA HOJE .............................................................................................................................. 21
CAPÍTULO 3 - O CANTOR-ATOR ......................................................................................................... 23
CONCLUSÃO ........................................................................................................................................... 26
REFERÊNCIAS ......................................................................................................................................... 28
3

INTRODUÇÃO

Numa ópera, o material humano que estabelece a comunicação direta com o público no momento
da encenação é o cantor de ópera. O termo cantor, neste caso, é insuficiente para abranger todas
as atribuições necessárias a esse artista. Este interpreta não só a música da ópera, mas coloca em
cena um personagem que se comunica por meio da expressão vocal e corporal. Por este motivo,
neste trabalho será utilizado o termo cantor-ator como referência ao cantor de ópera.

O cantor-ator se depara com vários desafios: construir um corpo para o personagem e se


movimentar sem prejudicar a qualidade vocal; da mesma maneira, executar os trechos de
virtuosismo vocal sem perder a construção dramática; lidar com a interação com os outros
cantores-atores enquanto segue a regência; e ainda, lidar com a diferença que pode haver entre o
tempo da música e tempo da encenação. Tais desafios fazem com que a atividade do cantor-ator
seja cercada por mitos. É comum encontrar professores de canto e cantores que defendem certos
limites na interpretação do cantor de ópera com relação à movimentação e uso do corpo. Alguns
acreditam que a qualidade vocal bastaria para transmitir a verdade cênica. Por outro lado, a ópera
vem recebendo fortes críticas no que diz respeito a montagens com interpretações estáticas e
gestual tipicamente operístico, isto é, uma interpretação limitada que muitas vezes acaba por usar
gestos que lembram o melodramático, apresentando personagens estereotipados.

Nos ensaios da ópera Zolotoi Petushok1de Rimski-Korsakov, Stanislavski alerta aos cantores
quanto aos gestos estereotipados, a resistência em cantar em diferentes posições e preocupação
com a beleza da voz: “Os atores às vezes alegam que em certas posições o tom é feio, sua voz
adquire uma cor diferente. Mas que mal há nisso? Às vezes um tom feio ou uma cor diferente é
justamente o efeito que queremos” (LOGAN; STANISLAVSKI, 1986, p. 20). Nas notas aos
ensaios de Werther, Stanislavski comenta sobre o problema das pausas mortas, quando o cantor-
ator se desliga da interpretação nos momentos de pausa na linha vocal do seu personagem.
Critica também as notas vazias de interpretação: “E como você poderá entrar na vida do ritmo do
compositor se está claro que você está com medo das notas altas? [...] faça com que as ações
físicas corretas ajudem você a obter as emoções corretas. Parta delas e a sua voz lhe responderá”
(STANISLAVSKI apud PEIXOTO, 1985, p. 50)

1
Como outros nomes do repertório operístico, Zolotoi Petushok é mais conhecida no Brasil pelo título em
português: O Galo de Ouro. Nesta pesquisa, ao citar as óperas, será mantido o título original.
4

As inovações tecnológicas ocorridas a partir do século XX influenciaram a maneira de se fazer


ópera. Os espetáculos chegaram ao cinema e à televisão. As grandes casas de óperas começaram
a vender suas montagens não apenas através de ingressos para assistir o espetáculo ao vivo, mas
também começaram a registrar estes espetáculos e vendê-los em DVDs. Mais recentemente, a
internet tem permitido a difusão destas montagens em sites de compartilhamento de vídeos. Se
até parte do século passado as grandes vozes da ópera se tornavam conhecidas pelo grande
público principalmente por meio de discos, atualmente a imagem tem um papel muito
importante. O público tem rejeitado encenações estáticas com expressão baseada somente no uso
da voz e beleza musical, exigindo uma interpretação mais verossímil nos espetáculos de ópera
(GUSE, 2011).

Apesar de um cantor de ópera que saiba atuar ser fundamental para um espetáculo de ópera
coerente, a formação do cantor de ópera não é eficiente neste aspecto. Guse (2011) aponta para a
carência de disciplinas que abordem o aspecto cênico na formação preparatória do cantor de
ópera, chamando atenção para os currículos das escolas de canto situadas no Brasil. Os cantores
que adquirem essa formação o fazem por conta própria em cursos livres de teatro, através da
própria experiência em montagens ou buscando o estudo de maneira autodidata. A falta de
preparo cênico do cantor de ópera e a escassez de ensaios para as montagens dos espetáculos
prejudicam o processo criativo do cantor-ator. Sem uma preparação que ofereça ferramentas para
a construção do personagem e com pouco tempo de preparação durante o processo de montagem,
o cantor-ator muitas vezes acaba acomodado na marcação cênica estabelecida pelo encenador e
pouco contribui para as propostas da direção cênica e musical na concepção do espetáculo.

A ópera é um espetáculo cênico e, portanto, existe em função do tempo. O trabalho do


compositor, na maioria dos casos, começa por meio de um diálogo com a obra do libretista e
termina na concepção da partitura. A partir daí, o maestro, o diretor cênico e os cantores-atores,
juntamente com toda a equipe, realizam a obra. Desse modo, o personagem definido pelo
compositor não é o mesmo que o cantor-ator apresenta para o público. O diretor musical tende a
estabelecer a ação dos cantores, mas os mesmos podem conceber seus personagens e contribuir
de forma consciente com as propostas da direção, assumindo a função de co-criador daquilo que
ele vai representar.

A experiência da autora interpretando papéis da literatura operística tem trazido questões


instigantes no que diz respeito à interação entre música e teatro e ao preparo cênico do cantor de
ópera. A preocupação com a formação desse cantor-ator remete a necessidade de levantar as
pesquisas existentes sobre o assunto para que possamos mapear a necessidade de novas
5

pesquisas proporcionando maiores esclarecimentos sobre o tema bem. Nesse sentido, buscando
conhecer as implicações relacionadas a preparação do cantor-ator para atuar em óperas
apresentamos uma revisão de literatura. Assim, acreditamos que este trabalho contribua para que
o cantor-ator, em sua função interpretativa, possa ter ideias consistentes por meio de um suporte
que agregue experiências anteriores às suas oferecendo reflexões sobre o que é necessário a sua
formação.

A revisão de literatura mostra que algumas contribuições para a área ainda são necessárias.
Ainda que a articulação entre música e teatro seja anterior ao surgimento do gênero operístico, as
reflexões sobre o tema tem ainda o gosto de novidade já que a pesquisa no campo artístico é
recente. Acreditamos que falta de interesse pela pesquisa nas artes, dentre outras razões, também
ocorre porque a questão do talento ainda se projeta para profissões artísticas de forma
preponderante deixando os desavisados a mercê do próprio talento sem o compromisso com a
pesquisa. Muitos cantores buscam orientação para o desenvolvimento das habilidades vocais e
conhecimento de repertório e, no entanto, algumas vezes contam somente com a emoção e
inspiração para construir a interpretação cênica.

A literatura que aborda a interpretação cênica específica para os cantores de ópera é escassa.
Guse (2011) faz uma revisão dessa bibliografia e afirma que a maioria encontra-se em idioma
estrangeiro. Outros trabalhos, como os de Kermann (1990) e Peixoto (1985), se propõem a
discutir o papel da música e do drama na encenação da ópera, mas pouco refletem sobre o papel
do cantor-ator no processo de encenação. Por meio de uma revisão bibliográfica sobre o assunto,
a presente pesquisa pretende contribuir com os profissionais e cantores em formação que estão
interessados em participar em montagens de ópera, oferecendo o estado da arte que a pesquisa
relacionada ao cantor-ator de ópera se encontra até o momento. Nesse sentido, pretendemos
contribuir com a ruptura da ideia de que apenas o talento basta, bem como oferecer subsídios
para pesquisas futuras.

Esse trabalho reflete sobre o que é necessário para o cantor-ator, considerando que o seu
processo criativo depende de conhecimento técnico tanto musical e vocal quanto cênico.
Também questiona qual o lugar do cantor-ator no processo de montagem de uma ópera e de que
maneira o preparo cênico do cantor pode contribuir para que este colabore como co-criador na
encenação do espetáculo.

