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A fragilidade feminina nos quadrinhos de superaventura na década de 1960

Natania A. S. Nogueira
nogueira.natania@gmail.com

Resumo: Inicialmente, tratados apenas como uma forma de lazer, hoje, as histórias em
quadrinhos inspiram uma gama variada de pesquisas em diversas áreas do conhecimento. Um
dos gêneros mais populares dos quadrinhos, a superaventura, tem ganhado especial destaque.
Todo o discurso e toda a mitologia criada em torno dos super-heróis tornaram os comics uma
fonte particularmente rica para os estudos de gênero. Entre os ícones mais cultuados dos
quadrinhos está o Superman. No entanto, pouco ou quase nada se fala de sua contraparte
feminina, a Supergirl. Nossa proposta, então, é trazer à luz este personagem e analisar o
conteúdo de algumas de suas aventuras, publicadas entre 1959 e 1965. A partir da análise
deste material, estabelecer relações entre as representações femininas nos quadrinhos da
Supergirl e a dominação masculina estabelecida por meio da violência simbólica.

Palavras-chave: Família. Gênero. Quadrinhos. Violência simbólica.

Introdução

A história das histórias em quadrinhos começou a ser escrita a partir do final do século
XIX, quando esta forma de arte sequencial passou a ser reconhecida e nominada como tal.
Esta história está permeada não apenas de personagens fictícios, mas, principalmente, envolta
nas mais diversas tramas, mudanças e crises que marcaram a sociedade ocidental durante todo
o século XX. Os quadrinhos foram campo fértil para a representação de anseios, valores,
paradigmas e estigmas das sociedades em que foram produzidos.

Os quadrinhos podem ser instrumentos axiológicos e políticos. Eles alternaram visões


de mundo que, em muitos momentos, podem ser conflitantes. Nos quadrinhos, em especial
nos comics norte-americanos, podemos identificar as mudanças pelas quais passaram as
relações humanas e políticas. Partindo desse pressuposto, é possível afirmar que as histórias
em quadrinhos são documentos importantes para se entender as ideias e os valores dominantes
de uma época. No caso específico desta pesquisa, interessam-nos as representações femininas
e as relações de gênero que se desenvolveram nas páginas dos quadrinhos de superaventura
nos primeiros anos da década de 1960.

No início dos anos de 1940, as jovens heroínas eram decididas, tinham planos,
buscavam sua realização principalmente por meio de uma profissão. Eram independentes e
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pensavam no futuro como um campo inexplorado de possibilidades. Essas heroínas, que


estavam no cinema, nos romances, nas revistas e, claro, nos quadrinhos, possuíam as
qualidades e os valores que estavam presentes, em menor ou em maior escala, nas mulheres
comuns.

“A maioria das heroínas das principais revistas femininas — Ladies


Home Journal, McCall's, Good Housekeeping, Woman's Home Companion
— eram mulheres atraentes, que tinham sua carreira e viviam felizes,
orgulhosas, amando e sendo amadas pelos homens. E a energia, a coragem, a
independência, a determinação, a força de vontade que manifestavam no
trabalho de enfermeira, professora, artista, atriz, escritora, comerciária,
faziam parte dos seus atrativos. Davam a nítida impressão de que sua
individualidade era algo a ser admirado, e que os homens se sentiam atraídos
tanto por sua energia e caráter, como por sua aparência.” (FRIEDAM, 1971:
36)

Após a Segunda Guerra Mundial, as “mulheres de papel”, termo usado com muita
propriedade por Selma Regina Nunes Oliveira (2007), sofrem os efeitos do backlash. Elas não
deixam de ter seus poderes ou habilidades, mas passam a depender cada vez mais dos
personagens masculinos. As heroínas - como A Mulher Maravilha, Sheena e Miss Fury que
passavam para as leitoras e os leitores uma imagem de independência a autonomia - ou
sofrem uma releitura (são reinventadas) ou desaparecem. Segundo Oliveira, “durante a década
de 1950, o antifeminismo chegou ao auge nos Estados Unidos e foi negada a participação da
mulher na política, ao mesmo tempo em que aumentaram as pressões moralistas sobre a
mulher” (OLIVEIRA, 2007:34).

Novas super-heroínas surgem, nas décadas de 1950 e 1960, influenciadas por esta
onda de conservadorismo. Elas voltam a ser representadas como as mocinhas ingênuas que
povoaram o universo dos quadrinhos até a década de 1930. Mesmo a mais poderosa das
super-heroínas se vê sob a tutela de um homem ou, de certa forma rebaixada, em relação a ele.
É o caso da Supergirl, objeto do nosso estudo. Criada dentro deste contexto, esta personagem
é muitas vezes apresentada como a mulher mais poderosa da terra. Mas, ao mesmo tempo em
que aparece como a heroína audaciosa, é, também, a adolescente frágil, com conflitos
internos, dependente e insegura.

Gênero, preconceito e superaventura


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É necessário pensar o conceito de gênero nas relações sociais e institucionais sejam


elas fenômeno do universo real ou fictício. As relações de gênero se expressam, também, nas
páginas das histórias em quadrinhos, da mesma forma como se fazem presentes nas práticas
sociais cotidianas. Assim, quando analisamos a presença feminina e as relações de gênero
presentes nas histórias em quadrinhos, com foco em determinado personagem e contexto,
estamos na verdade buscando identificar os mecanismos de dominação de uma determinada
configuração (SAMARA, 1997).

