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BACHARELADO EM MÚSICA
VITÓRIA
2015
O CANTOR-ATOR: UM ESTUDO SOBRE O TRABALHO CRIATIVO CÊNICO-
MUSICAL DO CANTOR DE ÓPERA
por
2015
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ........................................................................................................................................... 3
CAPÍTULO 1 - O GÊNERO OPERÍSTICO ................................................................................................ 7
CAPÍTULO 2 - ÓPERA: UMA BREVE TRAJETÓRIA .......................................................................... 12
2.1 CAMERATA FLORENTINA ......................................................................................................... 12
2.2 ÓPERA NO PERÍODO BARROCO ............................................................................................... 14
2.3 ÓPERA NO PERÍODO CLÁSSICO ............................................................................................... 16
2.4 ÓPERA NO PERÍODO ROMÂNTICO ........................................................................................... 18
2.5 ÓPERA NO SÉCULO XX ............................................................................................................... 21
2.6 A ÓPERA HOJE .............................................................................................................................. 21
CAPÍTULO 3 - O CANTOR-ATOR ......................................................................................................... 23
CONCLUSÃO ........................................................................................................................................... 26
REFERÊNCIAS ......................................................................................................................................... 28
3
INTRODUÇÃO
Numa ópera, o material humano que estabelece a comunicação direta com o público no momento
da encenação é o cantor de ópera. O termo cantor, neste caso, é insuficiente para abranger todas
as atribuições necessárias a esse artista. Este interpreta não só a música da ópera, mas coloca em
cena um personagem que se comunica por meio da expressão vocal e corporal. Por este motivo,
neste trabalho será utilizado o termo cantor-ator como referência ao cantor de ópera.
Nos ensaios da ópera Zolotoi Petushok1de Rimski-Korsakov, Stanislavski alerta aos cantores
quanto aos gestos estereotipados, a resistência em cantar em diferentes posições e preocupação
com a beleza da voz: “Os atores às vezes alegam que em certas posições o tom é feio, sua voz
adquire uma cor diferente. Mas que mal há nisso? Às vezes um tom feio ou uma cor diferente é
justamente o efeito que queremos” (LOGAN; STANISLAVSKI, 1986, p. 20). Nas notas aos
ensaios de Werther, Stanislavski comenta sobre o problema das pausas mortas, quando o cantor-
ator se desliga da interpretação nos momentos de pausa na linha vocal do seu personagem.
Critica também as notas vazias de interpretação: “E como você poderá entrar na vida do ritmo do
compositor se está claro que você está com medo das notas altas? [...] faça com que as ações
físicas corretas ajudem você a obter as emoções corretas. Parta delas e a sua voz lhe responderá”
(STANISLAVSKI apud PEIXOTO, 1985, p. 50)
1
Como outros nomes do repertório operístico, Zolotoi Petushok é mais conhecida no Brasil pelo título em
português: O Galo de Ouro. Nesta pesquisa, ao citar as óperas, será mantido o título original.
4
Apesar de um cantor de ópera que saiba atuar ser fundamental para um espetáculo de ópera
coerente, a formação do cantor de ópera não é eficiente neste aspecto. Guse (2011) aponta para a
carência de disciplinas que abordem o aspecto cênico na formação preparatória do cantor de
ópera, chamando atenção para os currículos das escolas de canto situadas no Brasil. Os cantores
que adquirem essa formação o fazem por conta própria em cursos livres de teatro, através da
própria experiência em montagens ou buscando o estudo de maneira autodidata. A falta de
preparo cênico do cantor de ópera e a escassez de ensaios para as montagens dos espetáculos
prejudicam o processo criativo do cantor-ator. Sem uma preparação que ofereça ferramentas para
a construção do personagem e com pouco tempo de preparação durante o processo de montagem,
o cantor-ator muitas vezes acaba acomodado na marcação cênica estabelecida pelo encenador e
pouco contribui para as propostas da direção cênica e musical na concepção do espetáculo.
pesquisas proporcionando maiores esclarecimentos sobre o tema bem. Nesse sentido, buscando
conhecer as implicações relacionadas a preparação do cantor-ator para atuar em óperas
apresentamos uma revisão de literatura. Assim, acreditamos que este trabalho contribua para que
o cantor-ator, em sua função interpretativa, possa ter ideias consistentes por meio de um suporte
que agregue experiências anteriores às suas oferecendo reflexões sobre o que é necessário a sua
formação.
A revisão de literatura mostra que algumas contribuições para a área ainda são necessárias.
Ainda que a articulação entre música e teatro seja anterior ao surgimento do gênero operístico, as
reflexões sobre o tema tem ainda o gosto de novidade já que a pesquisa no campo artístico é
recente. Acreditamos que falta de interesse pela pesquisa nas artes, dentre outras razões, também
ocorre porque a questão do talento ainda se projeta para profissões artísticas de forma
preponderante deixando os desavisados a mercê do próprio talento sem o compromisso com a
pesquisa. Muitos cantores buscam orientação para o desenvolvimento das habilidades vocais e
conhecimento de repertório e, no entanto, algumas vezes contam somente com a emoção e
inspiração para construir a interpretação cênica.
A literatura que aborda a interpretação cênica específica para os cantores de ópera é escassa.
Guse (2011) faz uma revisão dessa bibliografia e afirma que a maioria encontra-se em idioma
estrangeiro. Outros trabalhos, como os de Kermann (1990) e Peixoto (1985), se propõem a
discutir o papel da música e do drama na encenação da ópera, mas pouco refletem sobre o papel
do cantor-ator no processo de encenação. Por meio de uma revisão bibliográfica sobre o assunto,
a presente pesquisa pretende contribuir com os profissionais e cantores em formação que estão
interessados em participar em montagens de ópera, oferecendo o estado da arte que a pesquisa
relacionada ao cantor-ator de ópera se encontra até o momento. Nesse sentido, pretendemos
contribuir com a ruptura da ideia de que apenas o talento basta, bem como oferecer subsídios
para pesquisas futuras.
Esse trabalho reflete sobre o que é necessário para o cantor-ator, considerando que o seu
processo criativo depende de conhecimento técnico tanto musical e vocal quanto cênico.
Também questiona qual o lugar do cantor-ator no processo de montagem de uma ópera e de que
maneira o preparo cênico do cantor pode contribuir para que este colabore como co-criador na
encenação do espetáculo.
A presente pesquisa está estruturada em três capítulos. O capítulo inicial trata do gênero
operístico e nele é feita uma discussão acerca do conceito de ópera e dos outros termos
6
relacionados, tais como teatro, drama e encenação. No segundo capítulo, abordamos algumas das
transformações sofridas pela ópera ao longo de sua trajetória no que diz respeito à relação entre
drama e música e às diferentes demandas interpretativas para o cantor-ator em cada período. O
terceiro e o último capítulo aponta e discute algumas especificidades da atividade do cantor-ator
e aborda as diferentes opiniões acerca do potencial dramático do cantor de ópera. Por fim, o
trabalho traz uma conclusão onde é traçada uma síntese do que é abordado na pesquisa além de
apontar possibilidades de desdobramentos futuros para a pesquisa na área.
7
CAPÍTULO 1
O GÊNERO OPERÍSTICO
Dessa forma iniciaremos pelo conceito de ópera, abordando as diferentes opiniões acerca da
discussão sobre a ópera enquanto gênero musical e teatral e os elementos essenciais que a
compõem. A partir daí, se faz necessário esclarecer alguns termos que encontramos na busca por
um conceito de ópera, discutindo o que é teatro, os diferentes usos do termo drama e como o
conceito de dramaturgia vem sendo expandido e, finalmente, o termo encenação e o papel do
encenador e do ator na autoria de um espetáculo.
O termo ópera possui vários significados. No italiano, o termo pode ser traduzido como “obra,
ação, atividade, feito” (BENEDETTI, 2004, p. 670). No que se refere a música, opera é o plural
de opus, “termo utilizado ao lado de um número para identificar um grupo de obras na produção
de um compositor” (SADIE, 1994, p. 676). Em suas origens, a ópera recebeu o título de dramme
per musica e ao longo do desenvolvimento do gênero, ainda encontramos termos que designam
seus subgêneros, tais como opera buffa, opera seria, melodrama, operetta, singspiel e outros.
No prefácio de Opera, a concise history, Orrey (1987) coloca a dificuldade de se chegar a uma
definição boa e sucinta de ópera. Afirma ainda, preferir o termo “teatro lírico” já que o próprio
termo ópera não é satisfatório. Segundo Peixoto (1985), definir o que é ópera é uma tarefa
impossível devido às transformações sofridas desde o seu nascimento. Apesar de alguns
elementos fundamentais permanecerem presentes, alguns deles estão hoje radicalmente
transformados ou contestados. Tais transformações ocorrem uma vez que a história da música e
do teatro estão vinculadas a um processo histórico mais amplo. Apesar disso, é consenso entre os
autores o fato de que drama e música são elementos fundamentais da ópera. No Dicionário
Grove de Música, encontramos a seguinte definição:
8
Ópera é o termo genérico utilizado para denominar obras dramático-musicais, nas quais
os atores cantam alguma porção ou todas as suas partes. É a união de música, drama e
espetáculo, combinados em graus e maneiras diversas em diferentes países e períodos
históricos, embora tendo a música, normalmente, o papel dominante. [...] A ópera é
talvez a mais elaborada das formas artísticas, e recorre às práticas e habilidades
reunidas do poeta, compositor, artista plástico, [regente], e (por vezes) coreógrafo, para
criar uma ‘obra de arte completa’ (Gesamtkunstwerk, usando o termo Wagneriano)
(SADIE, 1980, p. 544-545).
Orrey considera a ópera como um ramo do teatro e não uma forma isolada. No entanto, para
outros autores a ópera é um espetáculo cênico que, ao utilizar teatro e música, se diferencia de
cada um isoladamente. DiGaetani (1986) e Blundi (2005) consideram a ópera uma obra de arte
total o que permite um alcance artístico praticamente ilimitado.
A ópera é uma obra de arte total. De forma diferente da música de concerto e do teatro,
ela combina várias artes numa só. Dentre as expressões artísticas, somente a ópera
conjuga as melhores possibilidades musicais de uma orquestra e de vozes possantes
com a excitação visual, dramática, do teatro. Além disso, seu alcance artístico é
praticamente ilimitado, uma vez que a ópera promove a orquestração de todas as artes:
balé, pintura e escultura (cenários), teatro, poesia e, naturalmente, canto e música. O
gênero operístico dimensiona palavras e música em todas as situações que ele engendra.
(BLUNDI, 2005, p.20).
Embora a relação entre música e drama em ópera não tenha sido equilibrada durante todo o
percurso de desenvolvimento do gênero, todos os conceitos apresentados acima levam em
consideração a presença do drama na ópera. É o caráter dramático-musical da ópera que a
diferencia da música de concerto. A palavra drama, no entanto, é utilizada com diferentes
significados: No senso comum, as pessoas utilizam a palavra drama para se referir a situações
onde alguém exagera a gravidade de um fato; Na literatura, o drama é um dos três gêneros
9
literários considerados a partir do século XVIII, juntamente com o gênero lírico e o épico
(HOUAISS). Para este trabalho, interessa a utilização da palavra drama no âmbito relacionado ao
teatro. De acordo com o Dicionário Houaiss:
Drama s.m1 TEAT forma narrativa em que se figura ou imita a ação direta dos
indivíduos 1.1 TEAT texto em verso ou prosa, esp. escrito para ser encenado, ou a
encenação desse texto [...] 1.4 TEAT designação genérica da obra literária escrita para
ser encenada 1.5 TEAT atividade de representar, arte dramática. (HOUAISS, 2001, p.
1083)
Será possível definir teatro? Será certo e verdadeiro tentar precisar seu significado se,
desde a origem do homem, existe enquanto processo, em permanente transformação,
obedecendo a sempre novas exigências e necessidades do homem [...]? Enfim, existe
um teatro ou, em função da vida econômico-política, teatro hoje é uma coisa, amanhã
outra, ontem foi diferente? (PEIXOTO, 2005, p. 10)
Assim como a partitura contém o material fundamental, mas não a ópera em si, a leitura de um
texto dramatúrgico não constitui o fenômeno do teatro. Ambos, teatro e ópera, existem em
função do tempo. “Se a literatura dramática fica documentada em livro e os cenários e figurinos
subsistem em fotografias e desenhos, o espetáculo é uma arte efêmera, que se realiza
integralmente na sua duração” (MAGALDI, 1998, p. 13). Nesse processo de realização das artes
cênicas, a figura do encenador ganha importância. Se o dramaturgo é o autor do texto, o
encenador é o autor do espetáculo (MAGALDI, 1998). A ele cabe a visão unificadora,
responsável por construir a harmonia artística do espetáculo.
Esta figura responsável pela encenação existiu desde a Antiguidade sob diferentes nomes e com
alguma variação nas suas funções. No Teatro Grego, o próprio poeta4 preparava os atores e o
coro para representarem suas obras. Em alguns momentos, a principal função dessa figura era a
de estabelecer a movimentação dos atores e, por vezes era realizada por um destes atores. O
termo encenador adquiriu notoriedade a partir do final do século XIX, quando este começou a
assumir a autoria do espetáculo (MAGALDI, 1998). É comum encontrar o termo diretor como
sinônimo de encenador e na ópera, o termo regisseur é bastante recorrente.
Em certas montagens, o ator é tido como refém da arte do dramaturgo ou do encenador. Isso
ocorre principalmente naquelas montagens onde o tempo de ensaio é escasso. No meio teatral,
percebe-se uma tendência no sentido oposto, valorizando o processo criativo do ator. Esta
tendência caminha junto da ampliação do conceito de dramaturgia citado anteriormente neste
capítulo. Sobre a questão do ator criador, Magaldi (1998) comenta:
Chamar-se-ia criação à atividade do ator? Ele parte, com efeito, de um texto pronto, e
sua tarefa é a de dar o melhor desempenho à matéria do dramaturgo. [...] Para facilidade
de raciocínio, seria lícito admitir que a arte do ator é uma criação sui generis, porque
feita com base em outra criação. Mas se criação subentende criador, e criador é aquele
que faz uma criatura, o ator pertence a essa categoria, porque a criatura à qual ele dá
vida, no palco, tem individualidade própria, e nunca será idêntica à criatura animada por
outro ator, embora com o mesmo texto (MAGALDI, 1998, p. 25).
2
No teatro do oprimido, Boal transforma alguns elementos básicos do teatro tradicional, como a ideia de ator e
plateia por meio, por exemplo, do teatro-fórum, onde o público é estimulado a assumir o lugar do protagonista.
3
Os happenings são uma forma de expressão das artes visuais e cênicas que tem o aspecto de imprevisibilidade e da
participação do público espectador.
4
O termo poeta, nesse caso, é utilizado para se referir aos gregos que exerciam a função de poeta, dramaturgo,
músico e encenador de suas peças.
11
No meio teatral a ideia deque o ator é também criador e contribui para a autoria da obra do
dramaturgo e do encenador é mais amplamente aceita. Na ópera, porém, o material primário,
partitura e libreto, é mais rígido e pensar o cantor-ator como criador é ainda uma questão
bastante polêmica. Por isso, as afirmações de Magaldi (1998) são pertinentes para a discussão
sobre o trabalho criativo do cantor-ator na ópera.
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CAPÍTULO 2
Embora as primeiras peças do gênero a que hoje denominamos ópera datam apenas do final do
século XVI, a utilização da música com fins dramáticos existe desde o surgimento do teatro na
Grécia Antiga (GROUT, 2007). Devido a esta fusão entre elementos musicais e texto dramático,
a relação entre a música e o drama na ópera tem levantado questões desde o nascimento do
gênero e o compositor tem lidado com isso de diversas maneiras em diferentes momentos
históricos.
A criação da ópera5 é atribuída à Camerata Florentina6, criada por volta do ano de 1570.Como
outras academias que floresceram na Itália do século XVI ao XVIII, a Camerata Florentina
reunia um grupo de artistas intelectuais que se juntavam para falar de arte, ciência e executar a
nova música7. A Camerata se reunia em torno do conde Giovanni Bardi e dela participaram
Vicenzo Galilei, Jacopo Peri, Giulio Caccini, Emilio de Cavalieri e Ottavio Rinuccini
(COELHO, 2000; GROUT, 2007; DIGAETANI, 1988).
5
As primeiras experiências do gênero operístico receberam o título de dramma per musica. Candé escolhe a palavra
melodrama para designar estas obras dramáticas cantadas.
6
Também pode-se encontrar o nome Camerata Fiorentina, do italiano. Nesta pesquisa, será utilizado o termo
Florentina, em português, como encontrado em Grout e Coelho.
7
Designar uma corrente estética de “nova música” é algo recorrente na história da música pois é um modo de
denominar as mudanças em relação ao que se fazia tradicionalmente. No período histórico aqui abordado, fins do
séc. XVI e início do séc. XVII, a nova música é aquela que coloca a melodia em primeiro plano valorizando a
poesia, diferente do estilo anterior que privilegiava um contraponto cerrado em que o sentido da palavra se perdia
em meio a tantas melodias tratadas numa trama contrapontística.
13
Hoje, sabe-se que o conhecimento que estes intelectuais tinham acerca da cultura grega era
limitado. Apesar disso, os membros da Camerata formularam alguns princípios para a prática
musical com base no que imaginavam ter sido o papel da música no teatro grego (COELHO,
2000; NIETZSCHE, 2005).
O que hoje chamamos de ópera, a caricatura do drama musical antigo, surgiu através da
imitação simiesca direta da Antiguidade. [...] Aqueles florentinos distintos e formados
pela erudição, que no começo do século XVII provocaram o surgimento da ópera,
tinham a intenção claramente expressa de reproduzir os efeitos que a música tivera na
Antiguidade segundo tantos eloquentes testemunhos. Notável! Já o primeiro
pensamento na ópera era uma busca de efeito (NIETZSCHE, XXXX, p. 17).
Conhecemos o trabalho dos dramaturgos gregos enquanto poetas de texto, libretistas. No entanto,
na tragédia grega, o poeta exercia as funções de poeta, músico, condutor do coro, diretor e ator.
Além disso, na música grega “a natural ligação entre linguagem das palavras e linguagem dos
sons não tinha ainda sido rompida: e isto até o grau em que o poeta era necessariamente também
o compositor de sua canção” (NIETZCHE, 2005, p. 25).
Eu tinha querido imitar a fala em minha música [...] Portanto, abandonando todos os
estilos de escrita vocal até então conhecidos, procurei criar o tipo de melodia imitativa
da fala exigida por este poema. E considerando que o tipo de emissão vocal usada pelos
antigos podia ser acelerada, de forma a tornar-se um meio termo entre o ritmo lento e
deliberado do canto e o andamento rápido e flexível da fala, [...] usei o baixo contínuo
fazendo com que ele se movesse ora mais depressa, ora mais devagar, de acordo com as
emoções que tivessem de expressar (PERI apud COELHO, 2000, p. 44).
8
Segundo o dicionário Grove, monodia é “canção italiana para voz solista acompanhada, especialmente secular, de
c.1600-40. O termo vale igualmente para uma canção isolada ou para todo o repertório. Abrange canções para voz
solo e contínuo” (SADIE, 1994 p. 616).
14
Poucos registros nos restam dos primeiros dramma per musica. Da maioria restam apenas
partituras de alguns trechos. Além disso, não é comum se executar tais obras, mesmo as que as
partituras chegaram aos dias atuais. As poucas execuções são feitas com a finalidade de resgate
histórico.
Apesar da Dafne ser considerada a primeira ópera, Orfeo9 (1607) de Monteverdi passou a ser a
primeira ópera de referência encenada ainda hoje. Monteverdi é considerado o pai da ópera, o
primeiro grande compositor do gênero (RIDING, 2010. PEIXOTO, 1985. CANDÉ, 2001). No
Orfeo, Monteverdi traz enriquecimentos consideráveis com relação às obras dos compositores
ligados à Camerata Florentina: desenvolveu o recitativo, a utilização do coro e as intervenções
instrumentais. Em Monteverdi “o recitativo é mais elaborado, a orquestra é maior, a música é
consciente do significado do drama” (PEIXOTO, 1985, p. 64).
ópera nos teatros de Veneza, onde não se aplicavam os decretos papais que proibiam as mulheres
de subir ao palco (RIDING, 2010).
O primeiro teatro de ópera foi inaugurado em 1637 em Veneza. A partir daí outras casas de
espetáculo foram construídas e com isso, a ópera deixou de ser uma diversão aristocrática e
chegou ao palco e ao povo. No entanto, ainda sem dependente do mecenato. A construção de
casas de espetáculo exigiu dos compositores o compromisso de agradar esse novo público e os
espetáculos de ópera, assim como os cantores, se tornaram cada vez mais populares (CANDÉ,
2001; DIGAETANI, 1986; PEIXOTO, 1985).
Na segunda metade do século XVII, Veneza continua a ser o principal centro de ópera italiano e
seus teatros de ópera eram famosos em toda a Europa. Ainda no final deste século começa a se
desenvolver, em Nápoles, um novo estilo mais preocupado com a elegância da música do que
com a verdade dramática (GROUT, 2007). A partir das mudanças ocorridas na ópera na
transição do século XVII para o século XVIII, se desenvolveu um novo estilo de drama musical,
a opera séria, praticado em toda a Europa na primeira metade do século XVIII, à exceção da
França (COELHO, 2000).
Neste contexto, a forma operística sofreu um processo de enrijecimento. O arioso proposto pela
Camerata Florentina se dissocia em recitativo e ária. A independência que a ária adquire no
século XVIII e a necessidade de se demonstrar uma vasta gama de sentimentos nos personagens
da ópera barroca fez com que se cristalizassem diversos modelos de árias, cada uma para
demonstrar um determinado tipo de sentimento ao mesmo tempo em que demonstrava a
habilidade do intérprete. A ária da capo viria a ser usada como modelo para diversos
compositores. Essas árias tinham forma ABA e esperava-se que na repetição de A os cantores
dessem sua contribuição pessoal introduzindo ornamentos vocais. Do mesmo modo, o recitativo
se desenvolveu em dois tipos distintos. O recitativo secco, acompanhado apenas pelo cravo e
baixo contínuo, era usado em diálogos e monólogos longos. Para as situações dramáticas
especialmente tensas, o recitativo obligato contava com a participação da orquestra pontuando as
frases do cantor com interrupções instrumentais (GROUT, 2007; COELHO, 2000).
A força que a ária adquiriu com a opera seria, teve como consequência um fenômeno típico do
século XVIII: o culto do cantor. A ária foi utilizada para exibir o virtuosismo vocal dos
intérpretes (COELHO, 2000).
16
Assistimos assim ao apogeu do bel canto11, em que a ária é o veículo privilegiado para a
exibição do talento dos cantores, cuja presença dominava o palco. O reverso da moeda é
a tirania do intérprete que, sabedor do prestígio de que desfrutava junto ao público,
ditava suas regras ao compositor, impondo-lhe o número de árias que queria cantar em
cada ópera, fazendo-o sobrecarregá-las com coloratura exagerada, e determinando até
mesmo a posição que essa ária deveria ocupar dentro do espetáculo (COELHO, 2000, p.
173).
O primeiro compositor de ópera do período clássico, responsável por romper com os excessos da
ópera seria, foi o alemão Christoph Willibald Gluck. As primeiras óperas de Gluck pertenciam à
vertente da opera seria. Já a partir da década de 1750, o compositor representa um movimento
de reforma da ópera, que defendia a primazia da ação dramática e dessa maneira, o fim de danças
irrelevantes, da música de diversão e das árias da capo floreadas ao gosto dos castrati das prima-
donas. O drama passa a ser o principal objetivo (RIDING, 2010). O coro também é integrado o à
ação dramática de forma mais consciente, as aberturas apresentam o argumento do drama e os
recitativos contam com maior participação da orquestra e são construídos em direção à ária. A
forma da ária é simplificada, sem floreios e abuso das coloraturas(CANDÉ, 2001; PEIXOTO,
1985; RIDING, 2010).
No prefácio de Alceste (1767), Gluck publica uma espécie de manifesto a favor da função
dramática da música na ópera. Para Gluck, a música deveria apoiar a poesia, deveria reforçar a
O termo bel canto se refere à tradicional arte de “cantar bonito”. Acredita-se que o termo foi utilizado pela
11
primeira vez por NiccolaVaccai em suas Ariette da Camera, de 1840. Mas na ópera veneziana do século XVIII já
existiam elementos embrionários desse estilo que atinge seu apogeu na opera seria e, posteriormente, na primeira
metade do século XIX com Rossini, Bellini e Donizetti (COELHO, 2000)
17
expressão dos sentimentos e o interesse das situações, sem interromper a ação ou a perturbar
com ornamentos inúteis (NIETZCHE,2005; CANDÉ, 2001).
Pensei restringir a música à sua verdadeira função, servir à poesia na expressão e nas
situações dramáticas, sem interromper a ação ou arrefecê-la com ornamentos inúteis,
surpérfluos [...] Imaginei que a sinfonia devia prevenir os espectadores sobre a ação que
vai ser apresentada e formar, por assim dizer, seu argumento [...] Pensei, além disso,
que meus maiores esforços deveriam reduzir-se a buscar uma bela simplicidade e evitei
exibir dificuldades em detrimento da clareza (GLUCK apud CANDÉ, 2001, p. 589).
A formação inicial de Gluck foi produto da escola italiana da Opera Seria, que “desenvolveu e
abusou da ária fantasticamente” (KERMANN, 1990). O compositor simplificou a forma da ária,
possibilitando uma nova intensidade de expressão emocional. A respeito da primeira ária de
Orfeo, Chiamo il mio ben cosi, Kermann comenta:
Esta arte do controle era o que tinha sido aprendido; a arte da ária, depois do recitativo,
o segundo dos dois elementos fundamentais da dramaturgia operística. [...] Não
obstante, a ária, ou algum substituto lírico da ária, tornara-se a principal força do drama
musical, e ninguém jamais compreendeu sua função melhor do que Gluck.
(KERMANN, 1990, p. 51)
A mudança na maneira de lidar com a relação entre música e drama por parte do compositor
passou a exigir uma abordagem do cantor-ator diferente daqueles do período barroco. “O texto,
especialmente a compreensão das palavras, formou o âmago funcional dessas óperas que pediam
um estilo de desempenho contido, elegante e sóbrio, muito diferente do estilo, muitas vezes
pomposo, de algumas óperas desse período” (DIGAETANI, 1986, p. 35). O castrato escolhido
para interpretar Orfeo na estréia da ópera, Gaetano Guadagni, era conhecido por evitar excessos,
destoando dos demais castrati. Além disso, havia estudado interpretação teatral com o
shakespeariano David Garrick (RIDING, 2001).
A ópera do período clássico sofreu transformações nas mãos de Wolfgang Amadeus Mozart. O
compositor austríaco escreveu ópera em três diferentes gêneros: singspiel12, opera seria e opera
buffa13. Suas três óperas escritas em parceria com Lorenzo da Ponte são obras-primas cômicas e
com elas Mozart levou o modelo da ópera cômica italiana do século XVIII ao seu mais alto grau
de realização (DIGAETANI, 1986).A dramaturgia de Mozart vai além do libreto, nas suas
12
Modalidade nativa alemã, o singspiel utiliza texto falado intercalado com números musicais. A ópera Die
Zauberflöte de Mozart é um exemplo do gênero.
13
No período barroco a opera buffa se desenvolveu paralelamente à opera seria. Com duração mais curta, a opera
buffa era muitas vezes apresentada como intermezzo entre nos intervalos das grandes óperas.
18
óperas a música é utilizada para caracterizar seus personagens com personalidade mais
consistente (KERMAN, 1990).
Mozart também inovou na maneira de conduzir a ação dramática. O compositor “desejava que o
enredo da ópera avançasse não só durante os recitativos mas também durante os números
musicais” (DIGAETANI, 1986, p. 37). Seus finales são não somente ensembles de grande
complexidade e beleza musical, mas também são momentos onde a ação dramática tem papel
fundamental no desenvolvimento do enredo da ópera.
Os papéis escritos por Mozart geralmente eram destinados a uma determinada voz. Por isso
alguns exigem um tipo especial de voz e habilidades vocais. Exemplos disso são: Constanze em
Die Entführungaus dem Serail, Fiordiligi em Cosi fan tutte e a Rainha da noite em Die
Zauberflöte (DIGAETANI, 1986). Para os castrati, Mozart escreveu poucos papéis e deu início à
prática de escrever papéis masculinos para voz feminina14. Alguns cantores de ópera da época de
Mozart eram também atores, um exemplo disso é Emmanuel Schikaneder, criador do papel de
Papageno em Die Zauberflöte. Também Theresia Teyber, que interpretou Blonde em Die
Entführungaus dem Serail era uma grande estrela do teatro em língua germânica (GUSE, 2011).
Na Itália do início do século XIX, o estilo do bel canto foi aperfeiçoado por Rossini, Bellini e
Donizetti. Estes compositores tinham de lidar com a grande quantidade de encomendas e
exigência de renovação constante do repertório, o que resultou na repetição de fórmulas
estabelecidas na composição dessas óperas (PEIXOTO, 1985). Rossini, por exemplo, compôs 35
óperas em duas décadas (RIDING, 2010).
14
Alguns papéis nas óperas de Mozart foram criados para castrati. Um exemplo é Idamante em Idomeneo. Apesar
disso, na estreia de Le nozzediFigaro, foi uma cantora que interpretou o pajem Cherubino. Outros compositores
escreveram, posteriormente, papéis masculinos para voz feminina, principalmente para mezzosoprano. Alguns
exemplos são: Romeo em Il Capuletti e Il Montechi, Siebel em Faust e Octavian em Der Rosenkavalier,
19
Além da grande quantidade de óperas, este estilo primava pela beleza da melodia e virtuosismo
vocal como principal meio de expressão. Isto permitia que algumas melodias de árias fossem
repetidas em óperas diferentes, sem uma preocupação com a função dramática. É o caso da ária
Cessa de più resistere, no trecho Ah Il più lieto, da ópera Il Barbiere di Siviglia de Rossini que o
compositor utiliza posteriormente na ópera Cenerentola na ária Non piumesta. Outro exemplo é
a Romanza de Giulietta Oh quante volte, onde Bellini faz uso da melodia de Dopo l’oscuro
nembo, composta para sua primeira ópera Adelson e Salvini.
No final do século XIX e início do século XX, o movimento literário francês conhecido por
naturalismo influenciou alguns compositores de ópera. Na Itália, o naturalismo deu origem ao
verismo. As duas óperas mais significativas do movimento verista são Cavalleria Rusticana de
Pietro Mascagni e Il Pagliacci de Ruggero Leoncavallo. Segundo Peixoto (1985), a
CavalleriaRusticana “é o manifesto de uma nova proposta dramático-musical antiwagneriana,
partitura que recusa a complexidade expressiva e retorna à valorização vocal típica dos modelos
italianos tradicionais” (PEIXOTO, 1985, p. 86).
No que diz respeito aos cantores, a ópera do século XIX começa a exigir vozes mais potentes e a
formação dos cantores ganha maior importância. Segundo DiGaetani (1986), “A arte do bel
canto emprega um método especial de cantar [...]. De fato, a maioria do treinamento vocal usado
em nosso tempo é ainda baseado nessa técnica.” (DIGAETANI, 1986, p. 39)Os papéis para
castrati desapareceram do repertório operístico e os tenores passam a ser os protagonistas. E,
apesar da primazia da voz, os grandes cantores que desenvolviam o repertório do bel canto não
baseavam seu prestígio apenas no desempenho vocal. Candé (2001) aponta Giuditta Pasta15
como a primeira grande cantora-atriz. E outras cantoras como Giulia Grisi, Jenny Lind, Maria
Malibran e Marietta Alboni também eram reconhecidas não somente pela técnica vocal, mas
também pela presença cênica (CANDÉ, 2001).
A ópera de Wagner tem duração de três a quatro horas com cenas longas. Por isso, os papéis
wagnerianos são de grande demanda vocal e física (RIDING, 2010). Na busca de alcançar o seu
ideal de drama musical, Wagner escolhia e preparava os cantores para suas óperas. Devido à
dificuldade vocal dos papéis wagnerianos e especificidade com relação às características vocais,
Giuditta Pasta (1798 - 1865) estreou o papel título na Normade Bellini, além da Adina em L’elisir d’amore e o
15
os cantores que executaram suas óperas normalmente se especializavam nesse repertório. Esta
grande demanda vocal e preferência por vozes mais potentes, não é exclusiva da ópera de
Wagner. As óperas veristas também dão lugar às grandes vozes ao mesmo tempo em que exigem
desses cantores um grande potencial dramático e uma interpretação realista.
No início do século, Richard Strauss estreou Elektra e Salomé, que chega aos limites do
atonalismo e posteriormente compõe Der Rosenkavalier em estilo neoclássico. Na França,
Debussy, influenciado pelo impressionismo, compôs Pelléas et Mélisande: “quase insuperável
exemplo de integração música texto, emoções e sentimentos íntimos revelados através de uma
simplicidade extremamente rigorosa” (PEIXOTO, 1985, p. 89).
Alguns compositores do século XX rejeitaram a distinção entre a música dita erudita e a popular.
Kurt Weill escrevia óperas marcadas pelas novas tendências musicais europeias e pela música de
dança americana. Destaca-se a parceria de Weill com o dramaturgo, poeta e encenador Bertold
Brecht que inovou o fazer teatral. Já nos Estados Unidos, George Gershwin compõe Porgy and
Bess, uma ópera que combina música gospel de origem afro-americana, blues e jazz (RIDING).
passado há montagens que buscam encontrar o ideal pretendido na época e outras que procuram
fazer uma releitura aliando elementos da contemporaneidade com a partitura deixada pelos
compositores.
Nota-se uma tendência atual das grandes casas de ópera de montarem óperas barrocas com
libreto e música original, porém ressignificando esses elementos através de uma encenação
contemporânea. Exemplo disso é a montagem do Orfeo de Monteverdi, produzida pelo Royal
Opera House em colaboração com Roundhouse e com direção de Michael Boyd. Exibida online
em janeiro de 2015, esta montagem foi realizada em palco circular com a plateia disposta em
arquibancadas. Sem usar cenografia e figurinos de época, percebe-se nas coreografias, uso da
iluminação, figurinos e encenação de modo geral, elementos que caracterizam um espetáculo
contemporâneo. Além disso, atualmente, contratenores e mezzosopranos tem se dedicado à
pesquisa e gravação do repertório escrito para voz de castrato. Nos palcos também é comum que
mezzosopranos interpretem esses papéis travestidos. No álbum Sacrificium, lançado em 2009,a
mezzosoprano Cecilia Bartoli interpreta árias barrocas escrita para castrati.
Não são somente as óperas barrocas que tem ganhado nova roupagem. Nessas montagens, os
diretores ganham destaque pela inovação na encenação. Peter Sellars, por exemplo, encenou em
1990 a ópera Così fan tutte de Mozart em ambientação contemporânea e Robert Wilson encenou
Orphée et Eurydice, entre outras óperas, com produção minimalista e gestual associado ao
estilizado kabuki16 japonês (RIDING, 2010). Outro nome da encenação contemporânea de ópera
é Patrice Chéreau. A tetralogia do anel17 de Wagner, dirigida por Chéreau em 1976 em
Bayreruth, provocou ira e escândalo por parte dos conservadores wagnerianos (PEIXOTO,
1985).
16
Kabuki é um gênero do teatro japonês que envolve dança e música com gestos estilizados.
17
A tetralogia do anel de Wagner é composto pelas óperas das Rheingold, Die Walküre, Siegfried e Götterdamerung.
23
CAPÍTULO 3
O CANTOR-ATOR
Além das atribuições técnicas do trabalho de músico cantor e de ator, o cantor-ator de ópera
precisa lidar com desafios específicos da ópera. Por este motivo, a formação de cursos voltados
para a interpretação teatral não é suficiente quando somada à técnica vocal e conhecimento
musical do cantor-ator. Guse (2011) comenta algumas dessas especificidades da arte do cantor-
ator de ópera. A primeira é com relação à fala das personagens. Diferente do teatro, na ópera, o
ritmo, a altura e intensidade da fala são estabelecidos previamente pelo compositor. Apesar de
parecer limitar a criatividade do cantor-ator, esta música das falas pode dar pistas para os
sentimentos, pensamentos e ações da personagem. Segundo Guse (2011):
Outro desafio do cantor-ator está na relação entre o tempo da partitura e o tempo da ação. Na
ópera, a duração, o ritmo e o andamento das cenas estão determinados na partitura. A partir
dessas informações estabelecidas, o diretor e os cantores-atores se deparam com algumas
complicações. Uma delas é encontrar o timing ideal das cenas, através da compreensão de qual o
momento exato para reagir às falas e às ações das outras personagens. Outra complicação se dá
em definir o tempo-ritmo da personagem e mantê-lo enquanto a música expressa um tempo-
ritmo contrastante. Há ainda a problemática da duração das cenas com o tempo que normalmente
é dilatado na ópera. A respeito da duração das cenas na encenação da tetralogia do Anel de
Wagner, Chéreau (2010) comenta: “A experiência d’O anel me ensinou que, numa cena, corre-se
o risco de movimentar os cantores rápido demais, de transformar, de modificar muito rápido a
situação e a interação física entre eles” (BARENBOIM; CHÉREAU, 2010, p. 57). Ao cantor-
ator, cabe o desafio de justificar tal dilatação temporal sem retardar a ação e sem esgotar todo o
seu material expressivo nos primeiros minutos da cena.
coordenar todos estes aspectos, muitas vezes a encenação é colocada em segundo plano para
garantir uma execução musical de qualidade.
Ainda que seja consenso de que o cantor de ópera deve se preparar como ator, há uma dúvida
quanto aos limites do potencial cênico do cantor-ator. Velardi (2011) relata uma situação que
exemplifica a opinião no meio profissional nacional acerca do trabalho corporal do cantor de
ópera. O episódio ocorreu quando os cantores-atores do NUO18, nos ensaios da ópera El hijo
fingido, dançavam uma composição coreográfica baseada no flamenco contemporâneo:
Assistindo a um dos ensaios gerais uma das responsáveis pela administração do teatro
onde a companhia se apresentou, e que tem vasta experiência com coros estáveis no
país, imediatamente apontou: não imagino os integrantes ‘daqueles’ coros fazendo isso.
Mais ainda: dispondo-se a fazer. Naquele momento ela relembrou um episódio no qual
os integrantes de um coro estável importante no país negaram-se a atender às
solicitações do encenador durante uma montagem de ópera: “somos cantores” -
esbravejaram em uníssono - “não dançarinos”! O encenador cedeu. (VELARDI, 2011,
p. 2)
No âmbito das artes cênicas, a reflexão sobre o corpo do ator é bastante recorrente. A dança
contemporânea se aproximou do teatro e novas expressões artísticas, como a dança-teatro19, por
exemplo, vêm propondo novas possibilidades expressivas por meio do uso do corpo nos
espetáculos teatrais. No entanto, na ópera o corpo ainda parece obedecer à ideia de corpo
instrumental: o corpo que produz a voz (VELARDI, 2011).
No Bel Canto, como o nome mesmo já deixa claro, o virtuosismo do canto é valorizado.
Assim, o encenador não deverá propor uma grande movimentação onde a música
apresentar dificuldades técnicas de maior fôlego. Porém, isso não implica que o cantor
deva deixar de interpretar sua personagem, permitir-se uma desatenção, ou crer que a
preocupação com as dificuldades técnicas possa relegar a um plano secundário sua
presença cênica. (GUSE, p. 8)
18
O Núcleo Universitário de Ópera (NUO) é uma companhia de ópera estável, presente na cena paulistana, criada
pelo maestro e compositor Paulo Maron. O núcleo visa à formação de jovens músicos para a ópera (VELARDI,
2011).
19
A união da dança com alguns elementos do teatro, criando uma nova forma de expressão artística. O nome dança-
teatro é muito associado à Pina Bausch.
25
Algumas montagens recentes têm contribuído para a ampliação dos limites quanto ao uso do
corpo do cantor-ator e é cada vez mais comum encontrar cantores que exploram o potencial
expressivo do corpo na ópera. Tendo visto quais são as atribuições e desafios do cantor-ator e a
importância desta figura na tentativa de revelar o potencial dramático da ópera, chegamos à
seguinte questão: Qual a participação do cantor-ator na autoria do espetáculo? Segundo Guse
(2011), o cantor-ator tem a dupla obrigação de executar a música revelando o drama e é nos
cantores que se encontra o cerne dessa união entre drama e música. E sobre a criação por parte
do intérprete, Mota (2009) comenta:
Se não há uma interpretação única e final de um papel, cada interpretação é única. Esta
constatação é inerente ao aspecto cênico da obra. Uma ópera encenada é única. Da mesma
forma, a personagem que o cantor-ator leva ao palco não é a mesma que outro cantor-ator
construiria, nem é a mesma que ele próprio vivencia e apresenta em momentos diferentes. Neste
sentido, um cantor-ator, consciente de suas atribuições como artista músico e ator, pode assumir
a colaboração na co-autoria da encenação de uma ópera.
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CONCLUSÃO
Na busca por uma definição de ópera, nos deparamos com diferentes conceitos. No entanto,
todos levam em consideração a presença do drama. Embora o potencial dramático tenha existido,
na ópera, em maior ou menor grau em diferentes períodos estéticos, todos os autores pesquisados
consideram a ópera um gênero dramático-musical. Neste campo híbrido, o cantor de ópera
precisa desenvolver também habilidades de ator e lidar com as especificidades do seu trabalho
criativo de cantor-ator.
aliado às produções operísticas, vem reforçando a necessidade de uma formação cênica por parte
do cantor de ópera.
Apesar desta aparente necessidade de formação cênica, ainda é comum encontrar opiniões a
favor da supremacia das habilidades vocais. Além disso, as condições comuns das produções de
espetáculos de ópera não favorecem o processo criativo cênico do cantor-ator. A escassez na
quantidade de ensaios, aliada à deficiência na formação cênica do cantor, faz com que o
encenador assuma toda a parte cênica da produção. Nesta situação, o cantor-ator acaba por
simplesmente seguir as orientações de movimentação do encenador e pouco contribui
criativamente.
Levando em consideração que a interpretação cênica para a ópera tem suas especificidades,
percebe-se a necessidade de se desenvolver pesquisas na área a fim de construir propostas para a
formação cênica do cantor-ator. A maioria dos cantores-atores buscam essa formação em cursos
de artes cênicas, porém, estes precisam adequar a técnica de interpretação teatral às suas
necessidades. As pesquisas na área podem apontar caminhos para que a formação cênica do
cantor acompanhe a sua formação musical e, desta maneira, permitem otimizar o trabalho
criativo do cantor-ator.
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REFERÊNCIAS
BARENBOIM, Daniel; CHÉREAU, Patrice. Diálogos sobre música e teatro: Tristão e Isolda.
Organizados por Gastón Fournier-Facio. Tradução de Sérgio Rocha Brito Marques. São Paulo:
Martins Fontes, 2010.
BLUNDI, Antonio. A ópera e seu imaginário. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2005.
CANDÉ, Roland de. História Universal da Música.Tradução de Eduardo Brandão.2ª ed, Vol. 1 e
2. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
COELHO, Lauro M. A ópera barroca italiana. São Paulo: Perspectiva, 2000. p. 17 – 38.
DIGAETANI, John L. Ópera como teatro: os revolucionários. In: Convite à ópera. Tradução de
Bruno Luiz Furlanetto. Rio de janeiro: Zahar, 1988. cap. 4, p. 73 – 94.
GROUT, Donald; PALISCA Claude. História da Música Ocidental. Tradução de Ana Luísa
Faria. 5. ed. Lisboa: Gradiva, 2007.
GUSE, Cristine Bello. Definição e construção de personagens em ópera. In: XVII CONGRESSO
DA ANPPOM. São Paulo. 2007.
______ . O cantor-ator: um estudo sobre a atuação cênica do cantor na ópera. São Paulo:
Editora Unesp, 2011.
KERMAN, Joseph. A ópera como drama. Tradução de Eduardo Francisco Alves. Rio de Janeiro:
Zahar, 1990.
PEIXOTO, Fernando. O que é teatro. Coleção Primeiros Passos. reimp. 14. ed. São Paulo:
Brasiliense, 2005.
RIDING, Alan. Guia ilustrado Zahar: ópera. Tradução de Clóvis marques. Rio de janeiro: Jorge
Zahar Ed., 2010.
VELARDI, Marília. O corpo na ópera: alguns apontamentos. Sala preta– revista do programa de
pós-graduação em música da USP, Volume 1, edição nº11, 2001, seção: Em Pauta, artigo 5.