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ALGUMAS REPRESENTAÇÕES DO

UNIVERSO FEMININO:

Uma pequena análise de seu percurso


até o filme Dogville de Lars von Trier (2003)

Edmundo Colen

Belo Horizonte, 17 de abril de 2008


I - ALGUMAS REPRESENTAÇÕES DO UNIVERSO FEMININO

Este ensaio pretende realizar análises de alguns aspectos acerca das representações textuais da

“representação da identidade feminina” especialmente nos campos cinematográfico e literário.

A título de introdução faz-se necessário o levantamento de alguns dos muitos textos que

abordam a questão, especialmente a partir do século XVII, para uma melhor compreensão do

principal produto a ser analisado: “Dogville” (2003), primeiro filme da trilogia sobre os EUA,

dirigido pelo dinamarquês Lars von Trier.

1- OS CONTOS DE FADAS

Diferente das fábulas com seus finais nitidamente moralizantes, os Contos de Fadas segundo

BETTELHEIM (1980), são importantes ao desenvolvimento da criança que

“adequa o conteúdo inconsciente às fantasias conscientes, o que a capacita a lidar


com este conteúdo. É aqui que os contos de fadas têm um valor inigualável,
conquanto oferecem novas dimensões à imaginação da criança que ela não
poderia descobrir verdadeiramente por si só. Ajuda mais importante: a forma e
estrutura dos contos de fadas sugerem imagens à criança com as quais ela pode
estruturar seus devaneios e com eles dar melhor direção à sua vida”.

Pode-se complementar à fala de BETTELHEIM a articulação do corpo e da voz, na qual

segundo DOANE (1975), “o espaço, para a criança, é inicialmente definido em termos do audível e não do
visível”.

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Os Contos de Fadas, por excelência, foram escritos para serem lidos em voz alta, seja pelo

pai, pela mãe ou por alguém muito próximo à criança, num tom que a envolvesse na fantasia e

por sua vez, permitisse que ela criasse as suas próprias imagens e representações de mundo e

de vida.

Charles Perrault, no século XVII, coletou histórias que ouvia de sua mãe em um livro que

inicialmente (e significativamente) deu-lhe o título de “Histórias ou contos do tempo passado

com moralidades”, mas que ficou conhecido como “Os Contos da Mamãe Gansa” no qual se

incluem obras como “A Bela Adormecida”, “Chapeuzinho Vermelho” e “Cinderela”.

No século seguinte, os Irmãos Grimm copilaram muitas destas histórias, dando ênfase aos

aspectos do comportamento feminino e que chegaram a receber críticas de que elas

incentivavam o conformismo e a submissão. Um de seus mais famosos contos é “Branca de

Neve”.

BETTELHEIM, em seu livro “A Psicanálise dos Contos de Fadas”, realiza uma profunda

análise dos contos e remete ao imaginário feminino, interpretando passagens cruciais das

tramas que, segundo o autor, são percebidas pelas crianças. A morte não é assustadora, já que

em verdade, é um princípio de transformação da personagem para uma outra fase de vida:

aquela em que a princesa deixa de ser uma “menina” e, amadurecida para o casamento, está

consequentemente preparada para o exercício de sua sexualidade.

Dentro desta argumentação ele analisa, por exemplo, os estágios de “suspensão” das

personagens neste momento transitório: o envenenamento de Branca de Neve pela maçã (em

outras versões, a personagem é sufocada por um espartilho – acessório utilizado na época,

apenas pelas mulheres “maduras”), assim como o sono de cem anos por que passa “Aurora”.

Sonos que são entendidos como um ritual de passagem para a maturidade.

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Denota-se igualmente a presença do sangue (a representação da menstruação e com ela, o

despertar para a sexualidade) representada em diversas imagens e ações das personagens

como a capa de Chapeuzinho Vermelho, o espetar de dedos na roca de fiar ou ainda as três

gotas de sangue que corre pelos dedos da mãe de Branca de Neve, quando ela os fere na

agulha de fiar e realiza os três desejos para a filha que está esperando. Um deles, que ela

tivesse os lábios da cor de sangue.

As heroínas encontram-se geralmente sozinhas no mundo. Órfãs de pai e/ou de mãe são

obrigadas a enfrentar uma “madrasta má” (a mulher sexualizada e invejosa da pureza de sua

enteada) ou ainda de uma “bruxa má” que pode ser a mesma personagem ou a personificação

dela.

