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O AMICUS CURIAE COMO INSTRUMENTO PARA A BUSCA DE UM

PROCESSO COOPERATIVO E DEMOCRÁTICO

Felipe Caldeira
Advogado, pós-graduando em Direito Processual Civil pela PUCRS

Sumário: 1. Introdução 2. Aspectos gerais do Amicus Curiae 3. Requisitos de


admissibilidade 3.1. Requisitos Objetivos 3.2. Requisito Subjetivo 4. O Amicus
Curiae e a busca de um processo cooperativo e democrático 5. Conclusão 6.
Referências bibliográficas

Resumo: A partir da análise das características assumidas pelo amicus curiae no


direito estrangeiro e da sua evolução no Direito Brasileiro, o presente artigo se
propõe a analisar o tratamento dado pelo direito processual civil brasileiro a esse
emblemático instrumento que é objeto de discussões na doutrina e na
jurisprudência, principalmente no que tange à busca de um processo cooperativo e
democrático.

Palavras-Chave: Amicus Curiae; Democratização do Processo; Procedimento;


Cooperação; Legitimidade; Requisitos de admissibilidade.

1. INTRODUÇÃO

O conceito do que é o amicus curiae tem sofrido uma transformação


importante correspondente a uma mudança na abordagem dada ao direito,
especialmente no ensino do direito processual civil com a vigência do Novo Código
de Processo Civil de 2015. O instituto teve o seu maior desenvolvimento no direito
norte-americano, cujo sistema é o da common law, e no Brasil sua atuação vem
ganhando cada vez mais destaque, pois, com o advento da Lei 13.105/2015, inseriu-
se o amicus no Título do Código que contempla as formas típicas de intervenção de
terceiros.
Por essas razões será verificado que o Código de Processo Civil/2015
teve o claro propósito de encorajar a participação do amicus curiae para uma
ampliação do debate judicial, especialmente nos casos em que há repercussão para
além das partes integrantes dos polos da relação processual.
Após o estudo dos pressupostos para a intervenção do amicus curiae,
será contextualizada a importância da sua atuação para a busca de um processo
cooperativo e democrático, marcado pela ampliação do debate prévio entre as
1
partes, especialmente quando a matéria é de relevância para a sociedade ou
determinado grupo social.
Dessa forma, será possível destacar a importância do instituto, em
especial pela possibilidade de o debate ser ampliado visando a uma melhor
prestação jurisdicional quando a causa transcender o interesse inter partes.

2. ASPECTOS GERAIS DO AMICUS CURIAE

A evolução histórica da figura do amicus, mesmo que de forma breve,


permite identificar de que forma ele foi concebido e evoluído especialmente no
direito romano, no direito inglês e no direito norte-americano.
Ao analisar a origem e o desenvolvimento do instituto, é possível notar
que o amicus curiae assumiu diferentes papeis em alguns países. Há controvérsias
na doutrina no que diz respeito às raízes do instituto. Isso, pois, conforme traz Isabel
da Cunha Bisch: “o instrumento processual ganhou sentidos e funções diversas na
Inglaterra, nos Estados Unidos, no Direito Comunitário Europeu e, mais
recentemente, também no Brasil.” 1
Por um lado, há quem afirme a origem do amicus no direito romano, como
por exemplo, Michael K. Lowman, quando afirma que “The earliest notion of amicus
participation is found in Roman law” 2. Por outro lado, e aonde há respaldo na
maioria dos autores, defende-se a origem do instituto no direito inglês.
No direito romano, a origem do instituto teria se dado a partir do chamado
consillarius, sua função era ser um colaborador neutro em casos cuja resolução
girava em torno de questões não estritamente jurídicas, objetivando minimizar o erro
dos magistrados nos julgamentos e, além disso, sua obrigação seria prestar
lealdade aos juízes. 3
Identificam-se, então, duas características básicas do instituto no direito
romano: a sua intervenção dependia de convocação do magistrado (atuação

