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JUN
dez
XXIII 92 2016
Carta ao leitor
Durante o período das Três Semanas, que se inicia Assim, Jerusalém é diferente de todas as outras
no dia 17 de Tamuz – este ano, em 24 de julho cidades porque se encontra entre dois mundos: o
– e termina em Tishá b’Av – o nono dia do mês de físico e o espiritual. O Pirkei Avot, um livro sagrado de
Menachem Av – em 14 de agosto – o Povo Judeu sabedoria e ética judaica, relata muitos milagres que
lamenta a destruição de Jerusalém e a queda do Templo ocorriam na cidade na época em que existia o Templo
Sagrado. A conquista de Jerusalém pelos romanos, a Sagrado. A razão para tantos milagres ocorrerem em
destruição do Templo Sagrado e o subsequente exílio Jerusalém, especialmente no Templo, é que o contato
do Povo Judeu da Terra de Israel ocorreram há quase com o sagrado traz mudanças às leis da natureza.
2 mil anos, mas, desde então, não se passou sequer um É o portal terrestre para os Céus. Por esse motivo,
dia em que deixamos de orar pelo restabelecimento de independentemente de onde estivermos, sempre
nossa Capital Eterna. oramos em direção a Jerusalém, nossas preces são
levadas a Jerusalém e de lá ascendem aos Céus.
Por que o Povo Judeu chora por uma cidade que caiu
há dois milênios? Por que tanta importância é dada à A queda de Jerusalém e do Templo Sagrado foram
Jerusalém, a tal ponto que é mencionada todos os dias uma grande perda não apenas para os Filhos de Israel,
em nossas orações? mas para toda a humanidade, pois a utopia tão
sonhada por todos nós depende da reconstrução de
David Ben-Gurion, um dos fundadores do Estado Jerusalém e do Templo Sagrado. Pelo fato de Jerusalém
de Israel e seu primeiro Primeiro-Ministro, afirmou: ser o centro espiritual do mundo, tudo o que lá ocorre
“Nenhuma cidade do mundo, nem mesmo Atenas afeta o restante do mundo. Nossos Sábios ensinam
ou Roma, teve um papel tão importante na vida de que todo dano que foi causado a Jerusalém trouxe e
uma nação, durante tanto tempo, como Jerusalém na continua a trazer malefícios a todo o mundo, pois o
vida do Povo Judeu”. Elie Wiesel, Prêmio Nobel Templo servia como fonte de proteção e ajudava a
da Paz, escreveu: “O fato de eu não viver em Jerusalém expiar os pecados de toda a humanidade. É por esse
é secundário; Jerusalém vive dentro de mim. Jerusalém motivo que o Povo Judeu lamenta a destruição de
é inerente ao meu judaísmo; é o centro de meus Jerusalém há quase 2 mil anos.
compromissos e meus sonhos”.
O nome “Jerusalém” tem muitos significados, entre
De fato, Jerusalém vive dentro de todo judeu, os quais, “Cidade da Paz”. Mas a paz ainda não
consciente ou inconscientemente. Mencionada mais reina em Jerusalém e o Templo Sagrado ainda
de 600 vezes no Tanach, a cidade é o marco nacional continua em ruínas. É por esse motivo que apesar do
da tradição judaica. Representa a alma coletiva do estabelecimento do Estado de Israel e da reunificação
Povo Judeu. Jerusalém não é apenas uma cidade – é a de Jerusalém, o Povo Judeu continua a observar as
eterna capital do Povo Judeu. A esperança de retornar a Três Semanas de Luto. Esperamos que em breve se
Jerusalém manteve vivo o nosso povo na Diáspora. Nas cumpram as Promessas Divinas, que o Templo Sagrado
épocas mais difíceis, o que lhes dava força e esperança seja restaurado e que haja paz em Jerusalém
era a frase: “No ano que vem, em Jerusalém”. - Cidade da Paz, e no restante do mundo.
Lições espirituais do
episódio do Bezerro de Ouro
O jejum do 17o dia do mês hebraico de Tamuz é o início de um
período de três semanas de luto pela destruição de Jerusalém
e a queda dos dois Templos Sagrados. lembra cinco eventos
trágicos ocorridos nessa data. O primeiro deles foi o fato de
Moshé ter quebrado as Tábuas dos Dez Mandamentos, quando,
ao descer do Monte Sinai, viu o Povo Judeu reverenciar o
Bezerro de Ouro.
O
episódio do Bezerro de Ouro é uma das Rabi Moshe ben Nachman, Nachmânides, oferece outra
passagens mais desconcertantes da Torá. explicação para o episódio, dizendo que o Bezerro de
Como foi possível que apenas 40 dias após Ouro não visava a substituir D’us, mas Moshé. Sua
a Revelação Divina no Sinai, o Povo Judeu explicação se origina da simples leitura do versículo:
escolhesse um bezerro de ouro – um objeto “Faze-nos deuses que irão adiante de nós, porque a este
inanimado – para tomar o lugar de D’us? Moshé, o homem que nos fez subir da terra do Egito
– não sabemos o que lhe aconteceu” (Êxodo 32:23).
Nossos Sábios ofereceram diferentes explicações. Rashi, Lembremo-nos que imediatamente após a Revelação
comentarista clássico da Torá, com base no Midrash, no Sinai – quando D’us Se revelou explicitamente a
escreve que todo o incidente foi instigado pelos egípcios todo o Povo Judeu e proclamou os Dez Mandamentos –
que se juntaram aos judeus por ocasião do Êxodo. Moshé subiu ao Monte Sinai. E lá permaneceu durante
Os egípcios eram idólatras que adoravam animais; 40 dias e 40 noites, estudando Torá diretamente com
portanto, não surpreende que tenham levado os judeus o Próprio D’us. Em sua ausência - e apenas por causa
a produzir e adorar o bezerro de ouro. O pecado dos de sua ausência – o Povo Judeu construiu o Bezerro de
judeus foi terem-se deixado influenciar pelos egípcios. Ouro. Isso é evidente, pois quando ele retorna do Monte
Segundo o Talmud, o episódio do Bezerro de Ouro é e destrói essa estátua, o povo não protesta. Se os judeus
inexplicável; foi um produto da Divina Providência. tivessem realmente sentido que Moshé destruía seu deus,
Aconteceu para nos ensinar que até mesmo a geração eles teriam intercedido para evitá-lo. Ou, ao menos,
conduzida por Moshé, que recebeu a Torá e mereceu teriam protestado vigorosamente. E não o fizeram.
a Revelação Divina no Sinai, era falível. Eles erraram, Quando Moshé retornou, eles já não precisavam do
ensina o Talmud, para que nenhum judeu mais se sinta Bezerro de Ouro e não lhes importou que ele o tivesse
abatido por seus pecados. Pois, se D’us perdoou o pecado destruído.
do Bezerro de Ouro, Ele certamente concederá expiação
por qualquer pecado que qualquer um de nós venha a A explicação de Nachmânides é particularmente lúcida.
cometer contra Ele. Revela que o Povo Judeu fez o Bezerro de Ouro porque
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sentia a necessidade de algo físico apenas porque D’us é despido de ocorre na vida de uma pessoa é
com que se relacionar a D’us. Moshé, tudo o que é físico, mas também D’us se comunicando com essa
um ser humano, criatura física, porque, como o afirma a Torá, um pessoa. D’us está sempre falando
servia a esse propósito. Quando ele ser humano não pode ver D’us e conosco, mas nem sempre Sua
se ausentou por 40 dias e o Povo continuar vivo. É verdade que o Povo mensagem é clara. D’us também
acreditava que ele tivesse morrido Judeu testemunhou a Revelação fala conosco por meio da Torá,
no Monte Sinai, eles decidiram Divina no Sinai, mas a experiência mas tantos de nós interpretamos
encontram um substituto para ele. foi tão devastadora que eles pediram errado Suas palavras. A vida é
a Moshé que dali em diante D’us cheia de perguntas e precisamos
Pode-se compreender por que apenas Se revelasse a ele, e que de respostas claras; oramos a D’us
o povo buscava algo físico para ele transmitisse Suas mensagens a e sabemos que Ele nos ouve, mas
substituir Moshé. Nós, seres eles. Nossos Sábios ensinam que a oração é um monólogo. É muito
humanos, vivemos em um mundo quando D’us proclamou os Dez raro D’us fornecer uma resposta
material. Até o mais espiritual Mandamentos, a alma dos judeus imediata a nossas preces ou uma
dentre nós habita este mundo físico deixou seus corpos e Ele teve que resposta a uma pergunta nossa.
e tem necessidades físicas. Todos os ressuscitá-los. Por isso a experiência Se pudéssemos nos comunicar
seres humanos têm uma necessidade foi tão devastadora para eles. com D’us como fez Moshé – se
inata por algo tangível. Funcionamos pudéssemos falar com Ele “olho
guiados por nossos sentidos físicos. Ademais, D’us não trava diálogos no olho, como um homem que
É muito difícil relacionar-se com conosco e, à exceção de Moshé, fala com seu amigo” – tudo seria
algo que não se pode ver, ouvir, tocar mesmo os profetas não tinham bem simples. A vida seria bem
ou com quem falar. É, portanto, mais acesso livre a Ele. Certamente, mais fácil para todos nós. Mas
fácil relacionar-se com seres físicos há muitas maneiras de D’us se não ouvimos a voz de D’us, pelo
do que com D’us. Não podemos ver comunicar com cada um de nós. menos não claramente. Somos
D’us. Isso está muito claro e não Os místicos ensinam que tudo que instruídos a “Atrás do Eterno,
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vosso D’us, andareis” (Deuteronômio povo optou pelo bezerro de ouro em preciso examinar não apenas o que
13:5), e nos voltamos à Torá e aos vez de Aaron, para substituir Moshé, o Bezerro de Ouro estava destinado
ensinamentos de nossos Sábios em porque um objeto, diferentemente a ser, mas o que realmente acabou se
busca disso, mas o que encontramos de um ser humano, não morre nem tornando.
são mandamentos e instruções desaparece. Um objeto não sobe
gerais. Consequentemente, as uma montanha, deixando seu povo O Bezerro de Ouro
pessoas estão sempre buscando algo a esperar, sem saber se ele algum dia e a Serpente de Cobre
ou alguém para lhes dar respostas retornaria.
mais claras e mais específicas a suas O episódio do Bezerro de Ouro se
perguntas e problemas. É por isso Assim sendo, o pecado do Bezerro iniciou com o pedido do povo para
que tantos judeus correm aos rabinos de Ouro não é tão simples como celebrar “uma Festa para o Eterno
e aos místicos que possuem Ruach muitos o julgam. O Povo Judeu não (que) será amanhã!” (Êxodo 32:5).
HaKodesh – o “Espírito Sagrado”, criou uma estátua de um bezerro por Na ocasião dessa festa, fizeram um
uma forma mais sutil de profecia. ter optado seguir uma estátua em objeto religioso simbólico.
É por isso que os judeus no deserto vez de seguir o Todo Poderoso, que O Bezerro de Ouro tinha a
eram tão dependentes de Moshé. havia feito tantos milagres para eles, intenção de ser simbólico, mas
Ele era o mais poderoso de todos os libertando-os do Egito, revelando- no final não foi o que aconteceu.
profetas – ele podia falar com D’us se diante deles no Monte Sinai e Aos poucos, foi-se tornando pura
a qualquer hora e as mensagens que proclamando os Dez Mandamentos. idolatria. A princípio, seu propósito
D’Ele recebia eram claríssimas. Se Ao contrário, na ausência de era ser um tipo de substituto
alguém precisasse perguntar algo a Moshé, eles buscaram algum tipo para Moshé – uma forma de
D’us, bastava dirigir-se a Moshé. de substituto para continuarem comunicação com D’us, mas se
conectados a D’us. O pecado do tornou um objeto de adoração. A
O Zohar, obra fundamental da Bezerro de Ouro foi consequência “Festa para o Eterno”, destinada a
Cabalá, ensina que a Shechiná – a direta do fato do povo não ter ser uma cerimônia religiosa, acabou
Presença Divina no mundo – falava acreditado que poderiam se relacionar sendo uma celebração descontrolada
pela garganta de Moshé (Raaya diretamente a D’us. Acreditavam ser e uma orgia. De repente, o Bezerro
Mehemna, Pinchas 232a). Moshé necessário um intermediário – algo de Ouro deixou de ser substituto
não apenas era profeta de D’us, tangível para poder se relacionar para Moshé – uma ideia muito tola,
mas o meio físico por meio do qual com D’us – Aquele que é totalmente no entanto relativamente inofensiva,
D’us se comunicava claramente despido de fisicalidade. mas um objeto de idolatria, que o
com o Povo Judeu. No Monte Sinai, povo imediatamente se pôs a adorar.