AUMONT (2005) em seu livro “A Imagem”, através de um subtítulo sugestivo para o tema

aqui tratado - “Imagem e Espectador são parecidos” - descreve sobre a abordagem

gestaltista:

“a percepção do mundo é um processo de organização, de ordenamento de dados


sensoriais para torna-los conformes com certa quantidade de grandes categorias e
de “leis” inatas que são as de nosso cérebro”.

Para BETTELHEIM os contos de fadas são formadores deste processo de organização mental

e sensorial, essenciais para a construção da identidade da criança, especialmente, da menina,

que não propriamente se “identifica” com a personagem ou “sonha com o príncipe

encantado”, mas os tem como referenciais de um amadurecimento ainda por vir. A repetição

das histórias dá a criança ainda mais segurança, já que se sabe o final, mas a cada vez é

tomado com novas significações.

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O cinema e, mais especificamente, Walt Disney, parece ter percebido o potencial destes

contos que os transpôs para as telas, com adaptações pertinentes à época - o século XX - e que

até os dias atuais são cultuadas por crianças e adultos. Lembremos que “Branca de Neve e os

Setes Anões” (1937) é considerado o primeiro longa metragem de animação da história e

vencedor de um Oscar Especial em 1938, pelas inovações que trouxe ao gênero

cinematográfico.

2- A LEVIANDADE DA MULHER

Quando Honoré de Balzac escreveu “A Mulher de 30 anos”, romance pertencente ao conjunto

de sua obra a “Comédia Humana” reunida em 1842, implementava um debate sobre a questão

da mulher e de sua vida “predestinada” ao casamento.

Balzac retratava o casamento

“como pilar da sociedade burguesa (agora pós-revolucionária, "o encanto do


amor desapareceu em 1789") na França. Embora intrinsecamente conservador —
talvez por isso mesmo —, a imagem que o autor traz da situação de mulheres
curvadas sob o peso de suas obrigações sociais e legais é digna de interesse social,
histórico e psicológico. Ideologicamente, sabemos que Balzac respaldava o
casamento, e esta obra tinha a função de um libelo contra a "leviandade da
mulher". (Estação Liberdade – s/d).

Algumas personagens femininas, especialmente nos romances do século XIX, são

“desviadas” de seu instinto “maior” (o casamento e filhos) e por isso, motivos de escândalos

sociais. Para obterem a independência, seu futuro de antemão parece comprometido e não

haverá para elas, um “happy end”, já que o desvio poderia vir a ser aceito socialmente e,

assim, “reforçado” nas outras mulheres. Seu destino é, portanto, a morte, ainda que sua vida

tenha sido dedicada ao amor como em “A Dama das Camélias” de Alexandre Dumas ou

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“Madame Bovary” de Flaubert. Este último chegou a ser levado a julgamento devido ao teor

do romance e nem mesmo sua célebre frase “Madame Bovary sou eu” diminuiu a tensão

provocado pelo tema do adultério.

Estes dois romances, citados a título de exemplo, tiveram diversas versões para o cinema,

sendo as mais “famosas”: “Camille” (1937) de George Cukor com Greta Garbo interpretando

Marguerite Gautier e “Madame Bovary” que, no mínimo, podem-se destacar duas, das oito

versões feitas para o cinema (não considerando as realizações para a TV): a primeira datada

de 1934 de Jean Renoir com Valentine Tessier e a segunda de 1991 de Claude Chabrol

com Isabelle Huppert, ambas no papel de EMMA.

3- GLAMURIZAÇÃO E ESCOPOFILIA

Theda Bara “surgiu” como uma grande jogada de marketing da 20th Century Fox. Nascida

em Cincinnati (EUA) é considerada a primeira “vamp” do cinema. Seu nome artístico

forma um anagrama para Arab death (Morte Árabe) que o justificou e a consagrou no

filme “Escravo de uma paixão” (1915) de Frank Powell.

Theda, que era considerada uma mulher introvertida e intelectual, representava nas telas, uma

imagem identitária diferente do referencial feminino de então, oposição aos romances

do século XIX. A mulher inserida no cinema que pretendia oferecer prazer ao olhar, a

escopofilia - tema bem discutido no ensaio de Laura Musley: “Prazer Visual e Cinema

Narrativo” – já não era mais subjugada a conceitos tão rígidos, embora a “motivação”

de suas vidas (das personagens) ainda era a busca do amor.