Levando em conta a dialética que norteia essas relações, um(a) autor(a) de histórias
em quadrinhos pode reproduzir uma modelo masculino de dominação ondem, de uma
perspectiva simbólica, o conflito estará constantemente presente. A dominação masculina
seria, assim, uma forma particular de violência simbólica que, por meio de significações,
impõe-se como legítima. Mas, onde há dominação há, também, formas de resistência a ela,
que se fazem presentes em toda relação de gênero e que acabam surgindo nas histórias em
quadrinhos, pois elas, mesmo as de superaventura são, ao mesmo tempo, construções e
leituras da realidade (REBLIN, 2012).

“Personagens de histórias em quadrinhos são como pequenos


franksteins: construídos por partes. Eles são idealizados com base em certos
atributos físicos ou psicológicos como cabelo, altura, ou temperamento, que
não são simples características, mas sentidos que se integram às redes de
significações (...). Assim, o processo de produção de um personagem de
histórias em quadrinhos é, na verdade, o processo de produção de uma
representação, enquadrado coletivamente na prática social.” (OLIVEIRA,
2007: 141)

O ano de 1936 – com o surgimento de Sheena, a rainha da selva, por Will Eisner e
Jerry Iger - acena para o surgimento de uma nova mulher de papel: aventureira, independente
e sensual. Na década de 1940, as heroínas ganham superpoderes e a superaventura passa a ser
o gênero onde as mulheres conquistam um espaço cada vez maior. Mas, em 1954, quando é
publicado o livro de Fredric Wertham, A sedução do Inocente, acirra-se a perseguição contra
os quadrinhos e contra as super-heroínas.

“Wertham questiona ainda o papel das histórias em quadrinhos na


representação do masculino e do feminino. Ele contra-argumenta a
afirmação de que as histórias em quadrinhos expressam uma equidade entre
o papel social de homens e mulheres. Para o psiquiatra, não existe nenhuma
compreensão avançada do masculino e do feminino, mas um retrocesso
perverso. Mais ainda, as histórias em quadrinhos estimulam (e aqui o tom é
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de acusação) as relações homoafetivas masculina e feminina, representado


na relação entre Batman e Robin e nas histórias da Mulher Maravilha.”
(REBLIN, 2012: 37-38)

Para Wertham, as representações das mulheres nas histórias em quadrinhos significam


uma deturpação masculinizada do desenvolvimento humano e moral e um péssimo exemplo
para meninos e meninas, em especial, os quadrinhos da Mulher Maravilha, que ele considera
uma afronta à família, à moral e aos bons costumes (REBLIN, 2012: 40). A resposta a este
discurso, que encontra eco em vários setores da sociedade civil, é uma mudança radical em
muitos personagens assim como o desaparecimento de outros.

Para se protegerem, as editoras criaram o Comic Code Authority (CCA), em 1954; uma
forma de autocensura, a fim de salvaguardar títulos e personagens. Como consequência, os
quadrinhos mudaram, os roteiros ficaram mais superficiais, muitos personagens, em especial
personagens femininas, como a Mulher Maravilha, sofreram mudanças visíveis em seu
comportamento. Se por um lado o selo de aprovação do Comic Code Authority tranquilizava
os pais quanto ao seu conteúdo, por outro representou um retrocesso para os quadrinhos,
enquanto expressão artística e das relações de gênero neles representadas.

“Para a MM (Mulher Maravilha), o CCA representou o final de sua


postura como símbolo feminista. Tornando-a uma personagem quase
anódina. Esta combinação permaneceu (...) até os anos 70, quando as coisas
começaram a mudar. Não apenas para ela, mas nos quadrinhos em geral.”
(CHACON, 2010: 31)

E são essas relações de gênero que nos interessam. Os quadrinhos de superaventura


dos anos de 1950 e 1960 podem nos dizer muito acerca de como a sociedade desejava
representar a relação feminino/masculino para a juventude norte-americana, consumidora
deste produto, que, também era publicado em grande escala no Brasil. Essas narrativas do
gênero superaventura podem ajudar a entender a influência da mídia no comportamento dos
jovens leitores a partir das representações que elas apresentam e do discurso nelas contido.
Para tanto, escolhemos como objeto de estudo a Supergirl, personagem criada para agir em
parceria com o Superman e para ser um modelo de boa moça, de jovem comprometida com a
família e, claro, com os bons costumes.

Supergirl, a pequena órfã busca uma família


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A ideia de se criar uma personagem derivada do Superman ganhou força em 1958,


quando uma personagem feminina apareceu na revista Superman #123. Seus criadores foram
Otto Binder e Curt Swan. Mais velha e sabendo usar muito bem seus poderes, ela foi fruto do
desejo de Jimmy Olsen, que, ao se apossar de um totem mágico, imaginou uma versão
feminina do Superman.

Nessa primeira versão, temos uma mulher determinada com autoestima invejável.
Uma cópia feminina perfeita do Superman. Mas não poderia ser o contrário, pois ela foi assim
desejada. A parceira perfeita para o super-herói mais famoso dos quadrinhos. No entanto, esta
parceria dura pouco; uma única aventura com um desfecho heroico/trágico: a primeira
Supergirl morreu protegendo o Superman de um meteoro de kryptonita. Ele é importante
demais para morrer, por isso ela precisa se sacrificar em seu lugar. O fim trágico conquista a
simpatia do leitor. Afinal, a boa mulher não é a aquela que se sacrifica?

