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A TEORIA

DO CONHECIMENTO
DE KANT
Pontifcia Universidade Católica do Rio Grande do Sul

Chanceler:
Dom Altarniro Rossato

Reitor:
Ir. Norberto Francisco Rauch

Conselho Editorial:
Antoninho Muza Naime
Antonio Mario Pascual Bianchi
Délcia Enricone
Jayme Paviani
Jorge Alberto Franzoni
Luiz Antônio de Assis Brasil e Silva
Regina Zilberman
Telmo Berthold
Urbano Zilles (Presidente)

Diretor da EDZPUCRS:
Antoninho Muza Naime
Januário Lucas Gaffrée
Ex-Lente de Filosofia do Direito
na Faculdade de Direito de Porto Alegre

A TEORIA
DO CONHECIMENTO
DE KANT
(UM ENSAIO)

SEGUNDA EDIÇÃO

Coleção:
PENSADORES GAÚCHOS - 6
Coordenador: Luis Alberto De Boni

-EDIPUCRS

Porto Alegre
2000
1@ edição:
Rio de Janeiro, Typ. Do Jornal do Commercio,
de Rodrigues & Comp., 1909

Capa:
Cristiano Max Pereira

Editoração e composição:
Suliani Editografia Ltda. Fonelfax: (51) 336.1 166

Revisão:
Reinholdo A. Ullmann

Impressão e acabamento:
Gráfica EPECE

Dados Internacionais de catalogação na Publicação (CIP)

K16G Gaffrée, Januário Lucas


A teoria do conhecimento de Kant: um ensaio /
Januário Lucas Gaffrée; org. Luis Alberto De Boni. - 2.
ed. -Porto Alegre : EDIPUCRS, 2000.
206 p.; (Coleção Pensadores Gaúchos, 6) - -

ISBN: 85-7430-110-8

1.Filosofia 2. Filosofia Alemã 3. Kant, Emmanuel-


Crítica e Interpretação 4. Crítica da Razão Pura - Crí-
tica e Interpretação 5. Teoria do Conhecimento I. Boni,
Luis Alberto de 11. Título 111. Série

CDD 142.3
193
121

Ficha Catalográfica elaborada pelo


Setor de Processamento Técnico da BC-PUCRS

EDIPUCRS
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E-mail: edipucrs.pucrs.br
http://ultra.pucrs.br.edipucrs/
Prefácio h Segunda edi* ......................
.... ................
Ao leitor..........................
.............................................
- O problema do conhecimento
e os diversos simmas filosóficos ...................................
11 - O problema t&ioosúgnoscitivo e o dogmatismo.........
111 - As bmes da fiIo5ofia dtica ............. ......................
lv - O espaço e o tempo .........................................................
v - Os conceitos puros do entendimento..............................
VI .A dedução dos conceitos puros do enkdmmto...........
VII
vm .O significadoda coisa em si...........................................
IX .A psicologia racional e os paralogismos da r& pura..
X .A ccwmologia racionaie as antinomias da razb pura ....
XI - A solução das antinomias da razão pura.........................
XII- O problema da liberdade ................................................
xm - A teologia racional e a existêwia de Deus .....................
XTV - A teologia racional c a teologia mora! ..........................
XV .A razão pura W c a e a razão pura prática .................... 155
XVI .As diversas espécies de certeza .......*.....
......,.. . . . 165
XVIT - O lugar da fflosobcrltica
entre os sistemas espadativos .................................... 171
XVIII - Critica e metafisica....................................................... 183
XM .Mecanismo e tdeologia ....................................... 193
A diferença de outros profissionais de áreas empíricas afins em
nosso País, os estudiosos de Filosofia pouco têm-se dedicado à re-
constituição histórica das idéias de seus pensadores. Assim também
relativamente ao pioneiro livro A teoria do conhecimento de Kant
(1909), de Januário Lucas Gaffrée, ex-professor de nossa Faculdade
de Direito, limitar-nos-emos a discutir as suas idéias gerais, avalian-
do desta maneira a sua contribuição ao desenvolvimento da Filosofia
como tal. Este procedimento concorda com sua noção mais eminente
de Filosofia como autoconsciência crítica da humanidade.
O livro já vale pelo conceito de Filosofia que o Autor, mais
inspirado em sua própria época do que em Kant, esboça nas pági-
nas iniciais do prólogo "Ao leitor". Segundo sua concepção, a Filo-
sofia tem em vista, primeiro, pôr e tentar resolver problemas gerais
com o objetivo de alcançar uma síntese do universo, a partir de
pontos de vista gerais das ciências e da cultura e por meio de cinco
problemas principais: o problema lógico ou do conhecimento, o
problema cosmológico, o problema biológico, o problema psicoló-
gico e o problema apreciativo ou ético. A esses problemas ele
acrescenta ainda o estético, o social e o religioso, mas reduzindo os
dois últimos ao problema ético, e o primeiro ao psicológico. O que
concorda, pelo menos no último caso, com o estágio de desenvol-
vimento do pensamento kantiano à época da Crítica da razão
pura,' que àquela época ainda não descobrira, mas o que anunciou
meses depois, princípios a priori para o juízo de gosto (refiro-me à
carta de Kant a Reinhold, de 28 de dezembro de 1787).
Em segundo lugar, a Filosofia consiste, além da autocrítica ao
próprio pensamento, no exame crítico dos pressupostos de um sis-
tema que deva e possa pretender ser válido. Neste último sentido, o
autor justifica a sua investigação da Crítica da razão pura, que ele
apresenta como teoria do conhecimento de Kant.

' B 35, 2. ed. 1787. Tradução de V. Rohden e U. B. Moosburger. São Paulo: Abril
Cultural - (Col. Os Pensadores). 1980, p. 40, Nota.
Segundo ele, apoiado em Leibniz, todas as construções espe-
culativas são em parte verdadeiras, procurando o homem através
delas realizar a sua concepção do cosmos. Para isso o pretendente a
filosofar precisa ter a capacidade de formular idéias gerais e senso
especulativo. A atividade filosófica coexiste com a existência de
problemas, tem a duração deles e encontra neles o aguilhão à ativi-
dade do pensamento. O homem enfrenta continuamente problemas
gerais, como os problemas da sua aptidão a conhecer o mundo, do
limite desses conhecimentos, da origem da vida, da natureza de
nossa vida íntima, dos motivos ou razões de nossas ações. A Filo-
sofia trata os problemas da ciência num nível mais geral, procuran-
do formular com eles uma síntese lógica e racional do universo. A
cada grande época científica correspondeu uma conseqüente cons-
trução filosófica. É neste sentido que a Filosofia é "uma espécie de
exame de consciência que a humanidade fez de si mesma e dos
seus progressos" (p. 21). O valor da Filosofia reside precisamente
em ser "a consciência da humanidade", representando a quintes-
sência da cultura de uma época, as idéias e sentimentos predomi-
nantes nela e indicando uma direção a seguir. Como tal, a Filosofia
exige que o homem se desprenda das contingências materiais de
vida e do quotidiano e busque satisfazer aspirações mais elevadas,
tendo consciência dos deveres, da razão por que agimos e lutamos,
do que somos e do lugar que ocupamos no cosmos. Enquanto rela-
cionada com os problemas da época, a Filosofia é Weltanschauung
- no sentido de Dilthey, seguido pelo Autor -, concepção do uni-
verso, que é experienciada globalmente por qualquer um, em sua
unidade, mas que cabe analisar e criticar metódica e sistematica-
mente.
A Filosofia de Kant não se reduziu a um ou outro desses con-
ceitos, e nem tampouco à Crítica da razão pura, como, antes,
Gaffrée deu a entender, desfigurando-a muitas vezes em virtude
desta limitação de abordagem. Mesmo sob o ônus dessa parcialida-
de, ele realizou um ensaio arguto e apaixonado sobre a primeira
Crítica. O método, que ele propôs e tentou cumprir para essa forma
de fazer filosofia, consistiu em julgar um sistema filosófico com
isenção de ânimo e conhecimento de causa, estudando-o historica-
mente, sem o copiar servilmente, mas tornando compreensíveis e
nítidas suas proposições fundamentais e oferecendo-as à reflexão,
discussão e crítica do leitor.
Desperta admiração essa sua iniciativa, se levarmos em conta
as dificuldades muito adversas que enfrentou em sua época, quando
a Filosofia, desprestigiada pelo positivismo, resumia-se a uma re-
flexão superficial, diletante e malvista: "O estudo da Filosofia é
entre nós, desde que passe de mero diletantismo, completamente
descurado e, acrescentamos, malvisto. O ensino oficial suprimiu-o
dos seus programas; de sorte que ele não é daquelas disciplinas que
nos permitem ganharmos o pão. Aplicar-se a ele é, por conseguinte,
ou de espíritos desocupados ou, pior ainda, indica um lamentável
retrocesso intelectual para os domínios da metafísica decaída e
desprestigiada. O culpado dessa incúria das coisas filosóficas, as
quais, seja dito de passagem, sempre tiveram raros cultores entre
nós, é o espírito sectário do positivismo, que, no berço do nosso
republicanismo oficial, procurou imprimir o seu cunho a todas as
nossas instituições, não lhes escapando, como de direito, o ensino"
(P. 19).
Em face da filosofia de Kant, duas atitudes do positivismo po-
dem ser consideradas: de um lado, pela redução dos fatos íntimos a
sua atuação social, o positivismo desconheceu e renunciou ao estu-
do do sujeito pensante, desconsiderou os limites e faculdades de
nossa razão e apreciou apenas os fatos dados em sua concatenação
objetiva e suas leis. Não que se tratasse de pensar um sujeito abs-
trato do conhecimento, pois sem a realidade efetiva do universo
pensado é impossível conceber o próprio sujeito pensante e suas
experiências objetivas. De outro lado, em sua recusa à metafísica o
positivismo de algum modo coincidiu, se não com o espírito, com a
letra da Crítica da razão pura. Só que Kant, demonstrando a im-
possibilidade da metafísica em seu sentido especulativo e dogmáti-
CO,renovou-a, com base nos resultados de sua primeira Crítica,
como teoria transcendental das condições a priori do conhecimento
e como metafísica da prática. Segundo aquela concepção interpre-
tada por Gaffrée, os princípios fundamentais da Filosofia são ante-
cipações, analogias e postulados, e não axiomas. Eles precisam ser
deduzidos, isto é, necessitam mostrar que eles são condições im-
prescindíveis da experiência (cf. p. 156).
Uma das vantagens atuais do livro de Gaffrée foi sua discussão
da teoria do conhecimento de Kant desde a perspectiva de teorias
dominantes em sua época, dentre as quais destacou o monismo
naturalista de Haeckel, que ele confrontou também com o espino-
zismo, o idealismo e formas vigentes de materialismo. O motivo
dessa sua referência histórica foi mostrar que as teorias filosóficas
modernas de algum modo derivam do criticismo kantiano ou, no
mínimo, têm contas a acertar com ele. Todo sistema posterior a
Kant não pode esquivar-se à crítica da razão e a deixar ver através
dele os seus erros, acertos, princípios e inconseqüências. Sua filo-
sofia fornece um critério regulador para o julgamento de qualquer
doutrina. Curiosamente, todo o trabalho de Gaffrée é realizado sem
nenhuma referência bibliográfica, nenhuma indicação de fontes e
citações do texto kantiano. As várias expressões alemãs que utili-
zou, com boa tradução a seguir, fazem supor sua utilização pelo
menos do texto original da primeira Crítica. Os principais temas
dela, salvo alguma omissão importante como a dos juízos sintéticos
a priori, são especificamente tratados. Isto torna ao mesmo tempo
maltratados alguns desses temas, cingidos à sua abordagem dentro
da primeira Crítica, mas que receberam relevantes contribuições
posteriores, como é o caso do tema prático. Independentemente
porém de todos os erros que possamos detectar em sua "explanação
sucinta" - como ele prefere chamá-la, ao invés de "exposição" -, é
impressionante a tensão especulativa que ele conseguiu imprimir à
sua forma de tratamento da primeira Crítica, da qual aprendemos,
além de aspectos de conteúdo, o exemplo de um empreendimento
cercado pelas adversidades que descreveu.
Possivelmente o livro de Gaffrée teria lucrado se tivesse abor-
dado de maneira mais exaustiva certos temas relevantes da teoria
do conhecimento kantiana, como, por exemplo, os da noção de
transcendental, de experiência, de juízo, de dedução, de consciên-
cia e de objeto. Ao invés disso, ele preferiu um tratamento breve de
todos os assuntos aflorados no âmbito estrito e algumas vezes es-
treito da primeira Crítica. Se com isso logrou uma razoável apre-
sentação da dedução, incorreu numa exposição escolar do esque-
matismo. Em troca entendeu bem o fulcro de certas questões, como
a da ontologia, que confundiu coisa em si e fenômeno, e a do equí-
voco da metafísica nos paralogismos e antinomias, ao incorrer em
silogismos de quatro termos, com o termo médio tomado em acep-
ções diversas na premissa maior e na premissa menor. É o caso, na
antinomia, do conceito de existência condicionada (cf. p. 131) e, na
psicologia racional, da diferença entre sujeito pensante e sujeito
real do juízo (cf. p. 106); neste último caso, o sujeito lógico, que
não é o sujeito real pensando no juízo, é mediante um sofisma
transformado em substância simples ou alma. Trata-se de uma ilu-
são intrínseca à razão, que pretende atribuir existência objetiva ao
próprio noúmenon e que só a crítica kantiana trouxe à luz.
Eu não diria que os principais problemas do texto de Gaffrée
tenham a ver apenas com o uso equívoco de termos, como, por
exemplo, de uma suposta diferença entre os sentidos de "mundo" e
de "cosmos", que ele define de modo diverso e a seguir confunde.
Inicialmente propõe que o termo "mundo" signifique o conjunto
dos fenômenos, e "cosmos" os fenômenos no espaço (cf. p. 113).
Poucas linhas depois ele identifica mundo com o todo incondicio-
nado: "[ ...I a esse todo incondicionado chamaremos mundo". Com
base nisso não poderia falar, poucas linhas após, do "mundo condi-
cionado como objeto da percepção" (p. 114). O mundo no espaço e
no tempo é identificado como grandeza, que a cosmologia procura-
rá transformar em grandeza total do mundo. O cosmos como gran-
deza, porém, observa o Autor, é uma coisa em si fenomenal, um
círculo quadrado, um absurdo. Relativamente às antinomias, as
teses supõem um cosmos limitado (como as antíteses um cosmos
ilimitado): começo no tempo, um espaço finito (cf. p. 129; o senti-
do anterior de cosmos limitado aos fenômenos exteriores é altera-
do). Então cosmos passa a ser declarado síntese dos fenômenos:
"Cosmos como síntese dos fenômenos nunca nos é dado [..I9'; e na
mesma frase passa a usar mundo e cosmos como sinônimos (cf. p.
132). Como solução crítica o mundo termina em idéia regulativa
(p. 134). Ao final, cosmos e fenômeno são identificados: "[ ...I
contanto que não aceitemos a existência de um ente necessário
como fenômeno, isto é, como fazendo parte do cosmos" (p. 141).
Os principais problemas com os quais o leitor se defronta no
texto dizem respeito, de um lado, a uma confusão entre funções da
sensibilidade e do entendimento, de juízos e categorias e, de outro,
a uma compreensão estreita, insuficiente e equivocada da filosofia
prática kantiana. Do ponto de vista da filosofia teórica, o conceito
de experiência é usado apenas no sentido comum factício: "a expe-
riência [...I oferece à sensibilidade uma variada série de percep-
ções" (p. 67), e não no sentido técnico kantiano de um conheci-
mento empírico de objetos que envolve a participação do entendi-
m e n t ~ Grave
.~ apresenta-se a confusão entre funções da sensibili-
dade e do entendimento, ao invés de delimitar a função do enten-
dimento como faculdade de pensar o objeto da intuição sensível, e
a da sensibilidade, de percebê-lo. E Kant nos adverte com insistên-
cia: "Estas duas faculdades ou capacidades não podem trocar as
suas funções. O entendimento nada pode intuir, e os sentidos nada
pensar. O conhecimento só pode surgir da sua reunião. Por isso não
se deve confundir a contribuição de ambos, mas há boas razões
para separar e distinguir cuidadosamente um do outro" (B 75, trad.
cit. p. 57). O desrespeito a essa distinção enfática conduziria a uma
identificação entre estética (ciência das regras da sensibilidade em
geral) e lógica (ciência das regras do entendimento em geral). Pois
é o que faz Gaffrée. Segundo ele, o entendimento é afetado pela
experiência (cf. p. 55). Ora, a afeção é um fenômeno empírico con-
cernente à sensação, pelo qual ela recebe uma matéria a ser elabo-
rada pelo entendimento. A faculdade de obter representações por
afeções é a sensibilidade. Mas Gaffrée acrescenta que coexistência
e sucessão (fenômenos espaço-temporais) são as "únicas condições
mediante as quais o intelecto percebe e elabora as suas percepções"
(p. 61). O intelecto, pois, assume aí as funções da sensibilidade,
além da sua própria. Não se trata de um fenômeno qualquer, mas
do universo, que "afeta a nossa sensibilidade e o nosso entendi-
mento" (p. 63). O Autor sai-se melhor ao dizer que é a razão que
cria as formas originárias de nossas concepções, enquanto a sensi-
bilidade recebe as impressões (cf. p. 65); a sensibilidade do sujeito
pensante apreende". A confusão consolida-se ao afirmar o conceito
como parte (abstrata) da intuição, que contém a inteira soma dos
predicados (cf. p. 56). A determinação correta da percepção, de um
lado, leva por outro à confusão entre conceito (do entendimento) e
idéia (da razão): "A percepção apreende um fenômeno [...I o con-
ceito nos dá a idéia desse fenômeno" (p. 66). Para o Autor "noú-
menon... pode ser pensado, ainda que não concebido" (p. 63). Kant,
porém, distingue entre uma função dos conceitos da razão: conce-
ber (o incondicional), e uma função dos conceitos do entendimento,
compreender (as percepções) (cf. Crp B 367, trad. cit. p. 185). Sur-
preendentemente o Autor, confundindo intuições puras com formas
a priori do entendimento, deriva deles, ao invés de derivar das

Cf. Crítica da razão pura = Crp, B 1, trad. cit. p. 23.

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formas dos juízos, as categorias: "Descobrindo os juízos sintéticos
a priori, demonstrando como as intuições puras, as formas a priori
do entendimento, fazem nascer as categorias [...I" (p. 181). Se as
categorias são deduzidas de intuições puras (cf. p. 191), cai por
terra a concepção do conhecimento como reunião de intuições e
conceitos. Ao invés de fazer derivar os conceitos puros do enten-
dimento dos quatro tipos de formas possíveis de juízos, como Kant
mostra nos parágrafos 9 e 10 da Lógica Transcendental (B 95, trad.
cit. p. 69, e segs.), definindo categoria como predicado de um juízo
possível (Crp, B 94, trad. cit. p. 68-69), o nosso Autor simples-
mente identifica categorias e juízos sintéticos a priori, ou seja a
parte com o todo (cf. Gaffrée p. 249: "A substância kantiana [...I é
um puro conceito do entendimento, é um juízo sintético a priori").
Antes disso ele já confundira categorias com as puras formas do
juízo. De fato, os títulos das quatro divisões são os mesmos, mas as
subdivisões variam entre tábuas dos juízos e tábuas das categorias
(cf. Crp, parágrafos 9 e 10). Gaffrée não afirma, pois, como o faz
Kant, que as categorias se formam a partir de juízos e, por conse-
guinte, não as entendeu. Fica claro com isso por que o livro não faz
nenhuma explanação sobre juízos sintéticos a priori.
O outro conjunto de observações diz respeito à questão da pos-
sibilidade de uma metafísica prática. Embora a Crp tenha contem-
plado a possibilidade de uma metafísica da experiência e uma me-
tafísica dos costumes, como resultado dessa Crítica, Gaffrée desen-
volveu insuficientemente os conceitos da última forma de metafísi-
ca. Os conceitos da filosofia teórica, enquanto teoria da possibili-
dade da experiência, não servem de base para uma filosofia prática,
porque eles concernem à fundamentação dos fenômenos (naturais),
enquanto para a prática requer-se que o conceito noumênico de
liberdade, pelo menos, não seja contraditório. Esta não-contradito-
riedade do conceito de liberdade'foi demonstrada na resolução da
terceira antinomia (referida também no prefácio à segunda edição
da Crp), mediante a distinção de dois sentidos do conceito de ob-
jeto, enquanto fenômeno e enquanto coisa em si.
No capítulo sobre o significado da coisa em si, o Autor, na
tentativa de ser fiel ao ponto de vista crítico de Kant, observa que
não se trata de demonstrar a impossibilidade do supra-sensível, mas
apenas do conhecimento teórico dele. Na sua remissão ao antigo
dogmatismo, que distinguia sensibilidade (apreensão do objeto
como aparece) e entendimento (apreensão do objeto como ele é em
si), ele parece ignorar que essa era também a posição de Kant até a
Dissertação de 1770, Sobre as formas e os princípios do mundo
sensível e inteligível. Nada, porém, na sua explanação permite uma
abertura crítica além de uma metafísica da experiência. A metafísi-
ca reduz-se a determinar os elementos últimos do conhecimento,
estabelecendo-lhes validade; e a possibilidade de uma metafísica
prática, a partir da apontada não-contradição do conceito de liber-
dade, deixa de ser considerada. Antes, ela é vista como um deva-
neio. Dentro daqueles limites apontados, a metafísica é ciência;
fora deles é um devaneio (cf. p. 192). A liberdade é apontada como
um postulado entre outros da razão prática, quando ela deveria ser
privilegiada como conceito prático. Ela é não só o conceito, cuja
realidade uma vez provada mediante o factum da lei moral torna-o
o conceito-chave de todo o sistema da razão pura, mas também é
aquele conceito a partir do qual os postulados de Deus e da imorta-
lidade tomam consciência e realidade objetiva (Crítica da razão
prática = C.r.pr., A 4). Gaffrée observa que a existência da liber-
dade só se explica no caso de supormos que os fenômenos sejam
nossas representações, e as suas causas, coisas em si ou idéias (cf.
p. 136). Mas ele se inclina imprecisamente por uma liberdade rela-
tiva, que para Kant como liberdade psicológica é fictícia (cf.
C.r.pr., A 174). A debilidade dessa defesa de liberdade como con-
ceito fundante da prática leva Gaffrée a afirmar que, diante da ne-
cessidade natural, a simples consciência da liberdade não sendo
real, será um motivo entre outros a determinar nossas ações (cf. p.
140).
Juntamente com o conceito de filosofia prática, também o con-
ceito de razão crítica fica comprometido. A solução das antinomias
requeria a sentença de um juiz imparcial, que só pode ser a própria
razão. Só que ela, segundo o nosso Autor, ao invés de manter uma
postura de neutralidade, toma partido pelo teísmo, pelo espiritua-
lismo e pela moralidade, cujo interesse independe totalmente do
científico: "Não podendo proceder com imparcialidade nem tam-
pouco mostrar a sem-razão de seus adversários sem dogmatizar, ela
tem de basear a força de sua polêmica em interesses morais" (p.
157). Essa tomada de partido de Gaffrée contra a razão prática
leva-o a ver nesta uma defesa do dogmatismo e do status quo: a
razão, por interesses morais, "em lugar de demonstrar a importân-
cia das teorias adversas, tentará chamar a nossa atenção para o pe-
rigo público que poderia advir de se sustentarem tais doutrinas" (p.
157-8). Para arrematar, cito ainda esta frase: "O interesse moral
que tem razão em acreditar na imortalidade da alma e na existência
de Deus está de tal maneira vinculado às doutrinas da religião, à fé
oficial e ao bem público, que fácil lhe é fazer passar os seus adver-
sários por inimigos do Estado e da ordem estabelecida" (p. 158).
Essa caricatura da razão prática é o oposto de tudo o que Kant
pensou sobre uma razão crítica, especialmente sobre uma razão
prática que se concebe como essencialmente crítica de uma ordem
empírica heterônoma, centrada em interesses particulares, ela sim
comprometida com a irrazão vigente.
Seria fastidioso prosseguir no detalhamento dessa investida
contra a ética kantiana da autonomia, resultante de uma universali-
zação abusiva da Crítica da razão pura, que parece revelar, menos
que uma abstração metódica, um desconhecimento puro e simples
das duas outras Crítica kantianas - a Crítica da razão prática
(1788) e a Crítica da faculdade do juizo (1790), só mencionadas
por ele uma vez pelo nome, en passant (cf. p. 205).
Antes de concluir, conviria chamar a atenção para a hipótese
alternativa, apresentada por Gaffrée, de uma ética científica, tendo
fins a posteriori e tendo por base os conhecimentos superiores da
inteligência, "em busca de fins que promovam uma estabilidade
cada vez maior do equilíbrio vital, sendo, em síntese, os nossos
atos voluntários sempre resultado de uma luta contínua de motivos,
tanto objetivos como subjetivos, na qual sempre triunfará o mais
forte, de acordo com a causalidade natural" (p. 200). Ninguém
acreditará que essa ética da força constitua a resultante de uma
postura científica em favor da crítica teórica kantiana.
É um ponto de vista comum da primeira e segunda Crítica que
a ética kantiana nada tem de anticientífico: "A Matemática, a Ciên-
cia Natural e mesmo o nosso conhecimento empírico acerca do
homem possuem um alto valor como meios para se atingir os fins
da humanidade [...I" (Crp, B 878, trad. cit. p. 413). Só mediante a
união de ciência e sabedoria a moral não termina no fanatismo e no
misticismo: "A ciência (investigada criticamente e introduzida
metodicamente) é a porta estreita que introduz à doutrina da sabe-
doria [...], uma ciência cuja guardadora tem que continuar sendo a
Filosofia" (Crpr., A 292).
A tentativa do Professor de Filosofia do Direito, Januário Lucas
Gaffrée, de oferecer uma explanação completa da Crítica da razão
pura como teoria do conhecimento, embora parcialmente bem-
sucedida, tornou-se escolar e levou-a, pela vastidão de abordagem,
a resultados problemáticos em alguns aspectos. Será recomendável
servir-se dessa obra como companhia de leitura complementar à
ocupação direta com a própria Crítica kantiana. Nessa função ela
contribuirá para o esclarecimento de conceitos e para a formação
do pensamento crítico. A solução e adversidade-contra as quais ele
lutou para escrevê-la contam com o nosso reconhecimento ao ree-
ditá-la, numa época de mais acentuado desenvolvimento do pensa-
mento filosófico, fecundado pelo estudo crescente de Kant.
Porto Alegre, 10 de janeiro de 1998.
AO LEITOR

Não é com intuito de alardear fingida modéstia que se resolveu


o autor chamar - um ensaio - a este pequeno e despretensioso tra-
balho. Ninguém mais do que ele, na verdade, está plenamente con-
vencido das suas múltiplas lacunas e deficiências.
Expor, com efeito, em poucas páginas, doutrinas que se nos
afiguram, por sua complexidade, das mais difíceis que se hajam
apresentado nos domínios da especulação, é uma tarefa que exige
qualidades de síntese e penetração, as quais nem de longe nos ga-
bamos possuir.
O presente trabalho é provável não viesse à luz da publicidade,
de que talvez não seja digno, se à solicitação de amigos, nimia-
mente indulgentes, se não juntassem certas considerações de ordem
superior que nos varreram do espírito as dúvidas e hesitações.
O estudo da filosofia é entre nós, desde que passe de mero di-
letantismo, completamente descurado e, acrescentemos, malvisto.
O ensino oficial suprimiu-o dos seus programas; de sorte que ele
não é daquelas disciplinas que nos permitem ganharmos o pão.
Aplicar-se a ele é, por conseguinte, ou de espíritos desocupados ou,
pior ainda, indica um lamentável retrocesso intelectual para os do-
mínios da metafísica decaída e desprestigiada. O culpado dessa
incúria pelas coisas filosóficas, as quais, seja dito de passagem,
sempre tiveram raros cultores entre nós, é o espírito sectário do
positivismo, que, no berço do nosso republicanismo oficial, procu-
rou imprimir o seu cunho a todas as nossas instituições, não lhe
escapando, como de direito, o ensino.
As bases da doutrina só admitem a filosofia como síntese das
diversas ciências, como compendiando as mais altas generalidades
delas. Do mesmo modo que, não reconhecendo a psicologia subje-
tiva, ela só pretende estudar os nossos fatos íntimos na sua atuação
social, assim também, desconhecendo ou renunciando a estudar o
sujeito pensante, ela dispensa a consideração dos limites e faculda-
des da nossa razão, para, apurando os fatos dados somente, estudar-
lhes apenas a concatenação objetiva e aparente e pesquisar as leis a
que se mostrem sujeitos.
Desta forma, só existe verdadeiramente uma única filosofia, a
qual, dispensando todos os critérios, anteriormente adotados e se-
guidos, consiste apenas em considerações gerais sobre as diversas
ciências particulares. O estudo dela competirá, conseguintemente, a
uma classe especial de pessoas que, examinando os resultados de
cada ramo particular de conhecimentos, procurem neles a passagem
e o elo conexivo que devem existir de uns para outros.
Essa especialização, já se vê, é um golpe profundo vibrado na
filosofia; principalmente num meio em que, como é indubitavel-
mente o nosso, o estudo dos problemas especulativos não é nem
seguido sistematicamente nem infelizmente prezado. O que mais
prejudicial nos parece, porém, decorrer do ponto de vista acenado,
é que ele à filosofia tira-lhe o caráter, tão seu e tão próprio, de sín-
tese que havemos de fazer do universo, de concepção que teremos
que formular acerca do cosmos e sua origem, do homem e do seu
destino.
O verdadeiro fito da filosofia não é, segundo nossa arraigada
convicção, o de decifrar enigmas, mas o de pôr e tentar solver pro-
blemas, que sempre se nos apresentam e que, conforme o desen-
volvimento científico que houvermos atingido e o grau de cultura
que tivermos alcançado se nos apresentarão e serão resolvidos de
modo fundamentalmente diverso.
Quererá isso, porventura, dizer que todos os sistemas filosófi-
cos são necessariamente falsos? De modo algum; já o provecto
Leibniz afirmava que, comparados entre si os grandes sistemas que
fizeram época, são em muito maior quantidade os pontos em que
eles se acham de acordo e são verdadeiros do que aqueles em que
divergem e se revelam falsos.
Significa isso que as construções especulativas (naturalmente
só aquelas que tal nome merecem) apanham a verdade, não toda,
mas em parte, e com ela tentam realizar a sua concepção do cos-
mos, atendo-se necessariamente aos dados que Ihes são fornecidos
pelas várias ciências ou disciplinas particulares que tratam de com-
pendiar, cada uma nos seus limites as várias ocorrências no cos-
mos.
Cada época tem, portanto, a sua filosofia, tomada a palavra no
seu sentido mais lato, no que os alemães exprimem com muita pro-
priedade por Weltanschauung (concepção do Universo); cada indi-
víduo mesmo, a não ser que se mostre completamente despido da
faculdade de formular idéias gerais, desde que possua uma dose,
pequena embora, de senso especulativo, não poderá deixar de for-
mular as sacramentais interrogações: - donde viemos? que somos?
para onde vamos? Responder, explicando sistematicamente os seus
pontos de vista, a essas interrogações é possuir uma filosofia.
Mostrar o absurdo, o incabido, o falho em qualquer solução ofere-
cida, e propor, em lugar da atacada, outra que se afigure ter requi-
sitos mais conformes com o fim a atingir, nisso consiste a luta dos
sistemas que mutuamente se destroem, pelo menos em parte. E,
como sem dúvida alguma a ciência é que nos oferece a maior e
mais importante massa dos elementos que entram na formulação de
um determinado sistema filosófico, podemos afoitamente dizer que
a cada grande época científica corresponde, como conseqüência
dela, uma grande construção filosófica.
É uma espécie de exame de consciência que, por meio da filo-
sofia, a humanidade faz de si mesma e dos seus progressos, para,
marcados os grandes pontos de referência, seguir desassombrada-
mente em sua marcha para a frente.
A filosofia determina-se pelos problemas gerais que o homem
continuamente tem que pôr e resolver; apontados esses problemas,
fica ipsofacto indicado e delimitado o campo da filosofia.
Na apuração dos dados do cosmos, deparamos em primeiro lu-
gar um sujeito que se julga apto a apreendê-los e a sobre eles for-
mular a sua síntese; quer-se saber se tal síntese pode ser válida e até
que ponto alcançam as faculdades do sujeito na respetiva formula-
ção: o primeiro problema que a filosofia tem que pôr e resolver é o
problema lógico ou do conhecimento.
Posto e solvido este, quer num sentido dogmático quer com
orientação crítica ou céptica, quer afirmando quer negando limites
ao nosso conhecimento, o sujeito tem que formular do cosmos, da
sua origem, das suas causas e das ocorrências que nele se dão, uma
síntese, a qual trata de determinar e concatenar os objetos que lhe
são representados, afirmando, por exemplo, ou a criação do mundo
ou a sua existência ab-aterno, a existência do ente sumo ou a ne-
gação dela: é o problema cosmológico.
A este segue-se imediatamente a pesquisa daquelas diferenças
específicas que, havendo lugar na matéria, transformando-a, modi-
ficando-a e fazendo-a evoluir, obrigam-na a passar de um estado de
anorganismo para o de organismo, suscetível de desenvolvimento,
não por mera agregação externa de partes, mas pelo nascimento e
crescimento; a filosofia estuda as origens da vida e busca delas uma
explanação racional: é o seu problema biológico.
A vida em suas variadas manifestações nos apresenta, além das
simples ações orgânicas ou fisiológicas, uma série de fatos os
quais, determinando mais do que meros movimentos mecânicos -
ações e reações do meio e do organismo - pouco a pouco vão pro-
duzindo um conjunto de ocorrências, as quais, parecendo espontâ-
neas, nos deixam ver além das ações mecânicas outras que conhe-
cemos sob a denominação de sentimentos, raciocínios, impressões,
dando a consciência como síntese de todos eles: é o problema psi-
cológico.
Além desses pontos de vista, constituem matéria da filosofia as
ações humanas, não no que se referem à nossa atividade puramente
orgânica, mas no que diz respeito ao seu valor como meios para
alcançar fins, ou de conservação ou de aperfeiçoamento, tendo-se,
portanto, em vista os respectivos móveis: é o problema apreciativo
ou ético.
Seria possível ainda destacar o problema estético, o social e o
religioso; mas o primeiro, ao nosso ver, faz parte do psicológico e
os dois últimos se incluem no ético.
A filosofia tem por objeto e por fito tentar a solução desses cin-
co problemas, buscando do conjunto dos elementos que deles tira
formular a síntese do Universo.
Já se vê que as disciplinas particulares lhe fornecem cada uma
os elementos com os quais ela terá que lidar, elementos esses que
ela deverá coordenar, buscando, por via de generalização e síntese,
fundi-los em um todo único e superior, no qual sistematicamente e
em ordem determinada se vão enquadrar e tomar posição os dados
colhidos por cada uma daquelas disciplinas.
A filosofia distingue-se, pois, da ciência como tal por buscar,
tomando os elementos mais gerais dela, coordená-los, subordinan-
do-os a um princípio único e sintético, formando assim uma con-
cepção, lógica e racional, do Universo e suas ocorrências.
Como os elementos, porém, de que consta a explicação, por ela
fornecida, são os mais variados possíveis, devendo o intelecto que
a formula julgar da proporção que a cada um deles deve caber no
sistema a construir, à filosofia ocorre igualmente a obrigação de
julgar como cada sistema elaborou a sua construção, de que modo,
legítimo ou ilegítimo, empregou os seus materiais na síntese apre-
sentada.
Examinar, criticar, julgar os pressupostos sobre os quais se há
de basear um sistema que deva e possa ser aceito, é o segundo ob-
jeto da filosofia. Historicamente, a filosofia construtiva, dogmática
precede a crítica; racionalmente, porém, aquela deve ser sempre
conseqüência desta: primeiro, as bases e em segundo lugar, o edifí-
cio; do contrário pode acontecer, e é o que se tem visto, ruir o edi-
fício por falta de base.
O estudo da filosofia, além do encanto extraordinário e empol-
gante que sobre nós exerce, tem grande valor para a humanidade,
de tal sorte que, sob nenhum ponto de vista, ele se pode considerar
como uma inutilidade, própria de quem nada mais tem a fazer do
que perder-se em nebulosidades metafísicas.
A filosofia é a consciência da humanidade; os grandes sistemas
representam a quintessência da cultura de uma época; os erros, por
eles encampados, assim como as verdades que encerram nos dão a
compreensão nítida do que foram as idéias e os sentimentos pre-
dominantes em dado momento histórico, e ao mesmo tempo nos
apontam que direção eles haverão de seguir, nos indicam os pontos
de que outros pensadores, em eras posteriores, deverão partir para,
por sua vez, formularem a sua teoria a respeito do cosmos e suas
ocorrências.
Apurando e coordenando os dados já compendiados pelos pre-
téritos, o filósofo exerce a função, verdadeiramente nobre e gran-
diosa, de, desprendendo-nos das contingências puramente materiais
da vida, exigir da nossa atividade busque satisfazer a aspirações
mais elevadas do que o puro cumprimento dos deveres da vida
diária e civil.
Não que a observância desses deveres se deixe de ter, em qual-
quer circunstância, por necessária e altamente louvável; é preciso,
porém, que, lutando e agindo, tenhamos ao mesmo tempo plena
consciência daquilo por que agimos ou lutamos.
A harmonia e o equilíbrio que devem para nós resultar da cons-
ciência do que somos e do lugar que ocupamos no cosmos, nos
restitui paulatinamente a paz e a tranqüilidade, que nos permitem
considerar, não supersticiosamente aterrados e cheios de pavor,
mas intelectualmente consolados e contentes, as inúmeras, inces-
santes e variadas transformações no Universo.
Enquanto houver problemas a resolver, tanto durará a nossa
atividade. A filosofia é, pois, o maior incentivo de progresso; por-
quanto nos acena e nos incita constantemente a dar aos seus pro-
blemas uma resposta mais cabal e uma solução mais perfeita do
que as oferecidas pelosnossos antecessores.
"Im Anfange war die That", conforme nos assegura o Fausto de
Goethe; mas, como o nosso conhecimento não conhece limite, a
forma mais alta da ação, a atividade intelectual, existiu no princípio
e existirá enquanto perdurar a humanidade.
O estudo da filosofia deve ser feito metodicamente, de modo a
poder quem a ele se dedicar tornar-se capaz de julgar, com isenção
de ânimo e conhecimento de causa, das bases de qualquer sistema
que lhe for apresentado à consideração. Ora, tal só se poderá dar
depois de convenientemente fixados os requisitos que elas nos de-
verão apresentar. Este estudo de propedêutica filosófica será possí-
vel fazê-lo de duas maneiras: ou sistematicamente, apresentando
em proposições gerais e abstratas os pontos de vista colhidos no
exame dos diversos sistemas ou do sistema particular que se pre-
tende estudar; ou historicamente, mostrando na sucessão dos siste-
mas as idéias diretivas que vieram culminar na formulação e solu-
ção dos problemas filosóficos.
Para o estudioso são evidentes as vantagens deste último méto-
do de indagação; ao mesmo tempo que apreende as correntes supe-
riores que deram como resultado uma determinada construção es-
peculativa, ele simultaneamente compreende as evoluções e trans-
formações por que através de séculos e intelectos superiores, passa-
ram as teorias filosóficas.
Este estudo, assim feito, nos deve conduzir finalmente a po-
dermos expor e criticar as bases de um sistema qualquer. Expondo-
as, está claro, com a maior objetividade possível, sem contudo ser
um copiador servil do autor que se pretende interpretar, devem-se
tornar bem compreensíveis as suas proposições fundamentais. A
tarefa assumida, compreende-se, será dificílima: um intelecto infe-
rior buscando explanar as doutrinas, elaboradas por outro superior,
corre muitas vezes o risco de deixar incompreendido o mestre e
outras tantas o perigo, ainda maior talvez, de dar de sua doutrina
uma falsa idéia.
Entretanto, o tentâmen não será baldado, em primeiro lugar
para quem o realiza, tornando nítidas no seu espírito as idéias que
pretende expor, e em seguida para quem lê, tendo presente a inter-
pretação da doutrina a sua reflexão, discussão e crítica e, se tanto
for necessário, a sua retificação.
Não outro foi o intuito do autor do presente pequeno e imper-
feito trabalho senão o de contribuir com alguma coisa, embora tos-
ca e grosseira para os progressos do estudo da filosofia entre nós.
Ele se julgará suficiente e grandemente recompensado, se for causa
ou pretexto para que estudos mais desenvolvidos, mais proficien-
tes, mais sábios - que nada disso se poderá considerar o seu - puse-
rem em foco e convenientemente explanarem o ponto particular da
filosofia, sobre o qual quis chamar a atenção.
A única coisa que o seu favor poderá afirmar com consciência
é que empregou um esforço constante e o melhor das suas forças
em apresentar algo que, ajuízo das pessoas que se interessam pelo
assunto, seja legível e apreciável. O público julgará.
Finalmente, resta-nos agradecer, com o mais vivo reconheci-
mento, ao nosso nobre amigo, Sr. Alberto Saraiva da Fonseca, pelo
auxílio espontâneo e desinteressado que nos prestou para que se
tornasse uma realidade efetiva a publicação do presente trabalho.
Januario Lucas Gaffrée
Rio - Dezembro 1909.
O PROBLEMA DO CONHECIMENTO
E OS DIVERSOS SISTEMAS FILOS~FICOS

É indubitável que as tendências do mundo filosófico moderno


derivam do criticismo, inaugurado pelo genial pensador de Koe-
nigsberg. O próprio positivismo de Augusto Comte, apesar de sua
acre oposição a qualquer base especulativa, de sua formal negação
da lei da causalidade fenomenal, o que o converte em uma meto-
dologia, no sentido de ditar regras para a mais conveniente apura-
ção do dado ou fato objetivo, é, entretanto, no que diz respeito à
proibição de se investigarem as causas primeiras, um resultado,
embora limitado por sua estreiteza e intolerância, das conquistas,
realizadas pela Crítica da razão pura.
Quer seguindo uma orientação realista, quer procedendo em
sentido idealista, todo moderno sistema filosófico é obrigado a
girar em torno das bases, firmadas por Kant, e, aceitando-as ou
mesmo combatendo-as, a tomá-las como ponto de partida para as
construções que houver de levantar. Vê-se bem a extraordinária
importância que sobre o nosso pensar especulativo exercem as pes-
quisas do criticismo, até agora irrefragável em suas linhas funda-
mentais, quando se considera que as doutrinas, ao parecer mais
contrárias a ele, não o podendo abalar nem destruir, passadas, con-
tudo, pelo cadinho da crítica da razão, deixam logo a descoberto os
próprios erros, petições de princípios e inconseqüências.
O puro empirismo, assim como o materialismo irredutível, do
mesmo modo que o idealismo absoluto, solipsista, tornam-se fáceis
de reduzir às suas verdadeiras proporções, quando olhados pelo
prisma kantiano. Este assim fornece uma espécie de critério regu-
lador, pelo qual, de um ponto de vista imparcial e seguro, será 1í-
cito julgar dos pressupostos de determinada doutrina.
O grande mérito da filosofia crítica está não tanto na solução
que julgou dever dar ao problema (visto que ela poderia, evidente-
mente, ser errônea ou defeituosa), porém muito principalmente em
haver iniciado a análise profunda e estabelecido a questão prejudi-
cial da existência e da validade do nosso conhecimento. E o grande
erro dos seus adversários de todos os matizes, presos ainda, posto
que em sentido aparentemente antimetafísico, nas malhas do antigo
dogmatismo, é o de não terem visto que, primordial e anterior-
mente a qualquer consideração sobre o que constitui o objeto dos
problemas da filosofia, se faz mister provar que à mente humana é
dado resolvê-los.
A questão gnosiológica ou teórico-cognoscitiva, como se diz
em terminologia germânica, é a que se deve estudar preliminar-
mente a ser tentada qualquer construção especulativa. Sendo ela
desprezada, não se poderá manter sistema algum senão por meio de
admissões, verdadeiramente ousadas, as quais o irão lançar em
insondáveis abismos de concepções metafísico-dogmáticas, perigo
este de que justamente a obra de Kant teve por fito livrar a filoso-
fia.

Para ilustração do que deixamos dito, baste-nos examinar, entre


outras, por serem as do sistema mais em voga atualmente, as bases
do monismo naturalístico de Haeckel, rebento caduco dos materia-
lismos de priscas eras, transmitidos, através dos séculos, de Epicu-
ro e Lucrécio a Gassendi, a Lamettrie e a d'Holbach, e por estes a
Buechner, a Vogt e a Moleschott.
Essa metafísica, tentando explicar o Universo pelas puras leis
mecânicas, da matéria e do movimento, como modalidades de um
quid imutável, infinito e eterno, cai no vício de incompreensibili-
dade ontológica, e fatalmente no erro, ainda mais grave e prenhe de
conseqüências danosas, de, por tudo querer explicar, tudo deixar no
mesmo estado de anterior inexplicabilidade.
O monismo naturalista, apesar das roupagens científicas sob as
quais pretensiosamente se dissimula é metafísica tão poética (se-
gundo a classificação de Wundt) como as elaboradas pelos velhos
pensadores helenos, os Empédocles, os Demócritos, os Heráclitos,
o místico Pitágoras e o divino Platão.
E simplesmente porque, não tendo sondado nem fixado os li-
mites do conhecimento, ele não poderá chegar a conclusões essen-
cialmente diversas das obtidas pelo caduco dogmatismo pré-
kantiano. Frisantemente se chega a tal conclusão, quando, exami-
nados atentamente os seus pressupostos fundamentais, postas de
parte as suas injustificáveis pretensões a sistema absolutamente
verdadeiro e original, realizarmos que ele outro não é senão o spi-
nozismo rejuvenescido, e ao mesmo tempo desfigurado pela idéia
de evolução, originada de Leibniz e Kant, e, depois da teoria bioló-
gica de Darwin, aplicada com abuso a todos os domínios da filoso-
fia.
No sistema de Spinoza, a natura naturans (criadora) distingue-
se da natura naturata (criada) somente na nossa percepção dos
modos, atributos ou acidentes da substância, única, mas considera-
da sob o duplo prisma de criador e criado - causa sui - manifes-
tando-se-nos segundo uma ordem, necessária, invariável e eterna, a
qual exclui, por isso mesmo, qualquer indeterminação. No monis-
mo naturalista, a substância, em eterna e inexplicável transforma-
ção, num vaivém constante, sem fito e sem meta, de forças cegas
que se ignoram, cria seus modos e produz seus atributos. Ela só
obedece a uma necessidade que poderíamos mais apropriadamente
chamar fatalidade mecânica, a qual é a negação de toda uniformi-
dade e da regularidade que sempre supomos inerente à natureza das
coisas.
O monismo mecanista, excluindo de si o conceito de finalida-
de, tem como diretriz de todas as especulações, por ele sonhadas,
um único critério que completamente o domina: o acaso.