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Hollywwod descobrira o “grande filão”: a construção de uma “nova imagem de mulher”, a ser

apreciada, observada com gozo e prazer pelos olhares masculinos. Um “filão” até hoje

explorado, mas que constantemente é levado às grandes estrelas do passado: de Betty

Grable – umas primeiras pin-ups do cinema – à Lauren Bacall. De Jayne Mansfield à

Marilyn Monroe. Padrões de beleza desejáveis na sociedade norte-americana e que se

espelharam pelo mundo através de Catherine Deneuve ou Brigitte Bardot, além de

belezas “exóticas” como Sophia Loren, Irene Papas e Carmen Miranda, para citar

alguns exemplos.

Um dos grandes motes do cinema tornou-se a exploração da sensualidade, motivo

escopofílico por excelência, que levava multidões às salas de projeção sob marketings

famosos como “Garbo ri”, ao referir-se a uma das raras comédias feitas pela atriz:

“Ninotchka” (1939) de Ernst Lubitsch ou “Nunca houve mulher como GILDA” –

“Gilda” (1946) com Rita Hayworth, direção de Charles Vidor.

A Era de Ouro dos musicais de Hollywood, igualmente encantou platéias, com o enredo quase

constante de “rapaz encontra a garota”, “rapaz perde a garota” e “rapaz reconquista a

garota”.

Os dispositivos como um roteiro simples, permeado de canções e números de dança,

sobrepunham-se a uma imagem simbólica e eram enaltecidos nas grandes salas de projeção.

Produzia-se assim, um novo “sonho”. Há que se ressaltar que muitos destes filmes foram

produzidos no período, e logo após, da “Grande Depressão” (a crise de 1929), como um dos

clássicos do cinema hollywoodiano: “Top Hat” (O Picolino) de 1935, dirigido por Mark

Sandrich.

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A glamurização da mulher, não se deu apenas através da exposição de sua imagem, mas

inclusive na ausência da personagem como em “Rebecca – A Mulher Inesquecível” (1940) de

Alfred Hitchcock ou o que é considerado como o precursor dos chamados “Filmes Noir”:

“Laura” (1944) de Otto Preminger, ainda que se constate a “falsa morte” da personagem

principal.

4- PARA ALÉM DOS ESTEREÓTIPOS

Estes modelos do universo feminino ainda se repetem e não se pode afirmar ser um modelo de

“época”, já que em todas as chamadas “eras do cinema”, a multiplicidade e a diversidade de

modelos é uma constante.

Não há exatamente um período em que a mulher é representada de uma forma específica,

única. Tanto em filmes “antigos” quanto “recentes” o universo feminino é amplamente

explorado em produções com propósitos firmemente ideológicos, sejam de natureza

“glamurizante” (vide as “comédias românticas”, sucessos ainda atuais), sejam dentro de

outras concepções, como a mulher (ou conjunto de mulheres) dominante, que enfrenta os

jugos de uma sociedade e entram no mundo “dos homens”, de certa forma, masculinizando-se

afim de adquirir os mesmos direitos de agir, decidir e pensar.

Exemplos são muitos, mas me restringirei a alguns poucos deles: de “Johnny Guitar” (1954) de

Nicholas Ray a “Norma Rae” (1979) de Martin Ritt; de Ingmar Bergman (“Gritos e Sussurros”

– 1973) a Almodóvar (“Volver” – 2006), dentre muitos outros.

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5- A VIOLÊNCIA E O UNIVERSO FEMININO

O cinema de cunho social também está presente na construção da identidade feminina. Por

vezes “edificantes” como em “Joana D’arc” (várias versões) ou “A Canção de Bernadete”

(1943) de Henry King, outras vezes explorando as neuroses e o “mal” como em “Primavera de

uma solteirona” (1969) de Ronald Neame ou “O Estranho que nós amamos” (1971) de Don

Siegel, representam “violências” praticadas pelas mulheres, em geral justificadas por desvios

de conduta moral ou mental.

Mas a violência contra a mulher (geralmente na forma de estupro) toma outras dimensões na

identificação feminina com esta ação da “barbárie”. Em “Acusados” (1988) de Jonathan

Kaplan, a personagem de Jodie Foster sofre múltiplos estupros em um bar, sobre uma mesa de

pinball, e ela é quem será “acusada” devido ao seu modo de vida e estilo de vestir. Uma ácida

crítica à natureza humana e ao “conceito” da mulher, inclusive relacionado ao sistema que a

deveria proteger: o judicial.