No ano seguinte, no entanto, a Supergirl chegaria para ficar, na forma da prima


adolescente do Superman. A história foi publicada na Action Comics #252. O uniforme é
praticamente o mesmo, mas a heroína sofre uma mudança radical em sua personalidade. Ela
não é mais uma mulher formada e, sim, uma menina; uma adolescente confusa, insegura e que
cultiva um profundo sentimento de abandono. Uma pobre órfã sem família. Ela é Kara, a
última sobrevivente de um grupo de kryptonianos que ainda resistia após o fim trágico do
planeta. Da mesma forma que o Superman, ela foi enviada a Terra pelos pais, para que o
legado da família pudesse sobreviver.

O encontro entre os primos dá início a uma nova fase das aventuras do Superman, que
passa agora a dividir espaço com a Supergirl. No entanto, num primeiro momento, a relação
entre eles é marcada pela desconfiança e pelo medo. Desconfiança do Superman com a
chegada de um membro da sua família do qual não sabia a existência. O medo e a insegurança
de Kara que não quer decepcionar o primo, por quem passa a nutrir, quase de imediato, uma
grande admiração. Neste momento e em muitos outros, a Supergirl representa, o ideal de
mulher que a sociedade dirigida pelos homens espera ver representada: obediente e devotada.

Figura 01
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Supergirl. Action Comics, n° 252, Maio de 1959, p. 06.

Ao contrário da primeira Supergirl, criada à imagem do Superman e, portanto,


portadora de todas as suas qualidades, a jovem Kara é apenas uma menina insegura, sozinha
em um mundo desconhecido e que possui como única referência uma figura masculina, o
Superman. Ela é a pobre órfã que havia perdido toda a família e busca no primo que não
conhecia alguém que possa preencher o vazio deixado pelos pais.

No entanto, o Superman, para a surpresa de quem lê a história, não acolhe a prima. O


mais gentil e altruísta dos heróis toma, então, uma atitude egoísta. Ele a leva para viver em
um orfanato em Midvale, onde ela é apresentada com o nome Linda Lee. Para justificar esta
atitude, ele alega que ela ainda não está preparada para ser apresentada ao povo do planeta e
que o fato de serem primos poderia comprometer sua identidade secreta. Assim, a Supergirl é
levada a viver ao lado de estranhos, sempre se lamentado do fato de não ter uma família e, ao
mesmo tempo, impedida de um dia vir a ter, pois não deseja colocar em perigo o segredo do
primo.

A história inicial da Supergirl se assemelha, em alguns momentos, à da personagem


Little Orphan Annie (Aninha, a pequena órfã), personagem criada por Harald Gray, em 1924
(MOYA, 1996: 55). Aninha era, usando as palavras de Oliveira (2007), a personificação da
inocência da América. Tal impressão é passada, também, pela Supergirl, sempre disposta ao
sacrifício, nunca perdendo a esperança de felicidade. Tal como Aninha, a Supergirl passaria
por uma série de desventuras até conseguir aquilo que parece ser seu maior desejo desde a
primeira história: uma família.
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A adoção representaria a criação de raízes, como ocorrera com o Superman. Por meio
da adoção, Kara poderia ser integrada à sociedade, mas sua origem Kryptoniana surge como
um problema, um obstáculo apontado pelo Superman logo que a conhece: ela não está pronta
para ser apresentada ao mundo. Ele sabe disso, ele viveu quase toda a sua vida na terra. Como
seu primo, como homem, ele sabe o que é melhor para ela. Kara então se oferece ao sacrifício
de viver entre estranhos e de não poder ter uma família. Segundo a moral cristã é pelo
sacrifício que a mulher se redime, uma vez que ela é a única responsável pela perda do
paraíso. Assim, dar-se de sacrifício pelo outro é o mínimo que se espera das mulheres
(OLIVEIRA, 2007: 194).

A supermulher e a violência simbólica

Como já vimos, Kara será colocada em um orfanato pelo Superman, que delega ao
Estado a obrigação de cuidar da prima. No entanto, mesmo distante, ele exercerá um grande
controle sobre a jovem, presa à promessa de guardar seu segredo escondendo sua origem
extraterrestre e vivendo uma vida que não é a sua. Como pater, Superman tem autoridade para
decidir o que é melhor para a jovem. Ela se consola com o fato de se considerar a arma
secreta do Superman.

Assim, o período em que vive como Linda Lee no orfanato é marcado pela solidão e o
medo de, de alguma forma, desagradar o primo. O peso da responsabilidade, do segredo, o
sacrifício da felicidade e a solidão são os preços que ela acredita ter que pagar para que seu
grupo familiar não seja ameaçado. Afinal, ela é uma estrangeira, em um mundo hostil e
desconhecido. Logo que chega é obrigada a se esconder sob uma falsa identidade, ou seja,
mentir para todos com quem irá conviver. Por viver uma vida que não é sua, Kara não se sente
membro de uma comunidade, de um grupo. Kara deseja uma amiga com quem possa ser ela
mesma, possa fazer confidências, enfim, possa partilhar suas aventuras. Meninas precisam se
relacionar com meninas.

