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ANO edição

JUN
dez
XXIII 92 2016
Carta ao leitor

Durante o período das Três Semanas, que se inicia Assim, Jerusalém é diferente de todas as outras
no dia 17 de Tamuz – este ano, em 24 de julho cidades porque se encontra entre dois mundos: o
– e termina em Tishá b’Av – o nono dia do mês de físico e o espiritual. O Pirkei Avot, um livro sagrado de
Menachem Av – em 14 de agosto – o Povo Judeu sabedoria e ética judaica, relata muitos milagres que
lamenta a destruição de Jerusalém e a queda do Templo ocorriam na cidade na época em que existia o Templo
Sagrado. A conquista de Jerusalém pelos romanos, a Sagrado. A razão para tantos milagres ocorrerem em
destruição do Templo Sagrado e o subsequente exílio Jerusalém, especialmente no Templo, é que o contato
do Povo Judeu da Terra de Israel ocorreram há quase com o sagrado traz mudanças às leis da natureza.
2 mil anos, mas, desde então, não se passou sequer um É o portal terrestre para os Céus. Por esse motivo,
dia em que deixamos de orar pelo restabelecimento de independentemente de onde estivermos, sempre
nossa Capital Eterna. oramos em direção a Jerusalém, nossas preces são
levadas a Jerusalém e de lá ascendem aos Céus.  
Por que o Povo Judeu chora por uma cidade que caiu
há dois milênios? Por que tanta importância é dada à A queda de Jerusalém e do Templo Sagrado foram
Jerusalém, a tal ponto que é mencionada todos os dias uma grande perda não apenas para os Filhos de Israel,
em nossas orações? mas para toda a humanidade, pois a utopia tão
sonhada por todos nós depende da reconstrução de
David Ben-Gurion, um dos fundadores do Estado Jerusalém e do Templo Sagrado. Pelo fato de Jerusalém
de Israel e seu primeiro Primeiro-Ministro, afirmou: ser o centro espiritual do mundo, tudo o que lá ocorre
“Nenhuma cidade do mundo, nem mesmo Atenas afeta o restante do mundo. Nossos Sábios ensinam
ou Roma, teve um papel tão importante na vida de que todo dano que foi causado a Jerusalém trouxe e
uma nação, durante tanto tempo, como Jerusalém na continua a trazer malefícios a todo o mundo, pois o
vida do Povo Judeu”. Elie Wiesel, Prêmio Nobel Templo servia como fonte de proteção e ajudava a
da Paz, escreveu: “O fato de eu não viver em Jerusalém expiar os pecados de toda a humanidade. É por esse
é secundário; Jerusalém vive dentro de mim. Jerusalém motivo que o Povo Judeu lamenta a destruição de
é inerente ao meu judaísmo; é o centro de meus Jerusalém há quase 2 mil anos.
compromissos e meus sonhos”.
O nome “Jerusalém” tem muitos significados, entre
De fato, Jerusalém vive dentro de todo judeu, os quais, “Cidade da Paz”. Mas a paz ainda não
consciente ou inconscientemente. Mencionada mais reina em Jerusalém e o Templo Sagrado ainda
de 600 vezes no Tanach, a cidade é o marco nacional continua em ruínas. É por esse motivo que apesar do
da tradição judaica. Representa a alma coletiva do estabelecimento do Estado de Israel e da reunificação
Povo Judeu. Jerusalém não é apenas uma cidade – é a de Jerusalém, o Povo Judeu continua a observar as
eterna capital do Povo Judeu. A esperança de retornar a Três Semanas de Luto. Esperamos que em breve se
Jerusalém manteve vivo o nosso povo na Diáspora. Nas cumpram as Promessas Divinas, que o Templo Sagrado
épocas mais difíceis, o que lhes dava força e esperança seja restaurado e que haja paz em Jerusalém
era a frase: “No ano que vem, em Jerusalém”. - Cidade da Paz, e no restante do mundo.

Além de ser o coração do Povo Judeu, Jerusalém é


também a mais sagrada das cidades. A santidade de
Jerusalém advém de ser a cidade onde D’us decidiu
estabelecer Sua Morada, isto é, o Templo Sagrado, para
que Sua Presença na Terra lá habitasse.
tanach

Lições espirituais do
episódio do Bezerro de Ouro
O jejum do 17o dia do mês hebraico de Tamuz é o início de um
período de três semanas de luto pela destruição de Jerusalém
e a queda dos dois Templos Sagrados. lembra cinco eventos
trágicos ocorridos nessa data. O primeiro deles foi o fato de
Moshé ter quebrado as Tábuas dos Dez Mandamentos, quando,
ao descer do Monte Sinai, viu o Povo Judeu reverenciar o
Bezerro de Ouro.

O
episódio do Bezerro de Ouro é uma das Rabi Moshe ben Nachman, Nachmânides, oferece outra
passagens mais desconcertantes da Torá. explicação para o episódio, dizendo que o Bezerro de
Como foi possível que apenas 40 dias após Ouro não visava a substituir D’us, mas Moshé. Sua
a Revelação Divina no Sinai, o Povo Judeu explicação se origina da simples leitura do versículo:
escolhesse um bezerro de ouro – um objeto “Faze-nos deuses que irão adiante de nós, porque a este
inanimado – para tomar o lugar de D’us? Moshé, o homem que nos fez subir da terra do Egito
– não sabemos o que lhe aconteceu” (Êxodo 32:23).
Nossos Sábios ofereceram diferentes explicações. Rashi, Lembremo-nos que imediatamente após a Revelação
comentarista clássico da Torá, com base no Midrash, no Sinai – quando D’us Se revelou explicitamente a
escreve que todo o incidente foi instigado pelos egípcios todo o Povo Judeu e proclamou os Dez Mandamentos –
que se juntaram aos judeus por ocasião do Êxodo. Moshé subiu ao Monte Sinai. E lá permaneceu durante
Os egípcios eram idólatras que adoravam animais; 40 dias e 40 noites, estudando Torá diretamente com
portanto, não surpreende que tenham levado os judeus o Próprio D’us. Em sua ausência - e apenas por causa
a produzir e adorar o bezerro de ouro. O pecado dos de sua ausência – o Povo Judeu construiu o Bezerro de
judeus foi terem-se deixado influenciar pelos egípcios. Ouro. Isso é evidente, pois quando ele retorna do Monte
Segundo o Talmud, o episódio do Bezerro de Ouro é e destrói essa estátua, o povo não protesta. Se os judeus
inexplicável; foi um produto da Divina Providência. tivessem realmente sentido que Moshé destruía seu deus,
Aconteceu para nos ensinar que até mesmo a geração eles teriam intercedido para evitá-lo. Ou, ao menos,
conduzida por Moshé, que recebeu a Torá e mereceu teriam protestado vigorosamente. E não o fizeram.
a Revelação Divina no Sinai, era falível. Eles erraram, Quando Moshé retornou, eles já não precisavam do
ensina o Talmud, para que nenhum judeu mais se sinta Bezerro de Ouro e não lhes importou que ele o tivesse
abatido por seus pecados. Pois, se D’us perdoou o pecado destruído.
do Bezerro de Ouro, Ele certamente concederá expiação
por qualquer pecado que qualquer um de nós venha a A explicação de Nachmânides é particularmente lúcida.
cometer contra Ele. Revela que o Povo Judeu fez o Bezerro de Ouro porque

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O recebimento dos Dez Mandamentos no Monte Sinai, Marc Chagall

sentia a necessidade de algo físico apenas porque D’us é despido de ocorre na vida de uma pessoa é
com que se relacionar a D’us. Moshé, tudo o que é físico, mas também D’us se comunicando com essa
um ser humano, criatura física, porque, como o afirma a Torá, um pessoa. D’us está sempre falando
servia a esse propósito. Quando ele ser humano não pode ver D’us e conosco, mas nem sempre Sua
se ausentou por 40 dias e o Povo continuar vivo. É verdade que o Povo mensagem é clara. D’us também
acreditava que ele tivesse morrido Judeu testemunhou a Revelação fala conosco por meio da Torá,
no Monte Sinai, eles decidiram Divina no Sinai, mas a experiência mas tantos de nós interpretamos
encontram um substituto para ele. foi tão devastadora que eles pediram errado Suas palavras. A vida é
a Moshé que dali em diante D’us cheia de perguntas e precisamos
Pode-se compreender por que apenas Se revelasse a ele, e que de respostas claras; oramos a D’us
o povo buscava algo físico para ele transmitisse Suas mensagens a e sabemos que Ele nos ouve, mas
substituir Moshé. Nós, seres eles. Nossos Sábios ensinam que a oração é um monólogo. É muito
humanos, vivemos em um mundo quando D’us proclamou os Dez raro D’us fornecer uma resposta
material. Até o mais espiritual Mandamentos, a alma dos judeus imediata a nossas preces ou uma
dentre nós habita este mundo físico deixou seus corpos e Ele teve que resposta a uma pergunta nossa.
e tem necessidades físicas. Todos os ressuscitá-los. Por isso a experiência Se pudéssemos nos comunicar
seres humanos têm uma necessidade foi tão devastadora para eles. com D’us como fez Moshé – se
inata por algo tangível. Funcionamos pudéssemos falar com Ele “olho
guiados por nossos sentidos físicos. Ademais, D’us não trava diálogos no olho, como um homem que
É muito difícil relacionar-se com conosco e, à exceção de Moshé, fala com seu amigo” – tudo seria
algo que não se pode ver, ouvir, tocar mesmo os profetas não tinham bem simples. A vida seria bem
ou com quem falar. É, portanto, mais acesso livre a Ele. Certamente, mais fácil para todos nós. Mas
fácil relacionar-se com seres físicos há muitas maneiras de D’us se não ouvimos a voz de D’us, pelo
do que com D’us. Não podemos ver comunicar com cada um de nós. menos não claramente. Somos
D’us. Isso está muito claro e não Os místicos ensinam que tudo que instruídos a “Atrás do Eterno,

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vosso D’us, andareis” (Deuteronômio povo optou pelo bezerro de ouro em preciso examinar não apenas o que
13:5), e nos voltamos à Torá e aos vez de Aaron, para substituir Moshé, o Bezerro de Ouro estava destinado
ensinamentos de nossos Sábios em porque um objeto, diferentemente a ser, mas o que realmente acabou se
busca disso, mas o que encontramos de um ser humano, não morre nem tornando.
são mandamentos e instruções desaparece. Um objeto não sobe
gerais. Consequentemente, as uma montanha, deixando seu povo O Bezerro de Ouro
pessoas estão sempre buscando algo a esperar, sem saber se ele algum dia e a Serpente de Cobre
ou alguém para lhes dar respostas retornaria.
mais claras e mais específicas a suas O episódio do Bezerro de Ouro se
perguntas e problemas. É por isso Assim sendo, o pecado do Bezerro iniciou com o pedido do povo para
que tantos judeus correm aos rabinos de Ouro não é tão simples como celebrar “uma Festa para o Eterno
e aos místicos que possuem Ruach muitos o julgam. O Povo Judeu não (que) será amanhã!” (Êxodo 32:5).
HaKodesh – o “Espírito Sagrado”, criou uma estátua de um bezerro por Na ocasião dessa festa, fizeram um
uma forma mais sutil de profecia. ter optado seguir uma estátua em objeto religioso simbólico.
É por isso que os judeus no deserto vez de seguir o Todo Poderoso, que O Bezerro de Ouro tinha a
eram tão dependentes de Moshé. havia feito tantos milagres para eles, intenção de ser simbólico, mas
Ele era o mais poderoso de todos os libertando-os do Egito, revelando- no final não foi o que aconteceu.
profetas – ele podia falar com D’us se diante deles no Monte Sinai e Aos poucos, foi-se tornando pura
a qualquer hora e as mensagens que proclamando os Dez Mandamentos. idolatria. A princípio, seu propósito
D’Ele recebia eram claríssimas. Se Ao contrário, na ausência de era ser um tipo de substituto
alguém precisasse perguntar algo a Moshé, eles buscaram algum tipo para Moshé – uma forma de
D’us, bastava dirigir-se a Moshé. de substituto para continuarem comunicação com D’us, mas se
conectados a D’us. O pecado do tornou um objeto de adoração. A
O Zohar, obra fundamental da Bezerro de Ouro foi consequência “Festa para o Eterno”, destinada a
Cabalá, ensina que a Shechiná – a direta do fato do povo não ter ser uma cerimônia religiosa, acabou
Presença Divina no mundo – falava acreditado que poderiam se relacionar sendo uma celebração descontrolada
pela garganta de Moshé (Raaya diretamente a D’us. Acreditavam ser e uma orgia. De repente, o Bezerro
Mehemna, Pinchas 232a). Moshé necessário um intermediário – algo de Ouro deixou de ser substituto
não apenas era profeta de D’us, tangível para poder se relacionar para Moshé – uma ideia muito tola,
mas o meio físico por meio do qual com D’us – Aquele que é totalmente no entanto relativamente inofensiva,
D’us se comunicava claramente despido de fisicalidade. mas um objeto de idolatria, que o
com o Povo Judeu. No Monte Sinai, povo imediatamente se pôs a adorar.
D’us deu as Tábuas nas quais foram Assim sendo, o pecado do Bezerro
gravados os Dez Mandamentos, de Ouro não foi um ato de clara Maimônides ensina que é
mas foi Moshé quem ensinou toda rebelião contra D’us. Tampouco foi exatamente assim que a idolatria
a Torá – todos os 613 mandamentos uma negação a D’us. Não foi um se desenvolveu. A seu ver, a
e suas ramificações – durante a ato de adultério espiritual, no qual o humanidade a princípio acreditava
jornada de 40 anos pelo deserto. Ele Povo Judeu tivesse traído D’us por na unicidade de D’us, mas, a certo
foi o líder e o mestre do povo, e o uma estátua de ouro. Foi um erro ponto, o homem começou a se
porta voz de D’us. Quando Moshé deplorável oriundo de conceitos relacionar com os “intermediários”
ascendeu ao Monte Sinai, o Povo errados sobre o relacionamento mais do que com o próprio
Judeu sentiu-se como uma criança errôneo entre o homem físico e D’us D’us, até que finalmente o ponto
abandonada por seus pais. Temiam Infinito. central foi totalmente esquecido
que nem mesmo o irmão mais e o povo começou a se concentrar
velho de Moshé, Aaron, um grande Por que, então, o pecado do Bezerro exclusivamente nos “intermediários”
profeta por mérito próprio, tivesse de Ouro é considerado um incidente (Leis da Idolatria 1:1-2).
condições de substituí-lo. Pois, tão notório na História Judaica?
de fato, nunca houve nem haverá Por que Moshé teve que orar em Vale a pena contrastar o pecado
tão grande profeta como Moshé, prol de seu povo, durante 120 dias, do Bezerro de Ouro com outro
inigualável e insubstituível. Alguns para evitar que D’us os aniquilasse? episódio no deserto que também
comentaristas da Torá inferem que o Para responder a essas perguntas, é envolveu a confecção de um objeto

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com a forma de um animal – a


Serpente de Cobre. No 40º ano
de sua permanência no deserto, os
judeus reclamaram sobre o Maná,
o Pão Celestial, que era a sua dieta
no deserto. D’us viu isso como uma
profunda ingratidão e mandou
serpentes para atacar os reclamantes.
Moshé orou em seu nome e D’us
o instruiu a criar uma serpente de
cobre e a colocar no alto de um
poste. “Todo aquele que for picado,
olhando para ela, viverá” (Números
21:5-9).

Como no episódio do Bezerro


de Ouro, foi feita uma estátua
de uma criatura viva. A Serpente
de Cobre visava a servir a um
propósito religioso: fazer ver ao
Povo Judeu que D’us era a fonte
tanto de suas aflições quanto de
sua cura. Contudo, ao contrário do
Bezerro de Ouro, a confecção da
Serpente de Cobre não foi uma
ideia do povo, nem de Moshé,
mas um mandamento de D’us.
E aqui reside uma das diferenças
fundamentais entre o Bezerro de
Ouro e a Serpente de Cobre – entre
a idolatria e o mandamento Divino: Moshé quebra as tábuas da Lei, Rembrandt, 1659. óleo sobre tela
sua origem. Quando os símbolos
religiosos ou ritos são criados pelo
homem, podem facilmente levar qualquer poder que não depende a D’us na ausência de algo tangível.
a graves erros rituais e à idolatria. de D’us. Como pergunta o Talmud, Vale ressaltar que a Serpente de
Mas, por outro lado, quando se no Tratado Rosh Hashaná: “Uma Cobre erguida por Moshé acabou
originam do Divino, servem para serpente mata ou mantém a sendo idolatrada, muitos anos após
levar o homem mais próximo a D’us. vida?”. O Talmud responde que, na sua construção, por certos judeus,
O Bezerro de Ouro levou à morte realidade, a Serpente de Cobre não que erroneamente julgaram que ela
e à destruição – à quase aniquilação fez nenhum dos dois. Apenas fez possuía poderes curativos. Isso levou
do Povo Judeu – ao passo que a lembrar ao Povo Judeu que erguesse o Rei Hezekiá de Judá (6o século
Serpente de Cobre salvou a vida seu olhar a D’us e orasse para que AEC) a destruir essa serpente
daqueles que tinham sido mordidos Ele o curasse. (V. Reis II, 18:4).
pelas serpentes.
Isso nos leva à pergunta: será No momento em que o Povo Judeu
No entanto, mesmo a Serpente que essa Serpente era realmente começou a acreditar que tinha sido
de Cobre, que era um produto necessária? Não poderiam orar a a Serpente de Cobre, e não D’us,
de uma ordem de D’us, representou D’us sem a necessidade de um objeto quem os curara, foi necessário
um risco - a possibilidade de físico? A resposta, novamente, é que destruí-la. Seu propósito foi servir
que o Povo Judeu a idolatrasse. aparentemente é muito difícil as como foco para que o povo voltasse
A origem da idolatria é a crença em pessoas voltarem seus pensamentos seus pensamentos ao Eterno: foi

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O pecado do por isso que D’us ordenou que Chassídico, o Rabi Menachem
fosse colocada no alto de um poste. Mendel de Kotsk: “Às vezes uma
Bezerro de Ouro Quando, em vez de usar um ponto Mitzvá (um mandamento religioso)
não foi um ato de tangível como meio de olhar para se torna uma idolatria”.
os Céus, o povo começou a atribuir
clara rebelião contra poderes independentes à Serpente Das alturas mais
D’us. Tampouco foi de Cobre, esta se tornou uma fonte elevadas aos abismos
uma negação a D’us. potencial de idolatria e derrocada mais profundos
espiritual, ainda que tivesse sido
Foi um erro deplorável construída atendendo a uma ordem Não foram apenas a ausência de
oriundo de conceitos Divina. Moshé ou os erros teológicos do
Povo Judeu e suas concepções
errados sobre o Os incidentes do Bezerro de Ouro erradas que levaram ao episódio do
relacionamento e da Serpente de Cobre oferecem Bezerro de Ouro. Ironicamente, foi a
muitas lições. Uma particularmente extraordinária experiência espiritual
errôneo entre o relevante é que é D’us – e não o no Monte Sinai o que lhes fez
homem físico e D’us homem – quem decide como Ele cometer esse erro crasso.
Infinito deve ser adorado. O incidente do
Bezerro não foi apenas um episódio A Revelação Divina no Monte Sinai
infeliz na história de nosso povo; é foi uma vivência única: por um
uma lição também para os nossos momento, o Povo Judeu se elevou
dias. Precisamos seguir D’us e a tal altura espiritual que cada um
nos relacionar diretamente com dos judeus se tornou um profeta – e
Ele ainda que seja difícil fazê-lo todos eles ouviram a comunicação
- ainda que não haja um Moshé direta de D’us. Imediatamente
para nos dizer exatamente o que após, tudo desapareceu. Até mesmo
fazer. A última coisa que devemos Moshé, que subiu ao Monte
fazer é criar novos símbolos ou Sinai, tinha desaparecido. Para
mandamentos religiosos – adulterar ele, a Revelação Divina e os Dez
a Torá – ainda que o façamos com Mandamentos foram seguidos, de
a melhor das intenções, visando a imediato, por 40 dias e 40 noites
realizar uma “Festa para o Eterno”. de estudo ininterrupto da Torá;
Não cabe ao homem decidir o que ele aprendeu a Torá diretamente
agrada a D’us. O homem finito com o Próprio D’us. Por outro
jamais pode alcançar o Infinito. lado, para o Povo Judeu, os Dez
Somente D’us Infinito pode vencer Mandamentos foram seguidos
a distância entre Ele Próprio e por um vácuo. Quando esse vácuo
Suas Criaturas. Portanto, não não foi preenchido com santidade,
construímos “bezerros de ouro” – e foi preenchido exatamente com o
tudo o que estes representam e oposto: deterioração e profanação
simbolizam. Pelo contrário, espiritual.
fazemos “serpentes de cobre”:
seguimos as leis e mandamentos Não devemos ficar tão perplexos
de D’us. Mas precisamos sempre com o fato de que o pecado do
estar cientes de que mesmo essas Bezerro de Ouro tenha ocorrido
“serpentes de cobre” podem ser apenas 40 dias após a Revelação
uma fonte de idolatria e graves no Sinai. Em retrospecto, foi uma
erros espirituais se nos esquecermos reação natural à entrega da Torá. É
de que são apenas o meio para o que ocorre, geralmente, quando
Tik - caixa cilíndrica para a Torá, em
madeira talhada e dourada. Veneza, se chegar a um fim. Como alguém alcança a exaltação espiritual
séc. 18 ensinou certa vez o grande Mestre e depois vivencia um brusco

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MONTE SINAI

desapontamento, quando tudo processo que permitirá que a pessoa Torá que é lida versa sobre a antítese
desaparece, subitamente. Muitos mantenha sua elevação espiritual. da santidade: lemos o capítulo 18
judeus que iniciam seu progresso do Livro de Levítico, que detalha as
espiritual no judaísmo geralmente Um exemplo é Yom Kipur – o dia proibições contra o incesto e outros
vivenciam esse problema. Eles em que D’us finalmente perdoou o pecados sexuais.
atingem certo nível de exaltação, Povo Judeu pelo pecado do Bezerro
como uma chama ardente: oram de Ouro. O Dia do Perdão deve Esse trecho da Torá da Minchá
com grande intensidade e cumprem ser o dia em que os judeus atingem do dia de Kipur parece totalmente
os mandamentos com tremenda grandes alturas espirituais. Nesse deslocado. Esse é o dia em que nos
paixão. Quando essa chama se dia, devemos nos comportar como concentramos nas mais elevadas
extingue, algo inevitável, o vazio que o fazem os anjos: não comemos, alturas espirituais a que um judeu
permanece pode ser devastador. não bebemos e passamos o dia em pode ascender. Em Yom Kipur,
oração. Tudo acerca de Yom Kipur cada um de nós é convocado a
O vácuo – a sensação de vazio que se transborda de energia espiritual. agir como se ele fosse o Sumo
segue a tanta paixão – pode Na manhã desse dia, a passagem da Sacerdote servindo no Templo
levar não apenas a uma regressão, Torá que é lida descreve o serviço Sagrado de Jerusalém. Como podem
mas até mesmo ao total abandono que era realizado nesse dia pelo ser relevantes a tal data o incesto
daquela jornada espiritual. Cohen Gadol (o Sumo Sacerdote) no e outros comportamentos sexuais
Os pontos exageradamente elevados Templo Sagrado, em Jerusalém. Yom imorais? Em outras palavras, por que
e edificantes na vida espiritual da Kipur era o único dia em que um lemos sobre tais assuntos vis, justo
pessoa podem ser muito perigosos, ser humano – o Sumo Sacerdote – no dia que personifica o máximo
pois apresentam o perigo de uma podia entrar na câmara mais sagrada da espiritualidade? Nós o fazemos
séria queda – ao ponto que um judeu do Templo – o Kodesh HaKodashim por uma boa razão: para nos fazer
pode cair a um nível ainda mais – o Santo Santíssimo. A leitura lembrar de que uma grande elevação
baixo daquele em que se encontrava da Torá na manhã de Yom Kipur espiritual pode ser seguida de um
antes de iniciar sua ascensão serve para destacar a singularidade terrível colapso espiritual.
espiritual. A maneira adequada de espiritual da data. E, contudo,
lidar com esse perigo é nunca tardar, estranhamente, durante a Minchá (o A leitura da Torá durante a Minchá
mas iniciar imediatamente um serviço vespertino), a passagem da de Yom Kipur nos transmite uma

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importante mensagem: é no erro deplorável. Mas, imaginemos A vida espiritual de um judeu


momento de sua maior elevação que antes de ascender ao Monte deve ser um esforço constante
espiritual que você é mais vulnerável. Sinai, Moshé lhes tivesse ordenado para atingir alturas espirituais
A Torá nos alerta: tenha cuidado, começar a construir o Mishkan, sempre mais elevadas. Não há
pois é exatamente quando você o Tabernáculo. Se o tivesse feito, lugar para a inércia, pois resultaria
pensa que está no topo do mundo o povo teria estado ocupado em derrocada espiritual. Portanto,
que você pode despencar às mais construindo a Morada de D’us e ensina o Talmud que “os Tzadikim
escuras profundezas. não teria tido tempo nem interesse (os justos) não descansam
em erguer um bezerro de ouro. – nem neste mundo nem no
Portanto, é importante que uma Ademais, todo o ouro que o povo mundo vindouro”. Um Tzadik
grande experiência espiritual não entregou para fazer a estátua teria está sempre se alçando a alturas
seja seguida por um vácuo. Uma sido usado para o Tabernáculo, ou cada vez mais elevadas. E, como
conquista espiritual deve ser seguida seja, para um propósito sagrado. está escrito: “V ’Ameich Kulam
por outra. Quando realizamos um Sua derrocada foi porque, logo após Tzadikim” - “E teu povo, serão
ato de bondade, devemos esforçar- a Revelação Divina no Sinai, eles todos Tzadikim” (Isaías 60:21),
nos para realizar outro ainda maior. retomaram seu curso normal de cabe a cada judeu nunca descansar,
Quando terminamos de estudar um vida, e essa transição – a queda de pelo contrário, “ir de força em
Tratado do Talmud, devemos iniciar grandes Alturas espirituais para o força” (Salmos 84:8), em todos os
outro de imediato, no mesmo dia. cotidiano – levou-os a uma queda aspectos, sejam eles materiais ou
Pois é justamente nos momentos ainda maior: a construção e a espirituais.
de ascensão que devemos envolver- adoração de um Bezerro de Ouro.
nos em atividades que fomentem
o crescimento espiritual, ainda que Épocas de transição espiritual são
com o único propósito de evitar a épocas de verdadeira provação
criação de uma brecha para a entrada – épocas de verdadeiro perigo Bibliografia
Talks on the Parasha - Rabi Adin
de uma deterioração espiritual. espiritual. Portanto só há uma (Even Israel) Steinsaltz – Koren
maneira de garantir que não Publishers, Jerusalem
O período entre a entrega da Torá e cairemos: agir e seguir adiante. Why the Israelites Made a Calf – Rabi
o retorno de Moshé durou apenas 40 Como ensinou o grande Mestre Lazer Gurkow
http://www.chabad.org/parshah/
dias, mas esse tempo foi o suficiente Chassídico, Rabi Aharon de Karlin: article_cdo/aid/259461/jewish/Why-
para que o Povo Judeu cometesse um “Quem não se eleva, degrada-se”. the-Israelites-Made-a-Calf.htm

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NOSSOS SÁBIOS

RESH LAKISH – O GLADIADOR


QUE VIROU SÁBIO
Rabi Shimon ben Lakish, mais conhecido como Resh Lakish,
foi um dos mais notáveis Amoraim1 da Terra de Israel.
Além de ser um dos pilares do Talmud Babilônico e do
Talmud de Jerusalém, ele tinha uma personalidade
extraordinária. É considerado excepcional mesmo entre
os Sábios Talmúdicos.

