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Erradicar o Analfabetismo Urbanístico*

Profa. Erminia Maricato1

A desigualdade urbanística é evidenciada pela segregação territorial. Estamos nos referindo


aqui à apropriação social diferenciada da cidade, seus edifícios com diversos usos, clubes,
equipamentos de lazer e cultura, ruas, calçadas, mobiliário urbano, etc. Ë incorreto embora
seja frequente separar aspectos sociais, econômicos jurídicos e culturais dos aspectos
urbanísticos e ambientais. A desigualdade social e econômica (renda, escolaridade,
desemprego, violência) tem maior reconhecimento, na sociedade brasileira do início do
século XXI, do que a desigualdade urbanística (condições de moradia, saneamento,
transporte, por exemplo). Mesmo a agressão ambiental apenas muito recentemente e de
modo ainda incipiente passa a ser relacionada com a pobreza urbana. Por ocasião da
reunião preparatória Rio +10 e também por ocasião do Fórum Social Mundial II (ambos
no início de 2002 e ambos em Porto Alegre) encontros sobre meio ambiente e saneamento
incorporaram o tema da pobreza urbana. Mas a consciência da inter-relação entre eles ainda
é muito restrita embora a falta de alternativas de moradia via mercado privado ou via
promoção pública seja a maior causa da agressão aos mananciais de água que se localizam
nos arredores de grandes e medias cidades. O mesmo acontece com mangues, várzeas,
encostas íngremes, beira de rios e córregos, etc. A dimensão do comprometimento
ambiental decorrente da pobreza urbana é gigantesca e ela é em grande parte invisível. Isso
se dá porque o país está acostumado a olhar para sua realidade por meio do filtro das idéias
externas, ou seja, um país que vive uma “história virtual” como nomeou Florestan
Fernandes referindo-se à dependência intelectual e ao mimetismo cultural.
Mas a falta de reconhecimento da dimensão espacial, territorial ou ecológica da
desigualdade vai muito além desse detalhe que é a relação entre pobreza e meio ambiente.
Apesar do país Ter em 2002 82% da população nas cidades e 30% apenas em 9 metrópoles
a falta de política metropolitana, urbana e habitacional não constitui motivo para
indignação de muitos. O fato das cidades de porte médio começarem a apresentar favelas
ou ambientes pobres e segregados é reconhecido como problema não decorrente da
existência desses “guetos” em si mas principalmente devido à luta que parte do Estado
brasileiro trava (quando o faz, quando não desiste) com a criminalidade que avança
celeremente sobre o território “liberando” áreas do contrato social que regula nossa
sociedade para implantar regras específicas de convivência. A cidade ilegal que começa a
superar em números a cidade legal, em várias capitais, é muito desconhecida. Melhor seria
dizer que ela é oculta.
Ficará bastante decepcionado quem buscar mapas e tabelas com informações fidedignas e
rigorosas sobre o uso do solo e habitação nos cadastros municipais, nos bancos de dados,
nas bibliotecas, nos cartórios de registro de imóveis, com raras exceções. Não temos dados
rigorosos sobre o ambiente urbano. Somos analfabetos urbanísticos.
Como interpretar a invisibilidade do universo urbano? Como interpretar a cegueira diante
de algo que é tão visível e tão concreto? Quais são as causas que fomentam tantas teorias
urbanas, propostas, planos e leis que não se aplicam? E a ausência de dados minimamente
confiáveis sobre o universo urbano inclusive no ensino superior? Como interpretar essa
ignorância da universidade, do Estado (em especial do judiciário) e da mídia?

*
Texto retirado do sítio do LABHAB (Laboratório de Habitação e Assentamentos Humanos)
www.usp.br/ fau/depprojeto/labhab/
1
Profa. Titular da USP, ex-secretária de Habitação e Desenvolvimento Urbano do Município de São Paulo
(governo Erundina) e ex- Secretaria Executiva do MCidades (01/2003 a 06/2005). Participou da criação do
MCidades e da Política Nacional de Desenvolvimento Urbano. Out.2005

1
Não há respostas simples a essas perguntas. Não se trata também de um processo
superficial de simples falta de informação mas sim algo que se relaciona à própria formação
da sociedade brasileira. A permanência teimosa da questão da terra (rural, durante cinco
séculos e urbana durante um século) sem resolução fornece um manancial abundante de
explicações. A demora e a forma como foi “resolvida” a questão da mão de obra escrava
fornece outro. Refletindo sobre essa história percebemos que a invisibilidade se aplica a
uma parte da sociedade, especialmente os negros. As principais mudanças ocorridas no país
nunca romperam com heranças arcaicas como a relação de poder baseada no mando que
decorre do patrimônio.
A evolução das favelas no Brasil pode ajudar a elucidar alguns aspectos da questão. Ela
acompanhou o processo de urbanização da sociedade, que se deu, praticamente, no século
XX. Ela é determinada pelo modo como se deu a industrialização e a reprodução dos
trabalhadores, a partir da emergência do trabalho livre. Na sociedade escravocrata, a
moradia do trabalhador era provida pelo patrão, bem como os demais itens de sua
subsistência. Os trabalhadores brancos livres, gozavam de uma condição ambígua, num
modo de produção marcado pelo trabalho compulsório e visto como coisa degradante. A
política do favor marcou o modo de vida desse trabalhador branco, que vivia à sombra dos
chamados coronéis, latifundiários.
A emergência do trabalho livre dá origem ao problema da habitação. O patrão está livre
dessa incumbência. A partir da abolição, cabe ao trabalhador providenciar e pagar por sua
moradia. Essa mudança não implicaria em generalização do assalariamento e formação do
mercado urbano de moradias, como ocorreu nos países capitalistas centrais, não sem
muitos conflitos.
Em países periféricos ou semi-periféricos e dependentes , como o Brasil, onde a
industrialização se deu com salários deprimidos e grande parte dos trabalhadores não se
integrou ao mercado de trabalho formal, a moradia também não é obtida regularmente via
mercado imobiliário. Frequentemente, mesmo o trabalhador empregado na indústria
fordista, não tem poder aquisitivo para comprar sua moradia no mercado legal privado.
São por demais conhecidos os expedientes de ocupação de terra e auto-construção da
moradia, aos quais apelou a maior parte da população, durante o processo de urbanização
da sociedade brasileira, com graves conseqüências sociais e ambientais como já foi
mencionado.
No começo do século, as favelas eram presenças mais constantes em cidades que tiveram
importância no período da escravidão. Com o progressivo processo de
industrialização/urbanização, as favelas se estendem por todas as grandes cidades
brasileiras e, nos anos 1980 a 2000, inclusive nas cidades de porte médio. As cidades se
modernizaram paralelamente à reprodução da exclusão. O mercado imobiliário evoluiu de
modo excludente. Além do capital, via baixos salários, o Estado também pouco se ocupou
da questão da habitação social, senão em alguns momentos de mobilização da classe
operária, mas sempre de modo pouco sustentável e abrangente. A mais importante
intervenção do Estado brasileiro com a política de habitação, que institucionalmente
combinou o BNH- Banco Nacional de Habitação e SFH – Sistema Nacional de Habitação,
no período 1964 a 1986, atendeu mais às camadas de renda média e ao capital imobiliário
(promotores, construtores, financiadores) do que à grande maioria da população.
A face mais cruel da construção desse espaço excludente, talvez esteja em sua dissimulação
ou ocultamento como já foi destacado. Não há na sociedade brasileira consciência sobre o
gigantismo dos territórios de exclusão, que podemos chamar aqui de não cidade ou
amontoado de pessoas, sem lei ou regras de convivência e de ocupação do espaço. Não há
dados fidedignos (nem do IBGE) sobre o número de brasileiros morando em favelas. E
essa desinformação não é casual .Até mesmo o urbanismo oficial e acadêmico participa da
dissimulação dessa realidade ao reforçar a cidade cenário ou cidade mercadoria, cheia dos

2
símbolos indutores do consumo e da alienação, que constituem embalagem do processo de
formação das rendas de localização.
O aprofundamento da exclusão social com o desemprego, nos anos 90, tem um reflexo na
consolidação e extensão dos territórios marcados pela ilegalidade urbanística. Eles
começam a se mostrar para uma sociedade que insiste em desconhecê-los. Esse
reconhecimento se dá através dos dramáticos índices de violência que podem ser medidos
por meio do número de mortes por homicídio, que de tão alta a taxa começa a pesar sobre
a vida média do homem brasileiro.

Erradicar o analfabetismo urbanístico


Muitas são as propostas que estão surgindo no contexto das gestões municipais
democráticas. As políticas que mais avançam no campo popular e democrático constituem
ou medidas amenizadoras (bolsa escola, renda mínima) da pobreza que recrudesceu nos
anos 80 e 90 ou então aquelas que avançam na construção da democracia (o bem sucedido
orçamento participativo) mas que dificilmente incorporam a questão do direito à cidade ou
da função social da propriedade.
Cabe saudar essas conquistas, evidentemente, mas cabe também destacar alguns aspectos
vistos de uma perspectiva mais abrangente.
As políticas compensatórias jamais serão bem sucedidas frente à multiplicação do
desemprego. Elas injetam com conta gotas o que a política econômica, de orientação néo
liberal, extrai com baldes. Os municípios que assumiram encargos relacionados a ampliar a
renda e o emprego são forçados a reconhecer quão modestos têm sido os resultados ainda
que importantes para a sobrevivência de muitos.
O orçamento participativo não vive esse cruel processo de “enxugar o gelo”. Ele é de fato
uma das formas mais eficazes de afastar o domínio das mafias, dos lobbies e do
clientelismo sobre os recursos públicos. Durante séculos os investimentos públicos
alimentaram interesses privados especialmente no que se refere à valorização fundiária e
imobiliária. Um bom exemplo que se repetiu em Salvador, Cuiabá, Campo Grande e
atualmente se repete em Goiânia está na reorientação do crescimento da cidade liderado
pelo novos edifícios destinados a abrigar a administração pública e vias arteriais amplas em
regiões pouco ocupadas. Nesses casos, o próprio governo investiu, prioritariamente, na
produção de novas condições e localizações para a especulação imobiliária. Portanto, a
mudança não é pequena quando o OP é exercido com democracia e eficácia.
A questão do uso do solo entretanto não é incorporada ao orçamento participativo apesar
de representar uma variável econômica fundamental, além de social e ambiental. Ao invés
de estender os recursos em infra-estrutura para áreas ocupadas com baixa densidade pode
ser mais adequado promover a ocupação de áreas ou imóveis vazios já servidos da infra-
estrutura.É preciso direcionar a ocupação do território enão apenas acompanhar com
investimentos as tendências que são ditadas pela exclusão social e pelas estratégias de
obtenção do lucro imobiliário. Apenas um plano urbanístico associado ao orçamento
participativo poderá jogar luz sobre essas questões. (É o que está tentando atualmente a
cidade de Belém, sem resultados palpáveis já que a experiência é recente)
Para erradicar o analfabetismo urbanístico seja na chamada sociedade civil, seja entre
técnicos e administradores é preciso resgatar o tema do estreito círculo dos urbanistas e
ampliar o vocabulário para além do hermético “urbanês”. É preciso evidenciar, para as
camadas populares, as estratégias das classes sociais na produção e ocupação do espaço, ou
seja, nada aí é natural ou fruto do acaso. Junto aos técnicos (especialmente junto aos
economistas) e políticos é preciso evidenciar o alto custo que decorre da irracionalidade na
ocupação predatória e extensiva do solo urbano.
Março de 2002

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Questão Fundiária Urbana no Brasil e o Ministério das Cidades*
Profa. Erminia Maricato

Em 1940, o Brasil tinha 31% da população nas cidades e, em 2000, essa população chegou
a 81%, com quase 138 milhões de moradores urbanos caracterizando um processo rápido
de urbanização do país que aconteceu especialmente durante o século XX.
Uma das características desse processo de urbanização é a concentração e a centralização
de população e de poder no território. Segundo o censo demográfico de 2000, em 11
metrópoles (209 municípios) morava 32% da população do país ou seja, aproximadamente
55 milhões de pessoas. Ainda segundo o IBGE, 82% da população brasileira moradora em
habitações subnormais (majoritariamente favelas) estavam nestas 11 metrópoles que
concentram também 33% do déficit habitacional ou o equivalente a 2.192.296 unidades.
São Paulo e Rio de Janeiro, as maiores metrópoles do país, reúnem mais da metade das
chamadas habitações subnormais nesse conjunto de cidades. A tabela abaixo mostra a
relação dessas metrópoles com as respectivas populações.

PRINCIPAIS METRÓPOLES BRASILEIRAS


Déficit habitacional e moradias em favelas, 2000

% do Domicílios % do
Déficit
Metrópoles População total do em total do
Habitacional
Brasil Favelas Brasil
São Paulo 17.878.703 596.232 9,0 416.143 25,2
Rio de
10.710.515 390.805 5,9 349.183 21,2
Janeiro
Recife 3.337.565 191.613 2,9 57.723 3,5
Belo
4.357.942 155.645 2,3 107.212 6,5
Horizonte
Salvador 3.021.572 144.767 2,2 65.443 4,0
Fortaleza 2.984.689 163.933 2,5 84.609 5,1
RIDE
2.952.276 146.667 2,2 8.246 0,5
Brasília
Belém 1.795.536 117.004 1,8 130.951 7,9
Porto Alegre 3.718.778 116.010 1,7 53.447 3,2
Manaus 1.405.835 93.952 1,4 39.505 2,4
Curitiba 2.768.394 75.668 1,1 42.854 2,6
Total 54.931.805 2.192.296 32,9% 1.355.316 82,1%
Fonte: Plano de Ação em Habitação, Saneamento e Mobilidade nas Metrópoles
em Risco, MCidades/IPPUR – Observatório da Metrópole, 2004. Dados Base:
Fundação João Pinheiro; IBGE, 2000

O processo de urbanização influiu positivamente em alguns indicadores nacionais, no


decorrer do século XX. Os principais exemplos foram a queda da mortalidade infantil (que
passou da taxa de 150 mortes para cada mil nascidos vivos em 1940 para 29,6 em 2000), o
aumento da expectativa de vida (40,7 anos de vida média em 1940 para 70,5 em 2000), a
queda da taxa de fertilidade (6,16 filhos por mulher em idade fértil em 1940 para 2,38 em

*
Texto retirado do sitio do LABHAB

4
2000) e o nível de escolaridade (55,9% de analfabetos em 1940 para 13,6% em 2000). Foi
notável também a ampliação do saneamento e a ampliação da coleta de lixo domiciliar mas
apesar da melhora referida, alguns desses indicadores ainda deixam muito a desejar como
mostram os números acima e como revelam os dados sobre o saneamento ambiental: 45
milhões de pessoas, em todo o país, ainda não tem acesso a água potável, 83 milhões não
tem acesso ao esgoto e 14 milhões não tem o lixo coletado. (IBGE,2000)
Além disso, esse processo de urbanização concentrada tem uma outra face marcada por
indicadores ou características bastante negativas: a ocupação inadequada do solo
comprometendo áreas ambientalmente sensíveis como beira de córregos, mangues, dunas,
várzeas e matas; o crescimento exponencial de favelas e das ocupações ilegais de um modo
geral; a ocorrência freqüente de enchentes devido à impermeabilização exagerada do solo;
desmoronamentos com mortes devido à ocupação inadequada de encostas;
comprometimento de recursos hídricos e marítimo com esgotos, entre outras.
É nas metrópoles que essas características se acentuam e ainda mais após as duas últimas
décadas do século XX, quando o processo de urbanização foi acompanhado da queda do
crescimento econômico e até mesmo de recessão. A economia brasileira cresceu à
impressionante taxa de 7% ao ano entre as décadas de 40 e 70 e depois desse período
sofreu um declínio muito grande. Durante as décadas de 1980 e 1990, o país cresceu apenas
1,3% e 2,1% respectivamente, ou seja, não incorporou sequer todos os ingressantes jovens
ao mercado de trabalho. Após 2000, configura-se ainda um rumo instável com crescimento
razoável em alguns anos (2000 e 2004) e baixo nos demais anos.
O baixo crescimento econômico acentuou as mazelas tipicamente urbanísticas citadas
acima e certamente influiu para o aparecimento de novos aspectos muito negativos nas
grandes cidades e metrópoles: o desemprego e a violência. Esta era praticamente
desconhecida no universo urbano até o início dos anos 1970.
Para completar uma síntese sobre as características da rede urbana no Brasil é preciso
lembrar que a maior parte dos municípios brasileiros – cujas sedes são definidas como
cidades – ou mais exatamente 72%, têm menos de 20.000 habitantes, e que as cidades que
mais crescem após os anos 90 são as de porte médio cuja população está situada no
intervalo entre 100.000 e 500.000 habitantes. A tabela abaixo revela a consolidação de uma
mudança no processo de urbanização: as metrópoles não detêm mais as maiores taxas de
crescimento urbano embora suas periferias ainda cresçam a taxas significativas em
contraposição ao esvaziamento das áreas centrais, de um modo geral. Acompanhando o
processo de interiorização dos investimentos, o processo de urbanização ultrapassa a faixa
litorânea e áreas próximas para avançar nas regiões centro oeste e norte do Brasil
acentuando o papel dos centros de porte médio e revertendo parte do movimento
migratório que, ao longo das décadas anteriores havia priorizado as metrópoles como
destino.
Taxa de Crescimento Anual dos Municípios por Faixa Populacional
1991-2000