A presente pesquisa está estruturada em três capítulos. O capítulo inicial trata do gênero
operístico e nele é feita uma discussão acerca do conceito de ópera e dos outros termos
6

relacionados, tais como teatro, drama e encenação. No segundo capítulo, abordamos algumas das
transformações sofridas pela ópera ao longo de sua trajetória no que diz respeito à relação entre
drama e música e às diferentes demandas interpretativas para o cantor-ator em cada período. O
terceiro e o último capítulo aponta e discute algumas especificidades da atividade do cantor-ator
e aborda as diferentes opiniões acerca do potencial dramático do cantor de ópera. Por fim, o
trabalho traz uma conclusão onde é traçada uma síntese do que é abordado na pesquisa além de
apontar possibilidades de desdobramentos futuros para a pesquisa na área.
7

CAPÍTULO 1

O GÊNERO OPERÍSTICO

No âmbito da realização do presente estudo, ao tratar de ópera, necessitamos encontrar conceitos


que esclareçam não apenas o que devemos entender por ópera, mas alguns outros termos ganham
importância. Na tentativa de usar criteriosamente palavras diversas que inúmeras vezes são
utilizadas sem maiores considerações, trataremos, no presente capítulo dos conceitos que
permitirão abordar o tema de maneira mais precisa.

Dessa forma iniciaremos pelo conceito de ópera, abordando as diferentes opiniões acerca da
discussão sobre a ópera enquanto gênero musical e teatral e os elementos essenciais que a
compõem. A partir daí, se faz necessário esclarecer alguns termos que encontramos na busca por
um conceito de ópera, discutindo o que é teatro, os diferentes usos do termo drama e como o
conceito de dramaturgia vem sendo expandido e, finalmente, o termo encenação e o papel do
encenador e do ator na autoria de um espetáculo.

O termo ópera possui vários significados. No italiano, o termo pode ser traduzido como “obra,
ação, atividade, feito” (BENEDETTI, 2004, p. 670). No que se refere a música, opera é o plural
de opus, “termo utilizado ao lado de um número para identificar um grupo de obras na produção
de um compositor” (SADIE, 1994, p. 676). Em suas origens, a ópera recebeu o título de dramme
per musica e ao longo do desenvolvimento do gênero, ainda encontramos termos que designam
seus subgêneros, tais como opera buffa, opera seria, melodrama, operetta, singspiel e outros.

No prefácio de Opera, a concise history, Orrey (1987) coloca a dificuldade de se chegar a uma
definição boa e sucinta de ópera. Afirma ainda, preferir o termo “teatro lírico” já que o próprio
termo ópera não é satisfatório. Segundo Peixoto (1985), definir o que é ópera é uma tarefa
impossível devido às transformações sofridas desde o seu nascimento. Apesar de alguns
elementos fundamentais permanecerem presentes, alguns deles estão hoje radicalmente
transformados ou contestados. Tais transformações ocorrem uma vez que a história da música e
do teatro estão vinculadas a um processo histórico mais amplo. Apesar disso, é consenso entre os
autores o fato de que drama e música são elementos fundamentais da ópera. No Dicionário
Grove de Música, encontramos a seguinte definição:
8

Ópera é o termo genérico utilizado para denominar obras dramático-musicais, nas quais
os atores cantam alguma porção ou todas as suas partes. É a união de música, drama e
espetáculo, combinados em graus e maneiras diversas em diferentes países e períodos
históricos, embora tendo a música, normalmente, o papel dominante. [...] A ópera é
talvez a mais elaborada das formas artísticas, e recorre às práticas e habilidades
reunidas do poeta, compositor, artista plástico, [regente], e (por vezes) coreógrafo, para
criar uma ‘obra de arte completa’ (Gesamtkunstwerk, usando o termo Wagneriano)
(SADIE, 1980, p. 544-545).

Orrey considera a ópera como um ramo do teatro e não uma forma isolada. No entanto, para
outros autores a ópera é um espetáculo cênico que, ao utilizar teatro e música, se diferencia de
cada um isoladamente. DiGaetani (1986) e Blundi (2005) consideram a ópera uma obra de arte
total o que permite um alcance artístico praticamente ilimitado.

A ópera é uma obra de arte total. De forma diferente da música de concerto e do teatro,
ela combina várias artes numa só. Dentre as expressões artísticas, somente a ópera
conjuga as melhores possibilidades musicais de uma orquestra e de vozes possantes
com a excitação visual, dramática, do teatro. Além disso, seu alcance artístico é
praticamente ilimitado, uma vez que a ópera promove a orquestração de todas as artes:
balé, pintura e escultura (cenários), teatro, poesia e, naturalmente, canto e música. O
gênero operístico dimensiona palavras e música em todas as situações que ele engendra.
(BLUNDI, 2005, p.20).

Apesar de aparentemente óbvia, a constatação de que na ópera co-existem a música e o teatro


tem gerado discussões polêmicas. Guse (2011) comenta o problema de se observar a ópera
somente pela ótica literária ou musical. “A questão é que a ópera não é um espetáculo
exclusivamente musical feito para que se entenda a música excluída de seu contexto teatral, nem
o libreto é um texto dramático que pode ser separado da presença musical sem tornar-se
empobrecido” (GUSE, 2011, p. 32-33). Além disso, apesar da ópera ser um espetáculo cênico, é
comum que seja apresentada somente enquanto música em montagens em forma de concerto que
omitem a encenação total ou parcialmente. Para Peixoto (1985), a discussão se a ópera é música
ou teatro é uma velha polêmica tão antiga quanto a ópera e é sempre uma falsa questão.

Tanto os que imaginam o teatro como simples materialização cênica de valores


literários, como os que esquecem que a ópera não é escrita para ser gravada em discos
ou tapes, nem para ser mutilada em forma de concertos, escapam, talvez de forma
deliberada, da discussão efetivamente produtiva: o significado da ópera como teatro
não com música mas, sim, em música. Tocando no cerne do problema, Patrice Chéreau
afirmou: ‘a música é teatro’. (PEIXOTO, 1985, p. 24)

Embora a relação entre música e drama em ópera não tenha sido equilibrada durante todo o
percurso de desenvolvimento do gênero, todos os conceitos apresentados acima levam em
consideração a presença do drama na ópera. É o caráter dramático-musical da ópera que a
diferencia da música de concerto. A palavra drama, no entanto, é utilizada com diferentes
significados: No senso comum, as pessoas utilizam a palavra drama para se referir a situações
onde alguém exagera a gravidade de um fato; Na literatura, o drama é um dos três gêneros
9

literários considerados a partir do século XVIII, juntamente com o gênero lírico e o épico
(HOUAISS). Para este trabalho, interessa a utilização da palavra drama no âmbito relacionado ao
teatro. De acordo com o Dicionário Houaiss:

Drama s.m1 TEAT forma narrativa em que se figura ou imita a ação direta dos
indivíduos 1.1 TEAT texto em verso ou prosa, esp. escrito para ser encenado, ou a
encenação desse texto [...] 1.4 TEAT designação genérica da obra literária escrita para
ser encenada 1.5 TEAT atividade de representar, arte dramática. (HOUAISS, 2001, p.
1083)

Na contemporaneidade, assistimos à expansão do conceito de dramaturgia:

Não encontrando espaço nas definições dramatúrgicas convencionais, novos grupos,


artistas e pensadores de teatro, ao depararem com a necessidade de teorizar sobre o
fazer artístico, propõem novos conceitos de dramaturgia, que ora aparecem como
“modalidades dramatúrgicas”, ora como “novas dramaturgias”. Entre essas
modalidades, destacam-se a dramaturgia do ator, a dramaturgia do movimento, a
dramaturgia do corpo, a dramaturgia do som, a dramaturgia da luz, a dramaturgia
coletiva, a dramaturgia colaborativa, a dramaturgia da imagem e a dramaturgia da cena,
entre outras (MOREIRA, 2012, p. 10).