Bem sabemos - e cabe aqui desde já a observação, para que


não nos lancem em face doutrinas por nós repelidas - que o con-
ceito de meta, de teleologia, é puramente subjetivo, derivando da
tendência, profundamente arraigada no espírito humano, de atribuir
ao mundo ambiente os mesmos raciocínios e o mesmo modo de ser
que leva o nosso próprio eu à ação.
A teleologia é, nos domínios filosóficos, um resquício do pan-
psiquismo, do hilozoísmo e do antropomorfismo que, em épocas
anteriores, neles imperaram, e ainda hoje constituem o fundo da
maior parte dos sistemas religiosos.
Porque o homem dirige os próprios atos segundo determinados
fins, ditados pelas suas necessidades, ou físicas ou psíquicas, é
difícil, ainda ao mais cultivado intelecto, deixar de imaginar não
suceda o mesmo em todo o Universo.
Entretanto, o fato de acharmos incompreensível qualquer tele-
ologia, como atribuição objetiva das coisas, não nos torna mais
indulgentes para com o mecanicismo, o qual, não menos que o seu
contrário, é uma noção incongruente e abstrusa. Abstrusa e contra-
producente: o monismo naturalista, considerando o cosmos um
resultado do mais cego acaso, é inconseqüente com as próprias
premissas, quando lhe dá uma feitura determinada e necessária;
para isso ser-lhe-ia preciso admitir um plano pré-concebido, o que
terminaria de uma vez por todas com o seu mecanismo puro.
Além do mais, a doutrina traz em seu bojo contradições, sufici-
entes para matá-la ao nascer.
O monismo naturalista é, com efeito, um sistema panteísta, é
um panteísmo evolucionista. A idéia básica do panteísmo, o qual
encontra a sua formulação mais completa na filosofia de Spinoza, é
o conceito da causa imanente e, por conseguinte, o do efeito, tam-
bém imanente, pois que, para esse filósofo, causa e efeito são uma
e a mesma coisa ou, antes, eles não existem senão como noções
contingentes, puramente humanas, como idéias inadequadas que
formamos acerca das manifestações da substância única e imutável.
A atitude exclusiva que, conseqüente consigo mesmo, e de acordo
com a lógica, o panteísmo permite, é a consideração do Universo -
sub specie ~ t e r n i .
A rigidez imutável, e por isso mesmo grandiosa, do spinozis-
mo, o monismo haeckeliano, com o seu conceito de uma substância
que evolui eterna e indefinidamente, vem acrescentar elementos
que, solapando as bases da doutrina, tornam a substância menos
completa, menos infinita e, destruindo o princípio da imanência,
dão no sistema dissimulado ingresso à doutrina da emanação, a
qual, assim, fraudulentamente se substitui à natura naturata.
Com efeito, ao passo que, no spinozismo a natura naturans,
igual em essência à natura naturata, com ela coexiste necessaria-
mente ab- terno, dependendo a sua existência moda1 e contingente
apenas da mente que a considera, ou sobre ela filosofa, no monis-
mo naturalista a natura naturata, tão pronto nasce, logo desapare-
ce, imergindo numa substância da qual nada se afirma senão que
existe (ontologicamente, está claro) e se transforma.
Imanência e evolução são, pois, ao nosso ver, dois conceitos
absolutamente irreconciliáveis, assim como, por outro lado, os de
mecanismo e teleologia.
Ao sistema mecanista, diante das formidáveis objeções, levan-
tadas contra ele, pelo fato de implicar inevitavelmente o acaso por
seu último termo, tentaram uns filósofos opor outra doutrina, em
que, conservada a idéia fundamental da unidade de substância, se
acolhia igualmente o conceito teleológico nas variadas manifesta-
ções dela.
Formaram-se assim vários monismos teleológicos, os quais,
contudo, carecem tanto de procedência como os seus congêneres
mecanistas. Na verdade, desde que consideremos a substância, o
um, e é característico do sistema tomar essa atitude, como abran-
gendo a totalidade do Universo, só podemos conceber tal substân-
cia, esse um, de uma forma exclusivamente: como aquilo que é
completo na totalidade, ao qual se não pode propor meta nem de-
sejo. Se ao que destarte é eterno e perfeito, atribuirmos o conceito
de um fim que deva atingir, de um plano a realizar, teremos de um
só golpe destruído a sua perfeição e a sua completa e incontrastável
realidade. Verdadeiro absurdo, portanto, o das correntes especula-
tivas que se pretendem a um tempo monistas e teleologistas; erro
infecundo, derivado de não quererem ou não poderem conceber o
Universo senão como resultado de uma vontade superior, que de
antemão lhe haja traçado o plano.
O monismo teleológico culmina, afinal, no seguinte absurdo: o
criador, imanente, determina as feições da criatura, a qual, aliás,
vista por prisma diverso, não é senão o modo por que ele se oferece
à nossa consideração contingente! Esses filósofos, entretanto, re-
jeitariam, por inexplicáveis, os dogmas da Encarnação ou da San-
tíssima Trindade!
Ao invés, o monismo mecanista, não admitindo causas finais,
desprezando a teleologia, aceitando somente as causas mecânicas
ou eficientes para a sua explicação do Universo, está neste ponto
mais de acordo com as próprias bases sistemáticas.

Se, porventura, pretender, porém, o monismo mecanista que,


em vista das suas conclusões, as quais para tudo encontram expli-
cação, não existem mais os tão falados enigmas do Universo, essa
coarctada, por demasiada ousadia de sua parte, merece ser repelida
energicamente, condenada, como se acha, a fracasso certo e irre-
mediável. Senão, vejamos.
Os únicos atributos que, na filosofia de Spinoza, nos manifes-
tam a natura naturans sob a forma de natura naturata são a exten-
são e o pensamento.
Para o cartesianismo, eles constituem duas substâncias, funda-
mentalmente diversas em sua essência, material uma e a outra
imaterial.
No materialismo o espírito não existe senão como modalidade
da matéria; e no monismo mecanista, o qual neste ponto dá a mão à
doutrina primitiva da animação universal ou hilozoísmo, eles são
duas manifestações, quantitativamente diversas, já se vê, do um, da
substância única. (O um para os mecanistas é atualmente o éter,
como já o foram, para as antigas escolas, o ar, a água, o fogo.)
A dúvida que nos assalta neste ponto é se qualquer dessas dou-
trinas ou outras que porventura se apresentem serão capazes de
resolver completamente o complicado problema da origem e das
formas da vida e da consciência.
Tanto a identidade dos conceitos - espírito e matéria - como a
sua diversidade são para nós igualmente incompreensíveis. Achá-
10s fundamentalmente diversos, é negar possam atuar um sobre o
outro; preferir, ao contrário, a sua identidade, é lançar-se além do
término desejado.
Demonstrar, com efeito, como fazem o monismo e o materia-
lismo, a vida e a consciência pelas simples leis mecânicas de redis-
tribuição da força e matéria, nada nos adianta evidentemente.
Compare-se o jogo mecânico das forças naturais com as variadas
manifestações da vida e da consciência e, verificar-se-á que, por
minuciosas que pareçam as semelhanças, as analogias, as coinci-
dências, por engenhosos que se afigurem os símiles, há sempre,
entre esses dois modos de ser no Universo, algo especificamente
diverso, que para um deles, no dizer de Kant, escapa a toda expli-
cação puramente mecânica.
Que nos adianta, de feito, sustentar, com o monismo e os mate-
rialistas, que a inteligência é uma secreção do cérebro, como a bílis
o é do fígado, se justamente o nosso empenho está todo em saber
em que coisa o quid, constituindo o produto de um, é especifica-
mente diverso do resultado da atividade do outro desses dois Ór-
gãos?
Nem o monismo nem o dualismo, a tal respeito nos podem le-
var a conclusões válidas. Eles esbarram em obstáculos tão insupe-
ráveis que lhes não é lícito transpô-los.
As considerações que precedem, bastante longas e fastidiosas,
alcançam, contudo, uma utilidade evidente. Demonstram, a não
deixar sombra de dúvida, o erro inicial daqueles sistemas, que,
tomando um ponto de partida absoluto, não mediram a extensão da
tarefa que assumiam nem tão pouco indagaram se Ihes assistiam
bastantes forças para galgarem os obstáculos que porventura se lhes
deparassem. A sua ousadia importa em lamentável desastre.

Se nos leva a uma metafísica de inextricáveis confusões a posi-


ção, tomada pelos diversos materialismos, de explicarem o cosmos,
valendo-se unicamente da causalidade mecânica, não é menos cer-
to, por outra parte, que as correntes, indo dar a pólo oposto, nos
conduzem também a resultados, que são, do mesmo modo, pouco
satisfatórios.
Os idealismos, que só aceitam a existência de um mundo obje-
tivo como algo derivado do sujeito pensante, do eu, os sistemas à
Berkeley, são de uma sutileza que longe está de os salvar do absur-
do.
Com efeito, sem a realidade efetiva do Universo pensado,
como conceber, não só o nosso próprio sujeito pensante, mas
igualmente o conjunto das experiências objetivas, acumuladas pe-
los sujeitos pensantes de todos os tempos?
O fato de muitíssimas vezes nos enganarem os nossos sentidos,
assim como de, outras tantas, tomarmos como realidades coisas
que o não são de, devido a fenômenos patológicos, sofrermos fre-
quentemente de ilusões e alucinações, de não podermos, em certos
casos, distinguir o que experimentamos em sonho do que discerni-
mos em estado de vigília, são objeções que mais cabem à imperfei-
ção dos nossos instrumentos subjetivos, apuradores da experiência,
do que à realidade dos objetos dela. E seria precisamente confiados
em tais órgãos inidôneos que havíamos de fundar o nosso edifício
especulativo?
As bases do idealismo solipsista tornam-se, por outro lado, pro-
fundamente suspeitas, quando, bem considerada a infinidade de
experiências a que durante séculos se vem sujeitando a humanida-
de, vemos como em regra e frequentemente, dependendo embora
de contínuas e repetidas verificações, se há conseguido uma cada
vez mais volumosa e uniforme compendiação dessas experiências.
Responder-nos-á, com certa razão, o idealismo que o argu-
mento, ora avançado, é puramente empírico, pois não bate de frente
a questão, é antes uma prejudicial contra a probabilidade do que
uma objeção contra a possibilidade dos seus pressupostos. De
acordo; e por isso é que sustentamos que o problema deve ser re-
solvido à luz da crítica, cuja importância salta cada vez mais aos
olhos, à medida que nos vamos adiantando nestas considerações
preliminares.

É, na verdade, evidente ser necessário examinar seriamente a


possibilidade ou impossibilidade que houvermos de atribuir à nossa
razão, de penetrar nos arcanos do cosmos e da consciência: o pro-
blema teórico-cognoscitivo é, por isso, o fundamental na filosofia.
Antes de nos entregarmos ao estudo das grandes construções
especulativas, que constituem a delícia dos espíritos abstratos,
mister nos é, preliminarmente, examinar até onde nos será dado
atingir, com os nossos aparelhos intelectuais, na árdua pesquisa
filosófica, ou para lançar as bases de um sistema duradouro, em
que se compendiem, rigorosa e concatenadamente, em doutrina
forte e segura, o que apuramos no Universo e na alma, ou então
para, reconhecendo a nossa insuficiência, nos determos onde obstá-
culos insuperáveis nos impeçam o avançar.
Precisamente porque desdenhou de fazer tal exame prévio e
imprescindível, é que o dogmatismo, tão fundamente golpeado por
Kant, perdeu-se nas nuvens e em vão empregou somas enormes de
esforços na elaboração dos dados especulativos.
A primeira vista não parece, entretanto, o problema de difícil
solução. Anteolhando-se-nos, na verdade, que a experiência co-
mum, da vida diária, nos poderá dar os pontos de partida de que
carecemos, a fim de resolver as questões que se nos ofereçam no
caminho da indagação filosófica, poderíamos tomar como base
especulativa aceitável tudo aquilo que o senso comum médio da
humanidade haja apurado e aceito como verdadeiro. Esse caminho,
já tentado pela célebre escola escocesa da philosophy of common
sense mostrou nos seus resultados quão falho e insuficiente, quão
falto de garantia e de razão era o seu ponto de partida.
Em primeiro lugar, seria preciso se indicasse em que coisa con-
siste esse tão decantado senso comum, noção incerta, flutuante e
balda de precisão; em seguida tornar-se-ia mister provar que o sen-
so comum médio da humanidade não é susceptível de erro. Ora, as
desilusões, contínuas e diárias, a que estamos sujeitos nas nossas
opiniões, as superstições, erros e preconceitos de que é constante
vítima e pelos quais grandemente se governa a humanidade, os
enganos que frequentemente nos assaltam no campo das experiên-
cias mais vulgares, devem-nos ser razões mais que suficientes para
rejeitarmos sem hesitação, como improfícuas e negativas de qual-
quer resultado verdadeiramente filosófico, doutrinas que hajam de
assentar exclusivamente no puro empirismo, na mera experiência
fenomenal.
Diante do exposto, ficamos aparentemente em precárias condi-
ções de poder chegar a determinar as bases para uma apuração da
experiência, cujo resultado nos permita, embora provisoriamente,
colocar a indagação filosófica em fundamentos que não sejam os
de alicerces de área, em que o dogmatismo assentou as suas vãs
especulações, nem tão pouco o estéril deserto em que desespera-
damente vai morrer o cepticismo, nem ainda, e muito menos, o
irremediável e desconsolado caos em que nos lançariam o materia-
lismo e seus congêneres.
Ora, é bem de ver que essas bases só no-las pode dar uma in-
vestigação cuidadosa dos nossos instrumentos racionais, de sua
eficácia, de sua veracidade e de seus limites.
O PROBLEMA TE~RICO-COGNOSCITIVO
E O DOGMATISMO

Desde que do Universo forçosamente teremos de formar uma


síntese qualquer, precisamos indagar se, dada a feição do nosso
intelecto, ela é possível e, se, dada tal possibilidade, ela será verda-
deira. O ceticismo a esse respeito nos responde categoricamente
pela negação, em absoluto, da possibilidade da síntese cognosciti-
va.
O ceticismo, porém, precipuamente o de Hume, mais profundo
neste ponto do que todos os sistemas anteriores, argumenta, fun-
dando-se principalmente no fato histórico de não ter doutrina al-
guma podido até agora apresentar uma concepção do Universo,
extreme de erro, e, depois de haver examinado as bases de todas as
existentes, conclui rejeitando in limine e em bloco qualquer expli-
cação que de futuro se haja de propor.
Ele não reflete, porém, que o seu ponto de vista, por absoluto,
pode ser falso. Antes de lavrar definitiva sentença condenatória
deveria ter indagado se os construtores de sistemas contra os quais
se revolta, haviam calculado com precisão a resistência dos materi-
ais que pretendiam empregar no assentamento dos seus edifícios
especulativos. E só depois de obtida uma cabal resposta afirmativa
é que ao ceticismo seria lícito cantar vitória.
Ao invés disso, ele não se capacitou convenientemente da ne-
cessidade dessa indagação: donde se conclui que é incompleta e,
por isso mesmo falha, a sua crítica demolidora. Com efeito, se as
pesquisas do dogmatismo foram vãs, nada, a não ser uma prova
apodítica em contrário, nos impede pensar que outros pontos de
vista porventura mais bem orientados, outros esforços, quiçá mais
de acordo com as possibilidades da nossa razão, mostrem a proba-
bilidade de se erguer uma filosofia, a qual, dentro dessas possibili-
dades, permita uma concepção do Universo que não dê como re-
sultado as inextricáveis contradições, por nós já anteriormente
postas em relevo.
Neste ponto não deve ser obscurecido o mérito do ceticismo.
Tendo arrasado as construções anteriores e obstruído os caminhos
da antiga dogmática, ele obriga, a quem não quiser ficar perpetua-
mente atado ao poste da dúvida - atitude negativa, com a qual se
não conforma a humanidade, sempre em busca de soluções positi-
vas - a enveredar por estradas não dantes trilhadas e a buscar outra
luz diretiva, que, finalmente, consiga apontar-lhe o verdadeiro alvo.
Conforme se exprime Kuno Fischer, o ceticismo de Hume é o
vestíbulo do criticismo de Kant.

A dúvida sistemática seria, segundo aconselha Descartes, o


primeiro passo a dar na filosofia. A mente humana, sustenta o ge-
nial autor do Discours de la méthode, para se poder solidamente
conduzir na pesquisa filosófica, deve começar duvidando de tudo:
de si, da experiência, da realidade do mundo ambiente.
Estabelecida assim a dúvida sistemática, mas provisória, o se-
gundo passo consistirá em dela se libertar, procurando um princípio
universal e indubitável, incontrastável e certo, que nos sirva de
ponto de partida para as nossas deduções.
O cogito ergo sum do filósofo francês parecia-lhe corresponder
a esse desideratum; da existência do pensamento, como base, ele
conclui, por uma série de raciocínios concatenados, pela realidade
do universo pensado. Do pensamento, fato que o mesmo ceticismo
não pode negar, porque seria a um tempo contestar a própria base
da dúvida, deve partir a filosofia para abranger na vasta série de
suas proposições as ocorrências do mundo e da consciência, para
formulá-las em leis gerais e necessárias.
É bem de se considerar, entretanto, à primeira vista, que o fato
do pensamento, de modo algum primitivo ou irredutível a termos
ou elementos mais simples, justamente pela complexidade que o
caracteriza, não pode ser a base última sobre que devam assentar as
soluções metafísicas.
Antes de mais nada, tornar-se-ia preciso analisar e perscrutar as
origens da nossa faculdade de pensar, examinar se nela não se in-
troduziram elementos espúrios, que a tomem quiçá pouco fidedig-
na, lançando-nos destarte novamente no abismo da dúvida de que
tanto nos esforçamos por sair.
Aclarar o mundo pelo pensamento é atitude que só nos será 1í-
cito tomar depois de havermos irrespondivelmente explicado o fato
de pensar.
Aqui, porém, nos vemos a braços com outra série de dificulda-
des que bem nos mostram quanto a ousadia das bases cartesianas
mal se compadece com a complexidade e vastidão do problema a
deslindar.
Trata-se de esclarecer e justificar o modo como funciona o nos-
so aparelho pensante, sem o que não é lícito atribuir-lhe uma infa-
libilidade e autoridade que as decepções continuamente desengana-
doras da humanidade lhe não consentem.
O pensamento, tomado como representando uma série de ações
recíprocas entre sujeito e objeto, determinando as relações entre o
eu e o não-eu, entre o que está na consciência e o que se encontra
fora dela, é resultado que constantemente acompanha uma forma
determinada de organização da matéria - e neste ponto estão de
acordo todos os sistemas - a que chamamos vida.
Quer a vida pensante seja outorgada somente aos seres huma-
nos - os cartesianos consideram os animais como meras máquinas,
simples autômatas - quer a toda a matéria organizada - a psicolo-
gia modema não distingue as formas do pensar animal do humano,
senão pela intensidade de sua exteriorização - quer a haja de mani-
festar inteira a natureza - e este é o pressuposto de todos os pan-
teísmos, monismos, materialismos, hilozoísmos, panpsiquismos - o
certo é que o pensamento, formador de conceitos, é atributo de uma
certa organização, acompanha, para nos expressarmos mecanica-
mente, uma certa e determinada distribuição de matéria e movi-
mento.
Como se vê do que fica dito, envolve tudo isto a consideração
de problemas, os quais, deixando muito longe atrás de si a proposi-
ção cartesiana, nos levariam a pesquisa as origens da vida, e, con-
seqüentemente, as do cosmos e o nascimento da consciência.
Como poderíamos, porém, fazê-lo, se, antes de tudo, precisa-
mos saber se qualquer tentativa neste sentido é legítima e justifica-
da?
O cartesiano cogito ergo surn, convertendo-se no mais verda-
deiro cogito, quia surn, ao mesmo tempo nos corta as asas a vôos
mais elevados.
O fato empírico do pensamento existe, não há negá-lo; os ele-
mentos, contudo, de que se forma são tão complexos que não há
como tomá-los em bruto, em grosso, para do fato de se lhe passar
atestado de vida concluir-se pela pureza imaculada dela. Longe
disso; porque, se formos justificar a sua lidimidade, nos veremos
frente a frente com tantas dificuldades que difícil se nos tornará
arredá-las do nosso caminho. Vejamos.

Podemos, com efeito, admitir que o pensamento resulte de uma


determinação sobrenatural, que o haja ligado a dadas formas de
organização material, não dependendo delas, porém, sendo, por
conseguinte, qualquer coisa de originário, primitivo não sujeito às
contingências da matéria, as quais absolutamente a ele se não refe-
rem, existindo, ainda mais, ab- terno, e encerrando-se não sabe-
mos como, em um qualquer corpo, na misérable guénille, a que
espirituosamente aludia Molière, para nele operar a seu gosto -
neste caso teremos a teoria das idéias inatas do antigo espiritualis-
mo.
Ou bem, pelo contrário, sustentamos que a organização que
traz como conseqüência o pensamento é, originariamente, uma
como tabula rasa, sujeita a todas as impressões do ambiente que,
sobre ela, como em cera flexível, grava as suas variações ou aci-
dentes, do que resulta paulatinamcnte um vasto acervo de impres-
sões, percepções e conceitos, de cujo conjunto pouco a pouco vai
saindo o pensamento como elaboração de todos eles. São estas as
doutrinas sensualistas.
Tal teoria tem de pressupor, a ser logicamente aceitável, uma
especial conformação do sujeito pensante, uma peculiar faculdade
nele para receber e elaborar impressões por meio dos sentidos.
Não é, entretanto, tal faculdade coisa de que hajam cogitado os
sensualistas. Se a determinação da maneira porque o pensamento
atua sobre a matéria e vice-versa é o escolho em que naufragam os
inatistas, a origem da nossa faculdade elaboradora de conceitos é o
muro em que esbarram os sensualistas.
O símile da estátua gradualmente animada de Condillac é a ex-
pressão mais perfeita das idéias básicas do sensualismo e ao mes-
mo tempo da impossibilidade da solução, por ele propugnada. Por-
que a comparação é falha no ponto que consideramos capital;
como, com efeito, seria possível conceber a estátua em movimento,
falando, raciocinando, sem qualquer princípio essencial, ou intrín-
seco ou extrínseco, que a priori a predisponha a receber impres-
sões?
Outra variedade do sensualismo são as teorias evolucionistas,
as quais, fazendo as várias formas da vida e da consciência deriva-
rem gradual e sucessivamente de outras inferiores, imediatamente
precedentes, acham que o pensamento é o resultado de experiên-
cias, acumuladas e transmitidas de geração a geração, na intermi-
nável escala biológica.
Aqui cabe-nos desde já sustentar que o problema, cuja solução
se procura, não pode de forma alguma resolver-se à luz de explana-
ções puramente mecânicas, como indubitavelmente o são as pro-
pugnadas pelos sistemas de evolucionismo, com sírnile na biologia.
Eles, deve-se dizer, apenas apanham, e isso mesmo superficial-
mente, uma parte do vasto problema, sem de maneira alguma lhe
perscrutarem o fundo essencial.
Se as objeções levantadas contra as doutrinas dualistas das
idéias inatas, são perfeitamente compreensíveis e, acrescentemos,
profundamente verdadeiras - e o mérito de as ter formulado cabe
incontestavelmente às escolas materialistas - não é menos certo,
contudo, que às próprias conclusões doutrinárias destas se pode
apresentar uma exceção de incompetência, a qual, por sua vez, não
é despida de plausibilidade.
Ao espiritualismo das idéias inatas é sempre possível objetar a
ilegitimidade de se considerar ou admitir o conceito do pensamento
como tendo existência independente e anterior à experiência, nega-
tiva, portanto, da realidade do instrumento em que se abriga e do
objeto que é concebido.
A existir qualquer substância espiritual que dispensasse a reali-
dade das percepções objetivas por meio das nossas impressões cor-
porais, que abrisse mão da experiência para elaborar os nossos con-
ceitos do cosmos e da consciência, não se poderia, seguindo pela
via indicada, chegar a qualquer sistematização que não fosse ou
fantástica ou vã.
Fantástica, porque ou o universo, dado a priori, se conforma
com o que a respeito dele nos informa a posteriori a experiência,
dependendo a veracidade da idéia inata de sua verificação empíri-
ca, e, neste caso, nada teremos adiantado, visto que tudo deverá ser
novamente reposto em discussão, isto é, teríamos de mais uma vez
examinar qual o elemento fundamental das nossas concepções, se o
experimental ou o inato, e assim indefinidamente.
Vã, porque ou a nossa verificação a posteriori, empírica, não
está de acordo com os conceitos, formados a priori, como é o caso
todas as vezes que a razão, rompendo os limites da experiência, se
lança nos nebulosos domínios do transcendente, e então somos
forçados a contestar a legitimidade de um qualquer desses pontos
de vista ou de ambos ao mesmo tempo.
Contra o espiritualismo das idéias inatas negam os sensualistas,
levantando a bandeira do empirismo, o conhecimento a priori, an-
terior à experiência dela independente; contra sensualistas e sectá-
rios das idéias inatas nega o ceticismo possamos quer a priori quer
a posteriori realizar uma concepção válida do universo e das suas
ocorrências.
Ao nosso ver, têm razão os sensualistas, quando não aceitam
outra matéria das nossas concepções que não seja derivada da ex-
periência ou pelo menos não encontre nela a sua base ou que a dis-
pense completamente. Para eles, assim como para os evolucionis-
tas, não há como desprezar o mundo objetivo, o qual, manifestan-
do-se ao sujeito pensante, obriga-o a formar os seus conceitos evi-
dentemente de acordo com as impressões que lhe são fornecidas e
as quais elas deve elaborar em determinada ordem e regularidade.
Onde, porém, encontram dificuldade é em estabelecer as condições
fundamentais de tal ordem e regularidade.
Deve-se dizer que para os evolucionistas existem também idéi-
as inatas, mas, entenda-se, não as do antigo espiritualismo; visto
que não são nem anteriores nem independentes da experiência,
constituem, pelo contrário frutos sazonados dela. Do conjunto de
impressões que o sujeito pensante, em longuíssimo decurso de
múltiplas experiências, vai colhendo, elaborando e acumulando,
forma-se um cabedal, por assim dizer, estratificado, de concepções,
as quais, em virtude das leis de hereditariedade, se transmitem, em
proporção cada vez maior, de geração em geração. Assim os mol-
des gerais do pensamento, bem como o instinto dos animais, não
são mais do que uma compendiação de experiências feitas desde
tempos imemoriais por antepassados remotos e aproveitadas e con-
tinuadas pelos seus descendentes.
O que, porém, evolucionistas nem sensualistas podem explicar
- e neste ponto os seus sistemas mostram-se fraquíssimos - é como
tiveram origem, no sujeito pensante, essas experiências e como lhe
foi possível a ele coordená-las, de modo a, compendiando-as, ela-
borar as suas impressões em sistema e formular leis gerais e neces-
sárias acerca da ordem e regularidade das ocorrências no mundo
empírico. A menos que admitam uma diferença fundamental, es-
sencial, entre o espírito que elabora, e a matéria de que ele tira as
suas impressões, ou então que encontrem no eu ínsita uma predis-
posição, um quid, um substraturn, fundamental e independente da
experiência, a qual forme um esquema, um cadinho, um molde,
onde passem em ordem necessária, onde se vazem em determinada
regularidade essas impressões, procedentes do mundo objetivo, tais
sistemas filosóficos começarão a percorrer o seu caminho com uma
pesada bagagem de erros e inconseqüências.
Suponhamos que a estátua, imaginada por Condillac, receba
gradualmente cada um dos sentidos que antes não possuía: houve aí
qualquer coisa de acrescentado? Materialmente não; à falta de me-
lhor explicação, somos forçados a dizer que se deu uma nova orga-
nização, com os mesmos elementos. Essa organização nós não a
compreendemos senão pelos seus resultados, que são verdadeira-
mente maravilhosos; a estátua vê, fala, ouve, sofre, sente enfim, o
que lhe não acontecia antes da assumida animação. A predisposi-
ção para todos esses afetos, sensações e volições, a passagem de
um anterior estado de insensibilidade para a sensibilidade e a cons-
ciência é coisa que, apesar de o pretenderem fazer, nem as teorias
evolucionistas nem as sensualistas nos poderão explicar.
Desprezando um dos elementos de que se deve compor o co-
nhecimento, afirmando que ele se forma só de conceitos a priori ou
unicamente de impressões sensíveis, nenhum sistema filosófico nos
pode oferecer bases válidas para a nossa síntese cognoscitiva. As-
sim, são de rejeitar como improfícuos tanto os pressupostos do
empirismo e das escolas que nele se fundam como também os das
que dispensam totalmente os dados da experiência na dedução dos
seus conceitos.
E o erro está precisamente em que, tendo presumido demasiado
das próprias forças, ou por terem algumas procurado e as mais as-
sumido uma atitude absoluta em relação ao nosso conhecimento,
passaram além da meta, e nada conseguiram a não ser, trazendo
uma tem'vel confusão aos domínios da filosofia, dificultar a solu-
ção do problema gnosiológico. Tal solução é necessária, porque,
não sendo encontrada, tornará duvidosa, diremos mais, inaceitável,
a existência da filosofia. E como esta não é senão a sistematização
mais geral, a unificação do conhecimento, em todos os seus ramos,
ficará igualmente duvidosa a existência e a possibilidade da ciên-
cia.
Com tão precárias conclusões, como já tivemos ocasião de fri-
sar, de modo algum se conforma o espírito da humanidade.
Fechadas as vias dogmáticas, quer espiritualistas, quer mate-
rialistas, quer dualistas, quer monistas, mostrado mais que o ceti-
cismo, por árido e desanimador e, além disso, por tão somente ofe-
recer soluções negativas, não atinge o fim buscado de assentar o
conhecimento sobre bases positivas, que caminho nos fica a seguir
para mostrar a possibilidade dele?
Será necessária a decomposição dos dados do conhecimento
em seus fatores originários, a análise acurada das faculdades gno-
siológicas, a demonstração do modo por que se opera a síntese
cognoscitiva, para finalmente, de posse de todos esses elementos,
apontar, em primeiro lugar, a possibilidade do conhecimento, em
seguida provar a sua realidade, e, por fim, postas e solvidas essas
preliminares, mostrar quais concepções acerca do cosmos e da
consciência nos será lícito aceitar como válidas e quais deveremos
rejeitar, por impossíveis e não fundadas em legítimas bases cog-
noscitivas.
É, pois, uma verdadeira crítica que a filosofia terá de iniciar, ou
antes, uma sentença que pronunciará, acerca dos diversos elemen-
tos que entram na formação dos nossos conceitos e, muito princi-
palmente, a respeito do modo por que esses conceitos se hão de
julgar obtidos e empregados legítima ou ilegitimamente.

§ 11
Aos espíritos desejosos de se libertarem do avassalador dog-
matismo das metafísicas pagãs ou cristãs, ou desanimados pelas
devastações do ceticismo, cujos adeptos, no dizer pitoresco de
Kant, são verdadeiramente os nômades da filosofia, os quais se-
meiam a ruína e lançam a devastação sobre as frágeis, artísticas e
geniais construções metafísicas, oferece o criticismo do filósofo de
Koenigsberg uma doutrina e apresenta uma solução, as quais, pelas
suas linhas harmônicas, pela sua solidez e, ao mesmo tempo, pela
sua moderação, levam grandemente vantagem a todos os sistemas
anteriores. A sua construção especulativa serve, por outro lado, de
ponto de partida e de fanal aos que, posteriormente, se hajam de
ocupar dos árduos e dificultosos problemas fundamentais da filoso-
fia.
Kant, num movimento de orgulho, bem legítimo, aliás, e mui-
tíssimo compreensível da parte de quem totalmente subvertera as
bases, admitidas até sua época, de toda especulação pura, compa-
rou a sua atividade nos domínios da filosofia à revolução, produzi-
da pela hipótese de Copérnico no campo da cosmologia.
E efetivamente, ao espírito desprevenido bastará ter em mente
os sonhos metafísicos a que, antes da Crítica da razão pura se en-
tregavam os espíritos mais sensatos e os mais geniais e compará-
10s com as tendências pronunciadas, depois da obra do nosso filó-
sofo e como conseqüência dela, de se considerarem depreciativa-
mente certos problemas filosóficos, os quais antigamente constituí-
am a matéria das discussões na cátedra e no livro, para se verificar
imediatamente quanto em nitidez, clareza de pensamento e siste-
matização de nossas concepções filosóficas temos lucrado, guiados
pelo fio condutor do idealismo crítico.
Por isso mesmo, não será de duvidar que um exame e uma veri-
ficação das bases sobre que o grande pensador fundou a sua doutri-
na, ainda hoje, mais de um século depois de que ela começou a
dominar e continua a se impor a uma grande maioria de espíritos de
escol, seja de uma evidente utilidade, para nos forçar à modéstia
das concepções e para. não nos deixar presumamos demasiado das
nossas próprias forças, julgando, como ainda em nossos tempos faz
o haeckelismo impenitente e presunçoso, não ser impossível expla-
nar o inexplicável.
A crítica do nosso entendimento e da nossa sensibilidade, a
análise exata do modo por que originamos conceitos, o estudo
aprofundado dos elementos últimos do conhecimento, tudo isso é
de calcular nos dê a chave do enigma que tentamos solver acerca
da validade e certeza da nossa ciência.
Para que juntamente porém, seja completa essa análise e
abranja a totalidade da matéria em consideração, é mister pergun-
temos em primeiro lugar se efetivamente existe o conhecimento e,
obtida resposta afirmativa, em que coisa ele consiste.

A existência de fato do conhecimento, entenda-se bem, é coisa


que a ninguém se poderá afigurar como constituinte objeto de dú-
vida, visto que do conjunto das coisas sobre as quais recai a nossa
consideração nós pretendemos formar conceitos e proferir juízos.
De que se trata, porém, é de resolver se esses conceitos, se se-
melhantes juízos são legítimos jure ou se, porventura, não devem
ser tidos tão somente por frutos de ilusões, suscetíveis de se derruí-
rem e aniquilar ao primeiro sopro.
É esta a posição, naturalmente tomada pelos adeptos do ceti-
cismo, os quais, coerentemente, reduzem o conhecimento a uma
atitude espiritual, resultante do costume, de um hábito intelectual
do sujeito ante experiências conflitantes. Assim eles negam toda
concatenação e toda regularidade do mundo e na consciência.
O espírito humano, assevera Hume, nada pode apurar ou esta-
belecer como regra ou lei geral, objetivamente válida, mesmo por-
que, fundando-se toda a nossa elaboração sistemática dos fatos da
experiência naquele princípio básico que é a lei da causalidade,
pedra fundamental de todas as nossas generalizações nesse domí-
nio, seria necessário demonstrar, antes da validade, a realidade
absoluta e irrefragável de tal lei.
Ora, isto, observa o arguto filósofo escocês (der scharfsinnige
Mann, como cabidamente o qualifica Kant), é impossível de se
fazer. Ele julga haver demonstrado que o princípio da causalidade a
atitude espiritual que nos faz crer ser todo efeito resultado necessá-
rio de uma causa anterior que lhe dá origem, é um simples hábito
intelectual, ocasionado por fatos continuamente observados, os
quais pela sua constante repetição, nos levam a concluir que a todo
antecedente sucede inevitavelmente o seu conseqüente. Entretanto,
continua ele, não nos é possível provar essa relação necessária de
conseqüência.
Ora, se tal é o caso, não há conceito que racionalmente se possa
sustentar, como geral e necessariamente válido, que, portanto, pos-
sa servir de ponto de apoio a fim de que dele parta a nossa razão
com o fito de estabelecer, finalmente e de modo indubitável, uma
concepção primeira, um princípio básico ao abrigo dos ataques do
ceticismo, sempre malévolo e demolidor.
Já tem sido tanto e tão repetidas vezes de tal maneira ridiculari-
zado o famoso argumento falho que corre mundo sob a rubrica do
posthoc, ergo propter hoc, que o célebre filósofo britânico, rotu-
lando com esta epígrafe a lei da causalidade, por isso mesmo con-
seguiu - "mettre les rieurs de son côté".
Foi o golpe mais profundo que até então sofrera a velha metafí-
sica tradicional, pois que, negada a concatenação objetiva das ocor-
rências, no nosso espírito, se achava ipso facto contestada qualquer
base para a nossa apuração delas; visto que os axiomas puramente
lógicos da contradição e da razão suficiente não são mais do que
simples princípios diretivos do nosso entendimento que não nos
podem explicar existências.
Deste ponto a que chegara o ceticismo não havia saída pelas
vias dogmáticas. Era necessário tomar outro caminho e foi o que
fez Kant, o qual, tendo até certo ponto da sua evolução filosófica
sofrido a influência de Hume que ele confessa decisiva, apartou-se
dele neste particular, desprezando, por limitado, o ponto de vista
céptico, e tomando a investigação por sua própria conta, dispôs-se
a analisar o conteúdo dos nossos conceitos, fazendo-o com uma
sutileza e segurança maravilhosas, conseguindo deste exame tirar
todos os elementos que vieram constituir o sólido ponto de apoio, o
alicerce sobre que fundou a sua filosofia crítica.

§ 13
Admitindo que os nossos conceitos procedem da experiência
que lhes dá o conteúdo, ele trata de indagar de onde procede a for-
ma deles. Envolve isso o exame, a investigação das nossas faculda-
des cognoscitivas.
Os idealistas consideravam como única faculdade nossa verda-
deiramente cognoscitiva o entendimento puro, com a sua possibili-
dade de formar conceitos puros, isto é, independendo da experiên-
cia. Os sensualistas, pelo contrário, atribuíam essa certeza à verifi-
cação empírica. Aqueles sustentavam que as representações sensí-
veis são obscuras e confusas e que só o entendimento as pode tor-
nar claras; estes opinam que os conceitos não são mais do que ima-
gens apagadas das coisas as quais tanto menos claras se fazem
quanto mais abstratas são.
Ora, se supusermos que há representações intelectuais que,
como tais, são totalmente confusas e do mesmo modo representa-
ções sensíveis, as quais se mostram perfeitamente claras, a conse-
qüência será que nem a nossa representação sensível nem a inte-
lectual possuem, de per si, clareza ou obscuridade, mas apenas
diferem na maneira lógica por que elaboram representações.
Devemos, pois, admitir em nós duas faculdades fundamentais
de conhecimento, a sensibilidade e o entendimento. "De modo que
fica evidente, diz Kant, que se oferece uma má explicação do sen-
sível e do intelectual, quando se supõe aquele conter só conheci-
mento claro, e o deste ser exclusivamente confuso. Os graus de
clareza são apenas diferenças lógicas, as quais não afetam as repre-
sentações dadas, sendo, porém, a base de toda comparação lógica.
Os objetos sensíveis podem ser muito claros, os intelectuais muito
confusos. O primeiro fato nos ostenta a geometria, esse paradigma
de todo conhecimento sensível, e o segundo a metafísica, aquele
organum de toda a ciência intelectual. Sejam quais forem os esfor-
ços que faça esta última para dissipar os nevoeiros do nosso enten-
dimento, ela muitas vezes não conta com os grandes sucessos
iguais aos da matemática. As concepções geométricas são, apesar
de sua clareza, de procedência sensível, e os conceitos metafísicos,
por confusos que se nos manifestam, serão sempre intelectuais."
Determinadas as duas faculdades fundamentais do conheci-
mento trata-se de saber como ele é possível por meio do entendi-
mento e por intermédio da sensibilidade.

Todo conhecimento se resolve num juízo, isto é, uma ligação


entre duas representações das quais uma se afirma, positiva ou ne-
gativamente, da outra. Nem todo juízo, porém, é conhecimento;
ninguém dirá que aqueles que são evidentes por si mesmos sejam
concepções cognoscitivas.
Ora, as nossas representações, quando as ligamos entre si por
meio de um juízo, podem assumir duas formas: elas ou são seme-
lhantes ou diferem, ou o predicado já está subentendido no sujeito
ou não. Quando temos a representação de um corpo, no conceito
que dele formamos, somos forçados a pensá-lo como possuindo
extensão, mas não somos obrigados a concebê-lo como sendo pe-
sado.
Deste modo, o predicado da extensão resulta da simples de-
composição do conceito: o juízo de que o corpo tem extensão é o
que Kant chama um juízo analítico.
Ao contrário, posso ter a representação de um corpo sem a do
seu peso, isto é, sou obrigado a sentir ou a verificar a impressão
que ele produz sobre outros corpos para só então enunciar o juízo
de que o corpo é pesado. Este juízo não resulta da simples decom-
posição do conceito, mas é produto da concatenação de dois con-
ceitos diversos: é um juízo sintético.
Todos os nossos juízos são ou analíticos ou sintéticos. Os ana-
líticos não nos alargam o conhecimento, apenas o esclarecem, de-
terminando com mais exatidão o conteúdo do conceito. Os sintéti-
cos, ao contrário, nos alargam o conhecimento, visto que põem em
relação conceitos variados, de modo que no predicado acrescentam
alguma coisa ao sujeito, a qual não estava subentendida na simples
representação deste.
Do que fica exposto é de concluir evidentemente que todo co-
nhecimento consiste em juízos sintéticos.
Mas ainda não basta essa explicação, porque nem todo juízo
sintético é conhecimento. É preciso que esse juízo, para ter valida-
de cognoscitiva, possa postular para si generalidade e necessidade.
De sorte que o juízo não só deve ser sintético, mas válido para
qualquer um de nós e em todos os casos possíveis.
Ora, a nossa experiência só conhece instâncias singulares, e os
seus juízos nunca podem postular generalidade absoluta. O que a
experiência nos apresenta, nós o recebemos por meio da sensibili-
dade é um datum a posteriori. O que nos é dado independente da
experiência e a precedendo, é um datum a priori. Todo verdadeiro
conhecimento, devendo ter uma validade geral e necessária, con-
siste em juízos sintéticos a priori.

Mostrando em que consiste conhecimento, devemos agora in-


vestigar se ele existe efetivamente.
Há juízos sintéticos a priori? Devemos examinar as ciências
existentes para ver se elas nos respondem, afirmativa ou negativa-
mente, a esta interrogação.
Tirante a lógica, que só nos fornece juízos analíticos, podemos
trazer à contribuição três ordens de conhecimentos, sensíveis ou
intelectuais. Os nossos conhecimentos sensíveis se dividem em
duas classes: ou são daqueles que nós próprios criamos ou cons-
truímos, formando número e figura - e fazem objeto da matemática
(compreendendo a geometria), ou são daqueles que se nos repre-
sentam como derivados de objetos exteriores a nós - e constituem
matéria da física. O conhecimento extra-sensível é a metafísica.
Vamos agora ver se qualquer dessas ciências nos fornece juízos
sintéticos a priori. Esses juízos nelas existem de fato.
Tomemos, por exemplo, o conceito da linha reta, vulgar e cabi-
damente definida como sendo o mais curto caminho entre dois
pontos. O conceito é absolutamente válido para todos os casos,
para todos os indivíduos, independe da experiência, pois que, dado
tenhamos estabelecido constituir uma dada reta o mais curto cami-
nho entre dois pontos, temos que admitir a qualquer outra reta su-
ceda o mesmo. É, portanto, um juízo a priori, pois que independe
absolutamente da experiência.
Será, porém, porventura um juízo sintético? Evidentemente,
decomposto o sujeito - linha reta - nele não se acha subentendido o
predicado - mais curto caminho entre dois pontos.
O sujeito expressa, por assim dizer, um convite para que trace-
mos uma determinada reta; feito isto, nos é permitido verificar a
afirmação do predicado; uma vez constatado o fato, o nosso con-
ceito é válido para todas as retas possíveis. Na geometria, pelo me-
nos, conclui Kant, se pode afirmar com certeza existirem juízos
sintéticos a priori.
Existirão eles igualmente nos outros domínios do conheci-
mento, por nós acenados? Não se pode negar os tenha a matemáti-
ca; quando, verbi gratia, afirmamos que 7 + 5 = 12, enunciamos
um juízo sintético a priori. Nem o resultado da soma já está su-
bentendido nos dois números a adir nem se pode negar que a ope-
ração não seja necessariamente válida para todas as somas futuras
que houvermos de tentar.
É princípio fundamental da física que toda manifestação mate-
rial tem sua causa, a qual é uma ocorrência que supõe outra anterior
de que resulta necessariamente. É um princípio que não depende da
experiência; porque então, se dela fosse deduzido, como ela não
abrange a totalidade dos casos possíveis, não podia ser válido para
a totalidade deles. Mas tal não é a nossa opinião; pois que temos a
convicção firme de que não pode haver mudança na natureza que
não tenha a sua causa; do contrário não teríamos física. Esse prin-
cípio, portanto, é a priori, e é ao mesmo tempo sintético, pois que
nos informa que duas ocorrências estão em recíproca dependência,
que uma sucede à outra.
Chegamos agora ao ponto culminante, ao ápice de nossa pes-
quisa para perguntar se também na metafísica existem juízos sinté-
ticos a priori. A metafísica, por meio de conceitos puros, pretende
nos dar um conhecimento, independente da experiência, da exis-
tência de Deus, do começo do mundo, da substância da alma.
Os seus juízos são, portanto, a priori; serão também sintéticos?
Um ente ideal é uma simples representação, ao passo que um real-
mente existente é alguma coisa mais. Quando sustentamos de um
conceito qualquer que ele existe, alargamos a representação do
sujeito no predicado, proferimos um juízo sintético.
As afirmações de existências são sempre sintéticas; e, como a
metafísica afirma existências que não derivam da experiência, os
seus juízos a priori são sempre sintéticos.
Um resultado, portanto, já temos adquirido na pesquisa em que
vamos seguindo o nosso filósofo, é o da existência do fato do co-
nhecimento, consubstanciado nos juízos sintéticos a priori. Resta-
nos agora averiguar se de direito se justifica tal existência, isto é,
temos que determinar como são possíveis os juízos sintéticos a
priori. Aqui entram em conflito o nosso conhecimento sensível,
baseando-se na experiência, e o inteligível, desprezando-a e a ela
sobrepondo-se; de um lado a matemática pura, construindo objeti-
vamente os seus conceitos, e do outro a metafísica, dispensando
qualquer elemento sensível. Como estas duas ciências estão em
evidente contradição em suas bases, trata-se de saber com qual
delas está a verdade.
Se a metafísica dogmática for verdadeira, ela tem de explicar a
sua possibilidade e a da matemática, que para nós passa pela ciên-
cia da certeza absoluta.
Se a matemática conseguir provar que, com as suas bases, se
explica a possibilidade do conhecimento sensível, e ao mesmo
tempo se aclara onde está o erro da metafísica do supra-sensível ela
terá alcançado a vitória. A possibilidade do conhecimento sensível
prova-se por meio do espaço e do tempo. A matemática nos dá o
conhecimento das formas puras das nossas percepções, e essas são
constituídas pelos objetos que julgamos existirem num mundo ex-
terior a nós.
Assim o conhecimento sensível consiste da matemática e da
experiência, e o supra-sensível é constituído pela metafísica. Va-
mos em seguida estudar a legitimidade desses diversos conheci-
mentos.
CAPÍTULO IV

O ESPAÇO E O TEMPO

Um juízo sintético indica sempre uma relação entre o sujeito e


o predicado; o analítico pelo contrário, é uma decomposição do
sujeito em seus elementos conceituais.
Os juízos sintéticos, tendo por base o conceito da causalidade,
ipso facto implicam um sujeito pensante que, à vista dos objetos
dados da experiência, possa entre eles todos, para formar conceitos
válidos, estabelecer a cadeia das causas e dos efeitos.
Mas como? Somente supondo que, fora e anterior à experiên-
cia, exista no eu uma faculdade originária, a qual, procurará, à vista
dos objetos empíricos, encará-los sob um prisma esquemático,
permitindo submetê-los a certas regras, a certos modos de conside-
ração que os obriguem a uma determinada ordem e regularidade na
sua apresentação.
Só deste modo é que poderemos compendiar as manifestações
do mundo ambiente em juízos, geral e necessariamente válidos. A
elaboração dos objetos da experiência de que resulta a nossa repre-
sentação do mundo (Weltvorstellung), considerada como processo
cognoscitivo pressupõe dois elementos: um que é constituído pelo
nosso entendimento o qual recebe os dados da experiência, e o ou-
tro que se consubstancia nesses mesmos dados, que se vão refletir
em nossa psique.
O nosso intelecto em que se supõe uma disposição originária a
receber o estímulo, a impressão que a experiência deixa sobre os
nossos sentidos, o nosso entendimento em que existe uma possibi-
lidade, independente da experiência, de ser por ela afetado, o é de
certa e determinada maneira. Quando, ao observarmos um dado
qualquer empírico, tratamos de o decompor em seus elementos
cognoscitivos, ou de apresentação, vemos que ele se nos patenteia
no espaço e no tempo, isto é, que, considerado em relação a outros
dados da experiência, com eles coexiste ou se lhes sucede.
A sua percepção afeta, portanto, o sujeito pensante, ou como
coexistência ou então como sucessão. Logo, condição imprescindí-
vel para que da experiência, adquirida por intermédio da sensibili-
dade, formemos conceitos, é que os seus objetos estejam no espaço
e no tempo.
Cabe aqui indagar, antes de tudo, em que consistem o espaço e
o tempo. Ora, é evidente que o espaço e o tempo são nossas repre-
sentações; a questão é saber donde se originam.
Segundo a maneira de ver comum, eles são abstratos da nossa
verificação empírica e são portanto conceitos não originários, mas
derivados da experiência. Nós verificamos que os objetos, exterio-
res a nós, coexistem ou se sucedem. Coexistir é existir simultanea-
mente, isto é, existir no espaço; suceder-se é existir em momentos
diferentes, isto é, no tempo. Considerar o espaço e o tempo deriva-
dos da experiência é impossível; porque sem eles não poderíamos
apreender os objetos dela; eles lhe são, portanto, anteriores e inde-
pendentes. Logo, o espaço e o tempo, não derivando da experiên-
cia, são representações originárias ou puras, não são conceitos em-
píricos, porém fundam a experiência, não são a posteriori, mas sim
a priori, sem os quais não haveria representações sensíveis nem
seria possível a experiência assim como a sua apuração.

O espaço e o tempo são, pois, representações a priori. Mas a


que classe de representações pertencem? As nossas representações
são de duas espécies: ou nos fazem ver um só objeto diretamente -
e nesse caso se chamam intuições - ou nos dão um objeto, cons-
tante de predicados, comuns a muitos outros e então temos o con-
ceito. A intuição é uma representação individual ao passo que o
conceito forma uma representação geral. O espaço e o tempo são
intuições ou conceitos?
O conceito é um abstrato da intuição e está para esta como a
parte para o todo; ele se contém na intuição, da qual abstrai deter-
minados predicados, separando os semelhantes dos que entre si
diferem, de sorte que, à medida que se vai fazendo mais geral, mais
pobre se toma o conteúdo do conceito. A intuição, pelo contrário,
contém a inteira soma dos predicados, que determinam completa-
mente o caráter da coisa intuída.
Suponhamos que o espaço e o tempo sejam, não intuições, mas
conceitos abstratos, ou específicos. Se assim fosse, o espaço em
geral devia ser o atributo de todos os espaços individuais, e o mes-
mo dar-se-ia com o tempo. Mas isso não é certo; porque não há
diversas espécies de tempo, mas um só tempo, em que se acham
compreendidas as várias unidades dele, e um só espaço que é a
soma de todas as suas partes. O espaço e o tempo, são, pois, não
conceitos genéricos (Gattungsbegriffe), mas representações singu-
lares (Einzelvorstellungen) e intuitivas. O espaço e o tempo por
conseguinte são representações a priori ou intuições puras.
Se o espaço e o tempo fossem conceitos, as diferenças neles se
deveriam compreender e definir logicamente. Não se pode mostrar,
entretanto, sejam definíveis as distinções de aqui e ali, em cima e
em baixo, antes e depois, à direita e à esquerda, etc.; essas distin-
ções no-las dá a intuição objetiva; de modo que a colocação de um
objeto não influi sobre o nosso conceito dele, mas apenas sobre a
ordem com que se apresentar à nossa representação.
O espaço e o tempo são, além disso, ilimitados; porque tê-los
por limitados é supô-los limitados por outros espaços e outros tem-
pos, o que é absurdo. Ao mesmo tempo eles constituem a condição
essencial para todas as diferenças que possamos conceber como
neles existindo. O espaço e o tempo são, por isso, divisíveis ao
infinito, e as suas partes simples como a linha e o ponto não se
podem considerar como tais, e sim como limites no sentido mate-
mático. O espaço e o tempo, pois, ao mesmo tempo que intuições
puras, são grandezas infinitas.
Por outra parte não podemos dar ao espaço e ao tempo, além de
seu caráter de representações a priori o de objetos sensíveis com
existência real e objetiva.
Se lhes concedêssemos essa objetividade, eles deveriam ser
considerados ou como substâncias ou então como atributos ou rela-
ções das coisas; eles deveriam subsistir nas coisas ou ser-lhes ine-
rentes quer como atributos quer como relações delas. Se forem
substâncias, o tempo e o espaço existem por si, o espaço como o
receptáculo de todas as coisas possíveis, e o tempo como o fluxo
eterno e incessante, os quais existiriam ainda mesmo que nada além
deles tivesse realidade, "uma ficção absurdíssima", como sobre ela
se exprime o nosso filósofo; pois que eles não poderiam ser objeto
de experiência possível, visto que na frase de Kant "se nós admi-
tirmos essa ficção, admitiremos haja duas não-entidades (Undinge)
infinitas, existentes por si, as quais só existem, para em si compre-
ender todas as realidades".
Nem como relações ou qualidades, inerentes às coisas do mun-
do ambiente se podem considerar o espaço e o tempo, regulando a
coexistência e sucessão delas. Podemos, com efeito, imaginar o
universo existindo sem qualquer dos seus objetos e, entretanto, não
nos é dado suprimir a nossa consciência do espaço e do tempo.