As desejadas amigas surgem na Action Comics #276. Em uma aventura, a


personagem, encontra três super-heroínas, membros da Legião dos Super-Heróis, equipe do
futuro. Surge, então, a possibilidade de estabelecer amizade com outras heroínas sem desta
forma quebrar a promessa feita ao primo. Ela não precisaria mentir e não colocaria em risco
seu grupo familiar.
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O grupo de amizades da Supergirl durante muito tempo se limitou aos amigos e


parceiros do Superman. Dentre eles podemos citar a Legião dos Super-heróis e Lori, a sereia
da Atlântida. Em suas aventuras também participam os animais superpoderosos, como Beppo
(Super-Macaco), Cometa (Super-Cavalo), Krypto (Super-Cão) e Raiado (Super-Gato). Mas o
que se torna determinante para que ela possa estabelecer relações de amizade e convivência
com suas novas amigas e com o grupo ao qual elas pertencem (A Legião dos Super Heróis) é
o consentimento do Superman. Ela aceita a amizade porque sabe que terá aprovação do
Superman. Mesmo sua entrada no grupo está subordinada a isso. Mesmo se interceder
diretamente o Superman está presente nas decisões que sua prima toma. Ele é seu modelo. A
atitude certa é aquela que ele aprovaria.

As amigas do futuro, com as quais vive algumas aventuras, não podem suprir aquilo
que ela mais precisa e mais deseja: ser adotada e ter um lar. Kara está presa ao grupo familiar
atípico formado pelo primo, Superman, que insiste manter a sua existência em segredo e faz
com que a prima, por essa razão, deixe de desenvolver relações afetivas saudáveis com outras
pessoas. Kara é levada a acreditar que que ser adotada ou estabelecer relações de amizade
com indivíduos fora do circulo de amizades do Superman colocaria em risco a promessa feita
ao primo quando chegou à Terra: manter segredo sobre sua identidade para não comprometer
o segredo do próprio Superman.

A busca pela aprovação do primo é uma constante em suas histórias, principalmente as


primeiras. Apesar de ter chegado a Terra no ano de 1959 (ano da sua criação como
personagem), sua apresentação ao mundo só aconteceria em 1962, quando o Superman
revelaria sua existência.

Sua devoção e o bom trabalho que realizou durante o período em que esteve em
“treinamento” é recompensado com a declaração pública do Superman que a assume
publicamente como parte do seu clã e a acolhe em sua casa. Neste momento, Linda Lee já
havia sido adotada por um simpático casal, Fred e Edna Danvers, que lembra muito os Kents,
pais adotivos do Superman.

A forma como o enredo se desenvolve, iniciando com a tragédia da morte dos pais da
super-heroína, com sua chegada a Terra, sua vida solitária no orfanato, a adoção e depois o
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reconhecimento oficial da sua existência coloca Kara como uma personagem de romance que
precisa passar por sofrimento e privação até atingir a felicidade. Por ser virtuosa, ela é
recompensada. Aí podemos encontrar, novamente, o discurso paternalista do Superman. Ele
está dando a ela aquilo que ela deseja. Kara não conquista seu espaço ela o ganha, pois foi
uma “boa menina”, cumpriu bem sua obrigação.

Figura 02

O mostro Infinito. Supermoça. Star Álbum. Rio de Janeiro, EBAL, 1969, n. 13 p. 14.

O discurso presente nos quadrinhos de superaventura neste recorte coloca a


supermulher sempre em condição de inferioridade diante da sua contraparte masculina. A
condição feminina da Supergirl é o que lhe faz inferior biologicamente ao primo. Ela é forte,
ela tem todos os seus superpoderes, mas ela é mulher. Na já citada aventura que protagoniza
com a legião dos Super-heróis, a Supergirl consegue romper este equilíbrio. Ela se torna mais
poderosa que o Superman porque recebe de Brainiac 5 um cinto que lhe protege da radiação
venenosa da kryptonita. Ela mesma reconhece o fato: é agora mais poderosa que o primo. No
entanto, ao se livrar de um meteoro de kryptonita verde, que representava uma ameaça ao
Superman, o cinto é danificado. Ela é reconduzida à sua situação de inferioridade.

É interessante perceber que a suposta condição de inferioridade é tida pela heroína


como um fato. O Superman é superior por ser homem, mais velho e, portanto, mais
experiente. Ela é inferior por ser mulher, por se mais jovem e, portanto, não ter experiência de
vida. O que muda, mesmo que temporariamente, esta condição é o fato da Supergirl não
possuir a mesma fraqueza que o Superman. Em outros momentos a Supergirl voltará a ser
imune à radiação da kryptonita e o próprio Superman chega a colocar em questão sua
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condição de auxiliar, de arma secreta em dúvida. Ele chega a admitir que ela é superior. A
noção de hierarquia parece estar condicionada à força física, ao número de poderes que se
possui, pelo menos esta é a lógica contida no raciocínio do Superman, que chega a admitir sua
condição de inferioridade frente à prima com aparente tristeza e, por que não, uma pequena
dose de inveja. Kara também enfrenta a situação de uma forma curiosa. Ela se sente feliz em
ser mais poderosa, mas não se coloca numa posição hierarquicamente superior.

Figura 03

Supermoça. Star Álbum, Rio de Janeiro, EBAL, n. 11, 1969, p. 14. Aventura originalmente publicada
em Action Comics #282, em novembro de 1961.