O conceito de dramaturgia está fortemente ligado ao conceito de teatro e a contemporaneidade


também tem ampliado os limites da definição de teatro. Etimologicamente, a palavra teatro vem
do verbo grego theastai que significa ver, contemplar, olhar. (MAGALDI, 1998) O edifício se
denominava odeion e teatron correspondia à plateia. Hoje, a palavra teatro abrange ao menos
duas acepções fundamentais: o imóvel em que se realizam espetáculos e uma arte específica,
transmitida ao público por intermédio do ator. Essa ideia que a palavra hoje desperta em nós, só
aparece definida no século XVII (PEIXOTO, 2005)

Em O que é teatro, Peixoto (2005) coloca em questão como definir teatro:

Será possível definir teatro? Será certo e verdadeiro tentar precisar seu significado se,
desde a origem do homem, existe enquanto processo, em permanente transformação,
obedecendo a sempre novas exigências e necessidades do homem [...]? Enfim, existe
um teatro ou, em função da vida econômico-política, teatro hoje é uma coisa, amanhã
outra, ontem foi diferente? (PEIXOTO, 2005, p. 10)

Mesmo estando em constante transformação, o teatro conserva alguns elementos que o


distinguem enquanto expressão artística. Magaldi (1998) afirma que ator, texto e público
constituem a tríade essencial para o fenômeno do teatro. Para Peixoto (2005) os elementos
fundamentais são: um espaço, um ator e um espectador. E, ainda, a consciência de uma
cumplicidade entre o ator e aquele que o observa, a consciência de que se trata de uma
representação e não da realidade. Peixoto (2005) também discute a função de cada um desses
elementos, visto que tendências do teatro contemporâneo buscam excluir ou, pelo menos,
ampliar o conceito de cada um desses elementos. O espaço deixou de ser necessariamente o
10

espaço definido para a realização da manifestação teatral. A ideia de ator e espectador é


eliminada, por exemplo, no teatro do oprimido2 proposto por Boal. E até mesmo a própria noção
de representação é suprimida ou relativizada nos happenings3 que se confundem com a
realidade.

Assim como a partitura contém o material fundamental, mas não a ópera em si, a leitura de um
texto dramatúrgico não constitui o fenômeno do teatro. Ambos, teatro e ópera, existem em
função do tempo. “Se a literatura dramática fica documentada em livro e os cenários e figurinos
subsistem em fotografias e desenhos, o espetáculo é uma arte efêmera, que se realiza
integralmente na sua duração” (MAGALDI, 1998, p. 13). Nesse processo de realização das artes
cênicas, a figura do encenador ganha importância. Se o dramaturgo é o autor do texto, o
encenador é o autor do espetáculo (MAGALDI, 1998). A ele cabe a visão unificadora,
responsável por construir a harmonia artística do espetáculo.

Esta figura responsável pela encenação existiu desde a Antiguidade sob diferentes nomes e com
alguma variação nas suas funções. No Teatro Grego, o próprio poeta4 preparava os atores e o
coro para representarem suas obras. Em alguns momentos, a principal função dessa figura era a
de estabelecer a movimentação dos atores e, por vezes era realizada por um destes atores. O
termo encenador adquiriu notoriedade a partir do final do século XIX, quando este começou a
assumir a autoria do espetáculo (MAGALDI, 1998). É comum encontrar o termo diretor como
sinônimo de encenador e na ópera, o termo regisseur é bastante recorrente.

Em certas montagens, o ator é tido como refém da arte do dramaturgo ou do encenador. Isso
ocorre principalmente naquelas montagens onde o tempo de ensaio é escasso. No meio teatral,
percebe-se uma tendência no sentido oposto, valorizando o processo criativo do ator. Esta
tendência caminha junto da ampliação do conceito de dramaturgia citado anteriormente neste
capítulo. Sobre a questão do ator criador, Magaldi (1998) comenta:

Chamar-se-ia criação à atividade do ator? Ele parte, com efeito, de um texto pronto, e
sua tarefa é a de dar o melhor desempenho à matéria do dramaturgo. [...] Para facilidade
de raciocínio, seria lícito admitir que a arte do ator é uma criação sui generis, porque
feita com base em outra criação. Mas se criação subentende criador, e criador é aquele
que faz uma criatura, o ator pertence a essa categoria, porque a criatura à qual ele dá
vida, no palco, tem individualidade própria, e nunca será idêntica à criatura animada por
outro ator, embora com o mesmo texto (MAGALDI, 1998, p. 25).

2
No teatro do oprimido, Boal transforma alguns elementos básicos do teatro tradicional, como a ideia de ator e
plateia por meio, por exemplo, do teatro-fórum, onde o público é estimulado a assumir o lugar do protagonista.
3
Os happenings são uma forma de expressão das artes visuais e cênicas que tem o aspecto de imprevisibilidade e da
participação do público espectador.
4
O termo poeta, nesse caso, é utilizado para se referir aos gregos que exerciam a função de poeta, dramaturgo,
músico e encenador de suas peças.
11

No meio teatral a ideia deque o ator é também criador e contribui para a autoria da obra do
dramaturgo e do encenador é mais amplamente aceita. Na ópera, porém, o material primário,
partitura e libreto, é mais rígido e pensar o cantor-ator como criador é ainda uma questão
bastante polêmica. Por isso, as afirmações de Magaldi (1998) são pertinentes para a discussão
sobre o trabalho criativo do cantor-ator na ópera.
12

CAPÍTULO 2

ÓPERA: UMA BREVE TRAJETÓRIA

Embora as primeiras peças do gênero a que hoje denominamos ópera datam apenas do final do
século XVI, a utilização da música com fins dramáticos existe desde o surgimento do teatro na
Grécia Antiga (GROUT, 2007). Devido a esta fusão entre elementos musicais e texto dramático,
a relação entre a música e o drama na ópera tem levantado questões desde o nascimento do
gênero e o compositor tem lidado com isso de diversas maneiras em diferentes momentos
históricos.

Neste capítulo, será abordado o surgimento do gênero operístico e algumas transformações


ocorridas na ópera, principalmente no que se refere à relação drama e música e às exigências do
cantor-ator, encontrando momentos em que o cantor-ator possui uma forte demanda musical e
cênica.

2.1 CAMERATA FLORENTINA

A criação da ópera5 é atribuída à Camerata Florentina6, criada por volta do ano de 1570.Como
outras academias que floresceram na Itália do século XVI ao XVIII, a Camerata Florentina
reunia um grupo de artistas intelectuais que se juntavam para falar de arte, ciência e executar a
nova música7. A Camerata se reunia em torno do conde Giovanni Bardi e dela participaram
Vicenzo Galilei, Jacopo Peri, Giulio Caccini, Emilio de Cavalieri e Ottavio Rinuccini
(COELHO, 2000; GROUT, 2007; DIGAETANI, 1988).

Filosofia, ciências, artes e, em especial, as relações de umas com as outras eram


discutidas livremente. Na casa de um músico amador, é claro, o assunto predominante
era a música, debatida do típico ângulo renascentista e neoplatônico: de que maneira
restaurar o poder que ela possuía, nos tempos clássicos – assim se acreditava –, de
suscitar, guiar ou dominar emoções específicas (COELHO, 2000, p. 41).

5
As primeiras experiências do gênero operístico receberam o título de dramma per musica. Candé escolhe a palavra
melodrama para designar estas obras dramáticas cantadas.
6
Também pode-se encontrar o nome Camerata Fiorentina, do italiano. Nesta pesquisa, será utilizado o termo
Florentina, em português, como encontrado em Grout e Coelho.
7
Designar uma corrente estética de “nova música” é algo recorrente na história da música pois é um modo de
denominar as mudanças em relação ao que se fazia tradicionalmente. No período histórico aqui abordado, fins do
séc. XVI e início do séc. XVII, a nova música é aquela que coloca a melodia em primeiro plano valorizando a
poesia, diferente do estilo anterior que privilegiava um contraponto cerrado em que o sentido da palavra se perdia
em meio a tantas melodias tratadas numa trama contrapontística.
13

Numa época de renascimento cultural, a Antiguidade Clássica despertava grande interesse. Os


literatos do Renascimento buscaram na tragédia grega o modelo para o tipo de música
apropriado ao teatro (COELHO, 2000; GROUT,2007; DIGAETANI, 1988). Nessecontexto,
alguns tratados foram publicados sobre a antiguidade clássica e como era a música e o teatro dos
gregos. Dentre tais tratados, o De modis musicis antiquorum (acerca dos modos musicais dos
antigos) de Girolamo Mei contribuiu para os estudos da Camerata Florentina (GROUT, 2007).