A nossa sensibilidade recebe determinadas impressões, que a


afetam conforme a sua natureza e atributos; essas impressões são
por ela convertidas em sensações. A sensibilidade constitui, pois,
uma nossa faculdade receptiva fundamental. Se dela tirarmos o
conteúdo que nos é fornecido pela matéria empírica da sensação,
teremos a sensibilidade pura, ou a nossa intuição independente da
experiência, ou o espaço e o tempo, os quais assim constituem as
formas fundamentais da sensibilidade, a condição formal de todas
as sensações e representações. E como as representações se podem
classificar em internas e externas, o tempo é a condição formal das
internas e o espaço a das externas. Mas, sendo as representações,
tanto internas como externas, impressões ou sensações, portanto,
ocorrências internas, o tempo, como condição formal do senso ín-
timo, as governa a todas, pelo que o nosso filósofo o qualifica de
forma originária ou condição formal de todas as representações em
geral.
Todas as nossas sensações estão, pois, no espaço e no tempo;
todas as sensações são, portanto, percebidas, são, pois, percepções
ou aparências. A matéria dos fenômenos ou aparências é dada pelas
sensações, as quais são tão variadas quanto as impressões que afe-
tam a nossa sensibilidade; as suas formas são o espaço e o tempo.
Convertemos as impressões em representações, ordenando-as no
espaço e no tempo; aquelas procedem de algo fora de nós e estes
são intuições da nossa razão. A ordem das nossas representações no
espaço é a coexistência e no tempo a sucessão.
As impressões sensíveis, diferençadas e ordenadas no espaço,
nos aparecem como exteriores a nós, como atributos de coisas que
existem exteriormente a nós, elas são objetos, no sentido próprio da
palavra.
O espaço e o tempo são as intuições ou representações funda-
mentais que nos permitem coordenar a experiência; são intuições
inatas ou adquiridas? Responde-nos Kant: "Esses dois conceitos
são indubitavelmente adquiridos, não derivam da verificação sensí-
vel dos objetos, porém da própria atividade da nossa razão, a qual
ordena as suas impressões sensíveis segundo regras fixas, abstrain-
do delas um tipo invariável e, portanto, intuitivamente reconhecí-
vel.
As impressões sensíveis impulsionam o nosso espírito e a essa
atividade, mas não lhe fornecem a intuição; aí nada há inato a não
ser a lei da razão, pela qual o espírito concatena de determinada
maneira as suas impressões sensíveis e atuais."
OS CONCEITOS PUROS DO ENTENDIMENTO

Se o espaço e o tempo nos dão as condições a priori, a forma


fundamental em que a nossa mente deve vazar a consideração dos
fenômenos que se nos apresentam, a conclusão evidente, se são
verdadeiras as premissas, é que, só expresso em termos de espaço e
de tempo, pode o espírito humano compendiar e tomar conheci-
mento do mundo ambiente, e só como de coexistências e sucessões
é que se torna lícito à mente humana formular uma concepção rela-
tivamente válida dos objetos do mundo.
Qualquer outra que se não atenha aos limites acenados, que
deles transcenda que traspasse esses moldes fundamentais, é ilegí-
tima e de forma alguma se poderá sustentar.
Ora, a metafísica, no sentido lato da palavra, na sua compreen-
são pré-kantiana de ciência das existências puras, ou ontologia, e
não no estabelecido pelo ilustre filósofo, de ciência dos limites da
razão humana, pretende transcender das concepções limitadas pelo
espaço e pelo tempo e, postulando um conhecimento puramente
inteligível, julga poder determinar conceitos de entes ou existências
que se não conformam com estas disposições fundamentais do nos-
so entendimento.
Surge-nos imediatamente perguntar se serão por acaso legíti-
mas tais pretensões. Não se pode, por forma alguma, diante do que
ficou dito, duvidar da resposta; desde que o conhecimento, que faz
alarde nos ministrar a metafísica, não esteja expresso em termos de
coexistência e sucessão, tal conhecimento, não preenchendo as
condições únicas, mediante as quais o intelecto percebe e elabora
as suas percepções, não pode ter validade.
Na verdade, o próprio fato da coexistência supõe limitação; a
própria admissão de que, na nossa apreensão, a uns sucedem outros
objetos da experiência, faz prever que essa coexistência e sucessão
se realizam de acordo com determinadas regras. Aqui deve entrar
necessariamente o conceito de causalidade, juízo sintético a priori,
cuja explicação como categoria em breve teremos de fazer, e ao
qual Schopenhauer já qualificou de pedra básica da filosofia kanti-
ana.
É bem de ver concludentemente que, uma vez que, para for-
mularmos os nossos juízos acerca dos objetos da experiência, não
podemos prescindir nem do espaço nem do tempo, que são deles a
condição fundamental a priori, a forma essencial, a sensibilidade,
recebendo as impressões do mundo ambiente e elaborando suas
sensações, e o entendimento, obrigando-as a uma regularidade ne-
cessária, só podem formular juízos (Urtheile), os quais, enquadra-
dos dentro da forma rígida de coexistências e sucessões, nos dão
um conhecimento, nos permitem do cosmos formar uma concep-
ção, não como ele seria em si, isto é, se independesse do espaço e
do tempo, mas conforme ele nos aparece dentro dos estreitos mol-
des que limitam o nosso entendimento.
É conclusão que se impõe, portanto, a de que o conhecimento,
espacial e relativo, não exclui uma idéia das coisas, independente-
mente das relações a que a estreiteza e a contingência dos nossos
meios e instrumentos intelectuais o sujeitam.
Quer isso dizer que entre aquilo que, apreendido pela nossa
sensibilidade, para ser objeto de conhecimento, é elaborado dentro
das formas a priori do nosso entendimento, em termos de espaço e
de tempo, de coexistência e sucessão, e o que, pensado pelo nosso
entendimento, independentemente da sensibilidade, não pode ser
sujeito às mesmas formas ou, para usarmos desde já a terminologia,
kantiana, entre o mundo sensível (o da aparência) e o inteligível (o
da essência ou da coisa em si), entre o fenômeno e o noúmenon há
uma diferença fundamental quanto h possibilidade do respetivo
conhecimento de cada um deles.
O mundo fenomenal, sendo o único que se amolda às formas
fundamentais a priori do entendimento, é também o único que po-
deremos conhecer.
Com efeito, assumindo que só nos é dado determinar a ordem
das nossas representações em termos de espaço e de tempo, ser-
nos-á forçoso admitir que, se outras fossem as nossas intuições
fundamentais a priori, as formas puras do entendimento, o univer-
so poderia ser por nós representado e elaborado de modo quiçá
fundamentalmente diverso daquele por que agora afeta a nossa
sensibilidade e o nosso entendimento.
Só elaboramos o cosmos que apreendemos como ele nos apare-
ce dentro do espaço e do tempo; as coisas como são realmente, em
sua essência, como existem em si, independentes da nossa sensibi-
lidade, permanecerão para nós eternamente indecifráveis e obscu-
ras.

§ 20
A distinção fundamental entre a aparência e a essência, entre o
fenômeno e o noúmenon, entre o mundo sensível e o inteligível,
entre a coisa contingente e relativa e a coisa em si, é o primeiro
passo dado pela filosofia crítica no sentido de bem assinalar os
limites do conhecimento.
Kant, ao mesmo tempo mostrando que da coisa em si não nos é
dado afirmar nem sequer a existência, não exclui, entretanto, a re-
presentação, mas puramente supra-sensível, intelectual ou subjeti-
va, transcendente, portanto do conhecimento, daquilo que chama-
mos noúmenon ou coisa em si. Releve-se-nos aqui notar, entre pa-
rêntese, que o nosso filósofo emprega as expressões transcendental
e transcendente em dois sentidos totalmente diversos: a primeira
indica tudo aquilo que constitui condição a priori do nosso conhe-
cimento, e a segunda tudo aquilo que transcende dos limites dele.
Aqui fica a advertência, a fim de evitar confusões, fáceis de se da-
rem.
O noúmenon, portanto, pode ser pensado, ainda que não conce-
bido. O entendimento peado, quanto ao universo sensível, na es-
treita cadeia de suas formas fundamentais, tem um irresistível pen-
dor a rompê-las, e, penetrando no mundo noúmenal, julga poder
sobre ele formular conceitos para os quais exige se reconheça uma
absoluta e apodítica validade. Esses conceitos, assim independentes
da experiência, são evidentemente inválidos, porque não se podem
sujeitar à ordem de sucessão e coexistência, na qual unicamente se
têm que laborar os nossos juízos cognoscitivos.
Aos juízos ou conceitos puros, referentes ao mundo da coisa
em si, é lícito dar um grande valor, se bem que subjetivo, e o qual
pode alcançar altíssima influência, se, baseados neles, tivermos de
formular regras de conduta para a humanidade.
Se, para estabelecer um sistema ético, apreciativo das ações
humanas, para afirmar a existência da lei moral, fôssemos forçados
a admitir, ainda que não pudéssemos prová-la, a existência desses
conceitos, pensáveis, mas não cognoscíveis, é certo nós teríamos
que aceitar tal existência, como uma necessidade básica da nossa
razão, a qual, não a podendo demonstrar, postulá-la-ia.
Essa existência, improvável e contraditória, negada pelas nos-
sas faculdades, apuradoras do conhecimento, teria, entretanto, a sua
razão de ser nas mais profundas e íntimas necessidades práticas do
ser humano.
A grita, levantada por filosofantes malévolos e de curtas vistas
contra o sistema de Kant, por haver sustentado na Crítica da razão
pura que da coisa em si nada podemos afirmar, e, entretanto, na
Crítica da razão prática, voltando atrás, acentuar a necessidade de
crermos na existência de Deus, na imortalidade da alma, no livre
arbítrio, apenas denota estolidez da parte de quem, como Haeckel,
distingue duas filosofias no edifício, tão um e tão rigorosamente
lógico, levantado pelo gênio de Koenigsberg.
Não há contradição: o nosso entendimento, aliado à sensibili-
dade, e formando conceitos de coexistência e sucessão, nega o co-
nhecimento noúmenal; a razão prática, sem pretender demonstrar a
realidade da coisa em si, não podendo, entretanto, na opinião do
nosso filósofo, prescindir dela, postula (atenda-se, não prova) a sua
existência. Contradição haveria, se por acaso, ao passo que em um
ponto fundamental do sistema se negasse a existência desses con-
ceitos, em outros se afirmasse possuírem eles realidade.
Se todo o sistema da ética kantiana repousa nesse postulado da
razão prática, será uma profunda injustiça dizer, como pensaram e
escreveram alguns, que só por temor dos poderes temporais é que o
profundo pensador o introduziu na sua filosofia.
A Haeckel, mostrando a inanidade de seus ataques a este e a
outros pontos da doutrina crítica, já deu cabida resposta o professor
Paulsen, em livro em que salientou o parco cabedal crítico e o min-
guado critério filosófico do grande naturalista, que, entretanto,
tenta com o seu monismo restaurar a antiga e incongruente metafí-
sica dos pensadores helenos, e como religião instaurar o culto da
natureza, da substância, do éter e não sabemos que mais.
Não queremos, com estas considerações, de modo algum dimi-
nuir os grandes méritos do insigne professor de Jena, cujo labor,
fecundo e constante em prol da ciência, glorifica, sem dúvida al-
guma, a ele e ao seu país. Todas as vezes, porém, que deseja filoso-
far, e sempre principalmente que ousa contrapor o seu monismo ao
criticismo kantiano, sai da própria esfera da atividade e... déraison-
ne.

Voltemos, porém, ao ponto de que nos ia afastando a ligeira di-


gressão antecedente. Dada a forma esquemática que preside neces-
sariamente às elaborações da nossa razão ao apurar a experiência, é
bem de ver que o mundo objetivo, aquilo que dela constitui a maté-
ria, deve ser considerado passível de uma sistematização, cuja or-
dem e sucessão serão estritamente determinadas por aqueles nossos
moldes fundamentais. O que nos traz como conseqüência imediata
o princípio básico de toda a filosofia kantiana, a relatividade do
nosso conhecimento.
Sendo o espaço e o tempo as formas subjetivas, a priori do
nosso entendimento, o nosso conhecimento só é válido dentro dos
termos de coexistência e sucessão.
Pressupondo, pois, estabelecida esta base fundamental, resta-
nos agora examinar a maneira por que a nossa mente apura as re-
presentações em termos de coexistência e sucessão, isto é, desen-
volvendo-se no espaço e no tempo. É o problema da origem e da
possibilidade da experiência, seguindo-se imediata e consequente-
mente ao da realidade do conhecimento.
Havendo a nossa razão, no decurso da sua atividade básica cri-
ado as formas originárias das nossas concepções, a nossa atividade
orgânica, ou sensibilidade, por seu turno, recebe determinadas im-
pressões, as quais são, por assim dizer, projetadas, dentro daquelas
formas, de sorte a se manifestarem ao eu, ao sujeito pensante em
determinada ordem.
De si tira a razão pura, independentemente da experiência, as
condições fundamentais para que dela se possa fazer uma elabora-
ção válida; da sensibilidade do sujeito pensante, das impressões
que ele recebe, nasce a matéria que constitui o fundo de todo o
conhecimento.
Como se opera a síntese da razão e da sensibilidade para for-
mar os objetos do nosso conhecimento e promover a sua sistemati-
zação? A nossa razão, independentemente da experiência, apre-
senta duas formas fundamentais, dentro das quais se vêm repre-
sentar os fenômenos, apreendidos pela sensibilidade.
Esses fenômenos, postas de lado as suas relações de coexistên-
cia e sucessão, que os tornam subjetivos não se encontram em nós,
mas são exteriores ao eu, ao sujeito pensante, são, em uma palavra,
objetivos. De que modo, pergunta-se, será possível que o sujeito
pensante os apreenda e faça moldarem-se às acenadas leis de coe-
xistência e sucessão, ou, por outra, como se realiza a representação
do cosmos, do mundo objetivo no sujeito pensante, ou, enfim,
como nasce e se origina a experiência?
O próprio Kant reconheceu neste o mais árduo dos problemas
que lhe fora dado resolver, e por isso requer a sua decifração ex-
tremo cuidado no caminho em que iremos acompanhando o ilustre
filósofo.
As condições que fazem possamos formar representações de-
pendem, como já tivemos ocasião de desenvolver, de um lado, da
sensibilidade, e de outro, do intelecto. Aquela tem por função rece-
ber as impressões do mundo objetivo, às quais chamamos fenôme-
nos, e este as reduz a conceitos, de acordo com as formas a priori a
que se acha sujeita a razão e que por ela foram criados em sua ati-
vidade própria.
Cabe aqui indagar em que coisa formalmente consistem os
conceitos a que nos referimos? Todo conceito quer empírico quer
transcendental, ou puro, isto é, independente da experiência, consta
de uma afirmação que, por meio de um predicado, fazemos de um
determinado sujeito, num juízo que dele formamos.
Ao passo que as percepções constam de intuições imediatas, os
juízos são, pelo contrário, puramente mediatos ou indiretos.
Podemos, portanto, dizer que a matéria das percepções é cons-
tituída pelas coisas, singularmente consideradas, ao passo que a dos
juízos nos é dada pelos conceitos que promovem ante nosso espí-
rito a representação das coisas singulares ou das suas espécies
(Gattungsbegrife). A percepção apreende um fenômeno, ao passo
que o conceito nos dá a idéia desse fenômeno.
É pois, evidente que, sem uma faculdade primordial de formar
ou gerar conceitos, não nos é possível formular juízos que nos
permitam conhecer por meio de tais conceitos, isto é, pensar.
A faculdade de pensar, em contraposição à sensibilidade, que é
a de perceber, chama-se entendimento: este só pode originar con-
ceitos, ao passo que à sensibilidade só é lícito apreenda-percep-
ções. A experiência, referindo-se ao mundo objetivo, oferece à
sensibilidade uma variada série de percepções, as quais devem ser
elaboradas e sistematizadas, a fim de que sobre ela possamos for-
mar juizos objetivamente válidos.
Como nos será, entretanto, possível consegui-lo, se a percepção
sensível, sendo intuição imediata, só nos permite apreensões de
indivíduos, cada um de per si?
O problema que se nos propõe é, pois, saber se será possível
enquadrar esses casos particulares, essas intuições singulares em
leis gerais, que os obriguem a se submeterem a um esquematismo
que abranja ambas as faces de sua representação, a sensível, a pos-
teriori ou empírica, e a inteligível, a priori ou transcendental.
Suponhamos, por exemplo, que uma pedra se aquece, todas as
vezes que o sol sobre ela dardeja os seus raios, seguindo-se, na
nossa sensibilidade, à primeira impressão inevitavelmente a segun-
da.
A sensibilidade do sujeito pensante apreende essa sucessão de
ocorrências; tal apreensão é, porém, uma simples verificação sub-
jetiva; para que, ao invés disso, tenham validade objetiva todos os
juízos que formarmos acerca do fenômeno apontado, será preciso
que, independentemente da sensibilidade, valha sempre a alteração
calórica da pedra. Ora, neste caso acrescentamos à percepção ou
intuição alguma coisa mais, isto é, o conceito da causalidade, que
faz que uma verificação particular se converta em um juízo, válido
para todos os casos possíveis e, portanto, geral.
Essa generalidade, porém, por outro lado, só se poderá compre-
ender, se supusermos que o conceito da causalidade, ou qualquer
outro similar, não derive da experiência, não represente um objeto
sensível. E é isso efetivamente o que acontece: ele não é um abs-
trato da percepção, não é um conceito empírico de gênero
(Gattungsbegrifl não deriva da experiência, mas, dela sendo inde-
pendente, é, por isso mesmo, uma representação originária ou pura.
Não é, entretanto, uma representação pura como as da geome-
tria ou da matemática em geral; porque estas, conforme já vimos,
se bem que originadas a priori, são susceptíveis de construção a
posteriori, isto é, podem ser apreendidas sensivelmente; ao passo
que ao conceito da causalidade e aos seus congêneres não nos é
lícito dar-lhes realidade empírica, mas tão somente pensá-los.
Ora, não sendo, como acabamos de mostrar, a causalidade um
conceito derivado da experiência (um conceito empírico genérico)
nem tão pouco um puro conceito matemático, ela é, necessaria-
mente, um conceito puro (ou a priori) do entendimento.
A conclusão que decorre do conjunto das considerações prece-
dentes é que os nossos juízos acerca da experiência só serão possí-
veis, se admitirmos a existência dos conceitos puros do entendi-
mento. Esses conceitos puros do entendimento é o que Kant, se-
guindo a terminologia aristotélica, mas noutro sentido e com diver-
sa aplicação, denomina categorias, procurando estabelecê-las, de
modo a firmar quais elas sejam, e o modo como atuam em relação
à experiência.

Mostrando que as categorias se distinguem dos conceitos empí-


ricos, pelo fato de intervirem necessariamente, ordenando-os, na
formação dos nossos juízos, ao passo que os conceitos empíricos só
nos fornecem representações, determina-se a função básica das
categorias, que é de combinar ou concatenar entre si as representa-
ções, que nos são dadas pela sensibilidade.
A percepção nos apresenta os objetos, mas nunca as suas rela-
ções; tomados, pois, os juízos que a respeito deles formulamos,
tirando-lhes a matéria empírica, isto é, as percepções dadas, o que
resta é justamente a sua concatenação no nosso pensar. Essa con-
catenação é o que constitui as puras formas do juízo ou os puros
conceitos do entendimento.
As puras formas do juízo ou o juízo despido das representações
empíricas são, pois, a relação entre duas percepções, das quais uma
(o sujeito) se nos representa por intermédio da outra (o predicado).
Ora, se refletirmos sobre o sujeito, sem que nos importemos
com o seu conteúdo empírico, só nos fica a considerar a sua gran-
deza no sentido lógico; e deste modo teremos a quantidade do juí-
zo; se o mesmo fizermos em relação ao predicado, veremos que ele
exprime uma propriedade qualquer do sujeito; daí a qualidade do
juízo.
Se consideramos de que maneira o sujeito se há de haver para
com o predicado, teremos a relação do juízo; e se, finalmente,
atendermos ao modo por que se dá a concatenação ou ligação do
sujeito com o predicado no que respeita ao nosso conhecimento,
ser-nos-á dada a modalidade no juízo.
As puras formas do juízo, ou os conceitos puros do entendi-
mento, ou as categorias são, portanto, quantidade, qualidade, rela-
ção e modalidade. Precisamos, porém, ir mais um passo adiante, e
mostrar que essas formas se decompõem em várias espécies.
O sujeito é, segundo a sua grandeza, extensão ou compreensi-
bilidade (Umfang),um conceito geral, especial ou singular; a
quantidade do juízo é assim correspondentemente geral, especial ou
singular. Quanto à forma lógica, não há distinção entre o juízo es-
pecial e o singular; porque ambos se encontram subordinados ao
predicado em toda a sua extensão. O seu valor cognoscitivo é di-
verso, porém, e, por isso, a lógica transcendental os distingue.
O conceito do predicado, como qualidade ou atribuição no su-
jeito ou é positivo ou negativo, ou bem o afirmamos ou bem o ne-
gamos dele: mas na forma afirmativa ainda precisamos fazer uma
distinção: ou o predicado (P) é simplesmente afirmado do sujeito,
ou bem atribuímos a este um predicado negado (não P). Esta última
espécie de afirmação é uma limitação do sujeito; ao sujeito se atri-
buem todos os predicados, com exceção deste último. A qualidade
dos juízos fá-los se dividirem em afirmativos, negativos e limitati-
vos ou infinitos.
A relação entre sujeito e predicado pode igualmente ser enca-
rada sob três faces: da substância para com o acidente, isto é, de
uma coisa dada para com as suas atribuições, da causa para com o
efeito, do conceito determinado para o gênero em que o classifica-
mos: ele pertence a um gênero ou espécie, e, portanto, não faz parte
de outro, quer dizer, se é A necessariamente não é B, de sorte que
há entre todos os nossos conceitos uma exclusão recíproca, o que
determina entre eles "uma certa comunidade de conhecimentos".
Os juízos, pois, no que se refere à relação são categóricos, hipotéti-
cos ou disjuntivos.
A modalidade do juízo, finalmente, considerado o valor da có-
pula para o nosso conhecimento, diz respeito à ligação do sujeito
com o predicado; a combinação desses elementos, positiva ou nega-
tiva, ou é possível ou real ou necessária; daí diremos que os juízos,
quantos à modalidade, são problemáticos, assertórios ou apodíticos.
Essas são todas as formas do juízo, que podem ser esquemati-
zadas no seguinte quadro:
totalidade .............................................. Juízo geral
1. quantidade .... pluralidade ............................................ Idem especial
unidade ................................................. Idem singular
afirmação .............................................. Idem afirmativo
2. qualidade ......
1 1
negação ................................................. Idem negativo
limitação ............................................... Idem limitativo
substância e acidente............................. Juízo categórico
3. relação .......... causa e efeito ........................................ Idem hipotético
coordenação ou comunidade ................. Idem disjuntivo
possibilidade (ou impossibilidade) ....... Juízo problemático
4. modalidade ... existência (ou não existência) ............... Idem assertório
necessidade (ou acaso) .......................... Idem apodítico

As categorias derivam todas de um princípio superior, e, ao


mesmo tempo, há conceitos que, decorrendo diretamente delas, são
tão logicamente puros como elas, sem contudo serem, como elas,
originários. A esses conceitos o filósofo chama de predicáveis
(prazdicabilia) para os distinguir dos prazdicamenta (categorias).
Desta sorte, da categoria da relação se podem derivar os prazdica-
bilia da atividade, da força, da passividade, etc.
O quadro das categorias nos dá a divisão completa das nossas
faculdades lógicas; sabemos a que gênero pertence cada um dos
nossos conceitos, e o ponto de vista do qual se há de explanar qual-
quer dos objetos do nosso conhecimento.
Todas as categorias são, segundo Kant, igualmente necessárias
para a coordenação do conhecimento, tanto as da quantidade e
qualidade que, por determinarem grandezas, ele chama matemáti-
cas, como as da relação e modalidade, que, por indicarem existên-
cia e atividade, denomina dinâmicas. Não se pode negar, porém,
que do ponto de vista da coordenação das nossas representações
objetivas, as de relação têm uma importância fundamental, pois que
determinam ao mesmo tempo os conceitos de causalidade e subs-
tância.
A DEDUÇAO DOS CONCEITOS PUROS
DO ENTENDIMENTO

§ 23
Eis-nos agora chegados ao ponto crucial da filosofia crítica, em
que, determinadas as categorias, ou os conceitos puros do entendi-
mento, se procura saber como elas podem servir de fundamento à
experiência.
Se os puros conceitos do entendimento, como temos assumido,
dela independem, tanto que precedem à nossa apreensão empírica,
como podem servir de fundamento à experiência? Se as nossas
percepções fossem coisas em si, o que já mostramos não ser possí-
vel, se fossem noúmena, sem ligação alguma com o sujeito pen-
sante, independendo da nossa sensibilidade, não seria possível ab-
solutamente cogitar de qualquer apuração da experiência.
Tal, entretanto, não é o caso; pois que, sendo as nossas percep-
ções forçadas a se refletirem e ordenarem dentro dos nossos moldes
subjetivos, os quais são condição essencial das nossas representa-
ções, no espaço e no tempo, isto é, em termos de coexistência e
sucessão, elas não podem ser formuladas em conceitos, indepen-
dentemente dessas formas subjetivas a priori.
Se, portanto, afirmamos que a experiência é possível, devemos
afirmar que os puros conceitos do entendimento são condições tão
imprescindíveis para ela como o é o espaço para a percepção ime-
diata ou intuição. Quer isto dizer que só eles é que poderão tornar
possível a existência dos objetos do nosso entendimento, sendo,
pois, condições a priori, independentes da experiência, a que dão
origem.
Os objetos da experiência são as nossas representações (ou os
fenômenos) e a sua concatenação ou coordenação geral e necessá-
ria. É preciso, porém, notarmos que as representações consistem
em sensações percebidas, variadas e ordenadas no espaço e no
tempo: quanto à sua matéria, compõem-se de manifestações sensí-
veis, variando, evidentemente, conforme a excitação recebida pela
nossa sensibilidade; quanto à forma, são grandezas e, portanto,
decomponíveis em suas partes.
Ora, o que existe no espaço necessariamente existe separado
dos outros fenômenos, o que existe no tempo existe simultanea-
mente com outros fenômenos ou então se Ihes sucedendo; a forma
de qualquer representação tem, portanto, também um caráter de
pluralidade ou variedade.
Quer construamos grandezas, como são as da matemática, quer
as manifestações da nossa sensibilidade sejam quantitativa ou qua-
litativamente diversas, o certo é que mister se torna concatená-las
de um modo geral e necessário, a fim de que surja um objeto que
possa ser por tal universal e necessariamente admitido.
Enquanto os elementos das nossas representações se conserva-
rem isolados e estranhos uns aos outros, evidentemente não nos
será lícito falar nem de conhecimento nem de experiência; pois que
as nossas percepções se compõem de um conjunto de elementos
materiais e formais os quais necessitam ser reduzidos a conceitos,
válidos em sua generalidade, sem o que nenhum resultado cognos-
citivo poderemos colher.
É, pois, certo que a indagação da origem dos objetos da expe-
riência supõe concomitantemente a investigação de como nasce a
mesma experiência, consubstanciada na interrogação de como nos
é dado conceber as percepções puras da razão e as grandezas puras
da matemática.
Já que a nossa sensibilidade oferece tão somente elementos
cuja concatenação, embora necessária, não pode ser por ela levada
a efeito, devendo ser disso encarregada a nossa atividade intelectu-
al a priori, a experiência, está bem visto, não pode por si só elabo-
rar síntese alguma. Essa síntese deve ser levada a cabo pela razão
pura anterior à experiência e não pela sensibilidade, cujas percep-
ções ela concatena ou combina num quadro geral e necessaria-
mente válido.
Mas, para que seja geral e necessariamente válida tal síntese,
ela deverá primeiramente, em relação a um fenômeno ou grupo de
fenômenos, abranger todos os seus elementos de apresentação, em
segundo lugar, à medida que forem sendo apreendidos novos ele-
mentos, representar-se ou recordar os anteriormente percebidos, na
respectiva ordem de apresentação, e, finalmente, tendo-os todos,
reconhecer no conceito que por fim deles formula o entendimento
os mesmos dados precedentemente colhidos.
Os elementos da síntese cognoscitiva são, conseguintemente,
três: a apreensão dos dados da representação, a reprodução dos já
apreendidos, e o reconhecimento como idênticos aos apreendidos
dos que o intelecto cria outra vez, isto é, formulando-os em con-
ceitos.
A apreensão faz-se por meio da percepção, a reprodução por
intermédio da imaginação (Einbildung)e o reconhecimento por via
do conceito ou juízo.
Se, ao tentarmos uma síntese cognoscitiva, não tivermos a cada
passo em mente a impressão das nossas representações anteriores,
se as esquecermos, não nos será possível de forma alguma levá-la a
termo, por falta de concatenação dos dados com que deveríamos
jogar.
A síntese da reprodução, nas próprias palavras de Kant, está in-
dissoluvelmente ligada à da apreensão. Ela, contudo, não nos dá a
concatenação de todos os elementos de que necessitamos para for-
mar um juízo válido; porquanto nada efetivamente nos garante que
as percepções, quando transformadas em conceitos, sejam exata-
mente idênticas às anteriormente apreendidas, de sorte que, antes
de esclarecida essa dúvida, não podemos garantir um2 síntese re-
almente completa e válida, em vez de uma aparência fictícia dela.
É preciso, pois, que, além de reproduzidas as nossas percepções
anteriores, nos seja dado reconhecê-las como precisamente as
mesmas anteriormente apreendidas; quer dizer que, quando compa-
rada a sensação, vazada no conceito formulado, e a passada, pos-
samos expressar sobre a sua identidade um juízo apoditicamente
válido.
Aí, porém, se nos apresenta uma dificuldade, insuperável à
primeira vista: a nossa consciência está sujeita a todo momento a
tão várias transformações, não constituindo, por conseguinte, um
todo estável, que impossível nos é quase conceber como possa re-
conhecer no conceito a mesma percepção que anteriormente se nos
manifestara, de sorte que, a ser verdadeira tal conclusão, a síntese
do reconhecimento no juízo será absolutamente impossível. Ora, se
desejamos o resultado contrário, isto é, a possibilidade da síntese,
forçoso nos é admitir, como condição indispensável dela, a existên-
cia necessária de uma consciência que nunca se transforma, de um
substratum puro, originário inalterável, o qual, em contraposição à
consciência empírica, sempre variável, permaneça constantemente
idêntico a si mesmo.
Sem essa consciência ou faculdade a priori de transformar as
percepções em conceitos, que Kant chama faculdade de apercep-
ção transcendental, não se pode cogitar da identidade entre a repre-
sentação (sensível) e o conceito; portanto, sem a identidade da
consciência, como faculdade recognoscitiva, não há validade nos
juízos que expendermos sobre os fenômenos. Ora, o mundo sensí-
vel, apesar das variadas transformações da consciência empírica, se
nos apresenta ao eu sempre com as mesmas feições uniformes;
logo, é de se admitir a consciência pura ou, em outros termos, a
unidade transcendental da apercepção.
A consciência empírica consiste no nosso eu empírico, o qual
se manifesta tão variado quanto o são as percepções por ele apre-
endidas; o sujeito da consciência pura é também o nosso eu, não o
que a cada momento se transforma, porém o que permanece cons-
tante, estável, sempre igual a si mesmo. Ela é, por isso, a consciên-
cia originária, transcendental, da própria identidade ou, na expres-
são do nosso filósofo, a "autoconsciência originária" (urspruengli-
ches Selbstbewusstsein).
As representações, por variadas que as suponhamos, concate-
nam-se e combinam-se na consciência pura, que desta sorte repre-
senta a unidade sintética de todas elas e, pois, o princípio primário
do nosso conhecimento. A unidade necessária da apercepção é o
elo que liga todos os fenômenos, enfeixando-os numa síntese, sem
o que eles seriam menos que sonhos.
Para nós só pode haver uma única espécie de experiência, as-
sim como existe um só espaço e um só tempo, e a razão disso está
justamente na acenada unidade sintética da apercepção, na unidade
fundamental do nosso entendimento, a que o filósofo cabidamente
chama de "faculdade básica do conhecimento".
Como todas as nossas representações cumulam no conceito ge-
ral da Natureza, como exprimindo o conjunto do mundo sensível, é
bem de ver que o nosso conhecimento dela, a lei geral da produção
dos fenômenos, depende da unidade e identidade fundamental da
consciência.
A consciência empírica varia conforme os indivíduos, ao passo
que a pura é invariável e idêntica para todos; o de que ela faz a
apuração é só o que tem um caráter objetivo ou uma validade geral
e necessária. A consciência pura não é receptiva, porém ativa e
produtiva, dá forma às nossas representações, é uma faculdade de
pensar ou de formular juízos. As formas por meio das quais ela
produz esses juízos são, portanto, as formas puras do juízo ou as
categorias. São, por conseguinte, os conceitos puros do entendi-
mento que nos dão o fundamento dos objetos da experiência; eles a
condicionam e, portanto, a sua validade alcança até onde chega a
nossa verificação empírica.

Há, como já desenvolvemos, três condições para que o mundo


dos fenômenos seja por nós concebido numa representação geral e
necessariamente válida: a variedade dos elementos dados da per-
cepção, a síntese desses elementos e a unidade necessária da mes-
ma síntese. Essas três condições correspondem a três faculdades do
sujeito pensante: sensibilidade, imaginação, apercepção.
Desde que nos seja dado o objeto das nossas representações, os
seus elementos devem ser sucessivamente apreendidos, reproduzi-
dos e reconhecidos: a sensibilidade procede à apreensão, a imagi-
nação realiza a reprodução e a apercepção produz o reconheci-
mento.
Os objetos da nossa percepção se nos manifestam, porém, ao
entendimento de tal sorte coordenados, nós os apreendemos sempre
tão uniformemente que parece à nossa consciência existir um mun-
do sensível, objetivamente invariável: tendo, pois, todos os fenô-
menos um caráter constante de identidade e necessidade, deve ha-
ver uma faculdade intermediária entre a sensibilidade e o entendi-
mento, ao mesmo tempo transcendental e empírica, que produza,
necessária e inconscientemente, a ligação entre as outras duas fa-
culdades extremas.
Esse papel de intermediário entre a sensibilidade e a apercep-
cão, diverso daquela e precedendo a esta, e preenchido pela imagi-
nação (Einbildung), a qual não se limita à reprodução das percep-
ções recebidas, mas assume igualmente um caráter intelectual cria-
dor por sua vez de representações. A imaginação, reprodutiva e
produtiva, supre a apreensão naquilo que a esta não lhe é dado le-
var a termo, visto não poder concatenar os elementos da percepção.
Entretanto, sem tal concatenação é impossível qualquer representa-
ção. A imaginação, tomando os elementos empíricos da percepção,
tem que nos apresentar em imagens a sua reprodução em ordem
determinada, concatenando-os, portanto.
Se nesta sua peculiar atividade, porém, ela houvesse de proce-
der arbitrariamente e sem obedecer a uma regra ou norma fixa, não
teríamos verdadeiramente uma imagem ordenada, mas um acervo
de coisas desconexas e incoerentes. É preciso, pois, já que as ima-
gens existem efetivamente, admitir uma concatenação das nossas
representações objetivas conforme normas subjetivas.
Essas normas subjetivas, que são as da associação, postas em
grande destaque pelos psicólogos ingleses anteriores a Kant, não se
encontram, conforme opina este, determinadas por um concurso
fortuito de condições, mas pelo seu caráter comum, por aquilo que
ele denomina de "afinidade das percepções".
O fundo desta afinidade está na consciência pura, que é assim a
faculdade discriminadora dela, enfeixando em si a unidade sintética
das nossas representações; assim sendo, na consciência pura a afi-
nidade das percepções será constituída pelo seu caráter comum,
pelas suas condições gerais de manifestação, enfim, pela sua con-
catenação, objetivamente válida.
Sem a afinidade indicada não poderá haver nem representação
nem consciência, dentro da qual alguma coisa se represente; por-
tanto a consciência pura, transcendental, a priori, é condição es-
sencial para que haja mundo fenomenal, do mesmo modo que, sem
este, ela se não poderia conceber.
A imaginação é que faz surgir no entendimento o mundo feno-
menal, reproduzindo os elementos da apreensão sensível, segundo
as regras da associação, de acordo com a sensibilidade, e, em se-
guida, ordenando-as de conformidade com as exigências da consci-
ência pura, do entendimento, isto é, em categorias.
As duas faces da imaginação se manifestam, a empírica, sensí-
vel na reprodução e na associação das percepções, a intelectual,
pura, transcendental, quando na associação ela obedece à afinidade
das percepções, fazendo-as se combinarem conforme regras neces-
sariamente determinadas.
O mundo sensível, em sua generalidade, nos é dado à consciên-
cia pela imaginação, a qual, inconscientemente, obedece às prescri-
ções que de antemão lhe dita o entendimento, concatenando des-
tarte os fenômenos conforme o exige a consciência pura: esta, con-
seguintemente, considerando os dados (os fenômenos) que lhe são
apresentados pela imaginação, não só conhece neles as suas formas
fundamentais (categorias), como está apta em qualquer tempo a
reconhecê-las. É portanto, a imaginação reprodutiva e intelectual
que condiciona a consciência pura, cuja síntese do reconhecimento
pressupõe, por isso, a da reprodução, cuja unidade é determinada
pelo entendimento puro, isto é, pelas categorias.

Como resultado da dedução dos conceitos puros do entendi-


mento, que atrás ficou estabelecida, como conseqüência da tríplice
síntese cognoscitiva, devemos afirmar que não nos são exteriores
os objetos da experiência, como querem o senso comum e os pon-
tos de vista dogmáticos, mas procedem de uma especial disposição
da nossa razão. Esses objetos não são, já o dissemos, coisas em si,
porém aparência, cuja matéria a nossa sensibilidade elabora e cuja
forma depende da unidade da nossa razão (ou, por outra, da aper-
cepção transcendental) a qual se exprime pelas categorias.
As categorias nos fornecem, por conseguinte, as regras, segun-
do as quais se apura a experiência, como a gramática as que dizem
respeito à língua. Mas, da mesma forma que um indivíduo, conhe-
cendo todos os preceitos gramaticais de uma língua, pode muito
bem ser que não a fale nem a escreva, assim também é possível que
não nos mostremos idôneos para concatenar os objetos da experi-
ência de acordo com as condições às quais devem ser coordenados
OS seus elementos, isto é, em juízos, que se devam considerar váli-
dos. Sem que a faculdade de formular juízos seja direitamente em-
pregada, não pode haver síntese do mundo fenomenal, a qual se
deva dizer com valor: a faculdade de formular juízos é, pois, tam-
bém uma condição a priori da experiência.
Quanto ao uso dela, no que diz respeito à apuração dos fenô-
menos, é preciso que estes sejam subordinados às categorias, as
quais os representarão, dando-nos assim a possibilidade de um juí-
zo. As aparências, os fenômenos, são, entretanto, de natureza sen-
sível, ao passo que as categorias nos apresentam um caráter inte-
lectual, pois que aqueles procedem da percepção e estas do enten-
dimento puro: são, portanto, extremamente diversos e heterogêneos
os conceitos derivados de uma e de outra origem.
A dificuldade a resolver é de como se realiza a respectiva com-
binação, de modo a provar que os fenômenos se devem subordinar
aos puros conceitos do entendimento, sem o que estes, embora Ihes
outorgássemos inteira validade, seriam tão inúteis como o ouro
enterrado por Midas.
Entre representações da mesma natureza é fácil esta concatena-
ção, visto não oferecer dificuldade formularmos o juízo de que, por
exemplo, o prato é redondo, porque neste caso tanto o sujeito como
o atributo representados compõem-se de elementos sensíveis.
Quando se trata, porém, de combinar representações heterogêneas,
como quando afirmamos que - o sol é causa do calor - apresenta-
se uma certa dificuldade, porquanto o sujeito aí é uma representa-
ção sensível e o predicado um puro conceito do entendimento. Para
que seja possível o juízo acenado, é evidentemente necessário haja
entre seus termos componentes um elo, uma ponte, que nos permi-
tam passarmos de um deles para o outro; ora, já vimos que esse elo
existe efetivamente, sendo-nos dado pela imaginação reprodutiva.
É por meio dela, pois, que se faz a adaptação ou subordinação
aos conceitos puros do entendimento das percepções fenomenais. A
imaginação, entretanto, de acordo com os seus fundamentos bási-
cos, nos deveria apresentar as categorias em imagens. É coisa, po-
rém, que ela não pode efetuar; pois que as imagens por ela forma-
das devem sempre ser a reprodução de percepções sensíveis; logo,
só nos serão dadas imagens de objetos derivados da experiência,
mas nunca de conceitos puros.
Nem os próprios conceitos da matemática, que, entretanto, se
bem que a priori, encontram a sua base na nossa percepção, quanto
mais os puros conceitos do entendimento, dela completamente in-
dependentes, podem ser substituídos na imaginação reprodutiva por
imagens. O nosso conceito do triângulo nos apresenta um triângulo
em geral, abstrato, sem determinar o seu ângulo, ou reto ou oblí-
quo; entretanto, o triângulo particular, por nós construído ou perce-
bido, necessariamente tem um ângulo reto ou oblíquo.
Já se vê que não há imagem direta, imediata, do conceito geral
de triângulo, assim como também não as há dos abstratos da per-
cepção - homem, animal, planta, etc.: a imagem representa sempre
um indivíduo particular, ao passo que o conceito, sendo geral, não
pode nela ser produzido.
A imaginação reprodutiva, entretanto, supre esta falta por um
artifício; não podendo consubstanciar em imagens nem os concei-
tos da matemática nem os abstratos da experiência, representa-os
figuradamente, lançando-os em contornos ou em monogramas, que
suprem a imagem que ela não nos pode oferecer. A esses mono-
gramas poderemos chamá-los esquemas, para os distinguir das
imagens de percepções sensíveis.
Os conceitos puros terão também os seus esquemas? Vê-se,
pelo que atrás ficou dito, que sem eles não poderia haver apuração
da experiência, que eles constituem, portanto, uma condição a pri-
ori para a existência desta, devendo ser criados pela memória re-
produtiva transcendental.
O esquema, ainda mais, além de a priori, como são os contei-
tos puros do entendimento, para se poder adaptar a toda a experiên-
cia, deverá, por outro lado, ser, como os fenômenos, de natureza
sensível, isto é, uma percepção. Ora, existe uma forma a priori do
entendimento o qual a um tempo em si compreende todas as per-
cepções e é ela própria uma percepção: essa forma a priori é o
tempo, o que nos leva a dizer que ele é o esquema (transcendental)
de todos os conceitos a priori ou categorias.
Todos os fenômenos existem no tempo; preenchem-no, en-
quanto permanecem, o que nos dá a sua grandeza no tempo; mas
não preenchem todos o tempo do mesmo modo uniforme: uns per-
manecem, outros desaparecem, outros se sucedem, determinando
esses várias atitudes a sua qualidade no tempo; as diversas unida-
des nele conservam, por outra parte, entre si uma determinada or-
dem, o que estabelece a relação no tempo e, finalmente, o tempo
em si abrange todas as existências de uma forma dada: é a modali-
dade delas no tempo; o fenômeno existe, ou em qualquer tempo, ou
num espaço de tempo determinado, ou em todos os tempos.
Todas as atribuições do tempo se acham declaradas no quadro
acima e, quando comparadas com as categorias, correspondem
respectivamente à qualidade, quantidade, relação e modalidade.
Esse esquema é, pois, ao mesmo tempo, a base das nossas repre-
sentações sensíveis e se coordena às categorias, representando, por
conseguinte tanto as nossas percepções como os conceitos puros,
ligando, portanto, o entendimento puro com a sensibilidade.
Aquele, servindo-se das categorias, faz a concatenação dos feno-
menos e por meio dos esquemas subordina estes àquelas, forma os
juízos com o seu instrumento. Este processo é o que Kant chama de
"esquematismo do entendimento puro".
Nas precedentes considerações deixamos exposto o modo por
que o nosso filósofo julga possível a concatenação dos objetos da
experiência, a qual só poderá haver lugar por meio das categorias,
as quais os representarão. A experiência e a sua possibilidade, con-
seguintemente, se encontram, nestes termos, justificadas, tanto ob-
jetiva como subjetivamente. A aplicação do critério, assim obtido,
nos dá juízos que em si abrangem toda a experiência e a subordi-
nam às categorias, juízos da mais lata generalidade, e valendo sem
exceção de qualquer espécie: de todos os fenômenos nos é lícito fa-
zer uma afirmação quanto à sua quantidade, qualidade, relação e
modalidade.
Assim sendo e desde que a experiência tem a sua base funda-
mental nos conceitos a priori do entendimento, uma vez demons-
trada a possibilidade dela, devemos dizer que os fundamentos da
nossa experiência atual serão os mesmos de quaisquer verificações
empíricas possíveis, visto que eles serão totalmente independentes
das percepções que têm de concatenar. Este princípio, base de todo
conhecimento e de toda a apuração do mundo sensível, é a mais ge-
ral de quantas proposições teórico-cognoscitivas poderemos for-
mular, e ao mesmo tempo dele decorrem todas as outras leis fun-
damentais acerca do conhecimento do mundo das percepções.
Vejamos, pois, quais as condições de toda experiência possível.
Os dois elementos dela, o sensível e o intelectual, exigem sejam
seus objetos, em primeiro lugar, percepções e, em seguida, exista
entre eles uma concatenação necessária.
Compondo-se todos os fenômenos de sensações percebidas e
sendo, em primeiro lugar, sensações e, em seguida percepções, eles
se acham, como percepções, quantitativa e, como sensações, qua-
litativamcnte determinados. Além disso, pelo lado do entendimen-
to, não é duvidosa a sua determinação em suas relações mútuas, e
também no que diz respeito às suas relações com a nossa consciên-
cia; eles possuem, pois, entre si uma-relação necessária, e, quanto
ao sujeito pensante, uma modalidade inevitável.
Essas quatro determinações fundamentais, correspondendo
cada uma às categorias, dão lugar respectivamente a axiomas ou
proposições básicas que em si abrangem toda a experiência possí-
vel.
A primeira determinação fundamental por nós indicada é que
todos os objetos da experiência são percepções e, assim sendo, de-
vem existir no espaço e no tempo, são, por conseguinte, grandezas.
Todas as grandezas no espaço constam de partes no espaço, todas
as no tempo de partes no tempo; de sorte que só teremos a totalida-
de delas quando todas as suas partes nos forem representadas. Uma
grandeza, percebida de acordo com estes princípios fundamentais,
evidentemente tem extensão. O primeiro axioma ou princípio bási-
co da experiência é que toda grandeza é por sua natureza extensiva.
Tudo que é percebido deverá ser extensivo e, pois, divisível até ao
infinito; nada, por conseguinte, que é indivisível poderá ser perce-
bido e nada percebido será indivisível.
Vamos ao segundo axioma, que decorre do fato de serem per-
cepções todos os objetos da experiência; logo, serão também sen-
sações. Já vimos que a percepção intelectual, a priori, dá a forma e
a sensibilidade a matéria das nossas representações. Como, porém,
sustentar que, nos sendo os fenômenos dados pela sensibilidade, há
alguma coisa a priori na sua manifestação? Isso poderá acontecer,
se nas nossas sensações, seja de que espécie forem, pudermos pre-
ver com antecedência a existência de condições sem as quais elas
não poderiam existir e, pois, não haveria realidade nas nossas per-
cepções; isso não é ainda um axioma da percepção, mas tão so-
mente um "postulado da verificação empírica". É evidente que,
antes de experimentarmos uma sensação, não poderemos jamais
prever a maneira por que se encontrará afetada a nossa sensibilida-
de, porque nós não criamos, mas recebemos de fora o conteúdo das
nossas sensações.
A forma delas, sem embargo, já se acha predeterminada em
nós, em virtude do esquematismo do entendimento puro; logo, po-
deremos antecipar a sensação. Tudo que sentimos sentimo-lo no
tempo; este nos dá, por isso a forma, a priori determinada, da sen-
sação.
O que existe no tempo, porém, é sempre grandeza; não se pode
negar por conseguinte, sejam as sensações formalmente grandezas;
mas a grandeza da sensação não é, como a da percepção,_determi-p
nada por uma justaposição de partes, representadas no espaço; por-
quanto, em tal caso, seria necessária uma sucessão de espaços de
tempo para apreendê-la em suas diversas partes, quando a verdade
é que em cada momento de tempo ela se nos representa inteira. As
sensações, por exemplo, de vermelho, pesado, etc., não admitem
apreensões sucessivas de suas partes, não são compostas, não são
grandezas extensivas. A realidade das sensações ou existe ou não
existe; não admite medida.
A sua força, porém, varia de momento a momento: ela pode ser
mais intensa ou mais fraca, até desaparecer totalmente; desta sorte,
embora não admita medida, no tempo pode variar gradativamente,
é uma grandeza intensiva.
O axioma da antecipação da verificação empírica consiste em
que em todos os fenômenos a sen-[...I* ou o que nela há de real,
pode variar gradativamente, é uma grandeza intensiva ou de gradu-
ação.
Se, examinando o conteúdo deste axioma, supusermos que uma
sensação é igual a zero, se torna evidente que ela não existirá; ora,
o que não existe não pode ser sentido nem constituir objeto da ex-
periência. Suponhamos uma sensação em um determinado estado
de intensidade e teremos a realidade dela; à medida que aquela for
diminuindo, ela se irá evidentemente aproximando da negação, até
que, chegando finalmente a zero, não mais terá existência, não po-
dendo, pois, constituir objeto da experiência.
A aplicação dos axiomas precedentemente estabelecidos está,
vê-se bem, na combinação da percepção com a sensação, da gran-
deza extensiva representando-se por meio da intensiva, produzindo
uma continuidade, a qual só pode ser medida pelo tempo durante o
qual perdura a representação. Ambos os axiomas, o da extensão e o
da intensidade, nos fazem certos de que os objetos são sensações
percebidas (no espaço e no tempo). Como sensações têm intensida-
de, como percepções possuem duração e como percepções e sensa-
ções atribui-se-lhes continuidade.

* Falha no texto da primeira edição. (N. do E.)

83
Os dois axiomas, o da extensão e o da antecipação da apreen-
são ou verificação empírica têm por efeito, o primeiro, excluir a
possibilidade de grandezas divisíveis, e o segundo, a de-uma solu-
ção de continuidade entre elas, isto é, o vácuo, e ambos, por isso, a
plausibilidade do contrário dessa mesma continuidade.

Ficou anteriormente estabelecido que os objetos da experiência


duram um certo espaço de tempo, isto é, que só podem ser por nós
apreendidos desde que tenham uma certa duração. Cada ato de
apreensão, portanto, ocupa um certo número de unidades de tempo;
a nossa convicção, entretanto, é que nos fenômenos que se nos re-
presentam há ou coexistência ou sucessão.
Já que a apreensão é para cada um deles um ato sucessivo da
nossa psique, é lícito perguntar como nos será possível formar o
conceito de uma simultaneidade ou coexistência necessárias?
Para isso será preciso admitir que entre as nossas representa-
ções, concatenando-as, haja também uma relação de tempo, simul-
taneamente necessária e com validade objetiva, a fim de que se tor-
ne possível a experiência. Essas relações necessárias e objetivas
das nossas representações nos são dadas pela unidade sintética da
apercepção, que as subordina às funções do entendimento, por
meio da categoria de relação e de acordo com o esquematismo do
entendimento puro. Expliquemo-nos: todas as nossas representa-
ções existem no tempo, ou em todos os tempos, ou em tempos dife-
rentes, ou ao mesmo tempo; no primeiro caso permanecem, no se-
gundo sucedem-se e no terceiro coexistem.
Permanência, coexistência, sucessão são as três modalidades do
tempo, que, se quiserem ser objetivas, devem obedecer a uma regra
uniforme de manifestação.
Ora, a permanência é o esquema da substância, a sucessão o da
causalidade, a coexistência o da coordenação ou reciprocidade
(comunidade); as relações objetivas de tempo, portanto, regulam a
permanência, determinada pelo conceito da substância, a sucessão
pelo da causalidade e a coexistência pelo da coordenação ou reci-
procidade.
Essas regras, pois, compreendem as condições da possibilidade
da experiência e são, portanto, princípios fundamentais do enten-
dimento; nada, porém, nos dizem quanto ao caráter dos fenômenos,
não lhes determinam a existência, mas tão somente as relações; não
são, por conseguinte, na frase do nosso filósofo, princípios "cons-
titutivos~~como-os-doisprimeiros axiomas porliós explanados,-
mas tão somente "reguladores" da experiência.
Ainda mais: as relações por elas determinadas não são quanti-
tativas, mas exclusivamente qualitativas.
A igualdade nas relações qualitativas chama-se analogia: tal é o
princípio da causalidade.
O axioma do qual decorrem todas as analogias da experiência é
que todos os fenômenos, considerados como existentes, encontram-
se a priori sujeitos a regras de determinação de suas relações mú-
tuas no tempo. Ora, as relações mútuas dos fenômenos no tempo
podem ser ou de coexistência ou de sucessão, sendo qualquer delas
ou necessária ou ocasional. A primeira interrogação que nos ocorre
é como nos será possível distinguir os fenômenos sucessivos dos
simultâneos. Só mediante uma condição é que se pode tal conceber,
isto é, que entre todas as percepções que continuamente variam
haja uma que sempre perdure. A admitirmos alguma coisa que
permaneça constantemente como fundo inalterável das nossas sen-
sações, teremos conseqüentemente que postular, que, enquanto to-
dos os outros fenômenos se manifestam e desaparecem, aquele
fundo ou substratum se conservará invariavelmente o mesmo.
Sendo assim, é claro que aquilo que dos fenômenos permanece
inalterável, necessariamente determinará as suas relações de coe-
xistência e sucessão: será, portanto, a condição básica para que se
possa cogitar da possibilidade da experiência.
O que permanece chama-se "substância" e ao que sempre
muda, varia e se transforma dá-se o nome de "acidente". Existirá,
entretanto, efetivamente o que chamamos "substância"? Necessa-
riamente somos forçados a admiti-la, sem o que não poderíamos
determinar objetivamente o tempo da realização de qualquer fenô-
meno; se nada permanecesse, não haveria variedade na nossa per-
cepção, não haveria, conseguintemente, percepção; o mesmo deve-
ria acontecer se tudo perdurasse, se nada variasse.
A existência permanente, a substância, em vez de se provar,
como querem os diversos monismos, por meio da experiência, é,
pelo contrário, que estabelece a possibilidade dela, é uma condição
a priori para que a possamos realizar. A substância, o substratum
permanente das nossas percepções, tem existência através de todos
os tempos; porquanto não teria permanência se houvesse um tempo
em que não fosse possível a sua existência; logo, não há tempo em
- que ela aí não esteja efetivamente, nem tampouco algum-em que
ela deixará de ser.
Como todas as modificações, variações ou mudanças que nos
apresentam os fenômenos, são, pela definição dela, modos da
substância, ela é sempre a mesma, insusceptível de aumento ou di-
minuição; porque todo aumento ser-lhe-ia acréscimo de novas par-
tes e toda diminuição uma perda delas, o que de forma alguma se
coaduna com o seu caráter perdurável.
A lei da substância constitui o axioma básico de toda filosofia
natural e, por isso, desde a mais remota antiguidade há sido con-
templada por todas as escolas metafísicas, as quais, entretanto, er-
raram crassamente na sua dedução e na aplicação que lhe têm atri-
buído. A substância nem foi criada nem pode desaparecer; sendo
anterior a eles e ao mesmo tempo independente e base de todos os
fenômenos, ela se derivaria, a ser isso admitido, de qualquer coisa
que não fosse fenômeno, isto é, do nada, do mesmo modo que o
seu desaparecimento seria uma volta ao nada. O modo de ser da
substância não se altera em todas as manifestações fenomenais, que
a têm por fundo, variando somente os seus estados ou modalidades
de manifestação.
Toda variação no mundo fenomenal é uma série de ocorrências,
tendo por fundo ou substratum o mesmo sujeito, a substância inal-
terável. Essas modificações, sucedendo-se num sujeito, são natu-
ralmente subjetivas; entretanto, não há negar sejam objetivamente
apreciáveis; como se pode dar isso, isto é, como se pode admitir
sejam os fenômenos objetivamente patentes à nossa percepção?

O fato a estabelecer em primeiro lugar é que todos os fenôme-


nos se manifestam objetivamente à nossa percepção; mas alguns há
que, embora se dê sempre a sua apreensão como ato sucessivo da
nossa sensibilidade, nos consideramos como coexistindo e outros
que admitimos se sucedem. Os fenômenos, já vimos, existem no
tempo; mas o tempo, sabemos, é funda e inteiramente subjetivo,
nele se amoldam todas as nossas percepções fenomenais; parece
que nada há nos obrigue a achar uma relação necessária entre um
determinado momento de tempo e uma determinada percepção.
Nem o tempo, que em si abrange todas as manifestações feno-
menais, nem estas, que em qualquer tempo indeterminado podem
existir<nos darão uma determinação precisa do-momentodesurgir
de uma dada representação. Não havendo, pois, um critério indis-
pensável para esse fim, é bem evidente que não pode haver deter-
minação objetiva do momento da aparição de um fenômeno, não
haverá sucessão objetiva no tempo, nem tampouco variação ou
mudança como condição da experiência.
No próprio tempo, porém, qualquer momento dele se determina
por aquele a que imediatamente sucede; o tempo, contudo, como
totalidade, não pode ser apreendido, pela razão de constituir a for-
ma ou condição a priori dos objetos da experiência. Qualquer mo-
mento no tempo, por conseguinte, em relação à manifestação de
um fenômeno, só poderá ser determinado se por acaso conseguir-
mos determinar o do fenômeno que imediatamente o precede.
A admitirmos, porém, seja completamente indiferente o mo-
mento de tempo para a manifestação de um dado fenômeno, se
abandonarmos tal manifestação ao acaso, é evidente que o fenôme-
no que se lhe seguir só existirá no momento de tempo sucessivo
devido também unicamente a um mero acaso.
Ora, desta forma só se deverá admitir uma determinação obje-
tiva do momento de tempo, se supusermos que o fenômeno neces-
sariamente deva suceder ao anterior.
Se uma ocorrência necessariamente sucede a outra, esta é a
causa e aquela o seu efeito; conseguintemente, o conceito de causa
e efeito é a única condição que nos pode dar a definição do mo-
mento de tempo de um dado fenômeno; o conceito da causalidade
lhe tira, pois, o seu caráter de casualidade, tomando-o objetiva-
mente determinável.
A causalidade é de concluir, não procede da experiência, sendo
antes uma condição essencial para que ela exista. A diferença entre
este ponto de vista crítico, assumido por Kant, e o céptico, susten-
tado por Hume, é fundamental e merece sobre ela detenhamos um
pouco a nossa atenção.
Segundo Hume, a causalidade não é mais que a sucessão habi-
tual de duas apreensões; o propter hoc não é mais do que um post
hoc muitíssimas vezes repetido. O ponto, porém, em que Hume er-
rou é de não ter explanado a origem desse post hoc, que é uma
apreensão, sucessiva a outra anterior.
Já se mostrou, porém, que todas as apreensões, subjetivamente,
se sucedem, ainda que estejamos certos coexistam os seus objetos;
logo, se é possível haver determinação objetiva do-tempo,- ela não
deriva da apreensão empírica. De sorte que ou o post hoc nada nos
adianta quanto à sucessão objetiva dos fenômenos, ou então só o
poderá fazer por intermédio do conceito da causalidade.
O propter hoc, de acordo com este conceito, é que explica o
post hoc: duas apreensões se podem suceder sem por isso, deterrni-
narem uma sucessão necessária no tempo; mas, se refletirmos que a
nossa percepção não pode tomar em consideração um fenômeno
sem logo referi-lo a outro que necessariamente lhe seja anteceden-
te, veremos que o momento de tempo da respectiva manifestação
ficará claramente determinado por força da causalidade.
É o que Hume não viu e que o fez considerar a causalidade
como determinada pela sucessão objetiva dos fenômenos, quando é
ela, ao contrário, que torna esta efetivamente determinável.
O conceito da causalidade, conseguintemente, condiciona todos
os fenômenos e, portanto, a sucessão objetiva das coisas; devido a
ele, todo antecedente é causa do seu conseqüente, e todo conse-
qüente se encontra condicionado pelo seu antecedente; forma, pois,
a sucessão no tempo um nexo causal, cujos membros posteriores
são necessariamente uma consequência dos anteriores.
As alterações e mudanças no tempo supõem necessariamente
um certo espaço de tempo para dentro dele haverem lugar: a mu-
dança de um dado estado para outro não pode, por consequência,
ser subitânea, porém gradual, de onde concluímos que uma coisa
não poderá surgir repentinamente ou ex-abrupto, porém resulta de
uma continuidade ininterrupta de manifestações.
Determinando a causa a sucessão objetiva dos fenômenos, ela é
válida tão somente em relação a eles. O fenômeno causa é, por isso,
necessária e objetivamente anterior ao efeito. Pode acontecer que,
na nossa apreensão, não haja intervalo apreciável entre a causa e o
efeito; isso, porém, nada prova contra a anterioridade dela; pois, se
existissem, em sua origem, conjuntamente a causa e o efeito, nada
impediria que qualquer um deles fosse anterior ao outro, o que de
forma alguma se poderá admitir. Uma bala, por exemplo, faz um
furo em dado lugar; bala e furo existem conjuntamente na nossa
apreensão; à vista da bala dizemos que o furo lhe deve a origem,
mas nunca que o furo deu origem à bala; esta é anterior e aquele
posterior; uma é, portanto, a causa e o outro o seu efeito.
Toda causa supõe o seu efeito; mas ela é, por sua vez, efeito de
uma causa anterior; é forçoso, portanto, admitamos para todos os
efeitos-umacausa última que não seja efeito-de-qualquemtr-au-
sa anterior, que, nesta conformidade, não tenha existência no tem-
po, que, conseguintemente, constitua o substratum inalterável de
todas as variações fenomenais. A causa última permanente é a
substância; só ela é verdadeiramente ativa e causativa; a atividade é
o seu atributo essencial.
Aquilo que nos fenômenos aparece sempre como causa e não
como efeito, como sujeito da ação e não como atributo, é a subs-
tância cuja criação são todas as variações fenomenais, por nós
apreendidas. Tudo que ocorre, diz Kant, pressupõe sempre alguma
coisa de que resulta, segundo as regras de sucessão de causa e
efeito. De sorte que, tendo presente esse princípio fundamental, de-
vemos concluir que, a não ser nos seus efeitos, jamais nos será
dado perceber a substância.

A primeira analogia da experiência nos faz ver que a substância


é a condição necessária para que possamos ajuizar da sucessão e
coexistência dos fenômenos; a segunda nos mostra ser a causalida-
de a base imprescindível para determinarmos a sucessão objetiva
das nossas apreensões. Resta-nos agora indagar qual a condição
que nos obrigará a estabelecer a coexistência objetiva dos fenôme-
nos; será a terceira analogia da experiência.
Os fenômenos, já o dissemos, ou se sucedem ou coexistem, isto
é, existem simultaneamente; nós, entretanto, os apreendemos, cada
um de per si, em atos sucessivos; como é possível, pois, determinar
a sua simultaneidade? Se me é indiferente, para a coordenação do
meu pensar, apreender um qualquer dos fenômenos que existem a
um tempo, é claro que, embora eles só possam se apresentar suces-
sivamente à percepção, não têm entre si qualquer relação de ante-
cedente e conseqüente; nas suas relações entre si eles se podem
anteceder e suceder indiferentemente; desta sorte a sua coexistência
não ficará de modo algum normalizada objetivamente, e muito me-
nos a necessidade dela. Esta só se poderá estabelecer definitiva-
mente, se os próprios fenômenos determinarem o tempo de sua
manifestação; essa determinação, já ficamos certos, só no-la pode
dar a causalidade.
Um fenômeno é antecedente de outro, é uma causa da qual o
outro é efeito; se diversos fenômenos forem reciprocamente, ante-
cedentes uns de outros, de modo que os conseqüentessedevam ne-
cessariamente manifestar ao mesmo tempo, nenhum desses conse-
qüentes poderá existir nem antes nem depois dos outros; logo,
existirão todos conjunta ou simultaneamente.
É, portanto, a causalidade recíproca, o conceito da coordenação
ou comunidade que toma objetiva a simultaneidade. De modo que,
considerada toda modalidade como culminando no conceito da
substância, em seus diversos modos, reciprocamente agindo e rea-
gindo entre si, teremos que as diversas aparências (da mesma
substância única) não estão entre si isoladas, mas têm uma conca-
tenação recíproca, formam um todo de que elas próprias constituem
as partes. Todas as substâncias, diz Kant, existindo simultanea-
mente, estão entre si em coordenação recíproca.
Tais são as três analogias da experiência, as quais se resumem
no princípio de que os fenômenos são ou determinação de estados
de uma substância, ou efeitos de uma causa, ou partes de um todo;
no primeiro caso teremos uma relação de inerência, no segundo ela
será de conseqüência e no terceiro de composição.
Os axiomas que acabamos de deduzir nos dão as condições de
toda a experiência; o que quer dizer que, independente deles, esta
não teria nem efetividade nem realidade..
A possibilidade da experiência deve, ao mesmo tempo, ser a
expressão da possibilidade dos objetos dela. Que critério, porém,
nos permitirá distinguir entre o possível e o que real ou necessaria-
mente existe? Só estabelecendo-se as condições a priori de que de-
verão decorrer as regras para o nosso conhecimento, isto é, os câ-
nones da modalidade, permitindo-nos das coisas formar um juízo
problemático, assertório ou apodítico.
Kant sempre sustentou que as afirmações de existência não po-
dem deixar de ser juízos sintéticos, pois que, ao contrário do que
afirma a antiga antologia, a existência não pertence a nenhum dos
atributos lógicos que se hão de encontrar na formação de um con-
ceito. O que existe realmente deve ser possível ou necessário, por-
que todo necessário é real e todo real é possível. Mas nem todo o
possível é real, nem tampouco todo real é necessário. O ponto de
vista da ontologia só seria aceitável se o conceito determinasse a
existência. Mas o caso é completamente outro; quer exista, por
exemplo, realmente a pirâmide, quer não tenha existência, o seu
conceito,-por isso,-nãose-altera,não sofre-nem-aumento nem-dimi--
nuição, os atributos dela permanecem sempre os mesmos, sem se
alterarem pela representação ou afirmação de sua existência.
A existência, pois, não é parte integrante do conceito, é apenas
a indicação da realidade efetiva de uma representação nossa. Por
outro lado, só a experiência e não o entendimento podem dar uma
afirmação de existência, o que quer dizer que o critério dela nunca
é lógico, mas sempre empírico. De onde se vê que o princípio de
contradição, fundamental em lógica, nada pode decidir quanto ao
que realmente existe; pois uma coisa é a possibilidade de nos ser
representado um qualquer objeto da experiência e outra coisa o fato
de sua existência; desta é a experiência que decide.
Ora, possível será tudo aquilo que puder constituir objeto da
experiência, isto é, o que estiver de acordo com os fundamentos
dela; real será tudo aquilo que for efetivamente objeto da experiên-
cia, isto é, o fenômeno apreendido ou a percepção empírica; e ne-
cessário tudo aquilo que forçosamente constitui objeto da experiên-
cia. Todo fenômeno torna-se objeto da experiência como efeito de
uma causa, a causalidade das coisas é necessária; visto não poder-
mos apreender os fenômenos senão como coexistências e suces-
sões, ela é, evidentemente, a forma exclusiva da experiência neces-
sária.
As condições a priori que nos são dadas pelas categorias exi-
gem verifiquemos experimentalmente a existência de um deterrni-
nado conceito, não se contentam com o conceito puro, mas querem
que o pensar empírico afirme a existência do seu objeto.
Kant compendiou os axiomas da modalidade nas três seguintes
conclusões, a que deu o nome de "postulados do pensar empírico":
1°, aquilo que está de acordo com as condições formais da experi-
ência (com a percepção e as categorias) é possível; 2", aquilo que
se conforma com as condições materiais da experiência (com as
sensações) é real; 3", aquilo que se determina, em sua coordenação
com o real, pelas condições fundamentais da experiência é necessá-
rio.
Como conseqüência dos princípios fundamentais que ficaram
estabelecidos, devemos dizer que eles firmam, por um lado, a con-
tinuidade e, por outro, a necessidade ou causalidade dos fenôme-
nos. A fórmula que abrange esses dois elementos se pode enunciar
como sendo todos os fenômenos grandezas contínua~~pelo seu-lado
formal e efeitos necessários pelo material.
A lei da continuidade nos garante não haver na natureza inter-
rupções bruscas, non datur saltus, e a da causalidade nos declara
não haver nela nem falta de necessidade, nem necessidade cega,
nem acaso, nem fatalidade, non datur casus, non datur fatum, e
ambas afirmando assim a continuidade das grandezas e a necessi-
dade das coisas, estabelecem a impossibilidade de lacunas no mun-
do dos fenômenos non datur hiatus.
O SIGNIFICADO DA COISA EM SI

Tanto quanto temos progredido na pesquisa a que nos abalan-


çamos, já nos foi dado estabelecer a possibilidade da experiência,
cujas condições e fundamento ficaram definitivamente assentados.
Essas condições, porém, ao mesmo tempo que são sintéticas e ne-
cessárias, limitam o nosso conhecimento a um círculo restrito: elas
nos confinam ao conhecimento das aparências, dos fenômenos os
quais são as nossas percepções.
Se quisermos chamar, no sentido kantiano, metafísica a todo
conhecimento que tem um estrito caráter de generalidade e neces-
sidade, deveremos dizer que só existe uma metafísica dos fenôme-
nos; sendo estes, porém, apreensões puramente empíricas, é-nos
forçoso confessar que a experiência somente é que é susceptível de
conhecimento. Se, portanto, o nosso conhecimento só se refere à
aparência, aquilo que não aparece não pode, evidentemente, ser
objeto dele. Ora, a origem da aparência está na nossa sensibilidade;
aquilo que não aparece não é sensível e vice-versa.
Explanada, conseguintemente, a possibilidade do conhecimento
sensível, resta-nos agora demonstrar a impossibilidade do supra-
sensível. Do próprio fato de havermos firmado a maneira por que
adquirimos o nosso conhecimento, forçosamente havemos de con-
cluir que a razão humana não tem o direito de penetrar além dos
domínios da sensibilidade.
É mister, entretanto irmos mais longe, pois que já vimos pre-
tender a metafísica do supra-sensível um lugar entre as ciências
humanas, ao qual se julga com tanto direito quanto a matemática
ou as ciências naturais. É preciso que a crítica explique e ao mesmo
tempo demonstre a ilegitimidade dessas pretensões, mostrando qual
das nossas faculdades foi abusivamente empregada para se poder
chegar finalmente a um tal resultado.
Naturalmente é de se admitir que na nossa razão exista um
pendor irresistível para representar coisas supra-sensíveis, por-
quanto não pode haver conhecimento por mais ilusório_que seja,
que dela não derive. Por meio da percepção empírica não é, contu-
do, de modo algum possível a acenada representação do supra-
sensível, visto que a percepção, por sua natureza, é sempre sensí-
vel: a sua matéria deriva da sensação e a forma lhe é dada pelo es-
paço e o tempo. Logo, a razão humana não pode perceber o supra-
sensível, sendo-lhe, entretanto, possível pensá-lo; a sua percepção,
portanto, se é possível, quer negativa, quer positivamente, será obra
exclusivamente da razão pura.
Se a razão fosse exclusivamente sensível, não poderia ter essas
representações supra-sensíveis, o que estabeleceria indubitavel-
mente a absoluta impossibilidade delas. A razão possui, porém, fa-
culdades de conhecimento, as quais independem da experiência e,
pois, da sensibilidade: são os conceitos puros, que, sabemos, não
derivam da percepção; eles não representam coisas sensíveis e, por
conseguinte, se por acaso os admitirmos como sujeitos de nossas
representações, o seu objeto só pode ser constituído por coisas não
sensíveis.
As coisas não sensíveis ou ultra-sensíveis, não sendo perceptí-
veis, serão apenas pensáveis ou inteligíveis: não são objetos sensí-
veis, mas puros entes de razão.
O domínio das nossas representações (não reais, mas possíveis)
distingue-se, pois, em aparências (objetos da percepção) e objetos
inteligíveis, em fenômenos ou noúmena, para empregarmos as ex-
pressões de que se serviam os antigos. As coisas, como existem em
si, independem da nossa percepção, não podem ser representadas
em termos de sensibilidade, mas tão somente pensadas pelo enten-
dimento.
Chegando a este ponto, devemos indagar que importância e que
significação tem para o nosso conhecimento a representação sensí-
vel e a intelectual, o fenômeno e o noúmenon. O antigo dogmatis-
mo sustentava que a sensibilidade apreende o objeto como ele nos
aparece e o entendimento como ele é em si; a matéria de ambos es-
ses modos de representação é a mesma, o seu alcance é que varia: a
representação do fenômeno é confusa e dúbia a do noúmenon, ao
contrário, clara e precisa.
Kant, porém, levanta-se contra esse modo de ver, fazendo notar
que, se fosse certo que essas duas espécies de representações dife-
rissem entrepsisomenteppela ~clarezapoupobscuridadeprespectivase
ambas representassem o mesmo objeto, a coisa em si não cria mais
do que o fenômeno de que se houvesse abstraído a parte sensível.
Mas, neste caso, nada absolutamente dele ficaria. Qualquer fenô-
meno, com efeito, é unicamente uma sensação percebida; tirando-
se-lhe o caráter de conceito, deixará de ser objeto de um juízo e
tornar-se-á simples percepção sensível; se lhe retirarmos o caráter
de percepção, será uma mera impressão (Eindruck) mecânica; e, se
lhe negarmos o caráter de impressão, nada mais será e muito menos
a coisa em si.
Destarte, não sendo a coisa em si uma percepção sensível, tor-
na-se radicalmente distinta da aparência, não quantitativa, mas
qualitativamente, não pelo grau de sua clareza diversa, mas por se-
rem de natureza totalmente diferente.

A coisa em si indica um objeto, que jamais será susceptível de


se transformar em fenômeno, e o qual, portanto, poderá ser indica-
do, mas nunca determinado ou explicado pela razão, que, legiti-
mamente, só opera sobre objetos empíricos. Os conceitos do enten-
dimento aplicam-se unicamente aos fenômenos, como passíveis de
uma experiência possível; admitem, portanto, uma aplicação empí-
rica somente; se se pudessem aplicar aos objetos inteligíveis, po-
der-se-iam empregar em um sentido transcendental.
Todo conceito deve necessariamente ter um objeto ao qual se
refira: os empíricos o encontram na percepção; onde o acharão, po-
rém, os conceitos puros, que dela não derivam, posto que sejam
empíricos na sua aplicação?
Se esses conceitos puderem nos representar um objeto, o qual,
como eles, seja independente e não derive da experiência, seja a
priori, teremos então a representação do noúmenon, da coisa em si,
cuja quantidade será independente da percepção, como a qualidade
da sensação, do mesmo modo que a sua substância e causalidade
não obedecerão ao esquema do tempo, assim como a sua necessi-
dade independe dos modos do nosso conhecimento.
Se os conceitos puros, portanto, puderem representar um objeto
que não se encontre sujeito ao esquematismo do nosso entendi-
m e n t o , esse objeto, evidentemente, independe da experiência, da
causalidade, do espaço e do tempo.
O papel dos conceitos puros não é, contudo, o de criar repre-
sentações, mas tão somente o de ligar ou coordenar as que lhe são
fornecidas pela percepção; não poderão, portanto, nos representar a
coisa em si, mas tão somente indicá-la ou significá-la, o que levou
o nosso filósofo a dizer que eles têm ao mesmo tempo uma aplica-
ção empírica e uma significação transcendental,
A representação imediata de um qualquer objeto não decorre
nunca do respectivo conceito, porém sempre da percepção dele.
Para se conceder seja representável a coisa em si, seria necessário
admitirmos possuir o entendimento uma faculdade de perceber di-
reta, imediata, intuitiva.
Nós não sabemos se existe alhures essa percepção intelectual; o
que podemos certamente afirmar, e basta para o nosso ponto de
vista, é que não a possui o entendimento humano: ele não é intuiti-
vo, mas puramente discursivo, isto é, só tem capacidade para ligar
ou coordenar entre si as representações que lhe são fornecidas pela
sensibilidade.
Podemos, conseguintemente, licitamente concluir que todos os
objetos ou são fenômenos ou noúmena: estes não podem dar lugar
a qualquer representação possível, quer intelectual, quer sensível;
de onde inferimos que todos os objetos das nossas representações
são fenômenos, ou, se atentarmos para o modo do nosso conheci-
mento deles, experiência. Desde que assim é, podemos sustentar
que a coisa em si assinala o limite do nosso conhecimento, ou, con-
forme diz Kant, é o conceito-limite do entendimento.
A coisa em si é, por conseguinte, sob o ponto de vista do co-
nhecimento, regulado pelo entendimento, inteiramente problemáti-
ca, e, como significação negativa, marca o limite da nossa ciência.
Até este ponto não se pode apresentar dúvida quanto ao signifi-
cado do noúmenon, o qual é perfeitamente claro; surge ela, contu-
do, quando da coisa em si quisermos fazer objeto do conhecimento,
isto é, quando pretendermos transcender do limite assinalado pro-
priamente à nossa atividade intelectual.
Se as coisas em si fossem objeto da nossa representação, o seu
conhecimento, independendo da experiência, seria verdadeiramente
metafísico:~haveria,~nessecaso,umametafísicado supra-sensível.
A existência dos objetos supra-sensíveis, independendo de quais-
quer condições empíricas, nos deve ser afirmada pelo entendimento
puro, e, desta forma, o seu conceito, prescindindo da verificação
empírica, lhes determinará a existência. É isso o que constitui a
chamada "ontologia".
Se fosse possível provar que o supra-sensível ou a ontologia
constitui objeto da experiência, teríamos afirmado a existência da
metafísica como ciência. O objeto da ontologia, já vimos, é cons-
tituído pelas coisas em si; elas, porém, não são nossas representa-
ções, porque não são derivadas da nossa percepção; logo, delas não
pode haver conhecimento e, se se afirma que existe, é puramente
ilusório e não real.
As coisas em si, não podendo nem devendo assumir nem se-
quer a aparência de objetos do conhecimento, toda ciência que de-
las se pretende ocupar é uma ciência que não existe e, por conse-
guinte, não são verdadeiros nenhum dos sistemas, ou filosóficos ou
religiosos, que pretenderem nos dar como objeto do conhecimento
uma metafísica do supra-sensível.

A lei de toda a experiência é a concatenação ou coordenação


dos fenômenos; cada um dos objetos de experiência possível é
condicionado por um antecedente de que necessariamente resulta, o
que faz exista uma continuidade ininterrupta dos objetos da experi-
ência, de modo que o vasto campo fenomenal tem de ser, de condi-
ção em condição, percorrido por nós desde seus primeiros até seus
últimos términos, para, desta forma, de concatenação em concate-
nação, chegarmos aos limites da apuração empírica.
Nesse caminho, porém, poderemos seguir duas direções, ou da
condição para o condicionado ou do condicionado para as condi-
ções, das causas para os efeitos, ou progressivamente, ou então dos
efeitos para as causas, ou regressivamente.
Com os efeitos são-nos dadas todas as causas que os produzem,
mas das causas não estão juntamente patentes os efeitos que delas
resultarão: o presente nos fornece os elementos do passado, não as-
sim os do futuro. O limite das nossas experiências não existe por
conseguinte no futuro que elas têm de formar, porém no passado,
cuja sucessão completam; vê-se, portanto, que o único meio de
abranger a cadeia completa, o conjunto das nossas experiências, é a
direção regressiva, do condicionado para a condição.
Todo juízo experimental é a expressão de um elo causal, em
que o condicionado está para a condição assim como o particular
para o geral; de sorte que a direção regressiva é sempre uma mar-
cha do particular para o geral, é o condicionamento do juízo pelas
regras que o produzem. Todas as nossas operações que têm por fim
condicionar vão, portanto, acabar numa conclusão, de que o juízo
formulado é a maior e a condição a menor. A regra que dá lugar a
um juízo é, evidentemente, uma proposição geral e, comparada
com o juízo, um princípio.
Ao mesmo tempo, porém, essa regra é por sua vez um juízo
condicionado, precisando de ser explanado; mas, como todo objeto
da experiência é um fenômeno, condicionado por sua natureza, de-
vemos concluir que qualquer juízo que nós formularmos, por mais
geral que suponhamos a regra à qual deve a sua origem, jamais nos
poderá fazer conhecedores de um princípio último que, não sendo
ele próprio condicionado, seja a condição originária de que decor-
ram todos os outros princípios da experiência, quer dizer um prin-
cípio último absoluto e não relativo.
Sendo todo fenômeno por nós conhecido tão somente como
conseqüência de outro, jamais será incondicionado, como também
o incondicionado em tempo algum poderá ser objeto da experiên-
cia; assim, ele constitui o limite da experiência e possui, por conse-
guinte, os característicos da coisa em si.
A razão, por um lado, considerando a coisa em si como o limite
da experiência, encontra nela um fim ou meta que procura atingir e,
por outro lado, tenta representá-la, o que não conseguirá jamais,
como objeto de experiência possível; no primeiro caso o conceito
do incondicionado é necessário e no segundo inadmissível.
A coisa em si, o absoluto, ao mesmo tempo que marca um li-
mite às pesquisas do entendimento, é uma meta que a razão procura
atingir e à qual não corresponde nenhum dos objetos da experiên-
cia; é uma idéia, no sentido platônico, um arquétipo, um paradigma
feito daquilo que imperfeitamente apreendemos.
A idéia, como limite e como meta a atingir, compreende per-
feitamente o que Kant quis significar com esse vocábulo; indica de
um lado; até onde nãoé-lícito &experiência-alcançar e; por o u t r o 7
até que ponto pode pretender chegar o nosso sentimento ético; no
primeiro caso é uma expressão negativa e no segundo um ideal po-
sitivo. Kant, é preciso que se note desde já, distingue entre o mun-
do físico, onde não admite a finalidade, e o moral, em que conside-
ra o seu conceito imprescindível.
A experiência tende continuamente a alargar os seus domínios,
sem que jamais se possa proclamar completa; é, pois infinita, como
o são as suas condições a priori, o espaço e o tempo. Se se pudesse
conceber um princípio último e incondicionado, em que se encon-
trassem amalgamados todos os dados da experiência, de modo a
formarem um só conhecimento, uma só ciência, a estabelecerem a
unidade final e absoluta do nosso pensamento, a esse fito, a essa
meta, embora saibamos que nunca se poderá alcançar, devemos
contínua e esforçadamente aspirar, pois que ele promoverá e pro-
duzirá uma cada vez maior união e coordenação sistemática da
nossa ciência.
A idéia, considerada do modo que deixamos exposto, é um
conceito da razão, cuja diferença do entendimento se determina
perfeitamente neste ponto: este tira da experiência os diversos juí-
zos que forma, ao passo que ela coordena todos esses juízos em um
todo único sistemático ou, pelo menos, tenta levar a efeito essa co-
ordenação.
A experiência não conhece limite atingível, porque é, como as
suas condições a priori, infinita: o seu limite é justamente a idéia
da unidade, a qual já mostramos ser inatingível.
Ora, se se toma tal idéia como sendo atingível, a experiência
terá passado além dos seus limites legítimos, ter-se-á convertido
em metafísica do supra-sensível ou ontologia, a qual, portanto, tem
origem no fato ilegítimo de objetivarmos, considerando-a fenôme-
no, a coisa em si. A experiência, porém nunca manifestaria esse
pendor de transcender dos seus limites, se a coisa em si, o noúme- .
non, não oferecesse pelo menos uma aparência de se converter em
objeto sensível.
A origem de tal aparência ou ilusão explica-se coerentemente.
com os princípios assentados pela filosofia crítica: a nossa experi-
ência só conhece como seus os limites do espaço e do tempo, os
quais são, entretanto, ilimitados; a experiência, portanto, por ser
i l i m i t a d a , não pode supor nem primeiro nem último-elo-na cadeia
dos fenômenos.
Além do espaço, do tempo, da causalidade, que lhe são anterio-
res e a condicionam, há na experiência qualquer coisa dela inde-
pendendo e que não lhe é nem condição nem objeto, o noúmenon, a
idéia, a coisa em si, que lhe constitui o limite inatingível, pois que
ela é ilimitada. Desta forma nasce a aparência, a ilusão de, dentro
do mundo fenomenal, podermos alcançar esse limite, de supormos
que a coisa em si constitui o último elo, e, por isso, incondicionado,
na cadeia da causalidade, sendo como tal, também suscetível de
conhecimento.
De modo que, não sendo possível libertar as nossas concepções
do espaço, do tempo e da causalidade, forçosamente, a seguirmos
esse caminho e a admitirmos o noúmenon como cognoscível, sere-
mos obrigados a lhe conceder o caráter de limite cognoscível do
espaço e do tempo, de causa primeira, de existência absolutamente
necessária.
A ilusão que nos faz chegar a tais conclusões pode ser desco-
berta, criticada, mostrada falsa pelo entendimento, porém não con-
seguirá jamais ser destruída: é uma ilusão, mas ilusão inevitável.
Há, portanto, alguma coisa que nem pode ser objeto da experi-
ência nem tão pouco condição dela, e que lhe constitui o limite ab-
soluto; pois que, se não fosse absoluto, poderia ser representado no
espaço e no tempo, o que equivale a dizer seria um fenômeno, o
qual constituiria um limite relativo, mas não o limite da experiên-
cia.
Se supuséssemos a coisa em si representada no espaço e no
tempo, estes constituiriam a determinação necessária das coisas,
independente da nossa representação; as percepções nossas no es-
paço e no tempo não mais nos seriam representadas, existiriam por
si, seriam em uma palavra, coisas em si, independeriam da nossa
psique que os representa como fenômenos. Tal é fundamentalmente
o erro dos dogmatismos metafísicos que pretendem nos fazer co-
nhecer as coisas em si.
Toda~metafísica~concluido condicionado para-o- incondicional
do; raciocina do seguinte modo: dada a existência contingente ou
relativa, também se encontram juntamente dados os elementos que
a condicionam. Essas condições não seriam completas, se a última
de que derivam todas as outras não fosse final, não fosse incondi-
cionada. A cadeia completa delas, assim como seu último elo (cau-
sa primeira) devem ser incondicionados: dado, conseguintemente, o
condicionado, é-nos dada a inteira série de suas condições, é-nos
dado o incondicionado; da existência do condicionado conclui-se
pela do incondicionado.
É necessário, evidentemente, que da existência do condiciona-
do concluamos pela efetiva existência de todas as suas condições.
Logicamente também, dada uma condição, se há de julgar que ela é
condicionada ou não; se o é, renovamos continuamente o raciocínio
até que, esgotada a inteira série das condições, encontremos final-
mente uma que o não seja; se não o é, teremos o incondicionado
como dado imediato.
O condicionado, é de concluir, exige o incondicionado para a
sua completa realização. Nós já vimos, porém, que um conceito,
logicamente exato, pode não ser empiricamente verdadeiro; é, pois,
preciso, antes de tudo, examinar de que natureza é o objeto a que
ele se pretende aplicar. O caso aqui é exatamente esse: o conceito
da existência condicionada se refere aos fenômenos ou às aparên-
cias, ao passo que o da não-condicionada só diz respeito às coisas
em si. De modo que o raciocínio exato a empregar é o seguinte:
dada a existência condicionada como fenômeno, a não-condicio-
nada resulta como noúmenon ou coisa em si, a qual nunca se pode-
rá considerar como fenômeno. Ou então: dada a existência condi-
cionada como fenômeno, encontram-se dadas as suas condições
como fenômeno, mas, como elas também são fenômenos ou obje-
tos de experiência possível, o seu conjunto nunca nos é dado com-
pletamente, pois que a experiência não conhece limites. Em qual-
quer dessas conclusões nega-se a possibilidade da metafísica. A
metafísica dogmática toma a existência como conceito puro, consi-
dera-a independente da nossa representação, põe-na em relação não
só com os fenômenos, mas também com as coisas em si e conclui:
da existência do condicionado (como coisa em si) infere-se a do in-
condicionado. Ora, o condicionado existe (como fenômeno ou apa-
rência somente); logo também existe o incondicionado. Está pa-
tente o erro da conclusão pela diversidade das acepções que na
maior e na menor tem o conceito da existência c o n d i c i ~ a .
- -

Um raciocínio, porém, só é válido em suas conclusões, quando


o termo médio é o mesmo nas duas premissas; do contrário teremos
o que os lógicos apelidaram de uma quaternio terminorum.
A metafísica, pois, funda-se num evidente sofisma. Esse sofis-
ma que redunda na confusão da coisa em si com a aparência (do
noúmenon com o fenômeno) é natural encontre admissão e acolhi-
da pela razão humana, pois que resulta daquela ilusão transcen-
dental ou da razão pura que nos faz atribuir ao noúmenon uma
existência objetiva; é, portanto, como Kant expressamente nota, um
sofisma não dos homens, mas da própria razão pura, da qual nem o
mais sóbrio de nós se poderá libertar, conseguindo, quando muito,
guardar-se do erro, jamais logrando, porém, totalmente arrastar a
ilusão que continuamente nos persegue.
A PSICOLOGIA RACIONAL
E OS PARALOGISMOS DA RAZÃO PURA

Está, pois, desvendado o falso raciocínio sobre que se funda


toda metafísica dogmática, em suas conclusões básicas sobre o ab-
soluto: de sorte que nos encontramos armados para seguramente
segui-la e combatê-la nas conclusões particulares que ela tira das
premissas gerais estabelecidas.
Quantas espécies do condicionado houvermos determinado,
tantas outras serão as partes em que se dividirá o pretenso conhe-
cimento do absoluto ou a metafísica do supra-sensível. Comparada
a existência condicionada com a incondicionada, a cada manifesta-
ção daquela corresponderá, como noúmenon, uma forma desta.
Ora, a existência condicionada se nos apresenta sob três as-
pectos: uma manifestação íntima (existência dentro de nós), uma
manifestação externa (existência fora de nós), e a manifestação de
uma existência possível ou objeto no sentido geral. A essas mani-
festações corresponderão um incondicionado dentro de nós, um in-
condicionado fora de nós e um incondicionado que se refere a toda
existência. O incondicionado dentro de nós é o absoluto subjetivo,
que forma o substratum invariável de todas as aparências subjeti-
vas, é a alma. O inconcondionado fora de nós é o absoluto objetivo,
a essência de todas as aparências objetivas é o mundo ou o univer-
so como todo. O incondicionado no que diz respeito a todas as
existências possíveis é o ente absoluto ou a essência de todas as re-
alidades possíveis.
Da existência condicionada, a ser válido o raciocínio da metafí-
sica dogmática deve-se concluir pela existência de um incondicio-
nado ou absoluto como alma, universo e Deus, ou como idéia psi-
cológica, cosmológica e teológica. A metafísica do supra-sensível
sustenta que a alma, o universo e Deus são, como coisas em si, ob-
jeto do conhecimento por meio da razão, donde se originam a psi-
cologia, cosmologia e teologia racionais.
Cabe à filosofia crítica mostrar o infundado das pretensões des-
sas supostas ciências. O nosso conhecimento pode-nos ser interno
ou externo, conforme derivarem os objetos da experiência do nosso
senso íntimo ou da percepção empírica. A experiência é, conse-
guintemente, no sentido mais lato, ou física ou psicológica. Esta se
baseia na observação das nossas ocorrências internas, na experiên-
cia subjetiva, estudando os diferentes estados da existência interna
e procurando descobrir a unidade e concatenação deles. Os fenô-
menos internos, não existindo no espaço, porém somente no tempo,
não podem ser concatenados pelo conceito de reciprocidade ou si-
multaneidade, mas sim pelo da causalidade, pois que são estados
que necessariamente se sucedem.
Como modificações ou estados sucessivos de uma consciência,
eles pressupõem um sujeito que sempre permanece e para o qual
estão como predicados continuamente variáveis: esse sujeito é, pois
substância, por definição. Ora, se supusermos, de acordo com as
conclusões da ontologia, que esse sujeito pode ser absoluto ou in-
condicionado, teremos, na unidade de todas as nossas manifesta-
ções subjetivas, no sujeito representativo ou pensante, realizado a
coisa em si, a idéia, como substância pensante, teremos descoberto
a alma. É esse o tema da psicologia racional.
Apressemo-nos, porém, em examinar esse conceito da alma
como sujeito incondicionado de todas as nossas transformações ín-
timas. Como sujeito imanente ou perdurável que é o substratum de
todas elas, a alma é substância; como substância de todas essas va-
riações íntimas, que constam de representação e pensamento, não é
composta, porém indivisível e simples; como em todos os instantes
de suas mudanças permanece sempre a mesma, tem consciência da
própria identidade, é, pois uma entidade autoconsistente ou uma
pessoa; como finalmente o seu objeto é ela própria, unicamente a
sua existência lhe é imediatamente certa, ao passo que é duvidosa a
de todos os objetos que lhe são exteriores.
É esta a súmula dos requisitos que, segundo a psicologia racio-
nal, competem à alma; resumem-se, pois, na substancialidade, na
simplicidade, na personalidade e na ideialidade e, como corolário
da substancialidade, na imaterialidade e na incorruptibilidade ou
--
imortalida* -- --

A alma, com todos esses atributos, sustenta a ontologia, é ob-


jeto do nosso conhecimento. Vamos ver o que lhe responde a filo-
sofia crítica.

Já se mostrou na dedução dos conceitos puros do entendimento


que não pode haver nem unidade nem coordenação nas nossas re-
presentações objetivas, sem supormos exista uma consciência pura
que sempre permaneça a mesma, chamada por Kant a "apercepção
pura ou transcendental", o cogito que é condição a priori das nos-
sas representações: ela as distingue e compara, isto é, forma juízos,
é o sujeito de todas essas representações, é o sujeito que formula
tais juízos, e o qual nunca pode ser predicado de qualquer outro
juízo.
O eu dá a forma ao juízo, mas essa forma, sendo a priori, é pu-
ramente lógica, sem quaisquer elementos empíricos; porque, se-
gundo a doutrina kantiana, cada um objeto da experiência ou do
conhecimento pressupõe a própria forma dada de antemão, como
sua condição a priori de conhecimento ou experiência possível. A
não ser que se houvesse de pressupor a si mesmo, o que é eviden-
temente absurdo.
Além disso, todo o objeto cognoscível pressupõe uma percep-
ção de que resulta. Se, por conseguinte, houvermos de admitir que
um objeto qualquer pode ser conhecido como substância, forçosa-
mente teremos de concordar em que ele deverá ser percebido como
um fenômeno que permanece, pois que sem o conceito de perma-
nência não há substância, a qual, dele despida, nada significa.
O fenômeno permanente exige, porém, por outro lado, coexis-
tam simultaneamente diversos fenômenos, dos quais um perdura,
enquanto os outros passam. Esses só poderão existir no espaço; o
permanente, conseguintemente, tanto como os variáveis pressu-
põem o espaço, pois que no tempo, que é o esquema da sucessão,
nada se pode representar como coexistência. A não ser que à alma
reconheçamos o atributo da extensão, de forma alguma poderemos
admitir que o sujeito do pensamento seja uma substância pensante,
enfim que o eu, a alma, seja de qualquer modo substância.
O "eu penso" da cosmologia racional, convertendo-se num "eu
SOU pensante", e finalmente num "eu sou uma substância pensante"
e, na frase de Kant, uma hipóstase, s u b - r e p t i c i a m e n ~ g i n a d a ;
da autoconsciência (apperceptionis substanti~).O eu não é, em
conclusão, substância, não é qualquer coisa existente por si, não é,
em uma palavra, coisa em si.
O fundamento de que parte a psicologia racional mostra-se ina-
ne e falso; baseia-se em um sofisma, cuja formulação pode ser a
seguinte: aquilo cuja representação é o sujeito de todos os nossos
juízos, não podendo, por isso, servir de predicado a qualquer outra
coisa, é substância. Eu, como pensamento, sou o sujeito absoluto
de todos os meus juízos possíveis e essa representação de mim
mesmo não pode ser predicado de qualquer outra coisa; logo, eu,
como pensamento ou como alma, sou substância.
O sofisma está na diversa acepção que na maior e na menor as-
sume o termo médio - sujeito de todos os nossos juízos possíveis, o
que dá lugar a uma quaternio terminorum, verificada a qual, não é
possível alcançar-se uma conclusão válida. Com efeito, em nossos
juízos podemos considerar o sujeito deles sob dois aspectos muito
diversos, isto é, ou de sujeito pensado como objeto do juízo ou da
conclusão que tiramos, ou então de sujeito pensante, como aquele
que pensa ou profere o juízo. O sujeito pensado é o sujeito real do
juízo, ao passo que o sujeito pensante é apenas o sujeito lógico, que
não se representa no juízo formulado.
Nestas condições só poderá ser substância o sujeito real, consi-
derado então como objeto permanente da nossa percepção; não as-
sim o sujeito lógico, pensante, o qual, nunca podendo ser objeto da
percepção, jamais será substância.
O erro da conclusão, tirada pela metafísica dogmática, está,
pois, patente. Diz, com efeito, a maior: aquilo que só pode ser pen-
sado como sujeito do juízo e nunca como predicado, como sujeito
real é substância. Diz a menor: o eu pensante só pode ser conside-
rado como o sujeito que formula todos os nossos juízos, como o
sujeito lógico de todos eles.
A maior sustenta ser substância aquilo que é sujeito de todos os
nossos juízos, a menor sustenta que em todos os casos o nosso eu é
o sujeito que formula o juízo; dessas duas premissas heterogêneas
não se pode tirar uma conclusão válida; o paralogismo isto é o falso
silogismo, decorre de um evidente sofisma f i g u r ~dictionis. Todas
as conclusões, derivadas do pressuposto fundamental da existência
de uma substância pensante, Kant as chama igualmente de paralo-
gkmadaraz%qura;-resultantesdaquela-ilusão transcendentabue
nos leva a considerar a substância inextensa como objeto do conhe-
cimento.