Média da Taxa de
População Crescimento Anual
1991 a 2001
até 20.000 hab -0,07
de 20.000 a 100.000 hab 0,77
de 100.000 a 500.000 hab 1,91
acima de 500.000 hab 1,41
Fonte: MCidades, 2005. Dados Base: IBGE, 2000

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O patrimonialismo, a questão fundiária e o desenvolvimento urbano
As cidades brasileiras são reflexos da desigualdade social: em 2003 os 10% mais ricos da
população se apropriavam de 75% da riqueza contabilizada restando 25% da riqueza para
os demais 90% da população. Segundo a mesma fonte 5 mil famílias, de um total de 51
milhões, se apropriaram de 40% da riqueza nacional. De cada 10 famílias ricas 8 moravam
nas cidades de São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Brasília.1 Essa desigualdade é
explicitada na segregação territorial existente no universo intra-urbano ou nas diversas
regiões do território nacional.
Mas as cidades não são apenas reflexos do processo social. São também agentes de
aprofundamento da desigualdade. Foi especialmente por meio do processo de urbanização
que se deu a modernização conservadora: avanços na industrialização e no consumo de
bens de consumo durável, sofisticação dos serviços e em paralelo a expansão da pobreza,
da informalidade e, mais recentemente, a partir de 1980, da violência.
O ambiente construído faz parte da riqueza produzida e distribuída na sociedade segundo
determinadas relações sociais. Se em qualquer cidade do mundo o preço de um imóvel é
fortemente determinado pela localização no meio urbano, em cidades extremamente
desiguais como no Brasil essa diferença de preço é maior. Lançando mão de um raciocínio
esquemático podemos dizer que mercados restritos e especulativos são mercados
excludentes, de baixa produtividade marcados pela simbologia do consumo conspícuo.
Mercados democráticos e abrangentes são mercados caracterizados pela alta produtividade
e incorporação de avanço tecnológico. Uma abordagem mais complexa da relação entre
política fundiária e produtividade na construção pode ser encontrada em vasta bibliografia
já que esta foi objeto de um debate acadêmico nos anos 80 e 90 que envolveu autores
como Lipietz, Topalov, Lojikine, Michael Ball, além de vasta produção teórica da Bartlett
International Summer School. Também brasileiros entre os quais merece destaque Nilton
Vargas tomaram o tema como objeto de estudo.
Os mercados restritos e altamente especulativos, ao cercear o acesso à cidade e à moradia
para todos, e controlar as terras mais bem localizadas, restringem também as alternativas
legais de construção do ambiente urbano, como veremos em seguida. Mesmo quando o
poder público se empenha (o que não tem sido uma regra geral) para responder às
necessidades das camadas de mais baixa renda, seja de habitação, de infra-estrutura ou de
equipamentos urbanos, sua eficácia fica comprometida pelo custo especulativo das terras e
dos imóveis. Há outros motivos para essa ineficácia, mas esse é, sem dúvida, um dos
principais.
A tese desenvolvida por Raimundo Faoro no clássico “Os Donos do Poder” expõe as
origens do patrimonialismo brasileiro, uma das marcas do nosso atraso, caracterizado pela
relação entre concentração do patrimônio, poder econômico e poder político. Além dessa
condição para a concentração de poder o patrimonialismo explica ainda a captura da esfera
pública por interesses privados (patrimonialistas) já que a tradição ibérica, uma das bases da
nossa sociedade, não seguiu os preceitos da revolução burguesa e a elite conservadora
(patrimonialista) ao invés de travar um embate contra o Estado, tomou este como principal
instrumento de dominação e garantia de privilégios. O Estado assim instrumentalizado gera
uma burocracia exagerada cuja principal finalidade não é a regulação de processos e
procedimentos mas a garantia do poder baseado em relações de privilégios e não na regra,
no mérito ou na eficiência. O patrimonialismo explica também a cultura de concentração

1
Pochman, M. e outros (org.) Os ricos no Brasil. Cortez Editora, São Paulo, 2004.

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de terras e imóveis como forma de riqueza e de poder, que leva à formação desse mercado
fundiário e imobiliário altamente especulativo e excludente. 2
Após décadas de debates acadêmicos sobre a questão fundiária e levando em consideração
sua invisibilidade para a agenda política brasileira somos forçados a perceber uma forte
componente cultural nesse processo. Como explicar tamanha confusão no registro de
propriedades? Como justificar que o mercado privado atenda menos de 30% da população
brasileira que necessita de moradias? Como justificar tão vasto patrimônio fundiário
urbanizado ocioso diante de tanta carência? Como justificar as dimensões da predação
ambiental causada pela ocupação ilegal devido à falta de alternativas de moradia para a
maior parte da população? Muitos desses problemas sobejamente conhecidos e fartamente
denunciados persistem sem solução e o que é pior, sem visibilidade e sem reconhecimento
nos legislativos, nos executivos, no judiciário e na mídia.
A retenção de terras e imóveis edificados urbanos vazios é um dos motivos da carência
habitacional e dos preços inacessíveis, como já foi destacado. Em alguns casos, como é o
exemplo de Campo Grande e Palmas, as áreas vazias servidas de infra-estrutura poderiam
acomodar mais do que o dobro da população dessas cidades. Por outro lado, nas
metrópoles, em especial no Rio de Janeiro e em São Paulo ganha mais importância o
número de imóveis edificados vazios conforme dados apresentados na tabela abaixo. Esse
número se aproxima do déficit habitacional de ambas as cidades. E esses imóveis se
concentram nas áreas mais centrais e, portanto, mais servidas de completa infra-estrutura e
oferta de serviços seguindo tendências internacionais.

Municípios Brasileiros com Maior Número de Domicílios Ociosos


(Vagos + Fechados)

Fonte: IBGE/Censo 2000 – Sinopse Preliminar

Em contraste com esse patrimônio construído ocioso, localizado em áreas centrais das
metrópoles, as periferias pobres se expandem horizontalmente, seguindo um modelo que
tem graves conseqüências para um país que tem poucos recursos para investir. Apesar de
apresentar as características de insustentabilidade que constatamos nos subúrbios
espraiados das cidades dos Estados Unidos as periferias das cidades brasileiras (ou latino
americanas) são muito mais problemáticas pois não foram objeto de investimenos maciço e
extensivo em infra-estrutura e nem são habitadas por famílias que possuem vários
automóveis. A maior parte de seus moradores depende de transporte coletivo que é um

2
Sobre esse assunto ver Faoro, R. Os donos do poder. Rio de Janeiro: Ed. Globo,1989. Sobre a
funcionalidade do atraso para o desenvolvimento capitalista no Brasil ver ainda: Hollanda (1984),
Oliveira (1988), Schwarz (1990), Guilherme dos Santos (1993), Furtado, (1995) e par a questão urbana
Maricato (1996).

7
serviço de má qualidade com acentuada piora a partir dos anos 80. Podemos citar algumas
das conseqüências desse processo, as quais já foram fartamente tratadas nos trabalhos
apoiados pelo Lincoln Institute of Land Policy na América Latina:

a) A expansão da extensão horizontal das cidades paralelamente à manutenção de


grandes vazios (que não tenham função ambiental ou de drenagem ) encarece o
custo da infra-estrutura e serviços urbanos, em especial, os transportes coletivos,
mas também a implantação da rede de água e esgotos, a coleta de lixo, a rede de
iluminação pública, entre outros. Por outro lado a implantação e extensão desses
serviços que atravessam áreas vazias, ajudam a alimentar a especulação imobiliária ao
carrear para os proprietários as valorizações decorrentes desses investimentos. O
impacto desse processo sobre a mobilidade da população metropolitana pode ser
medido pelos números da tabela abaixo.

Modos de transporte em 6 metrópoles brasileiras - 2000

A pé 44,0%
Bicicleta 7,0%
Transporte coletivo 29,0%
Motocicleta 1,0%
Automóvel 9,0%
Fonte ANTP/MCidades, 2005

As pesquisas da ANTP – Associação Brasileira de Transporte Público revelam uma


tendência de diminuição dos usuários do transporte coletivo e um aumento das
viagens a pé especialmente junto à população de menor renda. Essa tendência
mostra, o que é constatável empiricamente, uma deterioração dos transportes
coletivos e também da capacidade de pagamento das altas tarifas. Mas é exatamente
nas periferias pouco equipadas e pouco urbanizadas, onde reside a população das
faixas mais baixas de renda, que predomina as viagens a pé. Podemos verificar que
além de ser expulsa das áreas mais bem localizadas do ponto de vista do direito à
cidade grande parte da população das metrópoles, sem acesso ao automóvel, tem um
baixo grau de mobilidade.

b) Um grande número de trabalhos acadêmicos mostra que a falta de alternativas


habitacionais resultante da retenção de terras ociosas, em especial aquelas servidas
por infra-estrutura, leva a população excluída a ocupar áreas inadequadas para
moradia ou áreas ambientalmente frágeis como as beiras dos córregos, as encostas
íngremes e deslizantes, as áreas de proteção dos mananciais, os mangues e as dunas
no litoral , entre outros, constituindo uma forte agressão ao meio ambiente ou
ao interesse difuso. Na área de proteção dos mananciais em São Paulo, nas bacias dos
reservatórios de água Billings e Guarapiranga moram mais de um milhão e meio de
pessoas, comprometendo a qualidade da água para o consumo humano e
promovendo o desmatamento de um dos poucos remanescentes de mata Atlântica.
Esse fenômeno está fortemente presente também na periferia da Região
Metropolitana de Curitiba e Rio de Janeiro. As agressões a dunas e mangues podem
ser constatadas em quase toda grande cidade litorânea (Recife, Fortaleza, São Luiz,
Belém, São Vicente e Cubatão entre outras). Favelas em palafitas, tão comuns nessas
cidades avançam mar a dentro em contraste com áreas ociosas, bem localizadas, que

8
desafiam a função social da propriedade e da cidade previstos na Constituição
Brasileira e no Estatuto da Cidade.

c) As evidencias empíricas revelam que a segregação espacial da pobreza


homogênea vem acompanhada da ilegalidade fundiária e da violência e isso
acontece com mais freqüência nas metrópoles.(Maricato, 1996). A essas
características agregam-se outras marcas desses territórios sócio ambientalmente
vulneráveis como: maior densidade habitacional (pessoas por cômodo) do que a
media da cidade, maior taxa de desemprego, menor grau de escolaridade, maior
número de mulheres que são chefes de família, maior proporção de negros, maior
incidência de doenças respiratórias em crianças e maior número de homicídios. São
áreas sem contrato social, sem governo e sem leis para o uso e a ocupação do solo,
mas o que é mais grave, sem leis para resolução de conflitos3.

d) A retenção de imóveis ociosos promove o aumento do preço das


edificações além de frear a produtividade na construção civil e restringir
também a abrangência do mercado imobiliário: terra é um item fundamental
dessa cadeia produtiva. Diversos estudos mostraram que os ganhos fundiários e
imobiliários freqüentemente desestimulam o aumento da produtividade na
construção civil. Por esse motivo o mercado imobiliário privado oferece um produto
de luxo destinado a apenas 30% da população brasileira. É o que mostra a pesquisa
do professor Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro (IPPUR-UFRJ) para o Rio de Janeiro:
nos primeiros anos da presente década, 70% dos imóveis colocados à venda pelo
mercado se destinaram a famílias com rendas acima de R$ 150 mil por ano. Essa é a
expressão de um mercado altamente restritivo que não atende nem mesmo as classes
de renda média. Os ganhos provém mais de atividades correlatas (fundiária,
incorporação) do que da atividade produtiva.

A correlação entre a política fundiária e o processo de uso e ocupação do solo são


fundamentais para garantir uma cidade ambientalmente sustentável, socialmente includente,
democrática, economicamente eficiente e tudo isso tem a ver com gestão pública e norma
legal. Essas e outras condições precisam ser enfrentadas se se deseja mudar o rumo aludido
do crescimento do urbano.

Irracionalidade na ocupação do solo: Não faltam planos e leis


Não é por falta de leis e de planos urbanísticos que as cidades brasileiras apresentam a atual
situação. Já destacamos em vários trabalhos escritos, (Maricato 2000, 2001) baseados em
idéias desenvolvidas por Sergio Buarque de Hollanda no clássico “Raízes do Brasil”, a
notável distância existente entre o discurso e a prática em nosso país. Roberto Schwarz
também é outro autor que explora essa característica em vários de seus trabalhos que
abordam a formação da cultura nacional. Podemos dizer que a regulação urbanística é
abundante e detalhista quando observamos as Leis de Zoneamento, os Códigos de
Posturas Municipais, as leis de Parcelamento do Solo em nossas grandes cidades. Essa
regulação exagerada convive com imensa ilegalidade e precária fiscalização ou controle do
uso e da ocupação do solo. Ambiguidade e contradição é a marca da realidade territorial
urbana. A regulação exagerada em ambiente onde a ilegalidade é a regra e não exceção, se
presta à sua aplicação arbitrária.

3
Ver a respeito consultoria coordenada pelo Prof. Luiz César de Queiroz Ribeiro sobre Regiões Metropolitanas,
para o Ministério das Cidades, 2005.

9
A sofisticação dos debates sobre matéria urbanística ou sobre o meio ambiente, em especial
no espaço acadêmico contrasta com a “terra de ninguém” observada na titulação dos
imóveis e na ocupação do solo. Para muitos a solução está em leis mais rigorosas. É mais
comum ver soluções sofisticadas engendradas nos confortáveis e seguros gabinetes, mas
que terminam sem aplicação, já que não mergulham de fato na realidade buscando
enfrentar os conflitos e interesses contraditórios. Essa característica faz parte de uma
cultura livresca na qual o discurso ocupa um lugar de destaque e a realidade tem
importância secundária.
Por outro lado, na maioria dos municípios brasileiros, os quais têm menos de 20.000
habitantes, nota-se não apenas a ausência de legislação adequada e controle do uso do solo,
mas também falta informações: mapeamento ou cadastros minimamente organizados;
instrumentos indispensáveis para uma boa administração pública do território.
A confusão no registro de propriedades no Brasil, ao contrário do que muitos pensam, não
se resume ao campo e nem apenas à Região Amazônica. Nossa experiência formou a
convicção que ela foi historicamente funcional para as relações sociais que conformaram a
sociedade brasileira. Evidencias a respeito podem ser encontradas na pesquisa que
fundamenta a tese de doutorado, em elaboração, de Joaquim Brito Cruz, na Faculdade de
Arquitetura da USP.
Planos e leis detalhistas mas permeados pela ambigüidade, já que sua aplicação se faz de
acordo com as circunstâncias; falta de informações nas administrações públicas e centenária
confusão registraria; realidade ignorada em seus aspectos contraditórios pelos gestores e
formuladores de políticas; ausência de democracia e falta de transparência nas decisões
sobre a realidade, são aspectos funcionais para um ambiente patrimonialista que segrega e
exclui.
A legislação e os planos urbanísticos são aplicados a uma parte das cidades. A
modernização urbanística (cidade regulada, urbanizada e fiscalizada) chega apenas para
alguns e nunca para todos. O poder de polícia sobre o uso e a ocupação do solo (que é de
competência municipal quando trata de matéria de interesse ambiental) é exercido de forma
discriminatória. Para o tema que nos ocupa, garantir o direito à cidade para todos implica
em garantir uma condição legal e política além de econômica. E cidadania implica que essa
garantia não vem de fora, mas envolve ativamente os que atualmente estão excluídos dessa
condição.
Uma das condições para a superação do quadro descrito está em quebrar as barreiras que
afastam os entes federativos, o judiciário, o parlamento, os demais atores da sociedade de
uma ação conjunta e solidária para o desenvolvimento urbano. Há que se buscar um
mínimo denominador comum para garantir a reunião dos esforços, pelo menos daqueles
que defendem o interesse público, o combate à desigualdade e a ampliação da democracia
em nossas cidades.
Todos esses temas – a função social da cidade e da propriedade, democracia participativa,
pacto federativo, capacitação dos agentes para o desenvolvimento urbano, financiamento
do desenvolvimento urbano - estão no bojo da Política de Desenvolvimento Urbano que
está sendo elaborada pelo Ministério das Cidades, no contexto das Conferencias Nacionais
das Cidades, em colaboração com o Conselho das Cidades.