1
BISCH, Isabel da Cunha. O amicus curiae, as tradições jurídicas e o controle de constitucionalidade: um estudo
comparado à luz das experiências americana, europeia e brasileira. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. p.
17-18.
2
LOWMAN, Michael K. The litigating Amicus Curiae: When does the party begin after the friends leave?
American University Law Review, Summer, 1992. Vol. 41(4). p. 1243-1299.
3
BUENO, Cassio Scarpinella. Amicus Curiae no processo civil brasileiro: Um terceiro enigmático. 3. ed. São
Paulo: Saraiva, 2012. p. 112.
2
provocada) e o auxílio era prestado consoante seu próprio e livre convencimento
(imparcial). 4
Dessa forma, devido à característica do instituto no direito romano,
marcada pela intervenção provocada e pela neutralidade de sua atuação, é possível
identificar porque Giovani Criscuoli, citado por Cássio Scarpinella Bueno, defende
que a origem do instituto se deu no direito inglês: desde as suas remotas origens no
direito inglês, o amicus curiae pode comparecer de forma espontânea perante o
juízo e, além disso, eventualmente pode fornecer elementos úteis para a vitória de
um dos integrantes dos polos da relação processual.5
Michael K. Lowman, citado por Tatiana Machado Alves, aponta que na
Inglaterra medieval o amicus curiae era entendido como um terceiro desinteressado
que, mediante requerimento próprio ou do próprio órgão jurisdicional, fornecia
informações sobre questões de direito e/ou apontava questões de fato que poderiam
acarretar erros manifestos no julgamento da causa.6
Entretanto, essa concepção do amicus como uma figura desprovida de
interesse próprio cuja finalidade era auxiliar o juízo foi se modificando com o tempo.
A virada no Direito Inglês se deu no caso “Coxe vs. Phillips”, em que foi autorizada,
pela primeira vez, a intervenção de um terceiro no processo como amicus curiae
para proteger os seus próprios interesses, conforme narra Scarpinella Bueno:

Narra-se, a respeito desse caso, que o casamento de Mrs. Phillips e Mr.


Muilman foi declarado nulo ao se descobrir que ela j era casada. Mesmo
depois de Mr. Muilman se ter casado novamente, Mrs. Phillips invocou
seu casamento com ele para alegar a incapacidade de se obrigar quando
cobrada pelo n o pagamento de uma nota promiss ria. Como as raz es de
defesa invocadas por ela podiam comprometer o ent o atual casamento de
Mr. Muilman, a corte permitiu, mesmo que ele n o fosse parte ou
interessado no processo, que um amicus curiae representasse seus
interesses naquela a o. A tese do amicus foi acolhida, a a o de cobran a
foi extinta e as partes, Mr. Coxe e Mrs. Phillips, condenadas como litigantes
7
de m -fé.

O amicus curiae ganhou espaço na Inglaterra devido a uma visão bipolar


do processo (ideia de um confronto entre dois adversários e um julgador
relativamente passivo), pois o amicus não deixava de estar à margem da discussão

4
CRISCUOLI, Giovani. Apud BUENO, Cassio Scarpinella. Op. cit. p. 111.
5
BUENO, Cassio Scarpinella. Op. cit. p. 113.
6
LOWMAN, Michael K. Apud ALVES, Tatiana Machado. Primeiras questões sobre o amicus curiae no novo
Código de Processo Civil. Revista de Processo. v. 256. ano 41. São Paulo: RT, 2016. p. 96
7
BUENO, Cassio Scarpinella. Op. cit. p. 114-115.
3
entre as partes. Além disso, manteve-se no Direito Inglês por auxiliar os magistrados
a aprimorar seu convencimento, aperfeiçoando ou corrigindo o conjunto probatório
elaborado. 8
A partir dos referenciais do Direito Inglês, o amicus curiae passou a
integrar o direito norte-americano, sobretudo devido aos dois países possuírem a
mesma concepção geral de Direito com a adoção do modelo da Common Law,
baseado na aplicação do Direito por meio de precedentes e decisões judiciais
pretéritas. No entanto, em que pese em ambos os países haver a prevalência do
judge-made law, Isabel da Cunha Bisch destaca que determinadas práticas
processuais surgiram ou assumiram novos perfis. 9
No Brasil, antes do advento do CPC de 2015, não havia qualquer
referência legislativa expressa ao amicus curiae no direito processual brasileiro. O
único ato normativo que o denominava era o Regimento Interno da Turma Nacional
de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais (Resolução nº
390, de 17 de setembro de 2004, CNJ), no seu art. 23, §1º, que permitia a eventuais
interessados, entidades de classe, associações, organizações não governamentais,
etc., no julgamento de recursos perante a Turma Recursal, apresentar memoriais e
fazer sustentação oral a critério do presidente, recaindo sobre este a decisão sobre
o tempo de sustentação que seria permitido. 10
Cassio Scarpinella Bueno comenta que não é coincidência que, na maior
parte dos casos, os autores descrevem a atuação do amicus curiae como
modalidade sui generis de intervenção de terceiros. 11
Logo, a partir de previsões em leis esparsas, mesmo que estas não
mencionassem expressamente a denominação amicus curiae, o instituto foi sendo
12
incorporado no ordenamento jurídico aos poucos. Tatiana Machado Alves aponta
que “um grande passo na evolu o do instituto no direito brasileiro foi dado a partir
do seu reconhecimento nos processos de constitucionalidade.” 13