Se a alma não se pode pensar como substância, muito menos o


poderá ser como substância simples, pessoal e consciente tão só da
própria existência.
A simplicidade constitui, segundo o nosso filósofo, o argu-
mento Achiles da psicologia racional. Se a alma não fosse simples,
argumenta ela, forçosamente seria composta de uma porção de su-
jeitos, os quais deveriam todos pensar simultaneamente para formar
um só conceito, o que é evidentemente absurdo: a unidade do pen-
samento demonstra a unidade ou a simplicidade subjetiva do ente
pensante ou da alma.
O argumento, porém, não procede; visto que não se pode afir-
mar que o pensamento e, portanto, o sujeito real, como objeto dele,
não sejam compostos; o "eu penso" é que é, conforme já demons-
tramos, uma representação simples, na sua qualidade de sujeito 1ó-
gico, que em nenhuma outra se poderá decompor: a essa represen-
tação é que a metafísica transforma em substância simples ou alma.
Mas o eu pensante, o sujeito lógico não nos representa objeto al-
gum da percepção, não é, pois, substância; a sua unidade absoluta
não representa qualquer objeto simples da nossa percepção, não é,
conseguintemente, substância simples.
Diz mais a psicologia racional: tudo que é simples não pode ser
dividido em partes; tudo que é material é composto e, portanto, di-
visível em partes: a alma, sendo simples, não é divisível em partes,
logo, também não é material, é uma substância incorpórea.
Além de se fundar essa demonstração da imaterialidade da
alma no pressuposto da sua simplicidade, que já demonstramos não
se poder provar necessitamos demonstrar que, mesmo admitida in-
contrastável a premissa, a conclusão dela não resultaria. Com efei-
to, já ficou amplamente estabelecido que as coisas do mundo obje-
tivo não são mais do que simples representações do nosso senso
externo, e nunca coisas que por si existam.
A alma não é representável no espaço, como também não o são
percepções, sensações, consciência, etc.; a percepção externa só
nos informa em relação à matéria, i m p e n e t r a b i l i d ~ t c m ã u ,
movimento, etc.; mas essa diferença entre o objetivo e o subjetivo,
entre o corpo e a alma, não se refere à sua heterogeneidade de es-
sência, para nós absolutamente desconhecida, mas somente ao
modo diverso da sua respectiva manifestação.
Sendo os corpos percepções do nosso senso externo, nossas re-
presentações no espaço, por conseguinte, e constituindo a alma, se-
gundo a psicologia racional, o substratum fundamental delas, não
se vê como distingui-la, por sua vez, daquela essência que, logica-
mente, se há de julgar como constitutiva do fundo inalterável de
todas as aparências materiais. Essa coisa qualquer desconhecida,
diz Kant, que forma o fundo das nossas percepções externas, que
afeta o nosso senso externo de modo a fazê-lo adquirir as repre-
sentações de espaço, matéria e forma, essa coisa qualquer pode
muito bem ser ao mesmo tempo sujeito do nosso pensamento, visto
que o modo por que sempre se encontra afetado o nosso senso ex-
terno não nos permite ter uma percepção da representação, da von-
tade ou da sensação, mas exclusivamente do espaço e suas deter-
minações.
Essa coisa qualquer não pode, porém, ter extensão nem ser tão
pouco impenetrável ou composta, porque esses predicados compe-
tem somente à nossa percepção sensível externa. De modo que pela
simplicidade não se distingue a alma como fenômeno da matéria
como noúmenon.
Da simplicidade da alma infere a psicologia racional, como
conseqüência, a sua perduração e indestrutibilidade, as quais con-
vergem no conceito da imortalidade. O que é simples, com efeito,
diz ela, é por sua natureza indivisível e, pois, não pode ser destruí-
da por seção de partes que não existem. Se a alma, porém, não está
sujeita a este modo de destruição, poderá, entretanto, ser aniquila-
da, desaparecer totalmente, sem nada deixar de si. A psicologia ra-
cional sustenta que, a dar-se esta última hipótese, seria preciso que
entre o momento da existência e o da cessação dela não mediasse
qualquer intervalo ou espaço de tempo, o que é impossível.
O que representamos como simples, com efeito, náo admitindo
nem aumento nem diminuição, ou existe ou não existe, e, assim
sendo, não deve mediar tempo entre a sua existência e não-
existência; de sorte que, não podendo desaparecer nem gradual
nem-subi tâmente;-o-simples-é-permanente-
imortal.
Na verdade, aquilo que a psicologia racional chama de simples,
sendo indivisível, por definição, evidentemente não possui partes,
não é, pois, uma grandeza extensiva ou de percepção; pode, porém,
ser uma grandeza intensiva, ainda mais, deve-o ser necessariamen-
te, visto que é uma manifestação subjetiva nossa; ora, já demons-
tramos que a grandeza intensiva é susceptível de diminuição gradu-
al, da realidade à negação. A própria consciência é uma tal grande-
za intensiva, pois que existem muitos e inumeráveis graus de cons-
ciência até seu completo desaparecimento.
A personalidade da alma tão pouco se prova com os dados da
psicologia racional. Os atributos da personalidade são a unidade do
sujeito em todas as variadas modificações porque passa e a consci-
ência de tal unidade. A alma humana é o sujeito que permanece um
e idêntico a si mesmo nas diversas transformações ou variações, so-
fridas pela consciência, e a qual se conhece como sendo tal sujeito.
O paralogismo da personalidade se pode, pois, formular nos
seguintes termos: aquilo que em todas as suas transformações tem
consciência da identidade individual de si mesmo é uma pessoa:
ora a alma tem tal consciência; logo, a alma é pessoa.
Para que nos aventuremos a afirmar que um sujeito é idêntico a
si mesmo nos seus diversos estados ou modificações, devemos ad-
mitir que ele permanece ou perdura.
Mas só a experiência externa é que nos pode garantir exista
efetivamente tal permanência; as transformações internas da cons-
ciência, contudo, jamais constituem objeto da experiência externa;
logo, a permanência ou auto-identidade do sujeito não é susceptível
de conhecimento. Da permanência, pois, evidentemente, não se
pode inferir a consciência da própria identidade no sujeito.
É tão somente a consciência que nos garante a própria identi-
dade: do simples "eu penso" (do eu puro) é que se conclui ser a
alma uma pessoa autoconsciente.
E é isso mesmo que constitui o fundo de todos os paralogis-
mos: tomam o eu como objeto do conhecimento, quando ele não o
pode ser senão aparente, ilusoriamente, dessa condição puramente
lógica e formal do conhecimento fazem decorrer a existência de
uma substância pensante. Nessa ilusão assenta toda a psicologia ra-
cional: do "eu penso" conclui logo que "uma substância pensa", do
fato de "eu ter consciência dos meus estados ou m o d i f ~ í n t i =
mas" deduz imediatamente que uma substância tem consciência
dos próprios estados ou modificações íntimas.
Mas do eu puro, sujeito lógico, nunca se pode tirar uma afirma-
ção de substância, pois que ao conhecimento da unidade subjetiva
da minha consciência, do fato de eu estar convencido, em todos os
estados dela, da minha unidade subjetiva, nada mais se pode dedu-
zir senão o fato da unidade do meu pensamento.
Dado que esse fato seja insofismável, tal dedução não é mais
que um juízo analítico, daqueles que, o predicado não sendo mais
do que uma decomposição ou elucidação do conceito já enunciado
no sujeito, não nos dão nem aumentam o conhecimento. As modi-
ficações ou estados subjetivos de outrem, evidentemente, nunca
constituem objetos para a minha própria consciência, do mesmo
modo que as da minha também nunca o são da de outrem. É a
consciência de cada um de nós que os torna objetos de si própria;
de modo que em qualquer outra essas variações ou transformações
nunca se poderão considerar como sendo minhas.
Assim, diz Kant, os meus vários estados de consciência são os
diversos estados que eu refiro a mim mesmo, que eu me represento
como a mim pertencentes, e nos quais tenho consciência da unida-
de do meu próprio eu.
De sorte que a minha consciência unicamente afirma o seguin-
te, e nada mais: em todos os diversos estados dos quais tenho cons-
ciência que me pertencem, eu tenho consciência do meu próprio eu;
ou então: em todos os vários estados que me são representados
como pertencentes ao meu sujeito, eu me represento o meu sujeito
como a eles pertencendo.
Que conhecimento, além de sua determinação como sujeito 1ó-
gico, adquirimos, destarte, acerca do eu, a respeito do "cogito"?
Nenhum absolutamente; de modo que ainda mais fundamente aba-
lada em suas bases fica a psicologia racional.

Sustenta mais a psicologia racional que a alma é de todos os


objetos possíveis do conhecimento não só o mais certo, senão tam-
bém o único certo.
Pois que, diz ela, a existência de um objeto é tanto mais certa
quanto mais imediato e direto é o nosso conhecimento dele, e,
quanto-mais-mediat~for-ele,quant~maior~somadeconeei~s-
e representações que se interpuserem entre eles e a consciência,
tanto mais duvidosa e incerta será a sua existência
Ora, o nosso conhecimento da alma é intuitivo e imediato e,
portanto, o único certo, ao passo que as existências, apreendidas
indiretamente, por meio do raciocínio, como o são as coisas do
mundo objetivo, externo à consciência, são duvidosas. Constitui
isso a paralogismo da idealidade, esposado por todos os sistemas
idealistas, contrapondo-se à única realidade das coisas exteriores,
encarniçadamente defendida por todos os realismos.
A filosofia crítica demonstra, por seu lado, que as coisas do
mundo objetivo se enquadram no espaço e no tempo, os quais, ao
mesmo tempo que intuições da razão pura, são simultaneamente as
formas de representação da nossa sensibilidade, o que nos leva a
dizer que todos os objetos existentes no espaço e no tempo, isto é,
todos os fenômenos, tanto internos como externos, são nossas re-
presentações, devem ser considerados como tais. Destarte a subs-
tância, a qual, representada no espaço, é matéria, deve ser conside-
rada como fenômeno, que nada será, se não for nossa representa-
ção.
Mas, se a matéria e os fenômenos objetivos no espaço não
existem independentemente da representação, eles, considerados
como cosmos, em sua totalidade, nos são conhecidos tão direta-
mente e nos são tão certos como a nossa própria consciência; uma
vez esta provada, eles também existirão.
De sorte que o paralogismo da idealidade só deixaria de o ser,
se às coisas do mundo objetivo, tirando-lhes o caráter de represen-
tações, se lhes atribuísse a existência em si, se, em vez de fenôme-
nos, sustentássemos serem elas noúmena.
Ou então, se é nossa consciência, despindo-a do seu caráter de
representação do nosso mundo subjetivo, emoções, vontade, se
houvesse de atribuir uma realidade independente do tempo e da
causalidade. Tal, porém, só seria possível, se a alma e o corpo, es-
pírito e matéria, fossem duas substâncias de natureza diversas: é o
que Kant nega com bons fundamentos, mostrando que elas apenas
constituem duas representações diferentes da nossa sensibilidade.
A discussão desses pontos abrange a dos fundamentos do idea-
lismo e realismo, à qual brevemente teremos de voltar, quando
houvermos de procurar o lugar da filosófica crítica-eritre-os-vários
sistemas conhecidos.
A COSMOLOGIA RACIONAL
E AS ANTINOMIAS DA RAZÃO PURA

A metafísica do supra-sensível, já o dissemos, conclui do con-


dicionado para o incondicionado. Se denominarmos mundo ao
conjunto dos fenômenos, e aos exteriores à consciência de cosmos
ou mundo no espaço, veremos que ele se compõe de fenômenos
que variam e cujas modificações ou transformações serão determi-
nadas por todos os que os precedem, ao passo que o conjunto deles
constitui a condição ou determinação de todos os que se lhes segui-
rem.
Não se pode cogitar de um estado do mundo objetivo sem ao
mesmo tempo admitir ser ele resultante de todos os seus estados
anteriores.
Esse conjunto ou totalidade, porém, para se poder conhecer, é
mister nos seja dado inteiramente, devendo, portanto, ser finito e,
por isso mesmo, incondicionado.
Dado, conseguintemente, um fenômeno, nos é dada a inteira sé-
rie de suas condições: essa série das condições de um dado fenô-
meno constitui um todo que não terá condições, pois que, do con-
trário, ele não abrangeria a totalidade das condições possíveis: a
esse todo incondicionado que chamaremos mundo, trata-se de de-
terminar-lhe os caracteres que o tornam cognoscível à nossa repre-
sentação.
De sorte que, dado um fenômeno, de condição em condição, te-
remos de determinar a série inteira delas; trata-se de determinar re-
gressivamente tal série, até que cheguemos ao último membro dela,
o mundo como idéia ou coisa em si.
Para chegarmos, porém, até à idéia, precisamos apurar o que é
possível afirmar do mundo condicionado como objeto da percep-
ção,isto é, o que dele poderemos dizer, aplicando-lhe-âscategorias
ou os puros conceitos do entendimento.
Ora, o fenômeno no espaço, como objeto da experiência, é uma
grandeza extensiva, como existência no espaço é matéria, como
membro na série de transformações no mundo é um efeito, como
pertencente à coordenação dos fenômenos, segundo a sua existên-
cia, é uma dependência de tal concatenação. Como grandeza todo
fenômeno é composto ou tem extensão no espaço e no tempo. Cada
espaço determinado é condicionado por todo o espaço, cada mo-
mento no tempo pelo inteiro tempo anterior. Nessa conformidade, a
série completa das condições de uma dada grandeza é formada pelo
espaço inteiro e por todo o tempo anterior, ou pela completa coor-
denação dos fenômenos no espaço e no tempo ou, como conjunto
deles, pelo mundo no espaço e no tempo.
Se quisermos chamar ao mundo no espaço e no tempo de uni-
verso como grandeza (Weltgr~sse),a cosmologia procura descobrir
a composição (Zusammensetzung) ou grandeza total do mundo.
Toda matéria é divisível e se compõe de partes, as quais formam as
condições de sua existência; a série completa dessas condições é
constituída pelas suas partes, cuja totalidade só nos será dado en-
contrar, quando houvermos obtido uma divisão ou repartição com-
pleta delas, quando houvermos chegado ao indivisível.
Qualquer efeito é condicionado por todas as suas causas. A in-
teira série das condições de um dado efeito, conseguintemente,
consistirá numa totalidade das causas necessárias para a sua exis-
tência completa. Do mesmo modo, toda existência condicionada
deriva de outra da qual depende, de modo que a série de suas con-
dições, como concatenação, depende da totalidade do condiciona-
do, isto é, da totalidade das existências reciprocamente coordena-
das ou dependentes.
De sorte que, partindo a cosmologia do condicionado para o in-
condicionado, busca sempre a determinação de uma totalidade ab-
soluta: da grandeza do cosmos; da divisibilidade de suas partes; das
causas ou da origem dos fenômenos; de sua recíproca dependência
ou coordenação.
Esses quatro ideais da cosmologia são, como idéias, alvos
- - pp - -
- - - -- -- -
legí-
timos para a razão humana; mas tão pronto os quisermos transformar
em objetos do conhecimento, logo que nos deixarmos ofuscar pela
ilusão de que a coisa em si pode ser experimentalmente determinada,
de que a idéia é uma coisa-objetiva, enão um alvo a que tendemos,
de que o mundo como um todo incondicionado pode ser por nós co-
nhecido, teremos criado mais uma falsa ciência, mais um ramo da
metafísica do supra-sensível, a cosmologia racional, cujo objeto ilu-
sório é o conhecimento do cosmos como um todo absoluto.
A cosmologia racional, cujos conceitos caem em contradição
consigo mesmos, de si própria nos fornece os argumentos com que
a havemos de refutar.
É este o caminho seguido por Kant, na sua refutação da cos-
mologia racional, quando estabelece o que denomina as "antino-
mias da razão pura".
De um conceito afirmamos ser possível, quando não se contra-
diz, quando em si não reúne dois atributos contraditórios: deles só
um lhe deve caber; do contrário é logicamente impossível o con-
ceito. Essa impossibilidade pode assumir duas formas: ou o con-
ceito não tem nenhum dos dois atributos, e a sua impossibilidade se
prova por meio de um dilema, ou possui-os ambos, e então a im-
possibilidade lógica se demonstra com a antinomia.
Uma antinomia consta de dois juízos com o mesmo conteúdo,
os quais estão entre si como a afirmação para a negação; pode-se
chamar ao primeiro tese e ao segundo antítese. Além disso, para
que realmente exista uma antinomia, é necessário que a tese e a an-
títese sejam não só assinaladas, mas também demonstradas com ar-
gumentos igualmente fortes de um lado e de outro; se não forem
equivalentes os fundamentos da demonstração, não haverá uma
verdadeira antinornia. Agora, se supusermos que os fundamentos
da demonstração procedem, não da experiência, porém, da razão
pura, quando esta assume o papel de julgar (contraditoriamente) os
seus objetos e demonstrar o cabimento dos juízos contraditórios
formulados, teremos então um caso de "conflito da razão pura con-
sigo mesma", teremos estabelecido as antinomias da razão pura.
Todos os princípios fundamentais da cosmologia racional são
antinomias da razão pura, pois tanto a afirmação como a negação,
tanto a tese como a antítese se podem igualmente demonstrar.
Todas as teses sustentam que o mundo como objeto do conhe-
cimento está sujeito a certos princípios; todas as antíteses provam o
contrário com igual força lógica. Vejamos como nassemessas-pro-
posições contraditórias.
O sujeito comum, de todos os juízos da cosmologia racional é o
cosmos como todo, como conjunto completo de todas as condições
de um dado fenômeno. Essa série, porém, pode existir completa,
sem que, contudo, nos seja possível conhecê-la completamente;
para que tal aconteça, devemos supor-nos capazes de segui-la em
todos os seus elos até ao último, o qual, justamente por ser o pri-
meiro da série, não pode ser condicionado mas necessariamente se
nos apresenta como incondicionado. Assim, de um lado, teremos
proposições sustentando que a inteira série das condições nos é
dada como completamente cognoscível, isto é, que têm limites e de
outro, proposições opostas, afirmando que ela não nos é dada como
completamente cognoscível, isto é, que não tem limite.

A cosmologia racional, já vimos, trata, como seus problemas


fundamentais, da inteira composição do universo, ou sua grandeza,
da inteira divisão da matéria, ou do conteúdo do mundo, da inteira
série das causas, ou da ordem do cosmos, da inteira dependência
das existências, ou da existência absoluta.
A totalidade das condições desses objetos da cosmologia, con-
forme os julgarmos cognoscíveis ou incognoscíveis, deve-nos pa-
recer limitada ou ilimitada. De sorte que os juízos da cosmologia
racional serão os seguintes, conforme assumirmos uma ou outra
daquelas duas posições.

ANTINOMIAS
1"
Tese - O mundo como grandeza (no espaço e no tempo) é ili-
mitado ou infinito.
Antítese - O mundo como grandeza não é limitado (é infinito).

2"
Tese - A inteira divisão (a divisibilidade) da matéria é limitada;
ela se compõe de partes simples.
Antítese - A divisibilidade da matéria é ilimitada, ela não se
compõe de partes simples, no cosmos nada há simples.
--

3"
Tese - A série inteira das causas é limitada, existe uma causa
primeira, a qual não é condicionada, não se determina à ação por
qualquer impulso exterior, mas por sua própria espontaneidade,
existe uma causa livre.
Antítese - A inteira série das causas não é limitada, não existe
uma causa primeira nem uma causa livre, só existem causas obede-
cendo estritas leis naturais.

4"
Tese - A inteira dependência das existências é limitada, existe
alguma coisa pertencente ao mundo, da qual dependem todas as
existências, sem que ela própria de nenhuma outra dependa, existe
um ente absolutamente (schlechhin) necessário.
Antítese - A inteira dependência das existências não é limitada,
nada do que pertence ao universo dele independe, não há ente ab-
solutamente necessário.

Agora que formulamos as antinomias, as proposições contra-


ditórias da cosmologia racional, procuraremos prová-las, a fim de
mostrar a sua igual validade lógica.
Comecemos pela primeira, cuja tese afirma: o mundo tem um
princípio no tempo e um limite no espaço - e cuja antítese sustenta:
o mundo não tem princípio no tempo e é ilimitado tanto em relação
no tempo como ao espaço.
Para provar a tese, admitamos a infinidade do mundo no tempo
e no espaço. Se o mundo não tem princípio no tempo, até o seu
presente estado deve nele haver decorrido ou passado um tempo in-
finito de transformações, uma eternidade.
Uma eternidade decorrida é uma eternidade que teve fim, que
se completou, que se esgotou; uma eternidade desta ordem não é
eternidade, é portanto impossível, visto que uma série infinita nun-
ca tem fim. Logo, o tempo decorrido até ao presente estado do
mundo não é infinito, não é uma eternidade, teve princípio e, pois,
tem limites: o mundo, conseguintemente, tem um princípio no
tempo.
Se o mundo não tem limites no espaço, é um todo infinito, que
consiste em várias coexistências. Qualquer coisa cujos limites se
aclvem perfeitamente determinados, se nos apresentWacompletaefaà
percepção.
Não estando, porém, pela hipótese assumida, o mundo encerra-
do dentro de limites determinados, ele só nos pode ser representado
pela apreensão sucessiva de suas partes, isto é, num decurso de
tempo infinito. Logo, a representação do universo sem limites no
espaço é condicionada por um tempo infinito decorrido, por uma
eternidade que teve fim, que já passou, o que é impossível. Da im-
possibilidade do cosmos infinito decorre a necessidade do finito:
logo, o mundo no espaço não é infinito, mas limitado.
A tese da primeira antinomia prova-se pela impossibilidade de
sua antítese, isto é, de uma eternidade que tenha tido fim, que seja
completamente passada.
Admitamos, porém, a tese, isto é, que o mundo teve um princí-
pio no tempo e possui limites no espaço, a fim de provarmos a an-
títese.
Todo princípio se origina em um determinado momento no
tempo, todo espaço de tempo é condicionado pelos anteriores. Se,
pois, o mundo tem um princípio no tempo, a esse princípio prece-
deu qualquer tempo em que ele não existia, um tempo vazio ou vá-
cuo em que coisa alguma tinha existência.
Neste tempo vazio nenhum momento no tempo se poderia dis-
tinguir dos anteriores, e essa distinção não seria possível fazer-se,
se num dado momento de tempo nada existisse e logo no seguinte
cobrasse existência alguma coisa; nele, portanto, não se originou o
mundo. Se é, pois, impossível que o mundo tenha tido princípio no
tempo, devemos admitir que ele é infinito.
Se o mundo tem limites no espaço, somos forçados a pensar
que ele se acha limitado por um espaço vazio e infinito: ele existe
num espaço vácuo, o qual será assim verdadeiramente um receptá-
culo (Weltschachtel) onde ele se encontra.
O espaço vazio fora do mundo, assim como o tempo vácuo an-
terior a ele, são coisas incompreensíveis (Undinge);visto que o es-
paço e o tempo não são entidades mas sim as formas da nossa re-
presentação dos fenômenos.
Não sendo o espaço entidade, o mundo no espaço vazio estaria
em relação com uma não-existência, o que não seria relação de es-
péciealgum~Iss~pro~possibi~idad~~~~vácuc-fm
do mundo, impossibilidade do cosmos finito, e a necessidade do
universo infinito.
A demonstração da antítese baseia-se na impossibilidade do es-
paço e do tempo vazios.
Vejamos agora a segunda antinomia.
A única existência extensiva e permanente, a única substância
suscetível de conhecimento objetivo é a matéria, a qual se compõe
de partes. Tudo que é composto se pode decompor ou dividir em
suas partes constitutivas; essa decomposição ou divisão pode ser ou
limitada ou ilimitada; no primeiro caso teremos partes últimas,
simples, indecomponíveis, e no segundo não existirão tais partes
simples, no primeiro e indivisível, e no segundo divisível a matéria
até ao infinito. As duas proposições rezam contraditoriamente: toda
substância composta existente no mundo consta de partes simples,
não há, pois, senão o simples, e o que dele se compõe; - nada com-
posto, existente no mundo, consta de partes simples, não existe
nada simples.
Suponhamos a antítese para provar a tese: a substância, a maté-
ria, não consta de partes simples, absolutamente nada simples
existe.
Toda substância composta forma-se, reunidas as suas partes
exteriormente ou justapostas umas às outras; toda composição é,
por conseguinte, uma relação exterior, fortuita, de dados elementos
e, sendo fortuita, pode ser mentalmente havida como não-existente.
Se suprimirmos, portanto, em nossa mente o composto o que resta
é simples. Se nada no cosmos, porém, existe que seja simples,
aquele resto é nada, do qual coisa alguma pode resultar, e muito
menos uma substância composta.
Visto esse resultado, mentalmente não nos é dado prescindir do
composto, de sorte que, para obter a afirmação ou negação do sim-
ples, teremos de levar a nossa divisão até ao infinito: mas nesse
caso, a composição não é mais nenhuma relação externa e fortuita
de agregação. As partes da matéria deverão, portanto, existir inde-
pendentemente dessas relações fortuitas de composição para forma-
rem uma substância, pois que esta não poderia ser composta, se os
seus elementos componentes não fossem também substância.
Ora, da negação da existência do simples decorre a impossibi-
lidade das substâncias compostas, pois estas, valendo a hipótese,
-
resultariam ou do nada ou de não-substâncias;- -

A demonstração da tese resulta da impossibilidade da antítese,


que é o conceito de uma substância divisível até ao infinito.
Provemos agora a antítese supondo a tese; todas as coisas com-
postas, existentes no mundo, constam de partes simples, e só existe
em última análise, o que é simples.
Como a composição só é possível no espaço, compondo-se a
substâncias de partes, estas devem ocupar um lugar no espaço;
mas, sendo as suas partes simples, o seu lugar no espaço deve tam-
bém ser simples, isto é, serão igualmente indivisíveis os espaços
por ela ocupados, o que é impossível. Logo, a substância, perceptí-
vel no espaço, deve ser composta; nada composto portanto, pode
constar de partes (ou substâncias) simples. Como o absolutamente
simples repele os conceitos de espaço, tempo e grandeza, nunca
poderá ser objeto da nossa percepção; por conseguinte, nada sim-
ples existe no mundo.
A demonstração da antítese resulta da impossibilidade da tese,
que afirma a existência de um espaço indivisível ou de objetos da
percepção despidos de grandeza.

Vamos à terceira antinomia. Todo fenômeno é um efeito que


presume a inteira série de suas causas, série que pode ser finita ou
infinita. Se é finita, deve existir um primeiro termo da série, uma
causa, portanto, que não será efeito de outra antecedente, que se
determinará à ação por sua própria espontaneidade, uma causa li-
vre, enfim.
Se, pelo contrário, é infinita, não haverá nenhum primeiro elo
na série causal, não haverá causalidade livre, senão estritamente
dependente de leis naturais.
Provemos a tese, supondo a antítese: só há uma causalidade
natural; tudo que existe é resultado necessário de um estado ante-
cedente.
Esse estado anterior ou existiu ou não existiu eternamente. No
primeiro caso, o estado anterior devia ter sido contemporâneo à
causa, não devia ter-se originado posteriormente, não se lhe devia
ter seguido. Isso, porém, contraria a premissa; logo tal estado nem
Se Kant não tivesse em vista estabelecer, para sobre ele fundar
a nossa atividade ética, um critério regulador das ações humanas no
que diz respeito ao valor dos seus móveis é de duvidar tivesse co-
gitado da teoria exposta, esdrúxula e confusa, do caráter empírico e
inteligível, este último não se compreendendo bem o que seja e,
coisa em si, atuando no mundo das aparências, donde, de acordo
com as bases mais certas da filosofia crítica, deveria ser expelido
sem piedade.
Como quer que seja, porém, uma vantagem nos resta de toda
esta discussão; o nosso filósofo, apesar dos seus estrênuos esforços
para achar uma falha na estrita causalidade mecânica, para por
meio dela dar lugar à livre determinação da vontade humana, não
pode deixar de confessar a inteira validade, em todo o mundo fe-
nomenal, e portanto, no próprio domínio da vontade humana, da
causalidade, determinada pelo rigoroso jogo das inelutáveis leis
naturais.
Postule embora a razão humana a existência da liberdade, e te-
nha dela convicção, o fato é que diante da necessidade insofismável
da causalidade natural, a consciência que temos de ser livres, não o
sendo em realidade, é apenas mais um motivo a acrescentar aos
inúmeros outros que, natural e necessariamente, determinam as
nossas ações.
Ao conceito de liberdade, debaixo deste ponto de vista, não se
pode deixar de conceder um grande valor prático como princípio
nomativo das nossas ações.
Digamos que, de acordo com as leis que lhe condicionam a
manifestação, cada fenômeno se nos manifesta em uma ordem e
regularidade perfeitamente determináveis, de modo que-ele terá a
sua atividade obedecendo ao que o nosso filósofo chama de seu ca-
ráter; esse caráter será, bem entendido, empírico.
Se transportarmos o conceito de caráter para o mundo do noú-
menon, poderemos dizer que cada manifestação, ou objetiva ou
subjetiva, do eu ou do cosmos, terá igualmente um caráter inteligí-
vel.
O problema da liberdade, ou melhor da conciliação da causa li-
vre com a causalidade natural, está na concordância do caráter em-
pírico de um fenômeno qualquer com o seu caráter inteligível.
Ora, como fenômenos, todas as coisas têm o seu caráter empí-
rico, constituídos pelas leis de sua manifestação; a admitir-se uma
conciliação entre a liberdade e a necessidade, elas devem ter si-
multaneamente o seu caráter inteligível.
O caráter empírico fala-as não ser outra coisa senão fenômeno
natural, condicionado por causas naturais, no tempo, enfim, objeto
da experiência: o inteligível desprende-as do tempo, da causalida-
de, da representação, da fenomenalidade e torna-as absolutas e in-
condicionadas nas suas manifestações. Já se vê que o mesmo su-
jeito deve ser considerado sob a dupla face do seu caráter empírico
e do inteligível, e a mesma atividade dele deverá ser olhada simul-
taneamente como ocorrência natural e ato de liberdade.
Essa união, porém, do caráter empírico com o inteligível só se
poderá conceber de uma única maneira: é que todas as ocorrências
no mundo empírico, todas as transformações e variações, sofridas
pelo sujeito no tempo, sejam resultado do caráter empírico, o qual
compendia em si as causas e a sucessão natural de tais ocorrências,
mas ao mesmo tempo tenham as suas raízes no caráter inteligível e
dele se originem.
Compreende-se, à primeira vista, não ser essa união susceptível
de conhecimento: ela apenas nos dá a regra, a diretriz de como po-
deremos conciliar a natureza com a liberdade. É assim que o pro-
blema da liberdade pode alcançar uma solução que nos permita,
para fins práticos, postular uma faculdade inteligível de agir no
homem.
A vontade, presa a essas condições sensíveis e por elas irresis-
tivelmente solicitada, não é livre; mas, se por acaso a supusermos
determinada, sim, e impulsionada pela sensibilidade, mas não
constrangida e forçada por ela, com um arbítrio limitado na escolha
dos seus motivos deterrninantes, podemos conceder que ela seja li-
vre até certo ponto: essa é a liberdade prática, a qual nos faz obrar
em certa direção, quando temos a convicção de que nas mesmas
circunstâncias poderíamos ou deveríamos obrar de maneira muito
diversa.
A que é devida essa divergência entre a nossa atividade prática
e o sentimento que nutrimos de que diferentemente poderíamos ou
deveríamos agir? Ao conceito da liberdade transcendental, inteligí-
vel, como idéia ou coisa em si. Pois que, verdadeiramente, só nos
será lícito admitir a lei moral, quando houvermos afirmado e cla-
ramente estabelecido o conceito da liberdade, se conjuntamente
com a lei moral assumirmos haja a liberdade de querer.
Se toda a causalidade é, entretanto, como não pode deixar de o
ser, condicionada, não se compreende a vontade livre, não há real-
mente liberdade de querer, não há ações que verdadeiramente se
conformem com uma lei moral que, destarte, não pode existir. Ne-
gar a causalidade natural nós não o poderemos fazer; para que nos
seja possível admitir o conceito da lei moral, forçosamente, já que a
não encontramos no mundo empírico, teremos que admitir a liber-
dade no sentido transcendental, como idéia, como objeto inteligível
ou como coisa em si. Mas assim mesmo, como será possível con-
ciliar essa liberdade transcendental com a causalidade empírica? Se
na cadeia empírica das causas não há solução de continuidade,
como admitir ela se interrompa para ceder o lugar a uma causalida-
de incondicionada? Somente assumindo que, a ser ela possível, a
sua ação não se exerça no tempo.
Mas ainda assim não ficaria resolvido o problema, pois que tal
atividade produz efeitos que se manifestam no tempo, portanto, no
mundo da sensibilidade. A causa incondicionada evidentemente
não é fenômeno, não pertence ao mundo sensível, mas tão somente
ao inteligível.
Ora, cada efeito tem a sua causa empírica e é ao mesmo tempo
causa de outros efeitos. Isso não sofre o menor contraste; do con-
trário teríamos de ver interrompida a cadeia da experiência, o que é
impossível.
Para que exista a liberdade são necessários, portanto, três re-
quisitos: 1" que uma idéia ou coisa em si possa possuir causalidade;
2" que o efeito dessa causalidade apareça, se manifeste no mundo
da representação; 3" que a liberdade e a causalidade natural se con-
ciliem, se adaptem perfeitamente uma à outra.

Como, porém, nos será possível conseguir tal adaptação e con-


cordância entre a causalidade natural e a liberdade? Em primeiro
lugar está bem visto que ela não é um objeto de conhecimento pos-
sível, porque a liberdade não existe no mundo dos fenômenos, em
que a causalidade domina exclusiva e soberanamente. Por isso não
se trata de provar nem de determinar a existência da liberdade, mas
tão somente de estabelecer o modo por que ela pode ser pensada de
acordo com as estritas leis naturais, para, em seguida, julgar-se do
uso empírico que dela será possível fazer.
O problema consiste, portanto, em assentar o verdadeiro con-
ceito da liberdade, em apontar a sua imprescindível necessidade
como fundamento da ética, e, finalmente, em promover a sua con-
ciliação com os princípios da inelutável causalidade natural. Nós
não queremos conhecer, determinar a liberdade em seus atributos;
o nosso intuito é torná-la inteligível, mostrar como ela deve ser
pensada.
Vejamos, porém, o que deveremos entender por liberdade.
Como causalidade incondicionada, é uma coisa que não aparece
(não existe como fenômeno, isto é, no espaço e no tempo), é uma
faculdade absoluta de originar ocorrências per se ou espontanea-
mente. Expressa negativamente, independe de toda condição ou
causa natural; positivamente considerada, é o princípio incondicio-
nado e espontâneo de uma série de fenômenos.
Desde que admitamos que toda e qualquer atividade é condi-
cionada exclusivamente por causas naturais, forçosamente devemos
conceder que ela é o resultado de um poder irresistível, não pode
existir para nós senão como efetivamente se nos representa: aí ha-
verá pura e simplesmente a sucessão natural dos fenômenos, o ar-
bitrium brutum, e não a causalidade livre nem a liberdade prática
nem tampouco uma vontade livre e independente de quaisquer
condições sensíveis.
como é a tentada pelas proposições das duas primeiras antinomias,
não pode de forma alguma em si abranger aparência e noúmenon.
Uma idéia ou coisa em si nunca é aparência ou fenômeno, nunca é,
por conseqüência grandeza, existente no espaço e no tempo.
Não há, porém, contradição ou impossibilidade lógica alguma
em que uma idéia seja causa de um fenômeno, condição de uma
existência sensível. Deve-se, entretanto, observar que um fenôme-
no tem sempre por causa outro fenômeno: é a lei da causalidade
natural, a qual por forma nenhuma poderá ser violada.
Isso não obsta, contudo, a que se declare possível ser uma idéia
ou noúmenon a causa de um fenômeno, poder existir uma causali-
dade livre, independente das leis naturais. O cosmos como todo e a
sua grandeza são evidentemente conceitos antagônicos, por isso são
falsas as antinomias matemáticas; necessidade e liberdade, pelo
contrário, se podem muito bem conciliar, e eis a razão por que se-
rão verdadeiras em um certo sentido que não o dogmático as anti-
nomias mecânicas.
De como se poderá realizar e qual o alcance que terá essa con-
ciliação é o que vamos estudar em seguida, entrando assim no
âmago do difícil problema da liberdade.
Se admitirmos que todas as nossas representações não podem
ser senão fenômenos, portanto, causas e efeitos condicionados,
confessaremos ipso facto que não haverá lugar para qualquer causa
livre na série da causalidade natural; se supusermos, por outro lado,
que todas as nossas percepções sejam coisas em si, como quer o
dogmatismo, neste caso também não se podendo explicar nem a
natureza nem a experiência, igualmente não encontra explanação a
liberdade; porque cada objeto da experiência considerado como
coisa em si, será, não obstante isso, condicionado pelos outros que
com ele existem.
Não se podendo, conseguintemente, assumir a existência da li-
berdade nem quando admitimos unicamente as coisas condiciona-
das ou os fenômenos no espaço e no tempo nem tampouco quando
afirmamos que tudo quanto existe no mundo é constituído pelas
coisas em si, a existência da liberdade explicar-se-á exclusivamente
num caso, isto é, se supusermos sejam os fenômenos nossas repre-
sentações e as suas causas, pelo contrário, coisas em si ou idéias.
O PROBLEMA DA LIBERDADE

Todas as antinomias consideram o cosmos, em sua totalidade,


como se fosse objeto do conhecimento; umas, entretanto, fazem-no
de tal maneira que não há meio de o ter senão como coisa diversa
do fenômeno, ao passo que outras de tal modo o compreendem
que, examinadas bem a fundo, poderemos concluir que elas não re-
pelem a sua consideração sob o ponto de vista fenomenal.
Despindo as duas primeiras antinomias de sua forma dogmáti-
ca, elas para nós não têm significação alguma; ao passo que, proce-
dendo do mesmo modo com as duas últimas, elas podem ter um
significado exato e ser verdadeiras em um certo sentido; essa ver-
dade não derivará, porém, de sua natureza de proposições dogmáti-
cas.
Daquelas duas primeiras antinomias diremos que sempre serão
falsas, destas duas últimas afirmaremos que podem ter uma signifi-
cação verdadeira. As duas primeiras antinomias referem-se à gran-
deza e à composição do mundo; as duas últimas dizem respeito às
suas relações causais.
A síntese das primeiras une entre si percepções similares, a das
segundas liga representações heterogêneas; as duas primeiras anti-
nomias são, na nomenclatura de Kant, matemáticas, e as duas últi-
mas dinâmicas. As antinomias matemáticas nunca se poderão re-
solver num sentido afirmativo, quando tomam o cosmos como um
todo; não assim as dinâmicas.
O cosmos como todo é uma idéia ou coisa em si, ao passo que
qualquer grandeza dada é sempre fenômeno ou percepção, deixan-
do de ser qualquer coisa, se lhe tiramos o caráter de nossa repre-
sentação; a grandeza do universo como todo seria, conseguinte-
mente, uma coisa em si fenomenal, um círculo quadrado, um ver-
dadeiro absurdo. Uma síntese que só compreenda coisas iguais
caso lhe faltaria uma base segura; acolhe, entretanto, essa idéia
como um fim para o qual sempre tende e como uma meta que con-
tinuadamente se esforça por alcançar. De sorte que a idéia do mun-
do como totalidade e unidade força o nosso conhecimento a um
progresso incessante; não é uma condição formadora dele, mas dá-
lhe uma diretriz, uma norma, tanto no sentido material como no
formal: para o nosso conhecimento a idéia cosmológica, como diz
Kant, não é um princípio constitutivo, mas sim regulador dele.
Aclara-se desta forma o erro das antinomias, mostrando-se que
elas se servem da idéia cosmológica como se fora tal princípio
constitutivo; e a explicação e solução delas consiste justamente em
dar à idéia cosmológica o seu verdadeiro caráter de princípio regu-
lador, de meta ao nosso conhecimento. A idéia cosmológica, pois,
para a ciência experimental, é uma regra pela qual se dirige a mes-
ma, mas que nunca lhe pode constituir objeto: por isso é de negar-
se a existência da cosmologia racional.
As duas proposições acima já não mais serão contraditórias,
porém, contrárias, admitindo assim uma terceira que as exclua.
O mundo é limitado; neguemos essa proposição contraditoria-
mente, e a oposição dirá: o mundo é não-limitado, formando um
juízo indeterminado ou infinito, que se resolve na seguinte disjun-
ção: o mundo ou não é uma grandeza dada ou é uma grandeza dada
ilimitada. A oposição, na hipótese, resolve-se em dois casos dis-
tintos, ao passo que nas antinomias ela apresenta a aparência de ter
um só; aqui o terceiro caso não só é possível, mas também válido:
o mundo como todo nunca é uma grandeza dada. Ou então a gran-
deza deveria ser qualquer coisa independente da nossa percepção,
assim como não poderiam deixar de assumir esse caráter o espaço e
o tempo, dentro dos quais unicamente podem existir as grandezas;
a impossibilidade dessas admissões já foi demonstrada pela filoso-
fia crítica como seu princípio básico.
É essa a explicação porque a grandeza do cosmos, suposta
dada, quando realmente não o é, pode ser objeto de juízos aparen-
temente contraditórios, por que razão as duas faces das antinomias
parecem verdadeiras, e são efetivamente falsas, visto não formarem
juízos contraditórios, porém contrários. A nossa demonstração to-
mou como exemplo as teses e antíteses da primeira antinomia;
aplicando-se-lhes idêntico raciocínio, ver-se-á que todas as outras
nos darão o mesmo resultado.
As antinomias, portanto, decorrem de uma impossibilidade, de-
rivam da ilusão transcendental a que já tantas vezes nos referimos e
a qual nos faz considerar como objeto do conhecimento aquilo que
se acha fora do espaço, do tempo e da causalidade.
O mundo como todo não nos é dado, pois que não constitui
objeto da nossa percepção, não é fenômeno, porém coisa em si ou
idéia, não é um todo que por si exista, independentemente da nossa
representação, mas é um todo que nós compendiamos e cujas partes
coordenamos sinteticamente, de sorte que verdadeiramente somos
nós que, concatenando os dados da experiência, o concebemos
como a unidade absoluta de todos os fenômenos.
Mas justamente porque nunca nos é dada em sua totalidade, é
que a nossa ciência, muito embora alargue contínua e sistematica-
mente os seus domínios, jamais poderá abranger essa unidade, ain-
da que persistentemente a busque. O nosso conhecimento não se
pode apoiar e firmar na idéia do cosmos como todo, porque nesse
O cosmos, como síntese dos fenômenos, nunca nos é dado, nós
é que o formamos por meio da experiência. Se os fenômenos dela
independessem, fossem coisas em si, o mundo como todo ser-nos-
ia dado e teriam validade as proposições contraditórias das antino-
mias; se, ao invés disso, os fenômenos são somente nossas repre-
sentações, nunca nos é dado o cosmos como todo, somos nós que o
fazemos, ligando representação a representação e causa a causa.
Ora, neste caso, sendo de negar nos seja dado o Universo como um
todo, quer finito quer infinito, nenhuma das proposições contraditó-
rias das antinomias tem validade.
Que as nossas representações não são coisas em si, prova-se di-
reta ou indiretamente; diretamente demonstram-no o conceito do
espaço e do tempo e indiretamente as antinomias da razão pura,
cuja invalidade nos patenteia a impossibilidade de serem os fenô-
menos coisas em si ou objetos inteligíveis.
A decisão dada pela filosofia crítica é tão radical quanto a apre-
sentada pelo ceticismo; ambas repelem as antinomias em toda a sua
extensão; quer para uma, quer para outra doutrina, elas não são
objeto do conhecimento, nem tão pouco proposições demonstrá-
veis.
Sendo impossíveis tanto as teses como as antíteses das antino-
mias, releva, entretanto, notar que elas formam juízos lógicos con-
traditórios, os quais, contudo, não podem ao mesmo tempo ser am-
bos verdadeiros ou ambos falsos. Nas antinomias eles são ao mes-
mo tempo verdadeiros, na solução que lhes oferece a crítica mos-
tram-se simultaneamente falsos.
Como podem, em vista disso, ser tidos por contraditórios? A
resposta é simples; eles são contraditórios somente na aparência; na
verdade, formam juízos contrários, os quais podem ser simultanea-
mente falsos, nunca porém, concomitantemente verdadeiros. A
condição que os faz contraditórios é impossível; ela não exclui,
portanto, uma terceira conclusão que seja exata e os torne, por isso
mesmo, em juízos contrários.
Toda grandeza dada, dizem as antinomias, ou é limitada ou ili-
mitada; há aqui dois juízos contraditórios que não admitem se in-
tercale um terceiro entre eles. Essa oposição contraditória vale
acerca do mundo, assumindo ser ele uma grandeza dada; mas con-
tinuará a valer se ele porventura não for uma tal grandeza dada?
condicionado, na verdade, pressupõe todas as suas condições, pois
que, sem elas, não poderia ser nem sequer pensado; se, por conse-
guinte, o condicionado fosse um objeto tão somente pensado, inde-
pendentemente da nossa sensibilidade, exata seria a afirmação da
maior; de acordo com ela, o condicionado nos deve ser dado inde-
pendentemente da sensibilidade.
Diz a menor: é-nos dado o condicionado. De que modo, porém,
nos é ele dado? Como extrato da experiência, por meio da percep-
ção, como representação, dependente da sensibilidade. Comparem-
se agora as premissas e ver-se-á que nelas o termo médio tem dois
significados diversos, que reciprocamente se excluem; na maior, o
condicionado é um objeto que não depende da nossa sensibilidade,
um noúmenon ou coisa em si, portanto, na menor, pelo contrário,
ele assume o caráter de objeto dependente da nossa sensibilidade,
de fenômeno, que, sabemos, nada é fora da nossa representação.
Traduzamos a maior e ela nos dirá: dado o condicionado em si
(não como fenômeno, mas como noúmenon ou objeto inteligível), é
nos dado o cosmos como todo, façamos o mesmo à menor e ela nos
afirmará: o condicionado nos é dado (não como noúmenon ou ob-
jeto inteligível) como fenômeno. Que conclusão resultará da com-
paração das duas premissas assim divergentes?
Somente uma quaternio terminorum, a qual nunca nos dará o
fecho de um raciocínio válido, mas culminará num paralogismo, o
qual tomará a forma, já por nós conhecida, de um sofismafigur~
dictionis.
Neste sofisma é que se baseiam todas as conclusões da cosmo-
logia racional.

Se a existência condicionada nos é dada tão somente como fe-


nômeno, ou como nossa representação, com essa representação não
nos são dadas simultaneamente todas as representações que a con-
dicionam; nós, porém, seguindo o fio condutor que a experiência
nos fornece, procuramos regressiva ou indutivamente, de fenômeno
em fenômeno, de condição em condição, a unificação e a concate-
nação das nossas representações em um todo sintético. As condi-
ções de um determinado fenômeno nos são, portanto, dadas à me-
dida que nós as descobrimos: o conjunto das aparências ou o mun-
do como todo só chega até onde alcança a nossa experiência.
deles, é o entendimento o único arbítrio de sua possibilidade. Ne-
nhum dos juízos das antinomias corresponde aos dados do enten-
dimento, eles não nos trazem conhecimento algum efetivo; o seu
valor, portanto, é nenhum. Tal é a solução do ceticismo.

