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co A ESCOLARIZAÇÃO DE
O
Q
CRIANÇAS PSICÓTICAS
Alfredo Jerusalinsky
TU)
orque deve haver escolas para ficativa, nas crianças psicóticas, a psi-
crianças psicóticas? Evidentemente, em- cose é indecidida. Aliás, é uma classifi-
bora de um modo interrogativo, esta- cação que estamos propondo: psicoses
mos fazendo uma afirmação: deve ha- indecididas como uma forma típica das
ver escolas para psicóticos. Isso quer psicoses na infância. Diferentemente do
dizer que não consideramos suficiente que acontece no sujeito adulto em
que existam hospitais-dia, instituições quem não há psicoses indecididas, essa
de internação parcial ou total, ou mes- parece ser uma formação psicopatológi-
mo consultórios para tratamentos am- ca própria da infância.
bulatoriais^. Dizíamos, então, que há uma pri-
É necessário que existam escolas. meira razão relativa às aprendizagens
Por que? Há pelo menos três razões. A dos psicóticos. Uma segunda razão, ou
primeira é a que se refere às condições um segundo grupo de razões, a
de aprendizagem ou às aprendizagens respeito da não decisão ainda da psi-
dos psicóticos. A segunda, é a que se cotização definitiva. E uma terceira
refere ao fato de que na infância a psi- razão de ordem social, que não por ser
cose, numa proporção muito significati- social é de menor importância para o
va, não está ainda totalmente decidida, sujeito psicótico individualmente con-
ou seja, numa proporção muito signi- siderado.
• Psicanalista Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre,
e da Association Freudienne Internationale. Diretor do Centro "Lydia Coriat"
de Porto Alegre e de Buenos Aires
SINCRONIA E DIACRONIA.
O INATO E O ADQUIRIDO
D
do a questão deste modo tão simples, para que não nos escape a
idéia fundamental. É claro, nessa frase, mamãe não é a mamãe de
carne e osso mas aquele agente que se encarrega de colocar em
ato isso que se chama discurso materno. É claro, também, que o
bebê não compreende em absoluto a extensão desse não, mas
padece de um modo sideral das conseqüências dessa negativa. A
que denominanos, então, discurso materno? O discurso materno é
aquele que opera a palavra de um modo tal que a torna capaz de
recortar o corpo da criança em pedacinhos, que lhe tira e "entres-
saca" pedaços. É claro, há maneiras mais cruéis e mais contempla-
tivas de fazer isso, há maneiras simbólicas de fazer isso ou ma-
neiras reais.
Não estranhem quando falamos de 'maneiras reais' porque há,
por exemplo, um caso extremo relatado por Jean Bergès que ilus-
tra esse modo real de produzir essa extração de pedaços, esse
recorte. Esse caso ocorreu quando uma mãe psicótica fez um bura-
co com uma faca no crânio de seu bebê. Curiosamente este bura-
co para ela teve um efeito 'normalizante' porque ela cumpriu a sua
função. É claro, a criança morreu, obviamente, mas ela experimen-
tou culpa. Ou seja, ela entrou no campo da castração, solicitou
castigo por seu ato e foi castigada. Cumpriu a prisão e saiu de lá
funcionando de um modo socialmente relativamente "normal".
Evidentemente tão psicótica quanto antes, mas estabeleceu através
deste ato sua simbolização da culpa e do castigo com uma metá-
fora que lhe serviu de referência possivelmente pelo resto da vida.
Continuou trabalhando, circulando socialmente, sob vigilância. Já
que ela foi parar, obviamente, em um hospital psiquiátrico regido
pelo sistema penal, um instituto psiquiátrico forense, e segura-
mente suas saídas periódicas foram autorizadas quando se com-
provou que não havia risco de periculosidade. Mas sempre foi uma
vida, digamos, vigiada^ .
Mencionamos este exemplo para que fique em evidência
como o discurso materno pode atravessar vicissitudes e operações
das mais estranhas. Quem trabalha com crianças com problemas
graves sabe que o discurso materno pode atravessar momentos de
crueldade impensáveis até nas maiores neuróticas.