R
esh Lakish nasceu no 3º século da Era Conta a história que, em pouco tempo, Resh Lakish se
Comum. Cresceu na Terra de Israel, ao tornou um famoso gladiador. E, diferente da maioria
que tudo indica na cidade de Tiberíades dos outros, ele sobreviveu. Segundo algumas fontes,
ou arredores. Acredita-se, ainda que ele também viveu algum tempo no deserto, onde
não haja provas, que em sua juventude conseguiu sobreviver como fora-da-lei. Liderava uma
tenha estudado Torá com vários dos principais gangue de criminosos.
Sábios de sua geração. Contudo, por razões incertas –
provavelmente devido a dificuldades econômicas – ele O relato que segue é do Pirkei D’Rebi Eliezer, uma
abandonou o judaísmo e o mundo dos estudos. obra do Midrash: “Ben Azzai dizia: Para entender
Rabi Shimon ben Lakish viveu durante um o poder da Teshuvá (o retorno da pessoa a D’us e à
período difícil para os judeus na Terra de Israel. As Torá), venha e veja (o exemplo) de Rabi Shimon ben
autoridades romanas impunham editos implacáveis Lakish: ele e seus companheiros viviam nos montes
como parte de sua campanha para de lá expulsar os e roubavam quem cruzasse seu caminho. O que fez
judeus, especialmente os lavradores. O ônus fiscal lhes Rabi Shimon ben Lakish? Deixou seus companheiros
era opressivo. Eram, pois, forçados a buscar fontes roubando sozinhos e retornou ao D’us de seus pais
alternativas de renda. Resh Lakish possuía imensa com o coração pleno, com jejum e preces. Chegava
força física e, aparentemente, não conseguiu encontrar cedo, manhã e tarde, e ficava na Casa de Oração diante
outra forma de sustento a não ser a mais perigosa de do Santo, Bendito é Ele. E passava os dias estudando
todas, à época, mas também a mais lucrativa – lutar Torá; e fazia doações aos pobres. Nunca voltou aos
como gladiador. seus hábitos desprezíveis, e sua Teshuvá foi aceita.
No dia de sua morte, morreram também dois de seus
Os gladiadores tinham vida curta. Sabendo que logo companheiros, ladrões das colinas. Rabi Shimon ben
encontrariam a morte na cruel arena, a maioria deles Lakish foi colocado no Tesouro da Vida (nos Céus),
vivia intensamente o momento. O derramamento de enquanto seus dois companheiros foram colocados nas
sangue e o desrespeito à lei eram parte de seu mundo. câmaras mais baixas do Inferno.

13 junho 2016
nossOS SÁBIOS

Tiberíades é situada à margem ocidental do lago de Kineret, ou Mar da Galileia

Os dois companheiros disseram a da morte’ ” (Capítulo 42, Teshuvá Rabi Yochanan ficou impressionado
D’us: ‘Senhor de todos os mundos, e Boas Ações). com a força física de Resh Lakish
sem favoritismo...! Ele, que roubava e o cumprimentou: “Sua força
conosco, foi colocado nos Céus, É surpreendente a extensão da deveria ser dedicada à Torá”. Em
enquanto nós fomos sentenciados metamorfose de Rabi Shimon outras palavras, disse, um homem
para as câmaras mais baixas do ben Lakish, de gladiador e com sua bravura deveria canalizar
Inferno’! Ao que D’us respondeu: integrante de uma gangue sua energia para o estudo da Torá.
‘Ele fez Teshuvá em vida e vocês, a Sábio da Torá. O Talmud Resh Lakish retrucou: “Sua beleza
não’. Os ladrões responderam: Babilônico (Bava Metzia 84a) deveria ser dedicada às mulheres”.
‘Se nos permitir, faremos uma descreve o momento da transição: Rabi Yochanan lhe disse que tinha
Teshuvá incrível’. D’us retrucou: Rabi Yochanan bar Nafcha, uma irmã tão bela quanto ele, e que
‘A Teshuvá só é possível até o dia conhecido no Talmud como Resh Lakish teria sua permissão
Rabi Yochanan, um dos grandes para desposá-la se concordasse em
Sábios de sua geração, banhava- retornar ao judaísmo e devotar sua
se, certa vez, no rio Jordão. energia ao estudo da Torá. Resh
Os Amoraim (literalmente, “aqueles que
1
Nascido em Tzipori, Galileia, na Lakish concordou e a irmã de Rabi
disseram ou recontaram”) foram os Sábios
de cerca de 200 a 500 EC que “recontaram” Terra de Israel, ele era conhecido Yochanan se casou com ele. Viveram
os ensinamentos da Torá Oral. Eles viveram, por sua beleza física. Por ele ser juntos por muitos anos. Tiveram
estudaram e ensinaram na Terra de Israel e na
Babilônia. Suas discussões e debates jurídicos
belo e não ter barba no rosto, filhos e o mais novo era famoso,
foram registrados na Guemará (Talmud). quando Resh Lakish o viu de desde pequeno, por sua mente
Os Amoraim vieram após os Tanaim na longe, pensou tratar-se de uma privilegiada (Talmud Babilônico,
sequência dos antigos Sábios judeus. Os
Tanaim foram os transmissores diretos da mulher. Ele atirou-se no rio Taanit 9a).
Torá Oral não codificada, ao passo que os Jordão, onde Rabi Yochanan se
Amoraim explicaram e comentaram, fazendo
esclarecimentos sobre a Torá Oral, após sua
banhava, descobrindo se tratar de Assim que Resh Lakish voltou
codificação inicial. um homem. ao estudo e prática do judaísmo,

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REVISTA MORASHÁ i 92

oficial

Página do Talmud

as suspeitas de Rabi Yochanan se um do outro. Resh Lakish era, Resh Lakish não era apenas seu
confirmaram. A extraordinária força geralmente, quem levantava cunhado, aluno e amigo, mas
física de Resh Lakish era, de fato, objeções e desafios. Ele questionava também parceiro nos estudos. Uma
uma manifestação de seu poder praticamente tudo o que Rabi interessante história no Talmud de
espiritual e intelectual. Ele logo se Yochanan dizia. Quem estuda suas Jerusalém ilustra a ligação entre
tornou um dos principais eruditos discussões no Talmud, pensa que Rabi Yochanan e Resh Lakish e o
no Beit Midrash (Casa de Estudos) eles discordavam em tudo. De fato, destemor e o compromisso com a
de Tiberíades, que, na época, era uma grande parte dos assuntos verdade do antigo gladiador.
o centro judaico mais importante discutidos tanto no Talmud de
no mundo. Era lá que se reuniam Jerusalém quanto no Babilônico Certa vez, Resh Lakish e outros
para estudar os maiores Sábios da se baseiam nas controvérsias eruditos em Torá estudavam as
geração. entre os dois. É importante notar leis relativas a um Nasi – o líder
que Resh Lakish não pretendia espiritual do povo e chefe do
Rabi Yochanan foi mestre de Resh questionar a veracidade ou a base Sanhedrin (Corte Suprema Judaica)
Lakish. Este, com seu enorme das opiniões de Rabi Yochanan, – que comete uma transgressão.
talento e inesgotável energia mas sim, investigar e esclarecer Rabi Shimon ben Lakish perguntou:
e diligência, logo adquiriu um melhor o assunto. Quando os dois “Se um Nasi cometeu um pecado, ele
conhecimento tão completo das debatiam, nunca era uma disputa pode ser açoitado?”. Responderam-
Leis da Torá que ficou em pé de para ver quem estava certo, mas lhe afirmativamente. Mais tarde
igualdade com Rabi Yochanan. queriam chegar a uma decisão clara ele perguntou: “Se um Nasi foi
O Talmud de Jerusalém (Berachot) e bem fundamentada. Quando açoitado, ele pode ser reconduzido a
se refere a ambos como “as duas Resh Lakish não encontrava base seu cargo?”. Responderam-lhe que
grandes autoridades” e “dois dos para sua opinião, não se acanhava não, por temor de que ele pudesse
grandes homens do mundo”. de abandoná-la. Amava sobretudo executar seus juízes. Quando Rabi
Esses dois mestres da Torá se a verdade. Rabi Yochanan apreciava Yehudah Nesiah – que era o Nasi
completavam, aguçando o intelecto isso profundamente. e neto do famoso Rabi Yehudah

15 junho 2016
nossOS SÁBIOS

Lago de Kineret, ou Mar da Galileia

HaNasi, autor da Mishná – soube foi procurá-lo e o trouxe de volta. as massas, mas também sobre os
dessa discussão, sentiu-se insultado Tocado pela modéstia do Nasi, Resh líderes e poderosos de seu tempo.
e ordenou a prisão de Resh Lakish. Lakish lhe disse: “Você agiu de Assim como ele fora um grande
Avisado de que seria preso, Resh forma semelhante a D’us. Em vez gladiador que nunca capitulara na
Lakish escapou, ausentando-se de me enviar um mensageiro, você arena, ele se tornou um Sábio da
do Beit Midrash. No dia seguinte, veio pessoalmente”. Mas, quando Torá que lutou por suas próprias
Rabi Yehudah Nesiah pediu a Rabi o Nasi lhe perguntou por que ele opiniões e que nunca fez concessões
Yochanan que dissesse algumas havia feito perguntas insultuosas no sobre sua essência espiritual e
palavras de Torá e este tentou bater Beit Midrash, Resh Lakish replicou: intelectual. Mesmo em suas disputas
palmas com uma só mão, como que “Você realmente pensou que eu com Rabi Yochanan – seu mestre e
a dizer que sem Resh Lakish ele era deixaria de ensinar as verdades da amigo – ele mantinha uma postura
incapaz de pronunciar suas ideias, Torá por temor a você?” (Talmud de independente. Nunca mostrou o
assim como uma mão não bate Jerusalém, Sanhedrin, 20a). menor desrespeito a seus oponentes,
palmas sem a outra. Rabi Yochanan mas, ao mesmo tempo, nunca abriu
precisava de Resh Lakish para criar Esse e vários outros relatos mão de seus ideais.
as discussões que ocorriam na Casa talmúdicos revelam que Resh
de Estudos: os contínuos debates Lakish foi uma notável mistura de Nas várias disputas entre ele e
sobre Torá – a pesquisa, a análise e benevolência e grande humildade Rabi Yochanan, a Halachá (lei
o esclarecimento de assuntos que pessoal, por um lado, e brilho da Torá seguida na prática) era
surgem de perguntas e respostas, do ideológico e até extremismo, por geralmente determinada segundo
dar e receber. outro. No nível pessoal, ele nunca Rabi Yochanan. É quase certo que
se zangava com ninguém. Mas em Resh Lekish concordaria com o
Ao testemunhar a reação de Rabi questões de Torá e princípio, ele não princípio de que era seu Mestre –
Yochanan no Beit Midrash, Rabi favorecia ninguém – nem mesmo não ele – quem tinha, geralmente, a
Yehudah Nesiah, além de permitir a o Nasi. Seus discursos continham razão. Contudo, em vários assuntos,
volta de Resh Lakish, pessoalmente declarações duras não apenas sobre a Halachá foi estabelecida segundo

16
REVISTA MORASHÁ i 92

Resh Lakish Resh Lakish. Às vezes, Rabi física. Rabi Yochanan estava certo.
Yochanan era forçado pela lógica Se Resh Lakish canalizasse sua
foi uma mistura de Resh Lakish a abrir mão de força da maneira adequada, ele seria
de benevolência e sua opinião e agir de acordo com capaz de atingir alturas espirituais
os pontos de vista de seu aluno. e intelectuais inimagináveis. E foi
grande humildade Apesar da grandeza e da liderança o que ocorreu. O antigo gladiador
pessoal, por um lado, de Rabi Yochanan, bem como de canalizou seus grandes poderes para
e brilho ideológico e sua personalidade dominante, Resh a Torá. “Quando ele discutia temas
Lakish não ficava à sua sombra. Haláchicos, era como se ele estivesse
até extremismo, por Ele era um Sábio da Torá original arrancando as montanhas pela raiz e
outro. No nível e criativo, por seu próprio mérito. as esfregando, uma contra a outra”,
Ainda que tivesse adquirido a dizia o Sábio Ula. Ninguém se
pessoal, ele nunca maior parte de seu saber de Rabi equiparou a ele em diligência e ânsia
se zangava com Yochanan, também estudou com de estudar a Torá.
outros Sábios, desenvolvendo ideias
ninguém. Mas em próprias. O antigo fora-da-lei também
questões de Torá se tornou o maior símbolo de
e princípio, ele não A mudança na vida de Resh honestidade e integridade do
Lakish, quando ele voltou ao Talmud. Ele evitava associar-
favorecia ninguém mundo do judaísmo, não foi tão se a qualquer pessoa sobre cuja
surpreendente. Rabi Yochanan, probidade não estivesse plenamente
erudito perspicaz, gênio e místico convencido. Nunca falava em
que era, diagnosticou-o com público com alguém cujo caráter ou
precisão quando o conheceu no confiabilidade fossem questionáveis.
incidente no rio Jordão. A extrema O Talmud ensina que qualquer
força de Resh Lakish não era apenas pessoa com quem Resh Lakish
conversasse na rua poderia receber
rio jordão um empréstimo sem a necessidade
de fiadores (Talmud Babilônico,
Yomá 9b).

Resh Lakish abandonou a vida


de gladiador, mas manteve sua
coragem e proeza física. O Talmud
de Jerusalém conta uma história que
bem o ilustra, revelando também
quão fiel ele era a seus amigos e
sua disposição de se sacrificar
pelos outros. No Tratado Terumot,
lê-se o seguinte: “Rabi Imi foi
capturado por uma gangue. Rabi
Yochanan disse: ‘Enrole o morto em
sua mortalha’ (Ele está quase morto.
Não há esperanças para ele).
Rabi Shimon ben Lakish disse:
‘Matarei ou serei morto
(para libertá-lo). Irei e o trarei de
volta com minha força’. E foi e
negociou (sua soltura) e o trouxe
de volta” (Talmud de Jerusalém,
Terumot 46b).

17 junho 2016
nossOS SÁBIOS

Extraordinário
piso de mosaico de
uma sinagoga do
séc. 4 EC, em
Hammat-
Tiberíades, um sítio
arqueológico da
antiguidade

Nessa passagem notável, meritório. Se ele nunca tivesse maior Sábio de seu tempo, já tinha
testemunhamos a fusão do antigo aprendido a usar a espada, dado o prisioneiro por morto,
gladiador e fora-da-lei com o Sábio se nunca tivesse conhecido a porque ele não tinha aptidão para
da Torá. Em vez de esquecer seu maneira de pensar e agir dos tratar nem lutar com bandidos –
passado, ele o usa para salvar vidas. criminosos, Rabi Imi nunca teria ao contrário de Resh Lakish, que,
Resh Lakish conseguiu resgatar sido libertado. Sua vida foi salva além de ser um homem de uma
e salvar a vida de uma pessoa em graças aos erros passados de Resh força física extraordinária, sabia
virtude de sua força física, porque Lakish, que, em retrospecto, empunhar uma espada e intimidar
sabia como empunhar uma espada tornaram-se a base para o maior os bandidos. Seu ato de salvar
e também porque tinha experiência de seus atos – salvar uma vida Rabi Imi teve o mérito de fazer de
em lidar com criminosos. Essa e resgatar uma pessoa. Por isso seus pecados – seus maus atos do
ação de salvar vidas se tornou não surpreende que Resh Lakish passado – méritos.
possível graças ao passado desse tenha sido quem proferiu o
grande Sábio. A história simboliza famoso ensinamento talmúdico: Dois gigantes da Torá
o conceito talmúdico de “Teshuvá “O arrependimento oriundo do
motivada pelo amor a D’us”: amor a D’us é tão grande que A morte de Resh Lakish e de Rabi
uma oportunidade rara, na qual os pecados premeditados são Yochanan foi comovente e difícil
um comportamento pecaminoso julgados como se fossem méritos” de entender. O Talmud narra
passado se torna positivo quando (Talmud Babilônico, Yomá 86b). como ocorreu: “Um dia, ambos
olhado através do prisma de debatiam em que estágio de sua
um novo contexto e propósito. Pensemos no que provavelmente produção as armas – como uma
Quando Resh Lakish sofreu se passou pela cabeça de Resh espada, uma faca ou uma lança –
uma metamorfose, D’us lhe deu Lakish quando ele estava sozinho devem ser consideradas prontas e,
a oportunidade não apenas de se no Beit Midrash na noite após portanto, passíveis de se tornarem
arrepender por seus maus atos, salvar Rabi Imi. Seu Mestre, Rabi ritualmente impuras. Durante a
mas de transformá-los em algo Yochanan, comprovadamente o discussão, Rabi Yochanan, talvez

18
REVISTA MORASHÁ i 92

pilheriando, disse que um “ladrão” depois, Resh Lakish adoeceu, e 24 objeções e eu lhe dava
(em referência ao passado de Resh se atribui a doença ao fato de ter 24 respostas, e aí chegávamos a um
Lakish) entende de seu negócio desrespeitado seu Mestre. Pouco pleno entendimento daquela lei. Mas
– é familiarizado com as armas e depois Resh Lakish faleceu. você me diz: ‘Há uma Baraita que
ferramentas de sua área. Muito apoia o que você diz’. Você pensa
ofendido que Rabi Yochanan Após sua morte, Rabi Yochanan que eu não sei que minhas avaliações
trouxesse à baila seu passado, Resh mergulhou em profundo pesar. são corretas?”. Rabi Yochanan, então,
Lakish retrucou: Os outros Sábios, testemunhando saiu da Casa de Estudos, rasgou suas
“Se é assim, no que foi que você o sofrimento de Rabi Yochanan roupas em sinal de luto, e, enquanto
me aperfeiçoou me fazendo pela ausência do melhor amigo soluçava, gritou: “Onde estás, ben
estudar Torá? Antes, entre os e companheiro de estudos, Lakish? Onde estás, ben Lakish?”.
gladiadores, eu era chamado de mandaram um dos melhores Chorou e chorou até perder a cabeça.
Mestre, e agora, aqui, sou chamado eruditos em Torá da época, Os Sábios imploraram a D’us para
de Mestre!” Rabi Yochanan, Rabi Elazar ben Pedat, para ter piedade dele e, pouco depois, ele
chocado com a aparente ingratidão acompanhá-lo. Conta-nos o faleceu. (Talmud Babilônico, Bava
dele, pergunta: “Não te é suficiente Talmud que este último se sentava Metzia 84a).
o fato de eu ter-te trazido para a diante de Rabi Yochanan e,
proteção das asas da Shechiná, da quando este falava, Rabi Elazar A morte dos dois Mestres fechou
Presença Divina?”. ben Pedat dizia: “Há uma Baraita um capítulo na história do Talmud
(um ensinamento talmúdico) que de Jerusalém e no estudo da Torá na
A consequência do ocorrido consubstancia o que o Mestre diz”. Terra de Israel. Durante centenas
entre os dois mestres da Torá Até que um dia Rabi Yochanan de anos, ninguém tomou seu lugar.
lhes causou muito sofrimento. lhe disse: “Você julga ser como De fato, poucos Sábios em toda a
Rabi Yochanan sentiu-se Resh Lakish? Quando eu proferia História Judaica tiveram vida tão
profundamente ferido. Logo uma lei, ele argumentava rica e comovente como eles.

19 junho 2016
nossOS SÁBIOS

Lago de Kineret, ou Mar da Galileia

Ao longo de quase dois milênios, abreviaturas de seus nomes, este gigantes da Torá e dois heróis do
Resh Lakish e Rabi Yochanan tinha um significado adicional. Seu Povo Judeu.
foram mestres e colegas de nome foi simplificado para a inicial
todos os judeus que estudaram o de Rabi Shimon, Resh e Shin — e Entre as inúmeras declarações de
Talmud, através de gerações. Eles Lakish era o nome de seu pai. Em Resh Lakish citadas no Talmud,
aparecem com tanta frequência no aramaico, Resh significa “cabeça há uma particularmente poética:
Talmud e suas discussões são tão ou líder”. Seu apelido sugeria seu “O mundo só existe em virtude do
envolventes e inspiradoras que, papel de líder de um grupo, não alento das crianças estudando a Torá.
quando estudamos uma passagem apenas dos Sábios da Torá. O nome O estudo da Torá pelos jovens não
em que eles estão presentes, expressava a estima geral por Resh deve ser interrompido, nem mesmo
sentimos como se estivessem Lakish como um grande líder tanto para construir o Templo”. (Talmud
vivos, sentados ao nosso lado. E, de gladiadores como de Sábios. Essa Babilônico, Shabat 119b). Zecher
na verdade, quase 2.000 anos após combinação de associações – de Tzadik Livrachá: Que a memória de
sua morte, eles continuam muito seu passado como gladiador e fora- um Tzadik seja uma bênção.
vivos. Seus nomes e ensinamentos da-lei, de um lado, e sua imagem
reverberam onde quer que os erudita, de outro – criou o composto
judeus estejam estudando o único de “Resh Lakish”.
Talmud.
Resh Lakish e Rabi Yochanan se Bibliografia
Um detalhe que ainda não completavam. Um ressaltava o Rabi Steinsaltz, Adin (Even
mencionamos: Por que Rabi brilho do outro. Seu predestinado Israel),Talmudic Images - Koren Publishers
Shimon ben Lakish era chamado encontro no rio Jordão mudou Rabi Kahn, Ari,Teshuva from Love and
Fear
de Resh Lakish? Trata-se de seu a vida dos dois – e mudou nossa Shimon ben Lakish, Rabbi (ca. 200 C.E. –
apelido, mas diferentemente do vida, a vida do Povo Judeu, ca. 275 C.E.)
apelido de outros Sábios, que são significativamente. Eles foram dois www.ou.org/judaism

20
israel

O sucesso dos
vinhos de Israel
Que Israel é líder mundial em tecnologia agrícola e está
sempre um passo à frente na rota da inovação, nas mais
diferentes áreas, todo mundo sabe. O que tem surpreendido,
nas últimas décadas, é o destaque que o país tem conquistado
no ranking mundial de vinhos, caminhando lado a lado com
os grandes produtores internacionais.

P
or trás desse sucesso, estão o clima seco e 1983, conquistou várias vezes o Prêmio de Excelência
com grandes variações de temperatura, o solo da Vinexpo. A Golan Heights é, inquestionavelmente,
propício e o sol intenso, que caracterizam o um dos grandes pilares da chamada revolução e do
país como ideal à vinicultura. Do norte, com desenvolvimento da indústria de vinho de Israel, ao
altitudes de até 600 metros e alguma neve lado das vinícolas Carmel, Barkan, Efrat, Binyamina,
eventual, ao Deserto de Neguev, no sul, Israel tem uma Tishbi, Dalton e Castel, respondendo por cerca de 90%
paisagem muito apropriada à cultura dos vinhedos. Soma- das exportações do país e dominando mais de 80% do
se a este quadro determinação e criatividade da população mercado interno. Dados do Instituto de Exportação
aliada a técnicas avançadas de agricultura, do cultivo à e Cooperação Internacional de Israel mostram que as
colheita. Uma tarefa árdua, porém gratificante, pois os exportações de vinho do país cresceram 6% em 2015,
rótulos israelenses têm conquistado prêmios e a admiração totalizando US$ 39 milhões.
tanto dos produtores quanto dos especialistas do setor.
A história da chamada moderna vinicultura de Israel
A Terra de Israel produz vinho desde os tempos bíblicos. começou em 1882, com a fundação da vinícola Carmel
Até há pouco, Israel era conhecido como um grande na cidade de Zichron Ya’akov, ao sul de Haifa, pelo
fabricante de vinhos casher, excessivamente doces, que Barão Edmond de Rothschild, proprietário da Chateau
não costumavam agradar aos que apreciavam vinhos mais Lafite, em Bordeaux (França). As duas maiores vinícolas
refinados. Esta era a situação até o início dos anos 1990, de Israel pertencem à Carmel – a de Zichron Ya’acov
quando começaram a chegar ao mercado internacional e outra em Rishon Le-Zion, ao sul de Tel Aviv. Possui
novas safras de vinhos israelenses que, competindo lado cerca de 1.400 hectares de vinhedo, que se estendem da
a lado com os melhores vinhos produzidos na Europa Alta Galileia, ao norte, em direção ao Neguev, no sul, e
e nos Estados Unidos, passaram a ganhar prêmios produz 15 milhões de garrafas ao ano.
internacionais. A vinícola Golan Heights (Colinas
do Golã), por exemplo, que plantou suas primeiras Mas o ponto de partida para o que passou a se chamar
videiras em 1976 e lançou suas primeiras marcas em a “Revolução Israelense”, na área de vinicultura, deu-

21 junho 2016
israel

colombia
vinhedos nas colinas do golã

se em 1972, com a visita ao país conseguiu colocar-se no mapa Gewürztraminer, Johannisberg e


do norte-americano Cornelius dos melhores produtores de vinho Riesling. As uvas Muscat possuem
Ough, um importante professor do mundo. Por suas qualidades um papel secundário na produção do
da Universidade Davis. Durante únicas, que refletem um caráter país.
sua passagem por Israel, atestou mediterrâneo com um toque
a qualidade do solo e clima de israelense especial, os vinhos com o Segundo o crítico de gastronomia
algumas regiões para a produção selo “Made in Israel” têm encantado e vinhos Daniel Rogov, responsável
de vinhos de alta qualidade. Assim, o paladar de americanos, europeus e por um guia anual sobre os vinhos
somando sua tecnologia agrícola asiáticos. do país e que escreve para o jornal
avançada e os conhecimentos de Haaretz, “Israel tem evoluído neste
técnicos da Califórnia e da Europa, Crescimento contínuo setor por possuir vinicultores de
que começaram a atuar junto aos nível internacional, cujas vinícolas
produtores, e investindo na formação Em menos de 4 décadas apareceram aliam instalações modernas e
de profissionais no exterior, Israel mais de 300 vinícolas de pequeno e tecnologias avançadas, visando
médio porte. A partir das décadas de criar produtos diferenciados”. Para
1980 e 1990 surgiram as “vinícolas- confirmar suas palavras, Rogov
jarras de vinho em cerâmica encontradas
na “casa do viticultor”, em Bethsaida
boutique”, com produção pequena cita a visita feita ao país por Mark
e muito bem cuidada, controlada Squires, que escreve para a revista
por profissionais do mais alto nível. especializada Parker’s Wine Buyer’s
Atualmente, Israel possui 6 mil Guide, e que deu mais de 90 pontos
hectares de vinhas e a exploração a 14 dos vinhos que degustou. Seu
das altitudes compensou o calor e aval não deixa qualquer dúvida sobre
permitiu o plantio de variedades a qualidade dos produtos.
diferentes, como a Pinot Noir. Atualmente, Israel está dividido
Os tipos de vinhas mais comuns em cinco grandes áreas produtoras.
cultivados em Israel atualmente Uma delas é a Galileia, caracterizada
são Cabernet Sauvignon, Merlot, por altas altitudes, brisas frias
Sauvignon Blanc, Chardonnay, vindas do Monte Hermon, solos
Pinot Noir, Cabernet Franc, de basalto vulcânico e uma série

22
REVISTA MORASHÁ i 93

de microclimas, principalmente na com o seu filho Ariel, que, após


chamada Alta Galileia. Os vinhedos prestar o serviço militar em Israel,
mais ao norte das Colinas do Golã foi para a Borgonha, onde estudou
estão a 1.200 metros acima do enologia e trabalhou por dois anos
nível do mar. A região do Monte na Domaine Emile Viarick, de
Carmel e do Vale de Sharon é a Michel Picard. Em 1988 importou
maior produtora de vinhas do país, e plantou parreiras francesas na
beneficiando-se do fato de estar região de Ramat Raziel, próxima
na área montanhosa do Carmel e a Jerusalém. Com o aumento da
próxima ao Mediterrâneo. produção, em 1995, a vinícola passou
a se chamar Domaine du Castel.
Domaine du Castel é um dos selos
que tem ajudado a fazer a fama
da indústria do vinho de Israel.
Considerada uma das melhores
vinícolas do país, elabora tintos e
brancos casher raríssimos e muito
elogiados pela crítica internacional,
desmentindo a ideia de que vinho
para ser bom não pode ser casher. A maioria dos vinhedos plantados
Seus rótulos estão dentre os mais em Israel nos últimos anos segue
aclamados em Israel e grande parte um padrão: distância de 1,5 metros
de sua produção é arrematada entre as vinhas e 3 metros entre
por colecionadores israelenses. as fileiras. A colheita mecanizada
Inspirados nos melhores franceses, é cada vez mais comum. Estações
são elaborados nas colinas que meteorológicas fornecem
circundam Jerusalém. continuamente informações aos
Por trás do sucesso da marca está produtores sobre a umidade das
uma longa história, que começou folhas e temperaturas do solo, entre
com Eli Ben Zaken, proprietário outras.
da vinícola, e tem tido continuidade
Uma das características dos
israelenses é deixar de lado as
convenções e tentar o impossível.
A marca Carmel foi pioneira no
cultivo de vinhas no Deserto do
Neguev, na região de Ramat Arad,
um exemplo concreto da expressão
“fazendo o deserto florescer”.
Desde então, seus campos
experimentais têm-se interiorizado
no Neguev, principamente em
Mitzpeh Ramon e Sde Boker.
Sua mais famosa vinícola é a
Yatir Winey, produtora do que é
considerado o melhor vinho tinto
de Israel, o Yatir Forest 2003, que
atingiu 93 pontos na nova Parker’s
Wine Buyer’s Guide.

Lechaim!

23 junho 2016
shoá

OS ÚLTIMOS MESES
DE ANNE FRANK
Zevi Ghivelder

O RELATO A SEGUIR SE BASEIA EM IMPORTANTE DOCUMENTÁRIO


REALIZADO PELO CINEASTA JUDEU HOLANDÊS, WILLY LINDWER,
DEPOIS TRANSCRITO EM FORMA DE LIVRO. DURANTE DOIS ANOS ELE
ENTREVISTOU MULHERES SOBREVIVENTES DA 2ª GUERRA QUE, DE
ALGUMA FORMA, CRUZARAM SEUS PASSOS COM OS DE ANNE FRANK,
A MENINA JUDIA QUE, EM FUNÇAO DE SEU CÉLEBRE DIÁRIO, PASSOU
A SIMBOLIZAR PARA A POSTERIADE OS HORRORES DO HOLOCAUSTO.

O
“Diário de Anne Frank” abrange o período e Bergen-Belsen e, depois da guerra, foram para Israel
de 12 de junho de 1942 a 1 de agosto contando com a ajuda de Otto, pai de Anne. Assim
de 1944, quando seu esconderijo em como a família Frank, sua família havia emigrado em
Amsterdã foi descoberto pelos nazistas e a 1933 da Alemanha para a Holanda. Ela era vizinha de
família Frank foi deportada para o campo Anne no bairro de Merwdplein, ao sul de Amsterdã, e
de concentração de Auschwitz. Depois, Anne e sua ambas foram colegas de classe desde o jardim de infância
irmã Margot foram transferidas para outro campo, o de até o curso ginasial. Ela perdeu o contato com os Frank
Bergen-Belsen, onde ambas morreram em março (não em 1942, quando Otto, a mulher e as filhas se refugiaram
se sabe se no dia 15 ou no dia 31) de 1945, apenas dois no “Anexo”, seu famoso esconderijo. Hanna só voltou a
meses antes do fim do conflito. falar com Anne três anos mais tarde através de uma cerca
de arame farpado em Bergen-Belsen.
Embora o diário de Anne tenha sido traduzido para
mais de 50 idiomas e tenha, desde então, emocionado Ela relembrou as agruras sofridas no campo de
gerações, pouco se sabe sobre as suas últimas semanas de concentração, tendo sido uma das mais marcantes a
vida. Algumas das mulheres entrevistadas por Lindwer contagem à qual as mulheres eram submetidas todos os
conheciam a família Frank desde os tempos de paz dias. Ficavam de pé, em fileiras, de quatro a cinco horas,
em Amsterdã e algumas foram colegas de Anne na enquanto os alemães as contavam e recontavam,
escola. De seus depoimentos se conclui com receio que alguma fugisse. “Fugir para
que a crueldade nazista superou onde, com uma estrela de David costurada na
todos os limites do comportamento roupa, sem dinheiro, sem nada? Um dia, em
humano, transformando as crianças, fevereiro de 1945, reparei que grandes tendas
principalmente as crianças, em haviam sido colocadas num local pouco
animais descartáveis. A holandesa afastado do nosso e separado por uma
Hannah Elisabeth Pick Goslar e cerca de arame farpado. Soube que ali
sua irmã sobreviveram a Auschwitz se encontravam prisioneiras oriundas da
REVISTA MORASHÁ i 92

anne, ao lado do patinete, brinca com sua amiga sanne

Holanda. Consegui fazer contato pacote para Anne. Na noite seguinte, que se acalmasse, que eu tentaria
com uma delas e perguntei se quando foi ao encontro da amiga jogar outro pacote, como de fato fiz,
ela conhecia minha amiga Anne junto à cerca, arremessou-lhe o poucos dias depois, e ela conseguiu
Frank. Disse que sim e que iria pacote. “Anne passou a gritar quase pegá-lo. Foi a última vez que ouvi
chamá-la, mas não podia chamar histérica. Perguntei o que tinha sua voz”.
também a irmã porque ela estava acontecido. Ela respondeu que uma
muito doente, num beliche. mulher ao seu lado se apossara do O cineasta que realizou o
Sobre o arame farpado havia uma pacote e não queria devolver. Pedi mencionado documentário levou
espécie de cortina de palha e, por mais de um ano até convencer Janny
isso, além da escuridão do inverno, Brandes a prestar seu testemunho.
eu não pude ver Anne, apenas Ela conheceu a família Frank na
ouvir sua voz. Mesmo na sombra, estação ferroviária de Amsterdã, de
percebi que não era a mesma onde os judeus foram deportados.
Anne tal a sua esqualidez. Ela Janny fora presa por causa de sua
começou a chorar e me disse que atividade na resistência holandesa
não tinha mais pai nem mãe”. contra os invasores nazistas. Dotada
de forte personalidade, descendente
No decorrer daqueles dias, as de uma família de sionistas
prisioneiras receberam pequenos socialistas, dedicou-se de corpo
pacotes contendo biscoitos e alma a cuidar dos doentes em
enviados pela Cruz Vermelha Bergen-Belsen, sobretudo de Anne e
Internacional. Hannah pediu às Margot, ambas acometidas de grave
outras mulheres que cedessem tifo. “As condições de saúde nos
um pouco de seus biscoitos para barracões eram tão terríveis que uma
que ela pudesse preparar um anne frank em sils-maria, 1935 simples infecção na garganta era

25 junho 2016
shoá

em Amsterdã, aonde se infiltrou


no mercado negro de cupons de
racionamento, cedido a judeus e
não-judeus. Certo dia, viajando de
trem de Rotterdã a Amsterdã, foi
presa e levada para Westerbork, um
campo de trânsito de onde partiam
as deportações definitivas. Foi ali que
Rachel conheceu a família Frank.
“Fui designada para a faxina e Anne
Frank veio ao meu encontro dizendo
que queria ajudar, que era habilidosa
e capaz de cumprir qualquer tarefa.
Era uma doce menina, um pouco
mais velha do que aparece nas suas
edith frank, c. 1925 otto frank, soldado na 1ª guerra
fotografias que foram divulgadas
depois da guerra”. No dia 3 de
setembro de 1944 dali partiu um
capaz de matar uma pessoa. A par roupas e passou a perambular pelo trem com destino a Auschwitz e
disso, havia muitas prisioneiras com campo envolta num cobertor. Assim Rachel nele se encontrava. Assim
febre escarlate, uma doença muito foi vista pela última vez. Faleceu no como outros milhares de prisioneiros
contagiosa, mas nem por isso elas dia seguinte ao da irmã. Em 1946, foi transportada daquele campo de
eram separadas das demais”. Em seu depois da vitória aliada, foi Janny extermínio para Bergen-Belsen.
depoimento filmado, lembrou que quem escreveu para Otto Frank,
no barracão em Bergen-Belsen no informando que suas duas filhas No barracão em que foi confinada
qual fora confinada havia três níveis haviam morrido naquele campo de tornou a ver as irmãs Frank. “Elas
de beliches e que cada suposta cama concentração. estavam com a cabeça raspada e tão
abrigava duas pessoas. esqueléticas que mal as reconheci.
A família de Rachel Amerongen foi Somente pela aparência de ambas,
Na verdade, quase tudo ali era toda assassinada em Auschwitz, o dava para perceber que estavam com
improvisado porque os nazistas não pai, a mãe e dois irmãos com suas tifo e que seu fim estava próximo.
esperavam receber novas levas de mulheres. Ela conseguiu se esconder Ficavam estiradas perto da porta
prisioneiros. Isso tinha acontecido de entrada e quando entrava o
por causa do início da evacuação de vento frio, Anne e Margot pediam:
Auschwitz, situado no percurso do ‘fecha a porta’, ‘fecha a porta’. Não
exército soviético, que estava cada me lembro qual das duas morreu
vez mais próximo. Janny recorda primeiro”. Depois da guerra, Rachel
que lhe chamou particularmente a foi viver em Israel e assim concluiu
atenção o comportamento das irmãs seu depoimento: “Aqui Anne Frank é
Frank, que jamais se separavam e uma lenda e, ao mesmo tempo, uma
permaneciam unidas em face de pessoa viva. Acho que não existe uma
quaisquer adversidades. Perdeu-as só cidade neste país onde não haja
de vista por alguns dias, mas, em seu nome numa rua. Anos atrás fui
seguida, acomodou-as num beliche à Holanda onde moram minha filha
no mesmo barracão onde ela estava. e minhas netas gêmeas. Queriam
Àquela altura, as duas meninas ainda levar-me à casa de Anne Frank.
estavam relativamente bem de saúde, Relutei muito até concordar porque
porém Anne contraiu tifo, assim preferia encerrar este assunto. Fiquei
como Margot. Anne permaneceu perturbada com a quantidade de
firme até a morte da irmã, o que a turistas ali dentro e que não paravam
fez desistir de tudo. Jogou fora suas anne e margot frank de tirar fotografias. Minha filha

26
REVISTA MORASHÁ i 92

sugeriu que eu dissesse àquela gente colher de chá de mel. Eu e Anne


que havia conhecido Anne Frank, partilhávamos tudo que recebíamos
mas preferi ficar calada. Na saída, de manhã e à noite. Eu me lembro
registrei no livro dos visitantes: ‘Não que num dia Anne apareceu com
sei se Anne Frank gostaria disso’ ”. erupções na pele: estava coberta por
sarnas. Foi levada para a enfermaria
Bloeme Evers e seu marido, Hans, e Margot ficou ao seu lado todo o
sempre se destacaram como tempo. A mãe estava em constante
dedicados ativistas da comunidade estado de desespero. Não tinha
judaica de Amsterdã. Ela recorda ânimo sequer para comer a magra
que quando terminou o curso ração de pão. Quando as meninas
ginasial, era a única remanescente foram levadas para Bergen-Belsen,
em sua sala de aula. Todas as demais a Sra. Frank ficou em Auschwitz.
jovens haviam emigrado ou, a Nunca mais se viram”.
exemplo da família Frank, optado
por se esconder. Bloeme conheceu Ronnie Goldstein Cleef engajou-se
anne no colégio, em amsterdã
Anne e Margot Frank no curso na resistência holandesa assim que
primário do Liceu Judaico da capital seu país foi invadido. Além de atuar
holandesa e só foi reencontrá-las no a minha”. Seu marido também como mensageira entre os diversos
campo de trânsito de Westerbork. foi prisioneiro em Auschwitz, no grupos, competia-lhe a tarefa de
Sua família também se encontrava mesmo alojamento de Otto Frank. arranjar esconderijos para os judeus
num esconderijo quando foi Depois da libertação, o casal fez e também falsificar documentos.
descoberta pelos nazistas. “Não um tortuoso caminho até regressar Denunciada, até hoje não se sabe por
tenho recordações muito precisas à Holanda, passando pela União quem, foi presa e transportada para
daquele lugar a não ser que o mais Soviética, França e Bélgica. Suas Auschwitz em setembro de 1944.
importante era saber adaptar-se às lembranças do campo são terríveis: Ali começou a desenhar e a escrever
circunstâncias. Entretanto, lembro- “Lá a higiene era abominável poemas que foram divulgados
me bem do trem que nos levou para principalmente por causa da escassez depois da guerra e lhe ensejaram
Auschwitz. As pessoas estavam de água. Nossa alimentação consistia uma bem sucedida carreira como
imprensadas umas contra as outras e de um pedaço de pão, às vezes artista plástica. Ronnie, nascida em
só nos restava dormir...em pé”. um mínimo de manteiga ou uma Haia, vem de uma família judaica

Willy Lindwer escreve que todos


os contatos que manteve com a
sobrevivente Lenie de Jong foram
sempre na companhia de Bloeme
Evers. As duas sedimentaram uma
grande solidariedade em Auschwitz.
A força e a determinação de uma
sustentaram a outra e vice-versa.
Assim sobreviveram e ficaram
amigas para sempre. O cineasta
revela que ficou emocionado durante
a entrevista com Lenie de Jong.
Sentiu estar na presença de uma
mulher sensível e agradável que lhe
disse jamais ter compreendido a
razão de sua sobrevivência depois
de tudo o que sofreu em Auschwitz.
“Talvez pessoas religiosas tenham
uma compreensão melhor do que As fotos preferidas de Anne na parede de seu quarto

27 junho 2016
shoá

Quando veio a ordem de deportar


os judeus para Auschwitz, Ronnie e
os Frank se encontravam no mesmo
vagão do trem da morte. Mas, os
humilhados e infelizes passageiros
ignoravam que a morte seria sua
Solução Final. Alguns judeus tinham
recebido de seus familiares cartões
postais vindos de Buchenwald
apenas com relatos dos trabalhos que
faziam porque todos os conteúdos
de todas as correspondências
eram monitorados pelos alemães.
o diário de anne frank
Portanto, julgavam que estavam
viajando para um campo de
de comportamento liberal. Seu pai ficado escondidos no mesmo lugar. concentração apenas para trabalhar.
viajava muito para a Alemanha a O que era recomendável, naquelas Além disso havia uma centelha de
negócios, mas embutiu nos filhos circunstâncias, era que as famílias se esperança. Os prisioneiros ficaram
um sentimento anti-germânico. separassem, pai para um lado, mãe sabendo que os aliados já haviam
Depois da ascensão do nazismo para outro e o mesmo com os filhos. libertado Paris, ou seja, a guerra
profetizou que um dia a Alemanha Assim, se algum membro da família estava prestes a terminar.
invadiria a Holanda “mas nunca viesse a ser preso, os demais teriam
nos pegarão”. Contudo, Ronnie chance de escapar. Ela lembra que os A narrativa de Ronnie sobre a
acabou sendo pega e mandada Frank eram muito unidos e estavam chegada a Auschwitz é semelhante
para Weterbork, onde conheceu a igualmente deprimidos. Imaginavam à de tantos outros sobreviventes:
família Frank. Estranhou que os que estariam a salvo em seu “Anexo” “Era uma situação surreal, parecendo
Frank, pai, mãe e filhas, tivessem e que nunca seriam descobertos. ficção científica extraída de um

o túmulo de ANNE FRANK


O campo de concentração de Bergen-Belsen tornou-se um sinistro
Bergen-Belsen, túmulo de Anne lugar somente para prisioneiros
Frank, foi construído pelo regime judeus, evacuados dos campos de
nazista em 1940, entre as pequenas concentração mais próximos das
cidades de Bergen e Belsen, a 17 frentes de batalhas, a oeste, e do
quilômetros ao norte de Celle, na exército soviético, a leste. No início
Baixa Saxônia. Ao longo do tempo de 1945, a superlotação e as péssimas
o campo foi ampliado e dividido condições sanitárias provocaram
em três partes. Uma abrigando epidemias de tifo, tuberculose e
prisioneiros de guerra, outra para disenteria. No dia 15 de abril daquele
acomodações dos próprios alemães ano, forças britânicas libertaram o
e a última para prisioneiros sem campo onde encontraram cerca de
uma qualificação específica. 60 mil prisioneiros, a maioria deles,
Em 1944, depois do Dia D e doente. Anne Frank e sua irmã ali
à medida que as forças aliadas haviam morrido, um mês antes da
se aproximavam da Alemanha, libertação.

28
REVISTA MORASHÁ i 92

filme. Fomos colocados em filas conduzida pelo Dr. Mengele, cujas


e submetidos a uma seleção cujos atrocidades pseudocientíficas eram
critérios nos eram desconhecidos. desconhecidas dos internos de
Lá estava Mengele que apontava, Auschwitz. Como era natural, as
nada falava, apenas apontava para prisioneiras se dividiam em grupos
as pessoas. Para a direita nós, nos quais prevalecia um pacto
os jovens, e quem mais tivesse tácito de solidariedade. Anne,
aparência sadia. Para a esquerda, Margot e a mãe faziam parte de
os mais idosos e as crianças”. um grupo de mulheres holandesas
Depois das primeiras semanas e algumas alemãs. Foi neste grupo
no campo, Ronnie fez amizade que as Frank contaram às demais
com Anne Frank a ponto de sobre sua experiência no chamado
ambas dividirem a mesma caneca “Anexo”, o esconderijo no qual
porque só possuíam uma. Em viveram em Amsterdã. Quando
seguida, decorrido algum tempo, se passaram alguns dias sem que
as prisioneiras foram postadas muito doentes e morriam. Ronnie, Ronnie visse as irmãs, soube que
em filas e submetidas a uma nova acometida pela febre escarlate, foi elas haviam sido transportadas
seleção. Ronnie ficou ao lado parar na enfermaria junto com Anne para o campo de Bergen-Belsen
de Anne e Margot. Conforme e Margot, cobertas por sarnas, e aonde transcorreriam suas últimas
recorda, no que se refere àquela em vias de serem vítimas do tifo. semanas de vida.
ocasião, Anne parecia muito calma, As irmãs tinham a mãe o tempo
mas, na verdade, estava apática e todo ao seu lado. Quando Ronnie
ausente. De súbito, foram levadas voltou para o barracão, mais uma Bibliografia
a um barracão vazio e tiveram Lindwer, Willy, “The Last even Months of
vez ficou ao lado de Anne e Margot. Anne Frank”, editora Anchor Books, EUA,
seus cabelos raspados. À medida Conforme seu relato, a aparência das 1992.
em que o tempo corria, as pessoas meninas era terrível e o pavor maior
emagreciam, ficavam doentes, das prisioneiras era a seleção sempre ZEVI GHIVELDER é escritor E JORNALISTA

ANNE FRANK no palco e no cinema


O livro “O Diário de Anne platéia. Houve outra encenação
Frank” foi adaptado para o teatro na Broadway em 1997, dirigida
por Frances Goodrich e Albert por James Lapin e tendo Natalie
Hackett. O espetáculo estreou Portman no papel de Anne. No
no teatro Court, na Broadway, no Brasil, a mais recente encenação da
dia 5 de outubro de 1955. peça estreou no Teatro Deodoro,
O papel de Anne foi interpretado em Maceió, no dia 4 de novembro
por Susan Strasberg; Otto, de 2015, apresentação do Grupo
o pai, por Joseph Schildkraut Cena Livre.
(famoso no teatro em íidiche,
em Nova York) e a mãe por No cinema, o filme, de 1959, foi
Gusti Haber. No mesmo mês dirigido por George Stevens com
e ano a peça foi apresentada na Millie Perkins no papel principal.
Alemanha e, no ano seguinte, Os intérpretes do pai e da mãe
na Holanda, contando com a foram os mesmos da versão para o
presença da Rainha Juliana na palco, na Broadway.

29 junho 2016
entrevista

Entrevista com o ministro


Naftali BennetT
O ministro da Educação de Israel, Naftali Bennett, esteve
em São Paulo em março deste ano, 2016 , tendo visitado
escolas, sinagogas e entidades judaicas. Nessa ocasião, o
ministro concedeu uma entrevista exclusiva para Morashá,
na qual fala sobre os seus objetivos e metas.

C
om uma taxa em formar os valores dos alunos.
de alfabetização Os adolescentes que completam
extremamente alta a educação escolar precisam estar
entre os países conectados com nosso país, nossa
desenvolvidos, Israel sociedade e nossa terra. Eles
pretende, nos próximos anos, precisam amar Israel, estar dispostos
aprimorar seu sistema educacional, a ajudar os menos afortunados
para que todas as crianças do país e fazer o que for necessário. Em
tenham as mesmas oportunidades, segundo lugar, precisamos aumentar
diminuindo, assim, as diferenças o número de crianças que estudam
entre os vários segmentos da Matemática Avançada, não apenas
população. visando a sua instrução, mas como
objetivo estratégico para manter a
superioridade de Israel. A terceira
coisa que temos que fazer é começar
REVISTA MORASHÁ: Qual sua a diminuir as diferenças entre os
missão primordial como Ministro de
vários setores em Israel. Meu sonho
Educação do Estado de Israel? Quais
é oferecer às crianças de Bnei
são os principais objetivos que pretende
Brak, Rahat, Ofakim e Herzliya
alcançar neste cargo?
oportunidades iguais na vida.
Naftali Bennett:
Estabeleci quatro objetivos para Por último, nosso quarto objetivo
o sistema educacional de Israel. é virar a pirâmide educacional de
Primeiro, os valores. Nossas escolas cabeça para baixo e investir mais
NAFTALI BENNETT desempenham um papel primordial nos estágios educacionais iniciais,

30
REVISTA MORASHÁ i 92

MINISTRO DA EDUCAÇÃO VISITOU A ESCOLA BEIT YAACOV

ao invés de tentar remediar os Contudo, para que nossos jovens Há escolas sem orientação religiosa
problemas em fases posteriores da tenham a melhor instrução possível, ao lado de outras muito religiosas
vida. Com isto em mente, reduzimos devemos prezar certos valores e e, naturalmente, escolas de religiões
o número de alunos por turma nos sempre tentar melhorar. Por este minoritárias – como as do Islã e do
anos iniciais e acrescentamos um motivo, lancei nossa iniciativa Cristianismo – que ensinam seu
auxiliar em cada pré-escola. central de aumentar o número de credo.
alunos que estudam Matemática
Avançada, bem como outros
M: Como o Sr. avalia a qualidade da M: O Sr. é o líder do Partido HaBait
projetos. Por isso, também, estamos
educação fornecida nas escolas públicas HaYehudi – Lar Judaico – conhecido
investindo tempo e recursos para
em Israel? Em sua opinião, é melhor por ser um partido ortodoxo moderno,
começar a reduzir as distâncias entre
do que a instrução fornecida nas escolas de direita. Sua ideologia pessoal e a
os diferentes grupos da sociedade
públicas nos Estados Unidos, Europa e de seu partido ajudam a moldar o
israelense – para assegurar que
Ásia? currículo das escolas israelenses?   
toda criança israelense tenha as
ferramentas e a oportunidade de
NB: Israel fornece a seus cidadãos realizar seu potencial. NB: O sistema escolar público
educação pública da mais alta não pertence a um partido ou a
qualidade, desde a pré-escola até uma ideologia. Serve a todos
a universidade. Deve-se a nosso
M: Qual o papel da religião no sistema os cidadãos israelenses,
educacional israelense?
sistema de educação pública o fato independentemente de sua fé
de Israel ter um taxa de alfabetização ou tendência política. Acredito
extremamente alta (cerca de NB: O sistema escolar público que seja importante que os
98%), e também o fato de nossas permite que os pais escolham o papel alunos recebam as informações
universidades públicas serem líderes que desejam para a religião e as ferramentas para tomarem
mundiais em muitas áreas. na educação de seus filhos. decisões abalizadas também

31 junho 2016
entrevista

alto nível na escola alimentará nossas


universidades, bem como as unidades
tecnológicas das Forças de Defesa de
Israel - IDF, com uma geração de
alunos prontos não apenas para
seguir em frente, mas para
desenvolver a posição de Israel como
líder mundial nessas áreas.

M: Como Ministro da Educação, o Sr.


se empenhará em promover o ensino
de matérias seculares nas escolas ultra
ortodoxas?

NB: Trabalho lado a lado com a


comunidade ultra ortodoxa para
estimulá-los a ensinar Inglês e
acerca de sua identidade. É por isso países líderes no campo das Ciências
Matemática. Acredito que somente
que precisamos ensinar História e da Tecnologia. Quanto disso pode
mediante cooperação e debate
Judaica e de Israel, assegurando que ser atribuído ao sistema educacional
poderemos alcançar uma mudança
os alunos conheçam os costumes do país? 
positiva nesse campo.
judaicos e nossas tradições, e
garantindo que estudem acerca
NB: Ser uma “Start-Up Nation”,
dos diferentes grupos culturais que
isto é, uma nação embrionária, M: O Sr. visitou recentemente o Brasil
vivem em Israel.
não depende apenas da educação, e proferiu várias palestras, inclusive
mas, por outro lado, não poderia na Escola Beit Yaacov, em São
M:Não há dúvida de que Israel é acontecer sem o sistema Paulo. Quais suas impressões sobre a
famoso no mundo todo por ser uma educacional. O estudo da comunidade judaica do Brasil? 
potência tecnológica. Israel é um dos Matemática e das Ciências em
NB: Vocês podem estar orgulhosos.
As pessoas que conheci, as
escolas e projetos que vi no Brasil
e na Argentina foram muito
impressionantes. Todos os que
conheci foram muito calorosos,
recebendo-me muito bem e foi um
prazer falar com eles. Foi fácil ver
como a comunidade cuida de seus
membros e como todos, jovens e
mais velhos, orgulham-se de ser
parte da Kehilá. Os educadores e
líderes comunitários que conheci são
totalmente dedicados a instilar na
próxima geração o amor ao judaísmo
e a Israel. Fica muito claro que a
comunidade investe empenho e
recursos na identidade judaica e na
educação judaica – e eu cumprimento
efusivamente a todos os envolvidos.

32
REVISTA MORASHÁ i 92

M: Qual a sua impressão sobre as


escolas que visitou em sua viagem ao
Brasil? Teria alguma sugestão sobre
o que deve ser feito para promover
ainda mais o Judaísmo e o Sionismo
nas escolas judaicas do Brasil?

NB: Não é simples construir um


estilo de vida judaico-sionista
– e instilar esses valores na próxima
geração é um grande desafio.
Por mais maravilhoso que um
programa ou uma escola sejam, há Naftali Bennett É RECEBIDO NA A HEBRAICA POR DIRIGENTES COMUNITÁRIOS

sempre por onde melhorar, e ser


um bom educador significa querer
terra e nossa herança. Assim sendo, a idênticas no Brasil, na França e
estudar sempre e se adaptar. É
melhor maneira de combater a em Israel – e depois trabalham
importante continuar a encontrar
assimilação é ensinar nossa herança todos em um projeto conjunto
oportunidades para os judeus
comum e educar as pessoas a via Skype ou e-mail. Também há
brasileiros se envolverem com
ostentarem sua identidade judaica outras ideias, obviamente. Uma
Israel e os israelenses em nível
com orgulho. delas são os fóruns abertos no
pessoal, ajudando-os a desenvolver
Facebook, onde adolescentes judeus
uma conexão emocional com nossa M: O que pode ser feito, nas escolas do mundo todo podem conversar
herança judaica comum. israelenses e judaicas na Diáspora, para com seus pares israelenses; outra
Há muitas ideias e iniciativas fortalecer os laços entre os judeus de seria levar jovens judeus brasileiros
sensacionais e cada escola deve Israel e os que vivem na Diáspora?  de 15-16 anos para passar um
procurar aquela que melhor lhe
programa de verão visitando Israel.
serve – mas todas devem também
Precisamos construir o máximo
buscar maneiras de permitir NB: Os judeus israelenses e os
de pontes possível, para que meus
que todas as crianças judias, da Diáspora precisam conversar,
filhos possam conhecer os seus,
adolescentes e adultos, vivenciem a e as escolas podem facilitar isto.
e as crianças judias do mundo
vibrante vida e cultura judaica que Imaginem uma turma de alunos de
todo encontrem um meio de se
Israel tem a lhes oferecer – venham Bar ou Bat Mitzvá que recebe aulas
conhecerem.
visitar-nos!

M: Em sua opinião, o que mais


M: O Sr. teria algum conselho para
a comunidade judaica brasileira
combater a assimilação, na Diáspora,
poderia fazer para apoiar Israel?
além do estímulo à Aliá?
NB: A comunidade judaica do
NB: Quando alguém se assimila, Brasil apoiava Israel antes mesmo
significa que perde sua identidade de nascer o Estado, com atividades
única. A assimilação não é um sionistas que existem há quase 100
termo técnico, mas uma palavra que anos. Fazer a defesa de Israel, atuar
reflete uma mudança de identidade politicamente, educar e arrecadar
por parte daquele que procura fundos – os judeus brasileiros
misturar-se e apagar quaisquer sabem como apoiar Israel de todas
características específicas. Portanto, estas formas. Esta comunidade
a única maneira de ser um judeu faz um trabalho formidável,
orgulhoso e assim permanecer é portanto só posso pedir a vocês
quando se sente um vínculo que continuem fazendo este ótimo
inquebrável com nosso povo, nossa trabalho!

33 junho 2016
ARTE

Jozef Israëls,
o “Rembrandt do Século 19”
Um dos principais expoentes da Escola de Haia, Jozef Israëls,
judeu holandês, é considerado o mais importante pintor da
Holanda da segunda metade do século 19. Ao longo de toda
sua vida, pintou inúmeras e fascinantes telas retratando
temas judaicos, exercendo considerável influência sobre
a geração posterior de artistas judeus.

A
s obras do chamado “Rembrandt do Mas, perante a determinação do filho, o pai cedeu,
Século 19” e “o Millet holandês” permitindo que Jozef estudasse artes. Sua única exigência
(numa referência ao pintor francês Jean- foi que, chegada a hora, o jovem fosse trabalhar nos
François Millet) estão expostas nos negócios da família. Assim, aos 11 anos, Jozef Israëls
principais museus do mundo, incluindo o teve suas primeiras aulas de desenho com o artista
Rijks Museum, em Amsterdã, o Metropolitan, J. Bruggink, na Academia Minerva, na própria cidade
em Nova York, e a Galeria Nacional, em Londres. onde nasceu. Com o mestre ele começou a pintar
paisagens, tema preferido de Bruggink. Um ano depois,
Sua vida estudou com outro pintor, Johan Joeke Gabriel van
Wicheren. Seu talento rapidamente despertou a atenção
Jozef Israëls nasceu em 1824, em Groningen, no norte e, aos 14 anos, tornou-se aluno de Cornelis Bernudes
da Holanda, em uma abastada família judaica. Filho do Buys, respeitado pintor de Groningen.
banqueiro, corretor de seguros e comerciante Hartog
Abraham Israëls e de Mathilda Solon Polack, Jozef foi Para Jozef, a arte era a razão de sua vida; decididamente
o terceiro de dez filhos do casal – tinha seis irmãos e não se encaixava no mundo dos negócios. Enquanto
três irmãs. trabalhava no escritório do pai, passava o dia desenhando
nas margens dos grandes livros-razão que devia atualizar
Seus pais desde cedo perceberam o talento do filho, e manter em ordem. Diante desse desinteresse pelos
mas Hartog não queria que Jozef estudasse arte, pois negócios da família e de seu inegável talento,
não queria um filho artista. Queria que assumisse os o pai acabou permitindo que Josef fosse para Amsterdã
negócios da família ou que fosse rabino, como era estudar artes. Tornou-se aluno de Cornelis Kruseman,
desejo de sua mãe. A educação religiosa que recebeu famoso pintor holandês da época. Dois anos depois, Jozef
desde criança e, mais tarde, seus estudos do Talmud, inscreveu-se na Real Academia de Artes de Amsterdã,
influíram profundamente em seu desenvolvimento então dirigida por Jan Adam Kruseman, primo de
intelectual e espiritual. Cornelius. Jan Adams é conhecido principalmente por

34
REVISTA MORASHÁ i 92

casamento judaico, 1903, óleo sobre tela. rijksmuseum, amsterdan

seus retratos, embora tenha pintado de François-Edouard Picot, pintor Giulio Carlo Argan, alegam que,
também paisagens e cenas de vários que foi professor de vários artistas na história da arte, concorrem
estilos. Com Kruseman, Jozef passou importantes da época. É quando duas grandes forças, constantes e
a pintar cenas históricas e bíblicas, sofre forte influência da Escola antagônicas: uma delas é o espírito
além de retratos. Absorveu as Romântica, da qual seus professores clássico; a outra, o romântico.
influências do movimento classicista1 eram os maiores expoentes. Alguns Os temas predominantes do
que buscava a pureza formal, o historiadores de arte, entre eles romantismo eram paisagens com
equilíbrio e o rigor então elementos idealizados e conotações
predominantes na Academia de históricas. Este gênero artístico
Belas Artes de Amsterdã. remonta ao barroco do século 17,
comum nas obras de Nicolas Poussin
Em 1845, com 22 anos, Jozef decide e Claude Lorrain.
continuar seus estudos em Paris,
sustentando-se com uma pequena No atelier de Picot, Jozef aprende a
mesada que seu pai lhe enviava. trabalhar essa técnica e a influência
A Cidade-Luz era o maior centro do mestre logo pôde ser percebida
artístico e cultural do mundo, para em suas primeiras pinturas históricas
onde afluíam artistas vindos de românticas.
todas as partes. Lá ele estudou na
Académie des Beaux-Arts e no Atelier Em meados do século 19, surge
na França mais um movimento
artístico – o chamado Realismo
1
Classicismo refere-se ao mundo antigo, Pictórico francês. O estilo baseado
ou seja, à valorização da Antiguidade
Clássica como padrão por excelência do na observação da realidade como
sentido estético. Jozef Israëls contexto social era uma reação

35 junho 2016
ARTE

o último suspiro, 1872, óleo sobre tela. philadelphia museum of art

ao formalismo e à estética do a retratar principalmente Como artistas, até mais do que


Romantismo. trabalhadores rurais. Através de como pintores no sentido estrito
seus ocres e marrons, o lirismo de da palavra, de fato, ambos viam na
Um grupo de pintores franceses sua luz e a dignidade de suas figuras vida do homem pobre e humilde
adeptos do Realismo estabeleceu-se humanas, o pintor manifestava motivo para expressar, em sua arte,
próximo ao povoado de Barbizon, a integração do homem com a com peculiar intensidade sua grande
nos arredores do Bosque de natureza. A obra desse artista vai compaixão humana. Mas Millet
Fontainebleau, deixando Paris influenciar profundamente a arte era o poeta da plácida vida rural,
numa atitude de aberta oposição às de Israëls. Millet e Israëls tem enquanto que em quase todas as
tendências estéticas do período. sido frequentemente comparados. pinturas de Israëls há uma pungente
Entre os maiores representantes nota de pesar. Sobre suas telas, o
da Escola de Barbizon, como se conceituado escritor e crítico de arte
tornou conhecido o movimento, francês da época, Louis Édmond
estavam os pintores Jean-Baptiste Duranty, disse que eram pintadas
Camille Corot, Jean-François com melancolia e sofrimento.
Millet e Théodore Rousseau.
Para esses artistas, a paisagem No entanto, apesar de ter aderido ao
em si representava a beleza e não Realismo Pictórico Francês, Israëls
necessitava de outros elementos não abandonou as paisagens. Desde
mitológicos ou figuras bíblicas. cedo, ele se caracterizou por não ser
Se fosse preciso incluir elementos um artista de um estilo ou tema
humanos, estes deveriam ser “reais”. únicos.

Jozef vai passar algum tempo em De volta à Holanda


Barbizon, e foi um dos primeiros
a apreciar o realismo contido nos Após dois anos em Paris, Jozef
quadros de Jean-François Millet, pai e filho, não datado. carvão e grafite
Israëls voltou a Amsterdã,
que se dedicou, após 1849, sobre papel. coleção particular dedicando-se, principalmente, à

36
REVISTA MORASHÁ i 92

mãe e filha. Óleo sobre tela, coleção particular CriançaS no lago, 1872

Israëls conquistou fama não apenas como importante


representante da Escola de Haia ou como o “Rembrandt do
século 19”, mas como pintor judeu

pintura de retratos e temas históricos. O gênero, porém, já não atraía que o fascinou: o dia-a-dia dos
Lá participou de um concurso tanto o interesse do público e ele se pescadores. Durante sua
organizado pela Academia. Apesar voltou a temas como o homem do permanência em Zaandvoort fez
de não ter recebido um prêmio, foi campo que afluía para a cidade nos muitos esboços de composições que
destacado com louvor pelos críticos. dias das feiras. duraram até o fim de sua carreira e o
Seu grande salto se deu com as tornaram famoso.
pinturas “Meditação”, em 1850, e Adoecendo, ele deixa a capital e vai
“Adágio com expressão” , em 1851. para Zaandvoort, um pequeno Nas obras baseadas em suas
povoado de pescadores. Foi ali, nesse observações da vida dos pescadores
Em seguida, Israëls foi para vilarejo, que ele descobriu um tema holandeses, onde retratou seu
Düsseldorf, encontrando-se com o trabalho árduo, sofrimento e
pintor de paisagens J.W. Bilders, em sacrifícios, o pintor utilizou com
Oosterbeek. Ao voltar à Holanda, maestria a técnica do chiaroscuro2.
dedicou-se à história do país, que
retratou com grande precisão Em 1856, pintou um de seus
histórica e forte ênfase no aspecto quadros mais famosos, “Passando
psicológico individual. Ele foi um pelo túmulo da Mãe”. A obra, que se
dos poucos pintores holandeses encontra, atualmente, no Museu
de sua época a satisfazer o gosto Stedelijk, em Amsterdã, retrata um
dominante por uma narrativa pescador diante de um túmulo, de
fascinante na forma de “pinturas mãos dadas com seu filho, levando
históricas à la Grand Manner”. outra filha no colo. Os pés descalços
desse triste trio revelam pobreza e
dificuldades, acrescidas com a perda
2
O chiaroscuro (palavra italiana para da esposa e mãe.
"luz e sombra") uma das estratégias inovadoras
da pintura renascentista do século 15, define-
se pelo contraste entre luz e sombra na A costureira. Óleo sobre Tela.
No quadro “Pescadores carregam um
representação de um objeto hadassah katchkin gallery, tel aviv afogado”, atualmente na Galeria

37 junho 2016
ARTE

Nacional de Londres, o artista Em 1860, termina o quadro “O dia


retrata uma fileira de pescadores e anterior à partida”, atualmente parte
suas famílias, vindos da praia, do acervo do Museu de Belas Artes
caminhando lentamente pelas dunas. de Boston. É uma obra sobre a
Uma mulher, talvez a viúva do morte. No fundo de um chalé mal
pescador, vai à frente, com os filhos a iluminado há um caixão entre duas
seu lado. Seus rostos revelam a cadeiras, coberto com uma mortalha
perda. Atrás, o corpo do pescador e pouco iluminado por uma vela
morto é carregado por dois homens. solitária. A luz entra no local a partir
No quadro o artista consegue da esquerda e ilumina os dois
retratar todo o sofrimento e as personagens – mãe e filha.
dificuldades dos pescadores e suas No primeiro plano se vê a mãe
famílias. Este trabalho foi exposto sentada na cadeira, apoiando-se na
em 1861 no Salão de Artes de lareira. Seu rosto está vermelho por
Amsterdã e, em 1862, na Exposição causa das lágrimas derramadas. A
Pescador, 1892
Internacional de Londres, fazendo seus pés está sentada uma menina
estrondoso sucesso nas duas mostras. que se apoia na mãe em busca de
Após essas duas exposições, Israëls que saiu com o barco para o alto-mar. conforto, com o olhar fixo no caixão.
conquista definitivamente a Esse tipo de obra fez com que Israëls Nessa obra o artista demostra seu
admiração do público e dos críticos. ficasse conhecido como o “o Millet grande talento ao usar o forte
holandês”, porque os dois artistas contraste entre luz e escuridão, o
O sofrimento e a angústia das tiravam sua inspiração da vida dos chiaroscuro, como o contraste entre a
famílias de pescadores estão mais mais humildes. vida e a morte. Por esse trabalho,
uma vez presentes na tela Israëls recebeu uma medalha de ouro
“Aguardando, ansiosos”. Na tela, o No entanto, como vimos acima, em uma mostra em Roterdã, em
céu alaranjado e o movimento das enquanto as obras de Jean-François 1862. No mesmo ano, participou da
ondas são o prenúncio de uma Millet são mais claras e como que Exposição Internacional de Londres.
tempestade, enquanto uma mulher observam a paz da vida rural, as de
sentada nas dunas com o olhar fixo Israëls são mais sombrias e Em maio de 1863, o pintor se casa
no mar, tendo uma criança em seus carregadas de mensagens de com Aleida Schaap, com que teve
joelhos, espera o retorno do marido desespero. dois filhos: Mathilde Anna, nascida
em fevereiro de 1864, e Isaac
Lazarus, nascido em fevereiro de
O dia anterior à partida, c. 1862
1865, que se tornou pintor como o
pai. Seu nome está ligado ao
movimento impressionista de
Amsterdã.

A vida em Haia

Em 1870, a família se transfere para


Haia, onde Israëls adere ao chamado
Grupo de Pintores de Haia, que
atuou de 1860 a 1890, cujo estilo
procurava retratar a realidade de
forma objetiva, sem idealismos.
O Grupo de Pintores de Haia
usava geralmente cores sombrias
e lúgubres, em especial tons de
cinza, a ponto de serem chamados
de Escola Cinza. Esta tendência

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começou a mudar nos últimos


anos de existência da chamada
Escola de Haia, influenciada pelos
pintores de Barbizon e os primeiros
impressionistas, que criaram uma
paleta mais clara e brilhante.

Israëls é muitas vezes chamado de


“Rembrandt do século 19”. Muitas
das telas são grandes, com elementos
melodramáticos e carregados de
emoção. Os tons escuros e negros
evocam o tradicional estilo holandês.
Israëls se utilizou de técnicas e cores
do século 17, lembrando o estilo de
Rembrandt ou Van Ostades. O jogo
de luzes em suas obras é, sem dúvida,
uma forte influência de Rembrandt.
Ele, por sua vez, serviu de inspiração
para Van Gogh.

A admiração do pintor por


Rembrandt remonta à década de
1840, quando vivia em Amsterdã: o filho do povo antigo, c. 1889. óleo sobre tela. the jewish museum, new york
“Eu morei a poucas casas do famoso
local no qual ele trabalhou durante
anos. Eu via as massas, a pressa, os Povo Antigo”, 1889; “O escriba da Os judeus foram os primeiros
rostos avermelhados dos judeus com Torá” (1902); “Casamento judaico” colecionadores de suas obras,
suas barbas cinzas; as mulheres com (1903); e as gravuras “David levando o artista a fazer, inclusive,
seus cabelos ruivos, os carrinhos com perante Shaul” (1908) e “Velho uma série de cópias da pintura
peixes e frutas e outros apetrechos sábio judeu”. “David canta para “O filho do Povo Antigo” para serem
– tudo remetia à Rembrandt”. Shaul” foi um de seus últimos vendidas no mercado americano.
trabalhos. Pintou também retratos Este quadro, marcante na carreira de
Como entalhador e pintor de de familiares e de importantes Israëls, retrata um homem idoso e
aquarelas, ele produziu um grande personalidades judaicas da época. humilde sentado na soleira de uma
número de obras, que, assim como casa, e é identificado como um
seus óleos, são carregados de um Israëls conquistou fama não apenas mendigo ou um vendedor de
sentimento profundo. Suas telas como um importante representante produtos usados. Sua religiosidade é
são geralmente tratadas com da Escola de Haia ou como o revelada por um prato de ouro e
generosos volumes de luz e sombra, “Rembrandt do século 19”, mas candelabros em uma mesa de canto
o que destaca o sujeito principal como pintor judeu. que aparecem no primeiro plano.
sem negligenciar qualquer detalhe
que seja. Dizem especialistas que o quadro A tela lembra os homens velhos
“Casamento judaico” é um dos retratados nas obras de Rembrandt,
Temas judaicos melhores exemplos da influência de geralmente identificados como
Rembrandt sobre Israëls. Na tela, “judeus” nos catálogos. “O filho do
Ao longo de sua vida e, veem-se a noiva e o noivo sob a Povo Antigo” foi claramente
principalmente, nos últimos anos de chupá, cercados pela família e seus inspirado na obra “Retrato de um
sua carreira, os temas judaicos convidados. Ao fundo, brilha a luz Ancião”, de 1654, de Rembrandt.
tornaram-se mais frequentes em suas simbolizando a alegria do O quadro foi descrito por um crítico
obras, destacando-se, “O filho do momento. de arte como o símbolo de todos os

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ARTE

uma refeição frugal, óleo sobre tela

judeus: “É um filho daquele povo chamado de Berlin Secession e que,


antigo, cujos membros são posteriormente, lhe concederia o
dispersos entre os povos como título de membro honorário. Fez
folhas que se mexem com a parte do comitê organizador da 1ª
tempestade, mas que não se Bienal de Veneza, em 1895, evento
misturam e se tornam um único”. que aconteceu dois anos depois. Foi
laureado com inúmeros prêmios na
Israëls exerceu considerável Europa como reconhecimento pelo
influência na geração posterior de mérito de sua obra, incluindo a
artistas judeus, inclusive na Europa Ordem Real do Leão da Holanda,
Oriental, inspirando pintores a Legião de Honra da França, em
como Leopold Pilichowski e 1867, e a Ordem de Leopoldo,
Samuel Hirszenberg. Seus trabalhos concedida pelo Rei da Bélgica.
foram incluídos em uma mostra
importante realizada em Berlim Jozef Israëls faleceu em agosto de
(Alemanha), em 1907, sobre os 1911, na cidade de Scheveningen,
pintores judeus do início do sendo homenageado com um enterro
século 20. auto-retrato, 1908, óleo sobre tela digno de um chefe de estado.
stedelijk museum. amsterdam

É consenso entre os historiadores e


críticos de arte que Israëls foi o de Paris, em 1878, mas participou,
pintor de maior sucesso de sua também, da “progressista” mostra Bibliografia

“Arte da Secessão e Arte Judaica na Eliane Strosberg, The Human Figure and
época. No momento em que o Jewish Culture
estilo holandês do século 17 vivia Europa Central”. Susan Tumarkin Goodman, The Emergence
um período de renovada of Jewish Artists in nineteenth-century
popularidade entre os críticos Sua amizade de longa data com o Europe
franceses, ele foi considerado o famoso pintor judeu Max Samantha Baskind & Larry Silver, Jewish
Art A Modern History
herdeiro vivo desta tradição. Ele Liebermann lhe trouxe estreitos e
Lucian Regenbogen, Dictionary of Jewish
conseguiu não apenas ser incluído inúmeros contatos na Alemanha. Painters
no prestigiado Salão Francês e na Assim, em 1892, participou de Edward van Voolen, 50 Jewish Artists you
Exposição Universal mostras com o grupo que viria a ser should know

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CAPA

Os 500 anos do
Gueto de Veneza
Há 500 anos, no dia 29 de março de 1516, a Sereníssima República
de Veneza determinou que os judeus eram obrigados a viver
numa área delimitada, que passou a se chamar “Ghetto”.
Os judeus de Veneza lá viveram durante quase 300 anos,
até 1797, quando os muros foram derrubados por Napoleão.

A
longa e rica história dos judeus de mar Adriático, o Mediterrâneo e, principalmente,
Veneza será lembrada no decorrer deste o lucrativo comércio entre a Europa e o Levante.
ano de 2016 com uma série de eventos A Sereníssima atingiu seu apogeu na primeira metade
organizados pela comunidade judaica do século 15. Na época, seus domínios compreendiam
veneziana e a prefeitura da cidade. parte da Lombardia, da Ístria, da Dalmácia e vários
territórios no ultramar. O poderio comercial da cidade
Apesar de segregá-los atrás do muro do Gueto, a atraía mercadores de todos os países da Europa e do
Sereníssima República de Veneza demostrou ao longo Mediterrâneo, inclusive muitos judeus.
de sua história uma relativa tolerância em relação aos
judeus, atraindo para a cidade milhares deles vindos de De acordo com os historiadores, datam do final
toda a Europa e do Levante. Entre os muros do Gueto do século 10 as primeiras provas de uma presença
passaram importantes personalidades do mundo judaico. judaica em Veneza, apesar de haver indicações de que
Lá foram erguidas esplêndidas sinagogas e foi em seus comerciantes já atuavam na cidade em séculos
Veneza que se imprimiram milhares de livros judaicos. anteriores. Os primeiros documentos datam de 945 e
O intuito dos organizadores é fazer do lugar usado no 992, quando o Senado proibiu que embarcações indo
passado para marginalizar os judeus um veículo para ou vindo do Oriente levassem judeus a bordo. Apesar
a revitalização da, hoje, cada vez menor comunidade dessa proibição, eram raras as atitudes anti-judaicas por
judaica veneziana. parte da República.

Os primórdios Ludovico Muratori, historiador italiano do século 18,


escreveu em sua obra Dissertazione que, em 1090, o
A Sereníssima República de Veneza, fundada no século 7 nome “Giudecca”1 já era usado na cidade. Há registros
na Lagoa de Veneza, teve grande influência política na de uma audiência concedida, em 1314, pelo então
história europeia. Foi uma grande potência marítima Doge, dirigente máximo da República de Veneza,
durante a Idade Média e o Renascimento, dominando o um judeu cretense que levava uma mensagem de seus

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CAPA

irmãos de Creta. Mas, até o final abrir e as taxas de juros que podiam
do século 14, a presença judaica na cobrar. Veneza lhes deu permissão
cidade era temporária e esporádica, de eleger seus líderes comunitários,
apesar da tolerância da Sereníssima mas não de adquirir propriedades na
em relação à presença de seus cidade, exercer atividades artísticas
banqueiros e comerciantes. ou artesanais, tampouco de ocupar
cargos públicos ou militares. No
Durante toda a Idade Média o ano seguinte, 1386, o Senado lhes
fato deles possuírem capital era do concedeu uma área isolada do Lido
maior interesse para os governantes, onde enterrar seus mortos.
de modo geral, e Veneza não
foi exceção. Eram inúmeras as Ainda em 1385, Veneza firmou um
vantagens econômicas das cidades acordo com os banqueiros judeus
que permitiam aos judeus se que viviam em Mestre, situada em
estabelecer em seus domínios. Além banqueiro em seu banco. “os costumes
terra firme frente às ilhas de Veneza,
do substancial aporte de capital dos venezianos”, de g. grevembroch. para que concedessem empréstimos
museo cívico correr, veneza
que estimulava a economia, eles a taxas favoráveis às camadas
pagavam exorbitantes impostos cidade de prestamistas e, no ano mais pobres da cidade. Com este
anuais para concessão da licença seguinte, foi permitida a entrada acordo, a Sereníssima conseguiu
de permanência e de abertura de de judeus. Em 1385 foi concedida aliviar a pobreza da população e
casas bancárias. E, acima de tudo, a primeira “Condotta”, um acordo assim reduzir as tensões sociais que
os governantes podiam fixar as taxas entre a República de Veneza e os tinham emergido após as guerras,
de juros e exigir empréstimos em banqueiros judeus, que lhes dava a e, ao mesmo tempo, direcionar a
condições favoráveis ou até livre permissão para se estabelecer em hostilidade das massas contra os
de juros. Apesar da Igreja proibir Veneza para emprestar dinheiro prestamistas judeus.
aos cristãos emprestar dinheiro a a juros. O acordo que tinha a
juros, a necessidade de conseguir duração de 10 anos detalhava as A Condotta de 1385, no entanto, não
empréstimos não desaparecera nem regras que esses banqueiros deviam foi renovada em 1394 sob o pretexto
para os governantes nem para os seguir. Entre outras, fixava o de que os judeus não estavam
governados. salgado imposto anual a ser pago, seguindo as regras impostas às suas
o número de bancos que podiam atividades. É provável que por trás
Ciente dessas vantagens, a oligarquia
veneziana que governava a cidade
foi gradualmente se posicionando
a favor da admissão dos judeus,
principalmente após as guerras contra
Gênova e Chioggia (1378 e 1381)
terem esvaziados os cofres do estado.

Um dos líderes da Quarantia2


propôs, em 1381, a admissão na

1 Giudecca - Uma das várias teorias sobre


a origem do nome dessa ilha na Lagoa
veneziana faz referência à pronúncia de
Giudecca pelos judeus: (“Giudei”). Segundo
isto, Giudecca (como derivado de “guideo”,
palavra que, na Idade Média, significava
judeu) quer dizer “ilha dos judeus”.

2 Quarantia (“quarenta”) - Conselho consultivo


que era um dos mais altos órgãos da mapa de veneza com o gueto no centro. jacopo de barbari, 1500.
República de Veneza. museo civico correr, veneza

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Campo del Guetto Nuovo, a praça principal do gueto de Veneza

dessa atitude estivesse o temor Apesar de oficialmente expulsos, Em 1423, receberam ordem de
de sua penetração no comércio. uma série de decretos revelam vender, em um prazo de dois anos,
Expulsos de Veneza, os judeus se que em meados do século 15 as propriedades que possuíam
espalharam pelas outras cidades ainda havia judeus em Veneza. na cidade e em 1443 foram
da região do Veneto. A política proibidos de manter escolas de
restritiva que os impedia de viver qualquer tipo. Por outro lado,
em Veneza não se estendia a em 1430, o Senado determinara
seus domínios no ultramar e na que mesmo os judeus de Corfu,
península italiana. que embarcavam em navios
venezianos, deviam portar em suas
A atitude da República em relação roupas o círculo amarelo. Dessa
aos judeus sempre foi ambivalente forma estava implicitamente
e era constante a discussão no eliminada a proibição de
Senado se deveria ou não permitir transportar em navios da
aos banqueiros judeus trabalharem República Veneziana judeus e suas
e circularem livremente na cidade. mercadorias.
Receberam a permissão de
permanência durante um período Em meados do século 15 verifica-
de15 dias no mês e os que viviam se em toda a Europa uma sensível
em Mestre utilizavam-se dessa piora da situação dos judeus. Entre
concessão para atuar em Veneza. os fatores que provocaram o clima
Mas para serem reconhecidos anti-judaico estava a cruzada
como judeus já eram obrigados contra a usura e contra os judeus
a usar em suas vestimentas um travada pelos Frades Menores
círculo amarelo. scuola spagnola (franciscanos), que criaram, em

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CAPA

1462, instituições para emprestar de 1509, integrando os Estados tropas inimigas terem chegado até as
dinheiro isentas de objetivo de lucro, Pontifícios. O objetivo da Liga era portas da Lagoa criaram um clima
os Monti di Pietà. deter a expansão da República e, de tensão em relação à população
se possível, destruí-la, dividindo judaica. Em suas pregações, os
Mas, Veneza e Mestre não aceitaram os ricos despojos. Em abril de franciscanos diziam que a derrota era
o estabelecimento dos Monti di 1509, vendo o avanço dos exércitos o resultado dos pecados cometidos
Pietá, nem tampouco subordinar inimigos, judeus que residiam em pelos venezianos, o mais sério dos
suas relações com os judeus às Mestre e em outras áreas do Veneto quais era permitir aos judeus viverem
determinações de 1442 do Papa fugiram para Veneza. Esta última livremente na cidade.
Eugene IV, que ordenara a total assinara em 1503 um acordo com
separação física entre judeus e os banqueiros de Mestre, que lhes Rapidamente surgiram duas facções
cristãos. Ademais, a República permitia refugiar-se na cidade na sobre a atitude a ser tomada em
tentou evitar em seus domínios, eventualidade de uma guerra. relação aos incômodos judeus:
nem
1
sempre com sucesso, a onda expulsá-los ou não? Os argumentos
de intolerância e as acusações de O Senado percebeu rapidamente dos que eram contra a expulsão
assassinato ritual em relação aos que autorizar a permanência dos eram financeiros. Além dos vultosos
judeus que dominavam a Europa. judeus na cidade traria grandes impostos que pagavam anualmente,
benefícios econômicos e financeiros à eles haviam disponibilizado, sob a
A criação do Gueto República, extremamente necessários forma de vantajosos empréstimos,
em momento tão difícil. Apenas para grandes e indispensáveis somas à
A Guerra da Liga de Cambrai foi se ter uma ideia, os impostos anuais República.
o momento decisivo na história dos que os judeus passariam a pagar
judeus de Veneza. Em dezembro sanariam as finanças do Estado. Em O governo da Sereníssima resolveu
de 1508 formara-se uma coligação 1513, as autoridades concederam ao o “dilema” optando por uma
militar entre a França, o Sacro banqueiro judeu Anselmo del Banco segregação em massa. Em 20 de
Império Romano Germânico (Asher Meshullam), de Mestre, e a março de 1516, um dos membros do
e a Espanha para lutar contra a seus associados, a autorização de viver Conselho, após atacar violentamente
Sereníssima. Ainda faziam parte da e emprestar dinheiro em Veneza. os judeus de forma verbal, pediu
aliança a Inglaterra, Hungria, Savoia, que fossem confinados no Ghetto
Ferrara, Mântua e Florença. O Papa Mas, o fato da República ter perdido Nuovo, localizado no bairro de São
Júlio II aderiu à Liga em março grande parte de seu território e as Jerônimo. O Doge e Conselho

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aprovaram a solução. Se quisessem


continuar a viver em Veneza, os
judeus teriam que viver juntos em
uma determinada área, separados do
restante da população. Anselmo del
Banco e outros banqueiros tentaram,
inutilmente, resistir. Em 29 de
março um decreto criava o Gueto de
Veneza:

“Todos os judeus devem viver


juntos, nas casas localizadas ao
redor do pátio que se encontra
dentro do gueto na paróquia de
San Gerolano e, para evitar que
eles não perambulem à noite nos
limites do Ghetto Nuovo e do Ghetto
Vecchio, deverão ser utilizadas duas
pontes de acesso... que terão portões
que serão abertos pela manhã... e
fechados à meia-noite...”. No dia 10
de abril de 1516, setecentos judeus
de origem alemã, Tedeschi, como
eram chamados, e também de origem
italiana, mudaram-se para o Gueto
Novo. A Sereníssima decretou, ainda, a hostilidade em relação aos judeus
que os judeus não podiam ser estava presente no cotidiano da
A maioria dos historiadores acredita proprietários das casas onde população.
que a palavra “ghetto” era uma palavra viviam, nem de qualquer outro
do dialeto veneziano, usada na época estabelecimento. Em 1537, o novo acordo que
para se referir às fundições que elevou para 10 anos o direito de
havia na área. A palavra provém do Era enorme o problema de permanência foi mais um marco na
termo italiano gettare (derramar). espaço e, como não tinham história judaica de Veneza. Apesar das
No passado, o Ghetto Nuovo tinha permissão para construir novos tensões, das periódicas ameaças de
sido usado para despejar resíduos de prédios, a solução era acrescentar expulsão e da sistemática chantagem
fundição de cobre, enquanto o Ghetto andares acima dos existentes. financeira pelas autoridades, estava
Vecchio era a zona de fundição de O estabelecimento do gueto, no garantida a permanência legal de
Veneza. entanto, não implicava um direito seus membros na cidade. Iniciava-se,
automático de residência, sendo assim, um período de estabilização e
As autoridades “lacraram” a permissão de permanência na florescimento da vida judaica, pois,
o Ghetto Nuovo. Dois muros foram cidade – as Condottas – negociada embora segregados por trás dos
erguidos e todas as saídas foram a cada 5 anos. Para obtê-la os muros do gueto, em Veneza vivam
fechadas. Portas e janelas que se judeus tinham que oferecer novos melhor de qualquer outro lugar da
abriam para a parte externa foram empréstimos e doações ao governo. Europa.
muradas, ficando abertas apenas as
que davam para o pátio. Durante Como vimos, a atitude dos Uma análise dos termos das
o dia, os judeus podiam sair, andar venezianos em relação aos judeus Condottas concedidas aos judeus
e trabalhar livremente pela cidade, sempre foi ambivalente. Enquanto asquenazitas mostra que, ao longo
mas sofriam severas penalidades se as decisões do Senado eram das décadas, novas cláusulas foram
fossem encontrados fora do gueto à influenciadas pelos interesses incluídas. A mais importante se
noite. socioeconômicos da República, refere à mudança de atitude em

49 Junho 2016
CAPA

A chegada dos
judeus ibéricos

Após a expulsão dos judeus da


Espanha, em 1492, e de Portugal,
em 1496, muitos dos viajantes que
passavam por Veneza eram judeus
e conversos ibéricos. Alguns se
estabeleceram na cidade, enquanto
outros ficavam algum tempo antes
de seguir para o Império Otomano.
Esses mercadores ibéricos que se
estabeleceram em Veneza passaram a
ser chamados de “Levantini”.

A República não tardou em


reconhecer o poder econômico
dos levantinos e quando eles se
queixaram das difíceis condições em
que eram obrigados a viver, no Ghetto
Nuovo, em virtude da falta de espaço,
o Senado lhes concedeu, em junho de
1541, uma área adjacente, chamada
interior da scuola grande tedesca de Ghetto Vecchio.

Embora o governo veneziano fosse


relação ao tipo de empréstimos que católico e preocupado com a fé da
eles eram obrigados a disponibilizar. população, não se importou com
O governo aumentara sua o fato de que inúmeros conversos
participação como fonte de crédito ibéricos, logo ao chegar a Veneza,
para os pobres, reduzindo as taxas tenham ido direto para o Gueto e lá
de juros que podiam ser cobradas passado a viver abertamente como
e aumentando o número de casas judeus. Ao menos oficialmente, não
de penhores que deviam estar tolerava os conversos que viviam
disponíveis para a população cristã. fora do Gueto, fazendo-se passar
por católicos, enquanto praticavam
Essa atitude fez com que mudasse secretamente o judaísmo.
o perfil da atividade financeira,
passando de uma atividade voluntária Apesar do Papa ter advertido
de alguns poucos banqueiros repetidamente a República sobre
ricos para se transformar em a presença na cidade de cristãos
uma responsabilidade imposta novos que haviam voltado a seguir
à comunidade judaica. Como a abertamente o judaísmo, Veneza
inadimplência das camadas mais manteve grande tolerância em
pobres era grande, os judeus que relação aos judeus e aos conversos
viviam em Veneza não tinham que chegaram à cidade. Até mesmo
como arcar com os custos das casas o estabelecimento do Tribunal da
de penhores e viram-se forçados a Inquisição Romana moderna, criada
apelar para seus correligionários de em 1542 e subordinada ao Vaticano,
Mestre, que passaram a contribuir um judeu. “costumes dos venezianos”,
de g. grevembroch. museo cívico
provou ser difícil. A Igreja e Veneza
financeiramente. correr, veneza bateram de frente, divergindo em

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REVISTA MORASHÁ i 92

relação à função, gestão e composição


da nova instituição e atitude da
Sereníssima em relação aos judeus.
Somente em 1548, uma relutante
Veneza cedeu às pressões papais e a
Inquisição se instala na cidade. E,
uma única vez no século 16, no ano
de 1550, aparentemente por pressões
do imperador Carlos V,
o governo veneziano agiu contra
os conversos ibéricos, proibindo-
os de se estabelecer nos domínios
da República. A medida foi de
curta duração e, apesar da pressão
do núncio papal e da Inquisição, a
cidade continuou a servir de refúgio
para os que queriam voltar ao
judaísmo.

A causa dos mercadores conversos


foi defendida perante o Senado
veneziano, em 1579, por Daniel
Rodriga, um abastado judeu
português que ajudara Veneza a interior da scuola canton
abrir o porto de Split. Rodriga
apresentou uma série de projetos
que tinham como objetivo restaurar estava moribundo, pois se tornara trabalho ou judeus em situação de
o então decadente comércio arriscado devido à pirataria, e a emergência podiam ausentar-se do
marítimo da cidade, ao passo que nobreza veneziana recusava-se a Gueto durante a noite. Era também
simultaneamente beneficiava os enfrentar os novos perigos. Em obrigatório o uso do chapéu amarelo,
mercadores judeus e, acima de tudo, 1589, diante do declínio comercial, um elemento importante na política
lhes obtinha privilégios em Veneza. o Senado promulgou uma nova de segregação adotada pelo governo.
Condotta. Esse acordo dava aos Com o tempo, a cor passou a ser
Rodriga apontou para o fato de comerciantes conversos da Península vermelha, embora os levantinos
que era vasta a rede de contatos Ibérica, chamados de “ponentinos”, continuassem a usar o amarelo.
dos conversos ibéricos nos portos a permissão de residir em Veneza e
do Mediterrâneo e que se lhes praticar seu judaísmo abertamente, O florescimento comercial
fossem oferecidas garantias de dando-lhes também imunidade decorrente da presença dos
segurança, esses comerciantes trariam em relação à Inquisição sobre seu sefaraditas na cidade fez com que
suas mercadorias para a cidade, passado. A Condotta estendia a Veneza lhes concedesse sucessivas
aumentando sua receita alfandegária permissão de permanência aos Condottas. A riqueza dos judeus da
e permitindo que Veneza tivesse judeus “levantinos”. Caberia a esses Nação Levantina-Ponentina tornou-
crescimento econômico e mantivesse dois grupos atuar no comércio entre se famosa em toda a Europa. Em
sua função de entreposto comercial. Veneza e o Levante. 1607, um cronista inglês ao descrever
os sefaraditas de Veneza disse:
Transcorridos vários anos, no A nova Condotta mantinha sua “... Entre muitas mulheres judias,
fim, a persistência de Rodriga foi obrigação de viverem no Gueto e algumas eram as mais lindas que vi
recompensada. A guerra travada a proibição de estarem fora de seus em minha vida... e tão elegantes com
por Veneza contra o Império muros à noite. Somente médicos em seus vestidos... suas correntes de ouro
Otomano esvaziara os cofres atendimento a cristãos, mercadores e seus anéis com pedras preciosas,
públicos. O comércio marítimo que tinham compromissos de com as quais as condessas inglesas

51 Junho 2016
CAPA

teriam dificuldades de competir...”.


Em 1633, os judeus garantiram
ao governo veneziano que mais
mercadores viriam para Veneza
se lhes fosse concedido um lugar
adequado para viver. As autoridades
então cederam uma área com 20
moradias ao longo do canal, a partir
do Gueto Novo em direção quase
oposta ao Gueto Velho, local que
viria a ser conhecido como Gueto
Novíssimo. Havia uma diferença
fundamental em relação aos outros
dois. Enquanto a denominação
dos outros dois era usada antes do
estabelecimento dos judeus e devem
sua origem a uma antiga fundição
que lá existira, o Gueto Novíssimo
jamais foi associado a qualquer
fundição. Foi assim chamado por ser
o novo bairro judaico compulsório.
Assim, o termo ghetto fechava o
círculo na cidade de sua origem:
desde seu uso original específico
como fundição, em, Veneza até o
uso genérico lá e em outras cidades
para designar uma região segregada, interior da scuola italiana
delimitada e compulsória de moradia
judaica.
Impossibilitado de se expandir A Nação Alemã incluía, além de
A vida no gueto horizontalmente, o gueto cresceu judeus asquenazitas originários de
verticalmente. Os prédios tornaram- países de língua alemã, também
Dentro do gueto, no perímetro se mais altos e, os apartamentos, italianos e franceses. E, os levantinos
composto por três bairros menores. Andares eram construídos e os ponentinos eram comunidades
interligados - Ghetto Nuovo, Vecchio e acima dos já existentes e as casas de independentes.
Nuovissimo - os judeus criaram uma 2 pisos viram-se acrescidas de até
comunidade heterogênea composta 8 andares. As sinagogas, chamadas de Scuole
por asquenazitas alemães, italianos, (literalmente, escolas, “casas de
franceses, levantinos, espanhóis e Se a riqueza dividia o gueto ensino”), constituíam o centro da
portugueses, assim como conversos e horizontalmente, determinando vida do judeu veneziano do gueto.
visitantes chegados de todas as partes em que andar alguém podia viver e Intramuros, cada grupo estabeleceu
do mundo judaico. de quantos metros podia dispor, a sua sinagoga, centro de convergência
origem dos que nele viviam o dividia e principal manifestação de sua
A falta de espaço era um problema verticalmente. Para as autoridades identidade.
geral. De acordo com os dados venezianas, a comunidade judaica
mais conservadores, em 1560 havia era separada em duas Nações, cada As cinco principais sinagogas
1.424 judeus que lá viviam. No final uma sendo regulamentada por do gueto são em estilo barroco-
do século eram em torno de 2 mil, Condottas específicas: os alemães renascentista e retratam a Idade
aproximadamente 1,5% da população e os levantinos-ponentinos. Mas, de Ouro do judaísmo veneziano.
total da cidade; chegando a 4-5 mil esta divisão oficial não refletia a As fachadas são discretas, mas os
em meados do século 17. complexidade da comunidade. interiores, suntuosos, apesar do uso de

52
REVISTA MORASHÁ i 92

A Scuola Spagnola, oficialmente


chamada de Kahal Kadosh Talmud
Torá, é a maior, mais suntuosa e
mais conhecida dentre as sinagogas
venezianas. Serviu como modelo
para a comunidade sefaradita de
Amsterdã. Apesar de não haver
documentos que atestem a data,
acredita-se ter sido fundada por volta
de 1580 e reconstruída, de acordo
com a tradição oral, em 1635.

No gueto de Veneza viveram


algumas personalidades religiosas de
destaque, sendo a mais conhecida
o rabino Leon Modena (1571-
1648), autor de inúmeros trabalhos,
entre os quais uma autobiografia
em hebraico, que revela o cotidiano
e as práticas religiosas dos judeus
de Veneza de sua época, inclusive
seu vasto relacionamento com seus
vizinhos cristãos.

Outra personalidade importante,


contemporânea de Modena,
interior da scuola grande spagnola foi o rabino Simone Luzzatto
(1583-1663). Ele é lembrado
principalmente por seu Discorso
materiais “nobres”, como o mármore, Italiana, a terceira, foi fundada em sopra il stato degl’Ebrei et in particular
ser proibido pelas autoridades, que 1575 e congregava os judeus italianos demoranti nel’inclita citti di Venetia
permitiam apenas os considerados que seguiam seu próprio rito. (Discurso do Status dos Judeus e em
“pobres”, como a madeira, e as Particular dos que Viviam na Ilustre
pinturas trompe l’oeil, imitando o É no Ghetto Vecchio, no Campiello Cidade de Veneza,1638). Escrito
marmorizado. As primeiras sinagogas delle Scuole, que estão localizadas as em italiano e dirigido à nobreza
do Ghetto Nuovo foram construídas duas sinagogas sefaraditas: a Scuola veneziana, tinha como objetivo
nos andares mais altos, em parte Grande Spagnola, dos ponentinos, evitar a expulsão dos judeus. Em sua
por questões de segurança, mas e a Scuola Levantina. A elegância obra, Luzatto revela informações
também porque a solução atendia exterior e a suntuosidade do interior importantes sobre a situação
as especificações da lei judaica e as das duas refletem a estabilidade econômica e comercial de seus
determinações da Sereníssima. e riqueza vivida pelos judeus de correligionários.
Veneza, no século 17.
Três sinagogas estão localizadas Também foi significativa em
no Gueto Novo. Duas eram de Segundo a tradição oral, a sinagoga Veneza, a presença de renomados
rito asquenazita: a Scuola Grande dos levantinos foi erguida em 1538, médicos judeus, atraídos pela
Tedesca, a primeira sinagoga a ser três anos antes do ingresso oficial proximidade com a Escola de
inaugurada, em 1528-29, e a Scuola dos judeus dessa origem no gueto. Medicina de Pádua. O fato da
Canton, erguida em 1531-32, que Um documento de 1680 atesta a Escola admitir estudantes judeus
provavelmente foi fundada por demolição da estrutura antiga para era de grande importância por ser
judeus da Provença, que decidiram a construção de outra com maiores considerada a melhor da Europa no
separar-se dos alemães. A Scuola dimensões. gênero.

53 Junho 2016
CAPA

Os judeus de Veneza não aceitaram


passivamente a proibição da Igreja
em relação aos livros judaicos e,
com pressões e doações, obtiveram
certa flexibilidade no decreto papal.
Em outubro de 1554, um decreto
do Papa Julius III interrompeu a
“caça” aos livros judaicos, permitindo
novamente a posse de obras em
hebraico.

Como resultado da medida papal,


em 1560, em Veneza, editores
reiniciaram suas atividades. Estima-
se que dos 3.986 livros hebraicos
impressos na Europa antes de 1650,
cerca de um terço, 1.284, tenham
sido impressos em Veneza.

O declínio

No século 18, tanto a Sereníssima


quanto a comunidade judaica viram
seu poderio econômico diminuir
drasticamente. A peste bubônica
que se abateu sobre Veneza em
interior da scuola levantina
1630 e resultou na morte de 50 mil
pessoas, um terço da população,
afetou as condições socioeconômicas
Impressão em hebraico De suma importância foi também da cidade. Particularmente
a publicação da edição completa do impactados foram os grandes
Veneza emergiu no século 16 Talmud Babilônico (1520-1523) comerciantes judeus que, devido
como um dos principais centros de com comentários de Rashi e de ao medo de infecção, tiveram que
impressão não apenas em italiano, Tosafistas, cujo formato e paginação suspender a importação e exportação
latim e grego, mas também em serviu de modelo para publicações de mercadorias, e viram seus
hebraico, judeo-italiano, ladino e posteriores, bem como do Talmud estoques serem queimados. Se não
iídiche. Teve, de fato, um importante de Jerusalém. Por mais de 30 anos, bastasse, foram obrigados a pagar
papel nos primórdios da história da segundo escreveu em sua obra Cecil exorbitantes novos impostos. Para
imprensa e editoração em hebraico, Roth, os livros judaicos continuaram piorar a situação, em 1645,Veneza
tendo contribuído amplamente para a ser publicados. “É difícil dizer se e o Império otomano voltaram a se
a educação e cultura judaica. eles eram mais dignos de louvor pela enfrentar militarmente, travando
finura do papel, a beleza das letras ou ainda mais o comércio marítimo.
Um dos principais editores de livros a excelência da matéria”.
em hebraico, na Veneza renascentista, O longo período de crise foi
foi Daniel Bomberg, um cristão da Um dos raros momentos de desastroso para toda a população, cuja
Antuérpia, que imprimiu importantes harmonia entre a Igreja e a República pobreza cresceu, criando uma grande
obras nesse idioma. Em 1516, levou, em 21 de outubro de 1553, pressão sobre os bancos pertencentes
Bomberg publicou o Pentateuco, à queima de livros hebraicos na aos judeus. O governo veneziano
a primeira de uma longa série de Praça São Marcos, o que foi uma tinha grande preocupação, sobretudo
publicações que fariam dele um dos grande perda para a comunidade porque precisava de uma comunidade
maiores editores de sua época. judaica e para os editores cristãos. judaica em bom estado de solvência

54
REVISTA MORASHÁ i 92

para operar as casas de penhores. ponentinos, até então em separados, fossem derrubados e removidas
A crise nos bancos causara uma foram unificadas por mais todas as diferenças e separações
sangria financeira na comunidade 10 anos. A medida era mais entre os judeus e o restante da
judaica nos últimos 30 anos do do que necessária, pois as população. No pátio do Gueto Novo
século 17, criando uma situação distintas atividades econômicas e os judeus cantaram e dançaram
paradoxal: suas dívidas constituíam responsabilidades referentes aos comemorando sua liberdade e a
uma blindagem mais poderosa dois grupos de judeus haviam-se chegada de Napoleão. A história do
contra a expulsão do que toda a sua fundido com o passar do tempo. Ghetto chegara ao fim, iniciando-
riqueza passada. Consequentemente, Há muito, os mercadores judeus se a história dos judeus venezianos
em 1722 as autoridades criaram o vinham fazendo pagamentos como cidadãos – uma história
Magistrado do Inquisitorato sopra contribuindo financeiramente com ainda conturbada. Apesar de nunca
l’Universitá a degli Ebrei, com o as casas dos penhores dos judeus mais terem que morar no gueto,
objetivo de restaurar e manter a alemães e, desde 1634, estes tinham os judeus só foram definitivamente
liquidez da comunidade. Durante o participação no comércio marítimo emancipados, passando a usufruir de
restante do século, esse Magistrado com o Levante. igualdade de direitos com os demais
criou, juntamente com o Senado, segmentos da população, em 1866,
uma serie de regulamentos Em 1797, vendo o avanço das tropas quando Veneza passa a fazer parte do
na tentativa de promover o de Napoleão, a comunidade judaica Reino de Itália.
funcionamento das casas de oferece prata e ouro à República
penhores, como forma de conseguir num último esforço para salvar
a liquidação das dívidas substanciais Veneza. No dia 6 de abril, o Senado
da comunidade judaica com cristãos veneziano lhes emite um decreto de
venezianos e outras comunidades agradecimento, um dos últimos atos
judaicas de Amsterdã, Haia e da Sereníssima. BIBLIOGRAFIA
Prof. Tramontana, Giuseppe, Gli Ebrei
Londres. As autoridades queriam Veneziani E L’inquisizione A Meta’ Del
com isso restaurar a capacidade de Em maio, os exércitos franceses ‘500. www.tuttostoria.net/
liquidez da comunidade judaica, mas já estavam às margens da Lagoa Simonsohn, Shlomo, La condizione
giuridica degli ebrei nell’Italia centrale e
acabaram supervisionando de perto e a República veneziana se settentrionale (secoli XII- XIV), in Storia
todos os aspectos diários de seus autodissolveu. No dia 12 de maio, a d’Italia, Gli Ebrei in Italia, Ed. Einaudi 

negócios financeiros. cidade foi entregue a Napoleão. Radaelli, Matteo, Nuovi cristiani portoghesi
No dia 7 de julho, o governo ed ebrei ponentini a Venezia nel XVI secolo.
Kindle
Em 1738, as Condottas concedidas municipal, que assumira o governo, Curiel Roberta e Cooperman Bernard
aos judeus alemães, levantinos e ordenou que os portões do Gueto Dov, The Venetian Ghetto, Ed. Rizzoli

55 Junho 2016
história

Antissemitismo no pós-guerra:
o pogrom de Kielce
No dia 4 de julho de 1946, a cidade polonesa de Kielce foi
palco de um violento pogrom. A sede da comunidade judaica
foi atacada por uma multidão de civis, policiais e militares,
que massacraram, em plena luz do dia, 42 judeus - homens,
mulheres e crianças - e feriram mais de 100. Depois disso estava
claro que não havia futuro para os judeus na Polônia

P
assados 70 anos, o Pogrom de Kielce, a mais em câmaras de gás e que centenas de milhares morreram
sangrenta das manifestações antissemitas por brutalidade, fome e inanição. Tampouco há como
ocorridas em solo polonês, no pós-guerra, refutar que, após o final da guerra na Europa, e,
ainda é um capítulo obscuro na longa e transcorrido um ano sem nenhum soldado alemão em
sofrida história dos judeus na Polônia. Nos solo polonês, centenas de judeus, ainda assim, foram
últimos anos, historiadores e pesquisadores têm resgatado assassinados na Polônia e milhares mais enfrentaram o
inúmeros documentos e testemunhos, mas apesar disso perigo quando voltaram a suas cidades e seus vilarejos.
ainda há muitas perguntas sem resposta. Não é apenas A violência contra os judeus atingiu o clímax em
o Pogrom de Kielce que tem sido alvo de pesquisa por 4 de julho de 1946, em Kielce.
parte de historiadores, mas toda a atuação da Polônia
durante a 2ª Guerra, sua participação no Holocausto e o A Polônia após a 2ª Guerra Mundial
antissemitismo do pós-guerra.
A situação política da Polônia ao término da Guerra era
A posição do atual governo é isentar o país de qualquer tumultuada. O poder era disputado entre comunistas
culpa no que diz respeito à Shoá, afirmando que a poloneses apoiados pelo Exército Vermelho da então
Polônia foi vítima inocente dos alemães e não cúmplice e, União Soviética, que queriam que o país fizesse parte do
tampouco, um espectador complacente da política bloco soviético, nacionalistas da direita que agregavam
antissemita nazista que levou ao assassinato de milhões membros do Exército Interno, e os ultranacionalistas
de judeus. Porém, não há como refutar que foi a Polônia, das chamadas Forças Armadas Nacionais que queriam a
sob domínio alemão, que os nazistas escolheram para Polônia na esfera de influência ocidental.
estabelecer seus campos de extermínio: Chelmno, Belzec,
Sobibor, Treblinka, Auschwitz-Birkenau, Majdanek. Foi O futuro da população judaica na Polônia do pós-
para a Polônia que foram enviados os trens carregados de guerra continuava sombrio, pois, apesar das profundas
judeus de toda a Europa. Foi em solo polonês que mais divergências ideológicas, as duas facções tinham algo em
de 3 milhões de judeus foram assassinados e incinerados comum: suas fortes tendências antissemitas.

56
REVISTA MORASHÁ i 92

monumento em kielce

Apesar de se terem tornado públicas durante a Shoá, provocara entre a O jornal assinalava que, desde o
as terríveis revelações sobre os população um forte ressentimento. início de 1945, 353 judeus haviam
campos de extermínio e o número de Os moradores de Kielce, assim sido mortos por assassinos poloneses,
judeus assassinados durante a Shoá, como no resto da Polônia, não entre eles, membros do Armia
não desaparecera o antissemitismo estavam dispostos a devolver suas Krajowa, o Exército Clandestino
que antes da Guerra permeava todos posses. Muitos dos ataques a judeus, Polaco, que lutara contra os nazistas.
os estratos da sociedade polonesa. registrados em toda a Polônia, Em abril de 1946, a Agência Judaica
Pelo contrário, estava sendo nos meses após o término da de Notícias alertara que “têm
alimentado por novas acusações. Guerra, envolviam “disputas” sobre circulado pela Polônia falsas histórias
Eram distribuídos folhetos propriedades, e apenas na região de sobre assassinatos rituais cometidos
“incentivando” os judeus a deixarem Kielce, dos 13 judeus assassinados por judeus contra crianças polonesas,
o país. Eles eram acusados de serem em junho de 1945, dois foram com o intuito de provocar distúrbios
comunistas e responsáveis pelo novo mortos por causa de “divergências” e pogroms”.
regime apoiado por Moscou, que sobre direitos de propriedades.
queria controlar o país. E o clero Nenhuma cidade polonesa esteve
católico reeditara a calúnia medieval Os alertas sobre os perigos de ser livre de incidentes antissemitas.
de que os judeus usavam sangue de judeu na Polônia do pós-guerra Nenhum judeu – mulheres, homens,
cristãos para produzir matzá. vinham de todos os lados. Entre velhos, crianças e até doentes –
outros, em 1 de fevereiro de 1946, estava a salvo. Por dinheiro ou por
Havia, também, um forte aspecto o Manchester Guardian publicou ódio, o assassinato de judeus seguia
econômico, que tem sido chamado uma reportagem sobre a situação. em frente. Em Cracóvia e Rezo
de “herança da guerra”. A volta As manchetes diziam: “Judeus ainda eles haviam sido acusados de ter
de judeus sobreviventes, donos em fuga da Polônia”, “Gangues cometido assassinato ritual e, em
de propriedades e negócios que políticas surgem para aterrorizá-los”, Radom, um hospital de órfãos judeus
haviam sido tomados por poloneses “Campanha de assassinato e roubo”. fora atacado. No dia 19 de março,

57 junho 2016
história

um dos dois únicos sobreviventes de Kielce aconteceu entre Quando os pais lhe perguntarem
Belzec, que prestara testemunho em 20 e 24 de agosto de 1942, quando onde estivera, contou uma história
Lublin sobre o que presenciara, foi 21 mil judeus foram deportados para sobre um suposto homem que lhe
morto a caminho de casa porque era Treblinka, onde foram assassinados. teria pedido que entregasse um
judeu. E assim por diante... Dos milhares que passaram pelo pacote em uma casa. O garoto disse
Gueto de Kielce, apenas 150 que ao chegar à tal casa, fora preso
Os judeus de conseguiram sobreviver, saindo de e colocado em um porão, de onde
Kielce e o pogrom seus esconderijos ao término da conseguiu escapar dois dias depois,
Guerra e retornando à cidade, a com a ajuda de um outro menino
O destino da população judaica maioria esperando por uma chance que também estava preso no local.
polonesa foi traçado quando, na de emigrar para a então Palestina.
madrugada de 1° de setembro de Os pais de Henryk e os vizinhos
1939, a Alemanha ocupou a parte A violência que tornou Kielce acreditaram na história. Na primeira
ocidental do país. No dia o símbolo da infâmia e do ódio versão o garoto não incriminou os
4 de setembro as tropas de Hitler polonês contra os judeus eclodiu no judeus, mas, quando um dos vizinhos
chegaram à Kielce. Na época, a dia 4 de julho de 1946. O estopim lhe perguntara se o desconhecido era
cidade contava com 24 mil judeus, foi uma mentira contada por um cigano ou judeu, ele respondeu que
aproximadamente um terço da menino de nove anos, Henryk era judeu. Esta “informação” foi logo
população local. Os nazistas Blaszczyk, que não queria ser punido relatada à polícia.
implantaram leis antissemitas, sendo pelos pais por ter desaparecido
que saques, expropriações, trabalho durante três dias. Na manhã seguinte, indo à delegacia
forçado e assassinatos passaram a ser prestar depoimento, Henryk e o pai
a ordem-do-dia. No dia 1o de julho, Henryk saiu de passaram pela então chamada “Casa
casa indo visitar amigos no vilarejo Judaica”, onde viviam dezenas de
Em 31 de março de 1940 foi criado de Bielaki, a 25 quilômetros de judeus. Era a sede do Comitê Judaico
um gueto que passou a receber Kielce, onde, durante a Guerra, sua da Cidade, localizada na Rua Planty,
judeus de povoados vizinhos e de família vivera por um tempo. No dia no centro da cidade.
outras localidades da Europa. Mais seguinte, o pai, Walenty Blaszczyk,
de 1.200 foram mortos durante as comunicou o desaparecimento do A polícia também acreditou
várias Aktions nazistas realizadas no garoto à polícia. Dois dias depois, em na história de Henryk e lhe
gueto. A liquidação do Gueto de 3 de julho, Henryk retornou a Kielce. perguntou se ficara preso na Casa
Judaica; o garoto respondeu que
sim. Rapidamente três patrulhas
foram enviadas à Rua Planty,
acompanhadas pelo menino, que
apontou um judeu como sendo
quem o prendera no porão. Preso
o suposto culpado, os policiais
iniciaram uma busca para localizar
onde Henryk havia sido encarcerado,
pois constataram que o prédio não
possuía porão.

O vai-e-vem de policiais chamou


a atenção dos transeuntes, que
começaram a fazer circular falsas
histórias sobre judeus que teriam
mantido um garoto polonês preso e
sobre assassinatos rituais de crianças
cristãs na Casa Judaica. Historiadores
Sinagoga de Kielce não têm dúvidas de que as ações e

58
REVISTA MORASHÁ i 92

uma das ruas de kielce

o antissemitismo da maioria dos ao pogrom. Arquivos resgatados “Os soldados subiram ao 2º


policiais alimentaram a violência que contendo testemunhos dos andar. Poucos minutos depois,
se seguiu. sobreviventes e entrevistas eles estavam matando judeus...
realizadas por pesquisadores entre a Após o tiroteio no 2º andar, tiros
O número cada vez maior de pessoas população revelam que os policiais foram ouvidos na rua e dentro
que se aglomeravam em frente à ordenaram aos judeus entregar suas do edifício”. Em seguida outros
Casa Judaica despertou o temor dos armas. Depois que foram recolhidas, judeus foram levados por policiais e
judeus que ali viviam. O presidente a multidão entrou na Casa. militares para fora do prédio, sendo
do Comitê Judaico, Severyn Kahane, baleados, apedrejados até morrer
dirigiu-se à delegacia para pedir De acordo com os testemunhos, ou mortos a machadadas e outras
explicações. policiais e militares foram os ferramentas.
primeiros a atirar, matando uma
Por volta das 9h, os principais pessoa e ferindo muitas outras. Até o meio-dia, a violência se
representantes do governo, em Um dos sobreviventes relatou: espalhara por toda a cidade.
Kielce, assim como representantes
das forças militares em Varsóvia,
entre os quais, o ministro da Polícia
Secreta e o comandante-chefe da
Polícia, já tinham sido informados
sobre os acontecimentos.

Por volta das 10h, chegaram à Rua


Planty 100 soldados e 5 oficiais
do exército, somando-se à polícia
e membros da polícia política.
Os soldados que obtiveram as
“informações” junto às pessoas
reunidas em frente à Casa Judaica
acreditaram que os judeus haviam
sequestrado crianças e as mantinham
presas no edifício.

A entrada das forças de segurança


na instituição judaica deu início Kielce: deportação de judeus ao local onde o gueto foi estabelecido, 1939

59 junho 2016
história

FUNERAL das vítimas do pogrom de kielce

Todas as tentativas de interrompê- do exército. Ninguém tentou 40 judeus foram assassinados


la foram em vão. Os judeus feridos impedir as agressões. durante o pogrom e outros dois
eram espancados e roubados por morreram posteriormente. Entre
soldados. Testemunhos dados por Mas o término do pogrom não as vítimas estavam duas crianças,
judeus e poloneses confirmaram significou o fim da violência. o presidente da Casa Judaica,
as crueldades. Um polonês não À tarde, uma grande manifestação jovens sionistas que se preparavam
judeu chegou a afirmar que, “como contra os judeus tomou conta da para fazer aliá, soldados judeus e
ex-prisioneiro dos campos de cidade. Em outras partes de sobreviventes dos campos nazistas.
concentração, presenciara poucas Kielce, judeus foram mortos em A polonesa cristã, Estera
manifestações de brutalidade em suas casas ou arrastados às Proszowska, foi assassinada porque
tamanha escala”. Ao meio-dia, a ruas e mortos. Nem uma mãe com ajudou judeus feridos.
chegada de trabalhadores de uma um bebê foram poupados. Uma
fábrica de aço reacendeu a violência multidão foi até o hospital exigindo Abalados pelos acontecimentos,
e mais 20 judeus morreram. Quase a entrega dos judeus feridos. os judeus da cidade publicaram o
todos os judeus que estavam Atos antissemitas também foram nome das vítimas no único jornal
dentro do prédio, entre os quais, o registrados nos trens que passavam remanescente, com uma tarja preta
presidente do Comitê, acabaram pela cidade durante o dia. em volta. No dia seguinte, os mortos
perdendo a vida. foram enterrados no Cemitério
Rapidamente as notícias sobre o Judaico da cidade.
O pogrom que começara por massacre espalharam-se por toda a
volta das 10h estendeu-se até o Polônia e pelo mundo. Jornalistas O Pogrom em Kielce foi crucial na
meio da tarde, quando chegaram e observadores independentes decisão tomada por 100 mil judeus
novas unidades de soldados do dirigiram-se ao local e se poloneses de deixar o país. Apesar
Ministério do Interior e outras defrontaram com as ruas ainda da ampla presença de policiais e
vindas de Varsóvia. Durante todo o manchadas de sangue judeu. militares, centenas de judeus tinham
pogrom, estavam presentes no local Os cassetetes usados para espancar sido assassinados e outros tantos
o comandante da Polícia Secreta de os moradores da Casa Judaica ainda feridos a sangue frio, em público,
Kielce, seu assessor soviético, bem estavam espalhados pela rua. durante mais de 5 horas. Antes do
como outros oficiais e comandantes O saldo da violência foi dramático: pogrom, mil judeus em média, por

60
REVISTA MORASHÁ i 92

mês, cruzavam a fronteira polonesa sendo que alguns dos detidos sequer Independentemente de ter sido
ilegalmente; em julho, o número estavam no local do pogrom. espontâneo ou orquestrado,
subiu para cerca de 20 mil e, em o pogrom foi utilizado pelos
agosto, chegou a 30 mil. São poucos os estudos que tentam soviéticos para fins políticos. Ele
explicar as causas e identificar aconteceu justamente quando
As consequências os responsáveis pelo Pogrom de foram divulgados os resultados do
Kielce. A pergunta é: até que ponto referendo nacional, realizado pelos
Os responsáveis pelo Pogrom a tragédia de Kielce foi usada e comunistas, em junho de 1946 (não
de Kielce foram supostamente os eventos manipulados com fins há dúvida de que os comunistas
levados a julgamento. No primeiro políticos? fraudaram os seus resultados). As
julgamento nove pessoas foram autoridades comunistas estavam
condenadas à morte. Em setembro Há historiadores que acreditam que cientes de que a sociedade
e outubro, outros julgamentos o ataque foi consequência de uma polonesa era dominada por fortes
foram realizados, sendo os acusados trágica e espontânea série de eventos sentimentos antissemitas e que
civis, soldados e policiais. Entre embasados no ódio polonês pelos bastava uma faísca para acirrar seu
os réus estavam o comandante do judeus. Porém, outros sustentam ânimo contra os judeus e, assim,
Escritório do Serviço de Segurança a tese de que o ataque aos judeus fazê-los esquecer de outros assuntos.
e o chefe de Polícia Política de foi um ato de provocação política, E, de fato, a violência do pogrom
Kielce, ambos absolvidos. Não é preparado pelos serviços de segurança conseguiu desviar a opinião pública
possível saber quantos julgamentos poloneses e soviéticos. As ações do na Polônia e, mesmo, no Ocidente
foram realizados, pois os arquivos diretor do Escritório da Província sobre o referendo.
mais importantes foram destruídos para Segurança Pública, major
em 1989. Mas a verdade é que não Sobczynski, sem sombra de dúvida, Em 1992, na tentativa de apontar
houve justiça para as vítimas, pois incentivaram o pogrom. Sobczynski os responsáveis pelo Pogrom, uma
os julgamentos foram realizados no estivera na cidade de Rzeszow nova investigação foi coordenada
estilo stalinista, sem transparência durante uma tentativa de pogrom, pela Comissão Principal para
e muitas vezes com intuitos em junho de 1945, observando os Investigação de Crimes contra a
puramente políticos. Entre outros, acontecimentos e nada fizera, apesar Nação Polonesa. Esta comissão foi
a maioria dos supostos acusados de saber como civis e soldados agiam encarregada de coletar todos os
havia sido presa de forma aleatória, durante tais ataques. relatórios e documentos existentes.

Funeral das vítimas do Pogrom de Kielce

61 junho 2016
história

Sobreviventes do pogrom de kielce aguardam sua transferência para fora da Polônia

Muitos haviam sido perdidos e a fomentar essa “obsessão pela condenações do antissemitismo,
única conclusão da Comissão foi inocência”, foi inaugurado senão a mais forte, já feita por um
reafirmar que as autoridades locais recentemente um museu dedicado líder polonês. Outros, no entanto,
não adotaram as medidas necessárias à família Ulma, massacrada pelos consideraram o discurso nada mais
para evitar a violência. nazistas por esconder judeus. do que um ato de relações públicas.

Enfrentando o passado Para o rabino-chefe polonês, Rav O historiador Jan Grabowski


Michael Schudrich, o discurso do relembrou que o presidente já dissera
Como vimos acima, a Polônia tem presidente da Polônia, na ocasião, em outras ocasiões que os poloneses
procurado fazer uma nova leitura foi corajoso e uma das mais fortes não precisam se desculpar pelo que
da atuação do país durante a 2ª houve em Jedwabne, afirmando que
Guerra Mundial, bem como de sua centenas de poloneses ajudaram os
participação no Holocausto. judeus durante a Guerra. Detalhes
sobre o Pogrom de Jedwabne estão
O debate fortemente emocional na obra de Jan Tomasz Gross,
em relação ao papel do país de Vizinhos: aniquilação da comunidade
1939 a 1946, dizem estudiosos, judaica de Jedwabne. Conhecido
está relacionado ao que chamam de como “O Pogrom Esquecido”,
“obsessão polonesa pela inocência” aconteceu no dia 10 de julho de
– uma convicção de que a nação 1941, no vilarejo do mesmo nome.
é moralmente isenta graças à sua Poucas semanas após a invasão no
resistência e ao amplo sofrimento norte do país pelas tropas alemãs,
com seus milhões de mortos na os judeus foram massacrados por
Guerra. Dariusz Stola, diretor do seus vizinhos poloneses e não pelos
POLIN – Museu de História dos nazistas, como se acreditava até
Judeus Poloneses, em Varsóvia, disse alguns anos atrás. No final desse
acreditar que muitos poloneses se dia sangrento, o saldo era de 1.600
agarram a tal convicção de inocência mortes – quase toda a população do
por ser tudo o que possuem. povoado, com exceção de sete pessoas
Entre outros atos por parte da Placa em memória das vítimas do
que conseguiram escapar. Durante
estratégia governamental de Pogrom o pogrom, os poloneses torturaram

62
REVISTA MORASHÁ i 92

e mataram seus vizinhos judeus.


Alguns foram afogados no rio, outros
foram mortos a golpes de bastão
ou punhal; os bebês arrancados dos
braços de suas mães foram pisoteados
até a morte. Tanta violência, no
entanto, não foi suficiente para saciar
a fúria assassina dos moradores
do vilarejo, que, no final do dia,
trancaram os sobreviventes em uma
granja, a poucos quilômetros do
cemitério judaico, incendiando o
local. Enquanto parte dos habitantes
vigiavam o portão para que ninguém
escapasse, os músicos do vilarejo
tocavam marchas alegres para abafar
os gritos das vítimas dentro da granja.
Edíficio onde ocorreu o Pogrom de Kielce
Apesar dos esforços do governo de
declarar a Polônia moralmente
isenta, dificilmente esse país poderá uma vítima da agressão alemã, governo é “limitar nossa visão do
negar o seu passado. Entre as quando, de fato, foi um aliado de passado. Eles querem usar a máquina
providências tomadas pelo governo, Hitler durante a maior parte do do Estado para impingir sua nova
está uma lei que autoriza a prisão conflito. visão da história política, e isto é
de qualquer pessoa que se refira a muito perigoso”.
Auschwitz ou a outro campo de A iniciativa do governo polonês
morte alemão, na Polônia ocupada, é vista por muitos estudiosos e Sem dúvida, isso é algo que não
como “polonês”. Esta lei é uma intelectuais do país como uma podemos deixar acontecer, pois a
reação ao fato de todo o mundo fazer abordagem revisionista dos eventos memória da verdade sobre a Shoá,
referência aos “campos de morte ocorridos no país de 1939 a 1946. dos milhões de judeus que foram
poloneses”, termo usado uma vez até Foi, sem dúvida, um período assassinados, brutalmente torturados,
pelo presidente norte-americano, doloroso para seu povo, marcado por que tiveram suas vidas destruídas,
Barack Obama. Os poloneses muito sofrimento, luta e heroísmo. precisa ser preservada para as futuras
consideram este termo extremamente Houve inúmeros casos de poloneses gerações de nosso povo e de toda a
ofensivo e ressaltam que entre as que ajudaram judeus, mas esses fatos Humanidade.
vítimas dos campos havia muitos não apagam a violência e traição por
poloneses não judeus e que os parte da população cristã durante e Para que não se repita... Nunca
poloneses, ao contrário dos após a ocupação alemã. mais!
ucranianos e lituanos, não tinham
nenhuma participação em sua Jan Grabowski, autor do livro
administração. “Caçada aos judeus: Traição e Kielce, artigo da www.
Assassinato na Polônia Alemã HolocaustResearchProject.org
A situação na Polônia é muito Ocupada”, afirma acreditar de que Gross, Jan, Fear: Anti-Semitism in Poland
semelhante ao que tem acontecido um grande número de poloneses After Auschwitz, Kindle, 2007
recentemente na Hungria, onde o ajudou os judeus durante a Shoá é Engel, David, Patterns Of Anti-Jewish
revisionismo histórico tem um retrocesso da verdade histórica, Violence In Poland, 1944-1946, www.
yadvashem.org
caminhado lado-a-lado com a é mais um passo “agressivo e abusivo
Rabi Bookstein, Yonah, The Legacy of
política do primeiro-ministro Viktor em direção à destruição da memória the Kielce Pogrom, artigo publicado 28 de
Orban, que tem como objetivo do Holocausto”. Para Pawel Spiewak, junho de 2011,The Jewish Journal
reabilitar a atuação do país durante a diretor do Instituto Histórico History of Jewish Kielce, http://kieltzer.
2ª Guerra e mostrar a nação como Judaico em Varsóvia, o objetivo do org/history.html

63 junho 2016
DESTAQUE

Um premiê judeu
na Ucrânia
jaime spitzcovsky

Volodimir Borysovich Groysman já


garantiu um lugar na história da Ucrânia:
é o primeiro judeu a ocupar o cargo
de primeiro-ministro em um país que
obteve sua independência em 1991,
com a desintegração da URSS.

A
os 38 anos de idade, O império comunista, criado por tema não é habitual em um país onde
Groysman tornou-se Vladimir Lênin, desintegrou- antissemitismo e décadas de repressão
também o mais jovem se em 1991, o que resultou na comunista tornaram indesejável a
premiê, chegando ao independência ucraniana. políticos assumir totalmente sua
poder em um momento condição judaica, afirmou Horowitz,
turbulento, marcado por conflito De acordo com o Congresso Judaico em reportagem publicada no “The
separatista, relações deterioradas com Mundial, há cerca de 360 mil judeus Times of Israel”.
a Rússia e crise econômica. na Ucrânia, o que corresponde a
uma das maiores comunidades da O texto destacou ainda a diferença
Localizada entre a Rússia e a Europa e a quinta do mundo, atrás nas visitas de políticos à sinagoga
Polônia, a Ucrânia registra uma de EUA, Rússia, França e Reino de Vinnytsia, cidade de 370 mil
antiga presença judaica, com os Unido. A história judaica no país, habitantes, nas cerimônias de
primeiros registros datando de 1030, porém, enfrentou momentos trágicos Rosh Hashaná. Enquanto a maioria
nas porções ocidentais do país. de perseguição, e a sombra do deles aparecia para
Nessas regiões, ao longo dos séculos, antissemitismo ainda ronda o país. saudar a comunidade, o prefeito
houve forte influência polonesa ou Groysman se juntava às preces.
austro-húngara, enquanto, nas áreas A chegada de Groysman ao governo Nascido em 1978, ele é neto de
orientais, predominou o poder russo. federal, portanto, carrega um sobreviventes do Holocausto. Seu
importante simbolismo. Segundo avô, Isaac, sobreviveu ao fingir-se
Com o fim dos impérios na Europa o rabino Shaul Horowitz, que de morto durante um massacre
oriental, na primeira metade do trabalha junto à comunidade perpetrado pelos nazistas.
século 20, e após a Revolução ucraniana, o novo primeiro-ministro
Bolchevique de 1917, a Ucrânia teve é o primeiro político de relevância Em entrevistas à mídia local,
um período curto de independência, nacional no país a dar visibilidade Groysman costuma relembrar o
sendo em seguida incorporada à a seu judaísmo e a suas práticas sofrimento de seus antepassados.
União Soviética, criada em 1922. religiosas. A transparência sobre o Também enfatiza laços com Israel,

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REVISTA MORASHÁ i 92

onde, acompanhado de seu pai os rumos implementados pelo Josef Zissels, líder da comunidade
Boris, costuma visitar familiares presidente Poroshenko. judaica ucraniana, declarou que
na cidade portuária de Ashdod. a chegada de um judeu ao posto
Alguns anos atrás, o jovem prefeito A crise começou em 2013, quando de premiê seria a prova contra a
de Vinnytsia recepcionou o então irromperam na capital Kiev protestos acusação do governo russo. Em
ministro das Relações Exteriores contra o então presidente Viktor janeiro, ainda na presidência do
de Israel, Avigdor Lieberman, para Yanukovich, considerado aliado de Parlamento, Groysman, no Dia
a inauguração, em sua cidade, de Moscou. A queda de Yanukovich, Internacional em Memória às
um centro avançado de medicina no ano seguinte, levou ao poder as Vítimas do Holocausto, realizou uma
diagnóstica, construído por Israel. forças políticas ucranianas defensoras cerimônia especial, com um minuto
de um afastamento do país em de silêncio em homenagem às
Groysman governou sua cidade relação ao Kremlin e aproximação à vítimas do nazismo. Foi um evento
natal entre 2006 e 2014. Conquistou União Europeia. Na porção oriental inédito no Parlamento ucraniano.
a fama de um administrador da Ucrânia, onde vivem comunidades
competente e honesto, em um russófonas e que desejam manter Mas o rabino-chefe de Moscou,
sistema político contaminado pelos laços privilegiados com Moscou, Pinchas Goldschmidt, em entrevista
vícios e corrupção vindos também começou um movimento armado, à agência de notícias JTA, alertou
do período soviético. Dois anos mergulhando a região em violência e para o crescimento de homenagens,
atrás, assumiu o Ministério de instabilidade. na Ucrânia, a líderes nacionalistas
Desenvolvimento Regional e foi envolvidos em ações antissemitas.
eleito presidente do Parlamento. A Rússia reagiu também à mudança O rabino mencionou uma cerimônia
Seu antecessor, Arseniy Yatseniuk, estratégica da Ucrânia, de priorizar realizada no dia 25 de maio, para
perdeu apoio do presidente Petro laços com a União Europeia evocar a memória de Symon Petliura,
Poroshenko e acabou afastado, numa e Estados Unidos, e anexou a chefe de milícias responsáveis por
votação entre os deputados, que península da Crimeia, que Moscou ataques sangrentos a comunidades
elegeram Groysman para encabeçar havia cedido a Kiev em 1954. judaicas entre 1917 e 1921.
o novo gabinete.
A crise entre Rússia e Ucrânia Em maio, um funcionário da
Encarregado de comandar o também envolveu as comunidades prefeitura de Kiev afirmou que
dia-a-dia do governo, Groysman judaicas locais em um debate sobre ruas da capital receberiam os
atua em um cenário de dificuldade antissemitismo. O Kremlin costuma nomes de Stepan Bandera e
econômica e combate à corrupção. associar os atuais nacionalistas Roman Shukhevych, nacionalistas
Há um pano de fundo complexo ucranianos a colaboracionistas que ucranianos que colaboraram com
para sua administração: a guerra atuaram com os nazistas ou que nazistas e foram responsáveis por
com separatistas na Ucrânia oriental, perpetraram pogroms no começo do massacres de comunidades judaicas.
que, apoiados por Moscou, rejeitam século 20. “Judeus russos e judeus ucranianos
compartilham a preocupação com
essa celebração de conhecidos
Vladimir Groisman, Petro Poroshenko E Arseniy Yatsenyuk
antissemitas e colaboracionistas”,
declarou o rabino Goldschmidt.

E, num recado indireto ao novo


primeiro-ministro, o rabino
acrescentou: “Contamos com os
judeus ucranianos para cessar
as homenagens revisionistas do
Holocausto”.

jaime spitzcovsky foi editor


internacional e correspondente da
folha de s. paulo em moscou e em pequim.

35 junho 2016
comunidades

OS JUDEUS NA COLÔMBIA
DURANTE A 2ª GUERRA MUNDIAL
POR reuven faingold

Acompanhando uma linha antissemita adotada pela maioria


dos países latino-americanos, a Colômbia consolidou
uma política migratória restritiva para os judeus. Aqueles
que ali estavam antes de eclodir a 2ª Guerra e aqueles que
conseguiram escapar milagrosamente das garras do Nazismo,
criaram instituições que ainda hoje existem no país.

A
presença judaica na Colômbia nos remete e atacadista os tornaria pessoas destacadas na sociedade
aos dias da independência da nação, e, de certa forma, contribuiria para criar certa inveja
entre 1810-1819, tempos difíceis de crise entre os locais. A legislação migratória da Colômbia
institucional na Espanha. Por volta de 1819 era fortemente restritiva. Talvez por isso, o número de
o governo já reconhecia o direito dos judeus imigrantes vindos do exterior era inferior ao de outros
a se estabelecer no país. A maioria dos imigrantes eram países latino-americanos, como Argentina, Uruguai e
de origem sefaradita e viviam nas ilhas do Caribe, Venezuela. No período entre as duas guerras mundiais,
principalmente em Curaçao. O ladino era a língua dos o mito da “invasão dos estrangeiros” ecoou forte na
exilados judeus da Espanha, adotada em toda a costa do Colômbia, aumentando quando se tratava de judeus.
Atlântico.
A Colômbia da década de 1930 presenciava o surgimento
Em 1832, a cidade de Barranquilla possuía um cemitério do fascismo e do nazismo, duas ideologias que minavam
judaico e testemunhava a forte pujança comercial da o sistema político democrático. Tanto nas fileiras do
cidade. Lá vivia, em 1854, a família Cortissoz Jessurum Partido Conservador como no Partido Liberal, nasciam
Pinto, contribuindo para o crescimento dessa vila novas vertentes políticas extremistas que afrontavam as
colonial, enquanto o judeu sefaradita David Pereira se velhas forças políticas colombianas. O surgimento do
elegia governador. Durante o século 19 até a 1ª Guerra, UNIR, de Jorge Eliezer Gaitán, e a facção política dos
a comunidade foi crescendo gradualmente, recebendo denominados Leopardos simpatizavam abertamente
imigrantes da Europa oriental. Entre 1928-1930 com as ideologias totalitaristas. Portanto, o clima social
ingressaram aproximadamente 1.000 judeus na Colômbia. encontrado pelos judeus então chegados à Colômbia não
foi dos mais favoráveis.
A imigração asquenazita desconhecia o espanhol,
portava traços físicos diferentes da população autóctone O surgimento do Nacional-socialismo na Alemanha
e chegou numa situação de penúria. Mas isto seria por em 1933, a aplicação de leis racistas em Nüremberg, a
pouco tempo, pois sua vocação para o comércio varejista anexação da Áustria, a entrega dos Sudetos a Hitler (na

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REVISTA MORASHÁ i 92

Capitólio Nacional da Colômbia, Bogotá

então Tchecoslováquia) e a rápida Fainboim, contavam com a ajuda do POLÍTICA MIGRATÓRIA


conquista da Polônia em 1939 famoso cientista e pedagogo,
intensificaram a saída dos judeus Dr. Miguel Adler. As matérias, Em dezembro de 1935, o chanceler
da Europa conquistada. A maioria redigidas em iídiche e castelhano, colombiano Gonzalez Piedrahita
dos judeus procurava países como estavam direcionadas quase emitiu novas declarações sobre a
Argentina, Brasil ou Estados Unidos exclusivamente à comunidade política migratória restritiva do país,
para recomeçar a vida longe das asquenazita, leitora voraz de sustentada pelo decreto No. 1194,
perseguições. A Colômbia estava periódicos. no qual se listavam nacionalidades
também na mira desses refugiados. que teriam sua entrada permitida
A chegada dos primeiros judeus Os judeus não queriam mediante o pagamento de taxas
da Polônia e Rússia gerou o uso concentrar-se em “guetos”, bairros alfandegárias. Esta medida visava
pejorativo do termo “polaco” para predominantemente judaicos. dissuadir os imigrantes judeus de
denominá-los. Na mesma época, na Os imigrantes buscavam uma buscar refúgio no território nacional.
República Argentina, o termo russo melhor inserção na nova realidade A avalanche migratória geraria
era sinônimo de judeu. social colombiana, esquecendo uma rivalidade desnecessária com
os sofrimentos recentemente a população local. A Câmara de
A 2ª GUERRA MUNDIAL vivenciados. Nuestra Tribuna Comércio do país também aderiu à
converter-se-ia num veículo de campanha antijudaica contra aqueles
Durante os anos 1933-1939, a denúncias das atitudes antijudaicas, tidos como indesejáveis, e que na
Colômbia já tinha uma comunidade quer oficiais quer populares. A sua visão eram os “poloneses, russos,
judaica ativa com sua própria revista seguia uma linha laica, não tchecos, chineses, sírios e libaneses”.
imprensa. A Nuestra Tribuna foi emitia opiniões religiosas e dependia
um jornal fundado em 1935, em política e economicamente da A comunidade judaica tentava
Bogotá. Seu primeiro diretor, Jorge Federação Israelita criada sobre os denunciar a hipocrisia do Partido
Michonik, e seu sucessor, Jaime alicerces do Sionismo. Liberal, acusando-o de possuir moral

67 junho 2016
comunidades

dupla em relação aos judeus e frente de “temer pelo cruzamento racial o impediu. Após o advento do
aos regimes totalitários. Segundo indo-semita, pois nele há indícios nazismo ao poder na Alemanha e
artigo publicado em Nuestra Tribuna de qualidades inferiores tais como na Áustria, Zweig emigrou para
(29/01/1936): “Aqueles políticos mimetismo moral, astúcia, bajulação, Petrópolis, no Rio de Janeiro, onde
colombianos que pregam uma servilismo aparente e crueldade se suicidou em 1942.
linha liberal são os que mais falam íntima”. Ao falar dos refugiados
como Hitler”. Na época, o jornal El judeus da 2a Guerra, López Mesa Outro político colombiano favorável
Tiempo, um órgão do Partido Liberal é bem contundente: “Eles não à vinda de judeus ao país foi
e propriedade de Enrique Santos, passam de comerciantes de duvidosa Armando Solano, que, num artigo
(irmão do presidente do país), moralidade e sem fortuna..., com no jornal El Tiempo, manifestava
travava uma dura campanha contra os traços típicos que caracterizam seu apoio a eles, incentivando
os judeus refugiados. certas raças,... vivem para burlar a a contratação de seus mestres e
lei”. Mesmo já encerrada a Guerra professores. Solano não só os achava
Na véspera da 2ª Guerra, na Europa, o Ministro continua “pessoas excepcionalmente dotadas
era notória a influência do Ministro referindo-se aos judeus “que intelectual e artisticamente”, mas
de Relações Exteriores, Luis López gostam do poder e de riquezas, com também os considerava “uma raça
de Mesa. Fascinado pela “questão truculência e muita esperteza”. incompreendida e caluniada através
racial”, ele difundia teorias racistas da história”.
que passaram a ser consideradas Porém, nem todos os liberais
não apenas curiosas, mas também colombianos pensavam como ANTISSEMITISMO E
eruditas. Em suas obras, o ministro Mesa. No Ministério da Educação ANTIJUDAISMO
critica o trabalhador latino- a opinião era favorável à imigração
americano tido como preguiçoso judaica, “permitindo-se que mestres A hispanidade católica e o
e inconstante, e rasga elogios ao judeus ingressem nas Universidades antissemitismo sempre atuaram
imigrante alemão. e colégios para ministrar aulas, concatenados no âmbito político
especialmente nas disciplinas em que colombiano. A presença judaica
Suas ideias, inseridas em diversos não havia mestres idôneos”. dentro do partido conservador era
trabalhos, foram consideradas pelos O Ministro da Educação da vista como uma afronta à velha
intelectuais como verdades absolutas. Colômbia, Germán Arciniegas, tradição colombiana do poder
A mistura entre o elemento tentou trazer para o país o escritor executivo. Havia políticos que
autóctone e o judaico preocupava Stefan Zweig. O Ministério de denunciavam os judeus como
bastante a López Mesa, a ponto Relações Exteriores colombiano figuras indesejáveis numa sociedade
fortemente cristã e tradicionalista.

A revista Patria Nueva de Cartagena


justifica qualquer atitude antijudaica,
e registra que “O antissemitismo
que se consolidou nos costumes
e tradições colombianos não é de
caráter ofensivo ou beligerante;
trata-se de um antissemitismo
defensivo”. Seus colunistas acham
“que os colombianos devem
defender-se perante a invasão de
elementos indesejáveis”.

Estas tendências antissemitas


existentes na Colômbia, inspiradas
no fascismo italiano, no nacional-
socialismo alemão e na falange
JOSÉ EIDELMAN e FAMíLIA espanhola, acusavam os judeus de

68
REVISTA MORASHÁ i 92

serem “geradores e semeadores


de doutrinas esquerdistas e
revolucionárias”, verdadeiro perigo
para o futuro do país. Os judeus se
defendiam destas infames acusações
dizendo “que é uma grande tolice
confundir o Judaísmo com o
movimento comunista”.

A ideia de vincular os judeus ao


comunismo atraía tanto as massas
conservadoras quanto as liberais.
O judeu era visto como elemento
“perigoso” para a sociedade. Cemitério judaico hispano-português em barranquilla
Para a imprensa nacionalista, os
comunistas incendiavam plantações
e fábricas, invadiam os lares Como o desespero dos refugiados imediatamente a ser propriedade
dos colombianos e pervertiam a judeus era maior que os entraves da Frente Alemã do Trabalho.
juventude. Era necessário adotar burocráticos, as representações Rosenthal precisou fugir de imediato
uma linha política rigorosa contra diplomáticas na Europa receberam para a Grã-Bretanha, reclamando
“aqueles que introduziam costumes um verdadeiro “aluvião” de petições desde lá ao governo colombiano a
degenerados e insanos”, fazendo para vistos para migrar à Colômbia quitação das dívidas pelos alugueis
referência camuflada aos judeus. ou vistos de trânsito para outros pendentes. Naturalmente, o governo
Esses comunistas eram vistos como países. O general Solano, (cônsul colombiano negou-se a pagar as
agentes dos “soviets”, na Colômbia. colombiano em Marselha) foi pendências existentes e mudou a
O pedido do governo e da oposição descoberto pelas autoridades e embaixada para outro endereço.
naquele momento era para “expulsá- acusado de lucrar com a venda
los do país em 24 horas”. de vistos a judeus. As embaixadas Na nova sede, as petições de vistos
latinoamericanas eram procuradas não cessavam. Tamanho o volume
No entanto, temos que admitir que por judeus alemães, austríacos, de vistos solicitados que, em 1941,
o antissemitismo colombiano não poloneses, italianos e franceses. o responsável dos negócios em
atuou com violência, se comparado Berlim, Santiago Lopes, escrevia
aos demais países como Argentina, A Embaixada da Colômbia, em ao chanceler Lopez de Mesa, para
em que membros da Liga Patriota Berlim, dirigida por Ernesto Caro, que nos vistos de judeus fosse
(Mazorca) assaltaram o bairro Once, começou a informar a Bogotá registrado que “o portador do visto
apedrejando as vitrines das lojas, sobre a enorme quantidade de não poderá aceitar nenhum emprego
batendo em 70 judeus, causando em pedidos de vistos encaminhados ou iniciar negócios na Colômbia,
janeiro de 1919 o primeiro “pogrom” por judeus que desejavam sair da sem autorização das autoridades
da América Latina, a chamada Alemanha nazista. Mesmo com competentes do país”. A Colômbia
“Semana Trágica”. uma política migratória restritiva, não ajudaria os judeus, que foram
apenas em janeiro de 1939 posteriormente levados a campos de
Em 30 de janeiro de 1939, o os funcionários colombianos extermínio.
chanceler Lopez de Mesa emitiu uma da Embaixada expediram 45
circular direcionada às embaixadas e passaportes com vistos a judeus A pressão por parte da Alemanha
consulados colombianos solicitando alemães. Esses vistos não agradaram de Hitler sobre a Colômbia era tão
“colocar todos os obstáculos possíveis ao governo alemão, que obrigou o grande, que em 31 de maio de 1939,
aos novos vistos em passaportes de dono do prédio, o judeu Rosenthal, a pedido das autoridades nazistas,
judeus”. O chanceler entendia que “o a rescindir o contrato de aluguel o cônsul colombiano em Frankfurt,
número de 5.000 judeus estipulado com os colombianos. Logo, o o judeu Ernest Lagebach, foi
pelo governo da Colômbia era uma edifício seria confiscado por ser substituído pelo colombiano Jaime
cifra alta, impossível de ser atingida”. propriedade de um judeu, passando Jaramillo Arango.

69 junho 2016
comunidades

deixavam de chegar à Colômbia.


O mecanismo dos refugiados
era procurar familiares ou
conterrâneos. Vale lembrar que
pedidos de contato dos familiares
ao governo, alegando união
familiar, facilitavam a emissão
de vistos; mas a compra deles
também fazia parte das numerosas
estratégias adotadas pelos judeus
durante a 2ª Guerra.

Por volta de 1940 havia 6.000


judeus na Colômbia. Esta cifra
parecia exagerada e, portanto, foi
decretada uma nova legislação
desestimulando a chegada de
imigrantes. O artigo No. 7 desta
Golda Meir cumprimentando Hyman Abadi
legislação ordenava que “os
estrangeiros que tenham declarado
ITÁLIA - O CASO RASTREPO competentes, ciente das disposições exercer determinada profissão
de não conceder vistos a judeus. ou ofício, radicando-se em
Também a Itália de Mussolini Ele escreve: “Mesmo sabendo determinado lugar, não poderão
pressionou as representações das restrições adotadas pelo dedicar-se a outra profissão ou
diplomáticas colombianas. Numa governo colombiano em relação mudar de endereço, a não ser
carta em 3 de março de 1939, o Sr. aos refugiados de guerra, me depois de terem obtido permissão
Rastrepo (responsável pelos negócios permito repassar o caso Schwarz ao do Ministério de Relações
da Colômbia em Gênova) pedia Ministério, sendo este pedido um Exteriores e prévia autorização
autorização a seu governo para caso muito especial”. da Polícia Nacional. Sem essa
substituir o vice-cônsul em Trieste, permissão, ou caso o estrangeiro
Humberto Donati. Segundo o Esta postura mais favorável mude de domicílio ou profissão,
funcionário, o motivo do pedido era aos judeus aparece em outras será determinado um prazo para
o fato de “o Sr. Donati ser de raça correspondências do alto funcionário que abandone o país, e se ele não o
judaica”. colombiano, principalmente nas fizer será expulso”.
cartas a favor dos Guastalla, uma
Em 1939, Rastrepo intercedeu a família de judeus italianos que O decreto dificultava o
favor dos judeus italianos, para que encontrou refúgio no Brasil. estabelecimento definitivo dos
pudessem receber os vistos que os judeus na Colômbia, pois na
salvariam. Ele escreve ao chanceler Não sabemos exatamente quantos verdade a maioria deles era
da Colômbia, para que conceda vistos expediu Rastrepo, mas não composta por comerciantes. Assim,
salvo-conduto a um exilado judeu resta dúvida de que este funcionário declaravam outros ofícios como
de Viena que queria retirar seus pais da Colômbia na Itália, sempre que mecânicos agrícolas, especialistas
da Áustria em virtude da política possível, advogou em favor dos em tratamento de águas, experts em
antissemita do Terceiro Reich após judeus. técnicas de irrigação ou qualquer
a Anexação. Obviamente, o objetivo profissão útil ao país, mas jamais
da família Schwarz era recomeçar a VIDA COMUNITÁRIA NA comércio.
vida em alguma cidade da Colômbia. COLÔMBIA
Este decreto oficial foi driblado
Rastrepo não titubeou em Não obstante a profunda rejeição pelos judeus, o que indica
encaminhar o caso Schwarz às aos judeus implantada pelo claramente que cotas ou restrições
autoridades governamentais governo colombiano, os judeus não migratórias jamais representaram

70
REVISTA MORASHÁ i 92

um obstáculo intransponível A denúncia geral dos


para o seu estabelecimento no comerciantes, dos políticos e da
país. A enorme vontade de refazer imprensa era que a restrição das
a vida da tragédia vivenciada na cotas migratórias não funcionava
Europa falava mais alto que as no caso dos “polacos”, pois eles,
próprias barreiras encontradas. brilhantemente, conseguiam burlar
as ditas leis, criando um clima
Recentemente chegados e radicados de animosidade e xenofobia no
na Colômbia, os judeus fugidos restante da população.
do nazismo eram recebidos
por organizações e instituições O jornal El Espectador participou
beneficentes, tais como o “Centro também desta campanha
Israelita de Beneficência”, fundado antissemita, denunciando “5 mil
em junho de 1937, cujo primeiro judeus que exercem uma atividade
presidente foi Jacobo Sasson, diferente daquela declarada ao
ou pelo “Comité Pró-Inmigrantes entrar no país”. Os colunistas
dependiente de la Diócesis de admitiam que, em pouco tempo,
Bogotá”, fundado pelo padre os judeus souberam exercer um
RABINO Alfredo Goldschmidt DA
alemão Struve, católico e fervoroso Sinagoga de bogotá comércio ambulante e ainda
antifascista. Em 1939, este padre, estabelecer lojas, aproveitando-
odiado pelos nazistas alemães Os judeus precisavam subsistir se da Colômbia para “manter
residentes na Colômbia, dava e, portanto, aceitavam qualquer um comércio obsoleto e
assistência a 10 judeus. ocupação. Este fato gerava uma paquidérmico”.
situação bastante incômoda,
No início, a vida dos judeus a ponto de ter que concorrer Os judeus também se dedicaram
nas cidades da Colômbia era em quase todas as áreas com os a setores ainda inexistentes
dura e o idioma espanhol um colombianos. Era comum os jornais no comércio local, como a
obstáculo. Em 1937, o jornal El colombianos divulgarem brigas de alfaiataria. O grêmio dos alfaiates
Fascista os tratava com desprezo rua, entre o “desonesto comerciante colombianos local combateu
e pejorativamente também os judeu e o honesto comerciante fortemente os judeus, pois
denominava de “polacos”. Alguns local”. estes não trabalhavam com
eram contratados para trabalhar preços competitivos, ofereciam
como motoristas de táxi ou No final dos anos 1930 e início pagamento a prazo fixo e ainda se
particulares, defendendo essa da década de 1940, a imagem do gabavam de sua esperteza face a
categoria através de greves durante mascate ou clienteltchik polonês, o seus concorrentes diretos.
a gestão do prefeito Jorge Gaitán. vendedor a prazo (parcelas fixas),
Outros perderam suas licenças e começou a fazer parte da paisagem O jornal judaico La Tribuna
ganharam a antipatia da população das ruas de Bogotá e demais cidades saiu em defesa dos membros
local. colombianas. A atividade dos da comunidade, explicando
comerciantes judeus e seus agentes que “a fermentação industrial e
O jornal El Fascista, em 13 de nos bairros mais pobres era vista comercial, a redução de preços
fevereiro de 1937, fala de pelos habitantes locais como algo dos produtos manufaturados
“tres omnibus de la colonia a ser combatido e denunciado às no processo de concorrência,
polaco-judia” que, covardemente, autoridades. outorgando vantagens à
furaram a greve, fazendo com população, são elementos
que o sindicato dos taxistas e A polêmica surge quando o cidadão que detonam todo sistema
motoristas autônomos solicitasse comum não consegue entender feudal”. Resumindo, o comércio
a não inclusão de judeus nas “como é possível que um mascate colombiano estava decadente
empresas da categoria. Era que (ontem) comia apenas uma vez e os judeus se aproveitaram
uma das primeiras campanhas ao dia, hoje tenha loja própria e viva de uma situação previamente
antissemitas no país. como rico”. vigente.

71 junho 2016
comunidades

Gradualmente, os judeus dos bairros Once e Villa Crespo e a Unión Hebrea. A relação entre
colombianos foram migrando do para Belgrano) e em São Paulo (do ambas instituições era complicada,
comércio para a pequena indústria, Bom Retiro rumo a Higienópolis e até 16 de março de 1936, data em que
abafando a acusação de que eles, Jardins). Este processo migratório se juntaram numa única entidade.
estavam afundando o comércio judaico era urbano e, geralmente,
local. O setor de peles (peleteria) ia acompanhado de um acentuado Na Colômbia também achamos
era algo desconhecido, no qual clima antissemita. Na Colômbia judeus fora do comércio. Através
foram pioneiros. Eles também a chamada “questão judaica” nunca do judeu Bernardo Pellman,
introduziram a indústria de calçados teve fortes repercussões nem atos houve tentativas institucionais de
nas cidades da Colômbia. Desta de violência contra a integridade criar colônias judaicas agrícolas
forma nascia uma classe média física dos judeus, como aconteceu nos 29.308 km² da região de
emergente preocupada em que a na República Argentina. O Cauca,“contando com o apoio
população carente pudesse calçar antissemitismo aparecia no confronto do governo, que aceitou oferecer
sapatos, pela primeira vez. entre os temperamentos das pessoas: toda ajuda financeira para sua
“o colombiano é bondoso enquanto o concretização”.
A maioria dos artigos publicados na polaco (judeu) é repleto de maldade”.
imprensa deixa clara a sensação de As autoridades locais de Bogotá
ineficácia do establishment diante do Mas, nem sempre a Colômbia desconheciam os avanços internos
sucesso dos imigrantes judeus. Para confrontou a bondade com da comunidade. Em 1936, o prefeito
os jornalistas da época “o semitismo a maldade. Alguns escritores Jorge E. Gaitán pedia uma doação à
centro-europeu provoca enorme amenizaram estas opiniões saindo em comunidade para a fundação de uma
progresso nas áreas do comércio e da defesa dos comerciantes e artesãos, escola com financiamento dos judeus
indústria, desbancando o elemento tentando defender uma “raça digna de nacionalidade inglesa, americana,
colombiano e causando grande de respeito”. Havia jornais, como El alemã, polonesa, francesa, italiana,
prejuízo ao país”. Faro, de Ibagué, que não hesitavam espanhola, mexicana e sírio-libanesa.
em fazer propaganda dos comércios
Esta afirmação preparou o terreno judaicos. Os judeus popularizaram o A resposta da comunidade judaica
para difundir na Colômbia os mercado têxtil, tornando acessível o a Gaitán não demorou: “Todos os
Protocolos dos Sábios de Sion, um comércio de roupas, que até aquele judeus da Colômbia formam uma
panfleto antissemita anônimo que momento era exclusivo de uma unidade nacional, étnica, cultural,
circulava livremente nas sociedades minoria. A comunidade judaica foi sem distinção de procedência e sua
latinoamericanas desde 1920. prosperando gradualmente; fundou- representante é a Federación Judía
A acusação milenar de judeus se o primeiro colégio, uma padaria e de Colômbia”.
gananciosos, usurários e exploradores um açougue casher.
iria alimentar a literatura Outro exemplo do desconhecimento
colombiana. Na verdade, trabalho Os membros da comunidade generalizado vigente na
duro e saber quando poupar dinheiro acompanhavam com preocupação Colômbia é o fato de incluir nas
explicam o rápido avanço dos judeus os acontecimentos na Europa “listas negras” como fascistas ou
na modernidade. conquistada por Hitler. Um exemplo nazistas, judeus oriundos da Itália
era o do Sr. Lambert Ullman ou da Alemanha. Se o polonês era
PROSPERIDADE E (judeu dono da “Marion”), que não sinônimo de “judeu”, o alemão era
SOLIDARIEDADE autorizava a entrada de nazistas sinônimo de “nazista” e o italiano
colombianos no seu armazém “ao de “fascista”. A Colômbia vivia
Diferentemente de outras cidades saber que seus familiares haviam submersa na ignorância e pouco
latino-americanas, em Bogotá não sido gasificados em Luxemburgo”. conhecia do que acontecia além de
havia um bairro judaico. À medida Como vemos, na comunidade havia suas fronteiras.
que progrediam economicamente, consciência sobre o Holocausto. Duas
os judeus colombianos procuram associações judaicas trabalharam PALAVRAS FINAIS
bairros de nível mais elevado. Este incessantemente para unir a
processo é normal e aconteceu comunidade, a Federación Israelita No período entre 1918-1945
também em Buenos Aires (migrando (patrocinadora da Nuestra Tribuna) a Colômbia recebeu judeus

72
REVISTA MORASHÁ i 92

1 2 3

4 5 6

1. FACHADA DA SINAGOGA DE BARRANQUIlLA 2 E 3. SINAGOGA DE MEDELlIN 4 E 5. SINAGOGA DE BELLO 6. SINAGOGA DE BOGOTÁ

19

com desconfiança, e a opinião Israel e Colômbia, levando ao BIBLIOGRAFIA

pública nada fez para apagar a fortalecimento dos laços. Donadio, Alberto - Galvis, Silvia,
intolerância e os preconceitos 11
Colombia Nazi 1939-1945. Editorial
Planeta, Bogotá 1986, 358 págs.
existentes, todos enraizados numa Com nove sinagogas espalhadas pelo Hernandez Garcia, J.A., Emigración
sociedade hispânica e católica. território colombiano atualmente, judia em Colombia em los años 1930
y 1940. Um caso particular: los
Convenientemente doutrinada, a maioria dos judeus vive em polacos. Pensamiento y Cultura Vol. 10
essa opinião pública colocou a Bogotá – cerca de 7 mil, e mais (noviembre de 2007).
população local contra o elemento 6 mil na cidade de Barranquila. Hernandez Garcia, J.A., Judíos en
judaico, gerando uma animosidade Há pequenas comunidades em Colombia, entre el antissemitismo y el
triunfo comercial. Bogotá.
entre as diferentes partes da Medellin e em cidades de veraneio Osterwald, Ariane, Los judíos
sociedade.Desta forma, não é como Cartagena, Santa Marta e na colombianos: La historia de um pueblo
incorreto afirmar que a Colômbia Ilha de San Andrés, além de outras escondido. University Honors in
Spanish Studies. Department of World
foi um dos países mais restritivos da em cidades menores como Bello. Languages and Cultures. College of
América Latina. Foi também um Segundo estatísticas da comunidade, Arts and Sciences. Spring 2003.
dos países que votou contra a [Texto na Internet].
o número de judeus sefaraditas
Partilha da Palestina, em 1947 e e asquenazitas é praticamente o
não reconheceu o Estado de Israel mesmo, possuindo cada segmento
quando foi criado, em 1948. Foi suas próprias entidades religiosas
somente na década de 1960 que e culturais. A Confederação das Prof. Reuven Faingold é historiador
e educador, PHD em História e História
Embaixadas foram abertas nos Associações Judaicas da Colômbia, Judaica pela Universidade Hebraica de
Jerusalém. É também sócio fundador
dois países, estabelecendo relações instalada em Bogotá, é a entidade- da Sociedade Genealógica Judaica
diplomáticas. Em 1988, foi assinado teto da comunidade, reunindo todas do Brasil e, desde 1984, membro do
Congresso Mundial de Ciências Judaicas
um amplo acordo comercial entre as instituições judaicas do país. de Jerusalém.

73 junho 2016
MORASHA.COM

HOMENAGEM AOS ATLETAS ISRAELENSES


ASSASSINADOS EM MUNIQUE

O
Comitê Olímpico até 2015, afirmou que “Antes tarde do que
Internacional (COI) nunca... ainda que com 44 anos de atraso”.
vai prestar homenagem
aos 11 atletas israelenses Nos Jogos de Londres de 2012, no 40º
assassinados por terroristas aniversário do ataque de Munique, o COI
palestinos nas Olimpíadas de Munique, em rejeitou todos pedidos para se homenagear
1972, apesar de ter-se recusado, em nota oficial, a que os atletas israelenses. Essa atitude foi muito criticada,
se fizesse um minuto de silêncio, em sua homenagem, principalmente tendo em vista que vários outros eventos
na cerimônia de abertura dos Jogos, frustrando uma celebrando a data foram realizados em outras partes.
antiga solicitação das famílias enlutadas.
Os Jogos do Rio serão a 16a participação de Israel
A homenagem será realizada no dia 14 de agosto, na nas Olimpíadas e, para tanto, o país trará sua maior
Prefeitura do Rio, conduzida em conjunto pelo COI e delegação de todos os tempos, com cerca de 50 atletas
pelos Comitês Olímpicos do Brasil e de Israel. para os Jogos Olímpicos e mais 50 para os Jogos
O Governo de Israel será representado por sua Paralímpicos, disputados a seguir. Os Jogos Olímpicos
Ministra da Cultura e Esportes, Miriam “Miri” Regev. vão ser realizados entre os dias 5 e 21 de agosto e as
Na ocasião serão acesas 11 velas pelas viúvas de Yossef Paraolimpíadas entre 7 e 18 de setembro.
Romano, z”l, levantador de pesos, e de André Spitzer,
z”l, treinador de esgrima, ambos vítimas do terror Um detalhe muito especial para a comunidade judaica
palestino em Munique.. do Brasil e para Israel é o fato de serem judeus, membros
detacados na kehilá, os três principais executivos
O COI também dedicará uma área especial na encarregados das Olimpíadas do Rio! Ao lado de Carlos
Vila Olímpica do Rio para homenagear todos os Arthur Nuzman, Presidente do Comitê Olímpico
atletas olímpicos mortos. Da mesma forma, haverá Brasileiro, desde 1995, e um dos nomes mais destacados
um momento de reflexão em honra dos mesmos na nos esportes no Brasil, estão Sidney Levy, Diretor Geral,
cerimônia de encerramento. A ex-Ministra da Cultura e Leonardo Gryner, Diretor Geral de Operações do
e Esportes de Israel, Limor Livnat, que ocupou o cargo Comitê Rio 2016. 

Um dos pontos mais importantes da


organização, nestes tempos conturbados que
vivemos, é a segurança dos
12 mil atletas e dos 500 mil visitantes que
são esperados. A empresa que venceu a
concorrência foi a ISDS – International
Security and Defense Systems, de Israel. Esta
empresa tem larga experiência em outras
olimpíadas e torneios internacionais. Seu
trabalho cobre desde consultoria até sistemas
de abastecimento de segurança.

Talvez, quem sabe, os atletas, dirigentes e


visitantes sejam saudados com um sonoro
“Baruch Habá”...

74
REVISTA MORASHÁ

Tomei gosto pela Morashá pelas mãos da querida


Morá Fany, professora de ivrit na Unibes. A qualidade
editorial e artística da revista é impressionante, não
conheço nenhuma outra publicação periódica no
Brasil que se equipare. Nota-se que o objetivo maior
é agregar cultura com responsabilidade e alegrar
os olhos com sua beleza. A edição de Pessach está
simplesmente fantástica!!!
Marco Aurélio de Camargo Pavão
Guarulhos - SP

Interessantíssima a matéria sobre A Morashá foi distribuída em É um prazer receber esta revista,
Karnit Flug que assumiu o cargo de Belo Horizonte no domingo fruto de um trabalho sério, coletivo,
Governadora do Banco de Israel, 3 de abril, quando realizamos uma que faz muito bem à comunidade
função equivalente à de presidente grande atividade judaica, o “Mega judaica e a todos que querem
do Banco Central do Brasil, e muito Tefilin”. Aproximadamente 120 conhecer sua história, seus costumes
atual já que no Brasil acaba de correligionários de nossa comunidade e suas crenças.
assumir o novo presidente do se reuniram na sinagoga para cumprir Demostenes Rust
Banco Central, membro da a mitzvá da colocação do Tefilin Londrina - PR
comunidade e nascido em Haifa. com o maior número possível de
Moises Filkenstejn
pessoas. Foi um evento sui-generis Sempre vibrei por receber esse
Por email em Belo Horizonte e talvez no Brasil. presente maravilhoso desde
Abrilhantou mais ainda a atividade setembro de 2002. Eu as mantenho
a valiosa contribuição de guardadas cada uma dentro do
Morashá continua publicando
120 exemplares da edição de abril meu coração e também na minha
matérias de especial interesse, entre
distribuída aos presentes, que estante. Que D’us continue a
as quais, a reportagem sobre as
levaram consigo uma revista repleta abençoar todos que se envolvem
mulheres nas unidades de combate.
de conteúdo judaico. com a produção lindíssima,
A matéria nos esclarece e, ao mesmo
tempo, orgulha-nos sobre este Rabino Nissim Katri editoração sem igual, bem como
Sociedade dos Amigos do
importante aspecto do Tzahal. Beit Chabad de Belo Horizonte todos os que a recebem.
Belo Horizonte - MG Maria Zélia Françoso
Claudio Goldsteyn
Por email
Por email
Gostaria de parabenizar a revista
pelas belíssimas e riquíssimas
A partir da capa lindíssima, a visão Gostaria de parabenizar a excelente
matérias sobre o mundo judaico e
da edição da revista Morashá qualidade e os artigos da Morashá.
a cultura milenar judaica, que tanto
nº 91, de abril de 2016, prometia o têm contribuído com o crescimento David Telvio Knobel
São Paulo - SP
que de fato se cumpriu à leitura de da humanidade. Quero ressaltar,
cada artigo. Os artigos históricos ainda, a qualidade tanto do conteúdo
sempre um aprendizado e os quanto da arte na confecção dos Gostaria de solicitar a assinatura
religiosos, com ilustrações artísticas, números dessa publicação. da revista Morashá para meu
são didáticos e nos remetem Arlan Eloi Leite da Silva pai, pois, devido à localização de
sempre à fácil compreensão de sua Parnamirim - RN sua residência ele não consegue
interpretação, a exemplo os artigos: frequentar a sinagoga, mas cumpre
“As Quatro Facções diante do Mar” Aprecio a leitura da Morashá por o Shabat e outras leis e gostaria
e “Lag Baomer e o Rabi Shimon Bar considerá-la muito instrutiva no que de se manter informado sobre as
Yochai”. tange à história do povo judeu. festas.
Dvora Goldstern Ruth Citrin Enk Emmanuela Sternberg
Por e-mail São Paulo, - SP Arraial do Cabo - RJ

75 JUNHO 2016

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