No entanto, os estupros podem ser “consentidos”, de forma figurativa, como ocorre em “Ana

e os Lobos” (1973) de Carlos Saura *, uma esplêndida metáfora sobre a ditadura de Franco e o

objeto deste ensaio: Dogville (2003) de Lars von Trier.

* NOTAS:

1- Todos os filmes mencionados neste ensaio a título de exemplificação, fazem parte de uma seleção
estritamente pessoal.

2- Diversos aspectos na construção da identidade feminina no cinema não foram objetos de análise neste
ensaio, mas não por isso, considerados menos importantes.

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II – DOGVILLE

1- O CINEMA DE LARS VON TRIER – Um breve relato

Lars von Trier junto a Thomas Vinterberg (“Festa de Família” – 1998) lançou o manifesto

DOGMA 95 com a intenção de criar um “cinema mais realista e menos comercial”. Criticado

por muitos como um “lance de marketing”, o Dogma estabelecia a minimalização do cinema,

que sob uma estrutura formal, ecoavam as propostas desmistificadoras do chamado teatro

épico formulado por Bertold Brecht.

Algumas regras da doutrina, conhecidas como “voto de castidade”, abolia o uso de cenários e

luzes artificiais, trilha sonora, o som não poderia ser produzido separadamente da imagem
(quanto a este aspecto, uma excelente referência é o ensaio de Mary Ann Doane – “A Voz no Cinema: a

articulação de corpo e espaço” no qual ela discorre, dentre outras características, o som como “espaço

acústico da sala de projeção”), a proibição de truques fotográficos e filtros dentre outros

“mandamentos”. Seria uma nova “maquiagem” para a idéia de “uma câmera na mão e

baixo orçamento”?

Seja como for, sob o “voto de castidade”, Lars realizou “Os Idiotas” (1998) que seguiu a linha

de seus filmes antecessores: “Europa” (1991) e “Ondas do Destino” (1996). Neste último, Lars

já tratava da identidade feminina, utilizando-se, no entanto, de uma personagem com

distúrbios mentais que se casa e após um acidente sofrido pelo marido, se entrega à culpa,

assim como à satisfação de qualquer desejo do “ser amado”. Esta condição de submissão da

mulher, de sua aparente passividade, é especialmente visto em “Dançando no Escuro” (2000)

no qual, contraditoriamente, “tudo é tão ostensivamente falso que os diálogos (ou parte deles) são

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cantados em vez de serem ditos. Isso não impede que a magia se estabeleça em meio a um mar de

artificialismo.” (Oricchio, em artigo escrito para Agência Estado, s/d).

À exceção de “Europa” os outros três títulos citados, (“Os Idiotas", “Ondas do Destino” e

"Dançando no Escuro”) formam a chamada “Trilogia da Bondade” do diretor, cuja temática

principal, de certa forma, permanece a mesma, sendo que nos dois últimos a figura feminina

predomina, ainda que de forma estereotipada em sua (aparente) submissão ao poder

simbólico do homem ou de um dado sistema, que ainda assim, é impregnado pela presença

masculina.

2- DOGVILLE

Primeira parte da nova trilogia de Lars, conhecida como “Trilogia da América”, “Dogville” é

visto como uma crítica do diretor à “Terra das Oportunidades” – os EUA - tomando o

governo de George Bush como “alvo” desta crítica, embora o próprio diretor tenha se

referido, em entrevista ao jornalista Pedro Butcher durante o Festival de Cannes, que “Não é

um filme sobre a América, mas é um filme que se passa num lugar chamado América, a América que

eu tenho na cabeça”. A associação, no entanto, é inevitável, já que acentuada pelas fotografias

que são mostradas durante os créditos finais.

Situada no interior do Colorado, nos “Estados das Montanhas Rochosas”, “Dogville” é o local

propício para a construção da diegese: a cidade, assim como seus habitantes e a própria

“heroína” encontram-se isolados, praticamente incomunicáveis, (existe apenas uma estrada

que leva à cidade), sem prefeitura, uma igreja sem padre, e onde TOM (Paul Bettany), um

pretenso filósofo supõe liderar a comunidade.