Temos até aqui, então, que o discurso materno é aquele que
se exerce sob a forma de recortar o corpo da criança, recorte que
se opera dizendo não a esses pequenos objetos cuja extração, cuja
separação, será capaz de um modo imediato e direto de provocar
um esvaziamento ou uma falta. Discurso materno que é geralmente
muito mais exeqüível para a mulher, porque se os homens são
especialistas em prometer o que não têm (o falo), as mulheres são
especialistas em não dar o que têm (que obviamente não é o falo,
mas o real de seu corpo, que, no ato de negá-lo, se torna fálico).
Por essa razão, as mulheres instaladas do lado da feminilidade
exercem com muito maior comodidade isso que se chama o dis-
curso materno, por isso os homens estão sempre mais inclinados a
prometer e, por isso, exercem este dis- diz isso, começamos a registrar que
curso de um modo muito mais traba- algo nos faz falta. E por isso, quando
lhoso quando se vêem obrigados pelas fica restringida a possibilidade de sim-
circunstâncias a exercê-lo. O discurso bolizar essa falta um pouco mais longe
materno, precisamente, é aquele que que o cocô em si mesmo, que a voz em
diz não ao cocô, "cocô não", ou seja a si mesma, que o peito em si mesmo ou
instalação do controle esfincteriano, que o olho do outro em si mesmo^,
"xixi não", "peito não", "olhar não". É quando temos dificuldades de simbo-
por isso que esses pequenos objetos - lizar isso a uma certa distancia do obje-
as fezes, os excrementos, o olhar, a voz to real, então nos precipitamos na difi-
- se recortam e se destacam. Escutar culdade de manejar esses objetos no
não, já que tem coisas que a criança campo do discurso, ou gozamos sim-
não deve ouvir; olhar não, pois o olhar plesmente manejando esses objetos tal
está interditado, sendo o melhor exem- como eles são. Eis aqui o ABC da psi-
plo disso o fato de todos estarmos vesti- copatologia. E se não se procede ao
dos. deciframento desse núcleo fundamental
Somente quando alguém toma a da inscrição, a psicose e o autismo vão
seu cargo dizer não, estes pequenos permanecer no terreno mítico onde as
objetos adquirem a sua relevância. É operações de tentativa de cura nada
por isso, precisamente, que as fezes, a têm a ver com a restituição de um su-
voz, o olhar, o peito têm tanta relevân- jeito. E tampouco vai-se entender por
cia para nós, os humanos. Tanta re- que uma criança psicótica brinca com
levância que quando alguma coisa falha as suas fezes e faz quadrinhos no ba-
do ponto de vista do funcionamento nheiro, por que um pequeno bebê faz
mental, com bastante precipitação, com bolhas de saliva, ou a importância de
muita freqüência e muito rapidamente um autista brincar com a sua baba, ou
essa falha começa a se exprimir nas difi- ainda por que os garotos se esforçam
culdades de manejar esses objetos: se em descrever pequenas acrobacias com
perde o controle esfincteriano, se urina o jato de urina.
onde não se deve e se fala ou se escu- Vejamos a esse respeito uma situa-
ta o que não está aí, se escutam vozes, ção clínica: trata-se de um paciente que
se vê alucinatoriamente o que não está começou sua terapia aos quatro anos de
aí, ou se espreita compulsoriamente o idade, e que aos seis anos atravessou
que não se permite ver. uma fase que me obrigava a passar a
mangueira no pátio da clínica cada vez
que terminava a sessão porque ele en-
OS PEQUENOS cerava o pátio da clínica com o seu
OBJETOS DOS SINTOMAS cocô. Por sinal a atendente se negava
PSICÓTICOS. absolutamente a lavar esa sujeira, na
medida em que ela não compreendia
em absoluto porque que eu suportava
Estes pequenos objetos, Lacan os
isso. Mulher enérgica e decidida, inter-
chama de objetos pequenos a, recortes
pretava minha tolerância como um
que representam o modo que os huma-
signo de debilidade. Mais ainda, ofere-
nos têm de registrar a falta do objeto. Já
ceu-se repetidas vezes para "acabar
que não temos outro, temos esse, pre-
com essa porqueira em dois toques".
cisamos de uma mamãe que nos diga
Indagada acerca desses "dois Toques",
"cocô não", "peito não", "olhar não".
ela os especificava: primeiro chamar a
Então, quando temos uma mãe que nos
mãe para limpar, segundo fazê-lo autistas à escola ou a uma clínica. Essa
limpar junto com a mãe. Mal suspeitava primeira tarefa está ainda a ser cumpri-
a prestativa atendente que meu paci- da. Com a desvantagem de que a cri-
ente podia suportar a 'perda' de seu ança já padeceu "destempos" nos tem-
objeto (o cocô) na medida em que esse pos da tentativa de uma inscrição.
amplo espaço de acolhimento que a Justamente todo mundo sabe que a
clínica representava ficasse recoberto oportunidade da mamãe dizer que não
por ele. Uma equação simples, ainda a essas pequenas coisas não é in-
que malcheirosa: ficar envolvido pelo diferente, ela não pode dizer isso em
pedaço de seu corpo que se desprendia qualquer momento. Não pode introduzir
dele, já que nenhum outro se consti- esse "não" em qualquer circunstância ou
tuirá ainda como representante desses em qualquer momento porque depende
objetos, nem como seu depositário sim- de que série e em que circunstância
bólico. A atendente confiava na sua esse "não" é introduzido, o efeito que
eficácia pedagógica. Nós sabíamos que isto irá causar. Por isso as mães são
o menino, todo ele, representava uma extremamente cuidadosas no modo e
sujeira para seus pais. Essa sujeira ope- no momento de introduzir esse 'não'. E
rava como seu nome: um ato simbólico de forma alguma porque saibam de teo-
que, se fosse tomado como real, elimi- ria psicanalítica, mas porque há um
naria uma das poucas chances que tín- saber inconsciente que as orienta.
hamos de situar a palavra na dimensão
real da pulsão: no seu valor de inscrição
no corpo. Por isso, continuamos por O DIALETO ÍNTIMO
alguns meses limpando o pátio com a E O NOME-DO-PAI
mangueira no fim das sessões. Eviden-
temente, ela não sabia - nem era exigí- Nós, os terapeutas, não operamos
vel que o soubesse - o que é uma ins- de modo igual ao das mães, mas temos
crição. E muito menos que ela requer que nos inspirar no discurso materno
três tempos e não 'dois toques': pri- pelo menos quando registramos que as
meiro tempo, tomar os atos como sim- inscrições primordiais faltam, ou não
bólicos; segundo tempo, instalar a pala- estão constituídas ou estão falhas. Se
vra no real do corpo; terceiro tempo, não se constitui essa inscrição primordi-
referir essa palavra, no seu valor signi- al, esta série de inscrições primordiais,
ficante (como representante não repre- não virá a se constituir na criança um
sentativo desse recorte no corpo, dessa lugar para falar. Essa série de recortes
falta), ao discurso. tem um registro tão delicado na instân-
A atendente pressupunha já cum- cia da letra que cada família tem seu
prida a operação habitualmente a cargo sistema de nomes, um dialeto íntimo. E
do Outro Primordial (neste caso a mãe). até no discurso social, como bem se
E, a partir desse suposto, deduzia que a sabe, existe uma terminologia reservada
operação seguinte deveria ser pedagó- para essas operações de diferenciação
gica, o que no caso de ser verdadeira pulsional: o pinto, a perereca, o bum-
sua pressuposição, seria totalmente cor- bum, o popô e todas essas simpáticas
reto. Ocorre que é assim que chegam as palavrinhas, esses nomes que são extre-
crianças normalmente neuróticas à mamente relevantes e que são o melhor
escola: assujeitadas a uma inscrição exemplo do que é o Nome do Pai.
simbolicamente eficaz. Mas não é assim Vejam só a que fica reduzido o Nome
que chegam as crianças psicóticas ou do Pai: bumbum, cocô, popô, pipi, pe-
rereca, pinto, xexeca, etc.. Não é por acaso que Melanie Klein, que
costumava ter uma única entrevista inicial com os pais da criança
que analisava e depois nunca mais voltava a vê-los, nessa entrevista
inicial perguntava à mãe quais eram os nomes que familiarmente
se davam a essas partes do corpo ou aos excrementos, a todos
esses pequenos objetos. Isso quer dizer que ela, sem ter uma teo-
ria sobre o Nome do Pai nem sobre o discurso materno, (porque
ela certamente tinha uma teoria sobre a relação de objeto mas não
sobre o discurso materno nem sobre o Nome do Pai), ela, intuiti-
vamente, por sua sensibilidade clínica, apesar da dificuldade de
leitura teórica, registrava que esses pequenos significantes eram
extremamente importantes porque eles eram representantes dessas
inscrições primordiais.
Dito de outro modo, não há nome próprio sem popô, sem
xixi, sem perereca, ou sem pinto, e não porque se tenha um ou
uma mas porque designa o que se tem em oposição ao que não se
tem, marca a diferença. Se não fosse por esses pequnos 'mar-
cadores' no corpo, o patronímico não quereria dizer nada. Em-
bora o nome que se coloca se coloque arbitrariamente, o próprio
nome não é a primeira palavra que uma criança pronuncia. Ge-
ralmente é outra palavra: mamãe , dadá, o nome de um irmão ou,
às vezes de seu terapeuta e, muito rapidamente, o nome desses
pequenos objetos porque eles estão associados de modo muito
próximo a esses significantes primordiais do Nome-do-Pai, formam
parte dessa constelação denominada Nome-do-Pai, e se chamam
assim porque esses significantes suportam a parte mais pesada da
função paterna, ou seja, o trabalho de separar pedaços do corpo
para lançar ao sujeito a sua simbolização. Separa o cocô do bum-
bum para lançar o sujeito para simbolizar o cocô.
AS EQUAÇÕES FREUDIANAS E
A SUBSTITUIÇÃO DE OBJETO.
DE C O M O UM FALSO IGUALITARISMO
PODE ACABAR EM SEGREGAÇÃO
Preferimos falar agora da terceira razão antes da segunda,
para faciliatar nossa demonstração. Essa terceira razão, que qualifi-
camos como de ordem social, é relativamente simples. Lembremos,
para começar, que o hospital psiquiátrico é a estação final do trem
da psicoses. Nós, terapeutas, tentamos sempre que o psicótico
desembarque antes de chegar à parada final, mas que ele consiga
ou não fazê-lo depende de muitas circunstâncias (o unwelt, na
denominação de S. Freud), mas também, e fundamentalmente, do
modo como foram realizadas aquelas inscrições originárias, do
modo como elas vieram ou não a se confirmar na adolescência. E,
do ângulo terapêutico, depende da possibilidade de nós en-
contrarmos alguma maneira de mudar algo na posição fantasmáti-
ca que esteve reservada a esse filho no discurso parental, durante
o transcurso de sua infância. Se conseguirmos mudar a posição fan-
tasmática que esse filho ocupa no discurso parental, teremos uma
grande chance de que ele desembarque em grupos de crianças menores do que
bem antes dessa parada final, seja elas, em função dessa suposta equiva-
porque a sua estrutura se transformou e lência entre crianças de quatro anos
ele deixou, então, de ser psicótico - o com características autísticas e portanto
que em alguns casos, antes da puber- com perturbações no seu desenvolvi-
dade, é possível - , seja porque sua psi- mento, e crianças, por exemplo, de dois
cose se articulou de um modq tal que anos com caraterísticas neuróticas nor-
não o impede de funcionar social- mais. Os indubitáveis benefícios desse
mente. Essas opções - que não são convívio podem se anular na medida
fáceis de se produzirem - poderão per- em que tal prática fique ao serviço de
mitir-lhe descer do trem que conduz os mascarar a patologia em curso e, com
psicóticos ao exílio manicomial antes isso, a criança fique subtraída à inter-
de chegar ao fim da linha. venção clínica imprescindível, prolon-
Quando uma criança é pequena e gando desse modo o retardo em sua
é psicótica, as insuficiências simbólicas estruturação psíquica, cultivando um a-
ou as restrições de simbolização (origi- diamento que pode acabar no cancela-
nadas na forclusão, parcial ou total da mento definitivo da sua possibilidade
Função Paterna) que caracterizam a sua de compartilhar o discurso social.
psicose, confundem-se ou tendem a se Os benefícios desse convívio se
confundir com as insuficiências das a- derivam do fato de que as crianças
prendizagens, sobre tudo nas crianças neuróticas oferecem chances às psicóti-
pequenas. Que uma criança não saiba cas, às vezes pela via do mimetismo, às
fazer isto ou aquilo ou que não consiga vezes pela via da identificação, de to-
articular sua relação com o outro, isto mar alguns traços circulantes no discur-
tende a ser indistintamente explicado so grupai para articular formas de sim-
por ela ser ainda pequena e não pela bolização, metáforas não paternas, que
sua psicose. Assim, é comum que algo lhes permitam participar da vida social
que não é próprio da condição de de um modo um pouco mais plástico.
infans, de não falante - por exemplo, Isto de fato acontece, ainda que não
uma criança de quatro anos que não sempre, pois depende do grau de isola-
fala - seja tomado como equivalente à mento. Isto quer dizer que não se pode
condição de infans de uma criança de generalizar, como uma prescrição uni-
um ano e meio que ainda não fala. versal, para que todas as crianças autis-
Como, além do mais, geralmente a cri- tas ou psicóticas freqüentem o jardim
ança psicótica de três ou quatro anos comum. Certamente há crianças autistas
faz cocô nas calças e usa fraldas, ou não que podem ficar completamente perdi-
pasou do alimento líquido ao sólido, ou das e brutalmente isoladas, na ausência
não consegue se distanciar da mãe, etc, de alguém que possa se dedicar exclu-
há uma tendência em se estabelecer sivamente a elas. Mas há uma série de
uma série de equivalências entre essa crianças psicóticas e alguns pós autistas
criança e o infans. Em outros termos, que, graças a intervenções clínicas pre-
suas manifestações psicóticas são con- coces, conquistam uma possibilidade
fundidas com expressões normais de de aproveitar de uma certa convivência,
um bebê que, na realidade, já não mais de uma certa identificação que, ainda
existe. que contingente, lhes permite circular
Paradoxalmente, isto permite que socialmente. As marcas residuais dessa
muitas crianças psicóticas e autistas fre- experiência de confronto com um dis-
qüentem as escolas comuns enturmadas curso que não faz deles objetos de
exclusão (no autismo), ou pertencimen- numa instituição na qual trabalhamos:
to fálico do Outro Primordial (nas psi- um adolescente psicótico de dezoito
coses), tendem a constituir uma espécie anos com uma posição completamente
de reservatório de significantes que fun- infantil, completamente apaixonado por
cionam de modo diferente daqueles até uma terapeuta ocupacional, perseguiu-
ali inscritos, o que permite sua imple- a, sem roupa, pelo corredor. Então, ela
mentação para o processo de recupe- perguntou, na supervisão de equipe:
ração, e que funcionam como verda- "Até onde devemos suportar ?"
deiros pontais na direção da cura. Em- Bom, eis aqui o problema do limi-
bora as significações possam continuar te que, por sinal, não é meramente o
determinadas pela forclusão, esse con- problema de por limites, de dizer não,
tato com um mundo significante que mas de resolver em que situação esse
funciona na referência a um pai (seja lá limite deve ser colocado para que cum-
qual for), parece funcionar, nas crianças pra alguma função de transformação de
psicóticas, como uma janela de luz uma coisa em outra coisa. Se não for
aberta nessas trevas exteriores em que assim, não é no sentido próprio um li-
foi lançado aquele significante primor- mite. D.W.Winnicott dizia que o limite é
dial que fora rechaçado^ . o que transforma uma coisa em outra
Até aí, então, socialmente não ha- coisa, senão não constitui limite mas
veria razão para que houvesse escolas somente uma imposição. Nesse ponto
para psicóticos, e sim exatamente o ele tinha toda razão. Ou seja, não é sim-
contrário. Porém, quando chegamos à plesmente dizer que não, porque se dis-
adolescência a coisa se complica. To- sermos simplesmente não, a coisa (no
mamos a adolescência porque é o outro sentido propriamente freudiano) con-
extremo da situação. A coisa se compli- tinua a mesma, e, por tanto, teremos
ca precisamente porque se o psicótico que continuar a dizer que não o tempo
que foi psicótico sempre, desde criança, todo, ou ter um cassetete na mão.
ou o autista que foi autista desde cri- As questões se complicam na ado-
ança e que agora é um pós autista ou lescência por esse motivo: porque já
um psicótico, se eles vão produzir seus não é mais possível tomar esses atos
atos como infans ainda, seus atos não como brincadeira, ainda que quem os
serão tomados como os de uma criança execute os conserve no campo de uma
pelo discurso social. Dito de outro relação infantil do significante com o
modo, se uma criança de três anos r e a l ^ . Estamos falando até agora
abaixa as calças no pátio, é uma brin- daqueles que foram reconhecidos como
cadeira infantil, mas se um psicótico de psicóticos desde muito cedo, que atra-
dezoito anos faz a mesma coisa, do vessaram sua infância como psicóticos,
ponto de vista do discurso social isto já muitos deles encefalopatas, com pro-
não é mais uma brincadeira. Ainda que blemas de lesões cerebrais, etc. Ainda
nós, terapeutas, sejamos capazes de quando se trata de sujeitos que estão
perceber quanto de infantil ainda resta nesta situação, a partir da conclusão da
nesse ato, nem mesmo as terapeutas puberdade e início da adolescência, se
mais heróicas suportam a perseguição suas formas psicóticas forem muito dis-
de seu excitado paciente de dezoito crepantes das formas que o discurso
anos pelo pátio da escolas. Estamos nos social suporta, ou seja, se tendem a
referindo a uma situação cômica que produzir situações que são tomadas
evocamos facilmente porque se trata, como atos reais pelo discurso social, as
no caso, de um acontecimento recente soluções terapêuticas que se abrem são
evidentemente as de internação, ou em porção, pela norma social. E efetiva-
casa ou no hospital psiquiátrico. Porque mente isso acaba tendo um efeito tera-
o jovem psicótico, com toda a sua apa- pêutico porque, do lado do discurso
rência civilizada, rodeado dos mais mo- social, cura esse discurso de seu horror
dernos conceitos de integração e não à psicose, ou cura, numa certa propor-
discriminação, tanto da parte de seus ção, às vezes mínima, às vezes maior, às
pais quanto dos terapeutas envolvidos, vezes num efeito apenas circunscrito à
andando pela rua vai levantar o dedo comunidade escolar ou ao bairro onde
na cara do boxeador que mora na es- a escola está, cura, dizíamos, um certo
quina e levar um soco que fará com número de preconceitos. Nesse sentido
que acabe no hospital, ou vai querer podemos lembar algumas experiências
parar o trânsito, brincando de policial, e das equipes de escolas para psicóticos
será atropelado por um carro, ou vai ou autistas, ou mesmo daquelas dedi-
andar nu e ser preso por atentado con- cadas aos deficientes mentais, quando
tra a moral. Então, para onde mandá-lo, saem a passear pelas vizinhanças com
qual é seu lugar? Se for parar no hos- seus paciente-alunos. Registra-se quase
pital psiquiátrico, estaria indo cedo invariavelmente um acolhimento pro-
demais porque na adolescência existem gressivo e uma crescente disponibili-
chances ainda, em função do caracter dade dos vizinhos para "ajudar" na tra-
re-fundante dos traumas próprios da balhosa tarefa de abrir brechas de
adolescência^ , de virem a se produzir comunicação dessas crianças ou adoles-
novas inscrições que modifiquem até centes com o âmbito social. A circu-
certo ponto o modo do funcionamento lação por pequenas lojas e "botecos", e
psicótico. até mesmo por prédios e casas de vizi-
nhos vai se tornando lentamente
viável A conquista de uma certa po-
A IMPORTÂNCIA DO pularidade aparece em nome do fato de
SIGNIFICANTE ESCOLA que "eles são os da escola aqui do
lado", e não há dúvida de que as rea-
É aí que a figura da escola vem a ções seriam muito diferentes se se trata
calhar porque a escola não é social- de "os do manicômio"; o significante,
mente um depósito como o hospital como sempre, pode se decisivo. Porque
psiquiátrico, a escola é um lugar para escola é coisa de criança, no final das
entrar e sair, é um lugar de trânsito. contas se esses meninos e meninas têm
Além do mais, do ponto de vista da re- problemas mas estão na escola, seus
presentação social, a escola é uma insti- atos viram artes. Se gritam demais, se se
tuição normal da sociedade, por onde aproximam demais, pulam demais, co-
circula, em certa proporção, a normali- mem demais, põem a mão onde não
dade social. Portanto alguém que fre- devem, são simplesmente meninos e
qüenta a escola se sente geralmente meninas, seguramente o são porque
mais reconhecido socialmente do que vão na escola. Quem sai do manicômio
aquele que não freqüenta. É assim que não tem esse benefício na leitura social.
muitos de nossos psicóticos púberes ou Essa razão social muito simples nos leva
adolescentes reclamam que querem ir à a pensar que é interessante que existam
escola como seus irmãos precisamente escolas para psicóticos.
porque isso funcionaria para eles como Agora vejamos a segunda razão. A
um signo de reconhecimento de serem segunda razão é do seguinte teor, é a
capazes de circular, numa certa pro- razão fundamental pela qual o trata-
mento de um psicótico tem que ser ne- e desajustes, e esse analista optou por
cessariamente interdisciplinar e não indicar aos pais que não era momento
multidisciplinar. A cura da psicose não propício para incorporá-lo na escolari-
pode passar exclusivamente nem pela dade. E isto permaneceu assim até o
psiquiatria, nem exclusivamente pela momento daquele relato, aos oito anos.
psicanálise, nem pela terapia ocupa- Ao terminar seu relato de um caso
cional, fonoaudiologia, nem exclusiva- psicanaliticamente tratado- sem dúvida
mente por lugar nenhum, nunca. Isso de modo brilhante, com interpretações
não quer dizer que um psicótico tenha invejáveis, que nós teríamos gostado
que ter quinze terapeutas. muito de ter feito - eu lhe perguntei: "e
ele vai à escola?" - uma pergunta ingê-
nua, inocente, sem nenhuma intenção
A FUNÇÃO COGNITIVA interpretativa. Pensei que ele ia respon-
N Ã O É AUTÔNOMA NEM der "sim, mas tem dificuldades...". Mas
não. O analista, como resposta, contou
AUTOMÁTICA isso: que ele tinha optado por contra-
indicar a freqüência à escola. Então eu
Dizíamos que a segunda razão pa-
indaguei: " bom, mas e a aprendizagem
ra a existência de escolas terapêuticas
dele?". Ele concluiu: "disso eu não me
para psicóticos reside num princípio da
ocupo". Eu compreendo isso, porque
cura. Vamos dar um exemplo para ficar
evidentemente não pode se ocupar de
mais claro. Uma vez um colega analista,
tudo, e além do mais, na posição trans-
que não trabalha de um modo interdis-
ferenciai de analista, ele não pode pro-
ciplinar e que trabalha com crianças,
duzir atos pedagógicos. Então ainda
me contou por generosidade, para fazer
insisto:" Mas eu não pergunto se você
um intercâmbio entre nós, um caso
se ocupa, eu pergunto se propõe que
muito interessante de um menino que
alguém se ocupe". E vem seu revide:
começou um tratamento com ele quan-
"Eu considero que a restituição da po-
do tinha quatro anos. Apresentava-se na
tencialidade simbólica, ou seja, a resti-
época com uma psicose e agora, nesse
tuição da posição de inscrição sucessiva
momento do relato, o menino já tinha
que lhe permita simbolizar é o funda-
oito anos e tinha deixado de ser psicóti-
mental, o resto vai crescendo. Minha
co. Essa última afirmação não é cem
resposta: "não, não vai crescer". Não é
por cento segura, já que teríamos que
uma derivação automática, porque o
esperar até adolescência para nos certi-
que durante oito anos ficou como saldo
ficarmos disto, mas poderíamos dizer
negativo na apropriação lógica do obje-
que era uma afirmação com boas chan-
to, este deficit lógico que se acumulou
ces de ser verdadeira. Pelo menos, cer-
durante oito anos não vai se saldar
tamente, o menino - ou melhor, o
automaticamente como num passe de
sujeito - aos oito anos não era o mesmo
mágica só pelo fato de ele agora dispor
que aos quatro. Evidentemente, dos
de uma posição que lhe permita sim-
quatro aos oito ele atravessou o mo-
bolizar. Ele vai ter que viver as exper-
mento de iniciação escolar com a idade
iências e passar pela experimentação
em que isso acontece. E efetivamente
que não atravessou, justamente porque
ele havia começado a ir à pré-escola,
não estava em condições de fazê-lo. E
não tinha ido antes a nenhum jardim de
se alguém não se ocupa de abrir-lhe
infância. Então, como era de se esperar,
caminho nessa direção, ele sozinho não
quando começou a freqüentar a pré-
vai poder. E, o que é ainda pior, vai
escola, apresentou muitas dificuldades
tropeçar com uma defasagem com relação às outras crianças de
oito anos. Uma defasagem que pode se tranformar numa ferida
narcísica, ou numa perda melancolizante. Porque ele vai tropeçar
com o fato de que o objeto do conhecimento, que seus pares con-
struíram nesses anos todos em que ele esteve dedicado a refazer
sua posição subjetiva, funciona para ele como um objeto definiti-
vamente perdido, já que essa desvantagem em relação aos outros
se lhe apresenta como se fosse irredutível. Ou seja, um objeto per-
dido que doravante vai acompanhá-lo sempre. A partir disto, ele
terá boas chances de se transformar num melancólico da apren-
dizagem, com as subseqüentes relações agressivas com os repre-
sentantes imaginários de sua perda, sejam eles objetos de conheci-
mento ou pessoas. Bem diferente seria sua situação se alguém
tivesse tido a paciência e dedicação de lhe ensinar na língua "es-
trangeira" que, por ser psicótico, ele falava. Nesse caso, os traços
residuais daquele objeto fragmentar de sua psicose, cultivados na
dimensão significante pelos mestres especializados, aquela lógica,
embora exercitada numa inevitável direção delirante ou autôni-
m a ^ , poderiam ser capturados no après coup dessa função sim-
bólica nele recentemente inaugurada. A sutura de sua desvan-
tagem em relação a seus pares seria, então, seguramente mais
provável. Esta é uma segunda e, em nosso parecer, decisiva razão
pela qual devem existir escolas para psicóticos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FREUD, Sigmund (1973). Un recuerdo infantil de Leonardo da Vinci. In-. Obras
completas, v.2, Madrid, Biblioteca Nueva [1910].
LACAN, Jacques (1981). Las Psicosis, Seminário III. Buenos Aires, Paidós.
5 Há pelo menos duas de suas obras que apontam nas direções aqui comen-
tadas: The variations of Animals and Plants under Domestication, del868, e
também The Expressions of the Emotions in Man and Animals, de 1872.
6 É plausível pensar que esta inquietação darwiniana tem sua origem nas
preocupações e na obra de seu avô Erasmus (1731-1802), médico, naturalista
e poeta inglês que sempre oscilou nos limites entre a ciência e a metafísica,
tentando explicar as relações entre a permanência e as mudanças no campo
biológico.
7 Note-se que, neste aspecto, tanto Lacan quanto Freud chegam bem mais
longe que J.Piaget no que se refere aos determinantes do pensamento no
sujeito, já que J. Piaget considera a herança somente nos seu desdobramentos
de geral e específica. Veja-se novamente PIAGET, Jean (1969). Biologia y
Conocimiento, op. cit.