D’us deu as Tábuas nas quais foram Assim sendo, o pecado do Bezerro
gravados os Dez Mandamentos, de Ouro não foi um ato de clara Maimônides ensina que é
mas foi Moshé quem ensinou toda rebelião contra D’us. Tampouco foi exatamente assim que a idolatria
a Torá – todos os 613 mandamentos uma negação a D’us. Não foi um se desenvolveu. A seu ver, a
e suas ramificações – durante a ato de adultério espiritual, no qual o humanidade a princípio acreditava
jornada de 40 anos pelo deserto. Ele Povo Judeu tivesse traído D’us por na unicidade de D’us, mas, a certo
foi o líder e o mestre do povo, e o uma estátua de ouro. Foi um erro ponto, o homem começou a se
porta voz de D’us. Quando Moshé deplorável oriundo de conceitos relacionar com os “intermediários”
ascendeu ao Monte Sinai, o Povo errados sobre o relacionamento mais do que com o próprio
Judeu sentiu-se como uma criança errôneo entre o homem físico e D’us D’us, até que finalmente o ponto
abandonada por seus pais. Temiam Infinito. central foi totalmente esquecido
que nem mesmo o irmão mais e o povo começou a se concentrar
velho de Moshé, Aaron, um grande Por que, então, o pecado do Bezerro exclusivamente nos “intermediários”
profeta por mérito próprio, tivesse de Ouro é considerado um incidente (Leis da Idolatria 1:1-2).
condições de substituí-lo. Pois, tão notório na História Judaica?
de fato, nunca houve nem haverá Por que Moshé teve que orar em Vale a pena contrastar o pecado
tão grande profeta como Moshé, prol de seu povo, durante 120 dias, do Bezerro de Ouro com outro
inigualável e insubstituível. Alguns para evitar que D’us os aniquilasse? episódio no deserto que também
comentaristas da Torá inferem que o Para responder a essas perguntas, é envolveu a confecção de um objeto
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O pecado do por isso que D’us ordenou que Chassídico, o Rabi Menachem
fosse colocada no alto de um poste. Mendel de Kotsk: “Às vezes uma
Bezerro de Ouro Quando, em vez de usar um ponto Mitzvá (um mandamento religioso)
não foi um ato de tangível como meio de olhar para se torna uma idolatria”.
os Céus, o povo começou a atribuir
clara rebelião contra poderes independentes à Serpente Das alturas mais
D’us. Tampouco foi de Cobre, esta se tornou uma fonte elevadas aos abismos
uma negação a D’us. potencial de idolatria e derrocada mais profundos
espiritual, ainda que tivesse sido
Foi um erro deplorável construída atendendo a uma ordem Não foram apenas a ausência de
oriundo de conceitos Divina. Moshé ou os erros teológicos do
Povo Judeu e suas concepções
errados sobre o Os incidentes do Bezerro de Ouro erradas que levaram ao episódio do
relacionamento e da Serpente de Cobre oferecem Bezerro de Ouro. Ironicamente, foi a
muitas lições. Uma particularmente extraordinária experiência espiritual
errôneo entre o relevante é que é D’us – e não o no Monte Sinai o que lhes fez
homem físico e D’us homem – quem decide como Ele cometer esse erro crasso.
Infinito deve ser adorado. O incidente do
Bezerro não foi apenas um episódio A Revelação Divina no Monte Sinai
infeliz na história de nosso povo; é foi uma vivência única: por um
uma lição também para os nossos momento, o Povo Judeu se elevou
dias. Precisamos seguir D’us e a tal altura espiritual que cada um
nos relacionar diretamente com dos judeus se tornou um profeta – e
Ele ainda que seja difícil fazê-lo todos eles ouviram a comunicação
- ainda que não haja um Moshé direta de D’us. Imediatamente
para nos dizer exatamente o que após, tudo desapareceu. Até mesmo
fazer. A última coisa que devemos Moshé, que subiu ao Monte
fazer é criar novos símbolos ou Sinai, tinha desaparecido. Para
mandamentos religiosos – adulterar ele, a Revelação Divina e os Dez
a Torá – ainda que o façamos com Mandamentos foram seguidos, de
a melhor das intenções, visando a imediato, por 40 dias e 40 noites
realizar uma “Festa para o Eterno”. de estudo ininterrupto da Torá;
Não cabe ao homem decidir o que ele aprendeu a Torá diretamente
agrada a D’us. O homem finito com o Próprio D’us. Por outro
jamais pode alcançar o Infinito. lado, para o Povo Judeu, os Dez
Somente D’us Infinito pode vencer Mandamentos foram seguidos
a distância entre Ele Próprio e por um vácuo. Quando esse vácuo
Suas Criaturas. Portanto, não não foi preenchido com santidade,
construímos “bezerros de ouro” – e foi preenchido exatamente com o
tudo o que estes representam e oposto: deterioração e profanação
simbolizam. Pelo contrário, espiritual.
fazemos “serpentes de cobre”:
seguimos as leis e mandamentos Não devemos ficar tão perplexos
de D’us. Mas precisamos sempre com o fato de que o pecado do
estar cientes de que mesmo essas Bezerro de Ouro tenha ocorrido
“serpentes de cobre” podem ser apenas 40 dias após a Revelação
uma fonte de idolatria e graves no Sinai. Em retrospecto, foi uma
erros espirituais se nos esquecermos reação natural à entrega da Torá. É
de que são apenas o meio para o que ocorre, geralmente, quando
Tik - caixa cilíndrica para a Torá, em
madeira talhada e dourada. Veneza, se chegar a um fim. Como alguém alcança a exaltação espiritual
séc. 18 ensinou certa vez o grande Mestre e depois vivencia um brusco
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MONTE SINAI
desapontamento, quando tudo processo que permitirá que a pessoa Torá que é lida versa sobre a antítese
desaparece, subitamente. Muitos mantenha sua elevação espiritual. da santidade: lemos o capítulo 18
judeus que iniciam seu progresso do Livro de Levítico, que detalha as
espiritual no judaísmo geralmente Um exemplo é Yom Kipur – o dia proibições contra o incesto e outros
vivenciam esse problema. Eles em que D’us finalmente perdoou o pecados sexuais.
atingem certo nível de exaltação, Povo Judeu pelo pecado do Bezerro
como uma chama ardente: oram de Ouro. O Dia do Perdão deve Esse trecho da Torá da Minchá
com grande intensidade e cumprem ser o dia em que os judeus atingem do dia de Kipur parece totalmente
os mandamentos com tremenda grandes alturas espirituais. Nesse deslocado. Esse é o dia em que nos
paixão. Quando essa chama se dia, devemos nos comportar como concentramos nas mais elevadas
extingue, algo inevitável, o vazio que o fazem os anjos: não comemos, alturas espirituais a que um judeu
permanece pode ser devastador. não bebemos e passamos o dia em pode ascender. Em Yom Kipur,
oração. Tudo acerca de Yom Kipur cada um de nós é convocado a
O vácuo – a sensação de vazio que se transborda de energia espiritual. agir como se ele fosse o Sumo
segue a tanta paixão – pode Na manhã desse dia, a passagem da Sacerdote servindo no Templo
levar não apenas a uma regressão, Torá que é lida descreve o serviço Sagrado de Jerusalém. Como podem
mas até mesmo ao total abandono que era realizado nesse dia pelo ser relevantes a tal data o incesto
daquela jornada espiritual. Cohen Gadol (o Sumo Sacerdote) no e outros comportamentos sexuais
Os pontos exageradamente elevados Templo Sagrado, em Jerusalém. Yom imorais? Em outras palavras, por que
e edificantes na vida espiritual da Kipur era o único dia em que um lemos sobre tais assuntos vis, justo
pessoa podem ser muito perigosos, ser humano – o Sumo Sacerdote – no dia que personifica o máximo
pois apresentam o perigo de uma podia entrar na câmara mais sagrada da espiritualidade? Nós o fazemos
séria queda – ao ponto que um judeu do Templo – o Kodesh HaKodashim por uma boa razão: para nos fazer
pode cair a um nível ainda mais – o Santo Santíssimo. A leitura lembrar de que uma grande elevação
baixo daquele em que se encontrava da Torá na manhã de Yom Kipur espiritual pode ser seguida de um
antes de iniciar sua ascensão serve para destacar a singularidade terrível colapso espiritual.
espiritual. A maneira adequada de espiritual da data. E, contudo,
lidar com esse perigo é nunca tardar, estranhamente, durante a Minchá (o A leitura da Torá durante a Minchá
mas iniciar imediatamente um serviço vespertino), a passagem da de Yom Kipur nos transmite uma
11 junho 2016
tanach
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NOSSOS SÁBIOS
R
esh Lakish nasceu no 3º século da Era Conta a história que, em pouco tempo, Resh Lakish se
Comum. Cresceu na Terra de Israel, ao tornou um famoso gladiador. E, diferente da maioria
que tudo indica na cidade de Tiberíades dos outros, ele sobreviveu. Segundo algumas fontes,
ou arredores. Acredita-se, ainda que ele também viveu algum tempo no deserto, onde
não haja provas, que em sua juventude conseguiu sobreviver como fora-da-lei. Liderava uma
tenha estudado Torá com vários dos principais gangue de criminosos.
Sábios de sua geração. Contudo, por razões incertas –
provavelmente devido a dificuldades econômicas – ele O relato que segue é do Pirkei D’Rebi Eliezer, uma
abandonou o judaísmo e o mundo dos estudos. obra do Midrash: “Ben Azzai dizia: Para entender
Rabi Shimon ben Lakish viveu durante um o poder da Teshuvá (o retorno da pessoa a D’us e à
período difícil para os judeus na Terra de Israel. As Torá), venha e veja (o exemplo) de Rabi Shimon ben
autoridades romanas impunham editos implacáveis Lakish: ele e seus companheiros viviam nos montes
como parte de sua campanha para de lá expulsar os e roubavam quem cruzasse seu caminho. O que fez
judeus, especialmente os lavradores. O ônus fiscal lhes Rabi Shimon ben Lakish? Deixou seus companheiros
era opressivo. Eram, pois, forçados a buscar fontes roubando sozinhos e retornou ao D’us de seus pais
alternativas de renda. Resh Lakish possuía imensa com o coração pleno, com jejum e preces. Chegava
força física e, aparentemente, não conseguiu encontrar cedo, manhã e tarde, e ficava na Casa de Oração diante
outra forma de sustento a não ser a mais perigosa de do Santo, Bendito é Ele. E passava os dias estudando
todas, à época, mas também a mais lucrativa – lutar Torá; e fazia doações aos pobres. Nunca voltou aos
como gladiador. seus hábitos desprezíveis, e sua Teshuvá foi aceita.
No dia de sua morte, morreram também dois de seus
Os gladiadores tinham vida curta. Sabendo que logo companheiros, ladrões das colinas. Rabi Shimon ben
encontrariam a morte na cruel arena, a maioria deles Lakish foi colocado no Tesouro da Vida (nos Céus),
vivia intensamente o momento. O derramamento de enquanto seus dois companheiros foram colocados nas
sangue e o desrespeito à lei eram parte de seu mundo. câmaras mais baixas do Inferno.
13 junho 2016
nossOS SÁBIOS
Os dois companheiros disseram a da morte’ ” (Capítulo 42, Teshuvá Rabi Yochanan ficou impressionado
D’us: ‘Senhor de todos os mundos, e Boas Ações). com a força física de Resh Lakish
sem favoritismo...! Ele, que roubava e o cumprimentou: “Sua força
conosco, foi colocado nos Céus, É surpreendente a extensão da deveria ser dedicada à Torá”. Em
enquanto nós fomos sentenciados metamorfose de Rabi Shimon outras palavras, disse, um homem
para as câmaras mais baixas do ben Lakish, de gladiador e com sua bravura deveria canalizar
Inferno’! Ao que D’us respondeu: integrante de uma gangue sua energia para o estudo da Torá.
‘Ele fez Teshuvá em vida e vocês, a Sábio da Torá. O Talmud Resh Lakish retrucou: “Sua beleza
não’. Os ladrões responderam: Babilônico (Bava Metzia 84a) deveria ser dedicada às mulheres”.
‘Se nos permitir, faremos uma descreve o momento da transição: Rabi Yochanan lhe disse que tinha
Teshuvá incrível’. D’us retrucou: Rabi Yochanan bar Nafcha, uma irmã tão bela quanto ele, e que
‘A Teshuvá só é possível até o dia conhecido no Talmud como Resh Lakish teria sua permissão
Rabi Yochanan, um dos grandes para desposá-la se concordasse em
Sábios de sua geração, banhava- retornar ao judaísmo e devotar sua
se, certa vez, no rio Jordão. energia ao estudo da Torá. Resh
Os Amoraim (literalmente, “aqueles que
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Nascido em Tzipori, Galileia, na Lakish concordou e a irmã de Rabi
disseram ou recontaram”) foram os Sábios
de cerca de 200 a 500 EC que “recontaram” Terra de Israel, ele era conhecido Yochanan se casou com ele. Viveram
os ensinamentos da Torá Oral. Eles viveram, por sua beleza física. Por ele ser juntos por muitos anos. Tiveram
estudaram e ensinaram na Terra de Israel e na
Babilônia. Suas discussões e debates jurídicos
belo e não ter barba no rosto, filhos e o mais novo era famoso,
foram registrados na Guemará (Talmud). quando Resh Lakish o viu de desde pequeno, por sua mente
Os Amoraim vieram após os Tanaim na longe, pensou tratar-se de uma privilegiada (Talmud Babilônico,
sequência dos antigos Sábios judeus. Os
Tanaim foram os transmissores diretos da mulher. Ele atirou-se no rio Taanit 9a).