8
SILVESTRI, Elisabetta. Apud BISCH, Isabel da Cunha. Op. cit. p. 29.
9
A autora destaca algumas delas: a) nos Estados Unidos, a regra do júri foi incorporada com muito maior
importância e destaque do que na Inglaterra atual; b) embora também tenha prevalecido o adversarial system,
nos Estado Unidos, as partes detêm mais controle do processo na fase anterior ao julgamento (pre-trial), do que
na Inglaterra. c) nos Estados Unidos foi introduzida e muito difundida nova modalidade de ação, a class action
(ação coletiva) (BISCH, Isabel da Cunha. Op. cit. p. 34.)
10
BUENO, Cassio Scarpinella. Op. cit. p. 144.
11
Idem, ibidem.
12
ALVES, Tatiana Machado. Op. cit. p. 103.
13
Idem, ibidem.
4
Desse modo, o amicus curiae é definido como um terceiro ao processo
que nele intervém para fornecer ao magistrado elementos relevantes que possam
auxiliar na formação do seu convencimento.14 O seu modo de intervenção se realiza
de forma espontânea, a pedido da parte ou por provocação do órgão jurisdicional.
A finalidade imediata de sua intervenção é permitir que o juiz tome
conhecimento de questões subjacentes à lide que não tenham sido informadas pelas
partes e que sejam úteis para a resolução da causa. 15
Pode-se identificar também uma finalidade mediata de sua intervenção:
preencher a lacuna da legitimidade democrática do Poder Judiciário, na medida em
que o amicus irá atuar, em última instância, como um porta-voz da pluralidade de
ideias, valores e anseios da sociedade, objetivando enriquecer o debate democrático
no processo. 16
Nesta senda, se o direito incide sobre os fatos, evidente que é de suma
importância que o juiz possua acesso a todo contexto fático pertinente que permeia
a discussão debatida na demanda, incluindo os impactos que a sua decisão poderá
ter sobre a coletividade, de modo que ele possa prolatar uma decisão mais justa e
correta, e que atenda aos fins do processo. 17

3. REQUISITOS DE ADMISSIBILIDADE

A partir da previsão geral do instituto no art. 138 do CPC/2015 18, observa-


se a presença de 3 (três) requisitos objetivos e 1 (um) requisito subjetivo, quais
sejam: a relevância da matéria, a especificidade do tema objeto da demanda e a
repercussão social da controvérsia, sendo estes os objetivos; e a representatividade
adequada como requisito subjetivo.
Os requisitos objetivos estão dispostos de forma alternativa, ou seja, não
é necessário que todos estejam presentes para que haja a admissão do amicus
curiae, visto que foi utilizado pelo legislador a con un o “ou”, característica de
alternância.
14
ALVES, Tatiana Machado. Op. cit. p. 90.
15
Idem, ibidem.
16
Ibidem, p. 93.
17
Ibidem, p. 91.
18
Art. 138. O juiz ou o relator, considerando a relevância da matéria, a especificidade do tema objeto da
demanda ou a repercussão social da controvérsia, poderá, por decisão irrecorrível, de ofício ou a requerimento
das partes ou de quem pretenda manifestar-se, solicitar ou admitir a participação de pessoa natural ou jurídica,
órgão ou entidade especializada, com representatividade adequada, no prazo de 15 (quinze) dias de sua
intimação. (BRASIL. Lei n. 13.105/2015. Código de Processo Civil. Disponível em <
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm> Acesso em 08/08/2017).
5
3.1 Requisitos objetivos

A intervenção como amicus curiae será possível quando preenchidos os


requisitos da relevância da matéria, especificidade do tema objeto da demanda ou
repercussão social da controvérsia. Quanto às condições objetivas para admissão
do amicus curiae, Eduardo Talamini traz, inicialmente, duas balizas:

[...] por um lado a especialidade da matéria, o seu grau de complexidade;


por outro, a importância da causa, que deve ir além do interesse das partes,
i.e., sua transcendência, repercussão transindividual ou institucional. São
requisitos alternativos (“ou”), n o necessariamente cumulativos: tanto a
sofisticação da causa quanto sua importância ultra partes (i.e., que vá além
das partes) pode autorizar, por si só, a intervenção. De todo modo, os dois
aspectos, em casos em que não se põem isoladamente de modo tão
intenso, podem ser somados, considerados conjuntamente, a fim de
19
viabilizar a admissão do amicus.