Hoje, sabe-se que o conhecimento que estes intelectuais tinham acerca da cultura grega era
limitado. Apesar disso, os membros da Camerata formularam alguns princípios para a prática
musical com base no que imaginavam ter sido o papel da música no teatro grego (COELHO,
2000; NIETZSCHE, 2005).

O que hoje chamamos de ópera, a caricatura do drama musical antigo, surgiu através da
imitação simiesca direta da Antiguidade. [...] Aqueles florentinos distintos e formados
pela erudição, que no começo do século XVII provocaram o surgimento da ópera,
tinham a intenção claramente expressa de reproduzir os efeitos que a música tivera na
Antiguidade segundo tantos eloquentes testemunhos. Notável! Já o primeiro
pensamento na ópera era uma busca de efeito (NIETZSCHE, XXXX, p. 17).

Conhecemos o trabalho dos dramaturgos gregos enquanto poetas de texto, libretistas. No entanto,
na tragédia grega, o poeta exercia as funções de poeta, músico, condutor do coro, diretor e ator.
Além disso, na música grega “a natural ligação entre linguagem das palavras e linguagem dos
sons não tinha ainda sido rompida: e isto até o grau em que o poeta era necessariamente também
o compositor de sua canção” (NIETZCHE, 2005, p. 25).

Os músicos da Camerata Florentina buscaram, portanto, uma música capaz de aderir às


inflexões da fala e exprimir estados de espírito. A monodia8 serviu para esta
finalidade(COELHO, 2000). Embora a Camerata de Bardi não tenha criado nenhuma obra
representante do gênero operístico, seus estudos juntamente com os estudos da Camerata de
Jacopo Corsi prepararam o terreno para o surgimento do gênero (CANDÉ, 2001). A primeira
ópera, Dafne, data de 1597 e foi composta por Jacopo Peri com libreto de Ottavio Rinuccini. No
seu prefácio, Peri explica suas intenções com a escolha da monodia:

Eu tinha querido imitar a fala em minha música [...] Portanto, abandonando todos os
estilos de escrita vocal até então conhecidos, procurei criar o tipo de melodia imitativa
da fala exigida por este poema. E considerando que o tipo de emissão vocal usada pelos
antigos podia ser acelerada, de forma a tornar-se um meio termo entre o ritmo lento e
deliberado do canto e o andamento rápido e flexível da fala, [...] usei o baixo contínuo
fazendo com que ele se movesse ora mais depressa, ora mais devagar, de acordo com as
emoções que tivessem de expressar (PERI apud COELHO, 2000, p. 44).

8
Segundo o dicionário Grove, monodia é “canção italiana para voz solista acompanhada, especialmente secular, de
c.1600-40. O termo vale igualmente para uma canção isolada ou para todo o repertório. Abrange canções para voz
solo e contínuo” (SADIE, 1994 p. 616).
14

Sobre a escolha da monodia e ataque ao contraponto, Candé comenta:

A ideia de ‘retorno à monodia’ equivale à de ‘nascimento da polifonia’: são esquemas


grosseiramente incompletos. A novidade musical dos últimos anos do século XVI não é
tanto a ‘monodia acompanhada’, apresentada como o contrário da polifonia, quanto a
maneira de se empregar uma e outra: busca de expressão, adaptação à função dramática,
primado da parte melódica e do baixo, distinguindo-se por sua continuidade, relações
concertantes entre vozes e instrumentos... (CANDÉ, 2001, p. 420)

Poucos registros nos restam dos primeiros dramma per musica. Da maioria restam apenas
partituras de alguns trechos. Além disso, não é comum se executar tais obras, mesmo as que as
partituras chegaram aos dias atuais. As poucas execuções são feitas com a finalidade de resgate
histórico.

2.2 ÓPERA NO PERÍODO BARROCO

Apesar da Dafne ser considerada a primeira ópera, Orfeo9 (1607) de Monteverdi passou a ser a
primeira ópera de referência encenada ainda hoje. Monteverdi é considerado o pai da ópera, o
primeiro grande compositor do gênero (RIDING, 2010. PEIXOTO, 1985. CANDÉ, 2001). No
Orfeo, Monteverdi traz enriquecimentos consideráveis com relação às obras dos compositores
ligados à Camerata Florentina: desenvolveu o recitativo, a utilização do coro e as intervenções
instrumentais. Em Monteverdi “o recitativo é mais elaborado, a orquestra é maior, a música é
consciente do significado do drama” (PEIXOTO, 1985, p. 64).

O recitativo ganha maior continuidade e maior amplitude através de uma cuidadosa


organização tonal e nos momentos-chaves atinge um alto nível de lirismo. Além disso,
Monteverdi introduziu no Orfeo muitas árias a solo, duetos, conjuntos do tipo de
madrigal e danças, que, somados, constituem grande parte da obra e proporcionam um
necessário contraste ao recitativo (GROUT, 2007, p. 324).

L’incoronazione di Poppea, estreada em 1643, é considerada a obra-prima lírica de Monteverdi


(CANDÉ, 2001. GROUT, 2007). Nela “os principais elementos que caracterizam a ópera já se
encontram reunidos sob uma forma consumada: recitativo, ária da capo, conjuntos, emprego do
leitmotiv10, tradução musical das oposições de caracteres e dos contrastes de situações.”
(CANDÉ, 2001, p. 439) A criadora do papel de Ottavia em L’incoronazione di Poppea foi Anna
Renzi, a primeira cantora profissional de ópera. Em 1600, as filhas de Peri já se apresentaram em
récitas privadas de Dafne. No entanto, Anna Renzi foi a primeira mulher a ficar famosa cantando
9
O mito de Orfeu também inspirou outras óperas, Euridice de Peri, 1600; Orfeo e Euridice e Orphée de Gluck,
1762, 1770; Orphée aux enfers de Offenbach, 1858; e Orphée de Philip Glass, 1993 (RIDING, 2010).
10
O leitmotiv é um “tema ou idéia musical claramente definido, representando ou simbolizando uma pessoa, objeto,
idéia etc., que retorna na forma original, ou em forma alterada, nos momentos adequados, numa obra dramática.”
(SADIE, 1994, p. 529) A técnica foi aperfeiçoada por Richard Wagner e o só termo foi cunhado em 1871, embora
fosse utilizada anteriormente.
15

ópera nos teatros de Veneza, onde não se aplicavam os decretos papais que proibiam as mulheres
de subir ao palco (RIDING, 2010).

O primeiro teatro de ópera foi inaugurado em 1637 em Veneza. A partir daí outras casas de
espetáculo foram construídas e com isso, a ópera deixou de ser uma diversão aristocrática e
chegou ao palco e ao povo. No entanto, ainda sem dependente do mecenato. A construção de
casas de espetáculo exigiu dos compositores o compromisso de agradar esse novo público e os
espetáculos de ópera, assim como os cantores, se tornaram cada vez mais populares (CANDÉ,
2001; DIGAETANI, 1986; PEIXOTO, 1985).

Na segunda metade do século XVII, Veneza continua a ser o principal centro de ópera italiano e
seus teatros de ópera eram famosos em toda a Europa. Ainda no final deste século começa a se
desenvolver, em Nápoles, um novo estilo mais preocupado com a elegância da música do que
com a verdade dramática (GROUT, 2007). A partir das mudanças ocorridas na ópera na
transição do século XVII para o século XVIII, se desenvolveu um novo estilo de drama musical,
a opera séria, praticado em toda a Europa na primeira metade do século XVIII, à exceção da
França (COELHO, 2000).