Este novo episódio, no entanto, não dura muito, pois na verdade se trata de uma
brincadeira arquitetada pelo vilão Mr. MXYZTLK. Ele interfere nos planos da vilã e arqui-
inimiga da Supergirl, Lesla-Lar. Lesla Lar é uma cientista que vive na cidade engarrafada de
Kandor. Ela é uma gêmea exata da Supergirl, deseja dominar a Terra e derrotar o Superman
com a ajuda de Lex Luthor, trocando de lugar com a Supergirl e roubando seus poderes. Mas,
a Supergirl recupera seus poderes e continua imune à kryptonita verde, sofrendo apenas os
efeitos da kryptonita vermelha. No fim, o Superman retorna à posição de maior super-herói da
terra e ela retoma seu papel de ajudante.

Mas o que é ser ajudante do Superman? Como sua arma secreta, a Supergirl está
sempre pronta a auxiliar o primo quando ele precisa e a se sacrificar por ele se for necessário.
Mas se a mensagem que nos passa o enredo das aventuras que envolvem a dupla neste
período é de que a Supergirl é inferior por ser mulher e por ser pouco mais do que uma
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menina, mesmo tendo todos os poderes do Superman, por outro lado fica clara a necessidade
que o Superman tem de eventualmente contar com a sua “arma secreta”.

Como parceira do Superman, ela o auxilia nos momentos difíceis e é salva pelo primo
quando se vê em dificuldades. Ela é levada a acreditar na sua situação de subordinação, de
inferioridade. Reproduz uma imagem de obediência, recato, de devoção, de aceitação do seu
destino, seja ele bom ou ruim.

Se por um lado os quadrinhos da Supergirl nos mostram a submissão feminina e a


dominação masculina, de outro temos uma inversão de papéis quando, no caso estudado, é a
mulher que em alguns momentos salva o homem. Apesar de acreditar na sua condição de
inferioridade e de submissão a Supergirl irá proteger o Superman. Ela é um escudo que ele
usa em momentos de dificuldade.

Assim, quem é fraco e quem é forte? Quem domina e é dominado? Apesar de a


narrativa nos conduzir a entender que a Supergirl é quem precisa do Superman, ela vai salvá-
lo nos momentos mais difíceis e será ela quem se sacrifica para que ele não seja prejudicado.
Apesar da Supergirl, enquanto personagem, incorporar o discurso de dominação, ou seja,
aceitar sua condição inferior, é possível perceber que esta condição não é absoluta e que a
dominação possui seus limites. É bem provável que, ao ler os quadrinhos da super-heroína, as
meninas se identifiquem com ela não em sua condição subalterna, mas em sua condição de
superioridade, de força, de coragem, valorando o papel feminino dentro do universo dos
quadrinhos.

A representação da Super Família e o silêncio das mulheres

Qual o conceito de família que poder ser empregado na mitologia do Superman? Esta
é uma questão instigante. A ideia de família para muitos super-heróis dos quadrinhos envolve
uma série agregados. No caso da representação da Super Família (figura 04), até vilões e
animais de estimação foram a ela relacionados. O elo de união da Super Família que estamos
analisando, nos recorte que envolve a década de 1960, é o Superman. A Supergirl aparece ao
seu lado como parente de sangue. Temos os pais adotivos, os pais naturais, tios, animais,
amigos e vilões. Trata-se de uma família estendida, onde é possível identificar parentes
consanguíneos e agregados.
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Figura 04

La Doce Vita. Disponível em http://cidadaoquem.blogspot.com.br/2010/12/super-familia.html, acesso


em 20/10/2012.

A família, enquanto instituição social possui várias funções e sofreu diversas


mudanças na sua configuração durante a história. De fato, não existe uma família, mas várias
famílias que, no tempo e no espaço, se apresentaram como formas de socialização e
organização social. No seu significado mais básico dá-se o nome de família a um grupo
caracterizado pela residência em comum e pelo convívio de pais e filhos (NETTO, 1978:
457). A tendência moderna é considerá-la como um sistema de papéis - um processo histórico
sujeito a múltiplas mudanças - que se adapta de acordo com as transformações operadas na
própria sociedade (NETTO, 1987: 458).

No caso da Super Família talvez seja mais prudente classifica-la como grupo familiar,
uma vez que não são os critérios biológicos que a definem. Nessa família a liderança fica a
cargo do Superman, elo unificador, que assume o papel de pai social (pater).

“A tendência da família humana sempre foi romper os limites


biológicos criados, por exemplo, pelo relacionamento sexual e pela
reprodução, rompidos através de relacionamentos sociais como adoção ou o
parentesco fictício.” (NETTO, 1987: 457)
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Nesse grupo familiar específico, o Superman (pater) assume o papel de patriarca e


nele predomina uma relação patrilateral ou patrilinear uma vez que a descendência é traçada
pelo lado masculino (NETTO, 1978: 874). Os homens são o foco das ações e estão no centro
do grupo. O pai do Superman tem papel de destaque, o pai adotivo é responsável pela sua
formação moral, o pai da Supergirl é seu tio. Prevalece a descendência masculina em
detrimento da feminina. Tanto a mãe biológica quanto a mãe adotiva do Superman são
personagens pouco explorados e que pouco se manifestam dentro da sua mitologia.