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Ainda que não seguindo fielmente a receita do DOGMA, Lars compõe um cenário

minimalista, com pouquíssimos objetos cenográficos, casas, ruas, hortas são apenas indicadas

através de desenhos de giz no chão do grande cenário. Até mesmo o cachorro (o “Dog”) é um

desenho no chão embora seu latido se faça ouvir em situações especiais no decorrer da trama.

As casas têm portas “imaginárias”, que permitem o voyerismo do espectador, que a tudo pode

observar, enquanto que na ação diegética, supostamente, as personagens não detém este

mesmo “poder”.

Não por acaso, o filme inicia com uma ampla tomada de cima mostrando todo o vilarejo e a

marcante voz-over (o narrador - John Hurt) que descreve não somente as cenas, mas as

comenta, antecipa e “explica” ao espectador os fatos que ocorrerão, assim como os títulos que

são dados em cada um dos nove capítulos e do prólogo no qual é apresentada a cidade e seus

habitantes.

Considerando este aspecto plástico do filme, Lars consegue surpreender o espectador. Tudo

parece falso, teatralizado, deixando transparecer que ali está ocorrendo uma encenação. Mas

como se refere AUMONT (pág. 78): “A produção de imagens jamais é gratuita e, desde sempre, as

imagens foram fabricadas para determinados usos, individuais ou coletivos.”. De fato, não é por

“gratuidade” que o diretor situa desta forma seu filme, dotando cada imagem, cada cena, com

valores de representação, de símbolo e de signos. Mas ao abdicar de cenários e adereços, Lars

acaba por valorizar cada personagem, ao retirar “excessos” visuais da frente do espectador. As

imagens em Dogville são dogmáticas e talvez este seja um dos fatores para as múltiplas

interpretações que o filme proporcionou.

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Um dos significantes do filme são as diversas citações de ordem religiosa, importantes

igualmente, para uma melhor compreensão da personalidade da personagem principal: o

cachorro chama-se “Moses” (Moisés), o único a ser salvo ao final. GRACE (a “Graça”) é

relacionada tanto a um “Cristo feminino” como sua história parece remeter-se à parábola do

“filho pródigo”. O vilarejo é queimado assim como fora Sodoma e Gomorra VALIM faz um

esforço interessante ao estabelecer as personagens relacionadas aos “pecados capitais”. Em

seu artigo “O Dogmatismo de Dogville” (2004) destaca: “... os moradores revelam a sua vilania,
representada através de pecados da natureza humana como: a vaidade (Chloe Sevigny), o orgulho (Ben

Gazarra), a ira (Patrícia Clarkson), a luxúria (Jean-Marc Barr), a avareza (Lauren Bacall) e a inveja (Stellan

Skarsgard).”.

Mas este ensaio visa tratar do filme sob a óptica da construção da identidade feminina e serão

“deixadas de lado” outras conotações implícitas ao filme, com especial atenção sobre a

personagem Grace (Nicole Kidman), ainda que algumas anotações sobre o tema já tenham

sido realizadas acima.

3- O “ESTADO” FEMININO EM DOGVILLE E A PERSONAGEM GRACE

Assim como em sua “trilogia da bondade” no qual este substantivo feminino, em verdade, é

levado com certa ironia, já que é o mote desestabilizador de uma hegemonia social

cristalizada e que, de forma semelhante será visível no filme.

GRACE chega ao vilarejo fugindo dos gangsteres. Não se sabe o motivo e este não é mesmo

questionado, apesar dos tiros que foram ouvidos. TOM ao encontrá-la sozinha à noite nas

ruas, ouve um pouco de sua história, e “escritor frustrado” parece perceber nela, algo que o

leve finalmente a sair das poucas palavras que escrevera até o momento.

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Ele se ocupa da preservação da comunidade (de um “ideal” comunitário) e tenta, através de

assembléias, pelas quais quase ninguém se interessa, dirigir e orientar a vida local através de

seus embaraçados discursos.

A presença de GRACE o motiva: ela é o “presente dos céus” que ele pedira. Realizada a

assembléia, a comunidade aceita a presença da estranha (a “estrangeira”) por duas semanas,

ao final das quais, será realizada nova deliberação.

Para isso, GRACE deverá conquistar os moradores e inicia a fazer uma série de trabalhos

“que não precisam ser feitos, já que ninguém os fazia”. Com delicadeza, gestos de submissão

e palavras constantes de apoio e compreensão, ela realiza uma série de tarefas especialmente

destinadas à mulher: professora, enfermeira, empregada doméstica, babá, acompanhante... e

até tarefas mais pesadas como o cultivo das maçãs. GRACE é a mulher dedicada, atenciosa,

com palavras certas em momentos exatos e que com estes comportamentos, acaba por

conquistar a admiração da comunidade.