Neste contexto, a forma operística sofreu um processo de enrijecimento. O arioso proposto pela
Camerata Florentina se dissocia em recitativo e ária. A independência que a ária adquire no
século XVIII e a necessidade de se demonstrar uma vasta gama de sentimentos nos personagens
da ópera barroca fez com que se cristalizassem diversos modelos de árias, cada uma para
demonstrar um determinado tipo de sentimento ao mesmo tempo em que demonstrava a
habilidade do intérprete. A ária da capo viria a ser usada como modelo para diversos
compositores. Essas árias tinham forma ABA e esperava-se que na repetição de A os cantores
dessem sua contribuição pessoal introduzindo ornamentos vocais. Do mesmo modo, o recitativo
se desenvolveu em dois tipos distintos. O recitativo secco, acompanhado apenas pelo cravo e
baixo contínuo, era usado em diálogos e monólogos longos. Para as situações dramáticas
especialmente tensas, o recitativo obligato contava com a participação da orquestra pontuando as
frases do cantor com interrupções instrumentais (GROUT, 2007; COELHO, 2000).

A força que a ária adquiriu com a opera seria, teve como consequência um fenômeno típico do
século XVIII: o culto do cantor. A ária foi utilizada para exibir o virtuosismo vocal dos
intérpretes (COELHO, 2000).
16

Assistimos assim ao apogeu do bel canto11, em que a ária é o veículo privilegiado para a
exibição do talento dos cantores, cuja presença dominava o palco. O reverso da moeda é
a tirania do intérprete que, sabedor do prestígio de que desfrutava junto ao público,
ditava suas regras ao compositor, impondo-lhe o número de árias que queria cantar em
cada ópera, fazendo-o sobrecarregá-las com coloratura exagerada, e determinando até
mesmo a posição que essa ária deveria ocupar dentro do espetáculo (COELHO, 2000, p.
173).

A primazia dos cantores, com todas as exigências e exibicionismo, influenciou o potencial


dramático da ópera barroca. Outros fatores também contribuíram para que a opera seria se
tornasse um espetáculo em que o drama fosse colocado em segundo plano. DiGaetani comenta a
grandiosidade e artificialidade do palco barroco: As produções eram suntuosas e buscavam
efeitos teatrais, as óperas se passavam em períodos históricos antigos, porém não se buscava
autenticidade nos cenários e figurinos. Além disso, os famosos castrati exibiam o virtuosismo de
suas vozes e competiam entre si em trajes exuberantes independente do papel que
representavam. “O resultado era que, enquanto cantores, com vozes inacreditáveis e vestidos de
forma inacreditável, faziam enorme sucesso junto ao público, toda aparência dramática ficava
destruída no processo” (DIGAETANI, 1986, p. 80).

2.3 ÓPERA NO PERÍODO CLÁSSICO

O primeiro compositor de ópera do período clássico, responsável por romper com os excessos da
ópera seria, foi o alemão Christoph Willibald Gluck. As primeiras óperas de Gluck pertenciam à
vertente da opera seria. Já a partir da década de 1750, o compositor representa um movimento
de reforma da ópera, que defendia a primazia da ação dramática e dessa maneira, o fim de danças
irrelevantes, da música de diversão e das árias da capo floreadas ao gosto dos castrati das prima-
donas. O drama passa a ser o principal objetivo (RIDING, 2010). O coro também é integrado o à
ação dramática de forma mais consciente, as aberturas apresentam o argumento do drama e os
recitativos contam com maior participação da orquestra e são construídos em direção à ária. A
forma da ária é simplificada, sem floreios e abuso das coloraturas(CANDÉ, 2001; PEIXOTO,
1985; RIDING, 2010).

No prefácio de Alceste (1767), Gluck publica uma espécie de manifesto a favor da função
dramática da música na ópera. Para Gluck, a música deveria apoiar a poesia, deveria reforçar a

O termo bel canto se refere à tradicional arte de “cantar bonito”. Acredita-se que o termo foi utilizado pela
11

primeira vez por NiccolaVaccai em suas Ariette da Camera, de 1840. Mas na ópera veneziana do século XVIII já
existiam elementos embrionários desse estilo que atinge seu apogeu na opera seria e, posteriormente, na primeira
metade do século XIX com Rossini, Bellini e Donizetti (COELHO, 2000)
17

expressão dos sentimentos e o interesse das situações, sem interromper a ação ou a perturbar
com ornamentos inúteis (NIETZCHE,2005; CANDÉ, 2001).

Pensei restringir a música à sua verdadeira função, servir à poesia na expressão e nas
situações dramáticas, sem interromper a ação ou arrefecê-la com ornamentos inúteis,
surpérfluos [...] Imaginei que a sinfonia devia prevenir os espectadores sobre a ação que
vai ser apresentada e formar, por assim dizer, seu argumento [...] Pensei, além disso,
que meus maiores esforços deveriam reduzir-se a buscar uma bela simplicidade e evitei
exibir dificuldades em detrimento da clareza (GLUCK apud CANDÉ, 2001, p. 589).

A formação inicial de Gluck foi produto da escola italiana da Opera Seria, que “desenvolveu e
abusou da ária fantasticamente” (KERMANN, 1990). O compositor simplificou a forma da ária,
possibilitando uma nova intensidade de expressão emocional. A respeito da primeira ária de
Orfeo, Chiamo il mio ben cosi, Kermann comenta:

Através de suas duas exclamações mostra-se que Orfeu readquire o domínio de si


mesmo, a um ponto em que a dor é observada e compreendida, não mais vivida, mas
tampouco evitada. Ele transcende sua dor controlando-a na forma de uma canção.

Esta arte do controle era o que tinha sido aprendido; a arte da ária, depois do recitativo,
o segundo dos dois elementos fundamentais da dramaturgia operística. [...] Não
obstante, a ária, ou algum substituto lírico da ária, tornara-se a principal força do drama
musical, e ninguém jamais compreendeu sua função melhor do que Gluck.
(KERMANN, 1990, p. 51)

A mudança na maneira de lidar com a relação entre música e drama por parte do compositor
passou a exigir uma abordagem do cantor-ator diferente daqueles do período barroco. “O texto,
especialmente a compreensão das palavras, formou o âmago funcional dessas óperas que pediam
um estilo de desempenho contido, elegante e sóbrio, muito diferente do estilo, muitas vezes
pomposo, de algumas óperas desse período” (DIGAETANI, 1986, p. 35). O castrato escolhido
para interpretar Orfeo na estréia da ópera, Gaetano Guadagni, era conhecido por evitar excessos,
destoando dos demais castrati. Além disso, havia estudado interpretação teatral com o
shakespeariano David Garrick (RIDING, 2001).

A ópera do período clássico sofreu transformações nas mãos de Wolfgang Amadeus Mozart. O
compositor austríaco escreveu ópera em três diferentes gêneros: singspiel12, opera seria e opera
buffa13. Suas três óperas escritas em parceria com Lorenzo da Ponte são obras-primas cômicas e
com elas Mozart levou o modelo da ópera cômica italiana do século XVIII ao seu mais alto grau
de realização (DIGAETANI, 1986).A dramaturgia de Mozart vai além do libreto, nas suas

12
Modalidade nativa alemã, o singspiel utiliza texto falado intercalado com números musicais. A ópera Die
Zauberflöte de Mozart é um exemplo do gênero.
13
No período barroco a opera buffa se desenvolveu paralelamente à opera seria. Com duração mais curta, a opera
buffa era muitas vezes apresentada como intermezzo entre nos intervalos das grandes óperas.
18

óperas a música é utilizada para caracterizar seus personagens com personalidade mais
consistente (KERMAN, 1990).