“Martha (...), foi mostrada apenas como a mulher de Jonathan Kent e


a cozinheira da família. Coube apenas a Jonathan Kent a tarefa de ensinar o
herói a usar seus dons e a ter seus valores e ética, o confidente e a autoridade
estavam concentrados nele. O papel de mãe foi normalmente destinado, e
referendado, papel de mãe, isto é, alimentar, vestir etc.” (CHACON, 2010:
49)

De fato, o papel maternal dentro da mitologia do Superman, pelo menos no recorte que
estamos analisando é quase que nulo. A mãe de Kara, em Action Comics, # 252, possui apenas
três falas e, curiosamente, duas delas ocorrem quando ela está executando seu papel de mãe,
alimentando a filha e costurando seu uniforme. Coincidentemente o mesmo papel que Martha Kent
desempenhou na vida do Superman.

Na mitologia do Superman as mães não têm voz. Elas estão submetidas a um universo
patriarcal. A referência central é sempre o homem: o pai biológico, o pai adotivo, o primo
mais velho. As personagens femininas se espelham nestes referenciais. O silêncio das
mulheres nas histórias em quadrinhos não é diferente do silêncio das mulheres na História.

Michelle Perrot (2005) chama a atenção para o reforço do papel das mulheres do lar,
aquela que aquela que educa, limpa, costura e alimenta. A mulher, mesmo que tenha que
trabalhar, não pertence a si mesma, mas aos filhos e marido. A esposa, a mãe, é toda doação.
Não tem identidade própria fora da família, pois é a família que define seu papel na
sociedade.

“(...) as mulheres são vistas como ligadas ao mundo da casa, ao


doméstico e ao cuidado dos filhos. A capacidade corporal feminina
relacionada à reprodução da espécie humana delimita o espaço da mulher na
vida em sociedade; seu papel social de “cuidadora” confere-lhe uma posição
hierárquica inferior em relação aos homens publicamente ativos e
provedores.” (SAYÃO, 2003: 123)
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Esse modelo, presente na sociedade norte americana nas primeiras décadas do século
XX, sofreu abalos com a crise de 1929 e com as duas guerras mundiais, mas, mesmo assim,
permaneceu sendo a célula mater da sociedade, conservando sua configuração, e os papeis
que, por um curto espaço de tempo tiveram que ser trocados, foram facilmente restabelecidos
(OLIVEIRA, 2007. p.84). Se por um lado as guerras ofereceram espaço para que as mulheres
assumissem outros papéis na sociedade ocidental, ocupando novos postos de trabalho,
tornando-se peça importante para o desenvolvimento social e econômico, por outro lado, o
retorno dos homens ao lar traria consigo a perda de muitas conquistas.

“A guerra é, em suma, geradora de frustações, na medida em que ela


fecha as saídas que se entreabriam ou que ela mesma abrira. Assim, ela
contribui para aumentar a tensão entre os sexos, a consciência que cada um
deles tem de si mesmo.” (PERROT, 2005: 446)

Nas décadas de 1950 e 1960 essa tensão pode ser percebida nos quadrinhos. A
independência feminina é questionada e o papel das mulheres dentro e fora da família é
cerceado. A fragilidade feminina é reforçada por discursos que maximizam o papel dos
homens em detrimento ao das mulheres.

Eventualmente Kara consegue ser adotada, e passa a compor um núcleo familiar


tipicamente americano. Seu nome civil passa a ser Linda Lee Danvers. A adoção é
representada como uma dádiva que ela recebe, agradece e estimula. Kara agradece sendo a
filha perfeita, sempre prestativa, obediente, motivo de orgulho da família. O caráter positivo
da adoção é apresentado em algumas sequências, em histórias publicadas nos Estados Unidos
no início da década de 1960. Kara lembra emocionada que já havia sido órfã e, em outros
momentos, levanta a bandeira da adoção.

A relação de Kara com os pais adotivos lembra muito a relação que estabelece com o
primo, de subserviência. Ela é uma filha perfeita, sempre prestativa, orgulho de sua família.
Sua mãe é uma dona de casa eficiente, o modelo da mãe zelosa. Eles aparecem muitas vezes
em situações cotidianas, típicas da classe média americana dos anos 1960. A mãe na cozinha,
o pai vendo televisão ou lendo jornal. Conhecem a identidade secreta da filha e apoiam sua
luta contra o mal, afinal, o Superman precisa de uma ajudante.
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As representações do amor e do casamento nas aventuras da Supergirl

Representações do amor e do casamento nas histórias em quadrinhos da Supergirl


podem ser encontradas com alguma frequência nas aventuras publicadas no recorte estudado.
Estas representações estão relacionadas ao papel das mulheres na sociedade da época, seja ela
uma jovem colegial ou uma dona de casa. As heroínas dos romances publicados em livros,
revistas e jornais ou as super-heroínas nos quadrinhos, representavam o ideal feminino, que
vinha sendo reproduzido desde o final da década de 1940.