Os bonecos de porcelana de gosto duvidoso vendidos a preços altíssimos por MA GINGER

(Lauren Bacall) em sua loja (a única do vilarejo), simbolizam os moradores e estabelecem,

desde o início do filme, o confronto futuro, que pode ser previsto no diálogo entre GRACE e

TOM. Ele os acha feios, mas GRACE retruca que ao contrário, são bonitos, indicativo de sua

primeira percepção (ou desejo de...) sobre a cidade na qual irá viver. Em relação aos bonecos,

o narrador provoca: “descrevem melhor a cidade do que qualquer palavra” e complementa:

“Eles são bonitos ou horríveis?”. A quem caberia responder a esta questão? Talvez, somente

com o desenrolar da trama e através dos olhares diferenciados da personagem principal e

possivelmente do espectador, uma resposta poderia surgir...

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A chegada do policial que traz um cartaz com a foto de GRACE e a inscrição de “procurada”,

provoca uma primeira reação entre os habitantes do vilarejo. Temerosos (ou antes, desculpas

para as atitudes a serem tomadas a seguir), decidem manter GRACE, mas a troco de

trabalhos oferecidos a cada habitante. Trabalho que será marcado de hora em hora por

MARTHA (Siobhan Fallon) através do sino da igreja.

A bondade e eficiência da personagem são apreciadas pela comunidade. O salário recebido é

revertido na compra de cada um dos bonecos da loja de MA GINGER. Estaria ela se

apropriando, simbolicamente, de cada habitante?

GRACE simboliza até este momento o “ideal” da mulher “perfeita”: organizada, trabalhadora,

com fortes princípios morais, bonita, atenciosa e obediente dentre outras “qualidades”, torna-

se, no entanto, a mulher que destoa de todas as demais. Parece não ter a avareza de MA

GINGER, o descontrole e a amargura de VERA (Patricia Clarkson) ou a sexualidade (mal)

reprimida de LIZ (Chloë Sevigny), por exemplo.

Até que no “4 de julho” uma nova visita da polícia, que troca o cartaz anterior por outro, no

qual é oferecido uma recompensa para quem souber do paradeiro de GRACE e dizendo ser

ela perigosa, assaltante de bancos. Ainda que o policial conte sobre os assaltos ocorridos há

duas semanas e assim, permitindo que os moradores saibam que ela não poderia estar

envolvida neles, mudam sua atitude em relação à moça com a argumentação de que estão

infringindo a lei por não delata-la.

Inicia-se dessa forma, a desconstrução da “mulher perfeita”. Os habitantes exigem que ela

trabalhe o dobro e receba menos. A perversidade, sob o jugo da não delação, é iniciada com o

primeiro estupro por parte de CHUCK (Stellan Skarsgard), em uma das cenas mais “visuais”

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do filme. A ausência de cenário e, consequentemente, de portas e paredes nas casas, permite

ao espectador presenciar o ato, ao mesmo tempo em que assiste à movimentação dos outros

moradores na cidade. A câmera não é subjetiva na maior parte da cena, mas o espectador a

acompanha.

Assim como referido por MULSEY, a respeito do filme “Um corpo que cai” (1958) de

Hitchcock, prevalece a mesma afirmação neste e, por extensão, aos outros estupros sofridos

por GRACE no desenrolar da trama: “o exibicionismo e o masoquismo dela fazem com que

ela seja o contraponto passivo ideal para o voyerismo sádico e ativo...” do personagem e do

espectador, acrescento. Neste mesmo ensaio, vale ainda ressaltar (pág. 451), sobre este aspecto,

a seguinte observação:

“O instinto escopofílico (prazer em olhar para uma outra pessoa como um objeto

erótico), e, em contraposição, a libido do ego (formando processos de

identificação) atuam como formações, mecanismos, sobre os quais o cinema tem

trabalhado”. (Nota: o artigo “o” foi por mim substituído de forma proposital,

quando no texto original consta o pronome demonstrativo “este”).