Torá Oral não codificada, ao passo que os Jordão, onde Rabi Yochanan se
Amoraim explicaram e comentaram, fazendo
esclarecimentos sobre a Torá Oral, após sua
banhava, descobrindo se tratar de Assim que Resh Lakish voltou
codificação inicial. um homem. ao estudo e prática do judaísmo,
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REVISTA MORASHÁ i 92
oficial
Página do Talmud
as suspeitas de Rabi Yochanan se um do outro. Resh Lakish era, Resh Lakish não era apenas seu
confirmaram. A extraordinária força geralmente, quem levantava cunhado, aluno e amigo, mas
física de Resh Lakish era, de fato, objeções e desafios. Ele questionava também parceiro nos estudos. Uma
uma manifestação de seu poder praticamente tudo o que Rabi interessante história no Talmud de
espiritual e intelectual. Ele logo se Yochanan dizia. Quem estuda suas Jerusalém ilustra a ligação entre
tornou um dos principais eruditos discussões no Talmud, pensa que Rabi Yochanan e Resh Lakish e o
no Beit Midrash (Casa de Estudos) eles discordavam em tudo. De fato, destemor e o compromisso com a
de Tiberíades, que, na época, era uma grande parte dos assuntos verdade do antigo gladiador.
o centro judaico mais importante discutidos tanto no Talmud de
no mundo. Era lá que se reuniam Jerusalém quanto no Babilônico Certa vez, Resh Lakish e outros
para estudar os maiores Sábios da se baseiam nas controvérsias eruditos em Torá estudavam as
geração. entre os dois. É importante notar leis relativas a um Nasi – o líder
que Resh Lakish não pretendia espiritual do povo e chefe do
Rabi Yochanan foi mestre de Resh questionar a veracidade ou a base Sanhedrin (Corte Suprema Judaica)
Lakish. Este, com seu enorme das opiniões de Rabi Yochanan, – que comete uma transgressão.
talento e inesgotável energia mas sim, investigar e esclarecer Rabi Shimon ben Lakish perguntou:
e diligência, logo adquiriu um melhor o assunto. Quando os dois “Se um Nasi cometeu um pecado, ele
conhecimento tão completo das debatiam, nunca era uma disputa pode ser açoitado?”. Responderam-
Leis da Torá que ficou em pé de para ver quem estava certo, mas lhe afirmativamente. Mais tarde
igualdade com Rabi Yochanan. queriam chegar a uma decisão clara ele perguntou: “Se um Nasi foi
O Talmud de Jerusalém (Berachot) e bem fundamentada. Quando açoitado, ele pode ser reconduzido a
se refere a ambos como “as duas Resh Lakish não encontrava base seu cargo?”. Responderam-lhe que
grandes autoridades” e “dois dos para sua opinião, não se acanhava não, por temor de que ele pudesse
grandes homens do mundo”. de abandoná-la. Amava sobretudo executar seus juízes. Quando Rabi
Esses dois mestres da Torá se a verdade. Rabi Yochanan apreciava Yehudah Nesiah – que era o Nasi
completavam, aguçando o intelecto isso profundamente. e neto do famoso Rabi Yehudah
15 junho 2016
nossOS SÁBIOS
HaNasi, autor da Mishná – soube foi procurá-lo e o trouxe de volta. as massas, mas também sobre os
dessa discussão, sentiu-se insultado Tocado pela modéstia do Nasi, Resh líderes e poderosos de seu tempo.
e ordenou a prisão de Resh Lakish. Lakish lhe disse: “Você agiu de Assim como ele fora um grande
Avisado de que seria preso, Resh forma semelhante a D’us. Em vez gladiador que nunca capitulara na
Lakish escapou, ausentando-se de me enviar um mensageiro, você arena, ele se tornou um Sábio da
do Beit Midrash. No dia seguinte, veio pessoalmente”. Mas, quando Torá que lutou por suas próprias
Rabi Yehudah Nesiah pediu a Rabi o Nasi lhe perguntou por que ele opiniões e que nunca fez concessões
Yochanan que dissesse algumas havia feito perguntas insultuosas no sobre sua essência espiritual e
palavras de Torá e este tentou bater Beit Midrash, Resh Lakish replicou: intelectual. Mesmo em suas disputas
palmas com uma só mão, como que “Você realmente pensou que eu com Rabi Yochanan – seu mestre e
a dizer que sem Resh Lakish ele era deixaria de ensinar as verdades da amigo – ele mantinha uma postura
incapaz de pronunciar suas ideias, Torá por temor a você?” (Talmud de independente. Nunca mostrou o
assim como uma mão não bate Jerusalém, Sanhedrin, 20a). menor desrespeito a seus oponentes,
palmas sem a outra. Rabi Yochanan mas, ao mesmo tempo, nunca abriu
precisava de Resh Lakish para criar Esse e vários outros relatos mão de seus ideais.
as discussões que ocorriam na Casa talmúdicos revelam que Resh
de Estudos: os contínuos debates Lakish foi uma notável mistura de Nas várias disputas entre ele e
sobre Torá – a pesquisa, a análise e benevolência e grande humildade Rabi Yochanan, a Halachá (lei
o esclarecimento de assuntos que pessoal, por um lado, e brilho da Torá seguida na prática) era
surgem de perguntas e respostas, do ideológico e até extremismo, por geralmente determinada segundo
dar e receber. outro. No nível pessoal, ele nunca Rabi Yochanan. É quase certo que
se zangava com ninguém. Mas em Resh Lekish concordaria com o
Ao testemunhar a reação de Rabi questões de Torá e princípio, ele não princípio de que era seu Mestre –
Yochanan no Beit Midrash, Rabi favorecia ninguém – nem mesmo não ele – quem tinha, geralmente, a
Yehudah Nesiah, além de permitir a o Nasi. Seus discursos continham razão. Contudo, em vários assuntos,
volta de Resh Lakish, pessoalmente declarações duras não apenas sobre a Halachá foi estabelecida segundo
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REVISTA MORASHÁ i 92
Resh Lakish Resh Lakish. Às vezes, Rabi física. Rabi Yochanan estava certo.
Yochanan era forçado pela lógica Se Resh Lakish canalizasse sua
foi uma mistura de Resh Lakish a abrir mão de força da maneira adequada, ele seria
de benevolência e sua opinião e agir de acordo com capaz de atingir alturas espirituais
os pontos de vista de seu aluno. e intelectuais inimagináveis. E foi
grande humildade Apesar da grandeza e da liderança o que ocorreu. O antigo gladiador
pessoal, por um lado, de Rabi Yochanan, bem como de canalizou seus grandes poderes para
e brilho ideológico e sua personalidade dominante, Resh a Torá. “Quando ele discutia temas
Lakish não ficava à sua sombra. Haláchicos, era como se ele estivesse
até extremismo, por Ele era um Sábio da Torá original arrancando as montanhas pela raiz e
outro. No nível e criativo, por seu próprio mérito. as esfregando, uma contra a outra”,
Ainda que tivesse adquirido a dizia o Sábio Ula. Ninguém se
pessoal, ele nunca maior parte de seu saber de Rabi equiparou a ele em diligência e ânsia
se zangava com Yochanan, também estudou com de estudar a Torá.
outros Sábios, desenvolvendo ideias
ninguém. Mas em próprias. O antigo fora-da-lei também
questões de Torá se tornou o maior símbolo de
e princípio, ele não A mudança na vida de Resh honestidade e integridade do
Lakish, quando ele voltou ao Talmud. Ele evitava associar-
favorecia ninguém mundo do judaísmo, não foi tão se a qualquer pessoa sobre cuja
surpreendente. Rabi Yochanan, probidade não estivesse plenamente
erudito perspicaz, gênio e místico convencido. Nunca falava em
que era, diagnosticou-o com público com alguém cujo caráter ou
precisão quando o conheceu no confiabilidade fossem questionáveis.
incidente no rio Jordão. A extrema O Talmud ensina que qualquer
força de Resh Lakish não era apenas pessoa com quem Resh Lakish
conversasse na rua poderia receber
rio jordão um empréstimo sem a necessidade
de fiadores (Talmud Babilônico,
Yomá 9b).
17 junho 2016
nossOS SÁBIOS
Extraordinário
piso de mosaico de
uma sinagoga do
séc. 4 EC, em
Hammat-
Tiberíades, um sítio
arqueológico da
antiguidade
Nessa passagem notável, meritório. Se ele nunca tivesse maior Sábio de seu tempo, já tinha
testemunhamos a fusão do antigo aprendido a usar a espada, dado o prisioneiro por morto,
gladiador e fora-da-lei com o Sábio se nunca tivesse conhecido a porque ele não tinha aptidão para
da Torá. Em vez de esquecer seu maneira de pensar e agir dos tratar nem lutar com bandidos –
passado, ele o usa para salvar vidas. criminosos, Rabi Imi nunca teria ao contrário de Resh Lakish, que,
Resh Lakish conseguiu resgatar sido libertado. Sua vida foi salva além de ser um homem de uma
e salvar a vida de uma pessoa em graças aos erros passados de Resh força física extraordinária, sabia
virtude de sua força física, porque Lakish, que, em retrospecto, empunhar uma espada e intimidar
sabia como empunhar uma espada tornaram-se a base para o maior os bandidos. Seu ato de salvar
e também porque tinha experiência de seus atos – salvar uma vida Rabi Imi teve o mérito de fazer de
em lidar com criminosos. Essa e resgatar uma pessoa. Por isso seus pecados – seus maus atos do
ação de salvar vidas se tornou não surpreende que Resh Lakish passado – méritos.
possível graças ao passado desse tenha sido quem proferiu o
grande Sábio. A história simboliza famoso ensinamento talmúdico: Dois gigantes da Torá
o conceito talmúdico de “Teshuvá “O arrependimento oriundo do
motivada pelo amor a D’us”: amor a D’us é tão grande que A morte de Resh Lakish e de Rabi
uma oportunidade rara, na qual os pecados premeditados são Yochanan foi comovente e difícil
um comportamento pecaminoso julgados como se fossem méritos” de entender. O Talmud narra
passado se torna positivo quando (Talmud Babilônico, Yomá 86b). como ocorreu: “Um dia, ambos
olhado através do prisma de debatiam em que estágio de sua
um novo contexto e propósito. Pensemos no que provavelmente produção as armas – como uma
Quando Resh Lakish sofreu se passou pela cabeça de Resh espada, uma faca ou uma lança –
uma metamorfose, D’us lhe deu Lakish quando ele estava sozinho devem ser consideradas prontas e,
a oportunidade não apenas de se no Beit Midrash na noite após portanto, passíveis de se tornarem
arrepender por seus maus atos, salvar Rabi Imi. Seu Mestre, Rabi ritualmente impuras. Durante a
mas de transformá-los em algo Yochanan, comprovadamente o discussão, Rabi Yochanan, talvez
18
REVISTA MORASHÁ i 92
pilheriando, disse que um “ladrão” depois, Resh Lakish adoeceu, e 24 objeções e eu lhe dava
(em referência ao passado de Resh se atribui a doença ao fato de ter 24 respostas, e aí chegávamos a um
Lakish) entende de seu negócio desrespeitado seu Mestre. Pouco pleno entendimento daquela lei. Mas
– é familiarizado com as armas e depois Resh Lakish faleceu. você me diz: ‘Há uma Baraita que
ferramentas de sua área. Muito apoia o que você diz’. Você pensa
ofendido que Rabi Yochanan Após sua morte, Rabi Yochanan que eu não sei que minhas avaliações
trouxesse à baila seu passado, Resh mergulhou em profundo pesar. são corretas?”. Rabi Yochanan, então,
Lakish retrucou: Os outros Sábios, testemunhando saiu da Casa de Estudos, rasgou suas
“Se é assim, no que foi que você o sofrimento de Rabi Yochanan roupas em sinal de luto, e, enquanto
me aperfeiçoou me fazendo pela ausência do melhor amigo soluçava, gritou: “Onde estás, ben
estudar Torá? Antes, entre os e companheiro de estudos, Lakish? Onde estás, ben Lakish?”.
gladiadores, eu era chamado de mandaram um dos melhores Chorou e chorou até perder a cabeça.
Mestre, e agora, aqui, sou chamado eruditos em Torá da época, Os Sábios imploraram a D’us para
de Mestre!” Rabi Yochanan, Rabi Elazar ben Pedat, para ter piedade dele e, pouco depois, ele
chocado com a aparente ingratidão acompanhá-lo. Conta-nos o faleceu. (Talmud Babilônico, Bava
dele, pergunta: “Não te é suficiente Talmud que este último se sentava Metzia 84a).
o fato de eu ter-te trazido para a diante de Rabi Yochanan e,
proteção das asas da Shechiná, da quando este falava, Rabi Elazar A morte dos dois Mestres fechou
Presença Divina?”. ben Pedat dizia: “Há uma Baraita um capítulo na história do Talmud
(um ensinamento talmúdico) que de Jerusalém e no estudo da Torá na
A consequência do ocorrido consubstancia o que o Mestre diz”. Terra de Israel. Durante centenas
entre os dois mestres da Torá Até que um dia Rabi Yochanan de anos, ninguém tomou seu lugar.
lhes causou muito sofrimento. lhe disse: “Você julga ser como De fato, poucos Sábios em toda a
Rabi Yochanan sentiu-se Resh Lakish? Quando eu proferia História Judaica tiveram vida tão
profundamente ferido. Logo uma lei, ele argumentava rica e comovente como eles.
19 junho 2016
nossOS SÁBIOS
Ao longo de quase dois milênios, abreviaturas de seus nomes, este gigantes da Torá e dois heróis do
Resh Lakish e Rabi Yochanan tinha um significado adicional. Seu Povo Judeu.
foram mestres e colegas de nome foi simplificado para a inicial
todos os judeus que estudaram o de Rabi Shimon, Resh e Shin — e Entre as inúmeras declarações de
Talmud, através de gerações. Eles Lakish era o nome de seu pai. Em Resh Lakish citadas no Talmud,
aparecem com tanta frequência no aramaico, Resh significa “cabeça há uma particularmente poética:
Talmud e suas discussões são tão ou líder”. Seu apelido sugeria seu “O mundo só existe em virtude do
envolventes e inspiradoras que, papel de líder de um grupo, não alento das crianças estudando a Torá.
quando estudamos uma passagem apenas dos Sábios da Torá. O nome O estudo da Torá pelos jovens não
em que eles estão presentes, expressava a estima geral por Resh deve ser interrompido, nem mesmo
sentimos como se estivessem Lakish como um grande líder tanto para construir o Templo”. (Talmud
vivos, sentados ao nosso lado. E, de gladiadores como de Sábios. Essa Babilônico, Shabat 119b). Zecher
na verdade, quase 2.000 anos após combinação de associações – de Tzadik Livrachá: Que a memória de
sua morte, eles continuam muito seu passado como gladiador e fora- um Tzadik seja uma bênção.
vivos. Seus nomes e ensinamentos da-lei, de um lado, e sua imagem
reverberam onde quer que os erudita, de outro – criou o composto
judeus estejam estudando o único de “Resh Lakish”.
