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Outros llvros da FILõ

FILO a utê ntica

FILO FILOBATAILLE FILOESTETICA


Aideologiaeautopia O erotismo O belo autônomo
PaulRiceur Georges Bataille Textos clássicos de estética
O primado da percepção A parte maldita Rodrigo Duarte (org.)
e suas consequências Precedida de "A noção de O descredenciamento
filosóficas dispêndio" filosófico da arte
Maurice Merleau.Ponty Georges Bataille Arthur C. Danto
Relatar a si mesmo: Do sublime ao trágico
crÍtica da violência ética F!LõBENJAMIN Friedrich Schiller
Judith Butler
0 anjo da história lon

Alain Badiou
A teoria dos incorporais Platão
Walter Benjamin
no estoicismo antigo Pensar a imagem
Emile Brehier Baudelaire e a
modernidade EmmanuelAlloa (0r9.)
A sabedoria trágica Walter Benjamin
Sobre o bom uso de Nietzsche
Michel)nfray lmagens de pensamento
Sobre o haxixe e
FILõMARGENS A aventura da
outras drogas 0 amor impiedoso
FILOAGAMBEN

Bartleby, ou da contingência
Walter Benjamin

Origem do drama trágico


(ou: Sobre a crenÇa)
Slavoj iiiek filosofia francesa
alemão Estilo e verdade em
Giorgio Agamben
seguido de
Walter Benjamin
Jacques Lacan
Gilson lannini
NO SCCUIO XX
Bartleby, o escrevente Rua de mão única
InÍância berlinense: 1900 lntrodução a Foucault
Herman Melville
Edgardo Castro
Walter Benjamin
A comunidade que vem ACRESCIDO DE
Kafka
Giorgio Agamben Por uma literatura menor
0 homem sem conteúdo FILOESPINOSA Gilles Deleuze
Herois do Panteão: Lacan e Derrida
Giorgio Agamben Félix Guattari
Breve tratado de Deus,
ldeia da prosa do homem e do seu Lacan, o escrito, a imagem
Giorgio Agamben bem-estar Jacques Aubert, Francois Cheng,
Espinosa Jean-Claude Milner, François
lntrodução a Giorgio Agamben Regnault, Gérard Wajcman
Uma arqueologia da potência Principios da filosofia
Edgardo Castro cartesiana e Pensamentos O sofrimento de Deus
metafísicos lnversões do Apocalipse
Meios sem fim Espinosa
Notas sobre a política Boris Gunjevic
Giorgio Agamben A unidade do corpo Slavoj Ziiek
e da mente
Nudez Afetos, acões e paixões em ANTIFILõ
Giorgio Agamben
Espinosa
A Razão TraduÇão
A potência do pensamento Chantal Jaquet
Ensaios e conferências Pascal Quignard Antônio Teixeira
Giorgio Agamben
Gilson lannini
t nl ,ylrllrl rCt l,r l,tlrrrr;rrr l'rlrlrorr,,,rOl,,
( ,pyrrrllrl rlr' "l,rrt1rrr,', l,rt,rrr(l'it0 l l(}t.il)" ('"l(r((lu('\
Dt,r rrtl.r (1c)30-.r004),,rrr. Sumário
l\,lrl lt,trtlltt'orr ltor l,rlrl «.)) l,t l,l[)n(lti('-[«litiorrs 200g
t opyrrr;ltt (r) .)01'r Autêrrtica Lditora

I Ítulo original. L' aventure de la philosophie française depouis les annees 1960

Todos os direitos reservados pela Autêntica Editora. Nenhuma parte desta publicação
poderá ser reproduzida, seja por meios mecânicos, eletrônicos, seja via cópia
xerográfica, sem a autorizaçáo prévia da Editora.

FItÔ
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Gilsonlannini Cecília Martins
CONSELHO EDITOR|AL
REVTSÃO
Gilson lannini(UFOP); Barbara Cassrn (paris); Aline Sobreira
Cláudio Oliveira (UFF); Danilo Marcondes
(PUC-Rio);ErnaniChaves(Urpn); Guilherme PRorEroGRÁFrco
7. Prefácio
Diogo Droschi
caste/o Branco(uFRi);/oao Cartos salles
(UFBA); Monique David-Menard (Paris); cAPA
21. Gilles Deleuze. Sobre A dobra:
Olímpio Pimenta (UFOP); Pedro Süssekind Alberto Bittencourt (sobre foto de Leibniz e o barroco
(UFF); Rogerio Lopes (UFMG); Rodrigo Duarte Siren-Com - <https://goo.gl/GY0YcF>)
(UFMG); Romero Alves Freitas (UFOp); S/avq
DTAGRAMAÇAo 45. Alexandre Kojàve. Hegel na França
ZiZek (ttubliana); Vtadimir Safatle (USp) Jairo Alvarenga Fonseca
EDIToRA RESPoNSÁVEL 53. Há uma teoria do sujeito em Canguilhem?
Rejane Dias
67. 0 sujeito suposto cristão de Paul Riceur
Dados lnternacionais de Catalogação na publicação (Clp) 83. Jean-Pau I Sartre. Encantamento,
(Câmara Brasileira do Livro, SB Brasil) -
desencanto, fidelidade
Badiou, Alain 95. Louis Althusser. O (re)começo
A aventura da filosofia francesa no século XX/Alain Badiou tradução
;
Antônio Teixeira, Gilson lannini. -- i. ed. -- Belo Horizonte : Autêntrca
do materialismo histórico
Editora, 2015.
l2l. Jean-François Lyotard. Cusúos, quid noctís?
TÍtulo original: L'aventure de la philosophie française depouis
années 1960.
les
137. Françoise Proust. O tom da história
rsBN 978-85-821 7 -565- 1
149. Jean-Luc Nancy. A oferenda reservada
1. Filosofia - França - História 2. Filosofia francesa l. Título.
163. Barbara Cassin. Logologia contra ontologia
15-05327 cDD_194
175. Jacques Ranciàre. Saber e poder depois
índices para catálogo sistemático:
1 . Filosofia francesa 194
da tempestade

Heróis do Panteão
@ "oupo aurÊNncA 205. Jacques Lacan (1901-1981)
Belo Horizonte Rio de Janeiro São Paulo
209. Jacques Derrida (1930-2004)
Rua Aimorés, andar
98,l, 8o Rua Debret, 23, sala 401 Av. Paulista, 2.073,
Funcionários .30140-071 Centro . 20030_090 Conjunto Nacional, Horsa I
219. Origem dos textos
Belo Horizonte . MG
Tel.: (55 31) 3214 5700
Rio de Janeiro .
Tet.: (55 21)
RJ

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São Paulo . SP
Tt'levendas: 0800 283 13 22
Tel.: (55 11) 3034 4468
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Pretácio

Este livro é constituído por um conjunto de textos cujo úni-


co ponto em comum é o fato de versarem sobre filósofos de língua
francesa que podemos declarar contemporâneos. "Contemporâneo"
significa, nesse caso, que o essencial de sua obra foi publicado no
período que recobre a segunda metade do século XX e alguns anos
do presente século.
Não se trata de modo algum de uma seleção racional, de uma
rede constituída de preferências, de uma antologia. Não. Tüdo isso
está ligado a circunstâncias particulares, e a contingência reina de tal
modo que foram excluídos desse conjunto outros textos, do mesmo
estatuto (sobre filósofos franceses contemporâneos), publicados, pela
mesma editora, com o título de Petit panthéon portatif.l Solicito ao leitor
que tome o presente livro e o Petit panthéon como um conjunto único.
Existem ainda, aqui e ali, outros textos do mesmo campo, que
certamente ressurgirão um dia. Autores sobre os quais escrevi de ma-
neira muito breve, ou muito esotérica, ou em revistas inencontráveis,
ou segundo um impulso que não reconheço mais, ou em um contexto
que exigiria precisar melhor, ou segundo uma dinâmica muito alusiva,
ou sem levar em consideração obras posteriores que alteraram meu juízo,