E, de fato, este instinto escopofílico, não é levado apenas ao “olhar”, mas ao “uso” que as

personagens masculinas fazem na desconstrução da mulher ou da imagem que traz essa

mulher. A voz-over mais uma vez “esclarece”:

“A maioria dos homens da cidade a procuravam para satisfazer suas necessidades

sexuais... Mas após ela ter sido acorrentada, tudo ficou mais fácil para todos. As

visitas noturnas não tinham mais que ser secretas. Pois não era bem um ato sexual.

Elas eram uma vergonha, assim como o caipira usa uma vaca. Nada além disso.”

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Inclusive TOM, que por ela se diz apaixonado, tenta manter relações, mas reclama ser o único

homem da cidade a não tê-la possuído, ainda que tenha sido voyeur de um dos estupros e nada

tenha feito para resguardá-la.

GRACE confia em TOM. Ele, o “dono” de um pretenso poder e saber sobre a cidade, ilude, e

em seu egocentrismo parece apenas antever o livro que um dia poderia publicar. Temeroso

por perder seu prestígio entre os habitantes, resgata o cartão que o gângster lhe dera no início

e a delata.

O “anjo” que chegara à cidade, como se verá na cena final, se transformará no “anjo

exterminador”. A relação conflituosa e ideológica de GRACE com o pai (James Caan) fora o

motivo de sua fuga. Uma relação com conotações edipianas no conflito/identificação com a

figura paterna. O diálogo que se estabelece dentro do carro revela o confronto: ambos se

acusam de arrogância. Mas o entendimento por parte de GRACE, se dará ao perceber que a

sua arrogância é maior que a do pai. Ela deseja “um mundo melhor”; acredita aceitar os

habitantes como são e perdoar-lhes os atos cometidos, como quem diz “Eles não sabem o que

fazem”. Um paradoxo para a arrogância do subserviente.

GRACE, reatada ao pai, pede-lhe então o “poder” prometido. E ao contrário do “perdão

divino”, ela decide eliminar a população, ainda que reconhecendo que “teria feito o mesmo se

tivesse morado em uma daquelas casas”. Ao refletir sobre a sua própria situação e a dos

habitantes, está prestes a “perdoá-los”, mas surge a luz da lua que ilumina todo o lugar. Não

seria necessária, talvez, a voz-over para a compreensão de sua súbita mudança de opinião. O

significante “luz” parece já ser óbvio: o descortinamento do que a escuridão pretende

esconder, ocultar aos olhos, privando-os das imagens reais e tirando-os da fantasia.

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A fantasia/ficção que é creditada ao cinema através de sua sala de projeção perfeitamente

adaptada para que nada se perca da diegese, do mundo fictício. Este, um dos grandes

“trunfos” de Lars von Trier, quando dá ao filme um aspecto “não-ficcional”, “teatralizado” e

ao mesmo tempo, constrói uma narrativa linear (assim como num “conto de fadas”)

absorvendo o espectador na diegese e criando significados de forma expressiva.

Ao ver Dogville por “outro ângulo” ela “compreende” e assume o poder, assume o lado

pertencente ao universo masculino. Ela determina a destruição da cidade e de seus habitantes.

Vingativamente (tal qual “Medéia”) ordena que se mate primeiro os filhos de Vera e que só

parem caso ela chore e comenta: “Ela chora por qualquer bobagem” e “Eu devo isso a ela”.

GRACE se refere ao momento sofrido por ela, quando VERA, sob o discurso das aulas de

estoicismo, quebra-lhe os bonecos adquiridos (destrói por fim, a “cidade” que GRACE tinha

“nas mãos” ainda sob uma forma “afetuosa”).

GRACE torna-se o pai, ou mais, já que este sugerira que apenas matassem o cachorro e o

dependurassem no poste a título de exemplo. Mas, ao assumir o papel masculino, ao obter o

poder, ela não alimenta somente o espírito de vingança, mas algo maior, em seu pensamento

dominante e moralizante: “O mundo ficará muito melhor sem essa cidade”.

Pelo modelo da psicanálise ainda pode-se notar que falta “alguma coisa” para que GRACE

assuma sua posição no mundo do poder, no mundo masculino: o “falo”. Lars

intencionalmente (julgamento meu) deixa exatamente este último e importante significante

para a cena final. GRACE toma a arma do pai (o falo) e mata aquele que foi responsável por

iludi-la, que a traiu e atira diretamente sobre a cabeça do pretenso filósofo e pondera: “Há

coisas que devemos fazer pessoalmente”.