10
Globalização e política urbana na periferia do capitalismo*
Erminia Maricato

Pedimos, por favor, não achem


natural o que muito se repete!
A exceção e a regra
Bertold Brecht

Algumas perguntas podem nos ajudar a abordar um tema complexo como é o


planejamento urbano e que está passando por uma grande mudança no mundo
revolucionado pela reestruturação da produção capitalista iniciada no final do século XX.1
Considerando que uma parte dos Estados Nacionais são mais frágeis que muitas das
maiores corporações mundiais e que estas não têm muitos limites para expandir seus
poderes e impor seus modelos, quais são as perspectivas de desenvolvimento de um
planejamento territorial inspirado na diversidade cultural, social e ambiental de cada país e
cada cidade?
Considerando que o ideário neo liberal que acompanha a globalização impõe a
desregulamentação e a privatização dos serviços públicos, eliminando a noção de subsídio,
como planejar e implementar políticas voltadas para as necessidades da maior parte das
populações dos países da periferia do capitalismo, que não fazem parte do mercado
privado?
Considerando que o capital financeiro internacional, dominante na atualidade, não pode
submeter-se ao ritmo ou incertezas das instituições democráticas nacionais e engendra
novas instituições que decidem mais do que os próprios Parlamentos Nacionais ou
Tribunais Superiores (volume dos superávits, taxa de juros, decisões sobre o câmbio, taxa
de risco...), qual é o espaço que existe para o exercício do planejamento territorial,
executado por meio de políticas públicas com participação social, que contraria interesses
do novo imperialismo?
Considere-se ainda que essas mudanças conhecidas por globalização desabam sobre um
sistema político que não se modernizou. Pelo contrário, estamos nos referindo a sistemas
políticos baseados no patrimonialismo, entendido como o uso pessoal da esfera pública e o
exercício da política do favor (ou troca) dominado por uma forte oligarquia nacional.
Considere-se ainda que essas mudanças desabam sobre uma sociedade que não
universalizou os direitos sociais (previdência, saúde, educação) e mantinha grande parte da
população na informalidade sem acesso aos direitos trabalhistas. Qual a possibilidade dessa
sociedade reverter o rumo do aprofundamento da desigualdade e da pobreza? Qual a
possibilidade de implementar planos baseados em prioridades sócio-ambientais, índices,
indicadores e metas? Como assegurar a participação democrática e a implementação das
decisões decididas democraticamente?
Considerando que o novo imperialismo exacerba a importância dos pólos urbanos e
metropolitanos que já são importantes e que o ideário neo liberal trouxe as marcas de
competição entre cidades e fragmentação do território, qual a chance de desenvolver uma
política de cooperativismo federativo?
*
Texto retirado do sitio do LABHAB
1
Iremos utilizar o conceito de globalização para referir ao conjunto das mudanças (incluindo a ideologia,
a cultura e a política) ocorridas no mundo a partir do que Harvey chama de reestruturação produtiva do
capitalismo que tem início nos anos 1970.

11
Globalização e poder
Assim como o taylorismo e o fordismo moldaram um novo homem e uma nova sociedade,
a globalização também está produzindo um novo homem e uma nova sociedade por meio
de transformações nos Estados, nos mercados, nos processos de trabalho, na estética, nos
produtos, nos hábitos, nos valores, na cultura, na subjetividade individual e social, na
ocupação do território, na produção do ambiente construído e na relação com a natureza.
De fato, a hegemonia do fordismo acarretou grandes mudanças sociais ao disseminar uma
forte disciplina para o trabalho sob o ritmo mecanizado e repetitivo da grande indústria.
Horários rígidos, rotinas rigorosas, os gestos repetidos, a maquinaria impôs um ritmo
muito distante da vida rural mediada pelas estações do ano ou pelas forças da natureza. Até
a organização da vida familiar, a incorporação da mulher no mercado de trabalho, a
penetração dos eletrodomésticos no ambiente doméstico, a generalização do uso individual
do automóvel, todo um modo de vida foi sendo moldado, não sem muito conflito,
acarretando mudanças na moradia e na cidade. Produção em massa de objetos
padronizados para o consumo de massa passou a incluir os próprios operários.2
A combinação do fordismo com o keynesianismo gerou o que Hobsbawn chama de “anos
dourados” ou seja, um período de 30 anos (1940 a 1970) tido como sendo uma das maiores
e mais importantes construções sociais da humanidade.

(...) só depois que passou o grande boom, nos perturbados anos 70, à espera dos traumáticos 80, os
observadores - sobretudo, para início de conversa, os economistas – começaram a perceber que o mundo , em
particular o mundo do capitalismo desenvolvido passara por uma fase excepcional de sua história; Talvez
uma fase única. (Hobsbawn, 1994 p. 253).

Como resultado da adequação do processo de acumulação capitalista ao avanço da luta dos


trabalhadores o Estado combinou controle legal sobre o trabalho com políticas que lhe
asseguraram elevação do padrão de vida.
Essa rápida descrição se refere mais exatamente aos países capitalistas centrais (doravante
PCC). Nos países periféricos do mundo capitalista (doravante PCP) o fordismo e o Welfare
State não incluíram toda a sociedade.3 Os padrões do urbanismo modernista foram
aplicados a uma parte das cidades formando verdadeiras “ilhas de primeiro mundo”
cercadas de ocupação ilegal promovidas pelas favelas, cortiços e loteamentos clandestinos.
O fordismo periférico constituiu a transferência de indústrias, máquinas, tecnologia e
produtos (com seus desenhos e portanto valores culturais e estéticos a ele incorporados),
para alguns grandes centros metropolitanos, visando, inicialmente, o mercado interno dessa
periferia capitalista. Em vários países esse processo de substituição de importações teve

2
Gramsci 1949.
3
José Luís Fiori nota que a terminologia que acompanha a classificação dos países periféricos no mundo
capitalista mudou - de “países subdesenvolvidos”, para “países dependentes”, em seguida para “países em
desenvolvimento”, depois para “países do sul” e, finalmente, ”mercados emergentes” que é como os
batizou o capital financeiro internacional na era da globalização (Fiori, 1995). A terminologia é
reveladora. Para uma melhor compreensão dos conceitos de núcleo central, periferia e semi-periferia ver
Arrighi (1995). Para os objetivos deste texto não será necessário diferenciar os países periféricos dos
semi-periféricos.

12
algum controle endógeno, ganhou caráter nacionalista e ficou conhecido como período
desenvolvimentista.
Muitas críticas ao modelo fordista keynesiano somaram-se às determinações que estão na
esfera da produção e da acumulação de capitais (crise de fundos, de mercados, de
lucratividade, e fiscal que se somaram à crise do petróleo) para definir seu declínio. Harvey
lembra a emergência da luta das mulheres, o movimento contra-cultural e anti consumo
(conhecido pelo aparecimento dos hyppies na cena mundial, em especial americana), a
crítica à pobreza do funcionalismo modernista (Jacobs, 1961 e Berman, 1982), os
insatisfeitos do terceiro mundo que lutaram pela independência, dentre outras
manifestações.
Rigidez é a marca que, contraditoriamente, caracteriza esse período de relativo bem estar
social: rigidez nos investimentos em capital fixo, larga escala e longo tempo; rigidez no
mercado de trabalho, contratos, direitos trabalhistas; rigidez na estrutura e ação do Estado.
Flexibilização é uma das marcas da mudança que se inicia nos anos 70 visando acelerar o
tempo de giro do capital: flexibilização da estrutura produtiva em relação ao território,
flexibilização da organização da unidade de produção (que se fragmenta), flexibilização nas
relações de trabalho, flexibilização e diversificação dos produtos, flexibilização dos
mercados. A informação, o conhecimento, a marca, a mídia, ganham mais importância em
um mundo impactado pela velocidade, pelo efêmero, pelo espetáculo, tudo isso alimentado
por significativos avanços tecnológicos.
A flexibilização chegou também ao Estado e seu papel regulador. O liberalismo renasceu
com a nova condição. À crise fiscal a primeira Ministra inglesa Margareth Tatcher (1979) e
o presidente americano Ronald Reagan (1980) responderam com ataque aos salários reais e
aos sindicatos. A hegemonia da globalização significou o desmonte do grande Estado
provedor, do grande e poderoso sindicato de trabalhadores e do grande capital produtivo
fordista. Mas acima de tudo ela significou o primado do mercado.
Com ela também os tradicionais partidos políticos foram atingidos o que foi fatal para as
forças de esquerda. Novos atores entraram em cena: ONGs, ambientalistas, mulheres,
entidades de luta pela igualdade racial, entidades de luta pelos direitos dos homossexuais,
direito das etnias, etc. A democracia burguesa ou representativa também passa a ser
contestada assim como os partidos são esvaziados.
O tratamento glamouroso que a mídia e muitos intelectuais atribuíram à globalização e às
chamadas cidades globais foi dando lugar, com o passar do tempo e com a apropriação
capitalista das novas tecnologias, a uma realidade cruel: aumento do desemprego,
precarização das relações de trabalho, recuo nas políticas sociais, privatizações e
mercantilização de serviços públicos, aumento da desigualdade social. Diferentemente da
desigualdade social ou inserção social precária existentes anteriormente à globalização após
sua dominação hegemônica, ganha destaque uma marca, a da exclusão social: bairros são
esquecidos, cidades são esquecidas, regiões são esquecidas e isso acontece até mesmo com
países, que são ignorados já que não contam para a nova ordem.
Uma nova dinâmica regional é construída sob forte determinação por meio de ações que
desrespeitam culturas locais ou nacionais, ignoram a ética, etnias, raças, religiões ou a
sustentabilidade ambiental. (Harvey, 2003; Stiglitz, 2002; Ocampo e Martin, 2003). Para
quem não é o império ou seu aliado, a globalização é uma grande tsunami que varre o que
encontra pela frente. A ofensividade utilizada para a disseminação da semente transgênica e

13
a “terminator” (impossível de ser replantada, o que garantiria, no caso de sua generalização,
às corporações globais, o controle total sobre a produção de alimentos no mundo) revela a
falta de limites éticos das forças globais4.
A certeza de segurança pessoal e familiar no futuro, a tranqüilidade, a esperança deu lugar à
incerteza que acompanha agora as novas gerações. Mesmo nos Estados Unidos onde a paz
social continua a ser mantida por um exagerado padrão de consumo a pobreza aumentou
como revela Harvey (2003).
Os Estados não foram diminuídos como fez crer o ideário neo liberal, mas adaptaram-se às
exigências das grandes corporações e do capital financeiro. Enfraqueceram-se apenas em
relação às políticas sociais. Naquilo que interessa às grandes corporações e ao capital
financeiro os Estados foram fortalecidos com a ajuda midiática. As suspeitas ações de
privatização de empresas públicas no Brasil, largamente financiadas pelo próprio Estado,
no início dos anos 90, foram precedidas de uma ampla campanha na mídia envolvendo
inclusive os comunicadores mais populares encarregados em desmoralizar o Estado e
exaltar a capacidade da iniciativa privada (Biondi, 1999).
Segundo Ball e outros (1988), uma importante característica do welfare state nos PCCs foi
a produção massiva de moradias, marcadas pela padronização e alta densidade, com forte
subsídio estatal. O investimento na extensão da infra-estrutura urbana combinou-se ao
planejamento urbano e ao controle fundiário. Grandes empresas de construção e grandes
sindicatos (com participação significativa de força de trabalho imigrante) participaram dessa
extensa construção.
Após 1975 diminui o investimento estatal, aumentam os preços, aumenta a atividade
especulativa e aumenta a complexidade com a flexibilidade na promoção e na produção.
Segundo os mesmos autores aumentam ainda as atividades de subcontratação ao lado da
queda no investimento em capital fixo. Toda essa mudança é acompanhada do declínio do
poder sindical (Ball e outros, 1988).
A palavra subsídio é praticamente varrida dos documentos oficiais.

O impacto da Globalização nos países periféricos5


Se o impacto da globalização sobre o mundo desenvolvido foi forte que não dizer do
impacto que sofreram e sofrem nações onde a maior parte da população nunca conheceu
os direitos universais: emprego, previdência, saúde, educação, habitação.
A desigualdade trazida pela globalização aprofunda e diversifica a desigualdade numa
sociedade historicamente e tradicionalmente desigual. Faz muita diferença iniciar o
processo de reestruturação produtiva a partir de uma base de pleno emprego ou de direitos
universais relativamente extensivos, ao invés de uma base na qual os direitos são privilégios
de alguns.
Para os PCCs a globalização significou a quebra do contrato social e para os PCPs significa
uma nova relação de dominação e exploração. Um bem engendrado modelo de construção
de hegemonia foi colocado em prática por meio do Consenso de Washington6.

4
Cf. website http://www.etcgroup.org.
5
Apesar da sensível diferença, para os objetivos deste texto não faremos uma distinção entre os países
periféricos dos semi-periféricos. Devido à nossa experiência profissional, acadêmica e política a América
Latina é usada como referência privilegiada.

14
Como foi mencionado acima, as forças globais têm dificuldade de convivência com as
instituições democráticas de cada país. Forjaram a ferro e a fogo, com a ajuda de uma certa
mídia bem paga, instituições que mandam mais do que os congressos nacionais. Senão
vejamos: os Bancos Centrais interferem profundamente na vida dos países e não prestam
contas a ninguém. Seus diretores são ilustres desconhecidos e suas reuniões, inacessíveis,
geram atas burocráticas e indecifráveis até para muitos economistas. Ninguém ali foi eleito
democraticamente. Não é por outro motivo que um dos pontos da agenda neo liberal é a
autonomia dos Bancos Centrais em relação aos governos ou qualquer outra instituição nacional.
O “risco país” é um indicador que tem mais prestígio do que a distribuição de renda. Paira
como uma espada sobre a cabeça de cada país. Como é definido? Quem define? Quais os
critérios para sua definição?
Nos Ministérios da Fazenda há um conjunto de profissionais que podem não conhecer
profundamente a realidade social e territorial de seu próprio país mas foram preparados e
organizados para uma missão e a cumprem com muito profissionalismo e absoluta
objetividade. Seu papel ideológico é claro e mal disfarçam as orientações que podem ser
encontradas no texto resultante do Consenso de Washington. Exercem seu poder sobre os
demais ministérios e demais entes federativos com o máximo de rigor.7
A metodologia utilizada para o cálculo dos gastos públicos constitui um capítulo à parte.
Investimentos são contabilizados como gastos (por exemplo: recursos dirigidos para obras
de infra-estrutura voltadas para a produção) deprimindo a capacidade de gastos do Estado.
Da metodologia contábil à terminologia utilizada, todos os detalhes obedecem à lógica da
dominação e dos interesses globais.
É surpreendente o sucesso da estratégia de formar formuladores de políticas para os PCPs.
BIRD, BID, OCDE são algumas das entidades que se organizaram para essa tarefa de
“capacity building”. Todo empréstimo feito pelas agências multilaterais (quealiás os
oferecem como se fossem uma benesse) exige a contrapartida da aplicação dos itens
previstos no Consenso de Washington. Em outras palavras, tratava-se de “fazer a cabeça”
dos quadros locais.
Para o sucesso dessa tarefa eles contaram com a ajuda de uma tradição nos países
periféricos: a do mimetismo intelectual, ou seja, a valorização das propostas de origem
externa e o desprestígio das propostas de origem endógena.
A memória intelectual e profissional endógena, nos PCPs, é constantemente solapada ao
longo da história. A convivência secular com idéias provenientes do exterior
freqüentemente os coloca diante de uma matriz histórica postiça ou virtual. Em especial no
campo da cultura vivem-se as “idéias fora do lugar”: um conjunto de valores, idéias,

6
Com base no documento Washington Consensus de John Williamson foi colocada em prática uma
ampla estratégia de formação de quadros voltados para a tarefa de implementar o ajustamento das
economias periféricas (Cf. WILLIAMSON, John. What Washington Means by Policy Reform. In: J.
Williamson, ed. Latin American Adjustment: How Much Has Happened? Washington: Institute for
International Economics, 1990). Sua fórmula resultou de uma reunião realizada em 1989 na qual tomaram
parte o governo americano, representantes das organizações financeiras internacionais e representantes
dos países “emergentes”. Para estes a receita era uma só: estabilização macro econômica com superávit
fiscal primário, reestruturação dos sistemas de previdência, liberalização financeira e comercial e
privatizações. Após isso tudo a receita previa a retomada dos investimentos e o crescimento econômico, o
que não ocorreu. O documento “In search of a Manual of Technopols” do mesmo autor (In:
WILLIAMSON, John, ed. The Political Economy of Policy Reform. Washington, DC: Institute for
International Economics, 1994), visava dar uma orientação política complementar para o exército de
ativistas do neo liberalismo.
7
Como integrante da equipe que criou o Ministério das Cidades e Vice- Ministra do governo Lula, a
autora pode acompanhar, por 3 anos (2003/2005), a prática desses ativistas do neo liberalismo no interior
da máquina governamental do Brasil.

15
símbolos e formas deslocados da base produtiva. Problemas importantes são trazidos à
baila recorrentemente, mas permanecem sem solução. De tempos em tempos seu
enfrentamento é retomado sem considerar o acúmulo do conhecimento desenvolvido pelas
gerações anteriores. O glamour de prestigiadas universidades estrangeiras é irresistível8.
Com uma tal tradição acadêmica e profissional, não é de se estranhar que essa proposta
tenha formado um verdadeiro exército de ativistas em todo o mundo.
Discorrendo sobre a pressão que os países ricos fazem sobre os países pobres para que
estes adotem “boas políticas” e “boas instituições”, Chang apresenta evidências empíricas
sobre os resultados negativos dessa influência. Os países pobres cresceram mais quando
não seguiram as receitas neo liberais do “establishment internacional da política de
desenvolvimento”. A China e a Índia que apresentam alto crescimento não seguem essa
receita.

Assim, parece que estamos diante de um “paradoxo”- pelo menos para quem não é economista neo liberal.
Todos os países, mas principalmente os países em desenvolvimento, cresceram muito mais rapidamente no
período que aplicaram políticas “ruins”, entre 1960 e 1980, do que nas duas décadas seguintes, quando
passaram a adotar as “boas”. A resposta óbvia para tal paradoxo é reconhecer que as políticas
supostamente “boas” nada têm de benéfico para os países em desenvolvimento, pelo contrário, na verdade é
provável que as políticas “ruins” lhes façam bem quando efetivamente implementadas (Chang, 2002, p.
214)

O legado do patrimonialismo
Mas não são apenas os recentes processos desencadeados pela globalização que dificultam
o planejamento urbano nos PCPs. Refiro-me aqui mais exatamente aos latino-americanos
que passaram pela colonização ibérica.
Na América Latina a desigualdade social é resultado de uma herança de cinco séculos de
dominação externa que se combina, internamente, a elites que têm forte acento
patrimonialista. As características do patrimonialismo poderiam ser sucintamente descritas
como as seguintes: a) a relação de favor ou de troca é central no exercício do poder; b) a
esfera pública é tratada como coisa privada e pessoal; c) existe correspondência entre
detenção de patrimônio e poder político e econômico9.
Clientelismo, coronelismo, oligarquia ou caudilhismo são os conceitos estreitamente ligados
ao patrimonialismo.
A corrupção generalizada e notável na AL é um subproduto do exercício de poder que
passa pela esfera pessoal mantendo, no sistema político e no judiciário características de
atraso e de pré-modernidade. As relações pré-modernas sobrevivem durante os processos
de modernização, industrialização e urbanização dos países.
Nesse ambiente a aplicação da lei segue caminhos imprevisíveis quando se trata de
contrariar interesses dominantes. Leis progressistas podem resultar em decisões
conservadoras já que os julgamentos não ignoram as relações pessoais ou de compadrio.
Isso ocorre com os proprietários de terra como veremos em seguida. E sempre é
importante lembrar que a terra ocupa uma posição chave na formação das sociedades latino
americanas.
Outras características das forças do atraso a serem lembradas aqui são o papel do discurso
ou da retórica para o exercício do mando e a distância que separa a retórica (representada

8
Alguns brilhantes intelectuais brasileiros refletiram sobre esse assunto como Roberto Schwarz (autor da
expressão “as idéias fora do lugar”), Florestan Fernandes e Celso Furtado.
9
Parte dessa descrição pode ser encontrada em Faoro (1989).

16
por uma lei, um plano, um projeto) da prática10. Nos parlamentos latino-americanos
dificilmente um parlamentar reconhece-se como conservador. A esmagadora maioria
declara-se de centro esquerda. As academias também não deixam de apresentar essas
características que fazem parte da alma latino-americana.
Vários autores se detiveram em analisar as características específicas desse capitalismo “sui
generis” que subordina toda a sociedade mas se alimenta de relações não capitalistas.
Citando as “discrepâncias internas” das sociedades latino-americanas Canclini (1990)
lembra que “diferentes temporalidades históricas convivem em um mesmo presente”.
Celso Furtado (1995) referiu-se às características de “defasagem e contemporaneidade”.
Francisco de Oliveira emprestou de Trotsky a referencia ao “desigual combinado” (1972).
Florestan Fernandes (1975) lembra que se trata de “modernização com atraso” ou
“desenvolvimento moderno do atraso”. Várias são as análises que constatam a persistente
preservação das oligarquias durante o processo de modernização11.
Não está suficientemente claro e nem existem suficientes trabalhos que tratem do impacto
da globalização sobre essas forças do atraso. Por outro lado, no Brasil é possível observar
um recrudescimento (ou pelo menos a manutenção) do clientelismo e da corrupção
envolvendo o sistema político após os anos de ditadura e em especial após os anos 90.
Nossa hipótese é de que a perda de poder real dos parlamentos para os executivos e para as
instituições comandadas pelo figurino global reforça as relações baseadas na troca e reforça
o papel da retórica e do marketing na atividade parlamentar. A hipótese explicitada aqui é
que esse patrimonialismo é funcional para a globalização, e quando não é, seus
representantes são simplesmente marginalizados das decisões importantes. Mas essa
questão deve ser desvendada por mãos mais competentes do que as de uma urbanista.

Os paradoxos das cidades periféricas12


As cidades, e em especial nas metrópoles dos PCPs, constituem uma fonte excelente para
evidenciar os contrastes e contradições referidos anteriormente.
Uma proporção maior ou menor da população urbana, dependendo de cada país, é
excluída do direito à cidade e busca acesso à moradia por meio de seus próprios e precários
recursos. Mesmo sem contar com levantamentos rigorosos (desconhecemos um país do
mundo periférico que tenha contabilidade rigorosa sobre a moradia dos excluídos),
podemos dizer que a maior parte da população urbana constrói suas casas sem o concurso
de conhecimento técnico (de engenharia e arquitetura), sem financiamento formal e sem
respeito à legislação fundiária, urbanística e edilícia. Essa prática dita de autoconstrução foi
central para o barateamento da força de trabalho nacional (o custo da moradia não estava
incluído no salário) especialmente durante o período desenvolvimentista quando a indústria
fordista se instalou nos PCPs em busca de seus mercados internos. Ela continua como
aspecto central na globalização. Apesar de incluído no sistema produtivo capitalista o
trabalhador (parte da População Economicamente Ativa) é excluído do mercado residencial
capitalista.

10
Ver a respeito as obras do ficcionista brasileiro do século XIX, Machado de Assis e as críticas de
Roberto Schwarz à sua obra em Schwarz (2005) .
11
Vários desses autores estão repensando acerca do significado das forças do atraso sob a globalização.
Ver por exemplo a reformulação da marca do “desigual combinado” atribuída aos países da AL em 1972.
OLIVEIRA, F. Crítica à razão dualista: o ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2003.
12
Não vamos nos deter nos dados quantitativos que mostram a tragédia urbana mundial em especial nos
PCPs, nem na evidente piora do impacto que a globalização tem acarretado em um processo de
urbanização crescente no mundo. Ver a respeito abundantes dados quantitativos em Davis, 2006. Ver
ainda e os documentos de UN HABITAT, ECLAC, GLOBAL URBAN OBSERVATORY, citados na
bibliografia.

17
O mercado residencial privado, tal como se apresenta na AL, contribui para a carência
generalizada de moradias. Se nos PCCs o mercado privado atende 80% da população, em
média, sendo que 20% depende do subsídio público, nos PCPs o mercado privado tem
alcance restrito, é socialmente excludente e altamente especulativo. No Brasil, assim como
em muitos países da AL, estima-se que 30% apenas da população tenha acesso à moradia
no mercado privado. Nem mesmo aquilo que poderia ser classificado como classe média (5
a 10 salários mínimos) tem acesso à moradia por meio do mercado privado.
Por outro lado, o Estado tem práticas de investimento regressivo definidas por interesses
diversos. Queremos lembrar aqui três linhas de orientação do investimento público urbano:
a) aquela orientada pelos interesses do mercado imobiliário, cujo motor é a valorização
imobiliária, b) aquela definida pelo marketing urbano, cujo motor é a visibilidade, e c) aquela
definida pela relação clientelista que responde a interesses eleitorais. Essa última pode até
implicar em investimentos em áreas pobres, mas subvertem uma orientação de investimento
que poderia ser dada pelo planejamento urbano.
As alternativas de habitação, que incluem infra-estrutura e serviços urbanos, demandadas
pela maior parte da população não são encontráveis nem no mercado e nem nas políticas
públicas.
As áreas ambientalmente frágeis – beira de córregos, rios e reservatórios, encostas íngremes,
mangues, áreas alagáveis, fundos de vale -, que, por essa condição, merecem legislação
específica e não interessam ao mercado legal, são as que “sobram” para a moradia de grande
parte da população. As conseqüências dessas gigantescas invasões são muitas: poluição dos
recursos hídricos e dos mananciais, banalização de mortes por desmoramentos, enchentes,
epidemias, etc.
Essa dinâmica é cada vez mais insustentável devido ao nível de comprometimento
ambiental urbano, mas ela é cada vez mais acentuada a partir dos anos 40, pelo processo de
urbanização intenso, que fornece mão de obra barata para a industrialização.
A urbanização dispersa nas cidades dos PCPs, decorrente da expulsão da população pobre
para a periferia, são causas de outro conjunto de sérias conseqüências sociais e ambientais.
A urbanização dispersa que ocorre por exemplo, nos Estados Unidos e Canadá tem
conseqüências ambientalmente insustentáveis, mas não submete a população dos subúrbios,
que tem automóveis, ao sacrifício de vencer longas distâncias a pé como acontece nos
PCPs. Nestes, as viagens a pé para vencer longas distâncias têm aumentado
significativamente como evidenciou o Fórum das ONGs da área de transporte na
Conferência Habitat II (Istambul, 1996).
Ninguém desconhece o papel que a propriedade da terra ocupa no exercício histórico do
mando na AL, até mesmo em países que fizeram uma reforma agrária no começo do século
XX como foi o caso do México, ou como foi o caso do Peru e Bolívia mais tarde. Nesses
países o que se nota é um completo recuo nas reformas nacionalistas. Noutros países como
o Brasil, a industrialização tardia conviveu o tempo todo com a manutenção do latifúndio
improdutivo. A retenção de terras improdutivas é uma das características do
patrimonialismo e um dos maiores problemas do campo e das cidades latino-americanas,
pois dificulta a ocupação sustentável e justa do território.13
Marcuse destaca que a globalização afeta todas as cidades, em todo o mundo, sejam elas
ganhadoras, perdedoras ou outsiders. O espraiamento crescente de usos urbanos pelo
território desafia conceitos tradicionais sobre o que é urbano e o que é rural. Os
empreendimentos imobiliários são crescentemente mais fechados ou constituem espaços
crescentemente fragmentados (clusters, guetos e cidadelas ou citadels). Se a mobilidade do

13
Sobre a questão fundiária e imobiliária urbana na AL ver trabalhos e eventos promovidos pelo Lincoln
Institute of Land Policy em parceria com entidades latino-americanas. Site: http:www/lincolinst.edu.

18
capital aumentou a mobilidade entre as classes sociais declinou. Os excluídos, lembra
Marcuse são diferentes dos informais. As áreas de chegada na cidade foram esquecidas e
atualmente temos mais de uma geração convivendo com a falta de perspectivas de acesso
ao emprego e à previdência. Enfim aumenta a separação entre classes e a segmentação no
espaco (Marcuse, 1997).
A representação da cidade é uma ardilosa construção ideológica na qual parte dela, a
“cidade” da elite, toma o lugar do todo. Guy Debord lembra que a sociedade do espetáculo
é a sociedade do monólogo, verdadeira fábrica de alienação (Debord, 1992). Essa
constatação não é nova, mas ganha radicalidade sob a globalização. Lembremos que um ano
após a tragédia que fez submergir os bairros pobres de New Orleans eles ainda se
encontravam em ruínas enquanto que as área mais ricas já estavam recuperadas.
Se nas cidades dos países centrais os pobres têm pouca visibilidade nos PCPs eles são
praticamente invisíveis. A nova fragmentação convive com a manutenção da velha
segregação cujas conotações de gênero, raça e etnia têm se aprofundado. O melhor
exemplo disso talvez não seja latino-americano, embora a AL esteja plena desses exemplos,
mas sul-africanos.
A África do Sul é um país medianamente industrializado, onde a dominação imperialista
assumiu contornos raciais. Suas cidades impressionam pelo luxo a alto padrão dos bairros
exclusivamente residenciais unifamiliares, como é o caso de grande parte de Johanesburgo.
Joburg como a chama o marketing urbano, faz lembrar as cidades mais ricas do mundo, se
não fosse a carga de anúncios sobre segurança, cercas, cães, muros, grades, etc. Com
exceção do downtown onde há predominância de negros, para acessar um bairro negro
(Townships ou favelas) é preciso, freqüentemente, tomar as rodovias que deixam a “
cidade”14 (Villaça, 1995) .
Segundo Andrew Boraine (Cape Town City Partnership) a cidade Sul Africana do Cabo,
fascinante pela sua beleza, tem 2/3 de sua população em favelas e townships. Mas
excetuando as margens da rodovia que vai do aeroporto à “Cidade” do Cabo, esses 2/3 são
totalmente invisíveis para a maior parte da população branca. O que salta aos olhos para o
visitante é a beleza e o luxo da cidade praiana. Khayelitsha, a maior Township que fica nos
arredores da “Cidade” do Cabo, é acessível por rodovia ou ferrovia. Ela tem
aproximadamente 600.000 moradores segundo o guia, uma liderança local que acompanhou
nossa visita. Trata-se de uma ocupação horizontal extensiva de casas unifamiliares em
pequenos lotes, que conta com infra-estrutura urbana básica, parcos equipamentos públicos,
e poucas edificações destinadas a outros usos que não residencial. É um exemplo gigantesco
dos criticados conjuntos habitacionais fordistas que funcionam mais como depósitos de
gente ou de força de trabalho barata, e negam a “ festa urbana” demandada por Lefebvre
em sua clássica obra “O direito à cidade”15.
Após visitar Pretória adquiri a convicção de a separação física e também visual foi uma
estratégia do apartheid que permanece e permanecerá por muitas décadas16. Dadas as
grandes distâncias que separam os espaços de moradia dos negros em relação aos locais de
trabalho e a carência de transportes coletivos, os acostamentos das rodovias que deixam as

14
Alexander é a única grande favela que fica no interior da “cidade” de Johanesburgo, mas é praticamente
invisível de fora, pois está quase que totalmente inserida numa micro bacia hidrográfica. Townships é o
nome que se dá aos conjuntos habitacionais gigantescos construídos para a moradia dos negros na África
do Sul durante o apartheid. A Township mais conhecida é Soweto, palco principal da luta contra o
apartheid.
15
Ver a respeito informação sistematizada em HARRINSON e outros (2003) e Mabin (1995).
16
Após conviver com a separação territorial originária de norma jurídica – o apartheid dividiu os
africanos em 4 raças durante quase meio século - a África do Sul encontra dificuldade, no décimo ano do
governo democrático - para vencer a segregação agora reafirmada por outra “lei”: a do mercado
imobiliário.

19
“cidades” são ocupados cotidianamente por filas enormes de pessoas (negros) andando a pé
ao lado do congestionado tráfico de automóveis oriundos dos clusters dos brancos nos
subúrbios.
É evidente que a publicidade insistente e a mídia, de um modo geral, têm um papel especial
na construção da representação ideológica da cidade, destacando os espaços de distinção. É
evidente também que essa representação é um instrumento de poder - dar aparência de
“natural” e “geral” a um aspecto que é parcial e que nas cidades está associado aos
expedientes de valorização imobiliária. Nunca é demais lembrar que a proximidade de
pobres acarreta a desvalorização imobiliária ou fundiária.
A invisibilidade dessa “não cidade” tem decisiva influência na formação das consciências.
Os excluídos da cidade hegemônica são tomados como uma minoria e não como maioria da
população como de fato são em muitos PCPs. Repetindo Brecht: “A exceção virou regra e a
regra, exceção” mas isso é negado pelo que os olhos vêem17.
A ocupação ilegal de terras e edifícios parece estabelecer ou fundamentar a generalização da
ilegalidade nas relações sociais. Não há leis, cortes e nenhum tribunal para resolver disputas
entre vizinhos em favelas, ou nos chamados loteamentos clandestinos ou piratas. A ausência
do Estado, particularmente do aparato judicial e institucional, dá espaço para as novas “leis”
que são ditadas pelos “chefes locais”. Alguns anos depois, essa organização local cresce em
direção aos anéis regionais e internacionais do crime organizado. Nossa hipótese é que
nessas áreas ou regiões “esquecidas”, a ilegalidade urbana, e não somente a exclusão social,
contribue para o expressivo aumento da violência no mundo inteiro, e particularmente nos
PCPs18.
A crescente violência urbana é o sinalizador mais visível da cidade real ao extravasar os
espaços da pobreza e da segregação (evidentemente mais violentos) e buscar os espaços
distinguidores da riqueza. Mas ela é por demais evidente em nossas cidades para que nos
ocupemos dela aqui.

Planejamento urbano e globalização


Após um século e meio de vida, a matriz de planejamento urbano modernista, que orientou
o crescimento das cidades dos países centrais do mundo capitalista dá lugar às propostas
neo liberais, que acompanham as mudanças globais. O modelo modernista, definidor de
padrões holísticos de uso e ocupação do solo, apoiado na centralização e na racionalidade
do aparelho de Estado, foi aplicado a apenas uma parte das cidades nos PCPs resultando no
que podemos chamar de modernização incompleta.
Como convém a um país onde as leis são aplicadas de acordo com as circunstâncias, o
chamado Plano Diretor está desvinculado da gestão urbana. Discurso pleno de boas
intenções, mas distante da prática. Conceitos reificados, reafirmados em seminários
internacionais, ignoram a maioria da população. A habitação social, o transporte público, o
saneamento e a drenagem não têm o status de temas importantes (ou centrais, como deveria
ser) para tal urbanismo.
O resultado é: planejamento urbano para alguns, mercado para alguns, lei para alguns,
cidadania para alguns... Não se tratam de direitos universais mas de privilégios para poucos.
(CASTRO e SILVA, 1997)
O planejamento urbano modernista funcionalista, importante instrumento de dominação
ideológica contribuiu para a consolidação de sociedade desiguais ao ocultar a cidade real e
preservar condições para a formação de um mercado imobiliário especulativo e restrito a

17
Da peça teatral de Bertold Brecht “A exceção e a regra”.
18
Cf. website http://www.who.int.

20
uma minoria. Abundante aparato regulatório (leis de zoneamento, código de obras, código
visual, leis de parcelamento do solo inspirado em modelos estrangeiros) convive com a
radical flexibilidade da cidade ilegal, fornecendo o caráter da institucionalização fraturada,
mas dissimulada (Maricato 1996). Uma permanente tensão se estabelece entre a condição
legal e a condição ilegal e o que elas representam para as instituições encarregadas do
controle da ocupação do solo, financiamento habitacional, preservação ambiental, entre
outras. As oligarquias locais tiram proveito dessa aplicação discriminatória da lei utilizando-a
de forma ambígua e arbitrária. Inseguras por ocupar uma terra em condição ilegal as
comunidades se submetem à proteção de partidos, parlamentares ou governantes
alimentando a relação clientelista19.
Não é por falta de Planos Urbanísticos que as cidades periféricas apresentam problemas
graves. Mas porque seu crescimento se faz ao largo dos planos aprovados nas Câmaras
Municipais, seguindo interesses tradicionais que comandam a política local e grupos
específicos ligados ao governo de plantão. O “plano-discurso” cumpre um papel ideológico
(Villaça, 1995) e ajuda a encobrir o motor que comanda os investimentos urbanos.
O que poderia ser uma oportunidade de desenvolvimento de propostas endógenas mais
sensíveis à práxis urbana da cidade periférica – o fim do planejamento funcionalista
modernista – dá lugar a um outro movimento de dominação técnica, cultural, ideológica e
política da periferia do capitalismo: o Plano Estratégico.