A relevância da matéria e a repercussão social da controvérsia se dividem


na medida em que a primeiro é analisada sob o aspecto qualitativo e a segunda
quanto ao aspecto quantitativo. A abordagem desses dois requisitos se dá,
geralmente, de forma conjunta, pois são fundados no interesse extraprocessual da
demanda, ou seja, a possibilidade de haver efeitos para além dos limites do
processo.20 Igualmente, ás vezes ambos se confundem, pois, se há a possibilidade
de ter repercussão da controvérsia em um processo, podemos concluir que também
será relevante o tema objeto discutido.
Em alguns casos, a solução da causa pode ter repercussão social que
poderá ultrapassar o interesse das partes integrantes dos polos da relação
processual, visto que os efeitos estarão direta ou indiretamente aplicados a muitas
outras pessoas (dimensão ultra partes).21 Por outro lado, em outras demandas a
dimensão ultra partes, justificadora da intervenção, poderá estar presente em
questões que, mesmo não havendo tendência de repercutir em uma quantidade
grande de outros litígios, versará sobre temas fundamentais para o ordenamento
jurídico.22

19
TALAMINI, Eduardo. WAMBIER, Teresa Arruda Alvim et al. (coord.). Breves comentários ao Novo Código de
Processo Civil. São Paulo: RT, 2015. p. 441.
20
ALVES, Tatiana Machado. Op. cit. p. 107.
21
TALAMINI, Eduardo. WAMBIER, Teresa Arruda Alvim et al. (coord.). Op. cit. p. 441.
22
Idem, ibidem.
6
A especificidade do tema objeto da demanda está relacionada com a
complexidade da matéria da demanda. Essa especificidade tanto pode ser fática
quanto técnica (jurídica ou extrajurídica).23 Na análise deste requisito, deve-se ter
cuidado, visto que a especificidade do tema não pode ser considerada genérica nem
autônoma, sob pena de haver confusão entre a função do amicus curiae com a do
perito, por exemplo.
Então, analisados os pressupostos objetivos de intervenção, será
abordado o requisito subjetivo para admissão do amicus curiae, qual seja: a
representatividade adequada.

3.2 Requisito Subjetivo

Exige-se que o amicus curiae possua – além de um dos requisitos


objetivos - o requisito subjetivo da representatividade adequada. Este requisito exige
que o amicus curiae demonstre a razão de sua intervenção e de que forma seu
interesse institucional se relaciona com o processo.24 Note-se que interesse
institucional difere de interesse jurídico, conforme ensina Cassio Scarpinella Bueno:

O “interesse institucional” n o pode ser confundido (em verdade, reduzido)


ao interesse jurídico que anima as demais intervenções de terceiro no que é
expresso o caput do art. 119 ao tratar da assistência. Fossem realidades
coincidentes e, certamente, não haveria necessidade de o CPC de 2015 – e
antes dele, algumas leis esparsas, a jurisprudência e a doutrina – disciplinar
expressamente o amicus curiae. O “interesse institucional”, por isso mesmo,
deve ser compreendido de forma ampla, a qualificar quem pretende ostentar
o status de amicus curiae em perspectiva metaindividual, apta a realizar
interesses que não lhe são próprios nem exclusivos como pessoa ou como
entidade. São, por definição, interesses que pertencem a grupo
(determinado ou indeterminado) de pessoas e que, por isso mesmo,
precisam ser considerados no proferimento de específicas decisões; o
amicus curiae, é esta a verdade, representa-os em juízo como adequado
portador deles que é. Seja porque se trata de decisões que signifiquem
tomadas de decisão valorativas, seja porque são decisões que têm aptidão
de criar “precedentes”, tendentes a vincular – é o que o CPC de 2015
inequivocamente quer – outras tantas decisões a serem proferidas
25
posteriormente e a partir dela.