Se esses juízos não têm, com efeito, nenhum valor cognosciti-


vo, não há dúvida, por outra parte, que eles foram demonstrados
válidos por meio de raciocínios rigorosos: como é isso possível? A
esta interrogação não responde o ceticismo, o qual se limita so-
mente a declarar serem impossíveis as conclusões a que eles chega-
ram, sem se importar absolutamente em indagar por que meios foi
alcançada tal conclusão. O ceticismo, vê-se, só tem em mira o êxito
final das proposições demonstradas.
Trata-se agora de, investigando, na sua marcha, a operação in-
telectual que os teve como resultado, tocar com o dedo no erro pro-
vável do processo raciocinante e, descobrindo-o, claramente pa-
tenteá-lo à luz meridiana. É o ponto de vista crítico que agora entra
em cena: o céptico, em face dos resultados contraditórios das teses
e antíteses da cosmologia racional, sustenta que elas não estão de
acordo com o nosso entendimento e as rejeita; o crítico, perlustran-
do a operação, mostra a razão por que esse acordo não se pode al-
cançar, apontando que falhas se deram no raciocínio e na dedução.
Todas as proposições da cosmologia racional se baseiam no se-
guinte raciocínio: dada a existência condicionada, é nos dada a sé-
rie inteira de suas condições e, portanto, também o incondicionado;
ora, o condicionado nos é dado, logo, igualmente nos é dada a to-
talidade de suas condições, isto é, o Universo como todo.
Do cosmos, assim suposto dado, as teses demonstram o come-
ço no tempo, a limitação no espaço, a simplicidade das partes, a
causalidade incondicionada, a necessidade absoluta e as antíteses,
justamente o contrário.
Ambas partem de idêntico pressuposto, isto é, que o mundo nos
é, como todo, objeto de conhecimento; se é exato o pressuposto,
valem tanto as teses como as antíteses; não o sendo, umas e outras,
não têm validade. Trata-se, portanto, de examinar a exatidão do seu
ponto de partida.
Diz a maior: dado o condicionado, é-nos dada a totalidade de
suas condições. Conceitualmente, com efeito, nada mais certo; o
Desde que assim é, só existirão dois pontos de vista para resol-
ver os seus problemas, ou o céptico ou o crítico.
O ceticismo mostra-se, como sempre, radical em sua-sentença:
ouvidas ambas as partes, comparadas e compendiadas as suas ra-
zões respectivas, acha que as teses destroem as antíteses e vice-
versa, e, por isso, rejeita os pontos de vista tanto de umas como de
outras.
A decisão do ceticismo não há negar tenha uma base funda-
mente racional. Mostrando que a matéria, quer das teses quer das
antíteses, não está conforme com o nosso conhecimento, teremos
desvendado a invalidade de suas respectivas proposições; visto que
para o céptico (e também para o empirista) a possibilidade do con-
ceito é a condição sine qua non para se admitir a sua realidade.
Para que possamos conceber um objeto precisamos fazer uma sín-
tese completa de suas partes.
Se supusermos um objeto cuja síntese conste de mais partes do
que as que ele tem realmente, veremos que o objeto não se adapta-
rá, não corresponderá verdadeiramente ao conceito, será pequeno
demais para a síntese formulada.
Se pelo contrário, supusermos outro objeto cuja síntese lhe não
pode abranger todas as partes, teremos um objeto que, por grande
demais, igualmente não corresponderá ao seu conceito.
Ora, todas as teses concebem um cosmos limitado: um começo
dele no tempo, um espaço finito, uma divisibilidade finita da maté-
ria, uma causalidade limitada e uma limitada dependência das
existências. O entendimento forçosamente transcende desses limi-
tes, supõe tempo antes da criação do mundo, espesso fora dele,
uma causa anterior a qualquer causa apontada como primeira e
condições a toda existência; não se contenta, conseguintemente,
com o cosmos limitado, exige mais partes do que as que lhe são
dadas: o entendimento acha, pois, os objetos das teses pequenos
demais para a síntese que pretende estabelecer.
As antíteses, por sua vez, supõem todas um cosmos ilimitado,
que jamais poderá ser totalmente apreendido pelo entendimento: o
objeto delas é, portanto, grande demais para a síntese a formular.
Nunca, portanto, o afirmado nas proposições contraditórias das
antinomias pode constituir um objeto para o entendimento que dele
forme juízos válidos; as suas conclusões, por isso, nunca poderão
ser formuladas em juízos cognoscitivos, visto que, em se tratando
nos da experiência, pois que ao incondicionado tiram-lhe o caráter,
não só de fenômeno, o que está de acordo com a experiência, como
também o de noúmenon ou coisa em si, o que transcende desta. -p

Elas erigem, destarte, a experiência tanto em diretriz do nosso


conhecimento, o que é verdadeiro, como em princípio absoluto das
coisas, o que é radicalmente falso. Afirmando que não tem existên-
cia aquilo que não é objeto da experiência, as antíteses assumem
um caráter e tomam uma atitude tão pronunciadamente dogmática
como as teses.
O dogmatismo de umas e outras é, porém, essencialmente di-
verso. As teses, na verdade, em suas afirmações uniformes, pressu-
põem o conhecimento a priori ou das coisas em si; o seu ponto de
vista é, portanto, ontológico, concretiza-se no que Kant, nesse sen-
tido restrito, denomina o "dogmatismo da razão pura"; as antíteses,
ao invés disso, com a sua negação de existências que não sejam as
dadas pela experiência, se colocam no extremo oposto, o do "empi-
rismo da razão pura".

Mostrados os interesses que tem a razão em se decidir por uma


ou por outra das antinomias, devemos imediatamente concluir que
eles não podem ser tomados em consideração, quando tratarmos de
resolver os problemas que as teses e antíteses nos apresentam, ten-
do somente o valor negativo de nos patentearem quais razões não
devem influir na solução desse conflito.
Está, portanto, a razão, escoimada dos interesses que sobre ela
atuam, nas condições precisas para proferir o seu laudo. E nem se
diga que, por serem problemas que dela própria derivam, que, por
se achar ela em conflito consigo mesma, a razão pura não pode jul-
gar da validade ou invalidade das antinomias.
Se os enigmas da cosmologia racional fossem daqueles que al-
gum dia pudessem encontrar solução no decurso da experiência ou
devido aos progressos do conhecimento, teríamos a estrita obriga-
ção de esperar por tal solução até ao momento em que à ciência
fosse possível coordenar o cosmos como um todo cognoscível.
Tal dia, porém, jamais há de raiar para a ciência humana, pois o
cosmos, como todo, nunca será objeto do nosso conhecimento; do
que se conclui que à cosmologia racional nunca nos será possível
oferecer uma solução dogmática.
Finalmente, o conhecimento do incondicionado não requer
pesquisas longas nem dificultosas, mas se alcança com o instru-
mento de raciocínios facílimos de serem apreendidos; não-lhe é ne-
cessária uma grande ciência, mas unicamente o aproveitamento dos
conceitos puros, abstratos e simples. Ao passo que nas ciências
exatas só paulatinamente e com infinita meticulosidade é que se
nos torna lícito dar qualquer passo para a frente, a metafísica nos
conduz de um só arranco, e com sucesso aparentemente brilhante,
às culminâncias da especulação e aos limites do mundo.
Se uma ciência, com o menor esforço possível, nos oferece o
mais que dela nos seria lícito exigir, necessariamente preenche a
condição de ser por todos uniformemente bem vista e bem aceita,
de modo a poder alcançar grandíssima e unânime popularidade
tanto mais quanto ela tem em si satisfazer anelos do nosso coração
e do nosso sentimento.
De tudo isso se conclui que a razão é indubitavelmente favorá-
vel às teses contra as antíteses levada irresistivelmente por três di-
versas ordens de interesses, o teórico, o prático e o popular.
As antíteses, ao contrário das teses, negam decididamente a
existência do incondicionado, não oferecendo nenhum ponto de
apoio ao nosso interesse prático; negam não menos definitivamente
o conhecimento sintético quer da forma quer do conteúdo do mun-
do, contradizendo destarte ao interesse especulativo ou arquitetôni-
co; finalmente, como apuração científica, admitem apenas os mé-
todos laboriosos e enfadonhos da investigação, de fenômeno a fe-
nômeno, de causa a causa; não devem, portanto, esperar a aura po-
pular, mas o aplauso apenas do solitário pensador científico, pois
que satisfazem unicamente ao nosso entendimento e não preten-
dem, por forma alguma, afagar aos nossos anelos, desejos ou espe-
ranças.
Se as antíteses, portanto, se limitassem a negar a possibilidade
de se conhecer o incondicionado, não há dúvida de que lhes daria
toda a razão a filosofia crítica. Se se restringissem unicamente à
afirmação de que o absoluto não é objeto do conhecimento, nada
haveria a se lhes objetar.
Elas não se atêm, entretanto, ao limite acenado e vão muito
mais longe, pois que não só sustentam a impossibilidade de se co-
nhecer o incondicionado, como também negam em absoluto a pos-
sibilidade de sua existência: transcendem, desta forma, dos térmi-
absolutamente necessário; do que decorre que, não tendo o mundo
princípio, não foi criado; não havendo substância simples, não se
concebe a imortalidade da alma; negando-se a liberdade, nega-se
igualmente a moralidade; e, finalmente, recusando-se a existência
de um ente absolutamente necessário, rejeita-se também a existên-
cia de Deus.
Pois que a criação do mundo pressupõe ter ele tido um começo,
do mesmo modo que o conceito de um ser imortal implica o da sua
simplicidade, assim como a nossa atividade moral espontânea exi-
ge a noção da liberdade efetiva, tanto como o conceito de Deus re-
quer pela sua condição a realidade do ente absolutamente necessá-
rio.
Se portanto, negarmos as teses, repeliremos conjuntamente os
preceitos da religião e da ética, ao passo que, afirmando-as, esta-
belecemos as bases primeiras de tais disciplinas. É bom advirtamos
desde já que tal interesse ético-religioso nada tem de científico, não
se refere ao conhecimento; guia-nos, porém, a vontade; não é, pois,
um interesse teórico, mas fundamente prático.
O interesse prático que a nossa razão forçosamente tem de des-
vendar perante as teses e antíteses das antinomias, fá-la mostrar-se
favorável àquelas e contrária a estas. Além de tal interesse prático,
porém, existe um outro de ordem científica que nos deve muito
particularmente chamar a atenção; consiste na tendência, irresisti-
velmente enraizada dentro em nós, de buscar sempre o nosso co-
nhecimento uma síntese, uma unidade absoluta, tanto objetiva
como subjetiva. A unidade das coisas, em suas representações, é o
lado objetivo, e a mesma unidade no nosso conhecimento é a face
subjetiva da síntese que tentamos firmar: a unidade no mundo ob-
jetivo, ou como objeto, é o condicionado como existência, e a uni-
dade no sujeito, ou como forma, é a ciência como sistema.
A nossa razão pretende conhecer a unidade absoluta das coisas
ou o universo como todo, e ao mesmo tempo compendiar a sua
concepção do universo (Weltanschaung) num todo científico e ab-
soluto.
Esses dois interesses, aos quais Kant chama, a um especulativo
e ao outro arquitetônico, podem tudo esperar das teses, nada, po-
rém, das antíteses das antinomias.
A SOLUÇÃO DAS ANTINOMIAS
DA RAZÃO PURA

Ficou demonstrado, no capítulo precedente, que todas as pro-


posições básicas da cosmologia racional culminam em sentenças
contraditórias, cada uma das quais se pretende solidamente fundada
na razão humana. Mas esta, logo que assume a atitude de conside-
rar o cosmos como um todo, cai em conflito consigo mesma, cujo
resultado são aquelas mesmas sentenças contraditórias, que, por
isso, redundam noutros tantos problemas a resolver.
Como resolver, porém, esses problemas? ou serão eles, por-
ventura, insolúveis? O primeiro requisito para se obter uma solução
justa sobre qualquer pleito é que a sentença seja proferida por juiz
imparcial.
Ora, no presente caso, o juiz que terá de decidir sobre o conflito
que nos ocupa é a própria razão humana, a qual, na sua especial
situação, não poderá delegar tal encargo a qualquer outra nossa fa-
culdade. Carecemos, pois, antes de tudo, de indagar se a nossa ra-
zão está nas condições exigidas para com imparcialidade proferir a
sua sentença, ou se porventura não terá um evidente interesse em se
decidir a favor de umas ou de outras das antinomias, caso em que
deixaria de ser juiz para assumir o papel de parte.
Consideremos o modo por que a razão aprecia o respectivo
valor das teses e das antíteses das antinomias e vejamos para que
lado mostrará um natural pendor.
Todas as teses são concordes em afirmar a existência de um in-
condicionado, todas as antíteses são unânimes na negação dele.
Não admitida, conseguintemente, a possibilidade de um incondi-
cionado, nega-se ipso facto necessariamente um começo ao mundo,
a simplicidade ou indivisibilidade da substância, a liberdade, o ente
Em singular contraste com as três precedentes antinomias,
partem a tese e antítese da quarta antinornia do comum pressuposto
de conter cada estado do cosmos a inteira série das condições, pw
sadas em todos os tempos anteriores. Logo, há um ente como prin-
cípio absoluto de todas as coisas, conclui a tese. Logo, não há tal
princípio absoluto, replica a antítese. A demonstração da tese sus-
tenta que, sendo-nos dadas todas as condições do cosmos, a sua sé-
rie estando completa, nela se contém necessariamente o incondi-
cionado.
Refuta a antítese: como todas essas condições nos são dadas
somente no tempo, a sua inteira série é condicionada, e nunca,
portanto, nos poderá dar o incondicionado.
A mesma coisa, observa o filósofo, dá-se com a maneira de
considerar a rotação da lua sobre o seu eixo. Como a lua mostra-
nos constantemente a mesma face, do ponto de vista que tomarmos
poderemos concluir que ela se move ou não se move sobre o seu
eixo.
tempo. Logo, se o ente absolutamente necessário se achasse colo-
cado fora do mundo, deveríamos igualmente admitir que o tempo
está também fora dos cosmos, o que é impossível.
Provemos agora a antítese, supondo a tese, isto é, que existe um
ente necessário, quer como parte quer como causa do mundo, den-
tro ou fora dele. Se existe no mundo, ou é uma parte do mundo ou
todo ele: no primeiro caso, seria o princípio incondicionado de toda
a série de ocorrências no cosmos, no segundo seria a própria série
toda.
A primeira hipótese é inadmissível: o ente necessário não pode
ser tal princípio incondicionado, pois que nesse caso teria cobrado
existência alguma coisa sem causa anterior e sem momento deter-
minado no tempo, dentro do qual se originasse; ora, um princípio,
um começo, supõe necessariamente o momento de tempo em que
haja começado.
Também não pode ser a série inteira dos estados do universo,
porque este consiste dum conjunto infinito de estados condiciona-
dos, cuja soma não nos pode dar um ente absolutamente necessário.
Logo, esse ente não existe no mundo.
Fora dele, porém, é igualmente inadmissível a sua existência,
que tem de ser causa e princípio de todas as transformações no
cosmos; ora, o princípio de qualquer coisa existe necessariamente
no tempo e no mundo da sensibilidade: o que não é sensível, o que
está fora da nossa sensibilidade, não existe.
Fora dele também não existe, portanto, o ente absolutamente
necessário. Não existindo, porém, nem no mundo nem fora dele, é
de concluir absolutamente não exista o ente necessário.
Aquilo que nos deve particularmente chamar a atenção nesta
quarta antinomia, e em que ela se diferencia das outras, é que nela a
tese e a antítese se provam partindo dos mesmos fundamentos de
demonstração. Com efeito, a tese da primeira antinomia prova-se
pela impossibilidade de uma eternidade passada, e a antítese pela
de um tempo vazio interior ao mundo e de um espaço vácuo fora
dele; na segunda a tese funda-se na impossibilidade de uma divisão
infinita da matéria e a antítese na de partes simples do espaço; na
terceira o contrário da tese é o de se conhecer em cada efeito a in-
teira série de suas causas, o que redundaria, conclui o filósofo, na
impossibilidade de se determinarem as ocorrências (das Ges-
chehen) no cosmos, e o da antítese na impossibilidade da experiên-
cia.
bilidade da experiência. Ora, esta é possível; logo não vale a causa
primeira e livre, senão a causalidade infinita, de acordo com as leis
- - ~ - - - -
naturais. - - - - - ~ - - -

A demonstração da antítese resulta da impossibilidade da tese,


que redundaria na invalidade do elo causal das coisas e na impossi-
bilidade da experiência.
A tese afirma que no cosmos há alguma coisa de livre, espon-
tâneo, não sujeito a leis; a causa primeira incondicionada possui o
que o filósofo chama uma "liberdade transcendental".
A antítese nega a existência de tal liberdade e não admite cau-
salidade livre, senão estritamente determinada pelas leis da nature-
za: é o princípio da onipotência da natureza (Alvermoegenheit der
Natur) que, sob o nome da "fisiocracia transcendental", Kant con-
trapõe ao da liberdade.
Se a causalidade natural deve ser considerada como a lei geral
das coisas, a causa livre bem pode ser havida como o princípio de
carência de lei no cosmos. A terceira antinornia trata assim de re-
solver o difícil problema da liberdade e da necessidade; afirmando
a tese a sua conciliação e negando-a a antítese.

Vejamos agora a quarta e última antinomia.


Qualquer estado do mundo em suas variadas transformações é
um termo condicionado por todos os anteriores estados e, portanto,
dependente de sua inteira série, a qual poderemos supor ou finita
ou infinita. No primeiro caso, deve existir no universo, ou como
parte ou como causa dele, um ente de quem dependerão todas as
existências, ao passo que ele próprio de nenhuma dependerá, por
conseguinte, um ente incondicionado e absolutamente necessário.
No segundo caso, não haverá tal existência nem dentro nem
fora do mundo.
Provemos a tese. Toda transformação ou mudança de estado no
mundo é condicionada por todas as antecedentes, cuja série inteira
deve forçosamente ter um membro superior, o qual de nenhum ou-
tro dependerá e, portanto, existirá incondicional e necessariamente:
de modo que deve existir alguma coisa absolutamente necessária.
Não pode haver dúvida de que pertença ao mundo esse ente neces-
sário, quer como parte quer como causa dele; pois é o começo de
todas as transformações no universo, o que quer dizer existe no
sempre existiu. Se não existiu sempre, como quer a segunda alter-
nativa, ele, de acordo com a premissa, originou-se de um outro es-
--
tado anterior, e assim até ao infinito. -- - - -

Não há, portanto, de conformidade com o exposto, na cadeia


causal, um elo primeiro, uma causa primeira, a cadeia das causas
nunca nos será dada completa, nunca teremos em mão todas as
causas necessárias para a cabal determinação dos efeitos.
Se não conseguirmos, entretanto, determinar todas as causas
ocorrentes, não nos é lícito evidentemente conhecer da regularidade
dos efeitos; portanto, a causalidade completa é imprescindível para
a determinação das ocorrências no cosmos.
Ora, essa causalidade completa e culmina necessariamente no
conceito de uma causa, agindo independentemente de qualquer an-
tecedente, ou com absoluta espontaneidade, isto é, ela tem de ser a
origem per se, espontânea e absolutamente livre, de uma série de
fenômenos que se manifestarão segundo estritas leis naturais. Essa
espontaneidade é a origem de toda causalidade, tanto no espaço
como no tempo, é o princípio de todo o movimento, de toda varie-
dade no mundo, é o primum movens dos antigos filósofos.
A demonstração da tese decorre da impossibilidade da antítese,
da qual resultaria a negação de se poder reconhecer em cada efeito
a inteira série de suas causas.
Suponhamos agora, para provar a antítese, a tese, isto é, que
existe uma causa primeira, espontânea e livre. Ela será a esponta-
neidade absoluta, que per se é a origem de toda uma série de ocor-
rências no cosmos; o começo de sua atividade é, como tal, um
momento no tempo, e destarte segue-se a outro momento anterior
no tempo. Na existência da causa primeira há, pois, dois estádios
sucessivos, tão unidos e ao mesmo tempo tão distintos entre si que
no segundo ela dá princípio à sua atividade, independentemente do
momento de tempo que àquele imediatamente precede: existem,
pois, aqui dois estados necessariamente sucessivos, sem que, en-
tretanto, haja entre eles um qualquer elo causal, um post hoc sem
propter hoc, o que está em flagrante contradição com o princípio
da sucessão no tempo, segundo as leis da causalidade.
Desta sorte, não nos é lícito afirmar a causalidade incondicio-
nada no cosmos sem ao mesmo tempo romper com a concatenação
causal das coisas, e simultaneamente negar, em absoluto, a possi-
A TEOLOGIA RACIONAL
E A EXISTÊNCIA DE DEUS

Com a quarta antinomia, informa-nos o filósofo, sucede-nos o


mesmo que com a terceira: são conciliáveis, em um certo sentido,
as suas proposições contraditórias.
A dependência ou recíproca concatenação fenomenal das exis-
tências não exclui a possibilidade de uma existência absolutamente
necessária; é verdade que também não prova essa possibilidade.
Ela, com efeito, não nos veda admitamos a existência de um ente
necessário, contanto que a não aceitemos como fenômeno, isto é,
como fazendo parte do cosmos.
Já que nenhuma existência se nos pode representar como ab-
solutamente necessária, o ente absoluto nunca será passível de per-
cepção de nossa parte, não existindo, por conseguinte, nem no es-
paço nem no tempo.
O ente absoluto, pensado como existindo absolutamente fora
do mundo e dele completamente independendo, é Deus. Não sendo
o conceito de Deus susceptível de apuração empírica, foi tão so-
mente a razão pura que o formou, independentemente de quaisquer
dados fornecidos pela experiência; é, pois, uma idéia ou coisa em
si, cuja existência é duvidoso possamos provar. Se Deus pode ser
pensado unicamente como independendo da experiência, como
existindo fora do mundo, evidentemente não é mais um conceito
cosmológico, mas dá lugar a outra pretensa ciência, a teologia ra-
cional, cujo fito é o de lhe determinar os atributos. Vejamos como
ela procede para atingir a esse fim.
Todo conceito é determinado peio conjunto dos seus atributos;
dados estes em sua totalidade, ele se encontra perfeitamente deli-
mitado. De sorte que o conceito de Deus será igualmente-determi-
nado pela totalidade de seus predicados pensáveis.
A totalidade desses predicados, porém, será constituída não só
por todos os positivos, como também por todos os negativos; visto
que a afirmação puramente lógica é tão somente formal e nada de-
cide quanto ao conteúdo do conceito, podendo ser que lhe negue
uma atribuição ou qualidade dada. O quer que se afirme ou negue
de uma coisa dada, chama-se, com efeito, em lógica formal, uma
afirmação, a qual, destarte, pode indicar a falta efetiva de um pre-
dicado qualquer. Em vista disso, Kant propunha a distinção da 1ó-
gica da razão pura ou transcendental e da lógica formal, procurando
aquela determinar o conteúdo real dos objetos do conhecimento.
O que ela afirma, portanto, deve ser uma realidade positiva e o
que nega será a carência ou limitação dessa realidade. Tratando-se
de firmar, sob o ponto de vista do conhecimento o conteúdo de um
conceito, todos os seus atributos constituirão afirmações ou nega-
ções, não no sentido lógico formal, mas no transcendental daqueles
vocábulos.
Ora, é claro que o ente absolutamente necessário de nenhum
outro depende, mas todos os outros se acham a ele subordinados e
dele derivam; devemos, portanto, pensá-lo como a origem de onde
todos eles decorrem, como o ser primeiro, de quem todos os outros
deduzem a possibilidade de sua respectiva existência; ele é, pois, a
totalidade de todos os atributos possíveis.
Predicados contraditórios, porém, está bem visto, não podem
simultaneamente caber ao mesmo ente: assim é que o ente absoluto
não pode simultaneamente conter em si todas as realidades e todas
as negações, mas deverá ter exclusivamente ou umas ou outras.
Como totalidade de negações, ele claramente não teria existência;
logo, só pode ser concebido como o conjunto de todas as realida-
des: Deus é, por conseguinte, o ente absolutamente real e perfeito.
A idéia de Deus é, portanto, constituída pela soma de todas as
realidades.
Aquilo que se encontra determinado pela totalidade de seus
predicados é sempre um indivíduo e nunca um conceito de gênero
(GattungsbegrifJ)ou abstrato, visto que os conceitos desta ordem
não contêm senão uma parte restrita dos atributos do indivíduo e, à
medida que aumentam de compreensibilidade, que se vão tornando
mais gerais, mais pobres se encontram de predicados. Somente o
indivíduo podeser completamente determinado.
Como o conceito de Deus se supõe dado com todos os seus
predicados, claro é que ele nos representa ou dá a noção de um in-
divíduo: a idéia de Deus é para Kant um ideal; não é, porém, a
imaginação que o forma, mas a razão pura, logo que lhe pensa o
conceito; e, como a soma de todas as realidades não nos poderá dar
mais de um ente único da sua espécie, segue-se que a idéia de Deus
é, evidentemente, o único ideal da razão pura.
Enquanto esse ideal se limitar a ser exclusivamente idéia ou
conceito da razão pura, nada haverá a se lhe objetar; desde que
pretenda, entretanto, converter-se em objeto real do conhecimento,
torna-se matéria de uma pseudociência, a teologia racional, a qual
se propõe a demonstrar a existência de Deus. Cumpre-nos exami-
nar se o consegue.

Deus deve ser pensado como o ente absolutamente necessário,


como a soma de todas as realidades (ens realissimum, omnitudo
realitatis), o qual existe necessariamente. Na síntese desses dois
elementos, da realidade e da necessidade, está o ponto básico de
toda demonstração da existência de Deus. Para realizar esta síntese,
dois caminhos se oferecem: ou prova-se do ente absolutamente real
que existe necessariamente, ou demonstra-se da existência necessá-
ria que ela cabe ao ente absolutamente real. No segundo caso, é
ainda preciso previamente provar a existência absoluta e, em se-
guida, a do ente necessário; mas, sendo-nos dadas somente existên-
cias contingentes, será mister em primeiro lugar inferir da existên-
cia condicionada ou ocasional a existência necessária; resta saber
se é possível tal conclusão.
A demonstração pode partir ou do conceito racional da existên-
cia necessária ou do conceito empírico da existência condicionada;
no primeiro caso, ela será a priori ou transcendental e no segundo
a posteriori ou empírica. A demonstração empírica, por sua vez,
pode ter um duplo ponto de partida: ou considera o caráter experi-
mental das ocorrências no mundo, ou bem a sua ordenação segundo
um plano, ou a existência do cosmos, ou a regularidade dele.
Conforme o exposto, são três as provas da existência de Deus:
a transcendental ou ontológica, a cosmológica e a físico-teológica.
Vê-se logo que as provas empíricas partem de um falsepressu-
posto; a experiência nos apresenta somente existências limitadas;
qualquer princípio ou proposição empírica é forçada a concluir, à
vista de uma existência limitada ou contingente, que ela não é ab-
solutamente necessária.
Se, a despeito disso, tivermos de admitir a existência absoluta e
necessária, ipso facto abandonamos as conclusões da experiência
para, em lugar delas, aceitarmos um conceito da razão pura, a qual
agora nos tem de mostrar como do mero conceito lógico inferiu a
existência do ente absolutamente necessário.
Ou esse ente, com efeito, pertence ao mundo das representa-
ções e, neste caso, é condicionado, ou não pertence, mas então não
é um conceito empírico, porém uma idéia, cuja existência se poderá
demonstrar ontologicamente apenas. Toda demonstração da exis-
tência de Deus baseia-se, pois, em última análise, na ontologia: não
há, portanto, outra prova dela senão a ontológica, visto que as ou-
tras, as empíricas, nesta culminam.
Se, por conseguinte, conseguirmos demonstrar a inanidade
dela, teremos assim mesmo destruído a cosmologia racional em
seus fundamentos.

A prova ontológica cifra-se em concluir da admissão do con-


ceito pela realidade do objeto dele: no conceito do ente absoluta-
mente real e perfeito, diz ela, deve estar incluída a existência; por-
que, dado que tal propriedade não seja parte integrante do conceito,
faltar-lhe-ia, então, alguma coisa para a sua cabal perfeição; de
modo que o ente concebido como absolutamente real ou tem exis-
tência ou dele se não pode formar conceito algum válido.
Se a existência forma realmente parte integrante de um con-
ceito qualquer, vale a demonstração acima, sendo, portanto, o
ponto essencial examinar se ela pode ser assim considerada. Se isto
for possível, a existência deverá decorrer diretamente do conceito
formulado, o qual, então, nada mais será do que um juízo analítico,
que não nos aumenta o conhecimento e não faz mais do que expla-
nar a relação, já no enunciado deste contida, entre o sujeito e o pre-
dicado.
Se a existência fosse um atributo lógico do conceito, estaria
para ele como todos os seus demais atributos: quer dizer se tornaria
mais-restrito-o-conteúd~do-coneeit~-se-1h~negsemo~ mais
compreensivo se lha afirmássemos. Ao invés disso, o conceito de
um triângulo, por exemplo, não sofre alteração lógica quer eu ape-
nas o imagine, quer ele efetivamente exista no mundo objetivo; os
atributos que formam o conceito do triângulo permanecem, pois,
sempre os mesmos em sua totalidade.
A existência, por conseguinte, nunca é atributo lógico de um
conceito e as afirmações dela, portanto, nunca serão juízos analíti-
cos, porém sempre sintéticos. De sorte que na teologia racional, as-
sim como nos vários outros ramos das ciências racionais, não têm
valor quaisquer conclusões puramente ontológicas. Se nós afir-
marmos a realidade ou inexistência de um conceito qualquer, tal
afirmação, sem lhe modificar a amplitude lógica, refere-se ao nosso
conhecimento. Negando-se-lhe a existência, o conceito poderá ser
somente pensado, mas não conhecido; afirmando-se-lha, constituirá
ele um objeto da experiência.
Assim é que o conceito de cem moedas continua sendo logica-
mente o mesmo, quer elas existam quer não, façam elas parte ou
não do meu patrimônio; o momento da existência não lhes modifi-
ca o conceito, altera tão somente as minhas condições de fortuna.
"Perdeu-se muito tempo e trabalho", diz Kant, "com a afamada
prova ontológica (cartesiana) da existência de Deus e, entretanto,
pode-se afirmar que, com idéias puras, um homem torna-se tão rico
em conhecimento como um negociante em patrimônio, o qual, para
melhorar as suas condições de fortuna, tivesse a lembrança de
acrescentar algumas cifras ao seu saldo em caixa."

A prova cosmológica parte do conceito empírico da existência


condicionada ou ocasional. Algo existe, diz ela, o qual é sempre
condicionado por qualquer outra coisa de sorte que, como causa
primeira, é forçoso admitamos a existência de um ente, o qual, não
mais sendo condicionado, condicione todas as outras existências, o
qual seja, por conseguinte, absoluto, necessário e independente.
Essa existência necessária e incondicionada deve ser concebida
como a do ente absolutamente real ou Deus. Tal é, em resumo, a
prova cosmológica, que Leibniz crismou de a contingência mundi.
Ela tem dois estádios: em primeiro lugar infere a existência ne-
cessária da contingente, e desta o ente sumo ou absolutamente real.
Cada passo dado pela prova-cosmológica-fá-la-afundar-sg-num
abismo de impossibilidades dialéticas. Inferindo a existência in-
condicionada da condicionada, contradiz à experiência, a qual só
nos apresenta objetos contingentes; de modo que da existência
dada, condicionada, resultaria como conseqüência uma não dada,
incondicionada, que nunca poderá constituir matéria da experiên-
cia. A inferência é impossível; porque, não sendo a existência con-
dicionada um objeto empírico, ao alcance do conhecimento, é ape-
nas uma idéia, criação da razão pura, não susceptível de represen-
tação. A prova cosmológica, logo aos primeiros passos, deixa-se
transviar por uma ilusão, que lhe apresenta como objetiva uma
existência que de modo algum o pode ser.
Além disso, a sua justificação da existência do ente incondicio-
nado cifra-se na impossibilidade de uma série infinita de condições
ou causas das existências por nós concatenadas. A afirmação que
ela avança da impossibilidade de uma causalidade infinita não é,
entretanto, confirmada pela experiência, a qual parece precisamente
provar o contrário, pois que, debaixo do ponto de vista empírico, a
casualidade nunca tem fim.
É verdade que tampouco poderemos afirmar dogmaticamente
ser ela infinita; a limitação ou infinidade nas condições do cosmos
são igualmente insustentáveis: é o erro das teses e antíteses das an-
tinomias, por nós já examinado e provado cabalmente. Ainda neste
ponto, pois, peca a prova cosmológica.
Dado mesmo, entretanto, nos fosse lícito supor um limite à sé-
rie das condições ou causas, o seu último termo não poderia ser um
ente que absolutamente não deve pertencer à série fenomenal das
causas. A prova cosmológica não pode arbitrariamente pôr um ter-
mo a tal série e, além disso, o termo por ela estabelecido é impos-
sível, porque está separado dos outros por um abismo intransponí-
vel. É o seu terceiro erro. Dado, porém, que haja conseguido provar
a existência do ente necessário, como demonstra ela a sua absoluta
realidade? O ente absoluto não é objeto da experiência; como pode,
pois, existir? A prova cosmológica pretende que o ente absoluto, do
qual dependem todos os outros, em si compendia todas as realida-
des possíveis e, portanto, também a existência; ela destarte busca
apoiar-se na prova ontológica, a qual já se demonstrou não valer.
A prova físico-teológica infere da ordem, regularidade,
- -- - -- - --
harmo-
-- -

nia do cosmos, do plano nele patente a existência de Deus. Parte da


experiência e da existência do mundo conclui pela do ente supre-
mo.
A prova de que nos ocupamos, apresenta-nos um ponto de vista
que nos deve preliminarmente chamar a atenção; nos dá uma sen-
sação estética, edificante, visto que apela para a beleza, harmonia e
regularidade dos fenômenos cósmicos. E isso, porém, um senti-
mento subjetivo, estético ou religioso, que não deve impedir o en-
tendimento de se manifestar. Vejamos os estádios desta prova.
O seu ponto de partida é experimental, ela verifica uma regula-
ridade e um plano na manifestação dos fenômenos: esse plano não
se explica pelas causas mecânicas ou eficientes, não deriva da natu-
reza das coisas; não sendo inerente a elas, pressupõe um ente que o
tenha pré-formado e adaptado às manifestações fenomenais. Esse
ente não pode ser uma força cega, mas deve possuir inteligência,
entendimento e vontade, e, como a ordem na Natureza é uma só,
ele só pode ser pensado como indivíduo, como a suma causa do
mundo ou Deus.
Admitamos, para argumentar, seja impecável a demonstração
precedente; porém ela provará unicamente a existência de um ente
regulador, de um arquiteto ou artífice do Universo, quando muito,
mas não de um criador do mundo.
No caso mais favorável, portanto, ela demonstra menos do que
se propõe: o seu Deus não é, na verdade, um princípio criador.
Dado, ao demais, que este princípio das coisas seja necessário, por
que razão deverá ser um ente inteligente? Por que razão não poderá
a Natureza, em sua atividade cega, produzir a acenada ordem e re-
gularidade? Responde a prova físico-teológica que ela o poderá
tanto como as nossas casas e relógios fabricaram-se por si mesmos.
De uma analogia, tirada da técnica da indústria, se infere a
existência do sumo operário; esse antropomorfismo grosseiro nem
sequer tenta explicar a origem dos materiais do Universo. A analo-
gia, entretanto, pode aclarar um argumento, mas nunca prová-lo. O
efeito prova a causa e esta deve ser proporcionada ao efeito produ-
zido. A prova físico-teológica quer que Deus seja a única causa
proporcionada dos inúmeros efeitos do mundo.
Nada, entretanto, prova a pretensa proporcionalidade, que as-
sim de todo escapa ao nosso conhecimento. De sorte que, não pre-
tendendo provar-nem-mesmo-a existência do criador+Ltambém
não consegue afastar a objeção de que a regularidade do mundo
não derive das próprias leis naturais; assim não lhe resta outro ca-
minho senão inferir a existência necessária da contingente, isto é,
culminar na prova ontológica, cuja inanidade já ficou cabalmente
estabelecida.
A TEOLOGIA RACIONAL
E A TEOLOGIA MORAL

A existência de Deus não se prova e a teologia racional não tem


base cognoscitiva. Um refúgio, entretanto, ainda lhe resta. Provou-
se, com efeito, que teoricamente ela não existe; praticamente, con-
tudo, é de se afirmar a sua possibilidade.
Na verdade, tendo a teologia por fito o conhecimento de Deus,
poderá atingi-lo por dois caminhos: um é o da revelação sobrenatu-
ral, e o outro o da razão humana; o primeiro será o da teologia re-
velada e o outro o da racional.
A própria razão, por seu lado, pode buscar o conhecimento de
Deus de dois modos: forma-o ou de conceitos puros ou da conside-
ração do cosmos; na primeira hipótese teremos a teologia transcen-
dental e na segunda a natural.
Os conceitos racionais dos quais decorreria o conhecimento de
Deus são ou o de ente absolutamente real ou o do mundo como
coisa condicionada, cuja causa primeira deve ser o ente absoluto ou
incondicionado: no primeiro caso teremos a "onto-teologia" e ao
segundo a "cosmo-teologia". Seja sobre qual for desses dois con-
ceitos de Deus que nos baseemos para o nosso conhecimento dele,
está claro que nos poderá ser manifestado como a causa summa,
como um ente supremo, como a essência de todas as realidades: a
esses pontos de vista Kant dá a denominação de "deísmo".
A teologia natural, ao contrário, considerando a ordem e regu-
laridade do universo, não parte de conceitos puros, mas dá a Deus
um significado pessoal e vivo, e não mais o de uma causa impesso-
al, origem do mundo. É o que Kant chama de "teísmo", o qual se
funda na ordem, ou natural ou moral, do mundo, sendo o seu estu-
do, na primeira hipótese, a "físico-teologia", e na segunda a "teolo-
gia moral".
Toda a teologia é, pois, ou deísta ou teísta; a primeira já foi
mostrada inválida em todas as suas provas, e a segunda na sua de-
monsEação físico-teológica-da existênciaaeDens~cxmmcmneci-
mento racional do ente sumo só nos resta, portanto, a teologia mo-
ral.
A ordem moral não decorre da natureza, porém da vontade: os
seus preceitos encaram fins racionais, os quais devem ser levados a
efeito. O que devemos fazer não nos é imposto por princípios teo-
réticos, mas de ordem prática: a expressão da necessidade ética é
um imperativo, e não uma proposição teórica, é uma exigência
prática de atividade.
A diferença entre a teologia teórica e a prática está, pois, em
que a primeira se baseia em teoremas, ao passo que a segunda se
funda em postulados. Cabe aqui, pois, examinar os pressupostos da
teologia moral.
A crítica da razão pura, deve-se dizer, não pretende negar a
existência de Deus: o que ela nega é o seu conhecimento teórico, é
a razão de ser da teologia racional. A filosofia crítica não pode ne-
gar nem afirmar coisa alguma em relação à realidade e aos atribu-
tos de Deus; tem, porém, a obrigação de analisar, pesquisar, julgar,
discutir as proposições de uma cega ontologia: a sua feição caracte-
rística não é, pois, positiva, porém meramente apreciativa. De
modo que, destruídas todas as outras, a única teologia positiva só
poderá ser a teologia moral ou prática. Se de Deus se pode formar
qualquer concepção positiva, diz-nos o filósofo, é tão somente
como de autor da ordem moral, como meta da nossa perfectibilida-
de: esse conceito é o mais alto que poderá ser significado pelas
idéias morais, mas ao mesmo tempo lhe converte a existência dis-
cutível em um ideal a atingir.
Para aplanar o caminho a essa concepção, a crítica despiu a teo-
logia dos seus conceitos menos válidos, mostrou como Deus não
podia ser representado, e finalmente deu lugar à única idéia positi-
va dele, determinando-a negativamente. Teoricamente, repetimos,
não se pode negar nem afirmar a sua existência: a afirmação dbg-
mática, deísta ou teísta, assim como a negação ateísta, decorrem
todas de analogias humanas, são antropomórficas. A súmula nega-
tiva da crítica faz ver que todas essas representações antropomórfi-
cas são errôneas e eivadas de vício.
Kant distingue o antropomorfismo simbólico do dogmático:
este atribui a Deus qualidades e raciocínios humanos, e aquele ser-
ve-se de a f ~ a l ~ g i i a s - d d e o f m a ~ o m
por
o ,exempio,lqd~amor
que o pai tem à prole, para pôr em relevo as relações da divindade
para com os homens. E um simbolismo este conscientemente bus-
cado, e não se refere à essência da divindade, procurando apenas
aclarar a sua atitude com relação ao cosmos e à humanidade.

Todas as idéias da alma do mundo, de Deus têm a mesma ori-


gem, o mesmo destino e a mesma determinação. A origem está na
razão como faculdade criadora de conceitos puros, o destino é o de
serem erroneamente empregados pela razão transviada, quando os
torna objetos de conhecimento possível.
Qual a sua determinação específica e verdadeira, ou, em outras
palavras, que utilização legítima e imanente elas poderão alcançar?
Consideradas como objetos do conhecimento, elas nos aparecem
como o princípio das coisas, como sua absoluta unidade sistemáti-
ca: a idéia psicológica como o sujeito imanente de todas as nossas
representações internas, a cosmológica como o todo do mundo, a
teológica como o princípio incondicionado de todas as coisas. Elas
se afiguram unidades objetivas, em conseqüência daquela ilusão
que transvia a humanidade até à metafísica do supra-sensível.
Vistas, porém, sob o prisma conveniente, não como objetos do
conhecimento, mas como idéias que só existem na razão pura, elas
são princípios significativos do conceito da unidade. A unidade,
por elas postulada, não se refere, entretanto, ao mundo objetivo; é
uma unidade subjetiva, buscada pelo nosso conhecimento, a qual
nem por isso deixará de nos merecer grande atenção.
Os princípios cuja validade é puramente subjetiva denominam-
se máximas: as idéias, despidas de uma falsa aparência de validade
objetiva, são máximas que se referem ou à nossa vontade ou ao
nosso entendimento. Aos nossos conhecimentos, empíricos como
são, falta-lhes o fecho sistemático, nem é possível à experiência al-
cançar uma completa unidade científica, o que a não impede de
tentar atingi-la.
As idéias, consideradas como máximas, indicam essa meta para
a qual sempre tende o nosso conhecimento; elas não lhe ditam leis,
marcam-lhe, contudo, uma direção, uma via a seguir, ou, como já
tivemos ocasião de dizê-lo, não são princípios constitutivos, mas
simplesmente reguladores do nosso conhecimento. O que elas esta-
belecem; p o i ~ ~ á e m p r e u m - f i t q u m r e s e n t a à n -
que ela continuamente tenta alcançar.
O último termo de tal ideal seria um sistema de conhecimentos
humanos, completo em todas as suas partes, ou a unidade dos con-
ceitos no mundo.
Esse sistema completo de conhecimento, partindo das coisas
singulares, passará pelos gêneros e espécies até alcançar uma uni-
dade suma que constituirá o ponto culminante do mundo dos con-
ceitos: será a suma unidade na mais alta variedade.
Para obter ou, antes, aproximar-se da suma unidade deverá a
ciência unificar continuamente os seus conceitos, subordinando-os
a categorias cada vez mais gerais, tentando atingir uma síntese su-
perior, alcançar um conceito sumo de compreensibilidade absoluta:
esse tentâmen é uma direção necessária que tem de tomar o nosso
entendimento.

Por outro lado, para atingir à suma variedade, nós deveremos


constantemente distinguir entre os diversos conceitos, procurar ne-
les as diferenças específicas, não olvidando predicado algum, e su-
pervisando-lhes sempre o inteiro conteúdo.
A contínua síntese dos conceitos dá-lhes compreensibilidade e
unidade, ao passo que a sua constante divisão e distinção torna
cada vez mais rico o conteúdo dos vários sistemas científicos e de
suas ramificações. As duas tendências sistemáticas, a da homoge-
neidade e da especificação, fazem-nos ver que as vias do nosso co-
nhecimento vão da maior variedade para a mais completa unidade,
atravessando ou passando pelos diferentes gêneros ou espécies in-
feriores. Quanto mais alto subimos, encontraremos maior unidade e
homogeneidade dos conceitos; quanto mais descemos, maior é a
sua variedade.
A experiência, seguindo essa via de generalização cada vez
mais compreensiva, não pode, porém, deixar de descrever o seu
roteiro senão contínua e sistematicamente: o que quer dizer que ela
não deve bruscamente saltar por cima de quaisquer conceitos in-
termédios para alcançar outros, porventura mais genéricos, mas os
há de ir gradual e paulatinamente apurando e concatenando; sem
essa escala gradual e progressiva, não haverá regularidade e unida-
de na nossa ciência. A idéia símbolo dessa unidade, requer, por-
~t~tatcontinuidade,de-mod~-a~q~e~e-encontrementre-si-liga-
dos todos os nossos conhecimentos, formem, por assim dizer, uma
grande família, cujos membros - os nossos conceitos - tentam en-
tre si uma afinidade mais ou menos próxima: é a lei da continuida-
de na natureza, a qual verdadeiramente aclara a genealogia das coi-
sas.
Se esses modos de encarar o universo nos pudessem dar uma
concepção objetiva do cosmos, ele constaria dessa escala contínua
e progressiva de manifestações, a qual teria como fecho o conceito
de Deus, como seu último e mais alto termo, como sua síntese fi-
nal. Tal concepção, porém, não pode ser dogmática nem objetiva,
mas simplesmente crítica e subjetiva; não é tampouco arbitrária,
mas constitui uma máxima necessária, um princípio regulativo do
conhecimento, que, embora sempre empírico, dele precisa como
meta para a qual tende, ainda que nunca lhe seja possível alcançá-
Ia.
Assim, as idéias são sempre um arquétipo, e não um objeto
para a ciência, são a unidade, não das coisas empíricas, mas da nos-
sa compreensão delas.
Agora entendemos perfeitamente que significação tem para o
nosso conhecimento a idéia teológica: ela não constitui objeto de
ciência alguma, como erroneamente o quer fazer crer a teologia ra-
cional; indica, porém, uma unidade superior e como tal é a diretriz
de toda ciência. Esta pode acompanhá-la, sem ser por isso preciso
abandonar os seus fundamentos, o que aconteceria, se, porventura,
pretendesse conhecer Deus e dele deduzir a natureza das coisas;
mas ao mesmo tempo tem o dever de seguir na direção que lhe é
apontada pela idéia teológica.
Nada impede, com efeito. conclui Kant, originemos os feno-
menos tão somente das ações naturais e ao mesmo tempo os consi-
deremos como se fossem de procedência divina; e já que Deus deve
ser pensado como um ser ativo, como a meta, a finalidade absoluta
das coisas, o ponto de vista teleológico coincide com o teológico;
assim, todo o esforço da filosofia se deve empenhar no sentido de
conciliar a estrita causalidade mecânica com a teleológica.
A RAZÃO PURA TEÓRICA
E A RAZÃO PURA PRÁTICA

Tendo-se mostrado quais os conhecimentos que poderemos ad-


quirir por intermédio da razão pura, trata-se agora de indagar de
que meios ela deverá lançar mão, que direção lhe será preciso to-
mar para compendiá-los, determinando as linhas gerais que guiarão
as nossas faculdades cognoscitivas. Como a razão, porém, se pode
transviar no uso para o qual é destinada, será necessário, em pri-
meiro lugar, apontar os obstáculos que irá encontrar no seu exercí-
cio legítimo e em seguida apontar reto caminho para esse exercício.
No primeiro caso, mostrar-se-ão os limites naturais da razão,
dar-se-ão regras cuja utilidade será a de indicar os erros que ela de-
verá evitar; em seguida estabelecer-se-ão as normas deterrninativas
dos conhecimentos susceptíveis de serem adquiridas por seu inter-
médio. A parte negativa é, pois, a disciplina da razão pura; a positi-
va o seu cânon.
Esclarecidos esses pontos, o edifício da razão pura fica deline-
ado tanto nas suas partes constitutivas como no seu conjunto, esta-
belecendo-se assim a sua arquitetônica. O estudo em que nos va-
mos empenhar, de acordo com o exposto, constitui a metodologia,
transcendental, é um resultado da crítica e ao mesmo tempo a in-
trodução ao sistema filosófico que, nela fundada, a razão pura de-
verá levantar. É assim que o problema metodológico, sendo ao
mesmo tempo uma recapitulação do que já atrás deixamos exposto,
é uma antecipação que nos vai esclarecer o emprego da razão pura
na consideração dos diversos assuntos que constituem a matéria
dos vários ramos particulares da filosofia. Como o nosso intuito
não é aqui o de expô-los, a metodologia será por nós concisamente
explanada.
Ao conhecimento puramente racional das coisas chama-se
dogmatismo e aos seus princípios dá-se o nome de dogmas; o pro-
blema próximo-a-resolver-é-cdeindagar-se d a r a z ã ~ c i t o
fazer-se um uso dogmático.
A nossa razão tem duas faculdades, por meio das quais conhe-
ce, a sensibilidade e o entendimento. Aquela conhece por meio da
percepção e este por intermédio dos conceitos: o conhecimento
puro, adquirido por aquela, é matemático e o deste filosófico.
Que o conhecimento adquirido por meio da sensibilidade seja
possível não há duvidar; sê-10-á também o que deriva do entendi-
mento puro? Se o não for, não há uso dogmático possível da razão
pura; no caso contrário, os conceitos dogmáticos são tão certos
como os que dizem respeito às grandezas no espaço e no tempo, fi-
cando perfeitamente justificado o emprego da razão pura no campo
do dogmatismo.
A sensibilidade e o entendimento são de todo ponto diversos;
aquela percebe e este pensa; os conceitos da matemática são puras
intuições ou percepções imediatas, não assim os filosóficos, puras
criações do entendimento; a matemática construindo os seus con-
ceitos, torna-os sensíveis; ao passo que a filosofia não conta com
essa facilidade. A filosofia opera por meio de conceitos puros e a
matemática com o instrumento de suas construções, tomando-as
perceptíveis, pode defini-las e deduzi-las, tem a propriedade de
axiomas e demonstrações.
A filosofia, diferindo essencialmente da matemática, carece de
tais propriedades básicas; os seus princípios fundamentais não são
axiomas, porém antecipações, analogias e postulados; não são,
além disso, intuitivamente certos, mas carecem de demonstração,
precisam de ser deduzidos: é necessário se mostre que eles são a
condição imprescindível, sine qua non da experiência, que ela seria
impossível, se os não admitíssemos. Os seus objetos, porém, não
são coisas em si, mas unicamente empíricos, de modo que a vali-
dade deles nunca pode ser dogmática.
Não há, portanto, um uso dogmático da razão, não há conheci-
mento racional intuitivo, imediato, das coisas, não há afirmações
apodíticas acerca da sua essência ou daquilo que elas são em si. Se
tentarmos tais afirmações, é sempre possível mostrar que elas não
têm a validade absoluta dos axiomas matemáticos.
Os dogmas filosóficos encontram sempre contraditores: às suas
~ t i v a ~ õ ~ s e ~ e e ~ g a t ~
formais, de sorte que, longe de ser uma ciência unanimemente
aceita, constitui a metafísica o campo de luta dos mais opostos sis-
temas.
Quem nessa luta toma partido em favor de qualquer das duas
partes em disputa, dogmatiza; quem não quiser dogmatizar tem
dois caminhos a seguir: ou das tendências opostas combaterá qual-
quer uma delas, sem, contudo, tomar partido pelas outras, ou então
negar-lhes-á validade a todas; no primeiro caso comportar-
nos-emos polemicamente e no segundo como cépticos.
Se não é lícito nos servirmos dogmaticamente da razão, ser-
nos-á porventura também defeso o seu uso polêmico?
A luta dos sistemas opostos manifesta-se nos domínios da psi-
cologia, cosmologia e teologia racionais, cujas afirmações dogmá-
ticas dizem respeito à alma, ao mundo e a Deus como coisas em si;
essas afirmações apodíticas não são verdadeiras; não há, por isso,
nenhuma delas a que se não possa contrapor uma afirmativa em
contrário. Se das afirmações contraditórias a razão toma decidida-
mente a defesa de umas, teremos o seu uso dogmático; se, sem de-
fender, com isso, a umas, ataca as outras, teremos o seu emprego
em sentido polêmico; é mister saber se nesse sentido, pode a razão
disciplinada polemizar.
Falham por completo as bases científicas para se afirmar ou
negar a natureza e essência, a existência de Deus e da alma: ambas
essas atitudes são evidentemente dogmáticas; a disciplina da razão
pura exige, por conseguinte, não se tenham em conta nem uma nem
outra.
O interesse moral, entretanto, o qual de todo independe do ci-
entífico é, por outro lado, inteiramente favorável ao teísmo e ao es-
piritualismo e contrário ao materialismo e ao ateísmo.
Se a razão não pode demonstrar a existência de Deus, sente-se
instintivamente inclinada a admiti-la, de sorte que, polemizando,
ela terá um pendor irresistível para o ataque ao ateísmo e ao mate-
rialismo. Mas, desde que assim é, não podendo proceder com im-
parcialidade nem tão pouco mostrar a sem razão dos seus adversá-
rios sem dogmatizar, ela tem de basear a força de sua polêmica em
interesses morais; com os seus próprios limites a razão transcende-
rá igualmente os da justa medida permitida na luta, e, em lugar de
demonstrar a improcedência das teses adversas, tentará chamar a
nossa atenção para perigo público que poderá advir de se sustenta-
rem tais-doutrinas.
E esse perigo, na verdade, há de lhe parecer evidente: o interes-
se moral que tem a razão em acreditar na imortalidade da alma e na
existência de Deus, está de tal maneira vinculado às doutrinas da
religião, à fé oficial e ao bem público que fácil lhe é fazer passar os
seus adversários por inimigos do Estado e da ordem estabelecida.
A razão só tem a perder com uma polêmica conduzida por esta
forma.
Ao contrário disso, o ateísmo, não podendo contar com o apoio
moral da grande maioria da humanidade, nem com uma populari-
dade que lhe não advém das suas doutrinas, é obrigado a fundá-las
com grande rigor científico, a empregar a maior meticulosidade em
sua demonstração.
E assim, embora estejamos convencidos de nunca poderem
provar os seus dogmas, elas nos devem chamar a atenção benévola
pelos esclarecimentos que porventura venham trazer à ciência.
"Quando me informam", diz Kant, "ter um talento não comum
demonstrado a improcedência da liberdade de querer no homem, da
esperança de uma vida futura e da existência de Deus, sinto uma
grande vontade de lhe ler o livro, pois espero da sua capacidade
que me dará novos pontos de vista. Ao defensor dogmático da boa
causa, ao invés disso, eu não leria, porque sei de antemão que ele
apenas combaterá as demonstrações do seu contrário, procurando
simplesmente achar uma saída para si, além de que um assunto, di-
ariamente esgotado, não oferece tanta matéria a novas reflexões
quanto outro, bem discutido e estranho às nossas cogitações habi-
tuais".
A única polêmica em que a razão se pode sentir bem, será
aquela que, sem se pronunciar por nenhum dos partidos dogmáti-
cos, se limitar a provar a inanidade de quaisquer demonstrações,
pretensamente científicas, avançadas por uns e por outros. Os sis-
temas dogmáticos que se guerreiam, não podendo nenhum sair vi-
torioso dessa luta perpétua, são obrigados a chamar para que dirima
a contenda a um terceiro, o qual, nada tendo com nenhum dos la-
dos, decidirá imparcialmente sobre o infundado das pretensões de
qualquer deles: esse juízo imparcial nos mostrará que o único uso
que legitimamente cabe à razão não é nem o dogmático nem o po-
lêmico, mas tão somente o crítico.
Quer dizer que não devemos nos declarar por nenhum dos par-
tidos dogmáticos, mas, rejeitando as suas conclusões, quaisquer
que-sejam, assumir-em relação a-elas umaatitudecéptica. O cepti:
cismo, negando todo conhecimento que provenha intuitivamente da
razão pura, sustenta, em lugar dele, a nossa completa insciência.
Tal convicção do cepticismo decorre ou da experiência ou da pró-
pria razão: se decorre da experiência, não a sustentam princípios,
ela é simples postulado empírico, o qual, por incerto, como quer o
cepticismo sejam todas as verificações experimentais, está igual-
mente sujeito à dúvida; se decorre da razão, a solução céptica deri-
va da consideração das faculdades dela: o que já constitui uma ci-
ência, a do estudo dos limites dela, um conhecimento efetivo, o
qual não mais se poderá chamar céptico, mas a que cabe a denomi-
nação de crítico.
O método céptico é o oposto do dogmático, e esta oposição
constitui a sua verdadeira importância e valor histórico; negando o
dogmatismo, prepara os pontos de vista críticos, é, portanto, a tran-
sição obrigada da antiga para a nova filosofia.
O dogmatismo deve, conseqüentemente, ser banido da filoso-
fia: a razão não pode transcender dos seus limites e pronunciar juí-
zos sobre o incondicionado, sobre aquilo que não é objeto da expe-
riência.