I A presente edição inclui dois artigos extraídos do Petit panthéon, o artigo sobre
Lacan e o sobre Derrida, apresentados ao final deste volume. O referido livro,
como afirma o autor em sua introdução, por pouco não recebeu o título de Oraçr)t'.s
fúnebres, porque é constituído de necrológios em homenagem a alguns dos nreis
importantes pensadores franceses do século XX. (N.T.)
()t1... (lt1('s('l ('tl? llttt sttttt,t, ('rrt't't'ss;ir-io t't'r't.ull(.nt(.(11(.
1.:r l;rttlritlttc l\r'lcrttIrtt'nt()s,rlgtnts nr.lr'('()s r)otirrros. ( ) sr'r t'rt ntttltt. oIrr'.r ltrrr
l)t'('[)ilr(', tlclltlis tltl prcsctrtc livro e rkl /)r'tit ltotttlt(ott,uln ter(:ciro [.rrr., tlrttttt'trt:rl tlr'S;tt'tt'c, sur-sc cnl l()-+3, c o últirrro livnl dc l)clctvc, ()
cltre aborclarír, clltre outros
- e para citar apenas os "antigos,, cuja obra tlut't",r.lilosttlit?, rl:rta cle 1991. E,ntre Sartre e l)eleuze, podentos, ern
está anradurecida, estabilizada, ou que morreram cedo demais
-, Gilles totkl caso, r)olllear IJachelard, Merleau-Ponty, Lévi-Strauss, Althusser,
châtelet, Monique David-Ménard, Stéphane Douailler, Lucarr, Fc>ucault, Lyotard, Derridr... Àr margens desse conjunto fecha-
Jean-claude
Milner, François Regnault, François'wahr... Depois, eu acabarei tendo ck>, e abrindo-o até os dias de hoje, podemos citar Jean-Luc Nancy,
escrito, aqui e a1i, sobre a importante e notável turba dos ..jovens,,, os
l'hilippe Lacoue-Labarthe, Jacques Ranciêre, eu próprio... É essa lista
filósofos de 45 anos ou um pouco menos (em filos ofta a maturidade
de autores e de obras que chamo de "filosofia francesa contemporâ-
é tardia).
nea" e que constitui na minha opinião um momento filosófico novo,
Mesmo havendo aparência de panoraÍÍra, vê-se que, na verdade,
criador, singular e universal ao mesmo tempo.
é apenas work in progress.
O problerna ê identiÍicar esse conjunto. O que aconteceu em torno
Para compensar o disparate e a contingência de tudo isso, gostaria
dessa qlrtnzena de nomes próprios que citei? O que se chamou (o "se"
de me dedicar a algumas considerações sobre o que convém chamar
de são frequentemente os intelectuais norte-americanos), nessa ordem, de
"filosofia francesa", atnda que esse sintagma possa aparecü contradi-
existencialismo, estruturalismo, desconstrucionismo, pós-modernismo,
tório (a filosofia é universal ou não é filosofia), chauvinisra (o adjetivo realismo especulativo? Há uma unidade histórica e intelectual desse
"francês" vale alguma coisa hoje em dia?); ao mesmo tempo imperialista
momento? Qual?
(então, ocidentocentrismo ainda?) e antiamericano (o ',
french toutch,, Vou proceder a essa investigação em quatro tempos. Primeiro, a
contra o academicismo analítico dos departamentos de filosofia nas questão da origem: de onde vem esse momento? Qual é sua genealogia?
universidades angloÍônicas).
Qual ó sua certidão de nascimento? Em seguida, tentarei identrfrcar
Sem atentar contra a vocação universal da filosofia, da qual sou
as operações filosóficds que the são próprias. Em terceiro lugar, abordarei
um defensor sistemâtrco, é forçoso constatar que seu desenvolvimento
uma questão fundamental, que é a ligação entre Jilosofio , literatura nessa
histórico comporta descontinuidades no tempo e no espaço. Retoman-
sequência. Enfim, falarei da discussão constante, durante todo esse pe-
do uma expressão à qual Frédéric-worms deu pleno sentido, é preciso
ríodo, entre afilosofia e a psicanálise.
reconhecer que existem momentos da filosofi a,Tocalízações particulares
Para pensar a origem do momento filosófico francês da segun-
da inventividade com ressonância universal de que ela ê capaz.
da metade do século XX, é preciso remontar ao início do século,
Tomemos como exemplos dois momentos filosóficos particular-
quando começam a se constituir na filosofra francesa duas correntes
mente intensos e identificados. Primeiro, o da filosofia grega clássica,
verdadeiramente diferentes. Algumas indicações: em 191.1., Bergson
entre Parmênides e Aristóteles, do século v a.C. ao III â.C., momento
faz duas conferências muito cólebres em Oxford, publicadas em se-
filosófico criador, fundador, excepcional e, afinal, bastante curto no
guida na compilação O pensamento e o mouente. Em 1912, sai o livro
tempo. Em seguida, o momento do idealismo alemão, de Kant a Hegel,
de Brunschvicg, com o título Etapas da filosofia matemática. Essas duas
incluindo Fichte e Schelling: ainda um momento filosófico excepcional,
intervenções (exatamente antes da guerra de 191,4-1918, o que não é
entre o fim do século xvIII e o início do século xlx, um momento
indiferente) fixam orientações inteiramente opostas para o pensamento,
intenso, criador e que durou apenas algumas décadas.
pelo menos na aparência. Bergson propõe uma filosofia da interioridade
Digamos, pois, que vou batrzar provisoriamente de ,.filosofia
vital, que subsume a tese ontológica de uma identidade do ser e da
Írancesa contemporânea" o momento filosófico na França que, situado
mudança apoiada na biologia moderna. Essa orientação será seguida
essencialmente na segunda metade do século XX, deixa-se comparar,
durante todo o século, atê Deleuze, inclusive. Brunschvicg propõe
por sua amplitude e por sua novidade, tanto ao momento grego clássico
uma filosofia do conceito, ou mais exatamente da intuição conceitual
quanto ao monlento do idealismo alemão. (oximoro Gcundo desde Descartes), apoiada nas matemáticas, cluc

rtõ ALAIN BADIOU A AVENTURA DA FILOSOFIA FRANCESA


descreve a constituição histórica dos sirnbolisrnos nos clueis .rs inttriçr)cs ,ltt'ts.rr) nr('\rrr.r, i' trrrr.r tlrvrs.io tl.r ltt.r'.ut\'it ('itrtt.si:rrr:r. I)t.st';rltt.s i', ,ro
conceituais fundamentais são, de alguma forma, recolhidas. Tanrbénr nr('srtto tr'nll)(). unr tc(irir'o rkl c()r[)() fisico, rl«l rrnirrrll-rnltltrinl, c uln
essa orientação, que enoda a intuição subjetiva aos formalismos sinr- tcrit-tt'o tllt rcHcxio pttrrt. E,le se itrteressa, pois, sinrultaneanrente pela
bólicos, continuou durante todo o século, com Lévi-Strauss, Althusser f-ísicl rlus coisrts e pela nretafísica do sujeito. Há textos sobre f)escar-
ou Lacan na margem mais "científica", Derrida ou Lyotard na margenl tcs clc tock>s os grandes filósofos contemporâneos . Lacan chegou até
mais "attisttca". nlesrno a lançar a palavra de ordem de um retorno a Descartes. Há
Temos, pois, no início do século o que eu chamaria de uma figura unr notável artigo de Sartre sobre a liberdade em Descartes, há uma
dividida e dialética da filosofia francesa. De um lado, uma filosofia da teÍ7az hostilidade de Deleuze com relação a Descartes, há um conflito
vida; de outro, para abreviar, uma filosofia do conceito. E esse proble- entre Foucault e Derrida a propósito de Descartes, há, definitivamente,
ma, vicla e/ou conceito, será o problenla central da filosofia francesa, tantos Descartes quanto há filósofos franceses na segunda metade do
inclusive no momento filosófico de que se trata aqui. século XX.
Essa discussão a propósito de vida e conceito se abre finalmente A questão da origem nos dá, pois, uma primeira definição do
sobre a questão do sujeito, que organrza todo o período. Por quê? momento filosófico que nos interessa: uma batalha em torno da noção
Porque um sujeito humano é ao mesmo tempo um corpo vivo e um de sujeito, que frequentemente toma a forma de uma controvérsia
criador de conceitos. O sujeito é a parte comum às duas orientações: quanto à herança cartesiana.
ele é interrogado quanto à sua vida subjetiva, sua vida animal, sua
vida orgânica; e é igualmente interrogado quanto ao seu pensamento, Passando agora às operações intelectuais que podem identificar nosso
sua capacidade criadora, sua capacidade de abstração. A relação entre momento filosófico, eu me contentarei com alguns exemplos que mos-
corpo e ideia, entre vida e conceito organi za de modo conflitante o tram principalmente a "maneira" de fazer da filosofia, que podemos
devir da filosofia francesa em torno da noção de sujeito - algumas vezes chamar de operações metódicas.
sob outros vocábulos -, e esse conflito está presente desde o início do A primeira operação ê uma operação alemã, ou uma operação
século com Bergson de um lado e Brunschvicg de outro. francesa que incide sobre um corpu.s extraído dos filósofos alemães.
Muito rapidamente, dou algumas indicações: o sujeito como cons- Com efeito, duplicando a discussão acerca da herança cartesiana, toda
ciência intencional é uma noção crucial para Sartre e para Merleau- a filosofia francesa da segunda metade do século XX é, na realidade,
Ponty. Althusser, ao contrârro, define a história como um processo sem uma discussão acerca da herança alemã. Flouve momentos fundamen-
sujeito e define o sujeito como uma categoria ideológica. Derrida, Íta tais dessa discussão, por exemplo, o seminário de Kojàve sobre Hegel,
descendência de Heidegger, considera o sujeito como unla categoria que Lacan acompanhou e que marcou Lévi-Strauss. Houve também
metafisic a; Lacan cria um novo conceito de sujeito , cuja constituição a descoberta da fenomenologia pelos jovens filósofos franceses dos
é a divisão original, a clivagem; para Lyotard, o sujeito é o sujeito da anos 1930 e 1940. Sartre, por exemplo, modificou completamente
enunciação, de tal modo que em última instância ele deve responder sua perspectiva quando, durante uma temporada em Berlim, leu as
por ela diante da Lei; paraLardreau, o sujeito ó isso acerca de que, ou obras de Husserl e de Heidegger diretarnente no texto. Derrida é,
de quem, pode ocorrer o afeto da piedade; para mim, não há sujeito de saída e antes de tudo, um intérprete absolutamente original do
senão de um processo de verdade, etc. pensamento alemão. E depois há Nietzsche, filósoío fundamental
Notemos, ainda nesse tópico das origens, que poderíamos remon- tanto para Foucault quanto para Deleuze. Pessoas tão diGrentes
tar a mais longe e drzer, no fim das contas, que há aqui uma herança quanto Lyotard, Lardreau, Deleuze ou Lacan, todos escreveram
de Descartes, que a filosofia francesa da segunda metade do século é cnsaios sobre Kant. Podemos dizer, então, que os franceses foram
uma imensa discussão sobre Descartes. Porque Descartes é o inventor buscar alguma coisa na Alemanha, nutrindo-se do vasto corpus qrle
filosófrco da categoria de sujeito, e o destino da filosofia francesa, sua vai de Kant a Heidegger.