Nesse interim, o requisito subjetivo da representatividade adequada não


impõe ao amicus curiae ser o porta-voz de um grupo ou determinado segmento
social. Torna-se necessário o conhecimento e a idoneidade para colaborar para o

23
TALAMINI, Eduardo; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim et al. (coord.). Op. cit. p. 441.
24
BUENO, Cassio Scarpinella. Manual de direito processual civil. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 187-188.
25
Idem, ibidem.
7
esclarecimento das questões em debate.26
A título de exemplo, na Ação Direta de Inconstitucionalidade proposta
pelo MP/RS pretendendo a declaração de inconstitucionalidade da Lei Municipal
3.700/15, de Gravataí (proíbe o transporte de passageiros por carros particulares
cadastrados em aplicativos), o Des. Rel. Alberto Delgado Neto, do TJ/RS, proferiu
decisão admitindo a UBER como amicus curiae, conforme trecho que segue:

O Uber vem sustentando possuir representatividade para intervir nesta ação


na qualidade de amicus curiae (amigo da corte), pois o seu aplicativo de
tecnologia tem sido o principal fator desencadeador de uma verdadeira
revolução na maneira como as pessoas interagem, trabalham e se
locomovem.
A figura do amicus curiae se presta a permitir a ampliação do debate prévio
decisório, especialmente quando a matéria é de relevância para a
sociedade ou determinado grupo social.
[...]
Assim, a doutrina e a jurisprudência mencionam a necessidade da presença
do binômio relevância/representatividade, tendo em vista os efeitos da
decisão a ser proferida no setor diretamente afetado, bem como se a
entidade possui interesse que justifique a participação.
Na espécie, a representatividade está demonstrada nos autos, na medida
em que o UBER do Brasil Tecnologia Ltda. representa no caso não só a
empresa interessada na solução, mas um segmento social interessado na
utilização do aplicativo, com a finalidade conferir escala de transporte
27
individual privado de passageiros, revelando interesse difuso evidente.

Na mesma decisão, o Relator fundamenta que mesmo havendo interesse


na causa, isso, por si só, não impede a participação de interessado no processo:

“[...] a jurisdição constitucional tem natureza diversa da jurisdição de


resolução de conflitos, guardando o caráter de controle do sistema jurídico,
de molde que a contribuição de segmentos ou grupos, ainda que
interessados, amplia o horizonte de conhecimento da base de incidência
28
normativa em debate.”

Sob a mesma ótica, Luiz Guilherme Marinoni, Sérgio Cruz Arenhart e


Daniel Mitidiero afirmam:

O que o move é o interesse institucional: o interesse no adequado debate


em juízo de determinada questão nele debatida. Esse, aliás, o parâmetro
adequado para aferição da legitimidade da participação do amicus curiae no
processo: é inclusive a partir desse critério que o requisito da

26
CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro; CABRAL, Antonio do Passo; CRAMER, Ronaldo (coord.). Comentários ao
novo Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2015. p. 251.
27
RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça do Estado. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 70072816671.
Desembargador Relator Alberto Delgado Neto. Porto Alegre, 06/06/2017.
28
Idem, ibidem.
8
29
representatividade adequada do amicus curiae deve ser dimensionado.

Paulo Cézar Pinheiro Carneiro, por sua vez, alerta que não se pode
confundir, apesar da igualdade na grafia, a representatividade adequada da ação
civil pública com a relacionada à participação do amicus curiae. O autor defende que
deve haver a formação de um novo conceito do “nosso amicus curiae”, agora
disciplinado no Código de Processo Civil de 2015, de modo a não defini-lo com base
na doutrina estrangeira ou com premissas que a doutrina brasileira estabeleceu no
passado, quando o instituto ainda não estava regulado no direito brasileiro. 30
Desta maneira, o CPC/15, ao disciplinar o amicus curiae, não exigiu que
este fosse um terceiro imparcial. Se assim o fosse, sua intervenção poderia ser
questionada e impugnada pela parte prejudicada.31 Contudo, em que pese o CPC
não exija que o amicus curiae seja um terceiro imparcial, Fredie Didier Jr. entende
de modo diverso, apontando que “o amicus curiae precisa ter algum vínculo com a
questão litigiosa, de modo a que possa contribuir para a sua solução”. 32
Verifica-se, portanto, que a análise da finalidade e do objetivo do amicus
curiae se torna fundamental, a medida que o amicus curiae, diferentemente das
outras formas de intervenção de terceiro, fornece subsídios para auxiliar o
magistrado na análise de determinada matéria/questão. Logo, mesmo que a
manifestação do amicus curiae favoreça alguma parte, isso decorrerá da
consequência da sua manifestação, e não da sua finalidade e objetivo de
intervenção.