Do “Consenso de Washington” ao “Plano Estratégico”.


As cidades têm um novo papel no mundo globalizado. Essa afirmação tem sido utilizada
para vários e diferentes propósitos. Uma prestigiada bibliografia, que levou seus autores a
uma situação quase hegemônica no mercado da consultoria internacional, esclarece que não
é qualquer cidade que atinge o status de “cidade global”. Alguns poucos centros onde os
destinos do mundo são definidos e que concentram certas características: sedes das grandes
corporações empresariais, centros de pesquisa e criação em informática e comunicação,
mão-de-obra qualificada, centros universitários, atividades culturais e artísticas de
vanguarda, serviços sofisticados, etc. Não faltam aqueles que oferecem, a preços não tão
módicos, fórmulas capazes de conduzir qualquer cidade ao podium restrito das fashionable
cidades globais.
Uma dessas propostas, que recebeu a denominação de Plano Estratégico e inspirou-se no
urbanismo da Barcelona dos jogos Olímpicos, foi comprada na América Latina como
grande salvadora das cidades. Apesar da roupagem democrática e participativa, as
propostas dos “planos estratégicos” combinaram-se perfeitamente ao ideário neoliberal que
orientou o “ajuste” das políticas econômicas nacionais por meio do Consenso de
Washington. Uma receita para os países e outra receita para as cidades se adequarem aos
novos tempos de reestruturação produtiva no mundo, ou mais exatamente, novos tempos
de ajuste da relação de subordinação às novas exigências do processo de acumulação
capitalista sob o império americano 20.

19
Durante o 1er Congreso Nacional de Suelo Urbano ocorrido na Cidade do México vários depoimentos
de pesquisadores e autoridades municipais repetiram essa constatação da dificuldade de implementação
dos Planos Diretores devido à falta de controle sobre o uso do solo. Ver UNAM (2005). Depoimentos
feitos no Congreso Nacional de Suelo Urbano comprovam essa relação freqüente entre os moradores
ilegais e políticos parlamentares ou governistas (UNAM, 2005).
20
Sobre a tendência do “Plano Estratégico” ver etimologia e a crítica em Vainer (2000).

21
Ao nível local, o “Plano Estratégico”, já mencionado, cumpre um mesmo papel de
desregular, privatizar, fragmentar, e dar ao mercado um espaço absoluto. Ele reforça a idéia
da cidade autônoma, a qual necessita instrumentar-se para competir com as demais na
disputa por investimentos, tornando-se uma “máquina urbana de produzir renda” (Arantes,
2000). A cidade como “ator político” deve agir corporativamente com esse fim (leia-se,
minimizando os conflitos internos) para sobreviver e vencer. Trata-se da “cidade
corporativa” ou da “cidade pátria” que cobra o esforço e o “consenso” de todos em torno
dessa visão abrangente de futuro21. Para tanto ela deve preparar-se, e apresentar alguns
serviços e equipamentos exigidos de todas as cidades globais, tais como hotéis cinco
estrelas, centros de convenções, pólos de pesquisa tecnológica, aeroportos internacionais,
mega-projetos culturais, etc., para vender-se com competência. Trata-se agora da “cidade
mercadoria” (deve vender-se) e da “cidade-empresa” (que deve ser gerenciada como uma
empresa privada competente) ( Vainer, 2000).
O uso da imagem e da cultura é central no Plano Estratégico. A arquitetura-espetáculo tem
se prestado a esse papel como mostra Otília Arantes (2000). Abandona-se a abordagem
holística modernista no planejamento por uma apropriação simbólica de novas localizações
(ou antigos espaços renovados) que, obviamente, está relacionada com a valorização
imobiliária.
Alguns fatores contribuíram para o sucesso de venda do “Plano Estratégico” até mesmo
entre municipalidades progressistas22. A participação democrática é extremamente
valorizada em suas diretrizes. Mas como demonstra Vainer, o convite à participação, nesse
modelo, implica em subordinar os interesses de muitos aos interesses hegemônicos:
unidade para salvar a cidade e levá-la a uma vitória sobre as demais que competem pelos
mesmos investimentos. O “Plano Estratégico” deixou de lado ainda os detalhes de um
urbanismo burocrático que, de fato, freqüentemente engessou as cidades dificultando
soluções diversificadas e específicas, que levassem em conta as potencialidades e as redes
comunitárias e sociais locais. Ao mesmo tempo, ele trouxe a perspectiva de um novo papel
político e econômico para as prefeituras e para o planejamento urbano. Nesse sentido, a
nova proposta parecia trazer uma saída para os governos municipais que não sabiam o que
fazer diante do aumento do desemprego e das demandas sociais, da guerra fiscal e da
diminuição dos recursos públicos federais.

Que Fazer?
Diante das limitações de ordem externa (globais) e de ordem interna (as forças do atraso)
pergunta-se qual a viabilidade do planejamento urbano comprometido com a democracia, a
sustentabilidade e a justiça social nos PCPs?
Que fazer com os bairros ilegais e violentos sobre os quais o Estado não tem controle?

21
Molotch já havia definido em 1976 o conceito de “máquina do crescimento” (que foi retomado uma
década depois por Logan, 1986) para explicar a construção de um pacto social que, minimizando os
conflitos locais, atua em defesa de cada cidade, no ambiente competitivo.
22
Dentre os vários municípios no Brasil que contrataram o “Plano Estratégico” no final dos anos 90 está a
municipalidade de Santo André, governada pelo Partido dos Trabalhadores, o que deu origem a um
debate acirrado sobre planejamento urbano. As três maiores cidades da Argentina depois de Buenos Aires
– Córdoba, Rosário e Bahía Blanca – contrataram Planos Estratégicos com os mesmos consultores
catalães.

22
Como enfrentar o mercado imobiliário altamente especulativo e excludente garantindo o
direito à cidade para todos? Como implementar a função social da propriedade contra os
interesses da valorização imobiliária?
Que fazer com as áreas ambientalmente frágeis, ocupadas pela moradia pobre? Quando
remover ou quando e como consolidar as ocupações ilegais? Quais são os padrões mínimos
de habitabilidade para a urbanização dessas ocupadas ilegalmente?
Como fazer, objetivamente, o controle do uso do solo (um dos setores mais corruptos das
gestões municipais na AL) protegendo áreas ambientalmente frágeis e ampliando o acesso à
moradia legal?
Como ampliar o saneamento e o transporte coletivo se grande parte da população não
pode pagar por ele? Qual a melhor matriz tecnológica a ser usada em cada caso?
Não nos esqueçamos que as respostas a esses problemas não são encontráveis na próxima
esquina e muito menos em qualquer grande prestigiosa universidade americana ou
européia. Isto não que dizer que não tenhamos o que aprender com os PCCs, mas é
importante lembrar que eles nunca enfrentaram problemas idênticos decorrentes de um
processo de urbanização avassalador (como no caso da América Latina) que convive, no
mesmo território nacional e freqüentemente, na mesma cidade, com realidades pós e pré
modernas. As soluções encontradas nos PCCs podem e devem ser aproveitadas já que
constituem investimentos em conhecimento acumulado e experiências que apresentam
lições a serem aprendidas mas também devem merecer, no mínimo, a mediação do
confronto em relação às realidades regionais e urbanas dos PCPs. O que pode ser uma
novidade é a troca entre experiências desenvolvidas no interior dos próprios PCPs.
Queremos lembrar aqui algumas condições que poderiam ajudar a construir um ambiente
mais adequado ao planejamento urbano dos PCPs, na sociedade global. Esses pontos não
podem ser tomados como uma receita. Assim como rejeita-se a transposição acrítica de
modelos deve-se ter prevenção contra as receitas. Trata-se de observar alguns pontos que
podem ser generalizáveis embora nunca suficientes.

1) Dar visibilidade à cidade real ou desconstruir a cidade virtual edificada pelo


marketing urbano e interesses globais
Para romper com a representacão ideológica e hegemônica da cidade construída pelos
interesses da extração exagerada da renda imobiliária e da segregação distinguidora é
preciso construir a consciência da cidade real com suas deficiências e injustiças. A eleição
de indicadores pode constituir um antídoto aos cenários da modernidade (ou pós
modernidade) que são restritos a algumas ilhas no oceano das carências.
Nessa busca de aumentar a percepção da realidade de uma determinada comunidade
espacialmente localizada, a eleição de indicadores é fundamental. Eles podem constituir
antídotos contra o marketing político que logra transformar o vício em virtude nas
campanhas eleitorais televisivas e também contra os cenários da modernidade ou pós
modernidade restritas a uma minoria.
A desconstrução das representações dominantes devem dar lugar a uma nova simbologia.
Indicadores sociais como a condição habitacional, o acesso ao saneamento e ao transporte,
a evolução das matrículas nas escolas, o número de leitos per capita nos hospitais, a
mortalidade infantil, o número de homicídios, a longevidade, etc., constituem parâmetros

23
para avaliação de políticas públicas e gestões governamentais, ao lado dos indefectíveis
indicadores econômicos cujo prestígio é evidenciado pelo quanto a mídia nacional e
internacional, dele se ocupa. A universidade tem aí, importante papel a cumprir ao lançar
luzes sobre a dimensão oculta e ilegal dos espaços urbanos a partir da leitura científica.

2) Criar um espaço de debate democrático: dar visibilidade aos conflitos


As sociedades periféricas têm tradição de ignorar, ou melhor, não reconhecer a existência
dos conflitos sociais. No lugar do debate democrático pratica-se a repressão ou a
desmoralização do interlocutor, quando o conflito envolve antagonismos de classe.
Não há a tradição do debate democrático, ao contrário, há uma tradição da versão única e
dominante sobre a realidade. As versões “do pensamento único”, conceito criado pelo
jornal francês “Le monde Diplomatique”, a propósito do consenso forçado, construído e
disseminado pelos neoliberais não é novidade nos PCPs.
Construir um espaço de participação social, que dê voz aos que nunca a tiveram, que faça
emergir os diferentes interesses sociais (para que a elite tome contato com algo que nunca
admitiu: o contraponto) é uma tarefa difícil, mas altamente transformadora.
Há um consenso mundial sobre as virtudes da participação nas gestões públicas e nos
planos urbanos. Agências internacionais como a ONU, a Habitat, e mesmo o Banco
Mundial, o BID, a USAID, a OCDE, todos são unânimes em defender a participação
social nos destinos de uma comunidade. Muito papel foi gasto para discorrer sobre o
“planejamento participativo”. Diante da frágil condição de cidadania e participação que
persiste nos PCPs constata-se que é preciso ir além dos discursos que não incorporam as
contradições, as controvérsias e os conflitos.

3) Reforma administrativa
Como já vimos, as estruturas administrativas urbanas são, na grande maioria dos casos,
arcaicas. Elas estão viciadas em procedimentos tradicionais baseados no privilégio e na
troca de favores que dividem o espaço com os lobbies perenes das empreiteiras,
empresários de transporte, produtores de medicamentos, fornecedores de todos os
insumos, etc.
Diante do intenso crescimento urbano, as máquinas administrativas foram se adequando,
mas nunca se estruturaram ou se modernizaram para enfrentar problemas decorrentes
desse crescimento. Muitas metrópoles brasileiras, como é o caso de São Paulo, uma das
maiores do mundo, carece de uma estrutura administrativa metropolitana. Convive com
sistemas paroquiais que são completamente despreparados para a dimensão dos desastres
decorrentes das deficiências de drenagem, esgotos, poluição do ar, congestionamento no
trânsito, controle do uso e da ocupação do solo, etc. Em geral, essa máquina pública
administra e mantém, com padrões satisfatórios, apenas uma parte das cidades.
Levar a presença do Estado aos bairros ilegais implica em reforma do arcabouço
institucional, incluindo a redefinição de atribuições operacionais na tentativa de romper
com a distância entre os gabinetes e a realidade.
A fragmentação da ação administrativa entre secretarias, departamentos, empresas e
autarquias é muito funcional para os interesses arcaicos. Contra a abordagem integrada dos
problemas econômicos, sociais, ambientais e urbanísticos, está a tradição de distribuir cada

24
setor da máquina administrativa a diferentes partidos ou personagens importantes no arco
das forças que elegeram o prefeito.
O planejamento urbano comprometido com a inclusão social exige abordagem integrada. A
urbanização de favelas pode resolver problemas de saneamento ambiental, atribuir
endereço legal a cada domicílio, melhorar as condições de moradia e de segurança urbana,
mas não melhora o nível de escolaridade ou de alfabetização, não organiza as mulheres para
melhorar o padrão de vida, nem ajuda na organização de cooperativas de trabalho, ou no
lazer dos jovens. “A exclusão é um todo” – econômica, cultural, educacional, social,
jurídica, ambiental, racial e não pode ser combatida de forma fragmentada 23.
Finalmente a modernização e a divulgação de cadastros, mapeamentos e informações sobre
cidade também constitui instrumentos fundamentais para uma apreensão mais rigorosa e
administração mais eficiente.

4) Capacitação de agentes para o planejamento da ação.


Assim como a disseminação do Consenso de Washington utilizou uma intensa campanha
de capacitação de quadros técnicos e políticos o planejamento democrático deve buscar a
formação de um conjunto de ativistas entre os funcionários públicos, profissionais,
políticos, empresários e lideranças sociais. O compromisso com a ação transformadora
implica em eliminar a distância entre planejamento e gestão com a finalidade de tirar os
planos das gavetas ou da instância de meros discursos. Em especial é importante incluir a
orientação e o controle dos investimentos no processo de planejamento. A cultura
discursiva ou juridicista como já foi notado, encobre uma prática que pode até mesmo
contrariar os planos. Freqüentemente os investimentos públicos induzem o crescimento
urbano para regiões e bairros considerados desaconselhados pelos Planos Diretores. Temos
planos sem obras e obras sem planos, configurando uma situação anárquica e subversiva
para o crescimento sustentável.
A tensão entre planos e os investimentos que os contrariam somente pode ser resolvida no
campo da prática política seja ela social, partidária, profissional ou acadêmica.

5) Reforma fundiária
Finalmente nunca é demais repetir o que é muito óbvio, mas pouco considerado na
sociedade global, que a ausência de controle público sobre a propriedade da terra contribui
para a carência habitacional, segregação territorial, aumento do custo da infra-estrutura e
serviços, além de impor maior sacrifício à população pobre excluída da cidade. A
“desordem” do mercado fundiário e imobiliário (que evidentemente pressupõe uma outra
“ordem”) impõem custos à administração pública que resultam em rendas diferenciais
apropriadas privadamente.
Segundo Fernanda Furtado o peso da arrecadação de IPTU nas cidades latino-americanas é
deprimido em comparação com as cidades americanas e européias. Há uma rejeição em
relação à tributação imobiliária que é vista como um direito do proprietário e não como um
ganho que lhe é alheio como poderíamos considerar na percepção de Henri George
(George, 1992). E essa é a posição de ricos e pobres segundo a autora. Outros argumentos

23
Charte européenne pour le droit à habiter et la lutte contre l’exclusion. Fondation pour le Progrès de
L’homme. Paris, 1993.

25
arrolados para explicar o desprestígio do IPTU como instrumento fiscal e de justiça social,
segundo a autora são: desconfiança em relação aos governantes na aplicação dos recursos,
desinteresse dos governantes e vereadores em aplicar uma medida considerada impopular,
tradição de repasse dos recursos federais aos municípios, papel estável da propriedade
imobiliária diante de um futuro sem previdência social (Furtado 1999).
Alguns bons exemplos de gestões urbanas que elaboraram e implementaram planos
democráticos, enfrentando conflitos e desafios na defesa de prioridades sociais e políticas
podem ser encontradas em muitas prefeituras dos PCPs 24. A partir dos anos 80 uma
geração de novos prefeitos emergiram após ou mesmo no bojo de lutas anti-ditatoriais que
aconteceram entre os anos de 1960 e 1990. Se elas são pouco conhecidas é devido ao
desprestígio das propostas endógenas aos PCPs e dominância massacrante da produção
técnica e acadêmica dos países centrais.
No Brasil chamam a atenção as experiências Belém, democratizando a participação com o
Congresso da Cidade e modernizando a administração com o cadastro multifinalitário
urbano, Belo Horizonte com as propostas de abastecimento doméstico que permitiram
baratear o preço da comida, Recife com a política de forte afirmação das raízes
multiculturais, em especial da música afro-brasileira além das ações de prevenção contra
riscos por desmoronamento nas áreas de moradias pobres, Santo André com a política de
saneamento e habitação, Diadema com a política contra a violência, Caxias do Sul com a
inserção até mesmo das crianças na discussão sobre o futuro da cidade, entre outras. Mas
foi o orçamento participativo de Porto Alegre que constituiu a mudança mais notável de
rumo nas administrações urbanas e no seu planejamento.
O Orçamento Participativo praticado durante quase duas décadas em Porto Alegre
constituiu uma mudança no padrão dos investimentos urbanos. Ele significou a ruptura
com o investimento público submetido aos interesses do mercado imobiliário, o que por
sua vez alimenta a segregação territorial e as desigualdades. Outros lobbies muito bem
organizados que indefectivelmente atuam junto às Câmaras Municipais encontram
dificuldades em agir. Os excluídos passam a sujeitos políticos que participam diretamente
das decisões e que podem, portanto, exercer algum controle sobre o Estado que se torna
mais próximo e mais transparente. Rompe-se também com o indefectível clientelismo
político, embora isso dependa do grau de democracia exercida no processo, pois o risco da
cooptação e do clientelismo está sempre presente. O orçamento participativo muda o lugar
e a natureza do planejamento urbano.
Outra experiência importante no Brasil ocorreu em âmbito federal: a criação do Ministério
das Cidades com o processo participativo das Conferências Nacionais das Cidades.
O Ministério das Cidades foi criado pelo presidente Luis Inácio Lula da Silva em 2003 para
ocupar um vazio institucional: a falta de uma Política Nacional de Desenvolvimento
Urbano- PNDU - que integrasse as políticas setoriais de planejamento urbano e política
fundiária, habitação, saneamento ambiental e transporte.
Em 2003 e 2005 o Ministério das Cidades promoveu as Conferências Nacionais das
Cidades visando definir diretrizes, princípios e prioridades da PNDU. Participaram da
organização das conferências 45 entidades nacionais representativas de movimentos sociais,

24
Diferentemente do enfoque pontual promovido pelas best practices, conceito disseminado em
premiações mundiais a partir da Conferencia da ONU Habitat II, essas iniciativas visam a universalização
de direitos.

26
ONGs, universidades, profissionais, empresários, sindicatos e centros de pesquisa. O
processo teve origem em reuniões promovidas pelos municípios, e numa segunda fase,
pelos governos estaduais. Um texto base foi preparado para alimentar os debates e orientar
as propostas. Participaram de cada uma das conferências mais de 3.000 municípios (num
universo de 5.600) e todos os Estados brasileiros (27) com exceção de um deles, em 2003.
Participaram dos Encontros Nacionais, na cidade de Brasília, mais de 2.000 mil delegados
eleitos nas conferências estaduais representando as instâncias de governo e da sociedade,
além do governo federal 25.
Outros exemplos bem sucedidos a serem lembrados nos PCPs, em especial na América
Latina, são os seguintes:
Montevidéu, capital do Uruguai, teve três gestões municipais da coligação política Frente
Ampla que visando a inclusão social e política promoveu o Orçamento Participativo e os
Planos Estratégicos de Desenvolvimento Zonais (1990/2004). Os Planos Zonais previram
a formulação de propostas com a participação social de forma descentralizada com a
finalidade de melhorar a qualidade de vida em regiões da cidade tradicionalmente
esquecidas26.
Rosário, na Argentina está na terceira gestão de prefeitos socialistas que, semelhante a
Montevidéu, priorizaram a inclusão social e política (1995/2007). Saúde e Habitação
mereceram atenção especial e o planejamento se desenvolveu por meio de processos
participativos27.
Ações de titulação de terra, melhoramento de áreas precárias e provisão de novas
habitações para população de baixa renda estão entre os maiores desafios para conter o
crescimento de favelas na América Latina. Mas em relação a esses desafios, essa nova
geração de prefeitos ainda tem muito conhecimento trocar. Em Bogotá, na Colômbia a
Operación Nuevo Usme é um bom exemplo de como tirar partido dos processos informais
de produção da cidade para oferecer moradia formal acessível à população de baixa renda.
Experiências semelhantes estão sendo desenvolvidas em Pereira, na Colômbia sob a
denominação de Macro Projeto de Pereira e também na Região Metropolitana de Porto
Alegre, Brasil com o nome de Urbanizador Social 28. Todas essas experiências desafiam o
crescente crescimento de favelas e de moradias precárias ilegais nas cidades latino-
americanas. O seu desenvolvimento pressupõe um forte conhecimento empírico e
engajamento com os processos locais de produção da moradia. O empreendedor informal
e a população organizada são importantes agentes que atuam em parceria com as
prefeituras municipais. Ao invés de atuarem apenas burocraticamente à distância fazendo as
exigências formais que dificultam a legalidade do empreendimento as prefeituras assumem
uma postura nova e ativa de regulação e engajamento. A gestão urbana mostra-se

25
O Ministério das Cidades propôs novas políticas setoriais além promover duas campanhas nacionais: a
de Planos Diretores Participativos e a de Regularização Fundiária, ambas propostas previstas pela lei
federal Estatuto da Cidade aprovada em 2001.
26
Ver a respeito LEITÃO, Karina. Gestão participativa e qualificação urbana: Belém e Montevidéu. São
Paulo, 2003 (dissertação de mestrado apresentada ao PROLAM- USP).
27
Ver a respeito RODRIGUES. Roberta. Inovações e limites da Política Urbana na América Latina:
teoria e prática recente de Governos Locais Democráticos. Belém (Pará – Brasil) e Rosário (Santa Fé -
Argentina) como referências. São Paulo, 2004 (Projeto de pesquisa de doutorado apresentado ao
PROLAM-USP).
28
A Colômbia tem desde 1997 uma Lei Federal de Terras , n. 388, que é bastante avançada. No Brasil o
avançado Estatuto da Cidade, lei federal 10.257, foi aprovado em 2001.

27
fundamental para o sucesso dessas experiências que se dão em ambientes que
tradicionalmente os planos, os discursos, os projetos são divulgados com alarde mas
raramente implementados29.
A lista poderia ser longa, mas conhecê-la exige muito empenho, pois não faz parte dos best
sellers do urbanismo. Essas e outras experiências bem sucedidas de planejamento e gestão
comprometidos com a ação e a participação social não são suficientemente conhecidas e
festejadas porque há pouca troca de informações entre os PCPs, tendo em vista o prestígio
que gozam os modelos oriundos dos países centrais, como já foi destacado aqui.
O estreitamento de relações entre profissionais, acadêmicos e lideranças sociais dos PCPs e
a troca mais freqüente de experiências mais adequadas à sua realidade poderia funcionar
como uma alavanca para o desenvolvimento urbano. Não estamos aqui fazendo um corte
pela nacionalidade, o que seria um preconceito odioso, mas pelo caráter endógeno do foco
orientador das formulações e ações.
Em outras palavras trata-se de colocar a periferia no centro: nos planos, nos projetos e nas
ações.

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FURTADO, C. Formação Econômica do Brasil. São Paulo, Cia. Editora Nacional, 1995.

29
Ver a respeito livro no prelo, a ser lançado pelo Lincoln Institute of Land Policy, organizado por
Martim Smolka e Adriana de A. Laranjeira.

28
FURTADO, F. Recuperação de mais valias fundiárias urbanas na América latina: debilidade na
implementação, ambigüidades na interpretação. São Paulo, FAUUSP, 1999 (Tese de Doutorado)
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29
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the new millennium? New York, 2003.
UN HABITAT. The challenge of slums. Global Report on Human Settlements, 2003

30
Posfácio de Ermínia Maricato ao livro Planeta Favela

O livro Planeta de favelas oferece contribuição ímpar para desvendar a desconhecida e


gigantesca escala de favelização e de empobrecimento das cidades do chamado Terceiro
Mundo. Considerando-se que a população das favelas cresce na base de 25 milhões de
pessoas a cada ano ─ conforme lembra Mike Davis ao citar os dados da UN-Habitat ─ e
que as mais altas taxas de urbanização são observadas nos países pobres, que eram, ou
ainda são, predominantemente rurais, esse processo diz respeito à maioria da população do
planeta. Contribuições como a deste livro tornam cada vez mais difícil ignorar a dimensão
do fato e tentar dar a ele tratamento pontual, com enfoque em best practices (boas práticas)
como tem tentado o establishment das agências internacionais de desenvolvimento. Davis
revela que, ao contrário de aliviar o problema, essas instituições, especialmente o Fundo
Monetário Internacional (FMI), que impôs os Planos de Ajuste Estrutural (PAEs) aos
países do Terceiro Mundo, foram cruciais na explosão da pobreza responsável pelo
desemprego de 1 bilhão de pessoas, ou um terço da mão-de-obra dos países do Sul no final
dos anos 1990, segundo dados da CIA, citados pelo autor.
Em vez das cidades de ferro e vidro, sonhadas pelos arquitetos, o mundo está, na verdade,
sendo dominado pelas favelas. Os números que abundam ao longo da obra não são novos,
embora nunca tenham sido apresentados juntos e com tal ênfase. A tendência ao
empobrecimento urbano vem sendo alertada por numerosos autores e instituições, muitos
dos quais presentes na extensa bibliografia final.
O desastre promovido pela globalização neoliberal, com o aprofundamento da
desigualdade, a partir do início dos anos 1980, já foi bastante diagnosticado também no
Brasil1. Mas seu reconhecimento pelas instituições internacionais e pelas sociedades locais
(e isso se dá em todos os países, desenvolvidos ou não) esbarra na cortina intransponível de
uma hegemonia criada pelo mercado financeiro que subordina mentes e bolsos nas
universidades, na mídia, entre as lideranças profissionais e empresariais, mas vale citar, com
especial ênfase, pelos ativistas neoliberais que trabalham em órgãos de governo (cujos
exemplos mais radicais estão nos Bancos Centrais e nos Ministérios e Secretarias de
Fazenda) e que seguem, às cegas, a cartilha do Consenso de Washington2.
Por que reconhecer que este livro é forte instrumento para derrubar essa barreira e iluminar
os problemas urbanos e grande parte de suas causas? O primeiro motivo está na
abrangência ampla do diagnóstico. O autor tenta mostrar que há tendências, no processo
de urbanização recente, que são universais, apesar de se tratar de diferentes países. Em um
estilo direto e, por vezes, chocante, Davis valoriza o conhecimento empírico e é pouco
dado a longas abstrações ou desenvolvimento conceitual, o que revela sua origem proletária
e de militante de esquerda. Ele utiliza, por exemplo, o conceito de “países do Terceiro

1
Em 1983, Celso Furtado já alertava para o rumo da política econômica em seu livro Não à recessão e ao
desemprego (São Paulo, Paz e Terra). Ele foi seguido por outros pioneiros que malharam, durante anos,
em ferro frio: Bernardo Kucinski, Maria da Conceição Tavares, José Luis Fiori, Francisco de Oliveira,
Paulo Nogueira Batista, Raimundo Pereira, entre muitos outros.
2
O Consenso de Washington constituiu a consolidação e a sistematização de políticas esparsas que
vinham sendo implementadas por agências internacionais, pelo FMI, pelo Banco Internacional para a
Reconstrução e o Desenvolvimento (Bird) ou mesmo pelo governo norte-americano na América Latina. O
receituário pode ser encontrado em um documento escrito por John Williamson, Latin American
adjustment: how much has happened?(Washington, Institute for International Economics, 1990),
apresentado em reunião realizada em 1989, em Washington. Alguns anos depois, o Consenso de
Washington mereceu uma complementação para orientar politicamente seu exército de ativistas. Ver a
respeito em J. Williamson, The political economy of policy reform (Washington, Institute for International
Economics, 1994). A Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) divulgou, em 1990, um
documento intitulado Livre para crescer: proposta para um Brasil moderno, que contém uma agenda
baseada na proposta do Consenso de Washington

31
Mundo” ou “países do hemisfério sul” indistintamente (mas não aceita, evidentemente, os
conceitos de países “em desenvolvimento” nem “emergentes”, como quer a nomenclatura
do mainstream). Essa discussão não lhe interessa, pois não contribui com seus objetivos de
escancarar a realidade. Seu trabalho tem finalidade militante, e o estilo contraria a abstração
e o distanciamento usuais na maior parte dos trabalhos acadêmicos. Algumas adjetivações
são bem-humoradas e eficazes para abreviar a compreensão de sua crítica cortante: o FMI é
chamado de “cão de guarda financeiro do Terceiro Mundo”. Em outra passagem é
chamado de “mau policial” para estabelecer relação com seu parceiro Banco Mundial, que
faz o papel de “policial bonzinho”. John Turner é referido como “o amigo dos pobres”,
devido aos elogios que lhes dirige por sua capacidade criativa e inteligência na construção
de bairros informais. Já De Soto, criticado de forma contundente, é referido como “o John
Turner dos anos 1990” ou “o messias do capitalismo popular”3. A sólida fundamentação
em dados empíricos somada a seu estilo irreverente é o que dá força ao trabalho.
Evidentemente, o prestígio do autor deve ser acrescentado a essa lista como um dos fortes
motivos que contribuem para dar visibilidade a um tema que teima em escapar do foco.
Seus trabalhos têm tido forte impacto na compreensão da realidade urbana e do motor que
a produz, além de ter influência também na produção acadêmica.
Como já foi mencionado, uma sucessão de dados numéricos e de informações qualitativas
flui como uma torrente a tirar o fôlego do leitor. O tema do crescimento e do
empobrecimento das cidades do Terceiro Mundo é cercado e abordado por meio de
inúmeras entradas. A formação de “superurbanizações” e “megacidades” ─ que podem
merecer a alcunha de “leviatã”, como a região que engloba São Paulo, Rio de Janeiro e
Campinas abre uma longa lista de temas como, por exemplo, o crescimento de favelas
provocado por guerras, expulsões catástrofes, recessão econômica (como no caso da
América Latina), alto crescimento econômico e urbano (como nos casos da Índia e da
China), segregação, racismo, tragédias decorrentes de desmoronamentos, enchentes,
incêndios, terremotos (que vitimam sobretudo os pobres); áreas contaminadas, explosões
tóxicas; os males do transporte rodoviarista como a poluição do ar e os acidentes de
trânsito, entre outros.
A “crise sanitária” ─ tratada na seção “Viver na merda” ─ mereceu uma descrição
dramática ilustrada por dados sobre centenas ou milhares de habitantes de favelas que
disputam apenas uma latrina em algumas cidades da África ou da Ásia. Aborda-se ainda o
impacto da carência de água, ou o altíssimo preço que os pobres pagam por ela. Davis
lembra que, mesmo em circunstâncias trágicas como as mencionadas, a orientação
implementada pelo FMI e pelo Banco Mundial foi a da privatização do saneamento. A
água, assim como a “defecação humana”, foi transformada em negócio global, inclusive em
cidades nas quais a população mal tem recursos sequer para comer.
Nesse capítulo, denominado “Ecologia de favela”, Davis contribui para a tese da
impossibilidade de se separar a sustentabilidade ambiental da condição de pobreza em
massa. Essa controvérsia emerge em todos os debates sobre as cidades ou sobre a
sustentabilidade ambiental; esteve presente nas últimas reuniões da Comissão do
Desenvolvimento Sustentável (CDS) da ONU, especialmente após a Declaração de
Joanesburgo, em setembro de 2002, que buscou juntar as Metas de Desenvolvimento do
Milênio com as resoluções anteriores sobre o desenvolvimento sustentável. No Brasil, essa

3
As pesquisas de Julio Calderón Cockburn já demonstraram a falência das propostas de Hernando de
Soto no Peru, mas as agências internacionais fingem desconhecer esses resultados empíricos e continuam
a apregoar a fórmula mágica de criar dinheiro com a regularização das moradias informais. Ver a respeito
J. Cockburn, Official registration (formalization) of property in Peru (1996-2000) (2001). Disponível em:
<http://www.ucl.ac.uk/dpu-projects>.