Os libretos de DaPonte para Mozart, alguns do quais eram adaptações de libretos e


peças de outros autores, elevaram a opera buffa a um nível literário mais alto do que o
habitual, dando maior consistência às personagens, sublinhando as tensões sociais entre
as várias classes e jogando com questões de ordem moral. A finura psicológica de
Mozart e o seu gênio para a caracterização musical elevaram igualmente o gênero a um
novo grau de seriedade. (GROUT, 2007, p. 539)

Mozart também inovou na maneira de conduzir a ação dramática. O compositor “desejava que o
enredo da ópera avançasse não só durante os recitativos mas também durante os números
musicais” (DIGAETANI, 1986, p. 37). Seus finales são não somente ensembles de grande
complexidade e beleza musical, mas também são momentos onde a ação dramática tem papel
fundamental no desenvolvimento do enredo da ópera.

Os papéis escritos por Mozart geralmente eram destinados a uma determinada voz. Por isso
alguns exigem um tipo especial de voz e habilidades vocais. Exemplos disso são: Constanze em
Die Entführungaus dem Serail, Fiordiligi em Cosi fan tutte e a Rainha da noite em Die
Zauberflöte (DIGAETANI, 1986). Para os castrati, Mozart escreveu poucos papéis e deu início à
prática de escrever papéis masculinos para voz feminina14. Alguns cantores de ópera da época de
Mozart eram também atores, um exemplo disso é Emmanuel Schikaneder, criador do papel de
Papageno em Die Zauberflöte. Também Theresia Teyber, que interpretou Blonde em Die
Entführungaus dem Serail era uma grande estrela do teatro em língua germânica (GUSE, 2011).

2.4 ÓPERA NO PERÍODO ROMÂNTICO

Na Itália do início do século XIX, o estilo do bel canto foi aperfeiçoado por Rossini, Bellini e
Donizetti. Estes compositores tinham de lidar com a grande quantidade de encomendas e
exigência de renovação constante do repertório, o que resultou na repetição de fórmulas
estabelecidas na composição dessas óperas (PEIXOTO, 1985). Rossini, por exemplo, compôs 35
óperas em duas décadas (RIDING, 2010).

14
Alguns papéis nas óperas de Mozart foram criados para castrati. Um exemplo é Idamante em Idomeneo. Apesar
disso, na estreia de Le nozzediFigaro, foi uma cantora que interpretou o pajem Cherubino. Outros compositores
escreveram, posteriormente, papéis masculinos para voz feminina, principalmente para mezzosoprano. Alguns
exemplos são: Romeo em Il Capuletti e Il Montechi, Siebel em Faust e Octavian em Der Rosenkavalier,
19

Além da grande quantidade de óperas, este estilo primava pela beleza da melodia e virtuosismo
vocal como principal meio de expressão. Isto permitia que algumas melodias de árias fossem
repetidas em óperas diferentes, sem uma preocupação com a função dramática. É o caso da ária
Cessa de più resistere, no trecho Ah Il più lieto, da ópera Il Barbiere di Siviglia de Rossini que o
compositor utiliza posteriormente na ópera Cenerentola na ária Non piumesta. Outro exemplo é
a Romanza de Giulietta Oh quante volte, onde Bellini faz uso da melodia de Dopo l’oscuro
nembo, composta para sua primeira ópera Adelson e Salvini.

Giuseppe Verdi sucedeu os compositores belcantistas na tradição da ópera italiana. Verdi


contribuiu por cerca de 50 anos para o gênero operístico com um total de 28 óperas. O
compositor escolhia seus libretistas e exigia libretos com fortes emoções, contrastes acentuados e
rapidez da ação (GROUT, 2007). Além disso, chegou a participar da concepção dos libretos
discutindo e até escrevendo cenas (PEIXOTO, 1985). Verdi também contribuiu para a formação
de uma identidade nacional. O compositor participou do Risorgimento, movimento político pela
unificação da Itália, e suas obras contém elementos nacionalistas (DIGAETANI, 1986; RIDING,
2010). Contrastando com a ênfase dada a mitologia na Alemanha, Verdi busca expressar em suas
óperas, o drama humano (GROUT, 2007; PEIXOTO, 1985).

Misticismo, mitologia, um universo de símbolos e rituais, temas abstratos e


historicamente distantes, não lhe despertam interesse. Construiu heróis, mas de uma
batalha patriótica mais recente: é o poeta dramático e musical das lutas pela unificação
da Itália. Com Verdi o romantismo italiano na ópera chega ao apogeu e também a o
ocaso. O que há, porém, é um romantismo brutal, próximo do projeto realista. É ao
mesmo tempo a expressão de um romantismo político. (PEIXOTO, 1985, p. 85)

Contemporâneo de Verdi e grande compositor da ópera alemã, Richard Wagner elaborou o


conceito de Gesamtkunstwerk, ou “obra de arte total”. Para ele, a função da música era servir os
objetivos da função dramática (GROUT, 2007). Wagner não só compunha a música de suas
óperas como escrevia os libretos e assumia responsabilidade por toda a concepção artística das
óperas. O compositor chegou a construir um teatro em Bayreuth que atendesse aos seus ideais.
Neste teatro, a orquestra saiu da vista da plateia e os camarotes hierarquizados foram eliminados.
Além disso, no teatro de Bayreuth, Wagner apagou as luzes da plateia, direcionando a atenção
dos espectadores para o palco (RIDING, 2010). Com isso, introduziu uma prática importante não
somente para a encenação operística, mas também para o teatro de maneira geral.

Um exemplo da utilização da música com fins dramáticos na obra de Wagner é o emprego do


leitmotiv. A técnica consiste em associar um tema ou motivo musical a uma pessoa, objeto ou
ideia do drama (GROUT, 2007). O leitmotiv “fez da orquestra a força central do drama, atuando
20

muitas vezes, [...] comentando a ação e sugerindo interpretações e propósitos onde os


personagens não encontravam nenhum” (DIGAETANI, 1986, p. 49).

No final do século XIX e início do século XX, o movimento literário francês conhecido por
naturalismo influenciou alguns compositores de ópera. Na Itália, o naturalismo deu origem ao
verismo. As duas óperas mais significativas do movimento verista são Cavalleria Rusticana de
Pietro Mascagni e Il Pagliacci de Ruggero Leoncavallo. Segundo Peixoto (1985), a
CavalleriaRusticana “é o manifesto de uma nova proposta dramático-musical antiwagneriana,
partitura que recusa a complexidade expressiva e retorna à valorização vocal típica dos modelos
italianos tradicionais” (PEIXOTO, 1985, p. 86).

Também na França, alguns compositores escreveram óperas naturalistas. Na ópera Carmen,


Georges Bizet, coloca em cena a pobreza e a violência, característica comum às óperas
naturalistas (DIGAETANI, 1986). Outro compositor francês que passou pelo estilo naturalista
foi Jules Massenet. A ópera Manon de Massenet, assim como a Carmen, foi composta na forma
do opéra-comique, utilizando diálogos falados e números musicais (RIDING, 2010).No fim do
século XIX, o compositor italiano Giacomo Puccini, emergiu do estilo verista. Sua ópera Il
Tabarro, estreada em 1918, é um exemplo do estilo verista já no século XX.

No que diz respeito aos cantores, a ópera do século XIX começa a exigir vozes mais potentes e a
formação dos cantores ganha maior importância. Segundo DiGaetani (1986), “A arte do bel
canto emprega um método especial de cantar [...]. De fato, a maioria do treinamento vocal usado
em nosso tempo é ainda baseado nessa técnica.” (DIGAETANI, 1986, p. 39)Os papéis para
castrati desapareceram do repertório operístico e os tenores passam a ser os protagonistas. E,
apesar da primazia da voz, os grandes cantores que desenvolviam o repertório do bel canto não
baseavam seu prestígio apenas no desempenho vocal. Candé (2001) aponta Giuditta Pasta15
como a primeira grande cantora-atriz. E outras cantoras como Giulia Grisi, Jenny Lind, Maria
Malibran e Marietta Alboni também eram reconhecidas não somente pela técnica vocal, mas
também pela presença cênica (CANDÉ, 2001).