Talmud.
Resh Lakish e Rabi Yochanan se Bibliografia
Um detalhe que ainda não completavam. Um ressaltava o Rabi Steinsaltz, Adin (Even
mencionamos: Por que Rabi brilho do outro. Seu predestinado Israel),Talmudic Images - Koren Publishers
Shimon ben Lakish era chamado encontro no rio Jordão mudou Rabi Kahn, Ari,Teshuva from Love and
Fear
de Resh Lakish? Trata-se de seu a vida dos dois – e mudou nossa Shimon ben Lakish, Rabbi (ca. 200 C.E. –
apelido, mas diferentemente do vida, a vida do Povo Judeu, ca. 275 C.E.)
apelido de outros Sábios, que são significativamente. Eles foram dois www.ou.org/judaism
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israel
O sucesso dos
vinhos de Israel
Que Israel é líder mundial em tecnologia agrícola e está
sempre um passo à frente na rota da inovação, nas mais
diferentes áreas, todo mundo sabe. O que tem surpreendido,
nas últimas décadas, é o destaque que o país tem conquistado
no ranking mundial de vinhos, caminhando lado a lado com
os grandes produtores internacionais.
P
or trás desse sucesso, estão o clima seco e 1983, conquistou várias vezes o Prêmio de Excelência
com grandes variações de temperatura, o solo da Vinexpo. A Golan Heights é, inquestionavelmente,
propício e o sol intenso, que caracterizam o um dos grandes pilares da chamada revolução e do
país como ideal à vinicultura. Do norte, com desenvolvimento da indústria de vinho de Israel, ao
altitudes de até 600 metros e alguma neve lado das vinícolas Carmel, Barkan, Efrat, Binyamina,
eventual, ao Deserto de Neguev, no sul, Israel tem uma Tishbi, Dalton e Castel, respondendo por cerca de 90%
paisagem muito apropriada à cultura dos vinhedos. Soma- das exportações do país e dominando mais de 80% do
se a este quadro determinação e criatividade da população mercado interno. Dados do Instituto de Exportação
aliada a técnicas avançadas de agricultura, do cultivo à e Cooperação Internacional de Israel mostram que as
colheita. Uma tarefa árdua, porém gratificante, pois os exportações de vinho do país cresceram 6% em 2015,
rótulos israelenses têm conquistado prêmios e a admiração totalizando US$ 39 milhões.
tanto dos produtores quanto dos especialistas do setor.
A história da chamada moderna vinicultura de Israel
A Terra de Israel produz vinho desde os tempos bíblicos. começou em 1882, com a fundação da vinícola Carmel
Até há pouco, Israel era conhecido como um grande na cidade de Zichron Ya’akov, ao sul de Haifa, pelo
fabricante de vinhos casher, excessivamente doces, que Barão Edmond de Rothschild, proprietário da Chateau
não costumavam agradar aos que apreciavam vinhos mais Lafite, em Bordeaux (França). As duas maiores vinícolas
refinados. Esta era a situação até o início dos anos 1990, de Israel pertencem à Carmel – a de Zichron Ya’acov
quando começaram a chegar ao mercado internacional e outra em Rishon Le-Zion, ao sul de Tel Aviv. Possui
novas safras de vinhos israelenses que, competindo lado cerca de 1.400 hectares de vinhedo, que se estendem da
a lado com os melhores vinhos produzidos na Europa Alta Galileia, ao norte, em direção ao Neguev, no sul, e
e nos Estados Unidos, passaram a ganhar prêmios produz 15 milhões de garrafas ao ano.
internacionais. A vinícola Golan Heights (Colinas
do Golã), por exemplo, que plantou suas primeiras Mas o ponto de partida para o que passou a se chamar
videiras em 1976 e lançou suas primeiras marcas em a “Revolução Israelense”, na área de vinicultura, deu-
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israel
colombia
vinhedos nas colinas do golã
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REVISTA MORASHÁ i 93
Lechaim!
23 junho 2016
shoá
OS ÚLTIMOS MESES
DE ANNE FRANK
Zevi Ghivelder
O
“Diário de Anne Frank” abrange o período e Bergen-Belsen e, depois da guerra, foram para Israel
de 12 de junho de 1942 a 1 de agosto contando com a ajuda de Otto, pai de Anne. Assim
de 1944, quando seu esconderijo em como a família Frank, sua família havia emigrado em
Amsterdã foi descoberto pelos nazistas e a 1933 da Alemanha para a Holanda. Ela era vizinha de
família Frank foi deportada para o campo Anne no bairro de Merwdplein, ao sul de Amsterdã, e
de concentração de Auschwitz. Depois, Anne e sua ambas foram colegas de classe desde o jardim de infância
irmã Margot foram transferidas para outro campo, o de até o curso ginasial. Ela perdeu o contato com os Frank
Bergen-Belsen, onde ambas morreram em março (não em 1942, quando Otto, a mulher e as filhas se refugiaram
se sabe se no dia 15 ou no dia 31) de 1945, apenas dois no “Anexo”, seu famoso esconderijo. Hanna só voltou a
meses antes do fim do conflito. falar com Anne três anos mais tarde através de uma cerca
de arame farpado em Bergen-Belsen.
Embora o diário de Anne tenha sido traduzido para
mais de 50 idiomas e tenha, desde então, emocionado Ela relembrou as agruras sofridas no campo de
gerações, pouco se sabe sobre as suas últimas semanas de concentração, tendo sido uma das mais marcantes a
vida. Algumas das mulheres entrevistadas por Lindwer contagem à qual as mulheres eram submetidas todos os
conheciam a família Frank desde os tempos de paz dias. Ficavam de pé, em fileiras, de quatro a cinco horas,
em Amsterdã e algumas foram colegas de Anne na enquanto os alemães as contavam e recontavam,
escola. De seus depoimentos se conclui com receio que alguma fugisse. “Fugir para
que a crueldade nazista superou onde, com uma estrela de David costurada na
todos os limites do comportamento roupa, sem dinheiro, sem nada? Um dia, em
humano, transformando as crianças, fevereiro de 1945, reparei que grandes tendas
principalmente as crianças, em haviam sido colocadas num local pouco
animais descartáveis. A holandesa afastado do nosso e separado por uma
Hannah Elisabeth Pick Goslar e cerca de arame farpado. Soube que ali
sua irmã sobreviveram a Auschwitz se encontravam prisioneiras oriundas da
REVISTA MORASHÁ i 92
Holanda. Consegui fazer contato pacote para Anne. Na noite seguinte, que se acalmasse, que eu tentaria
com uma delas e perguntei se quando foi ao encontro da amiga jogar outro pacote, como de fato fiz,
ela conhecia minha amiga Anne junto à cerca, arremessou-lhe o poucos dias depois, e ela conseguiu
Frank. Disse que sim e que iria pacote. “Anne passou a gritar quase pegá-lo. Foi a última vez que ouvi
chamá-la, mas não podia chamar histérica. Perguntei o que tinha sua voz”.
também a irmã porque ela estava acontecido. Ela respondeu que uma
muito doente, num beliche. mulher ao seu lado se apossara do O cineasta que realizou o
Sobre o arame farpado havia uma pacote e não queria devolver. Pedi mencionado documentário levou
espécie de cortina de palha e, por mais de um ano até convencer Janny
isso, além da escuridão do inverno, Brandes a prestar seu testemunho.
eu não pude ver Anne, apenas Ela conheceu a família Frank na
ouvir sua voz. Mesmo na sombra, estação ferroviária de Amsterdã, de
percebi que não era a mesma onde os judeus foram deportados.
Anne tal a sua esqualidez. Ela Janny fora presa por causa de sua
começou a chorar e me disse que atividade na resistência holandesa
não tinha mais pai nem mãe”. contra os invasores nazistas. Dotada
de forte personalidade, descendente
No decorrer daqueles dias, as de uma família de sionistas
prisioneiras receberam pequenos socialistas, dedicou-se de corpo
pacotes contendo biscoitos e alma a cuidar dos doentes em
enviados pela Cruz Vermelha Bergen-Belsen, sobretudo de Anne e
Internacional. Hannah pediu às Margot, ambas acometidas de grave
outras mulheres que cedessem tifo. “As condições de saúde nos
um pouco de seus biscoitos para barracões eram tão terríveis que uma
que ela pudesse preparar um anne frank em sils-maria, 1935 simples infecção na garganta era
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shoá
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29 junho 2016
entrevista
C
om uma taxa em formar os valores dos alunos.
de alfabetização Os adolescentes que completam
extremamente alta a educação escolar precisam estar
entre os países conectados com nosso país, nossa
desenvolvidos, Israel sociedade e nossa terra. Eles
pretende, nos próximos anos, precisam amar Israel, estar dispostos
aprimorar seu sistema educacional, a ajudar os menos afortunados
para que todas as crianças do país e fazer o que for necessário. Em
tenham as mesmas oportunidades, segundo lugar, precisamos aumentar
diminuindo, assim, as diferenças o número de crianças que estudam
entre os vários segmentos da Matemática Avançada, não apenas
população. visando a sua instrução, mas como
objetivo estratégico para manter a
superioridade de Israel. A terceira
coisa que temos que fazer é começar
REVISTA MORASHÁ: Qual sua a diminuir as diferenças entre os
missão primordial como Ministro de
vários setores em Israel. Meu sonho
Educação do Estado de Israel? Quais
é oferecer às crianças de Bnei
são os principais objetivos que pretende
Brak, Rahat, Ofakim e Herzliya
alcançar neste cargo?
oportunidades iguais na vida.
Naftali Bennett:
Estabeleci quatro objetivos para Por último, nosso quarto objetivo
o sistema educacional de Israel. é virar a pirâmide educacional de
Primeiro, os valores. Nossas escolas cabeça para baixo e investir mais
NAFTALI BENNETT desempenham um papel primordial nos estágios educacionais iniciais,
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REVISTA MORASHÁ i 92
ao invés de tentar remediar os Contudo, para que nossos jovens Há escolas sem orientação religiosa
problemas em fases posteriores da tenham a melhor instrução possível, ao lado de outras muito religiosas
vida. Com isto em mente, reduzimos devemos prezar certos valores e e, naturalmente, escolas de religiões
o número de alunos por turma nos sempre tentar melhorar. Por este minoritárias – como as do Islã e do
anos iniciais e acrescentamos um motivo, lancei nossa iniciativa Cristianismo – que ensinam seu
auxiliar em cada pré-escola. central de aumentar o número de credo.
alunos que estudam Matemática
Avançada, bem como outros
M: Como o Sr. avalia a qualidade da M: O Sr. é o líder do Partido HaBait
projetos. Por isso, também, estamos
educação fornecida nas escolas públicas HaYehudi – Lar Judaico – conhecido
investindo tempo e recursos para
em Israel? Em sua opinião, é melhor por ser um partido ortodoxo moderno,
começar a reduzir as distâncias entre
do que a instrução fornecida nas escolas de direita. Sua ideologia pessoal e a
os diferentes grupos da sociedade
públicas nos Estados Unidos, Europa e de seu partido ajudam a moldar o
israelense – para assegurar que
Ásia? currículo das escolas israelenses?
toda criança israelense tenha as
ferramentas e a oportunidade de
NB: Israel fornece a seus cidadãos realizar seu potencial. NB: O sistema escolar público
educação pública da mais alta não pertence a um partido ou a
qualidade, desde a pré-escola até uma ideologia. Serve a todos
a universidade. Deve-se a nosso
M: Qual o papel da religião no sistema os cidadãos israelenses,
educacional israelense?
sistema de educação pública o fato independentemente de sua fé
de Israel ter um taxa de alfabetização ou tendência política. Acredito
extremamente alta (cerca de NB: O sistema escolar público que seja importante que os
98%), e também o fato de nossas permite que os pais escolham o papel alunos recebam as informações
universidades públicas serem líderes que desejam para a religião e as ferramentas para tomarem
mundiais em muitas áreas. na educação de seus filhos. decisões abalizadas também
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entrevista
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REVISTA MORASHÁ i 92
33 junho 2016
ARTE
Jozef Israëls,
o “Rembrandt do Século 19”
Um dos principais expoentes da Escola de Haia, Jozef Israëls,
judeu holandês, é considerado o mais importante pintor da
Holanda da segunda metade do século 19. Ao longo de toda
sua vida, pintou inúmeras e fascinantes telas retratando
temas judaicos, exercendo considerável influência sobre
a geração posterior de artistas judeus.
A
s obras do chamado “Rembrandt do Mas, perante a determinação do filho, o pai cedeu,
Século 19” e “o Millet holandês” permitindo que Jozef estudasse artes. Sua única exigência
(numa referência ao pintor francês Jean- foi que, chegada a hora, o jovem fosse trabalhar nos
François Millet) estão expostas nos negócios da família. Assim, aos 11 anos, Jozef Israëls
principais museus do mundo, incluindo o teve suas primeiras aulas de desenho com o artista
Rijks Museum, em Amsterdã, o Metropolitan, J. Bruggink, na Academia Minerva, na própria cidade
em Nova York, e a Galeria Nacional, em Londres. onde nasceu. Com o mestre ele começou a pintar
paisagens, tema preferido de Bruggink. Um ano depois,
Sua vida estudou com outro pintor, Johan Joeke Gabriel van
Wicheren. Seu talento rapidamente despertou a atenção
Jozef Israëls nasceu em 1824, em Groningen, no norte e, aos 14 anos, tornou-se aluno de Cornelis Bernudes
da Holanda, em uma abastada família judaica. Filho do Buys, respeitado pintor de Groningen.
banqueiro, corretor de seguros e comerciante Hartog
Abraham Israëls e de Mathilda Solon Polack, Jozef foi Para Jozef, a arte era a razão de sua vida; decididamente
o terceiro de dez filhos do casal – tinha seis irmãos e não se encaixava no mundo dos negócios. Enquanto
três irmãs. trabalhava no escritório do pai, passava o dia desenhando
nas margens dos grandes livros-razão que devia atualizar
Seus pais desde cedo perceberam o talento do filho, e manter em ordem. Diante desse desinteresse pelos
mas Hartog não queria que Jozef estudasse arte, pois negócios da família e de seu inegável talento,
não queria um filho artista. Queria que assumisse os o pai acabou permitindo que Josef fosse para Amsterdã
negócios da família ou que fosse rabino, como era estudar artes. Tornou-se aluno de Cornelis Kruseman,
desejo de sua mãe. A educação religiosa que recebeu famoso pintor holandês da época. Dois anos depois, Jozef
desde criança e, mais tarde, seus estudos do Talmud, inscreveu-se na Real Academia de Artes de Amsterdã,
influíram profundamente em seu desenvolvimento então dirigida por Jan Adam Kruseman, primo de
intelectual e espiritual. Cornelius. Jan Adams é conhecido principalmente por
34
REVISTA MORASHÁ i 92
seus retratos, embora tenha pintado de François-Edouard Picot, pintor Giulio Carlo Argan, alegam que,
também paisagens e cenas de vários que foi professor de vários artistas na história da arte, concorrem
estilos. Com Kruseman, Jozef passou importantes da época. É quando duas grandes forças, constantes e
a pintar cenas históricas e bíblicas, sofre forte influência da Escola antagônicas: uma delas é o espírito
além de retratos. Absorveu as Romântica, da qual seus professores clássico; a outra, o romântico.
influências do movimento classicista1 eram os maiores expoentes. Alguns Os temas predominantes do
que buscava a pureza formal, o historiadores de arte, entre eles romantismo eram paisagens com
equilíbrio e o rigor então elementos idealizados e conotações
predominantes na Academia de históricas. Este gênero artístico
Belas Artes de Amsterdã. remonta ao barroco do século 17,
comum nas obras de Nicolas Poussin
Em 1845, com 22 anos, Jozef decide e Claude Lorrain.
continuar seus estudos em Paris,
sustentando-se com uma pequena No atelier de Picot, Jozef aprende a
mesada que seu pai lhe enviava. trabalhar essa técnica e a influência
A Cidade-Luz era o maior centro do mestre logo pôde ser percebida
artístico e cultural do mundo, para em suas primeiras pinturas históricas
onde afluíam artistas vindos de românticas.
todas as partes. Lá ele estudou na
Académie des Beaux-Arts e no Atelier Em meados do século 19, surge
na França mais um movimento
artístico – o chamado Realismo
1
Classicismo refere-se ao mundo antigo, Pictórico francês. O estilo baseado
ou seja, à valorização da Antiguidade
Clássica como padrão por excelência do na observação da realidade como
sentido estético. Jozef Israëls contexto social era uma reação
35 junho 2016
ARTE
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REVISTA MORASHÁ i 92
mãe e filha. Óleo sobre tela, coleção particular CriançaS no lago, 1872
pintura de retratos e temas históricos. O gênero, porém, já não atraía que o fascinou: o dia-a-dia dos
Lá participou de um concurso tanto o interesse do público e ele se pescadores. Durante sua
organizado pela Academia. Apesar voltou a temas como o homem do permanência em Zaandvoort fez
de não ter recebido um prêmio, foi campo que afluía para a cidade nos muitos esboços de composições que
destacado com louvor pelos críticos. dias das feiras. duraram até o fim de sua carreira e o
Seu grande salto se deu com as tornaram famoso.
pinturas “Meditação”, em 1850, e Adoecendo, ele deixa a capital e vai
“Adágio com expressão” , em 1851. para Zaandvoort, um pequeno Nas obras baseadas em suas
povoado de pescadores. Foi ali, nesse observações da vida dos pescadores
Em seguida, Israëls foi para vilarejo, que ele descobriu um tema holandeses, onde retratou seu
Düsseldorf, encontrando-se com o trabalho árduo, sofrimento e
pintor de paisagens J.W. Bilders, em sacrifícios, o pintor utilizou com
Oosterbeek. Ao voltar à Holanda, maestria a técnica do chiaroscuro2.
dedicou-se à história do país, que
retratou com grande precisão Em 1856, pintou um de seus
histórica e forte ênfase no aspecto quadros mais famosos, “Passando
psicológico individual. Ele foi um pelo túmulo da Mãe”. A obra, que se
dos poucos pintores holandeses encontra, atualmente, no Museu
de sua época a satisfazer o gosto Stedelijk, em Amsterdã, retrata um
dominante por uma narrativa pescador diante de um túmulo, de
fascinante na forma de “pinturas mãos dadas com seu filho, levando
históricas à la Grand Manner”. outra filha no colo. Os pés descalços
desse triste trio revelam pobreza e
dificuldades, acrescidas com a perda
2
O chiaroscuro (palavra italiana para da esposa e mãe.
"luz e sombra") uma das estratégias inovadoras
da pintura renascentista do século 15, define-
se pelo contraste entre luz e sombra na A costureira. Óleo sobre Tela.
No quadro “Pescadores carregam um
representação de um objeto hadassah katchkin gallery, tel aviv afogado”, atualmente na Galeria
37 junho 2016
ARTE
A vida em Haia
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REVISTA MORASHÁ i 92
39 junho 2016
ARTE
“Arte da Secessão e Arte Judaica na Eliane Strosberg, The Human Figure and
época. No momento em que o Jewish Culture
estilo holandês do século 17 vivia Europa Central”. Susan Tumarkin Goodman, The Emergence
um período de renovada of Jewish Artists in nineteenth-century
popularidade entre os críticos Sua amizade de longa data com o Europe
franceses, ele foi considerado o famoso pintor judeu Max Samantha Baskind & Larry Silver, Jewish
Art A Modern History
herdeiro vivo desta tradição. Ele Liebermann lhe trouxe estreitos e
Lucian Regenbogen, Dictionary of Jewish
conseguiu não apenas ser incluído inúmeros contatos na Alemanha. Painters
no prestigiado Salão Francês e na Assim, em 1892, participou de Edward van Voolen, 50 Jewish Artists you
Exposição Universal mostras com o grupo que viria a ser should know
40
CAPA
Os 500 anos do
Gueto de Veneza
Há 500 anos, no dia 29 de março de 1516, a Sereníssima República
de Veneza determinou que os judeus eram obrigados a viver
numa área delimitada, que passou a se chamar “Ghetto”.
Os judeus de Veneza lá viveram durante quase 300 anos,
até 1797, quando os muros foram derrubados por Napoleão.
A
longa e rica história dos judeus de mar Adriático, o Mediterrâneo e, principalmente,
Veneza será lembrada no decorrer deste o lucrativo comércio entre a Europa e o Levante.
ano de 2016 com uma série de eventos A Sereníssima atingiu seu apogeu na primeira metade
organizados pela comunidade judaica do século 15. Na época, seus domínios compreendiam
veneziana e a prefeitura da cidade. parte da Lombardia, da Ístria, da Dalmácia e vários
territórios no ultramar. O poderio comercial da cidade
Apesar de segregá-los atrás do muro do Gueto, a atraía mercadores de todos os países da Europa e do
Sereníssima República de Veneza demostrou ao longo Mediterrâneo, inclusive muitos judeus.
de sua história uma relativa tolerância em relação aos
judeus, atraindo para a cidade milhares deles vindos de De acordo com os historiadores, datam do final
toda a Europa e do Levante. Entre os muros do Gueto do século 10 as primeiras provas de uma presença
passaram importantes personalidades do mundo judaico. judaica em Veneza, apesar de haver indicações de que
Lá foram erguidas esplêndidas sinagogas e foi em seus comerciantes já atuavam na cidade em séculos
Veneza que se imprimiram milhares de livros judaicos. anteriores. Os primeiros documentos datam de 945 e
O intuito dos organizadores é fazer do lugar usado no 992, quando o Senado proibiu que embarcações indo
passado para marginalizar os judeus um veículo para ou vindo do Oriente levassem judeus a bordo. Apesar
a revitalização da, hoje, cada vez menor comunidade dessa proibição, eram raras as atitudes anti-judaicas por
judaica veneziana. parte da República.
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CAPA
irmãos de Creta. Mas, até o final abrir e as taxas de juros que podiam
do século 14, a presença judaica na cobrar. Veneza lhes deu permissão
cidade era temporária e esporádica, de eleger seus líderes comunitários,
apesar da tolerância da Sereníssima mas não de adquirir propriedades na
em relação à presença de seus cidade, exercer atividades artísticas
banqueiros e comerciantes. ou artesanais, tampouco de ocupar
cargos públicos ou militares. No
Durante toda a Idade Média o ano seguinte, 1386, o Senado lhes
fato deles possuírem capital era do concedeu uma área isolada do Lido
maior interesse para os governantes, onde enterrar seus mortos.
de modo geral, e Veneza não
foi exceção. Eram inúmeras as Ainda em 1385, Veneza firmou um
vantagens econômicas das cidades acordo com os banqueiros judeus
que permitiam aos judeus se que viviam em Mestre, situada em
estabelecer em seus domínios. Além banqueiro em seu banco. “os costumes
terra firme frente às ilhas de Veneza,
do substancial aporte de capital dos venezianos”, de g. grevembroch. para que concedessem empréstimos
museo cívico correr, veneza
que estimulava a economia, eles a taxas favoráveis às camadas
pagavam exorbitantes impostos cidade de prestamistas e, no ano mais pobres da cidade. Com este
anuais para concessão da licença seguinte, foi permitida a entrada acordo, a Sereníssima conseguiu
de permanência e de abertura de de judeus. Em 1385 foi concedida aliviar a pobreza da população e
casas bancárias. E, acima de tudo, a primeira “Condotta”, um acordo assim reduzir as tensões sociais que
os governantes podiam fixar as taxas entre a República de Veneza e os tinham emergido após as guerras,
de juros e exigir empréstimos em banqueiros judeus, que lhes dava a e, ao mesmo tempo, direcionar a
condições favoráveis ou até livre permissão para se estabelecer em hostilidade das massas contra os
de juros. Apesar da Igreja proibir Veneza para emprestar dinheiro prestamistas judeus.
aos cristãos emprestar dinheiro a a juros. O acordo que tinha a
juros, a necessidade de conseguir duração de 10 anos detalhava as A Condotta de 1385, no entanto, não
empréstimos não desaparecera nem regras que esses banqueiros deviam foi renovada em 1394 sob o pretexto
para os governantes nem para os seguir. Entre outras, fixava o de que os judeus não estavam
governados. salgado imposto anual a ser pago, seguindo as regras impostas às suas
o número de bancos que podiam atividades. É provável que por trás
Ciente dessas vantagens, a oligarquia
veneziana que governava a cidade
foi gradualmente se posicionando
a favor da admissão dos judeus,
principalmente após as guerras contra
Gênova e Chioggia (1378 e 1381)
terem esvaziados os cofres do estado.
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dessa atitude estivesse o temor Apesar de oficialmente expulsos, Em 1423, receberam ordem de
de sua penetração no comércio. uma série de decretos revelam vender, em um prazo de dois anos,
Expulsos de Veneza, os judeus se que em meados do século 15 as propriedades que possuíam
espalharam pelas outras cidades ainda havia judeus em Veneza. na cidade e em 1443 foram
da região do Veneto. A política proibidos de manter escolas de
restritiva que os impedia de viver qualquer tipo. Por outro lado,
em Veneza não se estendia a em 1430, o Senado determinara
seus domínios no ultramar e na que mesmo os judeus de Corfu,
península italiana. que embarcavam em navios
venezianos, deviam portar em suas
A atitude da República em relação roupas o círculo amarelo. Dessa
aos judeus sempre foi ambivalente forma estava implicitamente
e era constante a discussão no eliminada a proibição de
Senado se deveria ou não permitir transportar em navios da
aos banqueiros judeus trabalharem República Veneziana judeus e suas
e circularem livremente na cidade. mercadorias.
Receberam a permissão de
permanência durante um período Em meados do século 15 verifica-
de15 dias no mês e os que viviam se em toda a Europa uma sensível
em Mestre utilizavam-se dessa piora da situação dos judeus. Entre
concessão para atuar em Veneza. os fatores que provocaram o clima
Mas para serem reconhecidos anti-judaico estava a cruzada
como judeus já eram obrigados contra a usura e contra os judeus
a usar em suas vestimentas um travada pelos Frades Menores
círculo amarelo. scuola spagnola (franciscanos), que criaram, em
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CAPA
1462, instituições para emprestar de 1509, integrando os Estados tropas inimigas terem chegado até as
dinheiro isentas de objetivo de lucro, Pontifícios. O objetivo da Liga era portas da Lagoa criaram um clima
os Monti di Pietà. deter a expansão da República e, de tensão em relação à população
se possível, destruí-la, dividindo judaica. Em suas pregações, os
Mas, Veneza e Mestre não aceitaram os ricos despojos. Em abril de franciscanos diziam que a derrota era
o estabelecimento dos Monti di 1509, vendo o avanço dos exércitos o resultado dos pecados cometidos
Pietá, nem tampouco subordinar inimigos, judeus que residiam em pelos venezianos, o mais sério dos
suas relações com os judeus às Mestre e em outras áreas do Veneto quais era permitir aos judeus viverem
determinações de 1442 do Papa fugiram para Veneza. Esta última livremente na cidade.
Eugene IV, que ordenara a total assinara em 1503 um acordo com
separação física entre judeus e os banqueiros de Mestre, que lhes Rapidamente surgiram duas facções
cristãos. Ademais, a República permitia refugiar-se na cidade na sobre a atitude a ser tomada em
tentou evitar em seus domínios, eventualidade de uma guerra. relação aos incômodos judeus:
nem
1
sempre com sucesso, a onda expulsá-los ou não? Os argumentos
de intolerância e as acusações de O Senado percebeu rapidamente dos que eram contra a expulsão
assassinato ritual em relação aos que autorizar a permanência dos eram financeiros. Além dos vultosos
judeus que dominavam a Europa. judeus na cidade traria grandes impostos que pagavam anualmente,
benefícios econômicos e financeiros à eles haviam disponibilizado, sob a
A criação do Gueto República, extremamente necessários forma de vantajosos empréstimos,
em momento tão difícil. Apenas para grandes e indispensáveis somas à
A Guerra da Liga de Cambrai foi se ter uma ideia, os impostos anuais República.
o momento decisivo na história dos que os judeus passariam a pagar
judeus de Veneza. Em dezembro sanariam as finanças do Estado. Em O governo da Sereníssima resolveu
de 1508 formara-se uma coligação 1513, as autoridades concederam ao o “dilema” optando por uma
militar entre a França, o Sacro banqueiro judeu Anselmo del Banco segregação em massa. Em 20 de
Império Romano Germânico (Asher Meshullam), de Mestre, e a março de 1516, um dos membros do
e a Espanha para lutar contra a seus associados, a autorização de viver Conselho, após atacar violentamente
Sereníssima. Ainda faziam parte da e emprestar dinheiro em Veneza. os judeus de forma verbal, pediu
aliança a Inglaterra, Hungria, Savoia, que fossem confinados no Ghetto
Ferrara, Mântua e Florença. O Papa Mas, o fato da República ter perdido Nuovo, localizado no bairro de São
Júlio II aderiu à Liga em março grande parte de seu território e as Jerônimo. O Doge e Conselho
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A chegada dos
judeus ibéricos
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O declínio
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para operar as casas de penhores. ponentinos, até então em separados, fossem derrubados e removidas
A crise nos bancos causara uma foram unificadas por mais todas as diferenças e separações
sangria financeira na comunidade 10 anos. A medida era mais entre os judeus e o restante da
judaica nos últimos 30 anos do do que necessária, pois as população. No pátio do Gueto Novo
século 17, criando uma situação distintas atividades econômicas e os judeus cantaram e dançaram
paradoxal: suas dívidas constituíam responsabilidades referentes aos comemorando sua liberdade e a
uma blindagem mais poderosa dois grupos de judeus haviam-se chegada de Napoleão. A história do
contra a expulsão do que toda a sua fundido com o passar do tempo. Ghetto chegara ao fim, iniciando-
riqueza passada. Consequentemente, Há muito, os mercadores judeus se a história dos judeus venezianos
em 1722 as autoridades criaram o vinham fazendo pagamentos como cidadãos – uma história
Magistrado do Inquisitorato sopra contribuindo financeiramente com ainda conturbada. Apesar de nunca
l’Universitá a degli Ebrei, com o as casas dos penhores dos judeus mais terem que morar no gueto,
objetivo de restaurar e manter a alemães e, desde 1634, estes tinham os judeus só foram definitivamente
liquidez da comunidade. Durante o participação no comércio marítimo emancipados, passando a usufruir de
restante do século, esse Magistrado com o Levante. igualdade de direitos com os demais
criou, juntamente com o Senado, segmentos da população, em 1866,
uma serie de regulamentos Em 1797, vendo o avanço das tropas quando Veneza passa a fazer parte do
na tentativa de promover o de Napoleão, a comunidade judaica Reino de Itália.
funcionamento das casas de oferece prata e ouro à República
penhores, como forma de conseguir num último esforço para salvar
a liquidação das dívidas substanciais Veneza. No dia 6 de abril, o Senado
da comunidade judaica com cristãos veneziano lhes emite um decreto de
venezianos e outras comunidades agradecimento, um dos últimos atos
judaicas de Amsterdã, Haia e da Sereníssima. BIBLIOGRAFIA
Prof. Tramontana, Giuseppe, Gli Ebrei
Londres. As autoridades queriam Veneziani E L’inquisizione A Meta’ Del
com isso restaurar a capacidade de Em maio, os exércitos franceses ‘500. www.tuttostoria.net/
liquidez da comunidade judaica, mas já estavam às margens da Lagoa Simonsohn, Shlomo, La condizione
giuridica degli ebrei nell’Italia centrale e
acabaram supervisionando de perto e a República veneziana se settentrionale (secoli XII- XIV), in Storia
todos os aspectos diários de seus autodissolveu. No dia 12 de maio, a d’Italia, Gli Ebrei in Italia, Ed. Einaudi
negócios financeiros. cidade foi entregue a Napoleão. Radaelli, Matteo, Nuovi cristiani portoghesi
No dia 7 de julho, o governo ed ebrei ponentini a Venezia nel XVI secolo.
Kindle
Em 1738, as Condottas concedidas municipal, que assumira o governo, Curiel Roberta e Cooperman Bernard
aos judeus alemães, levantinos e ordenou que os portões do Gueto Dov, The Venetian Ghetto, Ed. Rizzoli
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história
Antissemitismo no pós-guerra:
o pogrom de Kielce
No dia 4 de julho de 1946, a cidade polonesa de Kielce foi
palco de um violento pogrom. A sede da comunidade judaica
foi atacada por uma multidão de civis, policiais e militares,
que massacraram, em plena luz do dia, 42 judeus - homens,
mulheres e crianças - e feriram mais de 100. Depois disso estava
claro que não havia futuro para os judeus na Polônia
P
assados 70 anos, o Pogrom de Kielce, a mais em câmaras de gás e que centenas de milhares morreram
sangrenta das manifestações antissemitas por brutalidade, fome e inanição. Tampouco há como
ocorridas em solo polonês, no pós-guerra, refutar que, após o final da guerra na Europa, e,
ainda é um capítulo obscuro na longa e transcorrido um ano sem nenhum soldado alemão em
sofrida história dos judeus na Polônia. Nos solo polonês, centenas de judeus, ainda assim, foram
últimos anos, historiadores e pesquisadores têm resgatado assassinados na Polônia e milhares mais enfrentaram o
inúmeros documentos e testemunhos, mas apesar disso perigo quando voltaram a suas cidades e seus vilarejos.
ainda há muitas perguntas sem resposta. Não é apenas A violência contra os judeus atingiu o clímax em
o Pogrom de Kielce que tem sido alvo de pesquisa por 4 de julho de 1946, em Kielce.
parte de historiadores, mas toda a atuação da Polônia
durante a 2ª Guerra, sua participação no Holocausto e o A Polônia após a 2ª Guerra Mundial
antissemitismo do pós-guerra.
A situação política da Polônia ao término da Guerra era
A posição do atual governo é isentar o país de qualquer tumultuada. O poder era disputado entre comunistas
culpa no que diz respeito à Shoá, afirmando que a poloneses apoiados pelo Exército Vermelho da então
Polônia foi vítima inocente dos alemães e não cúmplice e, União Soviética, que queriam que o país fizesse parte do
tampouco, um espectador complacente da política bloco soviético, nacionalistas da direita que agregavam
antissemita nazista que levou ao assassinato de milhões membros do Exército Interno, e os ultranacionalistas
de judeus. Porém, não há como refutar que foi a Polônia, das chamadas Forças Armadas Nacionais que queriam a
sob domínio alemão, que os nazistas escolheram para Polônia na esfera de influência ocidental.
estabelecer seus campos de extermínio: Chelmno, Belzec,
Sobibor, Treblinka, Auschwitz-Birkenau, Majdanek. Foi O futuro da população judaica na Polônia do pós-
para a Polônia que foram enviados os trens carregados de guerra continuava sombrio, pois, apesar das profundas
judeus de toda a Europa. Foi em solo polonês que mais divergências ideológicas, as duas facções tinham algo em
de 3 milhões de judeus foram assassinados e incinerados comum: suas fortes tendências antissemitas.
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monumento em kielce
Apesar de se terem tornado públicas durante a Shoá, provocara entre a O jornal assinalava que, desde o
as terríveis revelações sobre os população um forte ressentimento. início de 1945, 353 judeus haviam
campos de extermínio e o número de Os moradores de Kielce, assim sido mortos por assassinos poloneses,
judeus assassinados durante a Shoá, como no resto da Polônia, não entre eles, membros do Armia
não desaparecera o antissemitismo estavam dispostos a devolver suas Krajowa, o Exército Clandestino
que antes da Guerra permeava todos posses. Muitos dos ataques a judeus, Polaco, que lutara contra os nazistas.
os estratos da sociedade polonesa. registrados em toda a Polônia, Em abril de 1946, a Agência Judaica
Pelo contrário, estava sendo nos meses após o término da de Notícias alertara que “têm
alimentado por novas acusações. Guerra, envolviam “disputas” sobre circulado pela Polônia falsas histórias
Eram distribuídos folhetos propriedades, e apenas na região de sobre assassinatos rituais cometidos
“incentivando” os judeus a deixarem Kielce, dos 13 judeus assassinados por judeus contra crianças polonesas,
o país. Eles eram acusados de serem em junho de 1945, dois foram com o intuito de provocar distúrbios
comunistas e responsáveis pelo novo mortos por causa de “divergências” e pogroms”.
regime apoiado por Moscou, que sobre direitos de propriedades.
queria controlar o país. E o clero Nenhuma cidade polonesa esteve
católico reeditara a calúnia medieval Os alertas sobre os perigos de ser livre de incidentes antissemitas.
de que os judeus usavam sangue de judeu na Polônia do pós-guerra Nenhum judeu – mulheres, homens,
cristãos para produzir matzá. vinham de todos os lados. Entre velhos, crianças e até doentes –
outros, em 1 de fevereiro de 1946, estava a salvo. Por dinheiro ou por
Havia, também, um forte aspecto o Manchester Guardian publicou ódio, o assassinato de judeus seguia
econômico, que tem sido chamado uma reportagem sobre a situação. em frente. Em Cracóvia e Rezo
de “herança da guerra”. A volta As manchetes diziam: “Judeus ainda eles haviam sido acusados de ter
de judeus sobreviventes, donos em fuga da Polônia”, “Gangues cometido assassinato ritual e, em
de propriedades e negócios que políticas surgem para aterrorizá-los”, Radom, um hospital de órfãos judeus
haviam sido tomados por poloneses “Campanha de assassinato e roubo”. fora atacado. No dia 19 de março,
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história
um dos dois únicos sobreviventes de Kielce aconteceu entre Quando os pais lhe perguntarem
Belzec, que prestara testemunho em 20 e 24 de agosto de 1942, quando onde estivera, contou uma história
Lublin sobre o que presenciara, foi 21 mil judeus foram deportados para sobre um suposto homem que lhe
morto a caminho de casa porque era Treblinka, onde foram assassinados. teria pedido que entregasse um
judeu. E assim por diante... Dos milhares que passaram pelo pacote em uma casa. O garoto disse
Gueto de Kielce, apenas 150 que ao chegar à tal casa, fora preso
Os judeus de conseguiram sobreviver, saindo de e colocado em um porão, de onde
Kielce e o pogrom seus esconderijos ao término da conseguiu escapar dois dias depois,
Guerra e retornando à cidade, a com a ajuda de um outro menino
O destino da população judaica maioria esperando por uma chance que também estava preso no local.
polonesa foi traçado quando, na de emigrar para a então Palestina.
madrugada de 1° de setembro de Os pais de Henryk e os vizinhos
1939, a Alemanha ocupou a parte A violência que tornou Kielce acreditaram na história. Na primeira
ocidental do país. No dia o símbolo da infâmia e do ódio versão o garoto não incriminou os
4 de setembro as tropas de Hitler polonês contra os judeus eclodiu no judeus, mas, quando um dos vizinhos
chegaram à Kielce. Na época, a dia 4 de julho de 1946. O estopim lhe perguntara se o desconhecido era
cidade contava com 24 mil judeus, foi uma mentira contada por um cigano ou judeu, ele respondeu que
aproximadamente um terço da menino de nove anos, Henryk era judeu. Esta “informação” foi logo
população local. Os nazistas Blaszczyk, que não queria ser punido relatada à polícia.
implantaram leis antissemitas, sendo pelos pais por ter desaparecido
que saques, expropriações, trabalho durante três dias. Na manhã seguinte, indo à delegacia
forçado e assassinatos passaram a ser prestar depoimento, Henryk e o pai
a ordem-do-dia. No dia 1o de julho, Henryk saiu de passaram pela então chamada “Casa
casa indo visitar amigos no vilarejo Judaica”, onde viviam dezenas de
Em 31 de março de 1940 foi criado de Bielaki, a 25 quilômetros de judeus. Era a sede do Comitê Judaico
um gueto que passou a receber Kielce, onde, durante a Guerra, sua da Cidade, localizada na Rua Planty,
judeus de povoados vizinhos e de família vivera por um tempo. No dia no centro da cidade.
outras localidades da Europa. Mais seguinte, o pai, Walenty Blaszczyk,
de 1.200 foram mortos durante as comunicou o desaparecimento do A polícia também acreditou
várias Aktions nazistas realizadas no garoto à polícia. Dois dias depois, em na história de Henryk e lhe
gueto. A liquidação do Gueto de 3 de julho, Henryk retornou a Kielce. perguntou se ficara preso na Casa
Judaica; o garoto respondeu que
sim. Rapidamente três patrulhas
foram enviadas à Rua Planty,
acompanhadas pelo menino, que
apontou um judeu como sendo
quem o prendera no porão. Preso
o suposto culpado, os policiais
iniciaram uma busca para localizar
onde Henryk havia sido encarcerado,
pois constataram que o prédio não
possuía porão.
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história
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mês, cruzavam a fronteira polonesa sendo que alguns dos detidos sequer Independentemente de ter sido
ilegalmente; em julho, o número estavam no local do pogrom. espontâneo ou orquestrado,
subiu para cerca de 20 mil e, em o pogrom foi utilizado pelos
agosto, chegou a 30 mil. São poucos os estudos que tentam soviéticos para fins políticos. Ele
explicar as causas e identificar aconteceu justamente quando
As consequências os responsáveis pelo Pogrom de foram divulgados os resultados do
Kielce. A pergunta é: até que ponto referendo nacional, realizado pelos
Os responsáveis pelo Pogrom a tragédia de Kielce foi usada e comunistas, em junho de 1946 (não
de Kielce foram supostamente os eventos manipulados com fins há dúvida de que os comunistas
levados a julgamento. No primeiro políticos? fraudaram os seus resultados). As
julgamento nove pessoas foram autoridades comunistas estavam
condenadas à morte. Em setembro Há historiadores que acreditam que cientes de que a sociedade
e outubro, outros julgamentos o ataque foi consequência de uma polonesa era dominada por fortes
foram realizados, sendo os acusados trágica e espontânea série de eventos sentimentos antissemitas e que
civis, soldados e policiais. Entre embasados no ódio polonês pelos bastava uma faísca para acirrar seu
os réus estavam o comandante do judeus. Porém, outros sustentam ânimo contra os judeus e, assim,
Escritório do Serviço de Segurança a tese de que o ataque aos judeus fazê-los esquecer de outros assuntos.
e o chefe de Polícia Política de foi um ato de provocação política, E, de fato, a violência do pogrom
Kielce, ambos absolvidos. Não é preparado pelos serviços de segurança conseguiu desviar a opinião pública
possível saber quantos julgamentos poloneses e soviéticos. As ações do na Polônia e, mesmo, no Ocidente
foram realizados, pois os arquivos diretor do Escritório da Província sobre o referendo.
mais importantes foram destruídos para Segurança Pública, major
em 1989. Mas a verdade é que não Sobczynski, sem sombra de dúvida, Em 1992, na tentativa de apontar
houve justiça para as vítimas, pois incentivaram o pogrom. Sobczynski os responsáveis pelo Pogrom, uma
os julgamentos foram realizados no estivera na cidade de Rzeszow nova investigação foi coordenada
estilo stalinista, sem transparência durante uma tentativa de pogrom, pela Comissão Principal para
e muitas vezes com intuitos em junho de 1945, observando os Investigação de Crimes contra a
puramente políticos. Entre outros, acontecimentos e nada fizera, apesar Nação Polonesa. Esta comissão foi
a maioria dos supostos acusados de saber como civis e soldados agiam encarregada de coletar todos os
havia sido presa de forma aleatória, durante tais ataques. relatórios e documentos existentes.
61 junho 2016
história
Muitos haviam sido perdidos e a fomentar essa “obsessão pela condenações do antissemitismo,
única conclusão da Comissão foi inocência”, foi inaugurado senão a mais forte, já feita por um
reafirmar que as autoridades locais recentemente um museu dedicado líder polonês. Outros, no entanto,
não adotaram as medidas necessárias à família Ulma, massacrada pelos consideraram o discurso nada mais
para evitar a violência. nazistas por esconder judeus. do que um ato de relações públicas.
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63 junho 2016
DESTAQUE
Um premiê judeu
na Ucrânia
jaime spitzcovsky
A
os 38 anos de idade, O império comunista, criado por tema não é habitual em um país onde
Groysman tornou-se Vladimir Lênin, desintegrou- antissemitismo e décadas de repressão
também o mais jovem se em 1991, o que resultou na comunista tornaram indesejável a
premiê, chegando ao independência ucraniana. políticos assumir totalmente sua
poder em um momento condição judaica, afirmou Horowitz,
turbulento, marcado por conflito De acordo com o Congresso Judaico em reportagem publicada no “The
separatista, relações deterioradas com Mundial, há cerca de 360 mil judeus Times of Israel”.
a Rússia e crise econômica. na Ucrânia, o que corresponde a
uma das maiores comunidades da O texto destacou ainda a diferença
Localizada entre a Rússia e a Europa e a quinta do mundo, atrás nas visitas de políticos à sinagoga
Polônia, a Ucrânia registra uma de EUA, Rússia, França e Reino de Vinnytsia, cidade de 370 mil
antiga presença judaica, com os Unido. A história judaica no país, habitantes, nas cerimônias de
primeiros registros datando de 1030, porém, enfrentou momentos trágicos Rosh Hashaná. Enquanto a maioria
nas porções ocidentais do país. de perseguição, e a sombra do deles aparecia para
Nessas regiões, ao longo dos séculos, antissemitismo ainda ronda o país. saudar a comunidade, o prefeito
houve forte influência polonesa ou Groysman se juntava às preces.
austro-húngara, enquanto, nas áreas A chegada de Groysman ao governo Nascido em 1978, ele é neto de
orientais, predominou o poder russo. federal, portanto, carrega um sobreviventes do Holocausto. Seu
importante simbolismo. Segundo avô, Isaac, sobreviveu ao fingir-se
Com o fim dos impérios na Europa o rabino Shaul Horowitz, que de morto durante um massacre
oriental, na primeira metade do trabalha junto à comunidade perpetrado pelos nazistas.
século 20, e após a Revolução ucraniana, o novo primeiro-ministro
Bolchevique de 1917, a Ucrânia teve é o primeiro político de relevância Em entrevistas à mídia local,
um período curto de independência, nacional no país a dar visibilidade Groysman costuma relembrar o
sendo em seguida incorporada à a seu judaísmo e a suas práticas sofrimento de seus antepassados.
União Soviética, criada em 1922. religiosas. A transparência sobre o Também enfatiza laços com Israel,
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onde, acompanhado de seu pai os rumos implementados pelo Josef Zissels, líder da comunidade
Boris, costuma visitar familiares presidente Poroshenko. judaica ucraniana, declarou que
na cidade portuária de Ashdod. a chegada de um judeu ao posto
Alguns anos atrás, o jovem prefeito A crise começou em 2013, quando de premiê seria a prova contra a
de Vinnytsia recepcionou o então irromperam na capital Kiev protestos acusação do governo russo. Em
ministro das Relações Exteriores contra o então presidente Viktor janeiro, ainda na presidência do
de Israel, Avigdor Lieberman, para Yanukovich, considerado aliado de Parlamento, Groysman, no Dia
a inauguração, em sua cidade, de Moscou. A queda de Yanukovich, Internacional em Memória às
um centro avançado de medicina no ano seguinte, levou ao poder as Vítimas do Holocausto, realizou uma
diagnóstica, construído por Israel. forças políticas ucranianas defensoras cerimônia especial, com um minuto
de um afastamento do país em de silêncio em homenagem às
Groysman governou sua cidade relação ao Kremlin e aproximação à vítimas do nazismo. Foi um evento
natal entre 2006 e 2014. Conquistou União Europeia. Na porção oriental inédito no Parlamento ucraniano.
a fama de um administrador da Ucrânia, onde vivem comunidades
competente e honesto, em um russófonas e que desejam manter Mas o rabino-chefe de Moscou,
sistema político contaminado pelos laços privilegiados com Moscou, Pinchas Goldschmidt, em entrevista
vícios e corrupção vindos também começou um movimento armado, à agência de notícias JTA, alertou
do período soviético. Dois anos mergulhando a região em violência e para o crescimento de homenagens,
atrás, assumiu o Ministério de instabilidade. na Ucrânia, a líderes nacionalistas
Desenvolvimento Regional e foi envolvidos em ações antissemitas.
eleito presidente do Parlamento. A Rússia reagiu também à mudança O rabino mencionou uma cerimônia
Seu antecessor, Arseniy Yatseniuk, estratégica da Ucrânia, de priorizar realizada no dia 25 de maio, para
perdeu apoio do presidente Petro laços com a União Europeia evocar a memória de Symon Petliura,
Poroshenko e acabou afastado, numa e Estados Unidos, e anexou a chefe de milícias responsáveis por
votação entre os deputados, que península da Crimeia, que Moscou ataques sangrentos a comunidades
elegeram Groysman para encabeçar havia cedido a Kiev em 1954. judaicas entre 1917 e 1921.
o novo gabinete.
A crise entre Rússia e Ucrânia Em maio, um funcionário da
Encarregado de comandar o também envolveu as comunidades prefeitura de Kiev afirmou que
dia-a-dia do governo, Groysman judaicas locais em um debate sobre ruas da capital receberiam os
atua em um cenário de dificuldade antissemitismo. O Kremlin costuma nomes de Stepan Bandera e
econômica e combate à corrupção. associar os atuais nacionalistas Roman Shukhevych, nacionalistas
Há um pano de fundo complexo ucranianos a colaboracionistas que ucranianos que colaboraram com
para sua administração: a guerra atuaram com os nazistas ou que nazistas e foram responsáveis por
com separatistas na Ucrânia oriental, perpetraram pogroms no começo do massacres de comunidades judaicas.
que, apoiados por Moscou, rejeitam século 20. “Judeus russos e judeus ucranianos
compartilham a preocupação com
essa celebração de conhecidos
Vladimir Groisman, Petro Poroshenko E Arseniy Yatsenyuk
antissemitas e colaboracionistas”,
declarou o rabino Goldschmidt.
35 junho 2016
comunidades
OS JUDEUS NA COLÔMBIA
DURANTE A 2ª GUERRA MUNDIAL
POR reuven faingold
A
presença judaica na Colômbia nos remete e atacadista os tornaria pessoas destacadas na sociedade
aos dias da independência da nação, e, de certa forma, contribuiria para criar certa inveja
entre 1810-1819, tempos difíceis de crise entre os locais. A legislação migratória da Colômbia
institucional na Espanha. Por volta de 1819 era fortemente restritiva. Talvez por isso, o número de
o governo já reconhecia o direito dos judeus imigrantes vindos do exterior era inferior ao de outros
a se estabelecer no país. A maioria dos imigrantes eram países latino-americanos, como Argentina, Uruguai e
de origem sefaradita e viviam nas ilhas do Caribe, Venezuela. No período entre as duas guerras mundiais,
principalmente em Curaçao. O ladino era a língua dos o mito da “invasão dos estrangeiros” ecoou forte na
exilados judeus da Espanha, adotada em toda a costa do Colômbia, aumentando quando se tratava de judeus.
Atlântico.
A Colômbia da década de 1930 presenciava o surgimento
Em 1832, a cidade de Barranquilla possuía um cemitério do fascismo e do nazismo, duas ideologias que minavam
judaico e testemunhava a forte pujança comercial da o sistema político democrático. Tanto nas fileiras do
cidade. Lá vivia, em 1854, a família Cortissoz Jessurum Partido Conservador como no Partido Liberal, nasciam
Pinto, contribuindo para o crescimento dessa vila novas vertentes políticas extremistas que afrontavam as
colonial, enquanto o judeu sefaradita David Pereira se velhas forças políticas colombianas. O surgimento do
elegia governador. Durante o século 19 até a 1ª Guerra, UNIR, de Jorge Eliezer Gaitán, e a facção política dos
a comunidade foi crescendo gradualmente, recebendo denominados Leopardos simpatizavam abertamente
imigrantes da Europa oriental. Entre 1928-1930 com as ideologias totalitaristas. Portanto, o clima social
ingressaram aproximadamente 1.000 judeus na Colômbia. encontrado pelos judeus então chegados à Colômbia não
foi dos mais favoráveis.
A imigração asquenazita desconhecia o espanhol,
portava traços físicos diferentes da população autóctone O surgimento do Nacional-socialismo na Alemanha
e chegou numa situação de penúria. Mas isto seria por em 1933, a aplicação de leis racistas em Nüremberg, a
pouco tempo, pois sua vocação para o comércio varejista anexação da Áustria, a entrega dos Sudetos a Hitler (na
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dupla em relação aos judeus e frente de “temer pelo cruzamento racial o impediu. Após o advento do
aos regimes totalitários. Segundo indo-semita, pois nele há indícios nazismo ao poder na Alemanha e
artigo publicado em Nuestra Tribuna de qualidades inferiores tais como na Áustria, Zweig emigrou para
(29/01/1936): “Aqueles políticos mimetismo moral, astúcia, bajulação, Petrópolis, no Rio de Janeiro, onde
colombianos que pregam uma servilismo aparente e crueldade se suicidou em 1942.
linha liberal são os que mais falam íntima”. Ao falar dos refugiados
como Hitler”. Na época, o jornal El judeus da 2a Guerra, López Mesa Outro político colombiano favorável
Tiempo, um órgão do Partido Liberal é bem contundente: “Eles não à vinda de judeus ao país foi
e propriedade de Enrique Santos, passam de comerciantes de duvidosa Armando Solano, que, num artigo
(irmão do presidente do país), moralidade e sem fortuna..., com no jornal El Tiempo, manifestava
travava uma dura campanha contra os traços típicos que caracterizam seu apoio a eles, incentivando
os judeus refugiados. certas raças,... vivem para burlar a a contratação de seus mestres e
lei”. Mesmo já encerrada a Guerra professores. Solano não só os achava
Na véspera da 2ª Guerra, na Europa, o Ministro continua “pessoas excepcionalmente dotadas
era notória a influência do Ministro referindo-se aos judeus “que intelectual e artisticamente”, mas
de Relações Exteriores, Luis López gostam do poder e de riquezas, com também os considerava “uma raça
de Mesa. Fascinado pela “questão truculência e muita esperteza”. incompreendida e caluniada através
racial”, ele difundia teorias racistas da história”.
que passaram a ser consideradas Porém, nem todos os liberais
não apenas curiosas, mas também colombianos pensavam como ANTISSEMITISMO E
eruditas. Em suas obras, o ministro Mesa. No Ministério da Educação ANTIJUDAISMO
critica o trabalhador latino- a opinião era favorável à imigração
americano tido como preguiçoso judaica, “permitindo-se que mestres A hispanidade católica e o
e inconstante, e rasga elogios ao judeus ingressem nas Universidades antissemitismo sempre atuaram
imigrante alemão. e colégios para ministrar aulas, concatenados no âmbito político
especialmente nas disciplinas em que colombiano. A presença judaica
Suas ideias, inseridas em diversos não havia mestres idôneos”. dentro do partido conservador era
trabalhos, foram consideradas pelos O Ministro da Educação da vista como uma afronta à velha
intelectuais como verdades absolutas. Colômbia, Germán Arciniegas, tradição colombiana do poder
A mistura entre o elemento tentou trazer para o país o escritor executivo. Havia políticos que
autóctone e o judaico preocupava Stefan Zweig. O Ministério de denunciavam os judeus como
bastante a López Mesa, a ponto Relações Exteriores colombiano figuras indesejáveis numa sociedade
fortemente cristã e tradicionalista.
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Gradualmente, os judeus dos bairros Once e Villa Crespo e a Unión Hebrea. A relação entre
colombianos foram migrando do para Belgrano) e em São Paulo (do ambas instituições era complicada,
comércio para a pequena indústria, Bom Retiro rumo a Higienópolis e até 16 de março de 1936, data em que
abafando a acusação de que eles, Jardins). Este processo migratório se juntaram numa única entidade.
estavam afundando o comércio judaico era urbano e, geralmente,
local. O setor de peles (peleteria) ia acompanhado de um acentuado Na Colômbia também achamos
era algo desconhecido, no qual clima antissemita. Na Colômbia judeus fora do comércio. Através
foram pioneiros. Eles também a chamada “questão judaica” nunca do judeu Bernardo Pellman,
introduziram a indústria de calçados teve fortes repercussões nem atos houve tentativas institucionais de
nas cidades da Colômbia. Desta de violência contra a integridade criar colônias judaicas agrícolas
forma nascia uma classe média física dos judeus, como aconteceu nos 29.308 km² da região de
emergente preocupada em que a na República Argentina. O Cauca,“contando com o apoio
população carente pudesse calçar antissemitismo aparecia no confronto do governo, que aceitou oferecer
sapatos, pela primeira vez. entre os temperamentos das pessoas: toda ajuda financeira para sua
“o colombiano é bondoso enquanto o concretização”.
A maioria dos artigos publicados na polaco (judeu) é repleto de maldade”.
imprensa deixa clara a sensação de As autoridades locais de Bogotá
ineficácia do establishment diante do Mas, nem sempre a Colômbia desconheciam os avanços internos
sucesso dos imigrantes judeus. Para confrontou a bondade com da comunidade. Em 1936, o prefeito
os jornalistas da época “o semitismo a maldade. Alguns escritores Jorge E. Gaitán pedia uma doação à
centro-europeu provoca enorme amenizaram estas opiniões saindo em comunidade para a fundação de uma
progresso nas áreas do comércio e da defesa dos comerciantes e artesãos, escola com financiamento dos judeus
indústria, desbancando o elemento tentando defender uma “raça digna de nacionalidade inglesa, americana,
colombiano e causando grande de respeito”. Havia jornais, como El alemã, polonesa, francesa, italiana,
prejuízo ao país”. Faro, de Ibagué, que não hesitavam espanhola, mexicana e sírio-libanesa.
em fazer propaganda dos comércios
Esta afirmação preparou o terreno judaicos. Os judeus popularizaram o A resposta da comunidade judaica
para difundir na Colômbia os mercado têxtil, tornando acessível o a Gaitán não demorou: “Todos os
Protocolos dos Sábios de Sion, um comércio de roupas, que até aquele judeus da Colômbia formam uma
panfleto antissemita anônimo que momento era exclusivo de uma unidade nacional, étnica, cultural,
circulava livremente nas sociedades minoria. A comunidade judaica foi sem distinção de procedência e sua
latinoamericanas desde 1920. prosperando gradualmente; fundou- representante é a Federación Judía
A acusação milenar de judeus se o primeiro colégio, uma padaria e de Colômbia”.
gananciosos, usurários e exploradores um açougue casher.
iria alimentar a literatura Outro exemplo do desconhecimento
colombiana. Na verdade, trabalho Os membros da comunidade generalizado vigente na
duro e saber quando poupar dinheiro acompanhavam com preocupação Colômbia é o fato de incluir nas
explicam o rápido avanço dos judeus os acontecimentos na Europa “listas negras” como fascistas ou
na modernidade. conquistada por Hitler. Um exemplo nazistas, judeus oriundos da Itália
era o do Sr. Lambert Ullman ou da Alemanha. Se o polonês era
PROSPERIDADE E (judeu dono da “Marion”), que não sinônimo de “judeu”, o alemão era
SOLIDARIEDADE autorizava a entrada de nazistas sinônimo de “nazista” e o italiano
colombianos no seu armazém “ao de “fascista”. A Colômbia vivia
Diferentemente de outras cidades saber que seus familiares haviam submersa na ignorância e pouco
latino-americanas, em Bogotá não sido gasificados em Luxemburgo”. conhecia do que acontecia além de
havia um bairro judaico. À medida Como vemos, na comunidade havia suas fronteiras.
que progrediam economicamente, consciência sobre o Holocausto. Duas
os judeus colombianos procuram associações judaicas trabalharam PALAVRAS FINAIS
bairros de nível mais elevado. Este incessantemente para unir a
processo é normal e aconteceu comunidade, a Federación Israelita No período entre 1918-1945
também em Buenos Aires (migrando (patrocinadora da Nuestra Tribuna) a Colômbia recebeu judeus
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pública nada fez para apagar a fortalecimento dos laços. Donadio, Alberto - Galvis, Silvia,
intolerância e os preconceitos 11
Colombia Nazi 1939-1945. Editorial
Planeta, Bogotá 1986, 358 págs.
existentes, todos enraizados numa Com nove sinagogas espalhadas pelo Hernandez Garcia, J.A., Emigración
sociedade hispânica e católica. território colombiano atualmente, judia em Colombia em los años 1930
y 1940. Um caso particular: los
Convenientemente doutrinada, a maioria dos judeus vive em polacos. Pensamiento y Cultura Vol. 10
essa opinião pública colocou a Bogotá – cerca de 7 mil, e mais (noviembre de 2007).
população local contra o elemento 6 mil na cidade de Barranquila. Hernandez Garcia, J.A., Judíos en
judaico, gerando uma animosidade Há pequenas comunidades em Colombia, entre el antissemitismo y el
triunfo comercial. Bogotá.
entre as diferentes partes da Medellin e em cidades de veraneio Osterwald, Ariane, Los judíos
sociedade.Desta forma, não é como Cartagena, Santa Marta e na colombianos: La historia de um pueblo
incorreto afirmar que a Colômbia Ilha de San Andrés, além de outras escondido. University Honors in
Spanish Studies. Department of World
foi um dos países mais restritivos da em cidades menores como Bello. Languages and Cultures. College of
América Latina. Foi também um Segundo estatísticas da comunidade, Arts and Sciences. Spring 2003.
dos países que votou contra a [Texto na Internet].
o número de judeus sefaraditas
Partilha da Palestina, em 1947 e e asquenazitas é praticamente o
não reconheceu o Estado de Israel mesmo, possuindo cada segmento
quando foi criado, em 1948. Foi suas próprias entidades religiosas
somente na década de 1960 que e culturais. A Confederação das Prof. Reuven Faingold é historiador
e educador, PHD em História e História
Embaixadas foram abertas nos Associações Judaicas da Colômbia, Judaica pela Universidade Hebraica de
Jerusalém. É também sócio fundador
dois países, estabelecendo relações instalada em Bogotá, é a entidade- da Sociedade Genealógica Judaica
diplomáticas. Em 1988, foi assinado teto da comunidade, reunindo todas do Brasil e, desde 1984, membro do
Congresso Mundial de Ciências Judaicas
um amplo acordo comercial entre as instituições judaicas do país. de Jerusalém.
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MORASHA.COM
O
Comitê Olímpico até 2015, afirmou que “Antes tarde do que
Internacional (COI) nunca... ainda que com 44 anos de atraso”.
vai prestar homenagem
aos 11 atletas israelenses Nos Jogos de Londres de 2012, no 40º
assassinados por terroristas aniversário do ataque de Munique, o COI
palestinos nas Olimpíadas de Munique, em rejeitou todos pedidos para se homenagear
1972, apesar de ter-se recusado, em nota oficial, a que os atletas israelenses. Essa atitude foi muito criticada,
se fizesse um minuto de silêncio, em sua homenagem, principalmente tendo em vista que vários outros eventos
na cerimônia de abertura dos Jogos, frustrando uma celebrando a data foram realizados em outras partes.
antiga solicitação das famílias enlutadas.
Os Jogos do Rio serão a 16a participação de Israel
A homenagem será realizada no dia 14 de agosto, na nas Olimpíadas e, para tanto, o país trará sua maior
Prefeitura do Rio, conduzida em conjunto pelo COI e delegação de todos os tempos, com cerca de 50 atletas
pelos Comitês Olímpicos do Brasil e de Israel. para os Jogos Olímpicos e mais 50 para os Jogos
O Governo de Israel será representado por sua Paralímpicos, disputados a seguir. Os Jogos Olímpicos
Ministra da Cultura e Esportes, Miriam “Miri” Regev. vão ser realizados entre os dias 5 e 21 de agosto e as
Na ocasião serão acesas 11 velas pelas viúvas de Yossef Paraolimpíadas entre 7 e 18 de setembro.
Romano, z”l, levantador de pesos, e de André Spitzer,
z”l, treinador de esgrima, ambos vítimas do terror Um detalhe muito especial para a comunidade judaica
palestino em Munique.. do Brasil e para Israel é o fato de serem judeus, membros
detacados na kehilá, os três principais executivos
O COI também dedicará uma área especial na encarregados das Olimpíadas do Rio! Ao lado de Carlos
Vila Olímpica do Rio para homenagear todos os Arthur Nuzman, Presidente do Comitê Olímpico
atletas olímpicos mortos. Da mesma forma, haverá Brasileiro, desde 1995, e um dos nomes mais destacados
um momento de reflexão em honra dos mesmos na nos esportes no Brasil, estão Sidney Levy, Diretor Geral,
cerimônia de encerramento. A ex-Ministra da Cultura e Leonardo Gryner, Diretor Geral de Operações do
e Esportes de Israel, Limor Livnat, que ocupou o cargo Comitê Rio 2016.
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REVISTA MORASHÁ
Interessantíssima a matéria sobre A Morashá foi distribuída em É um prazer receber esta revista,
Karnit Flug que assumiu o cargo de Belo Horizonte no domingo fruto de um trabalho sério, coletivo,
Governadora do Banco de Israel, 3 de abril, quando realizamos uma que faz muito bem à comunidade
função equivalente à de presidente grande atividade judaica, o “Mega judaica e a todos que querem
do Banco Central do Brasil, e muito Tefilin”. Aproximadamente 120 conhecer sua história, seus costumes
atual já que no Brasil acaba de correligionários de nossa comunidade e suas crenças.
assumir o novo presidente do se reuniram na sinagoga para cumprir Demostenes Rust
Banco Central, membro da a mitzvá da colocação do Tefilin Londrina - PR
comunidade e nascido em Haifa. com o maior número possível de
Moises Filkenstejn
pessoas. Foi um evento sui-generis Sempre vibrei por receber esse
Por email em Belo Horizonte e talvez no Brasil. presente maravilhoso desde
Abrilhantou mais ainda a atividade setembro de 2002. Eu as mantenho
a valiosa contribuição de guardadas cada uma dentro do
Morashá continua publicando
120 exemplares da edição de abril meu coração e também na minha
matérias de especial interesse, entre
distribuída aos presentes, que estante. Que D’us continue a
as quais, a reportagem sobre as
levaram consigo uma revista repleta abençoar todos que se envolvem
mulheres nas unidades de combate.
de conteúdo judaico. com a produção lindíssima,
A matéria nos esclarece e, ao mesmo
tempo, orgulha-nos sobre este Rabino Nissim Katri editoração sem igual, bem como
Sociedade dos Amigos do
importante aspecto do Tzahal. Beit Chabad de Belo Horizonte todos os que a recebem.
Belo Horizonte - MG Maria Zélia Françoso
Claudio Goldsteyn
Por email
Por email
Gostaria de parabenizar a revista
pelas belíssimas e riquíssimas
A partir da capa lindíssima, a visão Gostaria de parabenizar a excelente
matérias sobre o mundo judaico e
da edição da revista Morashá qualidade e os artigos da Morashá.
a cultura milenar judaica, que tanto
nº 91, de abril de 2016, prometia o têm contribuído com o crescimento David Telvio Knobel
São Paulo - SP
que de fato se cumpriu à leitura de da humanidade. Quero ressaltar,
cada artigo. Os artigos históricos ainda, a qualidade tanto do conteúdo
sempre um aprendizado e os quanto da arte na confecção dos Gostaria de solicitar a assinatura
religiosos, com ilustrações artísticas, números dessa publicação. da revista Morashá para meu
são didáticos e nos remetem Arlan Eloi Leite da Silva pai, pois, devido à localização de
sempre à fácil compreensão de sua Parnamirim - RN sua residência ele não consegue
interpretação, a exemplo os artigos: frequentar a sinagoga, mas cumpre
“As Quatro Facções diante do Mar” Aprecio a leitura da Morashá por o Shabat e outras leis e gostaria
e “Lag Baomer e o Rabi Shimon Bar considerá-la muito instrutiva no que de se manter informado sobre as
Yochai”. tange à história do povo judeu. festas.
Dvora Goldstern Ruth Citrin Enk Emmanuela Sternberg
Por e-mail São Paulo, - SP Arraial do Cabo - RJ
75 JUNHO 2016