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Revista Filosofia Capital


ISSN 1982 6613 Vol. 11, Edição 18, Ano 2016.

O EXISTENCIALISMO DE SARTRE: A QUESTÃO


DA CONSCIÊNCIA DO SUJEITO NA PSICOSE

THE EXISTENTIALISM OF SARTRE: THE


QUESTION OF CONSCIOUSNESS OF THE
SUBJECT IN PSYCHOSIS

BARROS, Marcelo Vinicius Miranda1


RODRIGUES, Malcom Guimarães2

RESUMO
Este artigo busca determinar se a partir da filosofia sartreana – sustentada no conceito de
consciência – é possível encontrar um subsídio singular para a discussão da noção de
consciência na psicose. Isso será realizado com base nas formulações de Sartre sobre o tema
da imaginação, tendo como pilar conceitual a “intencionalidade”, herança da filosofia de
Husserl, e em oposição ao inconsciente proposto por Freud. A intenção do artigo é verificar se
as obras O imaginário, A imaginação e O ser e o nada permitem um passo adiante no sentido
de entender a psicose como uma forma de estar-no-mudo, como uma alternativa à explicação
freudiana da psicose como afastamento da realidade.
Palavras-chave: Sartre. Consciência. Psicose.

ABSTRACT
This paper seeks to determine if from the Sartrean philosophy – based on the concept of
consciousness as a human way of being for excellence – it is possible to find a unique
contribution for the discussion on the notion of consciousness in psychosis. It will be carried
out based on the Sartre’s assertions on the theme of imagination, using as a conceptual pillar
the “intentionality” of Husserl and rejecting the Freudian unconsciousness. Thus, if the
existential works The Imaginary, The Imagination and Being and Nothingness enable to take
a step forward in the Sartrean conception of psychosis as a means of being-in-world, how
would it possible to explain the psychosis without the possibility of withdrawal from reality
by the psychotic subject and of the unconscious imperative of Freud?
Keywords: Sartre. Consciousness. Psychosis.

1
Graduando em Psicologia pela Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS). Bolsista do projeto de
pesquisa 'Sartre e as fronteiras da escolha', financiado pelo CNPq / UEFS. Foi bolsista de extensão
PROBIC/UEFS do 'Projeto de Cinema: Subjetividade, Cultura e Poder' com plano de trabalho 'Kafka e
Dostoiévski: um olhar sócio, político e cultural do século XXI nas telas do cinema'. CV Lattes:
http://lattes.cnpq.br/3804791464459594.
2
Doutor em Filosofia (UFSCar/CNPq), atualmente é professor do Departamento de Ciências Humanas e
Filosofia da Universidade Estadual de Feira de Santana, Coordenador da Pós-graduação lato sensu em Filosofia,
líder do Grupo de Pesquisa "Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em Filosofia" (NEF). CV Lattes:
http://lattes.cnpq.br/8316619833936970.

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Introdução um estímulo externo.” (DSM-5, 2014, p.


87).
Neste texto pretende-se entender Por outro lado, para Sartre isso não
como seria possível explicar a psicose sem seria possível, já que o ser humano é
a possibilidade do afastamento da realidade consciência de ponta a ponta, ou seja, não
por parte do sujeito psicótico e do haveria nunca essa perda ou o abandono da
imperativo inconsciente do psicanalista realidade. Ao contrário, seria justamente
Sigmund Freud. Tal entendimento se com base nessa mesma realidade que a
tornaria possível segundo a teoria do fantasia e a alucinação seriam possíveis
filósofo francês Jean-Paul Sartre, que (SARTRE, 2012).
concebe uma explicação diferenciada da Jean-Paul Sartre não aceita o
psicanálise freudiana ou de outras teorias da inconsciente freudiano. Em obras anteriores
psicologia e da psiquiatria, as quais ao O ser e o nada (2012), originalmente de
postulam que o psicótico abandona ou sofre 1943, como A Transcendência do Ego
de uma perda da realidade. (2013), de 1937, o filósofo utiliza o
Em seu texto A perda da realidade na conceito husserliano de “intencionalidade”
neurose e na psicose, o psicanalista para afirmar que toda consciência é
Sigmund Freud afirma que “na psicose a consciência de alguma coisa. A partir dessa
perda de realidade estaria necessariamente premissa, Sartre não encontra mais a
presente, ao passo que na neurose, segundo necessidade de se falar em inconsciente, já
pareceria, essa perda seria evitada” que, assim, seria “inútil tentar invocar
(FREUD, 1996, p. 205). Na psicose, o Ego pretensas leis da consciência, cujo conjunto
seria posto à serviço do Id, que seria um articulado constituiria sua essência: uma lei
elemento inconsciente, e se afastaria de um é objeto transcendente de conhecimento;
fragmento da realidade. Ainda de acordo pode haver consciência de lei, mas não lei
com Freud, na psicose haveria duas etapas: da consciência.” (SARTRE, 2012, p. 27). O
que Sartre afirma é que, a partir da
[...] a primeira arrastaria o ego para intencionalidade, é impossível conceber em
longe, desta vez para longe da realidade uma consciência outra motivação além de si
[...] O segundo passo da psicose destina- mesma, pois estaríamos falando de uma
se a reparar a perda da realidade, “consciência-inconsciente” ou uma
contudo, não às expensas de uma
consciência não consciente (de) si
restrição do id, senão de outra maneira,
pela criação de uma nova realidade que (SARTRE, 2012). Assim, “cairíamos na
não levanta mais as mesmas objeções que frequente ilusão que faz da consciência um
a antiga, que foi abandonada (FREUD, semi-inconsciente ou passividade. Mas
1996, p. 231). consciência é consciência de ponta a ponta.
Só poderia, pois, ser limitada por si
Na mesma linha de pensamento, para mesma.” (SARTRE, 2012, p. 27). O
Hayanna Silva, “a conceituação mais usual filósofo afirma ser necessário compreender
da psicose é a psiquiátrica: uma pessoa é a consciência como consciência de algo,
diagnosticada como psicótica quando como ser consciente de uma mesa, pois,
perdeu o contato com a realidade e caso contrário, seria consciência deste algo
apresenta distúrbios na percepção, como sem ser consciente de sê-lo, ou seja, uma
alucinações.” (SILVA, 2013, p. 2) ou de consciência ignorante de si, uma
acordo, ainda, com o Manual de consciência inconsciente, o que seria
Diagnóstico e Estatística dos Transtornos absurdo (SARTRE, 2012).
Mentais, as “alucinações são experiências Com base na fenomenologia de
semelhantes à percepção que ocorrem sem Husserl, Sartre afirma que a consciência

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sempre existe junto ao fenômeno como algo a condição para uma lembrança e a reflexão
transcendente, fora de si. Em outras de um passado imediato, o que seria
palavras, a consciência não tem conteúdo, e impossível se a ação de contar fosse
por não ter conteúdo, ela é intencional, e inconsciente (SARTRE, 2012). Também
por ser intencional, a consciência surge “não há primazia da reflexão sobre a
junto com o fenômeno: as coisas, a mesa, o consciência irrefletida, esta não é revelada a
pensamento, a árvore etc. A palavra si por aquela, contrario, a consciência não
“intencional” se refere à característica geral reflexiva torna possível a reflexão: existe
da consciência de ser consciência de um cogito pré-reflexivo que é condição do
alguma coisa (SARTRE, 2012). Por não ter cogito cartesiano.” (SARTRE, 2012, p. 24).
conteúdo, a consciência é um nada que Dessa forma, percebemos que em
precisa ser preenchido. Por isso, ela faz a nenhum momento o inconsciente foi
análise intencional e descritiva dos objetos. necessário. Pelo conceito de
Todo ato mental tem seus conteúdos, “intencionalidade”, Sartre procura refutar o
caracterizados por sua direção a um objeto. inconsciente freudiano, utilizando, dentre
Toda crença, desejo, tem necessariamente outras premissas, questões como: como o
seus objetos: o acreditado, o desejado, etc. inconsciente age com discernimento,
(SARTRE, 2012). Dessa forma, o censura e sabe o que deve ou não reprimir
fenômeno é o objeto que é alvo, numa um desejo, se não é consciente? Como a
dialética da consciência para que a ela tendência reprimida pode disfarçar-se, já
possa existir. Não existe consciência que não contém a consciência de ser
apontando para o nada, para o vazio reprimida; a consciência de ter sido
absoluto. Uma mesa, por exemplo, não está rechaçada por ser o que é e um projeto de
na consciência, nem sequer a título de disfarce? Já que para Sartre, o suposto
representação, ela existe num espaço físico inconsciente é também capaz de “escolher”,
(SARTRE, 2012). logo só se escolhe quando é consciente. Por
Toda consciência posicional do objeto isso, na filosofia existencial, Sartre
(fenômeno) é ao mesmo tempo consciência conceitua a consciência como pré-reflexiva.
não posicional de si. Seguindo o exemplo Além do mais, não se pode confundir
de Sartre, se eu conto cigarros, somando 12 consciência com conhecimento (SARTRE,
cigarros, minha consciência posicional está 2012). O conhecimento estaria na ordem da
nos cigarros, refletindo: são 12 cigarros, consciência reflexiva e não da consciência
mas não é posicional de mim. Ao ter pré-reflexiva, ou seja, como será observado
consciência posicional de contar cigarros, mais adiante, Sartre, grosso modo,
não me “conheço enquanto contador”, distingue a consciência do conhecimento,
simplesmente conto (SARTRE, 2012). sendo mais preciso: a consciência reflexiva
Portanto, se a seguinte pergunta é feita: “o é aquela que o sujeito conhece, sabe ou
que está fazendo?”, a resposta é: “eu estou reflete sobre algo, já a consciência pré-
contando”. E esta resposta não é devida reflexiva se trata de algo que antecede a
somente à consciência imediata em saber, reflexão propriamente dita, assim, a
através da reflexão, que o próprio sujeito consciência pré-reflexiva é uma espécie de
está ciente de sua condição de contador, “conhecimento” não tematizado. Porém,
mas porque, quando contava, ele estava para Sartre, a consciência irrefletida ou pré-
consciente de sua ação. Só que essa reflexiva não é equivalente ao inconsciente
consciência seria pré-reflexiva ou irrefletida freudiano. Não se compara consciência
(SARTRE, 2012). irrefletida com o inconsciente, pois são
Todavia, não se compara a contraditórios, como foi comentado
consciência irrefletida com o inconsciente anteriormente (SARTRE, 2012).
freudiano, já que a consciência irrefletida é O filósofo afirmou que “a consciência