“A figura de mulher que emerge dessas bonitas revistas é frívola,


jovem, quase infantil; fofa e feminina; passiva, satisfeita num universo
constituído de quarto, cozinha, sexo e bebês. A revista não deixaria, com
certeza, de falar em sexo, a única paixão, o único objetivo que se permite à
mulher em busca do homem. Está atulhada de receitas culinárias, modas,
cosméticos, móveis e corpos de mulheres jovens, mas onde estaria o mundo
do pensamento e das ideias, a vida da mente e do espírito? Na imagem da
revista as mulheres só trabalham em casa e no sentido de manter o corpo
belo para conquistar e conservar o homem.” (FRIEDAM, 1971: 34)

A Supergirl é uma super-heroína adolescente que se enquadra em muitos dos


estereótipos femininos da época. Ela ainda não é uma mulher em formação. Existe a
preocupação em reproduzir em suas aventuras um comportamento que se espera de uma
jovem em seus quinze ou dezesseis anos, principalmente um comportamento sexual que se
enquadre dentro dos padrões moralmente aceitos. Assim, suas relações afetivo/amorosas com
rapazes da sua idade ou mais velhos são representadas de forma inocente, platônica e
superficial.

Está constantemente presente a preocupação em afirmar e confirmar a


heterossexualidade da personagem, possivelmente um efeito das duras críticas sofridas pelos
quadrinhos durante aquele período. Retornando a Wertham, um dos pontos que ele levanta em
seu livro é a questão da sexualidade dos super-heróis. O psicólogo acusava os quadrinhos de
estimularem as relações homoafetivas, pois era comum que os super-heróis tivessem um
parceiro adolescente (sidekick), em geral do mesmo sexo. Wertham via, nesta parceria,
indicativos de homoafetividade, forçando muitos dos super-heróis a comprovarem sua
orientação sexual assumindo relacionamentos nos quais provavam seu interesse pelo sexo
oposto.
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Kara, demostra, em muitos momentos, interesse por rapazes, embora, no período


estudado, este interesse se resumisse muitas vezes em pensamentos tímidos ou na afirmação
de que este ou aquele personagem lhe despertava uma simpatia especial. Ela não discute sua
vida afetivo/amorosa. Como boa moça, ela gostava de rapazes, mas os mantinha a certa
distância cumprindo as regras morais exigidas pela sociedade. No entanto, sua proximidade
com o Superman levantava a questão sobre a extensão do relacionamento afetivo
desenvolvido por ambos.

Uma aventura, em particular, tem como centro da trama a opção do Superman pelo
celibato. Publicada nos Estados Unidos no ano de 1964 e no Brasil em 1970, na trama, Kara,
convencida de que o Superman não se casará nem com Mirian (Lois) Lane ou Lana Lang,
pretende encontrar uma namorada para o primo. Para a romântica Supergirl, um homem
precisa de uma mulher para casar e, assim, encontrar a felicidade.

Era o ideal do amor romântico, entendido como a origem da verdadeira felicidade, que
só poderia ser alcançada por meio do casamento, que era o lugar de realização do amor.
Filmes, jornais, folhetins e até histórias em quadrinhos foram formas de divulgação deste
ideal, que valorizava o casamento, como sendo o lugar onde tanto homens quanto mulheres
encontrariam a total realização.
Figura 05

Supermoça. Star Álbum, Rio de Janeiro, Supermoça. Star Álbum, Rio de Janeiro, EBAL, n.
EBAL, n. 15, 1970, p. 04 15, 1970, p. 05.
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A felicidade estaria condicionada ao matrimônio. Por ser solteiro e sem perspectiva de


casamento, o Superman, segundo a ideia desenvolvida por Kara, estaria destinado a ser
infeliz. Sua missão, neste caso, era garantir a felicidade do Superman, encontrando-lhe uma
esposa. Para tanto, ela cria uma série de situações que fazem com que ela e o Superman
viagem para o passado e para o futuro, a fim de conseguir para ele uma esposa A narrativa,
como é característico do período, é superficial, mas carregada de simbolismo.

Quando a Supergirl revela a ele seu plano, Superman argumenta que seu trabalho
como protetor da Terra não lhe permite se envolver em relacionamentos afetivos e que o
próprio fato de ser Kryptoniano reduz a possibilidade de poder um dia se casar. Ele precisa de
uma mulher que seja como ele, mas este tipo de mulher não existe. Na verdade, existe, pois a
própria Kara se enquadra neste perfil. Como é de origem Kryptoniana, ela seria a parceira
perfeita para o Superman.

É o herói que levanta a hipótese da união, como se o casamento fosse um jogo de


conveniências. A esposa perfeita para um casamento feliz. Mas é também diante desta
constatação que o super-herói coloca a impossibilidade desta união, uma vez que não pode se
casar ou se envolver romanticamente com a prima uma vez que em Krypton, seu planeta
natal, o casamento entre parentes é ilegal.

O Superman deve cumprir as regras impostas não apenas pela sociedade em que foi
criado, mas também pela sociedade que representa. Ao mesmo tempo ele reafirma e justifica
sua virilidade. Este parece ser o ponto em questão de toda a narrativa. O Superman não se
casa ou não assume um relacionamento afetivo não porque não se sente atraído pelas
mulheres, mas porque ele não pode ou ainda não encontrou uma mulher que possa se
enquadrar no padrão que ele estabelece para si mesmo.