A ópera de Wagner tem duração de três a quatro horas com cenas longas. Por isso, os papéis
wagnerianos são de grande demanda vocal e física (RIDING, 2010). Na busca de alcançar o seu
ideal de drama musical, Wagner escolhia e preparava os cantores para suas óperas. Devido à
dificuldade vocal dos papéis wagnerianos e especificidade com relação às características vocais,

Giuditta Pasta (1798 - 1865) estreou o papel título na Normade Bellini, além da Adina em L’elisir d’amore e o
15

papel título em Anna Bolena de Donizetti (DIGAETANI, 1986).


21

os cantores que executaram suas óperas normalmente se especializavam nesse repertório. Esta
grande demanda vocal e preferência por vozes mais potentes, não é exclusiva da ópera de
Wagner. As óperas veristas também dão lugar às grandes vozes ao mesmo tempo em que exigem
desses cantores um grande potencial dramático e uma interpretação realista.

2.5 ÓPERA NO SÉCULO XX

Com as inovações tecnológicas do século XX e o surgimento e desenvolvimento dos recursos de


gravação, a ópera encontrou novos rumos com compositores inovadores. Por outro lado,
maestros e cantores se dedicam à popularização do repertório tradicional por meio da gravação
de discos. Nesta seção, são citados alguns destes compositores e algumas de suas óperas mais
significativas.

No início do século, Richard Strauss estreou Elektra e Salomé, que chega aos limites do
atonalismo e posteriormente compõe Der Rosenkavalier em estilo neoclássico. Na França,
Debussy, influenciado pelo impressionismo, compôs Pelléas et Mélisande: “quase insuperável
exemplo de integração música texto, emoções e sentimentos íntimos revelados através de uma
simplicidade extremamente rigorosa” (PEIXOTO, 1985, p. 89).

Os cromatismos de Wagner, na ópera, já haviam preparado o terreno para a ruptura com o


tonalismo. Arnold Schöenberg rompe totalmente com o tonalismo ao realizar composições
atonais. Seu aluno, Alban Berg compôs Wozzeck e Lulu. Segundo Peixoto (1985), em Wozzeck
“a arquitetura dramática existe em função da arquitetura musical, uma justifica e exprime a outra
a partir de uma necessidade íntima indissociável, e vice-versa” (PEIXOTO, 1985, p. 99).

Alguns compositores do século XX rejeitaram a distinção entre a música dita erudita e a popular.
Kurt Weill escrevia óperas marcadas pelas novas tendências musicais europeias e pela música de
dança americana. Destaca-se a parceria de Weill com o dramaturgo, poeta e encenador Bertold
Brecht que inovou o fazer teatral. Já nos Estados Unidos, George Gershwin compõe Porgy and
Bess, uma ópera que combina música gospel de origem afro-americana, blues e jazz (RIDING).

2.6 A ÓPERA HOJE

Atualmente as óperas do passado continuam as serem apresentadas e o repertório contemporâneo


representa a menor parte das temporadas dos grandes teatros. Ao se encenar óperas compostas no
22

passado há montagens que buscam encontrar o ideal pretendido na época e outras que procuram
fazer uma releitura aliando elementos da contemporaneidade com a partitura deixada pelos
compositores.

Nota-se uma tendência atual das grandes casas de ópera de montarem óperas barrocas com
libreto e música original, porém ressignificando esses elementos através de uma encenação
contemporânea. Exemplo disso é a montagem do Orfeo de Monteverdi, produzida pelo Royal
Opera House em colaboração com Roundhouse e com direção de Michael Boyd. Exibida online
em janeiro de 2015, esta montagem foi realizada em palco circular com a plateia disposta em
arquibancadas. Sem usar cenografia e figurinos de época, percebe-se nas coreografias, uso da
iluminação, figurinos e encenação de modo geral, elementos que caracterizam um espetáculo
contemporâneo. Além disso, atualmente, contratenores e mezzosopranos tem se dedicado à
pesquisa e gravação do repertório escrito para voz de castrato. Nos palcos também é comum que
mezzosopranos interpretem esses papéis travestidos. No álbum Sacrificium, lançado em 2009,a
mezzosoprano Cecilia Bartoli interpreta árias barrocas escrita para castrati.

Não são somente as óperas barrocas que tem ganhado nova roupagem. Nessas montagens, os
diretores ganham destaque pela inovação na encenação. Peter Sellars, por exemplo, encenou em
1990 a ópera Così fan tutte de Mozart em ambientação contemporânea e Robert Wilson encenou
Orphée et Eurydice, entre outras óperas, com produção minimalista e gestual associado ao
estilizado kabuki16 japonês (RIDING, 2010). Outro nome da encenação contemporânea de ópera
é Patrice Chéreau. A tetralogia do anel17 de Wagner, dirigida por Chéreau em 1976 em
Bayreruth, provocou ira e escândalo por parte dos conservadores wagnerianos (PEIXOTO,
1985).

16
Kabuki é um gênero do teatro japonês que envolve dança e música com gestos estilizados.
17
A tetralogia do anel de Wagner é composto pelas óperas das Rheingold, Die Walküre, Siegfried e Götterdamerung.
23

CAPÍTULO 3

O CANTOR-ATOR

Além das atribuições técnicas do trabalho de músico cantor e de ator, o cantor-ator de ópera
precisa lidar com desafios específicos da ópera. Por este motivo, a formação de cursos voltados
para a interpretação teatral não é suficiente quando somada à técnica vocal e conhecimento
musical do cantor-ator. Guse (2011) comenta algumas dessas especificidades da arte do cantor-
ator de ópera. A primeira é com relação à fala das personagens. Diferente do teatro, na ópera, o
ritmo, a altura e intensidade da fala são estabelecidos previamente pelo compositor. Apesar de
parecer limitar a criatividade do cantor-ator, esta música das falas pode dar pistas para os
sentimentos, pensamentos e ações da personagem. Segundo Guse (2011):

Confiando na habilidade do compositor, o cantor precisaria elaborar uma interpretação


sobre as notas estabelecidas e o sentido do texto, para que dentro das limitações ditadas
pela estrutura musical ele promova uma atuação dramática aparentemente espontânea e
livre. Isto é, o cantor faria uma prévia reflexão sobre uma possível interação entre o
significado das palavras e uma suposição o que as alturas e ritmos pré-fixados
revelariam sobre as intenções da personagem ao dizê-las. (GUSE, 2011, p. 95 - 96)

Outro desafio do cantor-ator está na relação entre o tempo da partitura e o tempo da ação. Na
ópera, a duração, o ritmo e o andamento das cenas estão determinados na partitura. A partir
dessas informações estabelecidas, o diretor e os cantores-atores se deparam com algumas
complicações. Uma delas é encontrar o timing ideal das cenas, através da compreensão de qual o
momento exato para reagir às falas e às ações das outras personagens. Outra complicação se dá
em definir o tempo-ritmo da personagem e mantê-lo enquanto a música expressa um tempo-
ritmo contrastante. Há ainda a problemática da duração das cenas com o tempo que normalmente
é dilatado na ópera. A respeito da duração das cenas na encenação da tetralogia do Anel de
Wagner, Chéreau (2010) comenta: “A experiência d’O anel me ensinou que, numa cena, corre-se
o risco de movimentar os cantores rápido demais, de transformar, de modificar muito rápido a
situação e a interação física entre eles” (BARENBOIM; CHÉREAU, 2010, p. 57). Ao cantor-
ator, cabe o desafio de justificar tal dilatação temporal sem retardar a ação e sem esgotar todo o
seu material expressivo nos primeiros minutos da cena.

Além das complicações encontradas no momento de contato com a partitura, apresentadas


acima, o cantor-ator se depara com algumas dificuldades na etapa de execução. Neste processo o
cantor-ator precisa coordenar o desempenho vocal com a movimentação, a atenção à orquestra e
à regência, e a relação com os outros cantores-atores em cena. Diante da dificuldade em
24

coordenar todos estes aspectos, muitas vezes a encenação é colocada em segundo plano para
garantir uma execução musical de qualidade.