Se a razão não pode pronunciar juízos apodíticos, talvez os


possa formular hipotéticos: se as suas proposições não são intuiti-
vamente verdadeiras, devem, pelo menos, ser demonstráveis. Quais
são, pois, as demonstrações e hipóteses da razão pura, escoimadas
de vício e aceitáveis do ponto de vista crítico?
Uma hipótese científica é uma explicação pressuposta de um
fato qualquer. Como explicação prévia, ela é uma suposição que
tem somente um valor provisório e relativo: não podemos, por isso,
exigir da hipótese seja afinal julgada válida, mas que se mostre
possível e útil.
Possível será se o seu objeto pertence efetiva ou virtualmente
ao mundo dos fenômenos; e útil, se nos dá a explicação do que se
comprometeu explanar, se a respeito do fato em questão fornece
uma explicação plausível e compreensiva de todo ele. A explana-
ção perderá, conseguintemente, de plausibilidade e de compreensi-
bilidade, quando em si não abranger todos os elementos do fato a
aclarar, sendo forçada a chamar outras hipóteses em seu auxílio.
Assim, aordemteleológicano-mundo-explica-se-com~uposiçãe
de uma causa final, agindo conscientemente para realizar fins; mas
no cosmos se descobrem tantas irregularidades e males que à pri-
meira hipótese, insuficiente para os explicar, será necessário acres-
centar outras e outras mais, para esclarecer os pontos que a primei-
ra não se mostra apta a abranger. A primeira hipótese não é útil,
porque não preenche os fins que se tiveram em vista ao criá-la.
O que não é nem pode ser objeto da experiência, nunca dará
lugar a uma hipótese científica, visto que sempre é empírico o ob-
jeto da experiência; de sorte que as hipóteses científicas nunca de-
verão ser hiperfísicas nem apelar para a onipotência ou sabedoria
de Deus.
As proposições da razão pura carecem de demonstração; toda
demonstração deve partir de princípios e estes só podem ser os
princípios básicos do entendimento, e não os da razão pura, visto
que estes últimos são apenas reguladores dela e não têm força pro-
bante científica.
Os princípios puros do entendimento ou as categorias, porém,
só alcançam validade, não porque sejam princípios das coisas em
si, mas unicamente porque o são da experiência, isto é, do conhe-
cimento dos objetos dela, e só têm valor, porque da mesma consti-
tuem a base necessária. As demonstrações e hipóteses da razão
pura não se devem, portanto, referir ao nosso impossível conheci-
mento das coisas em si, mas tão somente à nossa elaboração das
representações empíricas; nunca poderão, conseguintemente, ser
dogmáticas, mas sempre críticas.
O princípio da causalidade, por exemplo, não se poderá jamais
demonstrar dogmática, senão criticamente; pois o peso da demons-
tração da sua efetividade está em se estabelecer que sem ele não
nos seria possível cogitar da coexistência e sucessão dos fenôme-
nos, e apurá-los e concatená-10s. A possibilidade da experiência é,
por conseguinte, o guia da razão pura em suas demonstrações e hi-
póteses.

O conjunto de regras e princípios que determinam o reto em-


prego da razão chama-se o seu cânon. A lógica formal nos fornece
o cânon para o molde legítimo em que havemos de vasar os nossos
juízos e raciocínios; os princípios racionais do entendimento no-lo
~dão~emrelação~aonossoconhecimentoleal ou-empírico,
Não há, como assaz já ficou provado, nada que nos autorize a
usar da razão em sentido dogmático; portanto, se ela porventura
puder proferir juízos apodíticos, que tenham valor absoluto eles
não serão dogmáticos nem se referirão ao conhecimento.
Fora, entretanto do uso teórico que poderíamos fazer da razão
pura, só encontraremos o prático, pois que a razão pura teórica ou o
entendimento não emite juízos válidos que independam da experi-
ência. Se, pois, há juízos que pressuponham outro cânon da razão
pura que não seja o do entendimento, o seu domínio será o da razão
prática, a qual se refere às ações humanas e aos seus móveis.
Se os nossos atos forem considerados como meras ocorrências
naturais, obedecendo exclusivamente às leis da causalidade mecâ-
nica, neste caso só ao entendimento competiria explicá-los e a ra-
zão prática deve ser considerada supérflua e desnecessária. Ou
nada significa, portanto, a razão prática, ou pressupõe uma facul-
dade de livre determinação, um arbitrium liberum, o qual é a base
de todas as ações humanas, diferençando-as da causalidade mecâ-
nica: a razão prática implica, portanto, a admissão de uma vontade
determinada, não necessariamente pelas leis naturais, mas livre-
mente pelas representações e motivos que procedem da razão, os
quais ela não recebe passivamente, antes dentre eles escolhe os
preponderantes.
Os motivos determinantes da vontade podem ser de duas espé-
cies, conforme procedam da experiência ou da razão pura. Se deri-
vam da experiência, nos darão apenas normas pragmáticas de ação,
isto é, regras que só têm em mira fazer-nos alcançar o maior pro-
veito ou a máxima utilidade de uma qualquer nossa atividade. Se se
originam da razão pura, independentemente da experiência, sem ter
em mira qualquer consideração de um bem sensível, eles nos fazem
obrar segundo axiomas, os quais se não encontram condicionados
pela natureza das circunstâncias em que nos achamos colocados:
nesse caso, a nossa conduta será regulada não por considerações
pragmáticas, mas pela lei moral.
O cânon da razão prática, como conjunto de princípios regula-
dores da nossa conduta, só poderá conter regras morais. As normas
pragmáticas tratam de nos assegurar a felicidade, a lei moral procu-
ra nos tomar dignos da felicidade. Não precisamos provar que
existe uma lei moral; basta refletirmos nos nossos julgamentos so-
bre as ações humanas, nos quais não~apreciamos,louvando~ou~ce~
surando, o seu valor conforme o bom ou mau sucesso que encon-
tram, mas segundo o grau de moralidade que revelam, para nos
convencermos de que a razão postula a existência de uma lei moral.
Esta nada, entretanto, acrescenta ao nosso conhecimento das
coisas, não nos diz o que ocorre no mundo, mas somente nos pre-
ceitua o que devemos fazer, tem apenas um sentido prático, e não
especulativo.
O que a lei moral nos ordena façamos temos o dever de execu-
tá-lo incondicionalmente e em quaisquer circunstâncias: os seus
preceitos são absolutos. Como ao mesmo tempo, contudo, visto or-
denarem-nos ações necessárias, são simultaneamente regras empí-
ricas, que postulam uma correspondência adequada por parte da
experiência, exigem, em contraposição ao físico, um mundo moral,
o qual realize a nossa finalidade ética.
Não se pode, entretanto, postular a existência de um mundo
moral, sem, concomitantemente, postular uma ordenação ética no
universo, pois que ela é evidentemente a condição necessária dele;
mas que outra coisa deveremos entender por mundo ético a não ser
um que tenha a sua origem numa causa que é a fonte donde proma-
na a lei moral e a diretriz que a guia no seu desenvolver?
A legislação do universo ético postula, como sua condição bá-
sica, um legislador supremo, um sumo criador dos seus princípios:
a idéia moral tem por corolário necessário a admissão da existência
de Deus.
A nossa perfeição moral, por outro lado, meta suprema das leis
da ética, não se pode realizar completamente na nossa existência
terrena, precisando ou postulando um termo além dela: o que quer
dizer que a imortalidade da alma é-lhe condição essencial.
O sermos dignos da felicidade temos que devê-lo ao nosso pró-
prio esforço, o qual terá como resultado a nossa perfeição moral:
mas a felicidade decorrente de nos mostrarmos dignos dela não re-
sulta de nós mesmos, mas do mundo ético, cuja origem está em
Deus.
Merecer a felicidade é o móvel das nossas ações, gozá-la é o
tema das nossas esperanças.
Assim, conclui o filósofo, como remate final dessas considera-
ções, a razão descreve três círculos, cada qual mais vasto, compre-
endendo,~ p r i m e i r c r o - c o n h e c i m e n ~ ~ u n daonossa atividade e
o terceiro as nossas esperanças. A razão, examinando-se, procura
solução a estas três interrogações: que posso saber? que devo fa-
zer? que me é lícito esperar? (was kann ich wissen? was sol1 ich
tun? was darf ich hofSen?). A primeira responde a crítica da razão
pura, à segunda a ética, derivada ou fundada na razão pura, e à ter-
ceira a fé, que se baseia na lei moral.
A razão prática guiando-se pelo seu cânon, propugna a liberda-
de de querer, a imortalidade da alma e a existência de Deus com
uma tal segurança e tão apoditicamente que não admite uma dúvida
qualquer a tal respeito.
Entretanto, é a própria razão pura quem nos garante não terem
aqueles princípios validade científica, pois que não são, na verda-
deira acepção das palavras, dogmas, mas sim postulados. A razão,
portanto, deve possuir em si uma faculdade de certeza que com-
pletamente independa de quaisquer convicções científicas, sendo,
entretanto, tão firme quanto elas.
Ora, toda a convicção tem os seus fundamentos: estes, porém,
podem variar extraordinariamente ou de alcance ou de origem.
Quanto ao seu alcance, os fundamentos de uma convicção po-
derão ser suficientes ou falhos; quanto à origem, pode ela ser ou
objetiva ou subjetiva, ou real ou pessoal somente. A convicção,
portanto, está visto, poderá mostrar-se suficiente ou insuficiente-
mente fundamentada, e, no primeiro caso, os seus fundamentos se-
rão ou unicamente subjetivos ou objetivos e subjetivos ao mesmo
tempo.
Se supusermos, tomando o primeiro caso, que os fundamentos
de uma convicção nossa não são suficientes nem objetiva nem
subjetivamente, evidentemente aí não fica excluída a dúvida, e a
convicção que temos e uma simples opinião (Meinen), à qual, na
melhor das hipóteses, outorgaremos muita plausibilidade, mas que
nunca poderá passar por verdade incontestável.
Se os fundamentos da nossa convicção se nos apresentam com-
pletos, já não é mais uma mera opinião que expendemos, porém
temos certeza do que sustentamos. Mas essa certeza pode apresen-
tar duas faces, conforme forem os seus fundamentos puramente
subjetivos ou ao mesmo tempo objetivos e subjetivos. Sendo-o am-
bos* d e m o r r s t r ~ l a - a n a ~ ~ ~ ~ v i q ~ b ici- o m s - o u ~
ência; sendo somente subjetivos, nós temos certeza, mas não a po-
demos demonstrar; cremos ou temos fé. A crença ou a fé é uma
certeza que difere radicalmente da opinião ou da ciência.
Quando se examina um princípio qualquer da razão pura, vê-se
que os seus fundamentos são sempre gerais e necessários; ele nun-
ca é, portanto, uma opinião, mas sempre ou crença ou ciência. Ora,
todo conhecimento por intermédio da razão pura sempre se refere à
experiência, não há princípio nenhum dela que nos possa dar uma
convicção científica independentemente de quaisquer pressupostos
empíricos.
Se existe, pois, qualquer convicção da razão pura que indepen-
da da experiência, tal convicção, não podendo jamais ser ciência, é
sempre fé.
Os únicos princípios da razão pura que valem independente-
mente da experiência são os postulados da razão prática, as regras
da nossa atividade ética; logo a fé racional tem um conteúdo exclu-
sivamente moral e a convicção moral não pode ser senão a fé ou a
crença.
A crença da razão pura é unicamente uma convicção moral,
distinguindo-se assim de qualquer outra espécie de convicção de
natureza teórica. Acontece às vezes que opiniões científicas, fazen-
do jus a um alto grau de probabilidade, mas cuja verdade não se
pode provar, sejam aceitas e acreditadas. É assim que nos é lícito
acreditar que o planeta Marte seja habitado, pelas suas analogias
com a terra, que Deus exista, em vista da ordem e regularidade do
universo (prova físico-teológica); só nos é lícito acreditá-lo, visto
que nos faltam fundamentos para estabelecer qualquer dessas con-
vicções cientificamente.
Esta crença, que não é mais do que uma opinião, mais ou me-
nos bem baseada, distingue-se da fé puramente racional, em pri-
meiro lugar, por ser incerta, ao passo que a outra é de uma certeza
total, e em segundo lugar por não ser prática, mas simplesmente
doutrinária.
Mas nem toda crença de natureza prática é simplesmente por
isso ética nem certa; na crença ou fé prática cabe-nos, portanto,
distinguir a moral. Toda a crença prática tem em vista um fim que
deve ser atingido, usando-se dos convenientes meios. Serão esses
meios próprios para alcançar tal fim, e em todas as circunstâncias?
Se o fim e o meio estão entre si como o efeito para a causa, a
sua coordenação, sendo um nexo causal, cai sob o domínio da ciên-
cia; mas se os meios não são causas mecânicas, eles se furtam ao
império da ciência para serem regidos pela fé, pela crença prática.
Aqui, entretanto, ainda há a distinguir: ou os meios necessaria-
mente se adaptam aos fins em vista, de modo a estabelecer uma
certeza absoluta, uma fé prática absolutamente certa, embora sem
qualquer fundamento científico; ou os meios só condicionalmente
convêm aos respetivos fins, decidindo o bom ou o mau sucesso fi-
nal da sua bondade, e nesse caso, a nossa crença prática, por de-
pender de tal circunstância, é também incerta.

Trata-se, por conseguinte, de saber se a relação entre o meio e


fim é absoluta ou relativa, é problemática ou apodítica, se eles são
sempre conducentes a um fim ou se o atingir esse fim dependerá
das circunstâncias em que nos virmos colocados. Ora, há um fim
absoluto que em todas as circunstâncias a razão humana deve tentar
atingir: o merecermos (sermos dignos dela) a felicidade obedecen-
do à lei moral, fim cuja existência nos é absolutamente certa.
Essa certeza constitui a crença ou a fé ética.
A crença pragmática falta-lhe a certeza, ela crê na bondade dos
seus meios, prevê o sucesso deles com grande segurança; pode, po-
rém, ter-se estagnado está, portanto, sempre sujeita a decepções,
mesmo quando haja atingido o limite máximo da probabilidade,
que nunca deverá transpor. Esse limite é justamente o que distingue
a crença pragmática da fé moral. Como a probabilidade nunca se
pode ter como certeza, não há entre elas uma diferença unicamente
gradual, e sim específica.
A probabilidade da crença pragmática depende do grau de pon-
deração de que faz uso a razão; ao passo que a certeza da fé moral,
dependendo do nosso sentimento ético, não tem graduações; ou
existe ou não existe. A crença pragmática, por exemplo, a de um
médico nos remédios por ele receitados, nunca tem uma certeza ab-
soluta, por mais que o pareça, ele conta com o sucesso, estará
mesmo pronto a apostar sobre ele, mas desde que a quantia for
maior, hesitará e desistirá da aposta. "Às vezes", diz Kant, "aconte-
cerá ter ele uma convicção que poderá ser avaliada em um ducado,
mas não em d e z 7 7
"A primeira quantia ele arriscará com segurança, mas quando
chegar a dez, ocorrer-lhe-á o que talvez antes não tivesse notado,
isto é, o poder haver-se enganado."
A fé racional encontra-se, pois, limitada ao campo da ética e di-
ferençada de toda ciência e opinião, de toda crença ou doutrinária
ou pragmática. A fé racional tem uma certeza absoluta, por ela par-
tilhada com a convicção científica; mas a sua certeza é puramente
subjetiva; de modo que estritamente ela não se poderá servir de
uma fórmula objetiva para a sua expressão. Não se deve dizer: "é
certo exista Deus"; mas sim "eu estou certo de que Deus existe",
que "a alma é imortal", que "a vontade é livre".
A crença moral é o fundo básico da fé religiosa. Se, pois, o fito
da teologia é fundar a fé religiosa, só haverá, de acordo com o câ-
non da razão prática, uma teologia moral, não uma moral baseada
sobre a teologia, mas uma teologia decorrente da ética.

Estão agora diante de nós perfeitamente delimitados os vários


domínios da razão pura, assim como os elementos que nela encon-
tram abrigo. Podemos, portanto, distinguir o conhecimento filosó-
fico de qualquer outra ciência.
Nem todo conhecimento é racional, e nem todo conhecimento
racional é filosófico.
Todo conhecimento pressupõe as bases de que decorre; elas
podem ser ou princípios da razão, ou então fatos ou dados empíri-
cos (históricos).
O conhecimento puramente racional deriva ou de intuições
(percepções) ou de conceitos; a primeira base é matemática e a se-
gunda filosófica; esta lida com conceitos puros e aquela opera por
meio da construção dos conceitos. O conhecimento especifica-
mente filosófico isto é, o conhecimento racional por meio de con-
ceitos puros, é constituído por leis que, em seu domínio natural,
têm validade absoluta; neste sentido poderemos chamar a filosofia
de legislação da razão humana. Os dois campos da razão são o teó-
rico e o prático, o conhecimento e a liberdade.
Os princípios do conhecimento distinguem-se em duas espécies
os que fundam a experiência e os que nele, se fundam; a filosofia é,
portanto, ou pura ou e m p í e f i d d q u r a p t l - h e c i m e n t
dos princípios puros da razão, é o que Kant chama metafísica.
Os princípios puros são fundamento de toda experiência ditan-
do-lhe as condições, ao mesmo tempo que formam a base de sua
atividade moral. Se ao conjunto de objetos experimentais chamar-
mos de natureza e ao conjunto da atividade ética de costumes, o
sistema da razão pura subdividir-se-á em - metafísica da natureza e
metafísica dos costumes.
Na primeira legisla-se para as ocorrências naturais, e na segun-
da regula-se o mundo da liberdade. São estes os dois domínios que
em si encerra a razão humana; a sua metafísica subdivide-se, por-
tanto, em sistema da natureza e em sistema da ética.
O LUGAR DA FILOSOFIA CRÍTICA
ENTRE OS SISTEMAS ESPECULATIVOS

Até aqui temos seguido o desenvolvimento da filosofia crítica


nas suas bases, dizendo respeito ao nosso conhecimento e aos seus
problemas fundamentais.
Estabelecido, como ficou, que as coisas do mundo e da cons-
ciência são nossas representações, as quais se amoldam às formas
puras do entendimento, ficamos certos de que os objetos da expe-
riência só existem para nós como coexistências e sucessões.
Mostrando-se em seguida como se originam os conceitos puros
do entendimento e como as nossas representações se amoldam ao
esquematismo da razão pura, por meio dos conceitos da substância,
da causalidade e da dependência recíproca, ou comunidade dos fe-
nômenos, acabamos por demonstrar como de outra coisa que não
eles, do noúmenon ou da coisa em si, nada nos é lícito afirmar, nem
sequer a existência.
Armados com esses resultados, concluímos que os objetos
constituindo a matéria da ontologia, isto é, a alma, o Universo
como todo e Deus, tomados como susceptíveis de representação,
transcendem dos limites da nossa ciência e não podem ser por nós
conhecidos.
Tendo assim percorrido todo o campo da razão pura teórica,
marcando-lhe os términos, lançamos por último um golpe de vista
sobre o que constitui propriamente a seara da razão pura prática,
com os seus postulados e imperativos, mostrando que, como o
campo da primeira é constituído pelo conhecimento, o domínio
desta é regido pela fé.
Neste ponto ser-nos-ia talvez lícito parar a fim de, havendo
procurado aclarar, ainda que perfunctória e imperfeitamente, as ba-
seS3~problemadoconheciment0, assentadawr Kant, darmos
por terminada a ingente tarefa que sobre nós tomamos. Tal não é,
porém, a nossa intenção; pretendemos ainda por algum tempo fati-
gar a benévola atenção do leitor, acrescentando algumas observa-
ções individuais às doutrinas que acabamos de expor. E não será
demasiado esse tentâmen da nossa parte. São tantas, com efeito, e
tão divergentes entre si as interpretações, dadas pelas diversas cor-
rentes especulativas, às idéias kantianas, que não nos será de todo
fácil o lhes determinarmos os característicos sistemáticos.
O idealista, o realista, o céptico, o monista, o dualista, o espi-
ritualista, o materialista, o teleologista, o mecanista, o empirista,
cada um deles, forçando-a ao seu ponto de vista, julgam descobrir
no todo ou em alguma parte da obra do grande filósofo princípios
ou teses sobre as quais acreditam poder fundar os seus pressupostos
particulares.
Basta comparar entre si as bases de que partiram Fichte, com o
seu eu puro ou transcendental, Hegel com a sua identidade do ser e
do pensamento, Schopenhauer com o seu conceito da vontade
como noúrnenon, Herbart com a sua ontologia pretensamente fun-
dada na experiência, Hartmann com o seu inconsciente, para se ve-
rificar como da Crítica da razão pura se originaram os mais desen-
contrados sistemas, as metafísicas mais discordantes entre si.
Coisa curiosa: todos esses sistemas que se julgam apoiar nos
estritos princípios da filosofia crítica, tentam, entretanto, ressusci-
tar, embora em outras linhas e talvez com diverso descortínio, o
antigo dogmatismo que ela se lisonjeava haver para sempre des-
truído!
Outro fato, em contraposição a este, que nos deve chamar
muito particularmente a atenção é que, em após as construções
idealistas dos filósofos pós-kantianos, principalmente depois do
idealismo absoluto de Hegel, e em seguida aos improfícuos esfor-
ços do exagerado materialismo para alcançar o domínio no campo
da filosofia, e o qual tanta voga alcançou nos meados do século
findo, verificada novamente a impossibilidade do dogmatismo, seja
de que espécie for, de nos dar do conjunto do cosmos uma explica-
ção válida, voltam outra vez os teóricos da filosofia a sua conside-
ração para as bases kantianas.
As suas tentativas são todas dirigidas no sentido de fazer delas
uma revisão cuidadosa de lhes verificar a validade das soluções que
ap~esen~m,~mr~k@~rnidadee,~onsSientgf)u-inc~n~-
cientemente, resolver o problema do conhecimento, segundo os
métodos da filosofia crítica.
As tendências mais características da filosofia em nossos tem-
pos, além do kantismo, novo ou antigo empirista ou idealista, são,
na ordem do seu valor crítico, o pragmatismo, desenvolvido princi-
palmente por W. James, o evolucionismo ou empirista de Spencer
ou monista de Haeckel, e a filosofia da experiência pura, tão geni-
almente representada por Avenarius e Mach.
Esta última, de todas elas sem dúvida alguma a que nos apre-
senta mais sólidas bases teórico-cognoscitivas, é um curioso espé-
cime das tendências críticas (kantianas) que se põem em relevo na
filosofia moderna, é verdadeiramente um kantismo a rebours.
Com efeito, ao passo que na "Crítica da razão pura" o processo
consiste em depurá-la de todos os elementos que lhe advêm do
mundo empírico, para, eliminado dela esse quid que lhe é fornecido
pela experiência, verificar na razão humana a existência de formas
ou elementos a priori, na "Crítica da experiência pura" (Kritik der
reinen Er$ahrung, a obra fundamental de Avenarius), inverte-se o
problema, buscando-se investigar os dados últimos empíricos que
dão ensejo à experiência para criar a razão teórica.

O mesmo já não acontece, porém, com o evolucionismo, o


qual, menos preocupado com os problemas cognoscitivos, preci-
samente por essa razão, se debate entre duas tendências, quais as
representadas pelo monismo ou pelo empirismo puro.
Como a série das ocorrências empíricas nunca nos é dada com-
pleta, como da cadeia da experiência nunca poderemos apreender o
último termo, o empirista vê-se obrigado a confessar que jamais lhe
será lícito concatenar em um todo a inteira série dos fenômenos,
chegando, ou sendo forçado a admitir, como necessidade lógica in-
contestável, que, transcendendo do mundo cognoscível, há um in-
cognoscível, além do condicionado existe um incondicionado,
contrapondo-se ao relativo cogitamos sempre de um absoluto.
O evolucionismo empirista, pelo órgão do seu fundador, Her-
bert Spencer, aceita, como conseqüência lógica inevitável do con-
ceito-do-relativo,-d~limitad~~d~fmito~
ilimitado, do infinito. Admite, portanto, se bem que sub-repticia-
mente e sem o querer confessar, uma ontologia, tão válida ou tão
falsa quanto a que os seus pressupostos empíricos pretendem com-
bater.
Ao demais, quando tenta explicar, com base na sua psicologia
empírica, de que modo se originam as nossas percepções do espaço
e do tempo, ele se vê reduzido à extremidade de ou admitir a final
inexplicabilidade delas ou de afundar irremediavelmente na doutri-
na do panpsiquismo ou da animação universal, a qual não é mais
exata do que o panteísmo spinozista ou do que a teoria das idéias
(conceitos) inatas, e no fundo com qualquer deles se pode identifi-
car.
Vai um passo dessas dificuldades fundamentais do evolucio-
nismo empírico para os exageros do monista o qual, pretendendo
início em base crítica, acaba finalmente sem crítica e sem base.
Se o evolucionismo empírico quiser, portanto, evitar esse es-
colho, não pode senão optar pelas conclusões do kantismo, mas
então a evolução, por ele propugnada não será mais qualquer coisa
invariavelmente objetiva e verdadeira, mas tão somente uma atitu-
de subjetiva que tomamos na consideração dos fenômenos percebi-
dos pela consciência; a nossa objetivação deles, a sua coexistência
e sucessão nos são dadas pela causalidade. Ora esta deriva do tem-
po e tanto este como o espaço devem ser tidos como formas fun-
damentais, a priori, da experiência, como puras intuições do nosso
entendimento.
A experiência não as criou, como quer o evolucionismo, visto
que elas a precedem como condições essenciais que lhe são para
que se possa ela apurar: a experiência não se pode pressupor antes
de ser nelas esquematizada; logo, o espaço e o tempo têm origem
dela absolutamente independente, se bem que só a ela se possam
validamente aplicar.
Evidentemente não nos é dado saber a origem remota dessas
duas intuições puras do espaço e do tempo: a única coisa que delas
poderemos afirmar com segurança é que são um resultado da ativi-
dade necessária da nossa razão, nada nos adiantando indagar se lhe
são inatas ou se, pelo contrário, foram por ela adquiridas.
A origem do espaço e do tempo é, para nós, absolutamente im-
penetrável: todas as questões referentes à causa primeira, à fonte
~~iIiári~dascoisa+jamai~end~susseptívei-sd~sweduzirenra
termos de espaço e de tempo, e mesmo que o fossem, não sendo
estes determináveis em seus termos originários, serão completa-
mente indecifráveis ao nosso entendimento. Tanto o sujeito pen-
sante, pois, como os objetos pensados não podem, em seus princí-
pios últimos cair sob o nosso conhecimento.
A relatividade dele, conseguintemente, é, como mais de uma
vez tivemos ensejo de evidenciá-lo, a pedra básica da filosofia crí-
tica.
Só nos é dado formular juízos sobre existências contingentes:
os que dizem respeito às absolutamente necessárias deverão ser
desterrados da ciência e da filosofia.

Se a conclusão que tiramos do que ficou exposto nos induz


certamente a afirmar que o mundo condicionado só pode ser objeto
do conhecimento através da representação, da elaboração ou síntese
a respeito dele formada pelo sujeito pensante, parece forçoso con-
cluir que ele não existe realmente como dado independente do eu,
não se podendo por forma alguma afirmar ou negar diretamente a
sua realidade extra conscientia. Neste caso, o sistema filosófico da
"Crítica da razão pura" não é senão um idealismo análogo e por
isso mesmo tão verdadeiro ou tão falso quanto eles, aos de Berke-
ley, Descartes ou Leibniz.
O próprio Kant parece ter querido dar lugar a essa interpretação
pois que, por diversas vezes, chama a sua doutrina filosófica de
"idealismo transcendental". Entretanto erraria quem quisesse dar a
esse fato o alcance que ele parece ter à primeira vista.
Sendo a base da doutrina crítica o conceito do espaço e do tem-
po como coisas ideais e não como objetos reais, como intuições pu-
ras e não como existências efetivas, ainda mais, independendo a
sua existência de quaisquer pressupostos empíricos, sendo eles, por
conseguinte, transcendentais ou a priori, o que quer dizer exata-
mente a mesma coisa, o nome que o filósofo dá ao seu sistema crí-
tico corresponde ao ponto de partida, às bases ideais em que o fun-
dou.
E tanto assim é que à segunda edição de sua Crítica da razão
pura ele acrescentou uma refutação em regra do idealismo, visando
especialmentecrdeBerkeley,procurand~ssim-invali~i111ã~
do crítico Garve, que havia identificado a sua doutrina com a da-
quele filósofo inglês. Além disso, em outros pontos da sua obra
fundamental, o grande pensador é um convencido realista, no sen-
tido mais lato da palavra, isto é, como um que acha indiscutível a
direta realidade do mundo objetivo.
O realismo, porém, de orientação antiga, dogmática, não mere-
ce dele a menor indulgência: com efeito, desde que afirma que o
Universo existe em si, independentemente na nossa representação
ou apuração, ele ipso facto afirma a existência de coisas em si,
aceita o espaço e o tempo como entidades independentes do nosso
entendimento, como existências reais e objetivas, sem qualquer li-
gação com o sujeito pensante e muito menos derivando dele como
intuições a priori. Por isso mesmo o realismo, dados esses seus
pontos de vista, não pode explicar como o eu, o sujeito pensante,
independentemente do objeto, que nele não se representa, nele não
existe, pode formular-lhe a síntese e descobrir as suas leis de coe-
xistência e sucessão em determinada e necessária regularidade.
O idealismo, por outro lado, quer consideremos, na nomencla-
tura de Kant, o sonhador de Berkeley, quer tenhamos em vista o
problemático de Descartes, também não se acha de acordo com os
princípios fundamentais da filosofia crítica.
A essência do idealismo é, com efeito, considerar como única
existência diretamente certa a do sujeito pensante e derivar dela por
meio do raciocínio e, portanto, indiretamente, o conhecimento me-
diato do mundo objetivo.
O cogito ergo sum cartesiano, seguindo-se ao outro não menos
célebre aforismo, de omnibus dubito, nos mostra que o nosso co-
nhecimento do objeto só nos pode ser dado por uma série de con-
clusões ou raciocínios lógicos. A nossa ciência do mundo exterior
ao eu é um conhecimento puramente indireto, e tanto menos certo
quanto maior for a série de conclusões que houvermos de formular
para chegar até ele; aquilo que o eu intui a priori sem ser mister
recorra à experiência, apresenta pelo contrário, absoluta certeza.
Daí a concluir que o mundo objetivo, como é elaborado pelo
eu, obedece, em suas manifestações, não a regras, inerentes à sua
1 t a t ~ ~ e ~ ~ e ~ b j e t o , - d e 4 o e ~ x i - ~ ~ ~ ~ u 6 g ~ ~ ã ~ ~ o n c e i t ~ s
predeterminados, intuitivos, a priori, vai num só passo e o idealis-
mo não deixa de dá-lo.
Nos idealismos de todos os matizes, neguem ou sustentem eles
a existência de um universo objetivo, aquilo de que temos certeza
exista, são o eu e os seus conceitos. O eu, porém, existe porque
afirma a própria realidade: essa é, contudo, na linguagem de Kant
um juízo analítico que não nos pode trazer conhecimento e, pois,
não pode também servir de ponto de partida a qualquer compendia-
ção dele.
De modo que o idealismo no fundo, vendo se reduzido àquele
mero pressuposto, é obrigado a do "eu penso" tirar o conceito de
uma substância pensante, vê-se forçado, na expressão pitoresca de
Kant, a hipostasiar a autoconsciência. Destino fatal que força o idea-
lismo de qualquer espécie que seja, a recair no vício irremediável
de toda ontologia, isto é, no de inferir do simples conceito lógico a
existência efetiva do objeto, por ele significado. Sendo o seu ponto
de partida absolutamente falso à luz da doutrina crítica, ele nada
nos pode adiantar na solução dos problemas filosóficos.
Constrangido pelo seu conceito do sujeito pensante a admitir a
existência de uma substância inextensa ou imaterial, a esta vê-se
forçado a contrapor outra, material ou extensa, a qual se manifesta
à consciência como coexistência e sucessão objetivas, exteriores a
ela.
Concedida essa dualidade de substâncias, o próximo problema
que lhe cabe resolver é o do modo por que se dão as ações e rea-
ções recíprocas entre elas. Sendo, com efeito, objetos de natureza
diversa, fundamentalmente heterogêneos, não há exigir se combi-
nem diretamente uma com a outra, sem haver um terceiro termo
que leve a efeito essa combinação.
O idealismo, digamos, supõe que da atividade do mundo am-
biente receba o nosso eu, ou a alma, uma impressão que determina
a sua atividade pensante: a essa impressão Descartes denomina im-
pulso ou influxo físico
O impulso ou influxo físico será necessariamente determinado
por uma força sobrenatural, a qual só de duas maneiras concebíveis
poderá operar: ou criando a substância inextensa e a extensiva, ela
predeterminou a maneira geral e necessária por que se haviam de
realizar as ações e reações recíprocas entre elas, ações e reações
também então criadas, pelo menos potencialmente, de sorte que
i l e s t a f o ~ e l a s õ 6 e d e c e r ã oa i m m s o s existentes.de toda eteri-n
dade, ou, ao invés disso, em cada caso de ação e reação recíproca
das duas substâncias diversas intervém a força sobrenatural para
operar entre o sujeito e o objeto, entre o espírito e a matéria. A
primeira hipótese figurada encontra a sua formulação no sistema da
harmonia preestabelecida de Leibniz e a segunda no ocasionalismo
de Malebranche.
A filosofia crítica, não admitindo as soluções realistas, pelas
impossibilidades nelas contidas, não pode tão pouco ser chamada a
apoiar as conclusões do idealismo: vedam-lho severamente as anti-
nornias e os paralogismos da razão pura, por ela postos à luz tão
evidentemente.

O realismo admite a existência do mundo em si, isto é, inde-


pendentemente da nossa representação; Kant nega-lhe as bases;
mas, por outro lado, repele como única certeza imediata a existên-
cia da consciência, afirmando, pelo contrário, que o mundo objeti-
vo nos é tão diretamente certo como o subjetivo.
Destarte, ao mesmo tempo, destrói de um só golpe os funda-
mentos tanto do idealismo como do realismo. Assim é, com efeito:
os fenômenos coexistindo e sucedendo-se no espaço e no tempo e
estes não existindo objetivamente, sendo unicamente formas trans-
cendentais ou a priori do nosso entendimento, sem as quais aqueles
não poderiam ser apreendidos, é de concluir que a sua realidade
nos é tão certa quanto é certa a existência da nossa consciência.
Suprimamos o espaço e o tempo e não mais existirão fenômenos
para serem apreendidos nem consciência que os apure.
Ora, justamente neste ponto é que tanto o realismo como o
idealismo e conseqüente dualismo esbarram ante obstáculos inva-
deáveis, vendo-se obrigados a fazerem admissões que depois não
conseguem sustentar.
Se o mundo objetivo e a consciência nos são igual e imediata-
mente certos, através dos nossos moldes subjetivos a priori, não há
razão para entre eles cogitar-se de uma dualidade, de uma diferença
de essência, que nada nos leva a crer exista efetivamente. As ocor-
rências internas, não tendo extensão, se nos representam unica-
mente no tempo, e as externas e objetivas, como coisas materiais,
~ m s - p a t e n E ~ i m t i l t a ~ e m t e t l ~ ~ g p a ~ ~ ; - M a s ;
uma vez admitindo que, para o efeito de serem concatenadas e co-
ordenadas as nossas representações, há de haver, na variedade de-
las, algo que permaneça constantemente inalterado e invariável, a
substância ela forçosamente constitui o substratrum, ou fundo ú1-
timo dessas duas classes de manifestações, objetivas e subjetivas;
desde que não há dualidade de substâncias, cai outro dos pressu-
postos tanto do realismo como do idealismo. A substância, porém,
como já tivemos ocasião de desenvolver, é apenas um postulado do
pensar empírico; somos forçados a assumir a sua existência, por-
que, sem essa admissão, não se explicaria a sucessão dos fenôme-
nos no tempo e a sua coexistência no espaço; ora, empiricamente
verificamos tal coexistência e sucessão; devemos, logo, conceder
que, enquanto uns permanecem, outros fenômenos desaparecem e
se sucedem; já verificamos que, se tudo variasse simultaneamente e
nada permanecesse, nada poderia ser apurado e coordenado, o que
evidentemente contraria a nossa verificação empírica; o mesmo te-
ria de acontecer se tudo permanecesse e nada variasse. A invariabi-
lidade de um substratum é, pois, de se admitir apodítica ou neces-
sariamente.
Ao mesmo tempo, porém, que aceitamos o conceito de uma
substância, nos devemos cautelosamente guardar de lhe atribuir
uma compreensão mais lata do que realmente ela comporta. Somos
advertidos, além disso, de que ela não é mais do que a expressão
daquilo que nos fenômenos permanece como fundo inalterável; ca-
racterísticos positivos não lhe poderemos dar nenhum, pois que só
a conhecemos pelos resultados de sua atividade, isto é, na sucessão
e coexistência: a substância é uma admissão da razão pura, e uma
condição a priori da experiência, é um puro conceito do entendi-
mento.

A filosofia crítica deixa, pois, longe atrás de si tanto o realismo


como o idealismo e o dualismo. Desde que não esposa as bases de
qualquer desses sistemas, será o caso de classificá-la entre os empi-
rismos, como quer a maioria dos neokantianos? Também não, ao
nosso ver.
O empirismo, por sua natureza, não admite outra existência
além dos objetos da experiência, aceita os como se nos apresentam,
para,não-procurandoestudar-lhesa~onsatenação-n~essepensa-
mento, o que julga impossível, apurar-lhes apenas a regularidade
externa de suas manifestações. É evidente, com efeito, que, nada
aceitando além da experiência, não pode admitir qualquer coisa que
lhe seja anterior ou dela independente.
É a grande questão dos juízos sintéticos a priori, que funda-
mentalmente separa a filosofia crítica do empirismo; aquela os ad-
mite, provando a existência de um conhecimento, inteiramente in-
dependente da experiência e dela formando a base; o empirismo,
pelo contrário, nega a existência de tal conhecimento, só aceitando
a existência de juízos sintéticos a posteriori, isto é, derivados da
experiência, nela encontrando todo o seu fundamento.
Desta forma o empirismo ou tem de explicar o modo por que se
faz a apuração dos dados da experiência pelo sujeito pensante,
como ela nasce, como se origina ou então, inevitavelmente, renun-
ciando a essa pesquisa, como tentâmen baldado, acabará no mais
completo e desanimado cepticismo.
Locke e Hume, os dois célebres filósofos britânicos, são os re-
presentantes mais característicos destas duas tendências sucessivas.
O ponto fundamental da doutrina de Locke está em que todos
os nossos conceitos (idéias) são adquiridos pelos sentidos, não são
inatos, derivam da experiência. Como os sentidos conseguiram,
para usarmos das expressões da antiga psicologia, a sua especial
faculdade ou predisposição para apurar a experiência, é o que ele
não se mostra capaz de nos explicar. Nem tão pouco pode fazê-lo,
evidentemente; porque, sendo na sua opinião o espaço e o tempo
também conceitos empíricos, derivam igualmente da experiência
tão só, são por ela condicionados e jamais, pelo contrário, a pode-
rão condicionar, visto que o seu caráter empírico os faz sempre a
posteriori e nunca a priori.
Para Hume, que compreendeu as duras dificuldades em que de-
via sucumbir o empirismo, o caminho a seguir foi justamente o que
indicamos, isto é, ele conclui pelo cepticismo absoluto,
Os nossos juízos cognoscitivos são também para ele os sintéti-
cos a posteriori, isto é, os que provêm da experiência e nela têm a
sua base inteira; como esta, porém, não possui uma faculdade de se
apurar, de se concatenar, de se elaborar a si mesma, obtendo uma
síntese dos seus objetos que pudesse valer geral e necessariamente,
seria preciso, para realizar esse desideratum, tivesse o poder de
formular j u i z ~ é t i c o as priori, os quais, se sobrepondÕâCiiGS
sas apreensões empíricas, as subordinassem a conceitos geral e ne-
cessariamente válidos.
Isso para o filósofo escocês se lhe afigurava impossível, pois
que os únicos juízos que têm validade a priori, os da matemática,
são, na sua opinião, puramente analíticos; todos os outros desta
natureza contêm afirmações que, longe de serem confirmadas pela
experiência, a contradizem radical e absolutamente. Destarte as
nossas generalizações, não tendo um fundamento que Ihes dê certe-
za objetiva, não são mais do que ilusões do nosso entendimento.
Levados por essa ilusão, julgamos ver na sucessão dos fenôme-
nos uma ordem e regularidade que são, entretanto, puramente apa-
rentes, não existem como fundo das coisas e não podem, portanto,
dar lugar a qualquer compendiação da experiência, geral e necessa-
riamente válida.
Já vimos como Hume pretende não ser a lei da causalidade
mais do que um hábito espiritual, em virtude do qual a sucessão
constante dos fenômenos se nos apresenta como um elo contínuo
entre eles.
Estabelecido assim o critério do empirismo e do seu sucessor
necessário, o cepticismo, vê-se logo que a filosofia crítica procura a
solução do problema do conhecimento, partindo justamente do
ponto em que eles, desanimados, pararam.
Descobrindo juízos sintéticos a priori, demonstrando como as
nossas intuições puras, as formas a priori do entendimento, fazem
nascer as categorias, permitindo-nos formemos afirmações apodíti-
cas acerca da qualidade, quantidade, relação e modalidade dos ob-
jetos empíricos, ela nos dá ensejo a formularmos dos fenômenos
uma síntese geral e necessária, a determinarmos a ordem e regula-
ridade de suas manifestações.
A síntese formulada tem, entretanto, limites; ela não pode
transcender daquilo que nos é representado no espaço e no tempo,
do que nós exprimimos em termos de coexistência e sucessão.
Como tudo que apreendemos no espaço e no tempo é objeto da ex-
periência, segue-se que somente do mundo empírico nos é dado ter
conhecimento. A razão, entretanto, possui, como vimos, a faculda-
de de formular juízos sintéticos a priori; logo, sendo-lhe possível
abusar dessa faculdade, ela pretenderá evidentemente conhecer o
que não está no espaço e no tempo. Esse abuso da razão pura expli-
ca-se naturalmente pelo fato de sermos forçados a pensar, por opo-
sição lógica, no mundo noúmenal contrapondo-se ao dos fenôme-
nos, no universo das coisas em si como oposto ao das nossas repre-
sentações. As coisas em si, pensáveis, inteligíveis, nunca poderão
ser matéria do conhecimento, constituindo puros entes de razão,
sem ligação com a experiência, e aos quais se pode dar uma aplica-
ção prática, mas nunca um significado teórico-cognoscitivo.
Ora, nós somos forçados a admitir as categorias como juízos
sintéticos a priori, justamente porque, sem elas, não poderíamos
cogitar da possibilidade da experiência: é um ponto que já deixa-
mos suficientemente explanado para não mais termos de voltar a
ele. Com outros juízos sintéticos da razão pura, entretanto, não têm
essa aplicação empírica, e é por isso flagrante a sua ilegitimidade.
O noúmenon ou a coisa em si tem para Kant duas significações,
positiva uma e a outra negativa. Esta indica o limite da experiência,
além do qual não se deve a razão aventurar, sob pena de não mais
poder formar conceitos que tenham realmente validade objetiva. A
significação positiva do noúmenon está, porém, no seu conceito de
idéia, mais ou menos análogo à idéia platônica, formando um ar-
quétipo, uma meta que a razão, embora certa de o não poder conse-
gui-inuamente se esforça por alcançar.
Para uns comentadores de Kant, não tem existência real a coisa
em si; para outros, pelo contrário, o filósofo afirma tal existência.
Examinemos, por nossa vez, já que sobre este ponto há divergên-
cias que precisam ser esclarecidas, mais detidamente as duas signi-
ficações, positiva e negativa, do noúmenon. Negativamente consi-
derado, isto é, como indicando o limite da experiência, o qual não
pode ser atingido, porque, para nós, ela não tem fim, a coisa em si
não existe para o nosso conhecimento e, por isso mesmo, só se po-
deria afirmar qualquer realidade nela, se do fato de admitirmos e
pensarmos como reais o condicionado e o relativo e de lhes afir-
marmos a existência, houvermos de inferir a realidade efetiva do
absoluto e do incondicionado. Logicamente, o condicionado e o
relativo implicam sempre o absoluto e o incondicionado.
Nós já vimos, porém, que o conceito de uma coisa não prova a
sua existência, que esta não é, em outros termos, um predicado ne-
cessário do conceito; a existência só nô-la pode afirmar a experiên-
cia. Desde que esta só conhece o relativo e o contingente aquilo
que não tem condições, que não se representa no espaço e no tem-
po, não existe, ainda que possa ser pensado de um ponto de vista
puramente lógico. Considerada por esta forma a coisa em si é uma
não-existência, uma não-entidade, a qual se pode afoitamente afir-
mar carece de realidade.
Olhado, porém, do seu ponto de vista positivo, isto é, como
idéia, como meta, como termo final a que tende a nossa razão em
busca da unidade na apuração das ocorrências no cosmos e na
consciência, tentando enfeixá-las em um sistema unitário, final e
absoluto, a coisa em si, o noúmenon, tem uma realidade, mas pu-
ramente ideal e subjetiva: é a expressão de um ideal de unidade a
que nunca poderemos atingir, por mais perfeita e completa que
imaginemos a nossa ciência.
Se não nos é lícito, assim, conceber a coisa em si como repre-
sentação da nossa sensibilidade, o seu conceito e o postulado da
sua realidade como condição reguladora do entendimento é coisa
que não poderemos deixar de aceitar e admitir: mas essa realidade,
puramente subjetiva, não se deve transportar para o mundo objeti-
vo, sob pena de, tal acontecendo, transpormos os limites da experi-
ência e entrarmos no domínio da ontologia, no império dos con-
ceitos puros em que as construções do dogmatismo se amontoarão
a perder m i s t a umas sobre as outras.
Se a unidade do universo só existe na nossa consciência, e isso
mesmo como idéia, como meta a realizar, como fim impossível de
se atingir, é bem de concluir que as bases da filosofia crítica não
admitem se cogite de uma unidade objetiva, de um princípio único
do qual derivam todas as variadas transformações que se nos repre-
sentam no universo.
Nem se diga que a substância que permanece inalterável, em
todas as coexistências e sucessões no cosmos, é esse princípio úni-
co, à cata do qual todos os monismos acendem a lanterna de Dió-
genes.

Ou sobre a substância, com efeito, se pensa como Spinoza ou


se julga como Kant. Segundo aquele filósofo, a substância é aquilo
que de si próprio deriva a existência, que é causa sui, e de que to-
das as outras existências tomam origem. A substância de Spinoza
existe por definição, pelo fato de se lhe estabelecer o conceito lógi-
co: a sua realidade é sempre o mesmo postulado da ontologia, a que
já tantas vezes tivemos ocasião de nos referir, e o qual, posto o
conceito, conclui pela realidade do objeto dele.
Logo, a substância, no sentido spinozista, precisa que a experi-
ência sobre ela se pronuncie, isto é, diga se ela realmente existe.
Mas esta não encontrou nunca existências que por si mesmas se
criassem, que sejam causa sui. Por conseguinte, não existe a subs-
tância, definida por Spinoza.
A substância kantiana, basta ver o modo de sua determinação, é
um conceito totalmente diverso da spinozista; é aquele fundo ou
substratum que, permanecendo constante em cada fenômeno, nos
permite determinar a sua coexistência e sucessão. E, portanto, uma
condição a priori para que se nos manifestem os fenômenos, é um
puro conceito do entendimento, é um juízo sintético a priori. A
única afirmação que sobre ela poderemos fazer, é que permanecerá
enquanto durar a experiência e, como a esta não nos é dado conhe-
cer fim, ela igualmente não o tem.
A unidade dos objetos da experiência não está por outro lado,
em qualquer coisa a eles inerente, mas resulta dajGdade sintética-
- -

da nossa apercepção, daconsciência do sujeito que formula juízos,


apuradores da ordem e regularidade das várias manifestações fe-
nomenais.
A unidade, existente no sujeito pensante, a qual é a única de
que podemos cogitar no campo da experiência, não é, portanto, um
princípio cósmico, e, ainda que pudéssemos sustentar com bons
fundamentos que a filosofia crítica identifica aquele substratum
permanente, por nós chamado substância, com o sujeito que for-
mula juízos, não podemos ter dúvidas de que tal identificação nada
nos adianta nem para a determinação nem para a afirmação de um
princípio de unidade absoluta e objetiva dos fenômenos.
Essa unidade pode ser por nós pensada como devendo existir;
mas nunca será possível estabelecê-la como princípio sistemático,
como fundo essencial e originário das coisas. Se por acaso, admi-
tíssemos o contrário, teríamos apelado para o incondicionado, para
a substância de Spinoza, criadora de si mesma, causa sui, teríamos
promovido o ressurgimento da ontologia, visto que seríamos forço-
samente obrigados a apelar para um princípio, uma causa primeira,
absolutamente incondicionada e necessária.
Quer o panteísmo identifique a substância com Deus, quer o
monismo mecanista lhe outorgue a faculdade criadora, quer o te-
leológico lhe suponha uma atividade consciente de seus fins, o fato
é que qualquer doutrina que pressuponha um princípio único a to-
das as coisas e procure determiná-lo, transcende da experiência e
não se justifica, conseguintemente, do ponto de vista crítico.
É certo que a filosofia crítica não repele o conceito da unidade
fenomenal; aceita-o, porém, apenas como um fim impossível de se
atingir, um postulado da razão em busca da completa sistematiza-
ção do conhecimento, em procura de um princípio único regulador
das nossas representações. Essa unidade, como idéia da razão, não
podendo ser atingida empiricamente, nunca será completa a nossa
ciência, pois que sempre lhe hão de faltar os primeiros elos na sua
concatenação dos fenômenos e, portanto, jamais haverá uma uni-
dade final, absoluta, necessária que os condicione a todos e deles
seja a origem incondicionada - causa sui.
Não se justificando o panteísmo nem o monismo, que é uma
derivação do primeiro, quer como fato objetivo, quer como siste-
matização efetivamente v á ~ l e v a d a efeito pela nossa razao, da
subordinação dos fenômenos a um único princípio absoluto, mas
apenas como idéia da razão pura, a sua aceitação como princípio
das coisas, dependerá, em vista disso, do juízo que houvermos de
fazer sobre a admissibilidade da metafísica do supra-sensível ou do
conhecimento hiperfísico.

O conhecimento hiperfísico, não dependendo da experiência,


só poderá ser pensado como alcançando-o a razão por meio de con-
ceitos puros que postulem a admissão a priori da existência, neles
suposta. A razão, ao proceder desta sorte, não se poderá, entretanto,
desvencilhar da experiência para, analogicamente ao que sobre ela
apura, postular os seus conceitos nos domínios da hiperfísica: este
é o único ponto de partida racional e aceitável que poderemos con-
ceder à metafísica do supra-sensível. Ela só poderá ter uma realida-
de hipotética se tomar a experiência como ponto de partida. Ora, a
experiência em seu longo desenvolvimento, apura a sucessão dos
fenômenos como inteiramente relativos, dependentes, limitados re-
ciprocamente; não encontra nunca o incondicionado, o absoluto, o
infinito em seu caminho. Se não nos é lícito supor, por um mo-
mento sequer, que a sua apuração se faça em outros termos que não
os indicados, a analogia nos leva a admitir, para o mundo do in-
condicionado e do infinito, a ilimitabilidade ou infinidade do mun-
do, a cadeia intérmina da causalidade, a infinita concatenação das
existências. Essa admissão, entretanto, embora pareça ter as suas
raízes na experiência, encerra mais elementos do que esta tem efe-
tivamente e que dela não podem decorrer; pois é evidente que, para
aceitarmos como infinita a ordem e regularidade dos objetos empí-
ricos, necessário seria que levássemos a experiência até ao infinito,
o que é impossível. A razão, porém, não pode nem mesmo assegu-
rar ser infinita a experiência; o que é lícito afirmar é tão somente
que ela para nós não tem fim. Mas que ela, necessariamente, seja
infinita redundaria na aceitação dos seus objetos como noúmena,
como coisas em si, e não como fenômenos, como nossas represen-
tações.
Se, por outro lado, o processo analógico nos permite, da admis-
são de que toda manifestação cósmica tem uma origem, cada efeito
- u m i ~ ~ s t ê m elas, ~ s ~ ~ ã ~ ~ ~
como termo final, encontraram as suas causas e condições absolu-
tas e originárias, estas deveriam, por finais, ser necessária e abso-
lutamente independentes de quaisquer outras que lhes supusésse-
mos anteriores e condicionando-as.
Aí, porém, ter-se-ia o processo analógico aventurado além do
que lhe fora lícito fazê-lo; porque teríamos saltado, sem transição,
do relativo para o absoluto, do condicionado para o incondiciona-
do, do necessariamente limitado para o absolutamente necessário,
conceitos que a experiência de forma alguma nos permite formar.
As antinomias da razão pura, as proposições contraditórias, por
ela sustentadas, em conflito consigo mesma, quando pretende
abandonar o mundo da sensibilidade para penetrar no dos conceitos
puros, provam a impossibilidade da metafísica do supra-sensível. A
filosofia crítica que desvendou e refutou as antinomias coerente-
mente rejeita tal metafísica.
Será ela, porém, contrária a toda metafísica? Sobre este ponto
há divergência de opiniões, sendo, entretanto, noção vulgar e cor-
rente a que faz Kant passar pelo destruidor de toda metafísica. A
opinião vulgar não é, entretanto, exata; com efeito, destruindo a
antiga dogmática, o grande filósofo teve em vista criar uma nova
metafísica, de acordo com as bases que lhe estabelecera na Crítica
da razão pura, a qual, destarte, deve ser considerada como seu in-
tróito necessário. Tanto assim é que a exposição de sua doutrina,
sob forma didática, intitula-se Prolegômenos a qualquer metafsica
futura que se quiser apresentar como ciência. O seu esforço con-
vergirá todo, pois, no sentido de converter em ciência a metafísica,
de lhe dar bases tão sólidas quanto as da matemática, a mais exata
de todas as ciências. O ponto de partida dessa nova metafísica será,
na verdade, totalmente diverso do da antiga, os seus problemas se-
rão outros, o seu campo muito mais restrito, e inteiramente dife-
rente o seu método, de sorte que também radicalmente outras serão
as conclusões a que deverá chegar.

§ 73
A metafísica pretende determinar a ordem na natureza, partindo
de certos pressupostos a priori, dos quais, como conseqüência ne-
cessária, decorram as condições do ser e da existência. Como tenha
o mais arraigado desprezo pela experiência, cujas conclusões lhe
f3âr~e~rosseirase~e~eordenaç4o+~e4e~fpio~b-
solutos, puros, não dados ou condicionados pela experiência, para,
por intermédio deles, em escala descendente, estabelecer o condi-
cionamento das ocorrências, tanto internas como externas. E, já que
a chave de suas deduções se encontra num absoluto princípio das
coisas, ela toma como ponto de partida a admissão de uma existên-
cia que nos é intuitivamente certa, que não deriva de qualquer ou-
tra, cujo conceito, o do conjunto de todas as realidades possíveis, a
pressupõe apoditicamente. Dela decorrem, desdobrando-se conse-
qüentemente do seu conceito fundamental, todas as outras existên-
cias, contingentes e passageiras, ao passo que ela é a única eterna e
absoluta.
Como espírito, como inteligência e como vontade, não pode ser
conhecida diretamente senão pelo nosso próprio espírito, o qual,
assim se há de supor necessariamente de natureza semelhante à
dela.
Desta forma, do conceito do ente absoluto decorrem dedutiva e
necessariamente todos os outros conceitos que já estudamos nas
idéias da psicologia, cosmologia e teologia racionais.
Com esta base, o dogmatismo forçosamente tem de concluir
que as nossas intuições a priori, o nosso conhecimento da existên-
cia absoluta, sendo rigorosa e inevitavelmente necessário, nos de-
vem dar um conhecimento perfeito do universo, nos permitem pe-
netrar confiadamente nos seus mistérios e afoitamente solver os
seus enigmas. Basta para isso que tomemos um ponto de partida
exato e lhe desenvolvamos, dedutivamente, as conseqüências.
O método ideal da metafísica dogmática é, portanto, o que em-
pregou Spinoza, o qual, more geometrico, do conceito da substân-
cia, por ele estabelecido, deriva todo o seu sistema de filosofia.
A substância desse filósofo, sendo aquilo de que derivam todas
as manifestações no universo, subordina ao próprio conceito e faz
dele decorrer assim as nossas ocorrências internas como os objetos
externos à consciência: todas elas são atributos e modos da subs-
tância. O intelecto a conhece adequadamente, quando a considera
sub specie ~ t e r n i ;e inadequadamente, quando, sem referi-los ao
conceito máximo, procura determinar a coordenação, puramente
aparente ou representativa, desses atributos e modos no nosso espí-
rito.
Malebranche, que deriva os seus pressupostos do cartesianis-
mo, expressa as mesmas idéias no aforismo que ficou célebre de
que2nÓsvemos_todasa~c~isa~~Beup"querend~~~
significar que a visão final e exata das coisas ou do cosmos só nos
pode ser dada dedutivamente, inferindo-a do conceito, que hou-
vermos determinado, da causa primeira e absolutamente real.
Leibniz, por seu lado, afirma que o intelecto, independente-
mente da sensibilidade, conhece as coisas como elas são, ao passo
que esta, perturbando-as e obscurecendo-as, faz-nos vê-las de uma
maneira confusa e incompatível com o seu conhecimento preciso e
necessário; a conseqüência é que o entendimento deverá formar os
seus conceitos, independentemente de quaisquer dados empíricos,
a priori, portanto, para depois fazer que estes, subordinando-se
àqueles, com eles busquem a sua conformidade.
Os processos do antigo dogmatismo estão, pois, patentes: a sua
metafísica é ontologia, os seus conceitos básicos são a priori, são
tais que da sua afirmação se deve inferir a existência dos seus ob-
jetos, aplicando-se, por via de subordinação, aos dados da experi-
ência.
O seu ponto de partida é sintético, o seu método é o dedutivo e
o seu objeto é a metafísica das coisas em si, isto é, o conhecimento,
por intermédio da razão, dos últimos elementos das coisas daquilo
que transcende do espaço e do tempo, da causalidade absoluta, en-
fim.
No mundo da experiência, a única ciência cujo processo é fun-
damentalmente dedutivo, partindo de conceitos sintéticos a priori,
é a matemática, e, como as suas proposições são apoditicamente
certas, não se lhes podendo opor contestação válida, julgou a meta-
física do supra-sensível que, usando de método idêntico, poderia
reivindicar para os seus princípios igual certeza.
Os princípios, postulados, definições, axiomas da matemática
diferem, porém, dos da metafísica no fato essencial de se poderem
tornar sensíveis, de serem susceptíveis de construção e capazes de
se representarem no espaço e no tempo. Embora os crie a priori a
razão pura, a posteriori confirma-os a experiência.
O mesmo, contudo, não se dá com os princípios da metafísica,
os quais, criados a priori recusam toda e qualquer verificação da
experiência, que desprezam figadalmente. De modo que, tratando-
se de princípios antagônicos, os da metafísica do supra-sensível e
os da matemática pura, uns ou outros devem ser falsos nos seus
fundamentos a priori. A matemática é, porém, como vimos, con-
firmadaqela experiência, ao passo queametafísica supra-sensível
- -

não está de acordo com ela. De que lado nos havemos de colocar?
Não sendo a nossa atitude, neste assunto, uma questão de senti-
mento, mas da validade do nosso conhecimento, forçoso nos é re-
pelir a metafísica do supra-sensível e aceitar a matemática.

A filosofia crítica procede exatamente pelo caminho contrário


ao dogmatismo: parte da experiência, analisa o seu conteúdo, de-
compõe os nossos conceitos em seus elementos últimos, procuran-
do distinguir os puramente empíricos dos intelectuais. Finalmente,
tendo chegado a este ponto, verifica quais desses elementos colhem
origem numa ou noutra dessas faculdades, a sensibilidade e o en-
tendimento, quais são sensíveis, quais puramente intelectuais. Fei-
to, isto, examina se há um fundo intelectual a priori, originário de
toda experiência, pressuposto independente dela e sem o qual ela
não teria existência.
Determinado esse fundo a priori; a razão, ao mesmo tempo,
estabelece as formas essenciais, a priori, as intuições puras dentro
das quais se amoldam os nossos juízos, e das quais deduz as cate-
gorias, marcando os estritos limites de sua aplicação. Em seguida,
demonstra a maneira por que se realiza a síntese, de que modo o
entendimento apura a ordem e regularidade dos fenômenos como
coexistência e sucessão. As formas a priori do entendimento, con-
dição indispensável para que se realize essa apuração válida, são, já
o sabemos, unicamente o espaço e o tempo. Tudo que neles, se re-
presenta é susceptível de conhecimento; tudo que delas transcende
não o é.
Ora, a razão pura tem uma tendência irresistível, ditada pelo
próprio fato de poder formular juízos sintéticos a priori e, ainda
mais, de serem postos limites à sua atividade, de transcender desses
limites.
A sua aspiração constante é, à semelhança daqueles que são
aplicáveis à experiência, formular outros juízos sintéticos a priori
acerca do que nela não se inclui nem dela pode ser objeto. Esses
juízos, os da psicologia, cosmologia e teologia racionais, são, pois,
ilegítimos e não têm validade.
A metafísica da coisa em si, pretendendo nos dar conhecimento
da essência, em vez do da aparência, não existe, portanto, como
~iência~~metafísisa,conseguin~mente~g_q~i~emo~w11~e~var~
lhe essa antiga denominação, só se poderá admitir como ciência
quando trate de determinar os elementos últimos do conhecimento,
de Ihes estabelecer a validade e a existência a priori, assim como a
sua aplicação para a apuração da ordem e regularidade das ocor-
rências empíricas.
É esse o ponto de vista em que se coloca Kant, o qual assim
funda a metafísica sobre novas bases: como ciência ela estuda os
limites do conhecimento, e elabora a concatenação dos fenômenos,
apura os elementos do condicionado, como nos são representados
nos puros conceitos do entendimento ou categorias.
Com estes limites estreitos e aceitáveis a metafísica é uma
ciência, o estudo dos limites do conhecimento e dos seus elementos
teóricos; fora deles, é unicamente um devaneio que nos pode con-
duzir às mais incomensuráveis alturas, do qual, porém, não se tira
uma parcela sequer de conhecimento real e efetivo.
CAPÍTULO XIX

MECANISMO E TELEOLOGIA

A nossa atividade racional não se limita, já o sabemos, ao sim-


ples domínio do conhecimento; além desse, temos de considerar as
esferas da fé e da ação. A metafísica do supra-sensível, desde que
não nos possa dar um sistema especulativo válido de conceitos pu-
ros, sem aplicação à experiência, será quiçá possível fornecê-los à
nossa atividade prática, de modo a alcançar que esta, para nos fazer
conseguir determinados fins, atingir uma dada meta, postule a
existência desses conceitos, ainda que os não possa provar.
Ora, a razão pura teórica só formula juízos sintéticos a priori
dentro de suas formas (intuições puras) subjetivas, o espaço e o
tempo; a razão pura prática, no intuito de dar efetividade às exigên-
cias teleológicas de nossa atividade, não se pode contentar com este
ponto de vista limitado e formula juízoS sintéticos a priori, inde-
pendentes do espaço e do tempo.
O conceito de meta, de fim a realizar, não é, evidentemente, um
princípio objetivo que devamos supor inerente ou constitutivo dos
fenômenos cuja apuração realizamos no espaço e no tempo; nós é
que, ao lhes observarmos a ordem e regularidade em suas coexis-
tências e sucessões, à noção de causalidade mecânica ou natural,
única que nos é dado conhecer dentro dos limites da experiência,
acrescentamos a idéia de um ser, o qual, sendo a causa última de
toda a natureza, dirige-a, analogamente ao que fazemos, de acordo
com fins que a inteligência absoluta preestabeleceu.
Se admitirmos com Kant que o mecanismo puro não é sufici-
ente para nos ajudar na concatenação e na síntese dos fenômenos,
que a explanação sistemática do mundo da representação não pode
ser suficientemente levada a termo com as sós causas eficientes, e
necessariamente tal acontece, quando se considera a matéria orga-
nizada, aquilo que por geração procede de outro ente semelhante,
parecendo, portanto, obedecer a um plano que lhe ditou a forma, a
i d é ~ e l e o ~ i e c t é ~ ~ ~ l - e o m r e g ~ 1 a b e r i t e - a u - x i 1co-
iader~
nhecimento.
A sistematização da ciência dela se serve como de uma diretriz
para, de certo modo, com o seu auxilio determinar a sucessão dos
gêneros e espécies, nos seus elementos característicos e nas suas
particulares aptidões. Não se podem considerar esses diversos gê-
neros e espécies sem haver determinado a soma dos caracteres co-
muns dos indivíduos, a eles pertencentes; nada mais natural, pois,
que a representação desses caracteres genéricos nos dê o conceito
de uma forma abstrata, como inevitavelmente acontece; que a essa
forma atribuamos uma existência que ela não tem; que, em seguida,
suponhamos que, em lugar das ações puramente mecânicas exis-
tentes no universo, no mundo da experiência, essa forma foi criada
a fim de a ela se adaptarem todos os possíveis indivíduos da mesma
espécie; que, por fim, esses indivíduos não existissem também se-
não para preencher certos fins, ou subordinando-se e satisfazendo
às necessidades de espécies mais elevadas, ou contribuindo para a
total e completa harmonia do cosmos.
O antropocentrismo, em virtude do qual tudo que existe foi
feito para servir à utilidade ou prazer do homem é a expressão mais
exagerada do teleologismo grosseiro; com ele não nos devemos
ocupar.
A teleologia que nos merece atenção é a que deriva da ordem e
regularidade do universo, parecendo que a ele preside uma inteli-
gência formadora, ditando as leis de sua criação e desenvolvimen-
to.
O puro mecanismo, admitindo unicamente as causas eficientes,
encontra na natureza ações mecânicas somente, distribuições de
força e matéria que criam as variadas formas do mundo orgânico e
inorgânico. Se com ele quisermos concordar, se o conceito de tele-
ologia repugna absolutamente ao nosso intelecto, nós, na aparente e
exclusiva causalidade mecânica no universo, devemos reconhecer
uma lei reguladora de sua necessidade, ou então, não a aceitando,
seremos forçados a confessar que não pode haver coordenação da
experiência, visto que, sem um princípio diretivo, não nos é possí-
vel dela fazer a síntese.
Ora, o conceito de lei, se tem alguma significação, é teleológi-
co e subjetivo. Não nos é lícito, com efeito, supor uma lei ao mun-
h
ao aos fenomenos, sem ao mesmo tempo concod% 1-
determinando uma regularidade nas manifestações deles, tem-lhes
prefixado uma meta. Se pois, a causalidade puramente mecânica ou
natural deve ser objetivamente determinada e rigorosamente neces-
sária nos fenômenos, ela deve ser qualquer coisa inerente a eles,
uma qualidade ou atribuição natural deles e neste sentido podere-
mos dizer que a causalidade mecânica não obedece a leis, visto que
não depende da nossa apuração e coordenação subjetiva; mas então
não se vê igualmente em que princípios funda o mecanismo a expe-
riência.
Como mecanismo e teleologia se repelem na explicação do
universo, e ambos não podem ser simultaneamente exatos, por par-
tirem de princípios contraditórios, teremos de examinar qual dos
dois é valido em relação ao nosso conhecimento.

Se nem um nem outro pode ter qualquer validade objetiva, se-


remos forçados a concluir que tanto as regularidades, postas em
evidência pelo mecanismo, como as que resultam da consideração
da ordem e da harmonia na natureza, são generalizações puramente
subjetivas da nossa razão, à procura de um critério para a sistemati-
zação científica.
As leis, pois, de recorrência mecânica, de redistribuição da for-
ça e matéria no universo, como leis, isto é, como generalizações
puramente subjetivas que formamos, não são, em seu fundo último,
generalizações de natureza e procedência diversa das da teleologia.
Resta saber se elas, como explicação, são suficientes para nos
permitir sistematizarmos, correta e integralmente, o nosso conhe-
cimento dos fenômenos, mostrando que, dentro da explanação me-
cânica, se enquadram todas as variadas formas que eles nos apre-
sentam.
Kant sustenta que não, ele que foi o primeiro autor da audaz
hipótese de aclarar a origem do cosmos, atribuindo-a a causas pu-
ramente mecânicas, guiado pelo fio condutor das descobertas
newtonianas, e precedendo de cinqüenta anos a Laplace na dedução
de sua teoria cosmogônica, é ele quem nos afirma que, para expli-
car o nascimento de uma simples haste de grama com a pura cau-
salidade mecânica, jamais se encontrará um Newton.
A nossa reflexão, por isso, quando considera o mundo orgâni-
co, aquele que nos ostenta o fenômeno da vida, inevitavelmente
t e m g m q b z z ~ u ~ d ~ ~ s e n % r - q ~
coisa mais. Como o puro mecanismo ou a simples causalidade na-
tural não é suficiente para nos oferecer uma cabal explicação das
variadas formas da vida, compreendendo estas as ocorrências da
consciência, nós somos forçados a concebê-las como decorrentes
de uma causa que lhes haja dado origem, não simplesmente mecâ-
nica, mas inteligente, livre e consciente. Sendo essa causa primeira
dotada dos mencionados atributos, é de concluir que o cosmos não
procede de um cego acaso, que a causa primeira, ao desenvolver a
sua atividade, organizou-o de acordo com uma forma que concebe-
ra, com uma meta que prefixara, com um fim a que de antemão o
predestinara.
Assim, a consideração dos fenômenos de organização, repelin-
do o mecanismo puro, inevitável e necessariamente nos arrasta para
o campo da teleologia.
O problema não fica, porém, resolvido, como poderia parecer à
primeira vista, com estas simples considerações; porque o enten-
dimento, agindo como faculdade cognoscitiva, não pode ultrapassar
as causas mecânicas e não pode apurar as manifestações fenome-
nais senão como coexistências e sucessões delas. De sorte que ao
entendimento não lhe é lícito transpor os limites dessa causalidade
natural para assumir a existência de uma causa primeira, consciente
de seus fins.
Tanto quanto nos guia o fio da experiência, o que domina ex-
clusivamente é o mecanismo, ainda que as suas causas eficientes
não alcancem para nos explicar um resto em grande parte dos fe-
nômenos no cosmos e na consciência; o que o mecanismo não pode
explanar não existe para o nosso conhecimento; de onde se conclui
que está fora da ciência todo o grande domínio que não é abrangido
pela causalidade mecânica.
Como, além do nosso conhecimento teórico, há entretanto, a
considerar o domínio da nossa atividade prática, vejamos qual va-
lor pode ter para nós a teleologia, que somos forçados a postular
como necessariamente existindo no sujeito pensante, em vista da
limitação ou contingência do nosso conhecimento.
A teleologia, assim, só pode ter o valor de um princípio direti-
vo e regulador da nossa mente, de uma ficção, consciente ou in-
consciente da mz%oopnra, em Mqmi--
so, como se a sua regularidade, que nada nos garante não seja tão
somente ilusória e aparente, fosse resultado de um plano preesta-
belecido, de uma meta de antemão indicada, um fito, a que geral e
necessariamente deverão tender todas as coisas. Unicamente desta
forma nos será dado obtermos uma concepção do Universo válida,
porém só subjetivamente, em que, numa unidade sistemática, aos
puros elementos cognoscitivos adicionaremos os que determinam a
nossa atividade prática e os que formam o alicerce da nossa fé.
Destarte, ainda que empiricamente, não verifiquemos senão
causas mecânicas no Universo, e unicamente delas possamos ter
conhecimento, enchemos as lacunas que nos deixam elas na procu-
ra da unidade pela qual anelamos - unidade que, evidentemente, só
pode ter um valor subjetivo - com os conceitos teleológicos, os
quais a reflexão nos mostra necessários, como guia da nossa ativida-
de, para dar a esse desejo de unidade sistemática uma realização
efetiva.
A teleologia é ainda, segundo Kant, uma condição essencial
para que nos reconheçamos com a faculdade de dirigir os nossos
atos segundo fins que nos são ditados pela lei moral. Já sabemos
que, na doutrina kantiana, a lei moral não é resultado de quaisquer
princípios, estabelecidos pela razão pura teórica, mas sim um pro-
duto da razão pura prática, a qual usando de sua faculdade de for-
mular juízos sintéticos a priori, postula no campo da ética, para
que se possa dar às nossas ações uma direção moralmente (não me-
canicamente) obrigatória, a liberdade, no sentido transcendental, a
existência de Deus e a imortalidade da alma. Ora, tudo isso traz
como resultado uma teleologia, cuja matéria é dada pela atividade
moral necessária do homem.

O ponto de vista teleológico é, conseqüentemente a tudo quanto


deixamos exposto, não um dado da experiência, a qual só nos apre-
senta causas mecânicas, eficientes, mas uma nossa condição subje-
tiva, um postulado da razão, empregando as suas faculdades refle-
xivas em busca da inatingível unidade do mundo, da sistematiza-
ção, sempre tentada, dos nossos conceitos das causas em um prin-
cípio fundamental, único e necessariamente válido.
Como determinativa do nosso conhecimento a teleologia não
pode, de acordo com as bases mais certamente estabelecidas da fi-
l o s o f ~ t i e ~ o m ó s a et ae ;i ~ m 6 x i m a ~ i ç t o - é , e o m ~
cípio diretivo do conhecimento, assumindo, por exemplo, que a
natureza escolhe sempre a solução mais fácil e mais curta, que nem
dá saltos nem oferece lacunas, que a sua grande variedade se resol-
ve em uma unidade de poucos princípios, a teleologia obedece, de-
rivando-se dela, a uma evidente necessidade subjetiva de abran-
germos o cosmos em uma unidade sistemática.
A teleologia pressupõe, porém, uma atividade livre e um prin-
cípio inteligente das coisas; pois não se pode admitir um fim, cons-
cientemente buscado, sem que a atividade que o preestabeleceu e
que procura atingi-lo não tenha os requisitos, necessários para uma
e outra cousa.
Do que fica exposto, faz-se lícito concluir que a teleologia,
aplicada ao mundo objetivo, é uma analogia, avançada pela nossa
consciência, que tenta considerar como inerentes à natureza do
mundo objetivo as suas próprias impressões, isto é, como se ha-
vendo em relação aos fenômenos que verificamos se sucederem
mecanicamente, impelidos por motivos análogos aos que a fazem
ela própria agir.
Se a atividade humana, considerada como exteriorização práti-
ca da nossa razão, busca fins a atingir, fins que têm como objeto a
nossa perfectibilidade moral, ela, procedendo por analogia, há de
postular que a consciência criadora do universo igualmente procura
atingir fins, por ela preestabelecidos, regula-se segundo um plano
preconcebido. A teleologia, assim transportada para o cosmos,
como atribuição objetiva dele, tem outras conseqüências que de-
vemos apontar, embora rápida e sumariamente. Ao mesmo tempo
que faz depender o universo de uma atividade, que só pode ser a de
um ente, independente e livre, que o criou segundo uma finalidade
preconcebida, ela torna essa força também geradora dos fins e da
meta, segundo a qual o homem dirige a sua atividade prática, de
acordo com princípios necessariamente válidos. De sorte que a te-
leologia e a nossa atividade inteligente e livre, se pressupõem e são
recíproca origem uma da outra.
Desta forma, tal atividade superior, aquela entidade suprema,
ou deísta ou teísta (na classificação já por nós acenada) de Kant, se
nos representa a fonte de que promana a lei moral, e a razão práti-
ca, com os seus postulados e imperativos, desprendendo-se dos la-
.. - ,. ..
ços da mllficaçao empifica e paifafido-a dela, dlllge a nossa
atividade ética, não conforme os dados do conhecimento, porém,
de acordo com princípios absolutos e incondicionados, derivados
da teleologia a que supomos dever obedecer o universo, teleologia
cujo conceito, embora originariamente determinado pelas nossas
faculdades, é ao depois transportado, como atributo objetivo dela,
para uma atividade infinitamente superior a nós.
Lícito se nos torna, pois, afirmar que a teleologia é um postula-
do a priori da razão reflexiva para que nos seja dado desenvolver
plenamente e sem peias a nossa atividade em procura da nossa
completa perfectibilidade.
Uma vez admitida e assumida a existência de uma teleologia, é
essencial ao seu conceito implicar necessariamente a livre escolha
dos meios com que se há de alcançar o fim prefixado, senão desa-
pareceria a causalidade final, livre, e teríamos em seu lugar a pu-
ramente mecânica, o arbitrium brutum. Já vimos, a esse respeito,
como Kant tenta conciliar o livre arbítrio, postulado pela razão
prática, com a estrita causalidade natural, base de toda a apuração
da experiência; também já dissemos o que nos pareceu conveniente
a respeito de sua teoria do caráter empírico e do inteligível, pare-
cendo-nos então que o genial filósofo, afastando-se das bases gno-
siológicas da filosofia crítica, admitira, embora com todas as cau-
telas que temos posto em relevo, um dogmatismo, transcendente da
experiência, ao encarar no mundo das representações a existência
de ações determinadas por uma causalidade livre, a qual, entretan-
to, ele próprio é quem estabeleceu convir tão somente ao da coisa
em si. Como objeto do conhecimento já discutimos o caráter da
causa em si e mostramos que a sua existência não é possível. Se a
liberdade só se pode conceber, admitida a existência da coisa em si,
também ela não é objeto do conhecimento.
Se a coisa em si, tendo uma realidade puramente subjetiva, só
existe para nós, como idéia, como princípio diretivo na nossa sis-
tematização das ocorrências no cosmos, a liberdade, conseqüência
lógica dela, também compartilha dessa sua existência puramente
ideal. Nós temos uma convicção de que somos livres; mas, como
não podemos no campo cognoscitivo contrapor essa convicção à lei
das manifestações objetivas da experiência, a qual em parte alguma
dos seus domínios não nos apresenta senão causas puramente me-
cânicas, devemos dizer que, na aparência livres, não o somos em
-realidade.
A moral kantiana, fundada no conceito da liberdade, não re-
clama ser reconhecida como empírica nem científica, pelo contrá-
rio, repele qualquer identificação com a ciência e com a experiên-
cia. Restaria indagar se é possível estabelecer, de acordo com os
próprios princípios firmados pela "Crítica da razão pura", uma éti-
ca que repouse unicamente sobre bases científicas, isto é, se a pura
causalidade mecânica nos poderá dar a chave do problema aprecia-
tivo.
Precisamos saber se o mérito ou demérito das ações humanas
será possível deduzi-los do modo mais ou menos adequado com
que buscamos atingir fins, estabelecidos a priori, ou se, pelo con-
trário, os fins são criados a posteriori, isto é, pelo indivíduo, e,
através da hereditariedade, pela espécie no decurso da experiência,
à medida que esta vai demonstrando tenderem certos atos nossos a
conservar aquele equilíbrio que chamamos a vida, e outros, pelo
contrário, a destrui-lo.
Na primeira hipótese, aceitaríamos a moral de Kant, com os
seus postulados absolutamente válidos na sua esfera, com a sua
admissão da existência de Deus, da imortalidade da alma e da li-
berdade de querer.
No segundo caso, rejeitando todos os postulados, por inadmis-
síveis, daremos como reguladora das nossas ações a nossa própria
inteligência consciente, em seu grau mais elevado, quando diferen-
ciada já do instinto, à medida que adquire novos conhecimentos,
mais vasto campo encontra para guiar a nossa atividade, em busca
de fins que promovam uma estabilidade cada vez maior do equilí-
brio vital, sendo, em síntese, os nossos atos voluntários sempre re-
sultado de uma luta contínua de motivos, tanto objetivos como
subjetivos, na qual sempre triunfará o mais forte, de acordo com a
causalidade natural. Neste caso, não se poderá negar que a ilusão
da liberdade, a crença na existência de um ser supremo, da imorta-
lidade da alma, nas penas ou recompensas futuras deverão influir
sobre as nossas ações como motivos, que se mostrarão mais ou
menos fracos, conforme também mais ou menos preponderante e
avassaladora for a convicção de sua realidade e necessidade na
mente da pessoa sobre quem atuam.
A moral, nos sistemas que se propõem a fundá-la sobre bases
científicas - nao cabe aqui discùri-e realizável t a x ' e s i d m a t a-m
não será mais do que um caso de causalidade mecânica, única de
que nos dá conta a experiência; essa causalidade, desde que se li-
mite ao seu domínio empírico e não tente ser considerada como ab-
solutamente aplicável ao cosmos como todo, o que lhe daria um
inaceitável caráter dogmático, já mostramos ser a única que nos é
dado conhecer e apurar.
O nascimento da consciência, a admitirmos a só causalidade
mecânica, deve resultar de ações verificáveis não só no tempo
como no espaço, isto é, tendo extensão e sendo materiais; da maté-
ria inorgânica para a orgânica e desta para a consciente não há se-
não uma recorrência de ações e reações mecânicas produzindo as
variadas graduações e distinções de força e matéria que estudamos
nesses diversos estados acenados.
Onde, porém, o mecanismo, apesar de suas pretensiosas afir-
mações em contrário, mostra-se completamente falho, é quando se
lhe pede explique de que modo a matéria, de inorgânica passou a
ser organizada, de inconsciente se tornou consciente. Porquanto é
bem verdade que, embora suponhamos determinados em suas últi-
mas rninúcias os elementos materiais que compõem uma e outra
classe de manifestações em sua evolução (que supomos haver de
uma para outra), existe sempre entre elas uma diferença tão grande
e tão fundamental que não é possível compreender a passagem de
uma para a outra, sem uma força qualquer, que em nenhuma delas
está, estranha, portanto, a elas, independente da causalidade mecâ-
nica, sobrenatural, por conseguinte. O abismo que as separa é in-
transponível.
O organismo, ainda que se possam determinar, até à derradeira,
o conjunto das combinações físico-químicas que lhe constituem o
arcabouço material, tem em si uma espontaneidade, um quid que o
separa indefinida e infinitamente do que é inorgânico; em termos
de causalidade mecânica a conclusão última a que se atinge em re-
lação a ele cifra-se em afirmar que é um estado de equilíbrio (entre
causas externas e reações internas).
O quid que o constitui é assim permanentemente inexplicável,
embora nos seja lícito conceber, com o auxílio das causas mecâni-
cas, um infinito desdobrar de gêneros e espécies, e fixar até certo
ponto a lei, puramente natural, de seu desenvolvimento gradual de
umas-paraoutras.
Da mesma forma, a transição da inconsciência para a consciên-
cia, mecanicamente não se pode explicar, e, ainda que nos seja
dado nos afigurarmos os estádios graduais que vão de uma à outra
dessas duas distintas modalidades da vida, a lacuna aí está eviden-
te, desafiando qualquer tentativa de explicação mecânica.
De sorte que, do ponto de vista do conhecimento, a verificação
de uma unidade de princípios, da qual decorram todos os fenôme-
nos, é verdadeiramente impossível, quer admitamos o mecanismo
puro que inevitavelmente culmina no hilozoísmo e panteísmo, quer
tenhamos de aceitar uma teologia com o seu inevitável idealismo e
conseqüente dualismo.
Nem tão pouco as soluções intermédias que propugnam ser a
causa primeira um mecanismo teleológico, podem fazer jus a acei-
tação por parte do nosso entendimento.
Essa explicação do universo, procedente da analogia com o
operário que faz mover uma máquina, nos deixa sempre em face de
dois problemas insolúveis, o da origem do operário e o da prece-
dência da máquina: a qualquer deles não é possível oferecer uma
solução válida, quer se identifique a máquina com o operário (tese
panteísta) quer se julgue o operário de natureza diversa e criador da
máquina (tese deísta) quer não haja operário e a máquina exista e
se mova por si de toda eternidade (tese ateísta).

Como quer que seja, porém, embora provada a impossibilidade


do ponto de vista teleológico, como princípio que as nossas facul-
dades reflexivas hajam de emprestar ao universo, demonstrando
que as suas explicações devem ser continuamente, e tanto quanto
possível, substituídas pelas que nos dá à causalidade mecânica na-
tural, onde falham estas, será lícito admitir uma teleologia.
Ela se deve considerar, porém, sempre uma criação puramente
subjetiva, um artifício da nossa mente que, remediando à nossa in-
suficiência no domínio do conhecimento, estabelece princípios arti-
ficiais, cujo fito será o de nos poupar trabalho inútil na nossa sínte-
se sistemática do universo (Weltanschaung).
Será essa teleologia, pois, um postulado de economia do nosso
pensamento, permitindo-nos com poucas idéias diretivas, abranger,
debaixcldeum_só_pontode-vis ta,o_maiórnúmeropossível de9cor-
rências, para que o conhecimento os subordine aos esquemas de
coexistência e sucessão.
Sendo, pois, os princípios da única teleologia admissível ape-
nas regras de economia intelectual, no sentido de, por nos facilita-
rem sigamos uma direção, de antemão traçada, pouparmos desper-
dícios nos esforços para a sistematização que nos é mister tentar, é
bem evidente que todas as vezes que não satisfaça esse desidera-
tum, a teleologia é uma embaraçosa inutilidade da qual devemos
nos descartar quanto antes.
Ainda mais: esses artifícios de economia intelectual não são
verdadeiros nem falsos necessariamente: o característico que para
nós os torna apreciáveis, é que eles nos são úteis, essa utilidade
lhes justifica suficientemente a existência.
Ora, o ponto de vista que desejávamos atingir é precisamente
este: toda a teleologia que, como se fosse objetiva e não subjetiva,
emprestamos à natureza, se pode justificar, quando, não redundan-
do na criação de um antropomorfismo transcendente nem tampou-
co dando ensanchas a que crie asas o antropocentrismo - vícios es-
ses inerentes a toda teleologia dogmática - nos permita abranger o
maior número de fenômenos naturais sob a nossa consideração com
o menor dispêndio possível de princípios gerais, rea!izando, por-
tanto, uma economia destes e simplificando, correspondentemente,
os nossos processos intelectuais.
Os antigos quando diziam que a natureza tem horror ao vácuo
ou - natura non facit saltus - exprimiam um desses conceitos tele-
ológicos a que nos estamos referindo, se bem que ainda eivados,
em larga dose, de antropomorfismo. Esse já tende a desaparecer, no
que modernamente se chama a lei do menor esforço, na lei da con-
tinuidade dos fenômenos e tantos outros princípios de economia
intelectual, os quais todos supõem um fito ou meta, uma direção
tomada pela natureza em suas manifestações.
Como pressupostos das nossas faculdades reflexivas, não nos é
permitido avançar, além de sua utilidade, a respetiva veracidade. Se
a apuração empírica mostrar-nos, entretanto, ser falsa a teleologia
postulada e improcedente para a explicação que temos em vista
obter, devemos, em lugar desses, supor outros princípios que me-
lhor se adaptem à nossa explanação empírica. A teleologia, destar-
te, vai sendo paulatinamente expulsa de suas posições pelo pro-
gresso,cada~vezmaioumaiscompendiose,das-explicaçõe~~r~-
mente mecânicas.
De sorte que a tendência do nosso conhecimento, o seu ideal,
será de subordinar, desprezando a teleologia, todos os fenômenos
ao princípio único das causas eficientes. Nós já vimos, entretanto,
os obstáculos que opõem a esse desideratum, visto que a origem
última, tanto das manifestações objetivas como das ocorrências
subjetivas, não pode ser fundada na causalidade puramente mecâ-
nica, ou pelo menos até agora não se há conseguido fazê-lo.
Resta saber se essa impossibilidade é transitória ou se absolu-
tamente não poderá ser superada. Se respondemos afirmativamente,
teremos fé em uma solução completa de todos os enigmas do Uni-
verso, como se convencionou chamar aos problemas últimos da fi-
losofia.
Tal solução nos daria, pois, o conhecimento cabal da essência,
do absoluto, do incondicionado, do que está fora e independente do
espaço e do tempo, da experiência e da recíproca coordenação das
existências,
Se conseguíssemos explicar mecanicamente o absoluto, ficaria
a teleologia irremissivelmente expulsa do seu último reduto, subs-
tituindo-se ao seu conceito do ente absoluto, autor da ordem e re-
gularidade da natureza, um jogo cego de forças, as quais, não obe-
decendo a meta alguma, não poderão dar lugar a uma concepção,
conforme a princípios.
Os mecanistas, nas suas tentativas de subordinar os fenômenos,
de um modo absoluto, à causalidade mecânica, encontram esse
obstáculo final que sempre quebrará os seus mais extremos esfor-
ços.

As considerações, opostas pela crítica kantiana, a essas e outras


quaisquer tentativas similares, nada perderam até nossos dias de
seu valor vitorioso. Existem, pois, conceitos que não nos é possível
subordinar à experiência, independentes, portanto, dela, e que esta,
para ser válida, pressupõe como seu ponto de partida.
Kant tentou determiná-la esses conceitos, empregando nisso
toda a sua longa vida de filósofo estudioso, a sua excepcional agu-
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extraordinário gênio especulativo.
Com o que de empiricamente verificável encontrou no cosmos
e na consciência assentou o que lhe pareceu constituir os limites do
nosso conhecimento; em seguida, combinando com esses limites
aqueles impulsos da nossa atividade, decorrentes da razão prática e
as considerações que derivam do ponto de vista reflexivo teleológi-
co; construiu o seu edifício especulativo, como um todo arquite-
tônico, formado pelas três Críticas - a "da razão pura", a "da razão
prática" e a "do juízo".
Dar o nosso parecer sobre o valor de seu sistema de filosofia
como conjunto não o podemos nem devemos fazer agora, nos li-
mites do presente trabalho, pois que tornaria a sua extensão maior
do que ela comporta e, além disso, ultrapassaria os limites que nos
traçamos ao iniciá-lo; pois que o nosso fito foi somente fazer uma
exposição e crítica da sua teoria do conhecimento, o que acredita-
mos haver realizado, se bem que muito imperfeita e deficiente-
mente.
Para concluir, seja-nos permitido afirmar em relação a este
ponto essencial da filosofia crítica, que, admitamos ou neguemos
as suas conclusões, nos mostremos ou não de acordo com as solu-
ções, por ela apresentadas, somos, em todo o caso, forçados a con-
ceder ser ela um marco miliário, inolvidável na história do pensa-
mento humano: o problema que tentou resolver permanecerá sem-
pre como objeto perene às nossas cogitações especulativas, todas as
vezes que se deseje verificar a verdade ou inexatidão de qualquer
sistema que se nos apresente.
Quando lutando entre si várias tendências filosóficas, com os
seus pressupostos teóricos, na conquista de pontos de vista novos,
no desenvolvimento dos antigos, na pesquisa de analogias que Ihes
permitam fazer do universo uma concepção que se aproxime cada
vez mais do desideratum científico, a explicação pelas causas me-
cânicas, deverá sempre a razão, para se furtar ao perigo de nova-
mente descair no domínio da ontologia, no império dos conceitos
puros, voltando as suas vistas para si mesma e para os seus proces-
sos teórico-cognoscitivos, assumir o ponto de vista crítico e exarni-
nar se não empregou indevidamente os seus instrumentos, se ile-
g a l m e n t e ~ ã o s e s e r v i u ~ t ~ ~ 1 h e s ã opela f ~ i - d ~
experiência, se não foi vítima dos seus ideais, cujo perigo está na
irresistível tendência de arrastá-la para o terreno do incondiciona-
do, para o campo da metafísica do supra-sensível, em que se per-
mitem todos os exageros e todas as loucuras.
Essa preocupação constante de análise teórico-cognoscitiva é o
grande serviço prestado por Kant à especulação. A filosofia crítica,
por ela fundada, está sempre pronta a chamar a razão ao senso de
suas responsabilidades e à consciência dos seus limites.
E só depois de bem examinados os critérios em que se fundou o
entendimento na apuração das sucessões e coexistências que nos
apresenta o Universo, é que nos será dado verificar, com satisfação
ou com desânimo, na sentença de Goethe:
"Wie weit wir es gebracht. "

Rio de Janeiro, 9 de outubro de 1909.

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