É curioso notar a facilidade com que o Superman se deixa conduzir pela jovem e
acaba se envolvendo romanticamente com algumas mulheres ao decorrer da narrativa. Ele
aceita o fato de que o casamento é importante e não se opõe aos planos da Supergirl. Ele
chega a encontrar a parceira ideal, uma versão mais velha da Supergirl que mora em outro
planeta. Mas a realização deste amor encontra obstáculos. A amada prefere sacrificar sua
felicidade a ter que privar a Terra do seu protetor. Mais uma vez o sacrifício feminino está
presente nas mulheres que povoam a mitologia do Superman.
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O Superman é um dos poucos super-heróis que possuem uma parceira de ação do sexo
feminino. Ela é sua prima, uma parente de sangue. Ele, pelo menos na época, não assume
compromisso amoroso com uma mulher, mas reafirma sua virilidade ao declarar seu interesse
pelo sexo oposto e chega até galantear com a prima. A Supergirl, por sua vez, é a
representação da moça virtuosa, que recebe a atenção de rapazes, que declara sua predileção
pelo sexo oposto, mas não ultrapassa os limites de um relacionamento platônico. Seus
namorados nada mais são do que os rapazes que por ela se interessam, que a cortejam e
deixam claro seu interesse em compartilhar de um relacionamento afetivo mais intenso. Ela
tem consciência deste interesse, ele lhe agrada, mas não evolui para um relacionamento
concreto. Mas ela valoriza o casamento como um ideal feminino, sua natureza sobre-humana
seu dever para com os mais fracos muitas vezes são utilizados como justificativa para não se
envolver romanticamente, assim como acontece com o Superman.

Para além do universo dos quadrinhos, nos Estados Unidos da década de 1960 o
casamento revelava-se incapaz de satisfazer completamente todos os cônjuges. Segundo Betty
Friedan, se por um lado havia entre as mulheres solteiras a convicção de que o casamento
lhes traria se não a felicidade, mas pelo menos a estabilidade, aumentava o número de
mulheres casadas que buscavam tratamento psiquiátrico insatisfeitas no casamento.

“Alguns psiquiatras declararam que, estranhamente, segundo suas


observações, as solteiras eram mais felizes que as casadas. E foi assim que a
porta de todas aquelas bonitas casas de subúrbio entreabriu-se, revelando
milhares de donas de casa sofrendo de uma crise sobre a qual, de repente,
todo mundo se pôs a falar, encarando-a como um desses insolúveis
problemas da vida americana, tais como a bomba de hidrogênio. Em 1962, a
condição da dona de casa americana tornou- se um jogo de salão para todo o
país. Números de revistas, colunas de jornais, livros sérios e frívolos,
conferências educativas e programas de televisão eram dedicados ao
assunto.” (FRIEDAM, 1971, p. 26)

O ideal da felicidade conjugal começava a ruir. Talvez, por essa razão, tanto os
quadrinhos quanto outras mídias reforçassem a necessidade de se preservar a célula familiar.
As moças eram levadas a crer que um marido poderia substituir uma profissão, que a
realização pessoal estava na maternidade. Não apenas as moças, mas os rapazes também eram
bombardeados por um ideal de romantismo que resumia a felicidade à união matrimonial e
onde o relacionamento entre os cônjuges acabava resumindo-se em um pragmatismo raso.
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Considerações finais

Atualmente, encarar as histórias em quadrinhos apenas como uma forma de arte ou


uma mídia é praticamente impossível. Com mais de um século de existência, representando
em suas páginas valores, anseios e ideias do contexto em que foram produzidos, os
quadrinhos podem ser considerados uma espécie de termômetro social. Assim, eles assimilam
discursos, crenças, representações e paradigmas de quem os produziu. Os quadrinhos, como
fonte de estudo e pesquisa na área de ciências humanas, dialogam com o pesquisador.

Eles têm um potencial pedagógico (e aqui não me refiro à pedagogia como ensino
formal, mas como capacidade de repassar informação, difundir ideias) que em determinados
momentos tiveram um alcance muito maior do que o jornal e o cinema. Quadrinhos foram
feitos para meninos e meninas. Durante a década de 1950, as superaventuras passaram a ser
direcionadas para os meninos, enquanto que para as meninas eram indicadas personagens
mais infantilizadas. Mas, onde há regra há transgressão. As meninas também acabavam de
uma forma ou outra consumindo os quadrinhos de superaventura. Nesses quadrinhos, elas
passaram a encontrar o modelo feminino perfeito: a Supergirl.

Uma heroína adolescente, com dramas da juventude, com sensibilidade aflorada e


muitos poderes. Uma jovem que reconhece a autoridade patriarcal, que cumpre seus deveres e
que é submissa. A jovem de classe média dedicada à família e que aceita sem questionar seu
papel na sociedade. As histórias da Supergirl, por mais inocentes que pareçam, serviram para
a difusão do modelo patriarcal, centrado na autoridade masculina e para definir o papel
feminino na sociedade dominada pelos homens. Ela está carregada de violência simbólica e
da inevitável aceitação de que a felicidade está atrelada à subordinação do feminino ao
masculino.

Nos anos de 1970 esta situação de subordinação feminina foi aos poucos sendo
rompida. A mulher de papel, em especial a supermulher, começa a recuperar sua
independência a exemplo do que começa a acontecer com a mulher real. As heroínas mudam,
são reescritas e reinventadas. Alguns pontos icônicos, no entanto, permanecem. Certos mitos
são reproduzidos. O século XXI tem novas personagens e novos modelos de comportamento.
Mas são personagens como a Supergirl que nos fazem refletir acerca das mudanças e
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permanências, da reinvenção e reordenação dos papeis e relações de gênero. De como a


conquista de espaço pelas mulheres na sociedade ainda é um grande desafio.

Referências

CHACON, