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NOTA HISTÓRICA Asclepius e o “culto da serpente”

ASCLEPIUS E O “CULTO DA SERPENTE”

J. Martins e Silva*

Professor Catedrático, Instituto de Biopatologia Química, Faculdade de Medicina de


Lisboa

O culto de Asclepius nasceu na nados pelo mundo Helenístico, ao


Antiga Grécia, cerca de 1200 a.C. longo do Mediterrâneo.
Homero refere-se a Asclepius na Os templos eram instalados em
Ilíada, como filho (mortal) de Apolo, complexos (os Asclepions), que
(deus do Sol e da Verdade) e da bela constituíam um meio termo entre os
mortal Coronis. Asclepius teria o poder sanatórios e os hospitais, aonde se
de curar e, também, de ressuscitar os dirigiam os doentes (em particular os
mortos. Hades (rei dos Infernos), ao mais pobres e mais desfavorecidos)
ver que o seu império estava em risco suplicando pela cura dos seus males.
de se despovoar, teria convencido Ju- Os complexos mais importantes
piter a ver-se livre de Asclepius, teriam sido o de Epidaurus (o princi-
fulminando-o, o que viria a suceder. pal, construído cerca de 600 a.C.), o
Outra versão atribui directamente a de Cós e o de Pergamon. Os trata-
Zeus a morte de Asclepius, por não mentos estavam entregues a sacer-
querer que os mortais tivessem qualquer dotes, que os exerciam, principalmente
poder sobre a morte. nos primeiros tempos, num mito de
Aquela tradição heroico-mitológica misticismo e magia, estando os
personificada em Asclepius, aparente- doentes adormecidos. Posteriormente,
mente originária da Tessália, repre- os tratamentos evoluíram para pro-
sentava o ideal do médico grego. cessos mais comuns aos da fisioterapia,
Esteve na origem de um culto em que além de banhos e massagens
organizado em múltiplos templos, estavam incluídos sangrias e alimentos
sucessivamente construídos e dissemi- naturais, como o leite e o mel. No

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terreiro dos templos abundavam a Apolo e às suas filhas Hygieia (divin-


serpentes amareladas, não venenosas, dade que intervinha na prestação da
consideradas escravas sagradas de saúde e na prevenção das doenças, de
Asclepius, e que, de modo desconhe- quem deriva o termo “higiene”) e Pana-
cido, “colaboravam” no tratamento ceia (relacionada com o tratamento das
apressando a cura dos pacientes ao doenças), que o famoso juramento
“remover-lhes as partes doentes dos atribuído a Hipócrates definia os
seus corpos”, enquanto aqueles esta- deveres de cada médico. Nas devidas
vam mergulhados no sono. proporções e adaptações, aquele jura-
Este relacionamento assemelha-se mento continua a delimitar os procedi-
ao culto prestado no Antigo Egipto a mentos da ética médica.
Imhotep (cerca de 3500 a.C.), médico A representação tradicional de
e inventor das pirâmides. Imhotep, tal Asclepius associa-o a um bordão em
como Asclepius, era mortal mas, pelo que está enrolada uma serpente (Fig.
prestígio adquirido, veio a ser uma 1). É comum associar este conjunto à
divindade da Medicina, em cuja honra sabedoria médica. Entre as explicações
e culto também foram construídos apresentadas sobre o assunto tornou-
templos, abertos ao tratamento dos se popular a história de um homem que
doentes mais desesperados, também Zeus teria morto com a pancada de
praticado enquanto os pacientes um trovão na cabeça, e os ensina-
dormiam. mentos que Asclepius terá então
Os primeiros médicos gregos recebido de uma serpente. A história
consideravam-se descendentes de teria começado com a entrada furtiva
Asclepius e membros de uma família de uma serpente no local em que
comum, os “Asclepíades”. Também Asclepius observada o morto. Surpre-
Hipócrates (460-357 a.C.) se orgu- endido, Asclepius matou o réptil com
lhava de ser um Asclepíade, por via o bordão mas ainda mais intrigado ficou
directa de um filho (também médico) quando viu surgir uma segunda ser-
de Asclepius. pente que, ao colocar algumas ervas
O culto a Asclepius foi continuado na boca da primeira, morta, a fez re-
por Roma (com a adaptação do nome nascer. Asclepius ao proceder exacta-
para Esculápio), após a conquista dos mente da mesma forma com o morto,
territórios gregos. Centenas de templos restituiu-a à vida. Em sinal de respeito
deram continuidade aquele culto em Asclepius adoptou como seu símbolo a
todo o império romano e até depois serpente enrolada num bordão (Fig. 2).
da sua influência ter cessado, prolon- Além da serpente que simbolizava
gando-se em alguns centros até cerca a prudência e a eternidade, o conjunto
de 500 d.C. Por consequência, não era completado por um galo, como
surpreende que Asclepius tenha sido símbolo da vigilância.
considerado, durante muitos séculos, Por influência da Igreja Católica,
como origem e guardião do poder e todos os símbolos antigos da profissão
do conhecimento médicos. Galeno (c médica foram abolidos, entre o século
124-216 d.C.) praticou no Asclepion VI e a Renascença, sendo substituídos
de Pergamon, até atingir a fama como pelo clássico frasco de recolha das
médico. urinas.
É ainda em referência a Asclepius, A situação alterou-se progressi-

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Fig. 1 – Uma das representações mais divulgadas Fig. 2 – Símbolo da Medicina (com origem
de Asclepius.
atribuída a Asclepius).

vamente com o advento de protes- Asclepius pelo caduceu, imaginou um


tantismo, a partir do norte da Europa. esquema que associaria particular-
Os símbolos antigos foram recupe- mente a medicina à literatura, cada uma
rados e Asclepius retomou a sua das quais representada por uma
função de símbolo da Medicina (mas serpente, entrelaçadas entre si num
não como divindade). bordão de loureiro ou oliveira, que
Nos finais do século XIX alguns culminava em duas asas oponentes na
editores médicos de Londres, com extremidade superior (Fig. 3). Quase
destaque para John Churchill, que em simultâneo, um número relevante
exportavam grande parte das suas de editores norte-americanos passou
obras para os Estados Unidos, aparen- a utilizar o caduceu como símbolo da
temente por iniciativa própria, passa- medicina, substituindo-o ao de
ram a utilizar um caduceu como marca Asclepius.
associada ao título das obras médicas. Entretanto, o caduceu estivera, no
John Churchill, que não terá pre- seu tempo, também associado ao deus
tendido substituir o símbolo clássico de romano Mercúrio (ou Hermes dos

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gregos), que simbolizava o bruscamente o seu bastão no chão,


comércio e a paz. Poste- entre ambas. Restou às serpentes
riormente, nos prin- enrolarem-se no bastão num sinal de
cípios do século XX, amizade recíproca.
aquela representação No tempo do Império Romano, o
devidamente estilizada, foi papel pacificador de Hermes estava
seleccionada como emblema bem estabelecido, ao ponto de
do corpo militar médico norte- utilizarem um objecto parecido com um
americano. caduceu quando pretendiam estabe-
Na realidade, a troca de símbolo lecer conversações de paz,
tradicional representado por Asclepius interrompendo as batalhas.
pelo do Hermes ou Mercúrio acabou De qualquer modo, o caduceu
por ser uma má escolha, pelo que legado pelo Império Greco-Romano
representa de negativo. Hermes filho tem pouca semelhanças com a
mítico de Maia e Zeus, deuses do representação que lhe foi dada no
Fig. 3 – Insígnia dourada do caduceu Olímpo grego, apesar da sua século XX e, tudo o indica, não é um
adaptado (em 1818) pela US. Army benevolência para os mortais e de símbolo representativo da medicina.
Medical Corps. “conseguir” encaminhar as almas para
o Além, teria características pouco Referências
éticas e hábitos venais.
O caduceu teria sido uma oferta de - Bailey JE. Asclepios: ancient hero of medi-
cal caring. Ann Int Med 1996; 124:257-263.
Apolo a Hermes, por troca com uma
flauta em que este tocava uma música - Bramer JL. The caduceus again. N Engl J
Med 1958; 258:334-336.
que aprazia a Apolo. O caduceu não
- Hamilton E. The myth of Aesculapius. In:
era mais do que uma vara dourada que
“Medicine in Literature and Art”, Ann G
Apolo utilizava para reunir o gado mas Carmichael and Richard M Ratzan (eds),
que teria a extraordinária propriedade Köneman, Köhn, 1991.
de assegurar a abundância, a saúde e - Kelhi SA. Cult of Asclepius (letter). Lancet
afastar a morte. A par dos atributos já 1999; 354:1038.
referidos, Hermes era também o - Porter R. The Greatest Benefit to Mankind,
portador célere das mensagens de Fontana Press, London 1999

Zeus, o anunciador dos deuses e - Sebastian A. A Dictionary of the History of


Medicine. The Parthenon Publishing Group,
também o apaziguador de conflitos. Na
New York – London, 1999.
origem do caduceu, havia a história de
- Wilcox RA, Whitham EM. The symbol of
uma luta entre duas serpentes que
modern medicine: why one snake is more
Hermes havia terminado, enterrando than two. Ann Int Med 2003; 138:673-677.

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