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Os artifícios de Lars em Dogville parece ter resultado, em parte dos espectadores, uma

espécie de compreensão da dicotomia “bem e mal”. VALIM (2004) ressalta que “houve

aplausos entusiásticos” quando da decisão de GRACE em exterminar, eliminar todos os

habitantes da cidade, na sessão que assistiu.

PENEDA, no artigo intitulado “Notas sobre Dogville” (s/d) tece um interessante comentário

sobre a questão do olhar feminino acerca do filme:

“Este filme não pode ser mais desconcertante para o público (feminino). O amor é uma
miragem, o erotismo não existe, o que há da parte do outro é uma violação
permanente, fruto de um olhar masculino perverso. O Outro sexo está reduzido à
condição de mero objecto de satisfação sexual (canina). O filme é a anulação do
feminino, é o seu esbatimento no gozo fálico (paterno). Um mundo de um gozo único,
generalizado. A própria Grace (graça), sem alternativa, se converte de bom grado a
este regime de gangsters. Não há salvação, não haverá para a mulher e também para o
homem outra forma de ser. Eis a intenção perversa do realizador. Confrontarmo-nos,
angustiar-nos com a tirania de um dogworld a que todos se submetem e que não deixa
lugar para um "gozo Outro" (Lacan).”

Não se pode, certamente, tecer afirmativas tão contundentes ao se tratar, por exemplo, de ser uma

“intenção perversa do realizador”. Múltiplas interpretações e análises foram realizadas sobre

Dogville. Muitas outras igualmente já foram formuldas para a 2ª parte da trilogia: “Manderlay”

(2005) em que a personagem GRACE se depara com uma comunidade supostamente escravagista

e, novamente, segue-se pelos seus instintos e valores morais que sobrepujam e ignoram os valores

locais.

Existe realmente a dicotomia entre um “bem” e um “mal” em Dogville? É possível estabelecer a

construção de uma “identidade feminina” a partir da personagem principal e a cidade onde se

estebelece esta pretensa dicotomia?

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O narrador encerra o filme de forma emblemática:

“Quando Grace deixou Dogville ou quando Dogville deixou Grace e o mundo em geral é uma pergunta
de outra natureza que poucos se beneficiariam ao perguntá-la e muitos poucos ao respondê-la. E a
resposta não seria dada aqui!”.

III - O “UNIVERSO” FEMININO

Este ensaio visou algumas poucas análises e citações sobre a construção da identidade

feminina no cinema. A multiplicidade e diversidade deste universo, certamente, não são

passíveis de serem estabelecidas em um único estudo.

O cinema, desde seus primórdios, trabalhou a identidade feminina em nível simbólico,

comportando significados, significantes, imagens e até mesmo “rotulações”. Estereótipos,

mitos, cotidianos, “casos reais”.... São inúmeros os modelos utilizados para a representação da

mulher e de sua identidade. E ainda que aparentemente se repitam, situam-se em contextos

diferentes, em ideologias e dogmas, em molduras particulares e em visões (olhares) distintos.

GRACE é apenas uma das faces deste enorme universo.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AUMONT, Jacques. A Imagem. Tradução: Estela dos Santos Abreu, Cláudio Cesar Santoro, Revisão
Técnica: Rolf de Luna Fonseca. 10 ed. Campinas: Papirus, 2005.

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Figueiredo, in: A Experiência do Cinema: antologia / Ismail Xavier (organizador); Rio de
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história foi explorada ao seu máximo. Definitivamente, menos é mais. 2003, disponível em
http://www.zetafilmes.com.br/criticas/dogville.asp?pag=dogville, acesso em 13 de abril de 2008.

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VILLELA, Joana Raquel Paraguassú Junqueira. Os Contos de Fada no Processo


do Desenvolvimento Humano. Disponível em http://www.filologia.org.br/viiicnlf/anais/caderno12-
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OUTRAS FONTES

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informações gerais sobre diversos filmes citados neste ensaio, como ano de lançamento e direção.
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2008.

DOGVILLE - Gênero: Drama; Dinamarca, 2003. Título Original: “Dogville”; Direção: Lars von Trier;
Produção: Vibeke Windelov; Roteiro: Lars Von Trier; Distribuição: Lions Gate Entertainment /
California Filmes.; 177 minutos. DVD.

IMDB – The Internet Movie Database – disponível em http://www.imdb.com. Coleta de informações


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em 10 de abril de 2008.

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