10 rtt-õ ALAIN BADIOU A AVENTURA DA FILOSOFIA FRANCESA t1


O que a frlosofra francesa fbi buscur rr:r Alcrrt:rrrlrl? l)otlctnos tlttt'st.to l)olitrr,r: S.rrlrt., o Mt'r'lt.,rtr l)orrty tlt.tlt.Pors tl.r gtrt.r-r..r, liotrt.,rtrlr.
resumi-lo em uma frase: uma nova relação entre o conceito c rr cxis- Altlrtrsst'r'. l)t'lt'trzt',,f.ttttlrct, [.:rrrlrcltr, l\:rrrcii'rc, []rlrrrçoisc l)«ltrst -
tência, que recebeu diversos nomes: desconstrução, existencialistno, [rt'rtt t'ottl() cu Ir)csnr() - filrartr ou são ativist:rs políticos. Assinr c]onlo
hermenêutica. Mas, através de todos esses nomes, há uma pesquisa ['rttst-:tvluu r)()s alctrtães Llr1la nova relação entre conceito e existência,
comum que é modificar, deslocar a relação entre o conceito e a exis- bttscavanr na política uma nova relação entre conceito e ação, em parti-
tência. Como, desde o início do século, a questão da filosofia francesa cttlar a ação coletiva. Esse desejo fundamental de engajar a filosofia nas
era vida e conceito, essa transformação existencial do pensamento, situações políticas foi animado pela busca de uma nova subjetividade,
essa relação do pensamento com seu solo vital interessava vivamente inclusive conceitual, que fosse homogênea à potente emergência dos
à filosofia francesr. É o que chamo de sua oper ação alemã: encontrar nrovimentos coletivos.
na filosofia alemã novas maneiras de tratar a relação entre conceito Chamarei de "moderno" meu último exemplo. I-Jma palavra de
e existência. Trata-se de uma operação porque essa filosofia alemã ordem: modernizar a filosofia. Antes mesmo que se fale todos os dias
tornou-se, em sua tradução francesa, no campo de batalha da filo- em modeÍnrzar a ação governamental (hoje em dia é preciso moder-
sofia francesa, uma coisa inteiramente nova. (Jma operação muito tTrzar tudo, o que frequentemente quer dtzer destruir tudo), houve
particular que foi, se posso drzê-lo, o uso repetido, no campo de nos filósofos franceses um profundo desejo de modernidade. Eles se
batalha francês da filosofia, de armas tiradas da filosofia alernã, com dispuseram a seguir de perto as transformações dos costumes. Flouve
finalidades estranhas às dela. um interesse filosófico muito forte pela pintura não figurativa, pela
A segunda operução, não menos importante, concernia à ciência. nova música, pelo teatro, pelo romance policial, pelo jazz, pelo cinema.
Os filósofos franceses da segunda metade do século quiseram arcar.car Flouve uma vontade de aproximar a fiIosofia do que havia de mais
a ciência do domínio estrito da filosofia do conhecimento. Tratava- denso no mundo moderno. Flouve também um interesse muito vivo
se de estabelecer que a ciência era mais vasta e mais profunda que a pela sexualidade, pelos novos estilos de vida. Houve igualmente uma
mera questão do conhecimento, que era preciso considerâ-la como espécie de paixão pelos formalismos da âlgebra ou da lógica. Por meio
uma atividade produtora, como uma crtação, e não apenas como uma de tudo isso, a filosofia procurava uma nova relação entre o conceito e
reflexão ou uma cognição. Eles quiseram encontrar na ciência modelos o movimento das formas: as formas artísticas, as novas configurações da
de invenção, de transform ação, para fi.nalmente inscrevê-la não na re- vida social, os estilos de vida, as formas sofisticadas das ciências literais.
velação dos fenômenos, na sua organização, mas como um exemplo de Com essa modermzação, os filósofos buscavam uma nova maneira de
atividade de pensamento e de atividade criadora cornparâvel à atividade se aproximar da criação das formas.
artística. Esse processo encontra sua plena reahzação em Deleuze, que Esse momento filosófico francês foi então, ao menos, uma nova
compara, de maneira muito sutil e íntima, crração ctentifica e criação apropriação do pensamento alemão, uma visão criadora da ciência,
artística; mas começa bem antes, como uma das operações constituti- uma radicalidade política, uma pesquisa de novas formas da arte e da
vas da filosofia francesa, de que dão testemunha, desde os anos 1930 e vida. E por meio de tudo isso, tratava-se de uma nova disposição do
1940, as obras, de impressionante originalidade, de Bachelard (que se conceito, de um deslocamento da relação do conceito a seu exterior. A
ocupava da física ou das matemáticas do mesmo modo como se ocu- filosofia quis propor uma nova relação com a existência, o pensamento,
pava da subestrutura subjetiva dos poemas), Cavaillês (que restituía a a açã,o e o movimento das formas.
matemática à dinâmica produtiva no sentido de Espinosa), ou Lautman
(para quem o processo demonstrativo ê a encarnação de uma dialética Aquestão das formas, a busca de uma intimidade da filosofia
suprassensível das ldeias). com a cnaçã,o de formas é aqui muito importante. Evidentemente, isso
(Jm terceiro exemplo: a operação política. Quase todos os fi1ó- colocou a questão da própria forma da filosofia. Foi preciso transfornrar
sofos desse período quiseram engajar com profundidade a filosofia na a língua da filosofra, e não apenas criar novos conceitos. Isso enurrjotr

t2 rtõ ALAIN BADIOU A AVENTURA DA FILOSOFIA FRANCESA l.t


ultta relação singular da filosofia cont a litcrattrrlr, cluc í'turn t'lnrr'tr'- rt'ntltl,r ,l,r lor rrrrrl,r t.sPt.t,t( ul,u'nl(.trtt. ilrvt.rrtivo. lirrr I)r.r-r-rtl:r, tt.nlos
rística surpreendente da filosofia francesa do século XX. ttrtt,r rt'l,rr,,'.io r'orrrlllit'lrll c prrt'icrrtc tla lírrgu:l c()nl l lírrgtr:r, tun tr-atrlrllro
Em certo sentido, é uma longa história tipicamente francesa. Não tllr lílrgtr:t so[trc clrt tncstuil, c o per)sallrento passa nesse trabalho collr()
charnâvamos de "filósofos", Íro século XVIII, gente como Voltaire, trrrl:r cl)lfttia ctttre rts plantas aquáticas. Em Lacarr, temos uma sintaxe
Rousseau ou Diderot, que são clássicos da nossa literatura? Na França, c'orrr1'rlcxa cluc se parece finalmente com a de Mallarmé. Há em tudo
há autores que não sabemos se pertencem à literatura ou à filosofia. isstr tttrta luta obstinada contra o estilo admitido da dissertação - ao
Pascal, por exemplo, que é certamente um dos grandes escritores de llleslllo tenlpo que esse estilo constantemente retorna, conlo vemos
nossa história literária e certamente um dos nossos pensadores mais exemplarmente em Sartre, ou mesmo em Althusser, porque se trata de
profundos. No século XX, Alain, um filósofo de aparência inteira- um fundo retórico contra o qual o combate é sempre incerto.
mente clássica, um filósofo não revolucionário e que não pertence ao Quase poderíamos dizer que un1 dos objetivos da filosofia fran-
momento de que falo, é bastante próximo da literatura ) para ele, a cesa foi criar um novo lugar de escrita, no qual a literatu ra e a filosofia
escrita é essencial. Ele busca, em seus textos filosóficos, uma espécie de seriam indiscerníveis; um lugar que não seria nem a filosofia como
brevidade formular herdada de nossos moralistas clássicos. Produziu, especialidade nem exatamente a literatura, mas que seria uma escrita
aliás, numerosos comentários de romances - seus textos sobre Balzac onde não se pode mais distinguir a filosofra e a literatura, quer drzer,
são excelentes - e da poesia francesa contemporânea, especialmente onde não se pode mais distinguir entre o conceito e a experiên cra da
Valéry. Assim, até mesmo nas figuras "ordrnârias" da filosofia francesa vida. Porque, finalmente, essa invenção de escrita consiste em dar
do século XX, podemos notar esse laço muito estreito entre filosofia e uma vida literária ao conceito.
literatura. Nos anos 1920/1930, os surrealistas desempenharam um papel Através dessa invenção, dessa nova escrita, trata-se de drzer o novo
importante: eles também queriam modificar a relação do pensamento sujeito, de criar, na língu a, a nova figura do sujeito. Porque o sujeito
corrr a cttação das formas, com a vida moderna, com as artes; queriam moderno, último engajamento do momento filosófico francês, não
inventar novas formas de vida. Sua démarche era um prograínapoético, pode ser o sujeito racional e consciente vindo diretamente de Descartes;
mas, na França, ela preparou o programa filosófico dos anos 1950 e 1960. nem pode ser, para drzer mais tecnicamente, o sujeito reflexivo; ele
Lacan e Lévi-Strauss frequentaram e conheceram os surrealistas. Mesmo deve ser algo mais obscuro, mais ligado à vida, ao corpo, um sujeito
um típico professor de filosofia à maneira da Sorbonne, como Alquié, menos estreito do que o sujeito consciente, alguma coisa que é como
estava envolvido com o meio surrealista. Hâ nessa história complexa uma produção ou ulna criação, concentrando nela forças mais vastas.
uma relação entre projeto poético e projeto filosófico, de que os sur- Qr. ela adote, que ela retome a palavra "sujeito", ou que ela a destitua
realistas - ou, do mesmo modo, Bachelard, numa outra vertente - são em proveito de outros vocábulos, é isso que a filosofia francesa tenta
os representantes. Mas, a partir dos anos 1950/1960, ê a própria filo- dizer, encontrar e pensar.
sofia que deve inventar sua formalrterârra; ela deve encontrar um laço É por isso que a psicanálise é um interlocutor essencial, porque
expressivo direto entre a apresentação filosófica, o estilo filosófico e o a grand,e invenção freudiana foi precisamente uma nova proposição
deslocamento conceitual que propõe. Assistimos, então, a uma mudança sobre o sujeito. Com o motivo do inconsciente, Freud nos indica que
espetacular da escrita filosófica. Muitos entre nós estamos habituados a questão do sujeito é mais vasta do que a consciência. Ela engloba a
a essa escrita, de Deleuze, de Foucault, deLacan; e nós nos represen- consciência, mas não se reduz a ela. Tal é a significação fundamental da
tamos mal a que ponto ela constituiu uma ruptura extraordtnârta com palavra "inconsciente", quando Lacanfala do "sujeito do inconsciente".
o estilo filosófico anterior. Todos esses filósofos procuraram ter um
estilo próprio, inventar uma nova escrita. Eles quiseram ser escritores. Resulta disso que toda a filosofia francesa contemporânea enr-
Em Deleuze ou em Foucault, encontramos algo de inteiramente novo penhou-se em uma grande e severa discussão com a psicanálise. Essa
no movimento da frase. Há um ritmo afirmativo sem concessão, um discussão, na FranÇa, na segunda metade do sécu1o xx, é uma ccnrr

I4 nlõ ALAIN BADIOU A AVENTURA DA FILOSOFIA FRANCESA

*,
tlc srancle conrplexidade. Por si só, essa cena (esse teatro) cntrc :r fi- tt'tirit';r.:l() l);tss() (lut'l;rcrrtl proll«)c:I[)ct)rls Lultit psiclrrírlisc ctttllírir'lt.
losofia e a psicanálise é absolutamente revelado r^. É que sua apostâ St' lllt'lrcl:rrtl tltrcria strbstittrir a constrição sexual pelo devaneio, Sartre
fundamental é a divisão de duas grandes correntes da filosofia francesa (lucr strlrstittrir o conrplexo freudiano, quer dtzer, a estrutura do in-
desde o início do século. consciente pelo que ele charna o projeto. O que define um sujeito para
Retomemos essa divisão. Temos, de um lado, um vitalismo exis- Sartre não é uma estrutura, neurótica ou perversa, mas um projeto
tencial que tem sua origem em Bergson e que certamente passa por fundarnental, um projeto de existência. Temos também aí um exemplo
Sartre, Foucault e Deleuze; de outro lado, temos o que eu chamaria perfeito de combinação entre cumplicidade e rivalidade.
de um conceitualismo das intuições, que autoÍrza sua projeção formal, A terceira referên cta ê o quarto capítulo de O anti-Édipo, de
que encontramos em Brunschvicg e que passa por Althusser e Lacan. Deleuze e Guattari, onde, outra vez, propõe-se substituir a psicanálise
O que cruza ambos, o vitalismo existencial e o formalismo conceitual, por outro método, que Deleuze chama de "esqutzoanâlise", numaÍla-
é a questão do sujeito. Porque um sujeito é, finalmente, aquilo cuja lidade absoluta com a psicanálise no sentido de Freud. Em Bachelard,
existência porta o conceito. Ora, em certo sentido, o inconsciente de é o devaneio mais do que a constrição sexual; em Sartre, o projeto
Freud ocupa exatamente esse lugar: o inconsciente também é alguma mais do que a estrutura ou o complexo; em Deleuze, o texto é intei-
coisa de simultaneamente vital e simbólico, que porta o conceito. ramente claro, é a construção mais do que a expressão - sua grande
Evidentemente, como sempre, a relação corn aquele que faz a censura à psicanálise é que ela não faz mais do que exprimir as forças
mesma coisa que você, mas o faz de maneira diferente é dificil. Podemos do inconsciente, ao passo que deveria construí-las.
dtzer que é uma relação de cumplicidade - vocês fazern a mesma coisa Eis o que é extraordinário, eis o que é sintomal: três grandes
-, mas é também uma relação de rivalidade - vocês fazern de maneira filósofos, Bachelard, Sartre e Deleuze, propuseram substituir a psica-
diferente. E a relação da filosofia com a psicanâlise na filosofia francesa nálise por outra coisa. Mas poderíamos mostrar que Derrida e Foucault
é exatamente isso: uma relação de cumplicidade e de rivalidade. LIma alimentaraírr a mesma ambição...
relação de fascin açã.o e amor, e uma relação de hostilidade e ódio. É Tudo isso desenha uma espécie de paisagem filosófica que é hora
por isso que essa cena é violenta e complexa. de recapitular.
Três textos fundamentais possibilitam ter uma ideia disso. O
primeiro é o início do livro de Bachelard publicado em 1938, A Creio que um momento filosófico se define por um programa
psicanálise do fogo, que é o mais claro sobre essa questão. Bachelard de pensamento. Evidentemente, os filósofos são muito diferentes, e o
propõe uma nova psicanálise, apoiada sobre a poesia, o sonho, que programa ê tratado segundo métodos frequentemente opostos e acaba
poderíamos chamar de uma psicanálise dos elementos: o fogo, a âgua, propond o realizações contraditórias. Podemos, não obstante, discernir
o ar, a terra, unla psicanálise elementar. No fundo, podemos dizer o elemento comum que se refrata nessas diferenças e contradições: não
que Bachelard tenta substituir a constrição sexual, tal como encon- as obras, não os sistemas, nem mesmo os conceitos, mas o programa.
tramos em Freud, pelo novo conceito que ele chama de "devaneio". Quando a questão programâtrca é forte e é compartilhada, hâ :urn
Ele pretende mostrar que o devaneio é algo mais vasto e mais aberto momento filosófico, com uma grande diversidade de meios, obras,
do que a constrição sexual. Encontramos isso muito claramente no conceitos e filósofos.
início de A psicanálise do fogo. Então, o que era esse programa, no curso dos últimos 50 anos
No segundo texto, o fim de O ser e o nada, Sartre também propõe do século XX?
a crração de uma nova psicanálise, que ele chama de "psicanálise exis- Primeiramente: não mais opor o conceito à existência, acabar com
tencial". Â cumplrcrdade/rivalidade é dessa vez exemplar. Sartre opõe essa separação. Mostrar que o conceito é vivo, que é uma criação, um
sua psicanálise existencial à psicanálise de Freud, que ele qualifica de processo e um acontecimento, e que, a esse título, ele não é separado
"empírica". Segundo ele, é possível propor uma verdadeira psicanálise da existência.

16 rrõ ALAIN BADIOU A AVENTURA DA FILOSOFIA FRANCESA t/


Segundo ponto: inscrever a filosofi,a na nrodernidacle , () (prc ri.r Psir'olotti:r, (lu('('()nstittritr [)()l'llluito tcrrrpo:r rrrctlrclc rkr pr<lurelllll
também quer drzer retirá-la da academia, fazê-Ia circular na vida. A tlt' rtttlls tlc filosr>fia, (luc () n)or)rertto filosófico francês tentou esnagar
modernidade sexual, artística, política, científica, social: é preciso que e crrirr rct()n)o, a voga contemporânea, significa que talvezrtÍÍrperíodo
a filosofiapàrta de tudo isso, incorpore-se nisso, mergulhe nisso. Para crierlor te'nha se acabado, ou vai se a.cabar.
fazê-lo, ela deve, em parte, romper com sua própria tradição. Enfim, sexto ponto: criar um novo estilo de exposição filos6fica,
Terceiro ponto do prograrrra: abandonar a oposição entre filosofia rivalizar com a literatura. No fundo, inventar uma segunda vez, depois
do conhecimento e filosofia da açáo. Essa grande separação, que em do século XVIII, o escritor-fiIósofo. Recriar esse personagem que ul-
Kant, por exemplo, atribuía estruturas e possibilidades diferentes à razáo trapassa o mundo acadêmico, que ultrapassa também, hoje, o mundo
teórica e à razã,o prâtica, estava ainda há pouco na base da construção midiático e se faz conhecer diretamente, por sua fala, por seus escritos,
dos programas de filosofia das classes terminais.2 Ora, o programa do suas declarações e seus atos, porque seu progtarna é interessar e modi-
momento filosófico francês exigia em todo caso que se abandonasse fi.car a subjetividade contemporânea, se ouso drzer, por todos os meios.
_!_
essa separação e que se mostrasse que o conhecimento é, ele próprio, E isso o momento filosófico francês, seu programa e sua grande
uma prâtica, que mesmo o conhecimento científico ê na realidade ambição. Creio que havia aí um desejo essencial. lJma identidade, fosse
uma prâtica, mas também que aprâtica po1ítica é um pensamento, que ela a de um momento filosófico, não é a identidade de um desejo? Sim,
a arte e mesmo o amor são pensamentos e não são de modo algum havia, há um desejo essencial de fazer da filosofia uma escrita ativa,
opostos ao conceito. quer drzer, o meio de um novo sujeito, o acompanhamento de um
Quarto ponto: situar diretamente a filosofia na cena política novo sujeito. E então, o desejo de fazer do filósofo outra coisa além
sem passar pelo desvio da filosofia política, inscrever frontalmente de um sábio, o desejo de acabar com a frgura meditativa, proGssoral
a filosofia na cena política. Todos os filósofos íranceses, para grande ou reflexiva do filósofo.
escândalo da maioria de seus colegas anglo-saxões, quiseram inventar Fazer do filósofo outra coisa além de um sábio ê fazer dele outra
o que eu chamaria de militante filosófico. A Íilosofia, no seu modo coisa alêrn do rival de um padre: fazer dele um escritor combatente,
de ser, na sua presença, deveria ser não apenas uma reflexão sobre a um artista do sujeito, um amante da críaçáo. Escritor combatente,
política, mas sim uma intervenção que visasse tornar possível uma artista do sujeito, amante da criação, militante filosófico são palavras
nova subjetividade política. Desse ponto de vista, nada é mais oposto para esse desejo que atravessou esse período e que era que a filosofia
ao momento filosófico francês, nada mostra mais claramente seu fim agisse em seu próprio nome.
do que a voga atual da "filosofia política".É o retorno um tanto triste Tudo isso me faz pensar numa frase de Malraux que ele próprio
à tradição acadêmica e reflexiva. atribui a De Gaulle em seu texto Les Chênes qu'on abat: "a grandeza
Quinto ponto: retomar a questão do sujeito, abandonar o modelo é um caminho em direção a algo que não conhecemos". Creio que a
reflexivo e, assim, discutir com a psicanálise, rivaltzar com ela e fazer filosofia francesa da segunda metade do século XX, o momento filosó-
tão bem quanto ela, senão melhor do que ela, no que concerne ao pen- fico francês, propôs à filosofia preferir o caminho ao conhecimento do
samento de um sujeito irredutível à consciência, e consequentemente à objetivo, a ação ou a intervenção filosófica à meditação e à sabedoria.
psicologia. O inimigo mortal da filosofia francesa de que se trata aqui Ela foi uma filosofia sem sabedoria, o que hoje the é censurado.

Desejávamos não umâ separação clara entre vida e conceito, não


2 Dentro do sistema educacional francês, a classe terminal é o terceiro e último que a existência como tal fosse submetida à ideia ou à norma, mas que
ano do liceu (ensino médio), que habilita o aluno a prestar a prova do baccalauréat,
o próprio conceito fosse um caminho de que não conhecemos forço-
que, por sua vez, dá acesso ao ensino superior. Os programas de filosofia são es-
tabelecidos por decreto ministerial e são bastante amplos, tanto do ponto de vista samente o objetivo. A filosofia deveria esclarecer as razões pelas quais
histórico quanto temático. (N.T.) esse caminho, cuja abertura ê decidida e cujo objetivo ê parcialmentc

IB rtõ ALAIN BADIOU A AVENTURA DA FILOSOFIA FRANCESA l()


aleatório ou obscuro, é justamente - o que quer dizer: ern collfirrrrri-
dade com ajustiça - aquele no qual é preciso se engajar.
Sim, a filosofia desse momento ,ô, foi, a assunção de um pensa-
mento, imperativo e racional, quanto às sendas obscuras dajustiça - eu
digo por conta própria: de uma verdade - que a êpoca nos convrda a
construir no momento mesmo em que as tomamos de emprêstimo.
A
E por isso que temos o direito de dizer que houve na França, no
século XX, destinado a instruir a humanidade inteira, um momento
de aventura filosófica.

20
Jacques Derrida (1930- 2OO4)

Este textofoi pronunciado no colóquio em homenagem aJacques Derrida,


organizado na Escola l\ormal Superior, em 21 e 22 de outubro de 2005.
Precedentemente, apresentei uma uersão em inglês na (Jniuersidade da
Calfórnia (Iruine). Mais um cuja amizade necessitaria de tempo para
se constrwir.O dossiê de um de nossos seueros confiítos é público, en-
contramo-lo como apêndice do colóquio Lacan avec les philosophes,
publicado pela editora Albin Michel em 1991, colóquio organizado
pelo Colégio Internacional de FilosoJta. Dez anos mais tarde mais ou
menos, pudemos uisar a umt aliança não menos pública, pois, como ele
me disse, "nós temos agora os mesmos inimigos". A morte deixou esse
futuro em suspenso.

Flouve, na França, para empregar uma expressão cara a Frédéric


'Worms,
um momento filosófico dos anos 1960. Mesmos os que seriam
tentados a orgaÍDzar seu esquecimento o sabem. Não muito mais, talvez,
que cinco anos intensos, entre 1962 e 1968, entre o fim da guerra da
Argélia e a tempestade revolucionâria dos anos 1968/1976. Um simples
momento, sim, mas que foi verdadeiramente fulgurante. Podemos
dizer que com a morte de Jacques Derrid a, a geração filosófica que
identificou esse momento desapareceu quase completamente. Não há
mais do que uma figura tutelar retirada, um homem bem envelhecido,
impassível e glorioso: resra apenas Claude Lévi-Strauss.
o primeiro sentimento que posso então experimentar não é um
sentimento especialmente nobre. Eu me digo, efetivamente: "Agora,
nós é que somos velhos".
Então, nós... Quem, nós? Pois bem, isso quer muito precisamente
drzer nós que fomos discípulos imediatos dos que desapareceram. Nós

209
(luc tílllllul)os, lrlrtlrrclcs ln()s, rlc l()(r3 rt l()(ru, ('lttt'c lO t'.lo.ltttls, tttts c:ttrc cntrilr utltti rtos tlct:rlhcs. I)ircrrros sirrrplcsrrrcntc (lu('.r rcl,rq'.ir) cntr'(.
que seguí:rnros apaixonadanrente as lições tlcsses tnestrcs, tttis clttt' :ttr st:r e ser-aí, ou a relação entre nrultiplicidade e inscrição nrtrrrclurrrr, ['
longo de sua velhice e morte tornamo-nos os alttigos. ()s lttttigtts ttitr ulrla relação transcendental. Ela consiste em que toda nrultiplicidade
â mesmo título que eles, já que eles eram a assinatura do ltlonlelrtc> clo se vê atribuir num mundo um grau de existência, um grau de apari-
qual eu falo, e que o momento atual, sem dúvida, não merece nenhuttta ção. O fato de existir, na medida em que isso é aparrçã,o num mundo
assinatura. Mas os velhos cuja juventude não foi o que ela foi senão determinado, associa-se inevitavelmente a um certo grau de aparição
por escutar e ler tais mestres, deles discutir dia e noite as proposições. nesse mundo, a unla intensidade de aparição que pode também ser dita
Outrora, estávamos a seu abrigo, apesar de tudo. Estávamos sob a intensidade de existência.
proteção espiritual deles. Eles não nos a propõem mais. Não estamos Há um ponto muito cornplicado mas muito importante sobre
mais separados do real pela grandeza de sua voz. o qual, aliás, Derrida escreveu muito, e sobre o qual ele nos instrui a
Eu faço questão, pois - sinto isso como um dever exigente -, de todos: uma multiplicidade pode aparecer em vários mundos diferentes.
prestar homenagem a Jacques Derrida, que desapareceu brutalmente, Seu ser-um pode existir multiplamente. Admitimos o princípio da
e através dele, a todos eles. Todos os signatários mortos do grande ubiquidade do ser, na medida em que ele existe. [Jma multiplicidade
rnomento dos anos 1960. pode, pois, aparecer ou existir, ê a mesma coisa, em vários mundos,
A homenagem que me parece apropriada é uma homenagem fi- mas, via de regra, ela existe nesses mundos com graus distintos de in-
losófica. IJma homenagem que assinala a distância e lhe dá sua própria tensidade. Ela aparece intensamente num tal mundo, mais debilmente
força. Para isso, necessito de algumas preliminares, às quais darei aqui num outro, extremamente fraca num terceiro, cont uma intensidade
uma forma extraordinariamente simples. extraordrnária num quarto. Existencialmente, conhecemos perfeita-
Simplicidade justificada. Pois havia, logo acima da espantosa mente essa circulaçã,o nos vários mundos em que nos inscrevenlos em
fluidez volátil de sua escritura, uma autêntica simplicidade de Derrida, intensidades diferenciadas. O que chamamos "a vida", ou "nossa vida",
uma intuição obstinada e invariante. É r.rru das numerosas razões é frequentemente a passagem de um mundo em que aparecentos com
pelas quais a violência dos ataques contra ele, logo após sua morte, um grau de existêncrafrâgtl a um mundo em que esse grau de existência
particularmente na imprensa norte-atnericana, ataques que visavam é mais intenso. É itto, um momento de vida, uma experiência vital.
ao "pensador abstruso", ao "escritor incompreensível", não passavam O ponto fundamental que nos conduz al)errída ê, então, o ponto
da mais banal injúria anti-intelectual. seguinte. Considerando uma multiplicidade que aparece num mundo,
Chamemos essas injúrias de "texanas" e não falemos mais disso. considerando os elementos dessa rnultiplicidade que apareceÍn com
Tomemos que se norneie de "ente" - ente no sentido de Heidegger ela própria - isso significa que a totalidade do que a constitui aparece
- uma multiplicidade qualquer e que nos interessemos pelo aparecer nesse mundo -, há sempre um conlponente dessa multiplicidade cuja
desse ente, pelo que faz que desse ente se possa dtzer que ele se mostra aparição se mede pelo grau mais fraco.
num mundo determinado. Suponhamos que tentássemos pensar esse ente Eis aí um ponto de extrema importância. Eu o redigo. (Jma
não apenas segundo seu ser, ou seja, segundo a multiplicidade pura que multiplicidade aparece num mundo, a relação transcendental afeta os
dele constitui o ser genérico, o ser indeterminado, mas que buscássemos elementos dessa rnultiplicidade com graus de aparição, graus de exis-
pensá-lo, o que é o gesto fenomenológico por excelência, enquanto ali tência. Acontece que existe sempre pelo rnenos um desses elementos
está, enquanto, pois, o que advém nesse mundo, ou aparece no hori- - na realidade, há apenas um - que aparece com o grau de aparição
zonte de um mundo detenninado. Convenhamos norlear essa aparição mais fraco, ou seja, que existe minimamente.
cl«> errte num mundo, na esteira de muitos outros, como sua existência. Vocês entendem claramente que existir minimamente no trans-
A elaboraçáo têcntca de uma nova (e integralmente racional) cendental de um mundo é como não existir de modo algum. Do ponto
tlisrinçã<> elttre o ser e a existência pode tomar diversas formas, e não de vista do mundo, se vocês existem o mínimo possível, ê a mesna

'lo rtõ ALAIN BADIOU A AVENTURA DA FILOSOFIA FRANCESA 271


cxistir. (llrso tivcsscttr ttrtt olltr> clivirro, cxtcrior ilo r)run-
('()isu (luc r)à() set)tl)l'c tliz tltrr'os lilirsolirs sontctttc ti'rrr rrrrr:r itlt'i.r. l',rr',r nnnr, () (lu('
clo, vocôs poderianr eventualmente comparar os rnínirnos existenciais. cstr't crtt jogo tto tntbalho clc l)crricll, no trab:rlho irrfinito tlc l)erritll,
Mas se vocês se encontram no mundo, existir o menos possível quer ell sua escritura inrensa, ramificada, errr número variado de otrras, rlc
dizer, do ponto de vista do mundo, não existir de modo algum. Por abordagens infinitamente diversas, é inscreuer o inexistenle. E reconhecer,
isso chamamos esse elemento de "o inexistente". no trabalho de inscrição do inexistente, que essa inscrição é propria-
Logo, sendo dada uma multiplicidade que aparece num mundo, mente falando impossível. A grande aposta da escritura de Derrida,
há sempre um elemento dessa multiplicidade que é um inexistente nesse "escritura" que aqui designa um ato do pensamento, ê inscreuer a im-
mundo. É o inexistente próprio dessa multiplicidade, relativamente possibilidade da inscrição do inexistente como forma de sua inscrição.
a esse mundo. O inexistente não tem caracterizaçã,o ontológica, rnas O que significa "desconstrução"? No fim de sua vida, Derrida
unicamente uma caracterizaçã,o existencial: ê um grau mínimo de gostava de dtzer que se havia uma coisa urgente de se descontruir era
existência num mundo determinado. a desconstrução, a palavra "desconstrução". A desconstrução tornara-
Eu lhes dou um exemplo massivo e arquiconhecido, um exemplo se algo do repertório acadêmico, precisava-se naturalmente descons-
intensamente trabalhado por Derrida. Na análise que Marx propõe trsí-la. Dar-lhe uma significação era, num certo sentido, dilapidá-la.
das sociedades burguesas ou capitalistas, o proletariado é propriamente Penso, todavia, que no caso dele, apalavra "desconstrução" não estava
o inexistente próprio das multiplicidades políticas. Ele é o "que não de modo algum academicrzada. Ela indicava um desejo especulativo,
existe". Isso não quer absolutamente dizer que ele não tem ser. Marx um desejo do pensamento. Era "sua desconstrução". E o desejo, como
não pensa em nenhum momento que o proletário não tem ser, já que todo desejo, partra de um encontro, de uma constatação. Com todos
ele vai, ao contrário, empilhar volume sobre volume para explicar o que os estruturalistas dos anos 1960, com Foucault, por exemplo, Derrida
ele é. O ser social e econômico do proletariado não está em dúvida. O admitia que a experiência do mundo é sempre uma experiência de
que é duvidoso, que sempre o foi e que hoje o é mais do que nunca, imposição discursiva. Estar num mundo ê estar marcado por discursos,
é sua existência política. A multiplicidade que ele é pode ser analisada, marcado inclusive na carne, no corpo, no sexo, etc. A tese de Derrida,
mas, se tomarmos as regras de aparição do mundo político, ele ali não a constatação de Derrida, a fonte do desejo de Derrida é que, seja qual
aparece. E1e está ali, mas com o grau mínimo de aparição, qual seja, for a forma de imposição discursiva, hâ um ponto que escapa a essa
o grau de aparição zero. É evidentemente o que canta a "Internacio- imposição, que se pode chamar de ponto de fuga. Creio que a expressão
nal": "não somos nada, sejamos tudo!". O que quer dtzer "não somos deve ser aqui levada em consideração da forma mais literal possível.
ttada"? Os que proclamam "não somos Írada" não estão afirmando sua LJm ponto de fug, é um ponto que, precisamente, foge à regra do
nulidade. Afirmam simplesmente que eles nada são no mundo tal qual dispositivo de imposição.
ele é, quando se trata de aparecer politicamente. Do ponto de vista de A partir dali, o interminável trabalho do pensamento ou da es-
seu aparecer político, eles não são nada. E o tornar-se "tudo" supõe a critura êlocaLtzar esse ponto. O localizar não quer dtzer captar. Porque
mudança de mundo, ou seja, a mudança de transcendental. É preciso captaÍ seria perdê-lo. Como fuga, não se pode captâ-lo. Pode-se cha-
que o transcendental mude para que a atribuição da existência, logo mar de "problema Derrida" o problema seguinte: o que ê captar uma
que o inexistente, o ponto de não aparecer numa multiplicidade num fuga? Não de modo algum captar o que fog., mas a fuga como ponto
mundo, mude por sua vez. de fuga. A diÍiculdade que obriga sempre a recomeçar ê que se você
Terminemos abruptamente essas preliminares: é uma lei geral captaafuga, ao mesmo tempo você a suprime. O ponto de fuga como
do aparecer ou do ser-ali-num-mundo que haja sempre tal ponto de ponto de fuga não é captável. Pode-se somente locahzâ-lo.
inexistência. Há, em Derrida, algo como a proposição de um gesto de mostra-
Posso agora cernir o que está emjogo no pensamento de Derrida, ção. Um gesto de escritura, quando a escritura é esse dedo, molhado
ser-r engajamento estratégico, engajamento no sentido em que Bergson numa tinta branca, que vai mostrar delicadamente o ponto de fuga, ao