4. O AMICUS CURIAE E A BUSCA DE UM PROCESSO COOPERATIVO E


DEMOCRÁTICO

“Na dúvida, deve-se perquirir: isso atende ou agride o que é apregoado pela
cooperação? Assim, e só assim, talvez fique no retrovisor da história, o
momento em que vivemos, ou se a, o de mera ‘tentativa’ do processo
33
idealizado pelo Estado Constitucional.”

O amicus curiae é um instituto de matriz democrática, que permite que


terceiros ingressem no “mundo” fechado de um processo para discutir ob etivamente
29
MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo curso de processo civil. 3.
ed. São Paulo: RT, 2017. p. 44.
30
CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro; CABRAL, Antonio do Passo; CRAMER, Ronaldo (coord.). Op. cit. p. 251.
31
Idem, ibidem.
32
DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil: introdução ao direito processual civil, parte geral e
processo de conhecimento. 17. ed. Salvador: Jus Podivm, 2015. p. 523.
33
LANES, Julio Cesar Goulart. Fato e Direito no Processo Civil Cooperativo. São Paulo: RT, 2014. p. 127.
9
teses jurídicas que por meio de uma decisão judicial possa vir a afetar a
sociedade.34
Nesse sentido, o instituto permite que, antes de ser proferida a decisão e
eventualmente virar um precedente, possa haver um debate prévio e questões
importantes possam ser levadas à apreciação do magistrado.
Tem-se, portanto, que o processo civil se estrutura a partir dos direitos
fundamentais que compõe o direito ao processo justo e a construção/reconstrução
do sistema processual civil parte da Constituição, ou seja, interpreta-se o Processo
Civil de acordo com a Constituição Federal. 35
A partir da observância, em especial, do direito ao processo justo, que se
espera a atuação do Estado e dos particulares em algumas situações. Luiz
Guilherme Marinoni, Sérgio Cruz Arenhart e Daniel Mitidiero apontam que o direito
ao processo justo conta com um perfil mínimo:

Em primeiro lugar, do ponto de vista da divisão do trabalho processual, o


processo justo é pautado pela colaboração do juiz para com as partes (art.
6º, CPC). O juiz é paritário no diálogo e assimétrico apenas no momento da
imposição de suas decisões. Em segundo lugar, constitui processo capaz
de prestar tutela jurisdicional adequada e efetiva (art. 5º, XXXV, CF, e 3º,
CPC), em que as partes participam em pé de igualdade e com paridade de
armas (art. 5º, I, CF e 7º, CPC), em contraditório (art. 5º, LV, CF, e 7º, 9º e
10º, CPC), com ampla defesa (art. 5º, LV, CF) com direito à prova (art. 5º,
LVI, a contrario sensu, CF, e 369, CPC), perante o juiz natural (arts. 5º,
XXVII e LIIII, CF), em que todos os seus pronunciamentos são previsíveis,
confiáveis e motivados (arts. 93, IX, CF, e 11 e 489, §1º, CPC), em
procedimento público (arts. 5º, LX, e 93, IX, CF, e 11 e 189, CPC), com
duração razoável (arts. 5º, LXXVIII, CF, e 4º, CPC) e, em sendo o caso,
com direito à assistência judiciária jurídica integral (art. 5º, LXXIV, CF, e 98
a 102, CPC) e com formação de coisa julgada (art. 5º, XXXVI, CF, e 502,
36
CPC).

O direito a um processo justo nada mais é do que o resultado da


harmonização desses interesses que confluem no processo.37Além disso, é
justamente nessa situação em que o CPC/2015, de forma adequada, acertou ao
tornar atípica a possibilidade de intervenção de terceiros como amicus curiae, pois,
como afirmado por Marinoni, Arenhart e Mitidiero: “Trata-se de uma evidente

34
MACIEL, Adhemar Ferreira. Amicus Curiae: Um Instituto Democrático . Revista de Processo. vol. 106/2002. p.
281-284.
35
MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo Código de Processo Civil
comentado. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: RT, 2016. p. 143.
36
Ibidem. p. 144.
37
MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo curso de processo civil. 3.
ed. São Paulo: RT, 2017. p. 44.
10
concretização da vertente democrática que alicerça nosso Estado Constitucional
(art. 1º, caput, da CF).” 38
Paulo Cezar Pinheiro Carneiro corrobora com o ponto trazido neste
capítulo:

O princípio da cooperação não se limita aos participantes tradicionais do


processo: autor e réu. Deve o juiz, sempre que necessário, especialmente
nos processos cujo resultado possa alcançar um grande número de
pessoas, permitir a intervenção de pessoas, órgãos ou de entidades com
interesse, ainda que indireto, na controvérsia. Assim, promover a realização
de audiências públicas (art. 927, §2º; art. 983, §1º; art. 1.038, II; v.g.), e até
mesmo permitir o ingresso de outros personagens que possam colaborar
para a realização da justiça, caso do amicus curiae (arts. 138 e 1.038, §2º),
são corolários lógicos de uma das formas de cooperação do juiz com o
deslinde da causa. Quanto maior for a participação e, portanto, os
elementos de informação, maior será a legitimidade democrática da
decisão.

Tatiana Machado Alves também concorda que, embora o amicus curiae já


viesse sendo utilizado no direito brasileiro como instrumento de ampliação do debate
democrático, e consequentemente de melhoria de qualidade da prestação
jurisdicional, a sua referência expressa no CPC/15 foi medida salutar para reforçar
ainda mais essa característica do instituto. 39
Assim, conforme a autora traz:

[...] em atendimento ao postulado democrático e ao contraditório


participativo, não só as partes adquirem o direito de influir eficazmente na
formação do convencimento do magistrado, como terceiros que possam
contribuir para as discussões passam a poder requerer a sua intervenção
40
no processo para apresentar informações aptas a auxiliar o juiz.

No entanto, a autora adverte que a utilização do amicus curiae deve se


dar de forma racional e dentro dos limites fixados, especialmente quanto aos
requisitos para a sua intervenção. Torna-se importante que, na decisão que decide o
pedido de ingresso do amicus curiae, os juízes analisem e fundamentem
efetivamente os requisitos do art. 138, CPC, de modo a evitar que intervenções
inúteis, inaptas a colaborar para a resolução da demanda, sejam admitidas e
prejudiquem o andamento do feito. 41

38
Ibidem, p. 105.
39
ALVES, Tatiana Machado. Op. cit. p. 115.
40
Idem, ibidem.
41
Idem, ibidem.
11
5. CONCLUSÃO

O objetivo do presente estudo foi realizar uma abordagem da figura do


amicus curiae - uma das inovações trazidas pelo Código de Processo Civil de 2015 -
no que diz respeito à possibilidade de se buscar um processo pautado pela
cooperação entre as partes e pela democratização do processo. O novo regramento,
trazido no artigo 138, é um reflexo do modelo de cooperação e de democratização
processual. Isso, pois, como referido no presente estudo, é um instrumento que
valoriza a participação ativa de terceiros que possam auxiliar o juiz, fornecendo
subsídios para melhorar a resolução da causa.
O CPC/2015 fomenta ainda mais a participação de interessados que
tenham condição de fornecer elementos adequados para a tomada de decisões pelo
juiz. Entretanto, como dito anteriormente, deve-se ter cautela no momento de avaliar
o ingresso de eventual interessado (interesse institucional) na causa, para não
termos uma quantidade enorme de pedidos de ingresso de terceiros somente pelo
fato de haver um interesse na causa, seja ele meramente econômico, afetivo, etc.
Sob a perspectiva processual, o amicus curiae deve contribuir, portanto,
para a busca de uma decisão mais justa e mais fundamentada, com atenção
especial a eventuais efeitos transcendentes ao campo privado, em decorrência da
decisão proferida, principalmente pelo fato do instituto ter sido generalizado,
podendo ser admitido em qualquer ação, juízo ou tribunal, caso preencha os
requisitos legais para admissão.
Posto isso, a verdade é que, dada a crescente relevância da jurisdição
constitucional, e a frequência cada vez maior de decisões judiciais capazes de afetar
toda coletividade, a admissibilidade do amicus curiae se torna um meio decisivo para
o alargamento do debate entre as partes, para a participação processual dos vários
segmentos e setores da sociedade e, consequentemente, para garantir a
legitimidade democrática e cooperativa da atividade jurisdicional.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Processo Civil. Revista de Processo. vol. 256. ano 41. São Paulo: RT, 2016.

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