Ainda que seja consenso de que o cantor de ópera deve se preparar como ator, há uma dúvida
quanto aos limites do potencial cênico do cantor-ator. Velardi (2011) relata uma situação que
exemplifica a opinião no meio profissional nacional acerca do trabalho corporal do cantor de
ópera. O episódio ocorreu quando os cantores-atores do NUO18, nos ensaios da ópera El hijo
fingido, dançavam uma composição coreográfica baseada no flamenco contemporâneo:

Assistindo a um dos ensaios gerais uma das responsáveis pela administração do teatro
onde a companhia se apresentou, e que tem vasta experiência com coros estáveis no
país, imediatamente apontou: não imagino os integrantes ‘daqueles’ coros fazendo isso.
Mais ainda: dispondo-se a fazer. Naquele momento ela relembrou um episódio no qual
os integrantes de um coro estável importante no país negaram-se a atender às
solicitações do encenador durante uma montagem de ópera: “somos cantores” -
esbravejaram em uníssono - “não dançarinos”! O encenador cedeu. (VELARDI, 2011,
p. 2)

No âmbito das artes cênicas, a reflexão sobre o corpo do ator é bastante recorrente. A dança
contemporânea se aproximou do teatro e novas expressões artísticas, como a dança-teatro19, por
exemplo, vêm propondo novas possibilidades expressivas por meio do uso do corpo nos
espetáculos teatrais. No entanto, na ópera o corpo ainda parece obedecer à ideia de corpo
instrumental: o corpo que produz a voz (VELARDI, 2011).

Cantar e se movimentar em cena sem que a movimentação comprometa a qualidade vocal é um


grande desafio para o cantor-ator. Os cantores realizam grande parte do estudo da técnica vocal e
de repertório em pé ou sentados, buscando uma postura ideal para uma emissão vocal de
qualidade. No entanto, ao participar de uma ópera, o cantor-ator pode vir a ter que cantar em
diferentes posições. Diante desse desafio, muitos acabam por limitar a movimentação cênica.
Guse (2007) propõe que quando a música apresenta dificuldades técnicas, a movimentação deve
ser limitada, porém sem comprometer a interpretação:

No Bel Canto, como o nome mesmo já deixa claro, o virtuosismo do canto é valorizado.
Assim, o encenador não deverá propor uma grande movimentação onde a música
apresentar dificuldades técnicas de maior fôlego. Porém, isso não implica que o cantor
deva deixar de interpretar sua personagem, permitir-se uma desatenção, ou crer que a
preocupação com as dificuldades técnicas possa relegar a um plano secundário sua
presença cênica. (GUSE, p. 8)

18
O Núcleo Universitário de Ópera (NUO) é uma companhia de ópera estável, presente na cena paulistana, criada
pelo maestro e compositor Paulo Maron. O núcleo visa à formação de jovens músicos para a ópera (VELARDI,
2011).
19
A união da dança com alguns elementos do teatro, criando uma nova forma de expressão artística. O nome dança-
teatro é muito associado à Pina Bausch.
25

Algumas montagens recentes têm contribuído para a ampliação dos limites quanto ao uso do
corpo do cantor-ator e é cada vez mais comum encontrar cantores que exploram o potencial
expressivo do corpo na ópera. Tendo visto quais são as atribuições e desafios do cantor-ator e a
importância desta figura na tentativa de revelar o potencial dramático da ópera, chegamos à
seguinte questão: Qual a participação do cantor-ator na autoria do espetáculo? Segundo Guse
(2011), o cantor-ator tem a dupla obrigação de executar a música revelando o drama e é nos
cantores que se encontra o cerne dessa união entre drama e música. E sobre a criação por parte
do intérprete, Mota (2009) comenta:

A emergência do teatro moderno é contemporânea da descentralização das prerrogativas


interpretativas. É para a interação entre obra e intérprete que o trabalho interpretativo se
direciona. Não há uma interpretação canônica, única e final de um papel, de uma obra,
mas uma negociação entre as marcas que a obra registra e o processo criativo que
transforma estas marcas em um espetáculo, a partir dos membros envolvidos no
processo. (MOTA, 2009, p. 58)

Se não há uma interpretação única e final de um papel, cada interpretação é única. Esta
constatação é inerente ao aspecto cênico da obra. Uma ópera encenada é única. Da mesma
forma, a personagem que o cantor-ator leva ao palco não é a mesma que outro cantor-ator
construiria, nem é a mesma que ele próprio vivencia e apresenta em momentos diferentes. Neste
sentido, um cantor-ator, consciente de suas atribuições como artista músico e ator, pode assumir
a colaboração na co-autoria da encenação de uma ópera.
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CONCLUSÃO

Na busca por uma definição de ópera, nos deparamos com diferentes conceitos. No entanto,
todos levam em consideração a presença do drama. Embora o potencial dramático tenha existido,
na ópera, em maior ou menor grau em diferentes períodos estéticos, todos os autores pesquisados
consideram a ópera um gênero dramático-musical. Neste campo híbrido, o cantor de ópera
precisa desenvolver também habilidades de ator e lidar com as especificidades do seu trabalho
criativo de cantor-ator.

O levantamento acerca da trajetória do gênero operístico confirma a importância do


desenvolvimento de habilidades cênicas por parte do cantor de ópera. A ópera surgiu da intenção
de reproduzir os efeitos que a música tivera na Grécia Antiga. Os compositores dos primeiros
dramma per musica utilizaram a monodia a fim de aproximar o canto do ritmo e das inflexões
naturais da fala. E no período barroco, a ópera se desenvolveu de modo que o virtuosismo vocal
ganhou importância e a ária passa a ser o principal exemplo do fenômeno de culto ao cantor.

Já no período clássico, percebe-se uma preocupação com o potencial expressivo do cantor de


ópera não só musicalmente, mas também no âmbito da interpretação enquanto ator. Isto ocorre
na medida em que os compositores buscavam a valorização do potencial dramático da música na
ópera. Gluck buscou uma reforma na ópera e defendia a função dramática da música. O castrato
que interpretou o papel-título no Orfeo de Gluck em sua estreia tinha formação de ator. Além
disso, alguns cantores que estrearam as óperas de Mozart eram também atores.

No período romântico, os cantores de ópera se deparam com outras exigências. O estilo


belcantista desenvolveu a técnica vocal e as grandes óperas de Verdi e Wagner exigiam grande
demanda física e vocal. Ainda assim, os grandes cantores do século XIX eram conhecidos não
somente pelo seu desempenho vocal, mas também por sua presença cênica. E, ainda no período
romântico, as óperas veristas exigiram uma interpretação mais realista por parte dos cantores-
atores.

Atualmente, as composições contemporâneas compartilham espaço nas temporadas das casas de


ópera com as obras do passado. Portanto, na atualidade, é interessante que o cantor-ator tenha
conhecimento de repertório e de estilo, mesmo que este venha a se especializar nas óperas de
algum determinado período estético ou compositor. Além disso, o desenvolvimento tecnológico,
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aliado às produções operísticas, vem reforçando a necessidade de uma formação cênica por parte
do cantor de ópera.

Apesar desta aparente necessidade de formação cênica, ainda é comum encontrar opiniões a
favor da supremacia das habilidades vocais. Além disso, as condições comuns das produções de
espetáculos de ópera não favorecem o processo criativo cênico do cantor-ator. A escassez na
quantidade de ensaios, aliada à deficiência na formação cênica do cantor, faz com que o
encenador assuma toda a parte cênica da produção. Nesta situação, o cantor-ator acaba por
simplesmente seguir as orientações de movimentação do encenador e pouco contribui
criativamente.

Levando em consideração que a interpretação cênica para a ópera tem suas especificidades,
percebe-se a necessidade de se desenvolver pesquisas na área a fim de construir propostas para a
formação cênica do cantor-ator. A maioria dos cantores-atores buscam essa formação em cursos
de artes cênicas, porém, estes precisam adequar a técnica de interpretação teatral às suas
necessidades. As pesquisas na área podem apontar caminhos para que a formação cênica do
cantor acompanhe a sua formação musical e, desta maneira, permitem otimizar o trabalho
criativo do cantor-ator.
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