?t2 rtõ ALAIN BADIOU A AVENTURA DA FILOSOFIA FRANCESA 213


nlcsnt() tclllp() rluc () clcixtr firgir. Vr>côs nào 1'rorlcttt lttostni-ltl "('()l)l() ll:tst;utte v:tgtl l'rltt-:t t'vit:rr'Pis:u'r)() t('s()ul-()... uln l)ilss() soIlrt'o tt'\ourrr
ponto cle íuga, mostrá-lo nlorto. É itto que l)errida ntais tert.tc. Mostntr c clc nãt> vale tttais ttacla... n'lesnl() () rrclls() í'arriscltlo... srurvenrentr'...
o ponto de fuga morto. Mostrar o ponto de fuga sem fuga. Vocês têtn, Tonrem, por exernplo, as grandes oposições nretafisicas. Scr:r
pois, uma escritura que vai tentar ser essa mostração. Chamo isso de preciso diagonalrzâ-las. Porque restringir o espaço discursivo é nãcr
Iocalrzação. Porque mostrar êlocahzar. E dizer: "psiu, está talvez alt, deixar subsistir a massividade, a massividade linear. Não há locahza-
cuidado!... está talvez ali... não o interrompa... deixe-o fugir...". ção possível do fora de lugar no lugar com grandes oposições binárias.
Derrida é o contrário do caçador. O caçador espera que o animal Logo, será preciso desconstruí-las. Será preciso passar através. É irro, ,
vâ parar, para que possa atfuar. Ou que ele vá impedir a fuga do ani- desconstrução. A desconstrução, no fundo, é o conjunto das operações
mal. l)errida, por sua vez, espera que a fuga não deixe de fugir, que se que podem obter uma certa restrição do espaço de fuga, ou do espaço
vá mostrar a "corsa" (o ponto de fuga) na evidência sem interrupção onde se mantém o ponto de fugr. LJma vez mais, é uma operação
da fuga. E, pois, em seu incessante desaparecer. Qr" todo parecer se que se parece com uma caçada ao avesso. (Jma caçada em que o que
sustente do (de$aparecer do qual somente se pode locahzar, na floresta se deve captar é o animal são, desaparecendo, captar o salto fora de
do sentido, a fuga evadida, eis a aposta escritural do desejo de Derrida. lugar do anim al. É por isso que cabe dele se aproximar ao máximo.
Mesmo locahzar o ponto de fuga - para nada drzer de sua captura, Talvez mesmo muito mais do que seria para atirar. É preciso, pois, que
que seria sua morte- ê, na realidade, impossível. Porque o ponto de vocês tenham uma locahzação paciente. Isso supõe uma cartografia
fug, é o que, no lugar, está fora de lugar. Ele é o fora de lugar no lugar. elementar das grandes distinções, entre a vila e o campo, a montanha
Então, como ele somente existe em seu ato desde o fora de lugar no e o vale, o ser e o ente, e é preciso que esse quadriculado seja pouco
lug5ar, não se pode tampouco conseguir exatamente locahzâ-lo. Vocês a pouco reduzido.
desejam mostrar a fuga, e para isso é preciso se embrenhar longamente Donde toda uma série de discussões. Por exemplo, a discussão com
na floresta que locahza essa fuga. No curso dessa marcha, vocês apren- Heidegger a propósito do alcance efetivo da diferença entre o ser e o
dem que no máximo vocês podem não mostrar a fuga, mas mostrar, ente. Quando Derrida propõe o conceito de " diferância", desej a fazer
bem de longe, a localização dessa fugr, um matagal, uma clareira. E ouvir um termo único que ativarra a distinção ser/ente em seu ponto
isso já é bem arriscado. de fuga. Derrida coloca emfuga o que subsiste de oposição metafísica na
Finalmente, o que seja talvez possível é restringir o espaço de diferença ser/ente, de modo que se capte a diferença como tal, em sett
fugr, percorrer um pouco mais lealmente a floresta, ou um pouco me- ato. E a dtferância, em seu ato, é evidentemente o que está em ponto
nos obscuramente. Se vocês não quiserem tocar na fuga, alocahzação de fuga de toda oposição do ser e do ente, é o que não é de modo al-
consiste simplesmente em fazer de modo que a imposição discursrva, a gum redutível à figura dessa oposição. E depois, do mesmo modo, será
imposição linguageira não sejam tais que o espaço de fuga tudo recubra. necessário examinar a oposição democracia/totalitarismo. Ou, então, o
Porque, nesse caso, vocês não localtzarnnada de inexistente. Vocês têm alcance real da oposiçãoJudeu/Árabe no conflito palestino. O método
simplesmente o espaço do geral. É preciso ainda assim restringir vosso é sempre o mesmo. Ali também, na oposiçãoJudeu /Arabe, no conflito
espaço de marcha para estar mais próximo do lugar onde isso foge. O palestino, Derrida adotou como posição desconstruir a dualidade.
que quer drzer que é preciso estar no lugar mais próximo possível do O método é sempre o de encontrar o que identifica um lugar
que se coloca em exceção ao lugar, do que se coloca fora de lugar. A como território de um ponto de fuga, com relação à oposição que
desconstrução, na realidade, isso consiste em restringir as operações certifica prematuramente o lugar como divisão, como partição, como
cliscursivas de tal modo que o espaço de fuga seja locahzâvel como classificação.
nunra cartografia ao se drzer: o tesouro ali está..., ou a fonte está ali... Derrida desclassificâ os negócios classificados.
() (luc se evade está ali... mas... suavemente, bem suavemente... senão Derrida foi em todas as questões em que intervinha o que eu
() tcs()rrr() voou... a fonte não jorra mais... tenho um plano, mas vago, chamo de um corajoso homem de paz. Ele era corajoso porque é

t,1 rtõ ALAIN BADIOU A AVENTURA DA FILOSOFIA FRANCESA 215


[)r'c('is() sen)prc nluita c()ra!{cnl prlril ni() cr)tr':lr r):l (livisào t:rl conto ttltt it)st:llttc, rt ittcxistcttte cle trnr lrrglr', l tiru;r tlc rrrn l)()nt() (l(. ltru,r.
cla [' collstituícla. E homenr de paz porqLle a baliza do cluc sc crrcorrtr:r Inscrever sua exscrição.
em exceção a essa oposição é, de modo geral, o caminho cla paz. l)ois Isso violava os costumes filosóficos para os quais o flndanlcn-
toda paz verdadeira se faz por um acordo não sobre o que existe, mas to da inexistêncra ê o nada. ora, vocês não podem de modo algunr
sobre o que inexiste. dtzer do inexistente que e1e é o nada. Ali está toda a dificuldade. Ali
Essa obstinação diagonal, essa recusa das partilhas abruptas de reside o erro metafísico, o único erro metafísico remediável. O erro
proveniência meta(rsica, não convém, evidentemente, nas épocas tem- metafisico por excelência, de ter identificado o inexistente ao nada.
pestuosas, quando o todo está submetido a uma lei de decisão, aqui Porque o inexistente éjustamente. Ele é absolutamente. É b.- por isso
e agora. E isso que manteve Derrida distante da verdade dos anos que os proletários, que inexistem, podem sustentar-se em seu ser para
vermelhos, entre 1968 e 1976. Porque a verdade desses anos se dizia: drzer: "Nós não somos nada, sejamos tudo". É rn.r*o a definição da
"LJm se divide em dois". O que se desejava poeticamente eÍa a meta- Revolução: um inexistente se vale de seu ser-múltiplo para declarar que
física do conflito radical, não a paciente desconstrução das oposições. ele vai existir absolutamente. Certamente, por isso, é preciso mudar o
E ali Derrida não pôde seguir. Ele teve de se ausentar. Ele se exilou, mundo, o transcendental do mundo.
por assim dizer. O inexistente ê nada. Mas ser nada não é de modo algum nada
É qr'r. havia nele, homogênea à sua paciência literal, e mesmo se ser. Ser nada é inexistir de modo próprio a um mundo ou a um lugar
ele não ignorava a violência de toda verdadeira paciência, uma enorme determinado. Assim se esclarecem os deslizamentos alternados, carac-
doçura especulativa. Havia um tocar derridiano. Seu grande livro sobre terísticos da prosa de Derri da. É o deslizamento entre o "se você diz
isso, com Jean-Luc Nancy, chama-se Le Toucher. Belíssimo livro do que o inexistente é, vocês perdem naturalmente de vista isso de que ele
ano 2000. É t., "tratado da akna", seu tratado das sensações, seu livro não existe", e o: "se vocês se contentam em dtzer que ele não existe,
mais delicadamente aristotélico. Derrida deseja ali dar uma nova des- vocês perdem de vista isso de que ele é".8,, pois, nenhuma oposição
crição da relação entre o sensível e o pensâmento. Ali, ainda, é preciso constituída consegue realmente qualificar em termos de oposição bi-
encontrar o que está em ponto de fuga da oposição entre o sensível e o nâria o estatuto exato do inexistente. Porque vocês deslizam sempre do
pensamento. No tocar, há algo como isso. Algo de tão delicadamente ser à inexistência, depois da inexistência ao ser. De tal modo que com
sensível que se torna indiscernível do pensamento. Derrida, vocês têm uma lógica que não se autori za rnais da distinção
É também por isso que Derrida gostava cadavez mais da forma fundamental entre a afirmação e a negação.
do diálogo. Diálogo com Hélàne Cixous, com Élisabeth Roudinesco, Acredito que isso seja o fundo do problema. A desconstrução é
Habermas ou outros. Diálogo em particular com isso que se poderia conduzida a seu termo quando o espaço lógico no qual vocês operam
chamar de posição Gminina. No diálogo com uma posição heterônoma, não é mais de modo algum o da oposição da afirmação e da negação.
vocês irão tocat,, talvez, no que fog. à Lei, no que salta suavemente Eu diria que o tocar é isso. O tocar é um operador lógico. Quando
para fora do nomos. Vocês irão ser por isso acaricrados de passagem. vocês tocam algo, vocês são esse algo, e vocês não o são. É todo o
Essa passagem do tocar correspondia bem profundamente ao desejo drama da carícta amorosa. Se referir a um texto, ou a uma situação
filosófico de Derrida. política, como a caticra amorosa se refere logicamente a um corpo,
Quando se deseja algo, ê para fazer o que disso? Esse desejo, tal é o ideal da desconstrução. Ideal do tocar. No tocar, o que toca
esse desejo do inexistente, significa necessariamente, como em todo não está separado do que é tocado senão por uma inexistência, um
clesejo, que é preciso no fim acomodá-lo em algum lugar, esse inexis- ponto de fuga inassinalável. Pois o que diferencia os dois "atantes" do
tcrrte. Acomodá-lo sobre a folha branca, por exemplo. Ainda que se tocar, o ativo e o passivo, nada mais é do que o ato de tocar, o qual,
s:riba que ele já se levantou. Ele já se encontra alhures. Jâ partiu. Tal justamente, é também o que os conjuga. Então, há esse deslizamento,
('r;r () desejo de Derrida: localizar, tocar, estreitar, menos ainda do que que eu chamo de deslizamento essencial, que é o desli zarnento entre

ALAIN BADIOU A AVENTURA DA FILOSOFIA FRANCESA 2t7


s('t'('('xistir'. li isso, «l rlcsliz:rtncrttr) su[)r'('n)(), () tlr'sliziun('rrto tltrt'tcrrr Origem dos textos
llor siunt), p()r .s/oqnn, o incxistcltte .
l)errida instalou na linguagem esse deslizalnento. lsso será minha
últirna observação. Ele tentou drzer que toda palavra verdadeira é um
deslizamento. uma palavra não é uma referência, náo é um signifi-
cante, é um deslizamento entre ser e existência. LJma palavra soa justa
quando desliza segundo o inexistente. "Deslizai mortais, não insistais!"
é o que creio que Derrida dtzia escrevendo às suas próprias palavras.
É po. isso que foi tão criticado. Mesmo a mim ele por vezes irritava
por suâs extraordinárias acrobacias verbais, suas clerivações, o deslize
infinito de sua prosa. Mas pode-se, deve-se render justiça a tudo isso, Deleuze. Gilles Deleuze: sur Le Pli: Leibniz et lebaroque. In: Annuaire
pois a mostração do deslizamento traz consigo o desejo do inexistente. philosophique: L988-1989. Paris: Seuil, 1989. p. 161-84.

O ponto de fuga, é preciso mostrá-lo fazendo-o fugir a língua. Vocês Alexandre Kojàve. Hegel en France. In: Le l\oyaurationnel de la
têm de ter uma língua de fuga. Vocês não podem organizar nalingua- dialectiEte hégélienne. Paris: François Maspero, 1978. p. 11-17.
gem uma mostração do inexistente senão servindo-se de uma língua Canguilhern. Y a-t-ilune théorie du sujet chez Georges Oarrguilhem.
que suporte inexistir. LJma língua de fuga. E nesse caso, como o drzia In Ceorges Canguilhem: philosophe, historien des scienccs. Actes du colloque,
Genet, "minha vitória é verbal". 6-7-8 décembre 1990. Paris: Albin Michel, 1993. p. 295-3{)4.
Minha homenagem última também será verbal, por sua vez.
Em homenagem a Derrida, eu direi e escreverei doravante ine- n. 6-7, p. 19-23, mars 2003.
xistáncia, com rlm "a". A inexistâncra. Como ele disse a diferança.
Sartre. Melancholia: saisissement, dessaisie, fidélité. Lcs Tcmps
E, no fundo, bem perto do que ele quis drzer quando inventou, há
Modernes, p. 1.4-22, 1990.
muito tempo, a palavra drferunça. A palavra drferança ê no fundo a
operação pela qual Jacques Derrida tentou acomodar a inexistência.
Althusser. Le (Re)commencement du matérialisme dialectique.
Acomodar como se acomoda por escrito. Ele tentou acomodar o Critique, n. 240, p. 438-467, llirat. 1967.

inexistente na diferança como ato de escritura, como deslizamento. Lyotard. Custos, quid noctis?. Critiqwe, n. 450, p. 851-863, nov. 1984.
Em sua orientação, eu também tentarei acomodar a inexistência in- Françoise Proust. Sur le livre de Françoise Proustl- Kant: le ton de
fringindo-lhe o deslizamento do "e" para o "a", pelo qual se significa, I'histoire. Les Temps Modernes, n. 565-566, p.238-248, 1993.
na sua maneira mundana de existir, que seu ser não é por isso menos
Jean-LucNancy. LOffrande réservée. In: Sens entous sens: autour des
irredutível. Não somos nada,sejamos. É o imperativo da inexistância. trauaux deJean-Luc l\ancy. Ed. Francis Guibal etJean Clet Martin. Paris:
Não se sai dali. Obrigado aJacques Derrida por ter sido um guardião Galilée, 2004. p. 13-24.
vigilante desse imperativo.
Barbara Cassin. Logologie contre ontologie . Po€tsie, n.78, p. 111-116,
*** dêc.1996.
Ranciêre. Les Leçons de Ranciêre: savoir et pouvoir apràs la tempête.
:_ --
In: La Philosophie déplacée: autour de Jacques Ranciàre. Paris: -bdrttons
Horlieu, 2006. p. 131-154.
Lacanr.Jacques Lacan (1901-1981). Le Perroquet, r. 0, nov. 1981.
Derrida. Prononcé à l'École Normale Supérieure. Inédit, oct. 2005.

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