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não é um modo particular de conhecimento, que moldam o Desenvolvimento Humano,
chamado sentido interno ou conhecimento segundo Piaget) está no âmbito da
de si: é a dimensão de ser transfenomenal consciência pré-reflexiva.
do sujeito” (SARTRE, 2012, p. 22). Então, Continuando com a visão de Piaget,
faz-se necessário abandonar a primazia do ao se dizer que “[...] a criança apresenta
conhecimento, para fundamentar a mais lógica nas ações do que nas palavras”
consciência sartreana. Se o conhecimento é (SOUZA, 2007, p. 2) é de grande
também fenômeno da consciência pré- importância para o conceito de consciência
reflexiva (pois o sujeito está consciente a pré-reflexiva, já que podemos ter uma
respeito do que se reflete), a consciência leitura de que existe uma coerência nas
não pode reduzir-se ao conhecimento. ações humanas fora da consciência
Como diz Sartre, também nem toda reflexiva ou do conhecimento, mostrando
consciência é conhecimento, além da pré- que existe um nível de consciência que é
reflexiva, “há consciências afetivas, por aquela: a irrefletida ou a pré-reflexiva.
exemplo.” (SARTRE, 2012, p. 22). Outro ponto importante dos
Podemos dizer, em resumo, que fenômenos psicológicos do ser humano,
distinguir consciência pré-reflexiva (ou pelo viés de Piaget, é que “a lógica das
consciência não-posicional) de consciência ações aparece sempre mais profunda e
reflexiva (consciência posicional, porque a primitiva, sendo desenvolvida com maior
consciência posicional um objeto, o rapidez, superando melhor as dificuldades
refletindo, por exemplo) é tarefa importante encontradas” (SOUZA, 2007, p. 2). Essas
para entender uma possível ideia de psicose observações do comportamento das
na filosofia de Sartre, pois essas duas crianças, por Piaget, seguindo a visão
consciências permitirão entender como um sartreana, leva-se a questionar a validade do
sujeito psicótico tem consciência sem conceito de inconsciente freudiano.
necessariamente ter conhecimento dos seus Se nos casos dos testes de Piaget, as
atos (SARTRE, 2012). crianças sabem resolver problemas sem
Outra questão interessante sobre a uma reflexão e sim num ato “inconsciente”
existência da consciência pré-reflexiva são (pois, se perguntarem as crianças como elas
os testes do epistemólogo Jean Piaget, o resolveram a tal questão, elas não saberiam
qual se dedicou às áreas de Psicologia, responder, só saberiam que a resolveram),
Epistemologia e Educação. De tal modo, então não há um inconsciente de fato, já
Sartre disse a respeito: “prova é que que este saberia muito bem o que realiza.
crianças capazes de fazer espontaneamente Ainda não existe conhecimento (aqui
uma soma não podem explicar em seguida entendido como consciência reflexiva) nos
como o conseguiram: os testes de Piaget fenômenos dos testes de Piaget, mas há
que mostram excelente refutação da consciência pré-reflexiva. Devido a isso,
fórmula de Alain: saber é saber que se não é por acaso que Sartre esquadrinhou,
sabe.” (SARTRE, 2012, p. 24). Nessa como exemplo, os testes de Piaget em sua
afirmação, Sartre se refere às pesquisas de obra O ser e o nada (SARTRE, 2012).
Piaget que asseguram que o conhecimento
adquirido pelas crianças acontece em um Imaginar é estar na realidade
processo chamando de experiência ativa, ou
seja, “elas experienciam os objetos sem A questão para Sartre é pertinente: se
formar conceitos, pois estes só apareceram a consciência é consciência de ponta a
mais tarde” (SOUZA, 2007, p. 1). Os ponta, o psicótico foge da realidade, como
conceitos, na perspectiva sartreana, estão no pareceu intuir Freud, ou ele usa a própria
campo da consciência reflexiva, e a realidade para alucinar?
experiência ativa (uma das quatro forças Já é entendido, no geral, que Sartre

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realiza uma releitura da “Intencionalidade”, às da consciência: retira-se assim do
que é um conceito recriado por Husserl a espírito qualquer possibilidade de distingui-
partir de Brentano, para afirmar que toda la das outras coisas do mundo” (SARTRE,
consciência é consciência de alguma coisa. 2008, p.110).
E para tentar responder à pergunta anterior, Sartre também respondeu que não é
adentramos em outra obra sua: A possível considerar a imagem como
Imaginação (2008), na qual o pensador “resgatada” de uma espécie de
afirma que a consciência precisa do inconsciente, pois a imagem já é uma
fenômeno para ser consciente de algo. consciência, ou seja, “a imagem é um ato e
Assim, o filósofo se refere também à não uma coisa. A imagem é consciência de
imaginação e não só à percepção das coisas, alguma coisa” (SARTRE, 2008, p. 137).
já que a imagem é imagem de alguma coisa, A saída possível é compreender a
se referindo ao conceito sartreano de imagem como consciência, a imagem
“consciência imagética”. Imagem é também é imagem de alguma coisa. Caso
consciência de imagem. contrário, faríamos da imagem um objeto
Sartre considera a imagem como da consciência, um Em-si, e assim não
consciência de imagem, porque, para o haveria operação dessas imagens, estas
filósofo, só há dois tipos de existência: “a viriam à consciência de formas autônomas,
existência como coisa do mundo e a com “vontades” próprias. Além de que seria
existência como consciência” (SARTRE, difícil distinguir tais imagens das coisas do
2008, p. 108). O problema é que se mundo.
colocarmos a imagem como fenômeno da Assim, se um sujeito imagina um
consciência, a imagem aparecendo à centauro ou um elefante voador, esse
consciência, a imagem se torna centauro e elefante voador não existem na
independente da consciência, como se fosse consciência, é uma invenção, no sentido de
um “Em-si” (objetos, coisas do mundo, o que essa invenção é um estado de
que possui uma essência, para o consciência: invenção é invenção desse
existencialismo sartreano). Ela existiria elefante voador, por exemplo. (SARTRE,
independente do “Para-si”3. A imagem se 2008). Toda invenção é invenção de alguma
tornaria coisa do mundo; e, em se tornando coisa. “Ao tornar-se uma estrutura
coisa do mundo, como a consciência intencional, a imagem passa do estado de
poderia “resgatá-la”? Isso não seria conteúdo inerte de consciência ao de
possível, pois a imagem existiria segundo consciência una e sintética em relação a um
as leis que lhe são próprias e não segundo a objeto transcendente.” (SARTRE, 2008, p.
lei da consciência. Ou seja, “dar à imagem 126).
um conteúdo sensível é fazer dela uma Cabe salientar que o conceito de
coisa que obedece às leis das coisas e não consciência em Sartre não é o mesmo que
em Freud. Na obra O imaginário (1996), o
3 filósofo procura definir a consciência como
A consciência humana é peculiar, por isso é
conceituada como Para-si. É o Para-si que faz as “Intencionalidade” para, então, tratar da
relações temporais e funcionais entre os seres do consciência imaginante – ou consciência de
mundo (Em-si) e ao fazer isso constrói um sentido imagem –, consciência perceptiva e demais
para o mundo em que vive, que é melhor entendido tipos de consciência; diferentemente de
como o projeto existencial. O ser humano, então, é o
Freud, que trata da consciência como um
Para-si, que a rigor é o Nada, pois a consciência não
tem conteúdo, não é coisa alguma. O sujeito conjunto de estruturas psíquicas.
reconhece-se, então, como não-ser em busca de ser. Para melhor compreensão da
Mas esse Nada é justamente a liberdade fundamental consciência imaginante, Sartre diferencia o
do Para-si, que, movendo-se através das objeto da percepção do objeto imaginado.
possibilidades, poderá “criar-lhe conteúdo”
Na percepção, o sujeito precisa observar o
(SARTRE, 2012).

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objeto para compreendê-lo e discerni-lo, imagine girar um cubo, nada demais
por exemplo: acontecerá senão aquilo que já se sabe. A
relação entre a consciência e o objeto
Eu não posso saber que é um cubo imaginado não terá nada de novo, nenhuma
enquanto não tiver apreendido suas seis defasagem nessa relação consciência e
faces; posso, no máximo, ver três faces objeto: “o objeto que se move não é vivo,
ao mesmo tempo, não mais. É preciso, não precede nunca a intenção. Mas
pois, que eu as apreenda sucessivamente
também não é inerte, passivo, ‘agido’ de
[...] o próprio da percepção é que o objeto
só aparece como uma série de perfis, de fora, como uma marionete: a consciência
projeções (SARTRE, 1996, p. 20). não precede jamais o objeto, a intenção se
revela como tal ao mesmo tempo em que se
Nessa citação, podemos conferir que realiza, em e por sua realização.”
Sartre define a percepção como algo que (SARTTRE, 1996, p. 25). Assim, se o
não é dado de uma vez, mas que é preciso objeto não precede nunca a intenção e a
que o objeto da percepção se desvele aos consciência não precede jamais o objeto, e
poucos para que o sujeito saiba do que se há uma revelação ao mesmo tempo em que
trata tal objeto: se é, por exemplo, um cubo, se realiza, é porque a imagem é uma
quadrado etc. Já em relação ao pensamento, consciência, a imagem é essa relação
ao imaginar um cubo, o sujeito não precisa consciência e objeto-imaginado. O filósofo
que o objeto apareça como uma série de assegura, ainda, que a consciência
perfis, de projeções. Mentalmente o sujeito irrefletida visa um objeto, não somente a
não precisa “dissecar” todos os lados do consciência reflexiva visa um objeto, na
objeto para compreender que o que ele “intencionalidade” (SARTRE, 1996). Aqui,
imagina é um cubo. Não há necessidade de entramos em um ponto importante do nosso
saber mais, de aprender mais sobre o objeto artigo.
para saber do que se trata, ou seja, não há Para que se possa descrever a
mais necessidade de dar voltas sobre o consciência imaginante, é preciso outra
objeto para descobri-lo. “O cubo como consciência: a consciência reflexiva, que
imagem se dá imediatamente pelo que ele é “faz” da consciência imaginante um objeto
[...] Quando digo ‘O objeto cuja a imagem da consciência reflexiva, isto é, um
tenho agora é um cubo’, emito um conhecimento. Mas, Sartre salienta que é
julgamento de evidência: é absolutamente preciso tomar cuidado, pois toda
certo que o objeto de minha imagem é um consciência é consciência plena, senão,
cubo.” (SARTRE, 1996, p. 21). Essa é sem entraríamos em uma contradição, como
dúvida, segundo Sartre, a diferença mais uma espécie de consciência-inconsciente, o
nítida entre o pensamento e a percepção que é um absurdo. “Se a consciência
(SARTRE, 1996). imaginante da árvore, por exemplo, não
A imagem não causa nenhuma fosse consciência senão a título de objeto da
surpresa no sujeito que a imagina, pois o reflexão, resultaria que ela seria, no estado
saber está sempre ligado à intenção de que irrefletido, inconsciente de si mesma, o que
o objeto é isso ou aquilo. Não se é uma contradição” (SARTRE, 1996, p.
compreende no objeto imaginado “nada 25). A consciência imaginante, mesmo
além daquilo que tenho consciência; mas, irrefletida, ainda é consciência e, por isso, é
inversamente, tudo que constitui minha preciso que ela abrigue certa consciência de
consciência encontra o seu correlativo no si mesma. Ou, como afirma Sartre, que ela
objeto.” (SARTRE, 1996, p. 24). possua uma consciência não-tética
Não há uma consciência passiva, por (SARTRE, 1996).
isso não há nenhuma surpresa em relação Sartre, então, se vê na necessidade de
ao objeto imaginado. Mesmo que o sujeito melhor descrever a consciência imaginante,

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que é uma consciência não-tética, que está Assim, o ato posicional é ainda constitutivo
no campo do irrefletido ou da consciência da consciência de imagem. A imagem é
pré-reflexiva. Por isso, o autor questiona uma consciência, é uma relação consciência
como a consciência irrefletida coloca seu e objeto, se opondo a ideia de que as
objeto e como essa consciência aparece imagens habitam a consciência, já que a
para si mesma na consciência não-tética imagem é uma consciência. Assim, a
que acompanha a posição do objeto? imagem é uma espécie de consciência
O que acontece é que não é só a intencional do objeto. Lembrando-se ainda
consciência reflexiva que coloca seu objeto, que a escolha dessas lembranças,
que é intencional, a consciência pré- recordações ou objetos imaginados, está
reflexiva também é intencional e coloca seu longe de ser uma escolha banal, pois se dá a
objeto. Toda consciência é consciência de partir da situação do sujeito no mundo.
alguma coisa: “toda consciência coloca seu E é através dessas conclusões
objeto, mas cada uma à sua maneira. A seguidas até agora sobre a imaginação, o
percepção, por exemplo, coloca seu objeto ato de imaginar, que Sartre afirma que a
como existente. A imagem contém, do consciência é livre. Há outras premissas
mesmo modo, um ato de crença ou um ato para se afirmar, segundo o filósofo, que a
posicional.” (SARTRE, 1996, p. 26). consciência é livre, e a imaginação é uma
A consciência, então, se posiciona delas. Se lembrarmos que, como dito aqui,
sempre, ao invés de existir um resgate de para imaginar é preciso que o objeto seja
uma imagem no inconsciente, por exemplo. colocado como ausente, inexistente ou
Como visto no início deste texto, para existente em outro lugar, é porque a
Sartre não faz sentido um inconsciente ou consciência é livre (SARTRE, 1996).
uma locação de imagens como arquivos na É certo que para imaginar é preciso
psique. O que acontece são que a consciência se volte à realidade, mas
posicionamentos do objeto imaginado, ela tem a liberdade de negá-la. A
consciência imaginativa. E Sartre aprofunda consciência para produzir o objeto enquanto
mais: imagem deve poder negar a realidade desse
objeto e só negará essa realidade tomando
[...] toda consciência coloca o seu objeto, distância desta. “Colocar uma imagem é
mas cada uma à sua maneira. A constituir um objeto à margem da totalidade
percepção, por exemplo, coloca seu do real, é manter o real a distância, liberta-
objeto como existente. A imagem se dele – numa palavra, negá-lo.”
contém, do mesmo modo, um ato de
(SARTRE, 1996, p. 239).
crença ou um ato posicional. Esse ato
pode tomar quatro, e somente quatro, O que Sartre deixa claro é que se a
formas: pode colocar o objeto como consciência fosse colocada no mundo, no
inexistente, ou como ausente, ou como real, como existente entre outros,
existente em outra parte; pode também deveríamos fazer da consciência algo
“neutralizar-se”, isto é, não colocar seu passivo e submetido às leis da física e não
objeto como existente (essa suspensão da às leis da consciência, sem capacidade de
crença continua a ser um ato posicional) ultrapassar esse real, sem capacidade de
(SARTRE, 1996, p. 26). imaginar, o que seria aberração. A
consciência não passaria de um Em-si, o
Dessa forma, podemos concluir que é que é também contraditório (SARTRE,
por isso que se pode imaginar um Centauro 1996).
(inexistente), uma pessoa com que se Para Sartre (1996, p. 239), “essa
marcou um encontro, mas que não consciência só poderia, portanto, conter
compareceu ao tal encontro (ausente), um modificações reais provocadas por ações
amigo distante (existente em outra parte). reais, e toda imaginação lhe seria interdita,

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precisamente na medida em que estaria
submersa no real.”. Se a consciência é a liberdade da consciência não deve ser
determinada por fatos psíquicos do mundo confundida com arbitrário. Pois uma
e pelo real, como pretendem alguns imagem não é o mundo negado, pura e
psicólogos behavioristas4, seria impossível simplesmente, ela é sempre o mundo
negado de um certo ponto de vista,
para a consciência produzir alguma outra exatamente aquele que permite colocar a
coisa a não ser o real. Ou ainda: a ausência ou a inexistência de um
determinação da consciência unicamente determinando objeto que será
pelo real e a interpretação dos processos da presentificado (SARTRE, 1996, p. 240).
consciência segundo a lei da causalidade,
ideias defendidas por alguns psicólogos Sartre dá como exemplo o Centauro,
behavioristas, significaria a impossibilidade que jamais poderia aparecer como irreal se
para a consciência de produzir algo além do a posição do real fosse arbitrária. Para que o
real. Salientando que Sartre, no entanto, Centauro apareça como irreal, ou como
tinha como meta examinar a consciência no uma imaginação ou alucinação, seria
mundo. A consciência é engajada no mundo rigorosamente necessário que o mundo
de tal forma que o Para-si não existe sem apreendido em questão fosse um mundo
mundo, mas ela não é determinada pelo como mundo-onde-não-há-centauro, ou
real, não é objeto do mundo. A consciência seja, a apreensão do mundo deve ser um
é sempre ativa. lugar onde o Centauro não tenha existência
Por isso, segundo o filósofo, a de fato (SARTRE, 1996), pois o Centauro
consciência é livre, pois para que se possa sendo uma imaginação, é um ser
imaginar é preciso negar o mundo e isso só inexistente. De maneira semelhante, a
é possível através da nadificação. A noção imaginação opera em relação à ausência:
de nadificação implica, portanto, o próprio “para que meu amigo Pierre me seja dado
ato de colocar o ser como fenômeno. No como ausente, é preciso que eu tenha sido
entanto, seria falso confundir-se a conduzido a apreender o mundo como um
nadificação com o aniquilamento, visto que conjunto constituído de tal modo que Pierre
não se trata de “destruir” o objeto, mas de não poderia estar nele na atualidade e
retirá-lo de uma realidade de que ele não presente para mim.” (SARTRE, 1996, p.
toma parte. Por exemplo, ao olhar para as 241).
nuvens para saber se vai chover, nadifica-se Só deste modo Pierre pode ser
esse Em-si que é um gasoso com O2 e imaginado como ausente e o Centauro
outros elementos, até a intenção se vai imaginado como inexistente. Por isso que
chover. Não se olha então para uma nuvem Sartre afirma que a liberdade é situada e a
simplesmente, mas a transcende para a consciência é liberdade. Para que, então,
chuva. A nuvem não foi destruída, mas uma consciência imagine, é preciso que ela
houve um sentido, um significado ou valor esteja “em situação no mundo” ou ela
em relação à nuvem (SARTRE, 1996). “esteja-no-mundo”. É na situação, concreta
Entretanto, dizer que a consciência é e real, que se permite a irrealidade, a
livre, não é a mesma coisa que dizer que ela imaginação ou a alucinação: “Desse ponto
é arbitrária, pois a liberdade é sempre de vista, apreendemos por fim a ligação do
situada, ou seja, irreal com o real” (SARTRE, 1996, p. 241).
Assim, para que a consciência
4
“Se a consciência parece ter um efeito causal, trata- imaginante seja possível, ela não pode
se do efeito do ambiente especial que a induz à auto- realizar um afastamento ou perda da
observação [...] O que o behaviorismo rejeita é o realidade, ao contrário, é imprescindível
inconsciente como um agente, e está claro que que “esteja-no-mundo”, pois é “esse ‘estar-
também rejeita a mente consciente como um agente”
(SKINNER, 1974, p.133).
no-mundo’ o que constitui a condição

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necessária da imaginação.” (SARTRE, psicótico em Sartre é um ser que ainda
1996, p. 242). Essa última parte da estar-no-mundo, mesmo que a escolha
discussão sobre a imaginação fez suscitar ontológica seja ir mais além da realidade.
outra questão: a psicose. Mais adiante, neste texto, se utilizando da
Podemos, então, concatenar também filosofia sartreana, será visto ainda o porque
com a Gestalt-terapia, a esse respeito: o do sujeito psicótico estar-no-mundo, de não
sujeito psicótico não tem a perda da perder a realidade.
realidade, tem consciência dela e a utiliza
nas suas alucinações, pois é dito que os Se consciência é consciência de ponta a
psicóticos “se ocupariam da realidade não ponta, há psicótico consciente?
apenas para responder às demandas da
ordem da inteligibilidade social [...] mas Retomando alguns pontos discutidos,
também para simular aquilo que não podemos observar que o psicótico pode ser
encontram” (MULLER-GRANZOTTO, M. sempre um sujeito consciente, no sentido de
J.; MULLER-GRANZOTTO, R.L., 2012, consciência pré-reflexiva, ou seja, ele
p. 143). Ou seja, o alucinado, como sujeito precisa estar-no-mundo. Por exemplo:
para Sartre, está também de acordo com
essa afirmação dos filósofos da Gestalt- [...] a posição arbitrária do real como
terapia Marcos José Müller-Granzotto e mundo não poderia de modo algum fazer
Rosane Lorena Müller-Granzotto, ao aparecer neste momento o centauro como
considerarem que o psicótico não ignora de objeto irreal. Para que o centauro apareça
como irreal, torna-se rigorosamente
fato a realidade, pois se utiliza dela para necessário que o mundo seja apreendido
ser-no-mundo, ou operacionalizar sua como mundo-onde-não-há-centauro, e
existência de uma forma própria ou isso só poderá ser produzido se as
peculiar: alucinando. A teoria da Gestalt- diferentes motivações conduzirem a
terapia afirma que consciência a apreender o mundo como
sendo precisamente de tal modo que o
[...] os sujeitos servem-se da realidade – centauro não possa ter lugar nele
ou de aspectos dela – como se assim (SARTRE, 1996, p. 240-241).
pudessem suprir a expectativa dos
interlocutores em torno daquilo que está Sartre nos permite dizer que a
além da realidade. Noutras palavras, os condição essencial para que uma
sujeitos das formações alucinatórias, consciência imagine é que ela esteja “em
delirantes e identificatórias buscam na situação no mundo” ou que ela “esteja-no-
realidade o que haveria de substituir a
mundo”. É a “situação-no-mundo”,
virtualidade demandada na interlocução
(MULLER-GRANZOTTO, M. J; apreendia como realidade concreta e
MULLER-GRANZOTTO, R.L., 2012, p. individual da consciência, que serve de
158). motivação para a constituição de um objeto
irreal. Resumidamente, a imagem só poderá
Portanto, fazendo um paralelo de aparecer sobre um fundo de mundo e em
Sartre com a Gestalt-terapia (e a Gestalt- ligação com esse fundo (SARTRE, 1996).
terapia tem semelhança com o O que se pode colocar como hipótese
existencialismo, assim, aqui, não há uma é que, assim como a imaginação, a
conexão sem fundamento5), o sujeito alucinação não faz do psicótico um sujeito
que perde ou abandona a realidade, como
5
“A visão que a gestalt-terapia tem a respeito do
querem certos psicólogos ou psicanalistas,
homem é de forma muito semelhante ao ou como Sigmund Freud (1996, p. 205) ao
existencialismo, ou seja, como um ser particular,
concreto, com vontade e liberdade pessoais, consciência é viva, livre, intencional e orientada para
consciente e responsável. Considera também que a as coisas” (RIBEIRO, 1998, p. 37).

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dizer que “na psicose a perda de realidade ou situação existe ou não, seja real ou não,
estaria necessariamente presente”. Pelo e isso exige consciência, nos termos
contrário, é por estar na realidade que sartreano, porque discernimento demanda
constitui a condição necessária da entendimento, perceber claramente (algo,
imaginação delirante. Para que o psicótico diferenças etc.); distinguir, diferenciar,
se imagine ser o rei de uma galáxia, por discriminar, realizar escolhas que só se faz
exemplo, torna-se rigorosamente necessário se é consciente. Só há articulação
que o mundo seja apreendido como mundo- engenhosa dessa forma se há consciência,
onde-ele-não-é-o-rei-de-uma-galáxia. A caso contrário, é um paradoxo. Um
posição não arbitrária do real não poderia inconsciente é engenhoso, é capaz de
de modo algum fazer aparecer o rei de uma discernir ou escolher? Não, pois, como
galáxia, que é irreal. O mesmo acontece visto no início deste texto, seria uma
quando um psicótico diz conversar com a contradição haver um consciente-
rainha do século passado, é preciso que ele inconsciente (SARTRE, 1996). O
tenha sido conduzido a apreender o mundo inconsciente freudiano, então, para Sartre,
como um conjunto constituído de tal modo seria um ato de má-fé, este é um conceito
que a tal rainha não poderia estar ali, na na filosofia sartreana que será discorrido a
atualidade, e presente para ele. seguir.
Assim, se para certos psicólogos,
psicanalistas e psiquiatras, o psicótico se A má-fé e a psicose
perde da realidade; para Sartre, ele precisa
conceber e estar presente na realidade ao Para uma melhor conclusão do texto,
mesmo tempo em que concebe o irreal. Se o é preciso analisar ainda algumas questões
sujeito em sua alucinação diz ver e falar mais específicas. Inicialmente, antes de
com um Centauro, torna-se rigorosamente adentrar no conceito de má-fé na filosofia
necessário que o mundo seja apreendido de Sartre, que será um ponto importante
como mundo-onde-não-há-centauro, a desta discussão, se faz necessário algumas
consciência carece de apreender o mundo interrogações a partir dessa afirmação: “o
como sendo precisamente de tal modo que sonho é uma experiência privilegiada que
o Centauro não possa ter lugar nele, pois se pode ajudar-nos a conceber o que seria uma
o mundo fosse o mundo-onde-há-centauro, consciência que teria perdido seu ‘estar-no-
onde o centauro tivesse lugar na realidade, mundo’ e que seria privada, ao mesmo
o sujeito não estaria alucinando ao dizer tempo, da categoria do real” (SARTRE,
que o Centauro fala com ele, já que, assim, 1996, p. 230). A pessoa que alucina tem
falar com um Centauro seria um fato real e consciência, considerando a filosofia
não imaginário ou alucinatório, por sartreana, de que não se trata de algo real,
exemplo. Portanto, o psicótico não se perde mas de uma fantasia – de algo que se passa
da realidade, porque na sua consciência pré- no imaginário, como em um sonho que é
reflexiva, ele precisa estar-no-mundo, no necessário a consciência pré-reflexiva, já
real, para que o irreal seja concebido. Isso que a consciência reflexiva “destrói o
significa que o alucinado não perdeu a sonho, pelo fato de colocá-lo como é,
consciência e nem se afastou da realidade, enquanto confirma e reforça a consciência
ele é um ser consciente ainda de estar-no- refletida no caso da percepção” (SARTRE,
mundo, nos termos sartreanos. 1996, p.212).
Tamanha articulação, entre analisar o O sujeito psicótico, que alucina, se
mundo real para que se possa projetar algo encontra num mundo imaginário,
irreal, tido como alucinação, é preciso consciência imaginante, e que toma uma
capacidade de discernimento do mundo imagem como uma percepção, de forma
real, entender que determinado objeto, coisa consciente, ou seja, há consciência de crer:

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consequências desta (SARTRE, 2012).
uma imagem se formou que é dada como Agora, o foco, antes de tudo, então, é um
imagem, conservando seu caráter irreal. pouco peculiar sobre a má-fé: como é
Simplesmente ela se coloca para si, ela possível que ela se desenvolva?
paralisa o curso dos pensamentos. Mas o Um princípio da má-fé é: o que é o
doente não perdeu de vista que seus
que não é, ou, “como ser que é o que não é
perseguidores só podem dar-lhe esta ou
aquela “visão”, esta ou aquela “audição”, e não é o que é” (SARTRE, 2012, p. 110).
por intermédio de sua própria atividade Assim, a má-fé exige que o sujeito não seja
criadora (SARTRE, 1996, p. 206). o que é, ou melhor, “que haja uma
diferença imponderável a separar o ser do
É o próprio sujeito psicótico que não ser no modo de ser da realidade
cria a sua alucinação e acredita nela, pois a humana” (SARTRE, 2012, p. 114), e para
sua consciência irrefletida dessa alucinação isso a má-fé precisa da nadifação6. Só
é consciência não-tética de si mesma como porque o Para-si “entra em processo” de
simples crença, ou, com outras palavras, é, nadificação, que a má-fé é possível, na
pois, “confiança cega, já que crer é ter verdade, o Para-si é o próprio processo
confiança. Simplesmente, na medida em nadificador (SARTRE, 2012).
que é consciência de crer, não é consciência Portanto, Sartre diz: “capta-me
de saber” (SARTRE, 1996, p. 213). Assim, positivamente, como corajoso, não o sendo”
a consciência está presente na alucinação, (SARTRE, 2012, p. 114). O sujeito, então,
como ainda no sonho, porém não como está sempre separado da sua essência (pela
consciência reflexiva ou conhecimento, ou nadificação), pois a essência do sujeito é
consciência de saber, mas sim como uma consciência de ser algo, no caso, a
consciência de crer. consciência de ser corajoso, ligado à
A questão central, então, da psicose consciência reflexiva, cristalizando uma
se torna, portanto, a crença: “[...] de que espécie de Eu, que é um fenômeno da
modo o doente pode acreditar na realidade consciência pré-reflexiva. Portanto, o
de uma imagem que se dá por essência sujeito acha-se sempre separado de sua
como um irreal?” (SARTRE, 1996, p. 199). essência por um Nada. Ou seja, o Eu-
O alucinado crê na alucinação mesmo corajoso, que é a essência, é um fenômeno
consciente de que não se trata de algo real. da consciência e assim se diz: “sou
Poder-se-ia supor então, que o psicótico corajoso”, mas de fato não é, no máximo,
toma, na verdade, uma decisão? Sim, pois, está corajoso (SARTRE, 2012).
para Sartre, estamos fazendo sempre Se o Nada é uma facticidade, ao
escolhas, e essa decisão pode ser também sujeito não compete a escolha dessa
pela má-fé. situação, cabendo, indiscutivelmente, eleger
É preciso discutir a má-fé, pois esta é a sua atitude diante dela ou diante do Nada,
o que Sartre vai afirmar como característica imprimindo-lhe um sentido a partir de seus
do inconsciente freudiano, o qual é uma próprios fins: projetando-se rumo aos seus
alternativa de explicação para as objetivos, preservando o passado com ele e
alucinações que o filósofo francês não decidindo por meio da ação qual o seu
concorda. Mas, o que é o conceito de má- sentido (SARTRE, 2012).
fé? Basicamente, para o filósofo, a má-fé é O Para-Si é essa mescla de
uma tentativa frustrada de negar a transcendência e facticidade. Por causa,
liberdade, pois o homem só pode negá-la na então, da transcendência, o Para-Si não é o
medida em que ele é livre para isso. É por
ser liberdade que o homem escolhe ser de 6
má-fé, e ele a escolhe como estratégia de A nadificação é a própria consciência que se
desprende ou não coincide com os objetos (Em-si) e
fuga da angústia da decisão e das com si mesma, que a faz negar o ser percebido.

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que é e é o que não é, ou seja, tem de ser Já á má-fé não se tem o conhecimento de
esse Ser que não é, e é assim que a má-fé se que mente, só se há consciência irrefletida
apresenta e “tenta também me constituir (SARTRE, 2012).
como sendo o que não sou.” (SARTRE, Agora é possível compreender como
2012, p. 114). se pode comentar de consciência e ao
Salientando que a má-fé não é mesmo tempo da má-fé, e se perguntar
expressa pela consciência reflexiva, porque como pode existir uma espécie de mentira
ter consciência de “não ser o que se é” não onde o enganador e o enganado é a mesma
significa ter conhecimento disso, está na pessoa? Porque, primeiro, o Para-si é um
ordem da consciência pré-reflexiva e, como Nada, já que se é o que não é e não é o que
sabido, consciência não é sempre sinônimo se é; segundo, a consciência sempre é
de conhecimento. Ou, “entendemos bem consciência de alguma coisa, como visto
que não se trata de uma decisão reflexiva e aqui; e terceiro, a consciência não é sempre
voluntária, e sim de uma determinação sinônimo de conhecimento. Por isso, há
espontânea de nosso ser. Fazem-nos de má- todo um desdobramento, como o fugir de si,
fé como quem adormece e somos de má-fé não o coincidir consigo mesmo e estar
como quem sonha.” (SARTRE, 2012, p. sempre à distância de si. A pessoa busca,
116). então, fugir de sua condição de Para-si para
O sonho é um exemplo de má-fé: tentar, sem sucesso, coincidir consigo
“uma vez realizado esse modo de ser, é tão mesmo, ao modo de ser do Em-si
difícil sair dele quanto alguém despertar a si (SARTRE, 2012).
próprio: a má-fé é um tipo de ser no mundo, Lembrando que a má-fé não é
como a vigília ou o sonho.” (SARTRE, reflexiva e sim consciência pré-reflexiva.
2012, p. 116). Logicamente, se essa consciência é um
O que ocorre é que o sonho está na Nada e é consciência, fica claro, agora, que
ordem da consciência pré-reflexiva e não na a vida da consciência consiste em “almejar”
ordem da consciência reflexiva. Dessa algo que ela não é, buscando como
forma, a consciência pré-reflexiva crer na coincidir plenamente com o “aquilo” que
realidade do sonho, mas por não ser não ela mesma, através da intencionalidade
reflexiva, ela não reflete essas crenças (consciência é sempre consciência de
como crenças, ou seja, há consciência no alguma coisa). Ao considerar que
sonho, mas não o conhecimento sobre o consciência é sempre consciência de
sonho, por isso o pré-reflexivo não duvida alguma coisa, é óbvio que a consciência
da “realidade” apresentada, a saber: o pré-reflexiva é sempre consciência de algo
sonho, e, assim, situando-se a má-fé. Pode- e por isso é o que não é, permitindo surgir a
se retomar aqui que o sonho também é má-fé, que não é mentira, já que
consciência de crer, mas não consciência de consciência não é sempre saber.
saber (SARTRE, 2012). Por isso que um psicótico que se
Isso só é possível porque, pelo que proclama o rei de Roma não está agindo
se pode notar, a consciência pré-reflexiva inconscientemente num surto psicótico,
não se compromete com o posicionamento como quer a psicanálise freudiana. Não está
de algo, como ocorre na consciência agindo inconscientemente que é o rei de
reflexiva. Pelo contrário, o pré-reflexivo se Roma, como também não está fingindo ser
dar num fluxo espontâneo de experiências e o tal rei, pois ele acredita ser sim o rei de
vivências que capta os objetos de forma Roma. A questão é que, na psicose, onde
imediata. O sonho, então, é uma crença. Freud coloca como explicação o
Frisando ainda que a má-fé não é mentira, inconsciente, Sartre coloca a má-fé. O fato
pois a mentira tem como ideia a de que o existencialista é que a consciência pré-
mentiroso tem conhecimento de que mente. reflexiva é sempre consciência de algo e

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não é o que é; logo o alucinado se SARTRE, Jean-Paul. A Imaginação.
proclamando que é o rei, não é o rei, mas Edição 6, Porto Alegre: L&PM, 2008.
por que ele insiste, então, em ser o rei? _______. O Imaginário. Volume 46, São
Porque como a consciência é Paulo: Ática, 1996.
intencionalidade e é um Nada, ela está
sempre buscando como coincidir _______. O Ser e O Nada: Ensaio de
plenamente com o “aquilo” que não é ela Ontologia Fenomenológica. Edição 21,
mesma, no caso, coincidir com o rei. Logo Petrópolis: Editora Vozes, 2012.
o psicótico está agindo de má-fé e ele age SILVA, Hayanna Carvalho Santos Ribeiro.
querendo ser o rei não por fingimento, ou Psicose e Crises Psíquicas Graves: uma
mentira, pois a má-fé está no campo do pré- investigação pelo método de Rorschach.
reflexivo, ele age sem conhecimento Brasília. p. 134. [Dissertação]. Instituto de
(SARTRE, 2012). Ou, com outras palavras, Psicologia, Programa de Pós-Graduação em
há, na psicose, consciência de crer, mas não Psicologia Clínica e Cultura. Universidade
consciência de saber (SARTRE, 1996). de Brasília - UNB, 2013.
Enfim, para Sartre não importa o
que nos foi dado ou o que está aí como SKINNER, Burrhus Frederic. Sobre o
constituído, o importante é o que nós Behaviorismo. Edição 5, São Paulo:
fazemos com o que recebemos; assim, o Editora Cultrix, 1974.
sujeito se configura e configura seu mundo SOUZA, Kênia Bomtempo. Piaget e a
de um modo concreto, segundo as situações construção de conceitos geométricos,
que esteja vivendo, pois ele precisa estar na [On-line], 2007, Temporis[ação], Goiás, v.
realidade, para que o irreal seja ideado. Ou 1, nº 9, Jan/Dez 2007. Núcleo de Editoração
seja, sua única loucura está em se acreditar Eletrônica – NEE. Universidade Estadual
louco (SARTRE, 1996). de Goiás (UEG). Disponível em:
<http://www.nee.ueg.br/seer/index.php/tem
Referências porisacao/article/view/30/49>. Acesso em:
14 de dezembro de 2015.
DSM-5. Espectro da Esquizofrenia e
Outros Transtornos Psicóticos. In:
________. O Manual de Diagnóstico e
Estatística dos Transtornos Mentais.
American Psychiatnc Association.
[Tradução: Maria Inês Corrêa Nascimento...
et al]. Porto Alegre: Artmed, 2014.
FREUD, Sigmund. A perda da realidade
na neurose e na psicose. In: _______.O
Ego e o Id e outros trabalhos (1923-1925)
Edição Standard Brasileira das Obras
Completas de Sigmund Freud, vol. XIX.
Rio de Janeiro: Imago, 1996.
MÜLLER-GRANZOTTO, Marcos José;
MÜLLER-GRANZOTTO, Rosane Lorena.
Clínicas Gestálticas: Sentido ético, político
e antropológico da teoria do self. São
Paulo: Summus, 2012.
RIBEIRO, Walter. Existência essência.
São Paulo: Summus Editorial, 1998.
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