32
controvérsia se coloca cada vez mais contundente e presente entre urbanistas, movimentos
sociais de moradia e ambientalistas4.
A referência ao tema da terra mostra que o impacto da valorização imobiliária na promoção
da escassez de moradias e do enriquecimento de poucos tem contado com a ajuda dos
Estados, especialmente em contextos de hiperinflação e destruição de economias
submetidas aos PAEs. O recrudescimento do patrimonialismo terceiro-mundista, sob as
forças globais, é uma boa tese a ser desenvolvida. Aliás, a leitura do livro suscita muita
inspiração para novas pesquisas. O negócio da terra é alimentado também pela busca da
segurança e do investimento em condomínios fechados que repetem no mundo todo os
modelos norte-americanos. Dentre as menções que o Brasil merece no livro está a de
Alphaville: “a mais famosa cidade periférica cercada e americanizada do Brasil”.
Davis reclama da falta de periodização dos assentamentos informais ou do “padrão global
de povoamento informal” e tenta formulá-la sinteticamente. Embora reconheça ser
grosseiro o resultado, devido “às histórias nacionais e especificidades urbanas”, não deixa
de ser interessante ao evidenciar: a) um ritmo generalizado de crescimento urbano mais
lento até o final da primeira metade do século XX, em grande parte do mundo sob controle
imperialista ou ditatorial, b) um ritmo mais acelerado a partir da segunda metade do mesmo
século com Estados nacionais que esboçaram tentativas de atender à demanda social de
moradias, e, finalmente, c) a fase dos Estados minimalistas e dos ajustes fiscais de meados
de 1970 ao início dos anos 1980.
O “big bang da pobreza” tem suas raízes quando, entre 1974 e 1975, o FMI e o Banco
Mundial reorientam as políticas econômicas do Terceiro Mundo, abalado pelos preços do
petróleo. A orientação aos países devedores para abandonar suas estratégias de
desenvolvimento foram claramente explicitadas no Plano Backer, em 1985. Davis classifica
o impacto dessa direção na América Latina como “maior e mais longo do que a Grande
Depressão” e, considerando-se a realidade das décadas que ficaram conhecidas como
décadas perdidas, ele sem dúvida não está exagerando.
O Brasil, por exemplo, cresceu 7% ao ano de 1940 a 1970. Na década de 1980, cresceu
1,3%, e na década de 1990, 2,1%, segundo o IBGE. Ou seja, o crescimento econômico do
país, nas duas últimas décadas do século XX, não conseguiu incorporar nem mesmo os
ingressantes da População Economicamente Ativa (PEA) no mercado de trabalho, o que
acarretou conseqüências dramáticas para a precarização do trabalho e, conseqüentemente,
também para a crise urbana5.
Interessante observar, como fez Ha-Joon Chang, analisando a história do crescimento
econômico de vários países do mundo, no livro Chutando a escada, que os países do Terceiro
Mundo cresceram mais nas décadas 1960-1980, quando não estavam sob a orientação das
políticas neoliberais, de que nas décadas 1980-1999, quando obedeciam à orientação das
“boas políticas” do FMI6.
O Consenso de Washington serviu de cartilha para o trabalho de um verdadeiro exército de
ativistas, a que já nos referimos. Se havia sentido na palavra de ordem “Fora FMI”,
utilizada na década de 1980, ele havia desaparecido em meados dos anos 1990 já que a
receita neoliberal fora inoculada no Estado e, em parte, da sociedade brasileira 7. Tudo o

4
Essa controvérsia, presente em várias das reuniões do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama)
em 2006, revela amplo desconhecimento da realidade urbana
5
Ver a respeito J. Mattoso, O Brasil desempregado (São Paulo, Fundação Perseu Abramo, 1999).
6
Ha-Joon Chang, Chutando a escada (São Paulo, Unesp, 2003).
7
Em 2005, foi o próprio ministro Antonio Palocci Filho que, ao pagar as dívidas brasileiras com o Fundo,
desligou o Brasil da obrigatoriedade de seguir suas determinações. Nada mudou, no entanto, pois alguns
dos ativistas que dominam parte do Ministério da Fazenda, apoiados pelo ministro, mostraram-se menos
flexíveis do que o FMI e fizeram superávits maiores do que aquele acordado com o Fundo, ou seja,
4,25%.

33
que contraria o modelo é referido como “populista”, “atrasado”, “nacionalista”,
“ultrapassado” mas, especialmente, “ideológico”. Uma bem-sucedida estratégia de capacity
building penetrou profundamente nas instituições visando disseminar o pensamento único
que não admite controvérsias. Ou seja, trata-se de um processo que, esse sim, é acima de
tudo ideológico. Para ele, o novo papel do Estado é de “capacitador do mercado” ou de
“liberar as barreiras que restringem a produtividade dos agentes econômicos”, usando as
palavras de Davis.
Tanto o FMI quanto muitas das agências internacionais de desenvolvimento impõem
condições para emprestar dinheiro (como se fosse uma doação), determinando a
reestruturação de órgãos de governos municipais, estaduais e federais e orientando suas
práticas. Os empréstimos pagam consultores internacionais que, freqüentemente, pouco
conhecem da realidade local, mas conhecem muito bem os idênticos modelos que são
impostos a diferentes países, de diferentes culturas, em diferentes cidades. Esses
empréstimos sobrecarregam a dívida, que é o garrote onde emperra o investimento em
políticas públicas, já que constituem gastos ─ e, de acordo, com os PAEs, devem ser
contidos. Até mesmo o investimento da Petrobras em torres de extração de petróleo
considera-se gasto e concorre com os demais gastos públicos no “espaço” estreito da
realização orçamentária permitida pela política de ajuste fiscal. As forças da globalização
engendraram a reestruturação dos Estados nacionais, com base nas propostas já conhecidas
de livre mercado (o que permitiu a destruição de diversos parques industriais nacionais),
flexibilização das importações, redução dos gastos públicos, privatização dos serviços
públicos, desregulamentação agrícola, desregulamentação do mercado, entre outras
condições. Incapazes de se adaptar às incertezas e aos prazos do debate parlamentar,
próprio da democracia burguesa, as forças globais criaram instituições, que são nacionais,
mais poderosas que os próprios governos, o próprio Congresso e as Cortes Supremas.
Não se trata apenas da diminuição dos Estados nacionais, mas sim de mudar seu perfil.
Quando se trata de matéria de interesse do sistema financeiro internacional e de cumprir
regras impostas pelo FMI, o Estado nacional é forte. Ele é mínimo quando se refere às
políticas sociais e especialmente de subsídios, palavra maldita que foi varrida do
vocabulário e substituída pelo cost recovery. A taxação do patrimônio ou de ganhos
financeiros não faz parte da receita, lembra Davis.
O impacto das políticas neoliberais deu-se de forma diferente nos países desenvolvidos e
não desenvolvidos. Nestes últimos, esse verdadeiro tsunami (para usar o estilo de Davis)
recai sobre uma sociedade que não conheceu o pleno emprego nem a previdência social
universal, onde a informalidade é estrutural, a segregação territorial, histórica, onde o poder
passa por relações pessoais de favor e de troca, onde a lei se aplica conforme as
circunstâncias.
As cidades dos países desenvolvidos têm revelado as mazelas de mais de vinte anos sem
Welfare State, como evidenciaram as revoltas de Paris em 2005. Os livros anteriores de
Mike Davis alertam sobre a irresponsável voracidade e total desrespeito com que parte da
população e os recursos naturais são tratados pelos mercados. Em especial o autor se
dedica à crítica ao mercado imobiliário, cuja sanha avassaladora de ocupação do território
dos Estados Unidos é aterrorizante para qualquer ser humano preocupado com o futuro da
Terra8. No entanto, nada se compara ao impacto sofrido pela maior parte da população e

8
Ver os trabalhos anteriores de Davis: Cidade de quartzo (São Paulo, Página Aberta, 1993); Ecology of
fear (Nova York, Metropolitan, 1998); Dead cities and other tales (Nova York, New Press, 2002); O
monstro bate à nossa porta: a ameaça global da gripe aviária (Rio de Janeiro, Record, 2006).

34
pelo meio ambiente dos países periféricos, e nestes as cidades mostram-se como locus
privilegiado para a leitura9.
Quem acompanha a vida de qualquer grande cidade no Brasil é testemunha do crescimento
explosivo das periferias abandonadas ou da favelização a partir do início dos anos 1980.
Não que o ovo da serpente não estivesse lá antes disso. As favelas do Rio de Janeiro e de
Recife surgiram no final do século XIX e começo do século XX, quando uma parte da
mão-de-obra escrava libertada ficou sem alternativa de moradia (o restante passou a viver
de favor). Era freqüente ainda que os brancos pobres lançassem mão do escambo para se
prover de moradia. Décadas se passaram, e nem o trabalho passou à condição absoluta e
geral de mercadoria, nem a moradia, como acontecera no capitalismo central. Não se pode
responsabilizar a globalização e as políticas neoliberais pela segregação e pela pobreza que
são estruturais em um país cuja esfera social é profundamente desigual. Mas a velocidade e
a intensidade do crescimento da pobreza urbana mudaram. O IBGE mostra que enquanto
a população brasileira cresceu a 1,9% ao ano entre 1980 e 1991, e 1,6 % entre 1991 e 2000,
a população favelada cresceu respectivamente 7,65% e 4,18%. Em 1970, a cidade de São
Paulo tinha apenas 1,2% da população morando em favelas, segundo dados da Secretaria
de Habitação e Desenvolvimento Urbano da Prefeitura Municipal (Sehab). Em 2005, essa
proporção sobe para 11% segundo a mesma fonte.
Apesar de o BNH, durante sua existência, de 1964 a 1985, não ter priorizado a habitação
para baixa renda, os recursos investidos ajudaram a minorar a carência. Na verdade, os
investimentos declinaram fortemente a partir de 1982; nas décadas seguintes, entretanto, a
restrição aos financiamentos para habitação e saneamento por parte do governo federal,
que em alguns anos do período chegou a quase desaparecer, também contribuiu para o
acentuado crescimento das favelas.
Portanto, não foram apenas a taxa de urbanização e o crescimento demográfico que
alimentaram a tragédia urbana brasileira. A taxa de urbanização foi, sem dúvida, muito
grande em todo o século XX. Segundo o IBGE, saímos de uma condição de contar com
10% da população em cidades, em 1900, para 81% em 2000. A concentração urbana foi
uma das características desse crescimento: 32,9% da população urbana moram em onze
metrópoles, onde estão também 82,1% dos domicílios localizados em favelas do total
nacional, o que revela o caráter concentrador da pobreza urbana nas metrópoles. Mas é
preciso perceber que, a partir de 1980, as metrópoles passam a crescer menos do que as
cidades de porte médio (população entre 100 mil e 500 mil habitantes) e o padrão de
urbanização muda também no que se refere aos fluxos migratórios no território nacional.
O crescimento urbano em direção ao norte e centro-oeste é fortemente determinado pelas
forças da globalização, já que é impulsionado de forma contundente pelo agronegócio,
além da exploração de minérios e de madeira.
Nem tudo é negatividade nesse processo de urbanização. Sua contribuição foi decisiva para
a espetacular queda do número de filhos por mulher em idade fértil entre 1940 e 2000: de
44,4% para 23,8%, o que representa uma queda de 4,4 filhos em média por mulher, em
1940, para 2,4, em 2000. A mortalidade infantil diminuiu de 150 crianças que completavam
um ano de idade dentre mil crianças nascidas vivas em 1940 para 29,6 em 2000. Outro
dado positivo é o aumento da expectativa de vida que passou de 40,7 anos em 1940 para
70,5 anos em 2000, sempre segundo o IBGE.
Entretanto, o aumento do desemprego e da pobreza urbana a partir dos anos 1980
contribuiu para mudar a imagem das cidades no Brasil: de centros de modernização que se
destinavam a superar o atraso e a violência localizados no campo, passaram a representar

9
Ver a respeito o trabalho de E. Maricato, “Globalization and urban policy in the periphery of
capitalism”, apresentado na conferência de abertura do Congresso Mundial de Escolas de Planejamento
(Cidade do México, UNAM, 2006). Versão em português disponível em: <www.fau.usp.br/labhab>.

35
crianças abandonadas, epidemias, enchentes, desmoronamentos, tráfego infernal, poluição
do ar, poluição dos rios, favelas e...violência. Há trinta anos, o que não constitui período
muito longo, não se temia a violência urbana; as cidades eram relativamente pacíficas. Para
quem viveu apenas na cidade formal e evitou perceber o que estava acontecendo, a
violência serviu de alerta, como a ponta do gigantesco iceberg. As taxas de homicídio no
Brasil, segundo o IBGE, passaram de 17,2 mortos para cada 100 mil habitantes, em 1980,
para 35,9 mortos em 1989, e, finalmente, para 48,5 em 1999.
A situação dos transportes públicos revela o sacrifício a que a população da periferia está
submetida, especialmente nas metrópoles. O aumento do custo das tarifas está conduzindo
parte da população para a imobilidade, e a falta de regulação do setor à crescente
informalidade ou ilegalidade na oferta do serviço. Segundo dados do Ministério das
Cidades em associação da ANTP – Associação Nacional dos Transportes Públicos, os
usuários de transporte coletivo vêm decrescendo, e a mobilidade da população, diminuindo
apesar de parecer impossível, pois 44% das viagens nas regiões metropolitanas brasileiras
são feitas a pé e apenas 29% em transporte coletivo, enquanto 9% apenas são feitas por
automóvel, apesar desse tipo de transporte constituir a matriz hegemônica da mobilidade
urbana municipal. Não é necessário ser especialista para concluir que a população da
periferia, e isso atinge especialmente os jovens desempregados, vive um exílio forçado na
“não-cidade”.
O recuo nos investimentos em políticas públicas pode ser constatado em cada poro do
cotidiano das cidades; exemplo disso é a irresponsabilidade com que a política prisional ou
de menores infratores foi tratada em ambiente de altas taxas de desemprego e desigualdade,
fomentando o crime organizado, única alternativa de renda para muitos jovens de vida
curta.
As propostas que apostavam na “produtividade urbana”, “competitividade entre as
cidades”, na “cidade corporativa”, na “cidade pátria”, na “cidade espetáculo” ou na “cidade
global” acabaram fazendo sucesso entre alguns prefeitos angustiados (os mais honestos) e
outros nem tanto, com o crescimento da pobreza, desemprego, queda de arrecadação e
regras financeiras draconianas. O marketing urbano e o modelo do “plano estratégico”
fizeram parte das pirotecnias utilizadas para reverter um processo de deterioração urbana10.
Entretanto, o rumo adotado começou a fazer água com o crescimento da pobreza, e as
críticas começaram a vencer a barreira do “pensamento único”. O crescimento previsto na
receita aplicada não aconteceu.
A correção de rota do Consenso de Washington foi apontar a necessidade de se encarar a
esfera da política. Governance, participation, empowerment of communities, poverty alliviation
passaram a ser as palavras de ordem junto com a descentralization, o que significa maior
poder para as cidades ou municípios no contexto do suposto enfraquecimento do Estado
nação. Trata-se da defesa de uma democracia local e fragmentada, combinada a políticas
sociais focadas. Durante a Segunda Conferência Internacional do Habitat ocorrida em
Istambul, em 1996, e no último Fórum Urbano Mundial ocorrido em 2006, essas palavras
de ordem faziam parte de entusiasmados discursos das agências internacionais de
desenvolvimento. A defesa da autonomia dos municípios entusiasma prefeitos e também as
ONGs e os movimentos sociais. A descentralização da gestão urbana é de fato uma
necessidade diante das especificidades geográficas, históricas, econômicas, sociais e
culturais de cada cidade, mas ignorar a macroeconomia e a esfera nacional é uma armadilha.
Nada mais interessante para as agências internacionais: contratos de financiamentos aos
municípios sem a intermediação dos governos centrais. Nessas condições a participação é
festejada: para debater o bairro e a cidade, não para debater a política econômica que na

10
Para uma crítica às propostas neoliberais para as cidades ver O. B. F. Arantes, C. Vainer e E. Maricato,
A cidade do pensamento único( Petrópolis, Vozes, 2000).

36
verdade determina grande parte dos problemas vividos pelas cidades. A comunidade tem o
poder no fragmento.
Durante os quatro anos do governo Lula, pela primeira vez o governo federal reservou R$
8,4 bilhões para seu maior programa social, o Bolsa Família. Pela primeira vez, depois de 25
anos, o orçamento do FGTS para o financiamento habitacional volta a ser significativo
tendo R$ 10,0 bilhões para aplicar em moradia11. E pela primeira vez talvez em toda a
história do FGTS, 80% desse valor está sendo dirigido para a população de rendas entre 0 e
5 salários mínimos. Ainda pela primeira vez em vinte anos, recursos da ordem de R$10,6 bi
estão sendo aplicados, entre 2003 e 2006, para financiar ou subsidiar o saneamento 12. Esses
investimentos tiveram o efeito de retirar o Brasil da lanterna da lista dos países mais
desiguais do mundo. De penúltimo lugar, o Brasil melhorou sua posição e passou a ser
“apenas”o oitavo pior do mundo em desigualdade social. Além disso, 6 milhões de pessoas
passaram das faixas de renda D e E para C. Certamente, o aumento real de 14% do salário
mínimo em 2005 combinado a uma estabilidade e até rebaixamento do preço da cesta
básica contribuiu para essa mudança relativamente rápida.
Por outro lado, em 2006, de acordo com a lei orçamentária aprovada no Congresso
Nacional, o Brasil pagará R$ 179, 7 bilhões pelos juros da dívida pública, configurando uma
gigantesca transferência de recursos públicos para o sistema financeiro. A taxa de juros,
uma das maiores do mundo, é decidida pelos diretores e pelo presidente do Banco Central
do Brasil. Nenhum deles foi eleito por sufrágio universal e a maior parte deles é totalmente
desconhecida pela população brasileira. Suas reuniões são secretas, e as atas
freqüentemente indecifráveis para economistas experientes. O FMI orienta os países a
aprovar a independência do Banco Central.
Considerando-se que parcos recursos tiveram impacto tão significativo na sociedade, é
inevitável pensar nas conseqüências, se uma maior parte dessa significativa quantia fosse
aplicada em políticas sociais ou infra-estrutura para o desenvolvimento. É inevitável ainda
pensar em quantas vidas foram destruídas, quantos sonhos desfeitos, potencialidades
desperdiçadas, por décadas de desemprego.
Em algum momento, em meados dos anos 1990, a professora Maria da Conceição Tavares,
ao participar de uma banca de doutorado na Unicamp, alimentou a idéia de que, para o
capital, na era da globalização, havia gente sobrando, ou melhor, que parte da força de
trabalho, em vez de exército industrial de reserva, seria “óleo queimado”. A lembrança
desse debate veio a propósito de expressões usadas por Mike Davis que vão nessa linha:
“fardo humano”, “humanidade excedente”, “massa permanentemente supérflua”. Até
mesmo o acesso a essa terra gratuita, situada em meio adverso, obtida por meio das
invasões, deverá acabar. Essa é, segundo Davis, a verdadeira crise do capitalismo, e nada,
segundo o autor, parece apontar para a mudança desse quadro. O livro se conclui sem
deixar resquício de esperança, sobretudo ao chamar a atenção para a criminalização das
favelas, agora no foco dos estrategistas militares norte-americanos.
Essa falta de saída ou a ausência de qualquer proposta tem gerado críticas ao trabalho de
Davis. Não é necessário que um texto que contenha denúncias apresente propostas. Como
já enfatizamos, o pensamento crítico é indispensável para desmontar a falsa representação
da realidade, que serve a determinados interesses. O texto, entretanto, pode alimentar uma
atitude contrária àquela que pretende Davis e promover o medo em relação às cidades e às

11
Uma resolução do Conselho Monetário Nacional (CMN) forçou a transferência para o investimento no
setor produtivo imobiliário de recursos da poupança que estavam aplicados em papéis públicos. Dessa
forma, além dos R$ 10,0 bilhões mencionados, o mercado conta com mais R$ 8,7 bilhões para
financiamento privado em 2006.
12
Esses recursos têm origem em diversas fontes, mas as principais são orçamento da União para a área de
saúde e FGTS.

37
pessoas que moram nela. Essa crítica partiu de Tom Angotti quando se referiu ao artigo
que deu origem a este livro13. Angotti acusa Davis de promover uma visão antiurbanista ou
anticidade, classificando-o no time dos TINA (There Is No Alternative; Não Há Alternativas,
em português), expressão usada para se criticar uma atitude que é comum entre acadêmicos
e ativistas. Ele questiona a falta de atenção para com os movimentos sociais em todo o
mundo e a tendência de vê-los como “mero produto da informalidade urbana e do
paroquialismo”.
De fato, em sua crítica demolidora, Davis inclui propostas de urbanização de favelas, de
microcréditos, de regularização fundiária, de autoconstrução, entre outras. As críticas são
pertinentes, mas deixam de considerar especificidades históricas e geográficas que
alimentam muitas lutas sociais.Vamos dar um exemplo.
No Brasil, os movimentos sociais progressistas e organizações profissionais representativas
de advogados, urbanistas, engenheiros, geógrafos têm lutado durante muitos anos para a
regularização fundiária de assentamentos informais. Após treze anos de batalha, a
aprovação do Estatuto da Cidade e a Medida Provisória n. 220 abriram espaços para as
propostas de regularização fundiária. Esse movimento diverge frontalmente das idéias de
De Soto, para quem a escritura formal permitiria introduzir milhões de novos
empreendedores no mercado devido aos financiamentos que os imóveis poderiam
alavancar no sistema financeiro por meio de hipotecas. Essa tese não se revelou verdadeira,
como mostrou a experiência peruana. E, diferentemente do que aconteceu no Peru, há
grande resistência da sociedade brasileira – Judiciário, parte dos cartórios, funcionários
municipais, parte do Ministério Público – em realizar a regularização fundiária de
assentamentos informais de pessoas de baixa renda, o que não ocorre com os loteamentos
de alto padrão, também irregulares. No Estado de São Paulo, loteamentos fechados, que
constituem flagrante ilegalidade até o momento, quando a revisão da lei federal de
parcelamento do solo – n. 6766/79 – ainda não foi aprovada no Congresso Nacional, têm
recebido aprovação dos órgãos responsáveis; já a regularização de favelas, que conta com
base legal, tem sido praticamente impossível. Essa diferença de tratamento contrasta ainda
com a sucessão inacreditável de confusões e de fraudes nos registros de terras e nos valores
de desapropriações de terra que caracterizam a história do Brasil14.
Apenas o preconceito pode explicar essa situação, pois as favelas propostas para
regularização, por diversos municípios, passaram por processos de urbanização e
apresentam boa qualidade ambiental nos primeiros anos depois de finalizada a obra. A
ilegalidade continuada após a urbanização contribui para a deterioração, pois não dá à
prefeitura o poder de polícia (fiscalização) quanto ao uso e à ocupação do solo no local. A
regularização é necessária para exigir do poder público o controle e a manutenção do local
e para dar aos moradores a cidadania plena (outros direitos previstos na lei), além da
segurança da posse.
A primeira crítica de Davis contra a regularização fundiária refere-se à inserção dos
moradores – proprietários ou locatários – à base tributária e, portanto, ao aumento das
despesas. Essa inserção tributária não precisa ser necessariamente pesada, e nem sempre o
é. Outra crítica é que a titulação divide colonias entre proprietários e não proprietários,
solapando a solidariedade e acomodando os primeiros e quebrando a unidade. Essa

13
O artigo em questão é: “Planet of Slums” (publicado originalmente em New Left Review, n. 26, mar.-
abr. 2004, e incluído, com o título “Planeta de favelas”, em Contragolpes: seleção de artigos da New Left
Review, organizada por Emir Sader e publicada pela Boitempo em 2006). A crítica pode ser encontrada
em T. Angotti, “New anti-urban theories of metropolitan region: ‘Planet of Slums’ and apocalyptic
regionalism” (Kansas City, Conference of the Association of Collegiate School of Planners, 2005).
14
Ver a respeito a tese de doutorado de Joaquim de Brito da Costa Neto, A questão fundiária nos parques
e estações ecológicas do Estado de São Paulo: origens e efeitos da indisciplina da documentação do
registro imobiliário (São Paulo, FAU-USP, 2006).

38
assertiva teria resolução teórica apenas na ausência da propriedade privada, pois no seu
reino é possível amenizar a desigualdade e o volume da renda apropriada pelos
proprietários, mas jamais eliminá-la. Mencionamos “resolução teórica” porque as
experiências empíricas têm mostrado que, mesmo nas favelas, onde a terra não é,
formalmente, propriedade privada, existe um mercado imobiliário dinâmico cujas variáveis
são muito pouco conhecidas pela academia no mundo todo15. Esse tema é extremamente
complexo para ser tratado nesta apresentação.
A bibliografia utilizada no livro é quase totalmente em língua inglesa, o que constitui uma
limitação. O número de títulos utilizados é impressionante, mas a tentativa de construção
de explicações e fenômenos generalizados para o mundo todo, ou para os países não
desenvolvidos, sem o conhecimento das especificidades nacionais, cobra um preço como
não podia deixar de ser. Cabe aqui um alerta aos leitores brasileiros ou latino-americanos. A
produção intelectual de países como o Brasil (subordinado culturalmente) não prestigia a
memória da produção local que tem sido constantemente solapada e reescrita. Apenas essa
tradição de desprestígio explica a falta de acúmulo com as experiências vividas, o freqüente
reinício de temas tratados sem se considerar a memória existente e o mimetismo intelectual
que busca no exterior o eixo da reflexão, freqüentemente descolado da realidade local. Mais
do que cobrar de Davis, é preciso cobrar internamente o tratamento privilegiado das
contradições da realidade próxima sem ignorar o pensamento contemporâneo internacional
como sempre lembraram Roberto Schwarz, Celso Furtado, Sergio Buarque de Hollanda,
Emilia Viotti, Florestan Fernandes, entre outros.
Um dos indicadores utilizado por Davis, para o Brasil, no capítulo 2 (“A generalização das
favelas”), merece reparo. Ele atribui ao Brasil a proporção de 36,6% da população urbana
morando em favelas. Em São Paulo, segundo ele, teríamos de 6 a 8 milhões de favelados.
Como a tabela apresentada no livro usa uma classificação baseada em números absolutos, o
Brasil está situado como o terceiro país do mundo com a maior população moradora de
favelas, atrás apenas da Índia e da China. Para chegar a esse número, o autor soma na conta
das favelas locatários informais, cortiços, loteamentos ilegais e moradores de rua. Davis
reconhece que há diferenças no interior desse conjunto, mas decide colocar tudo no
mesmo saco.
Há diferenças fundamentais no interior das diversas formas de moradia aqui classificadas
como favelas, seja para a abordagem teórica, seja para aqueles que se dedicam a buscar a
solução de problemas por meio de políticas públicas. Para entender essa diferença é preciso
levar em conta a esfera da produção e não apenas a esfera do consumo ou da aparência.
Michael Ball desenvolveu o conceito de formas de provisão de habitação, buscando melhor
compreender a produção do ambiente construído ou, mais exatamente, a estrutura de
provisão de moradias, em cada momento histórico, de determinada sociedade, por meio do
conhecimento dos agentes que delas participam e das regras que a regulam16. Diferentes
capitais (financiamento, construção e promoção imobiliária), proprietários de terra ou
imóveis, trabalhadores da construção estão entre os principais agentes que disputam lucros,
juros, rendas e salários mediados pelo papel do Estado que regula o mercado, a terra, o

15
A crítica pouco circunstanciada leva o autor a criticar, ainda que de forma passageira, a política
habitacional da Prefeitura de São Paulo durante a gestão do PT com a prefeita Luiza Erundina. Utilizando
um dos pouquíssimos trabalhos sobre o Brasil que fazem parte de sua bibliografia, Davis critica a
consolidação de um submercado imobiliário nas favelas, decorrente da ação das melhorias ali
introduzidas pela prefeitura. Certamente, essa primeira experiência do PT na Prefeitura de São Paulo
merece inúmeras críticas, já que tentou mudar paradigmas históricos. Mas esse não foi o pior momento da
política habitacional na cidade. Muitos trabalhos acadêmicos (impossível citar todos aqui) e testemunhos
de movimentos sociais revelam exatamente o contrário. Buscá-los nas bibliotecas de FAU-USP, EESC-
USP, PUC-SP, EP-USP.
16
M. Ball, “Housing analysis: time for a theoretical refocus”, Housing Studies, Londres, v. 1, n. 3, 1986.

39
financiamento e a força de trabalho. Cada forma de provisão da moradia implica diferentes
formas de arranjo desses agentes: condomínios de casas unifamiliares, incorporação privada
de apartamentos para a venda ou para aluguel, promoção pública para aluguel ou para a
venda. Implica também diferentes formas de posse (tenure). A legislação urbana, a regulação
do financiamento (com a decisão sobre a quantidade de subsídios a serem investidos), o
próprio estágio de luta dos trabalhadores são exemplos de fatores que interferem na
produtividade e nos resultados que conformam parte do ambiente construído. Ball
trabalhou sobre o quadro da produção capitalista central, mas, tomando o devido cuidado,
podemos fazer uso de seus conceitos para incorporar às formas de provisão capitalistas da
moradia os chamados assentamentos informais que, embora não constituam formas
capitalistas stricto sensu, contribuem para o processo de acumulação ao reduzir o preço da
reprodução da força de trabalho17.
Daremos um exemplo para evidenciar as diferenças essenciais entre diversas formas de
assentamentos informais: um assentamento em terra invadida e um loteamento ilegal
podem apresentar diferença crucial na relação jurídica com a terra. Há inúmeras variáveis
que podem determinar a não-aprovação final de um loteamento e, portanto, definir sua
condição ilegal. Uma delas está no fato de as obras de infra-estrutura ou a demarcação dos
lotes e dos espaços públicos não seguirem corretamente as posturas legais municipais.
Nesse exemplo hipotético, a propriedade da gleba pode ser regular, o loteamento pode ter
sido aprovado na prefeitura, os compradores têm um contrato de compra e venda de seus
lotes, mas a escritura não está acessível devido ao descompasso entre o desenho e a
implantação do loteamento. Ambos constituem assentamentos informais ou ilegais, mas a
situação jurídica de cada um faz toda a diferença. As variações entre os casos são muitas,
indicando que as especificidades são importantes e que mesmo a fronteira entre o legal e o
ilegal não é tão clara.
Temos definido favelas pela relação jurídica que o assentamento mantém com a terra
invadida. Há casas em favelas que são melhores do que casas em bairros legais, mas essa
constatação não basta. A pura e simples análise da esfera do consumo não fornece
informações que nos permitem compreender o motor da produção e apropriação desigual
do ambiente construído, e podemos ainda correr o risco de achar que o consumo
determina a produção. Essas observações não tiram o mérito do livro, mas pretendem
contribuir para fazer avançar a leitura a partir do enfoque da produção do espaço na
periferia do capitalismo. O próprio autor reconhece nas primeiras linhas do texto a
imprecisão dos dados de que dispunha.
De acordo com o IBGE, os domicílios em aglomerados subnormais – que correspondem
ao conceito de favela – constituem 3,7% dos domicílios brasileiros, o que é bastante
subestimado como todos sabemos. Embora os dados sobre a precariedade habitacional
careçam de muito rigor, o que por si só já é revelador, há estudos que merecem
credibilidade e fornecem números sobre a inadequação habitacional no Brasil. É o caso do
trabalho Déficit habitacional no Brasil, elaborado pela Fundação João Pinheiro a pedido do
Ministério das Cidades, baseado em dados do Censo IBGE e da Pesquisa Nacional por
Amostra de Domicílios (PNAD). A soma dos domicílios improvisados, rústicos, que se
reduzem a cômodos ou que apresentam coabitação familiar – isto é, domicílios que
precisam ser repostos e que compõem o que o estudo chama de déficit habitacional básico –
perfaz 13,2% do total dos domicílios brasileiros ou 11,2% dos domicílios urbanos. Por
outro lado, há uma classificação de domicílios inadequados, que não precisam
necessariamente ser repostos, mas exigem melhorias que apresentam os seguintes
percentuais em relação aos domicílios urbanos: inadequação fundiária, 5,8%; adensamento

17
Ver a respeito o clássico trabalho de Francisco de Oliveira, “A economia brasileira: crítica à razão
dualista”. Cadernos Cebrap, n.2, São Paulo: 1972.

40
excessivo, 7,5%; domicílio sem banheiro, 8,6%; e domicílio carente de infra-estrutura (água
de rede pública e/ou rede de esgoto ou fossa e/ou energia elétrica e/ou coleta de lixo),
32,4%. Esses números não podem ser somados, pois podem se referir ao mesmo
domicílio.
São Paulo tem 1,1 milhão de pessoas que moram em favelas, 1,6 milhão que moram em
loteamentos ilegais, aproximadamente 500 mil pessoas em cortiços, e 10 mil moradores de
rua.
Davis aponta corretamente o caráter reformista ou, não pouco freqüentemente regressivo,
de muitas das propostas apontadas como soluções para os problemas habitacionais. Mas a
busca de alternativas ou exemplos de soluções nem sempre leva à cooptação ou à
acomodação. Muito freqüentemente, mostrar que esses problemas têm soluções que
estariam à mão se houvesse mais justiça social é alimento fundamental para o avanço da
luta democrática. Apesar de todos os revezes, o Brasil também apresenta muitos aspectos
que alimentam a esperança de mudança.
O serviço de água e esgoto no país é um dos mais atraentes mercados para as empresas
internacionais, e não faltaram tentativas de mudança do marco regulatório de modo a
ampliar as possibilidades de privatização desde início dos anos 1990. No entanto, graças à
resistência localizada num movimento de técnicos reunidos em torno da Frente Nacional
do Saneamento (FNS), isso não aconteceu. Desde 1985, com a extinção do Plano Nacional
de Saneamento Básico (Planasa), até 2006 o país ficou sem regras claras para o
desenvolvimento do setor devido à queda-de-braço entre os interesses divergentes18.
O movimento pela reforma urbana, que reúne entidades profissionais, acadêmicas, de
pesquisa, ONGs, funcionários públicos, além das entidades nacionais que lutam pela
moradia, são uma das características positivas da sociedade brasileira na conjuntura atual.
Esse movimento social conquistou a aprovação de leis importantes como o Estatuto da
Cidade (lei n. 10.257, em 2000), a Lei do Fundo Nacional de Moradia Social (lei n. 11.124,
em 2005), conquistou ainda a criação do Ministério das Cidades (ele era uma reivindicação
que vinha sendo feita havia mais de dez anos). Com ele, o movimento acabou se
fortalecendo, devido à promoção das Conferências Nacionais das Cidades, processo que
teve início nos municípios, envolveu todos os estados da federação e culminou em Brasília
com a participação de mais de 2500 delegados, dos quais 70% foram eleitos nas
Conferências Estaduais e o restante indicados por entidades nacionais. A primeira
conferência das cidades, em 2003, abrangeu a participação de mais de 300 mil pessoas para
debater princípios, diretrizes e prioridades da Política Nacional de Desenvolvimento
Urbano. A segunda, em 2005, aprofundou as propostas.
Uma geração de prefeitos democráticos que se formaram no âmbito da luta contra o
regime militar também teve importante papel nesse processo de dar visibilidade aos
excluídos nas cidades e formular propostas participativas, a partir dos anos 1980.
Finalmente não se pode esquecer da resistência do Movimento dos Trabalhadores Rurais
Sem Terra (MST), que combina a desesperada luta para permanecer no campo em um país
de dimensões continentais, produzindo alimentos, com a compreensão da sustentabilidade
ambiental e a sensibilidade da preservação das culturas regionais.
Esses avanços são afetados, mas sobrevivem à crise partidária eclodida em 2005 que
evidenciou ter o PT – Partido dos Trabalhadores lançado mão de expedientes condenáveis
que fazem parte da política institucional no Brasil. Entretanto não podemos afirmar que
existe uma clara reversão do processo de aprofundamento dos problemas urbanos. Essas

18
Em julho de 2006, o PLS 219-06 enviado pelo governo federal em 2004 foi aprovado pelo Senado após
uma negociação cujo principal objeto foi a retirada, do projeto, da menção ao Sistema Nacional do
Saneamento Ambiental. Alguns aspectos progressistas continuam na proposta, que deve passar pela
aprovação na Câmara Federal.

41
conquistas são relativamente recentes e as mudanças são lentas, já que envolvem uma
cultura histórica – ou de raízes escravistas – de exclusão social. A esperança está assentada
em fatos concretos, mas Davis acerta quando remete a fonte principal das mazelas às forças
globais dominadas por interesses financeiros e garantidas militarmente pelos Estados
Unidos ou por aquilo que David Harvey denomina de Novo Imperialismo.

Erminia Maricato
São Paulo, 24 de julho de 2006

42

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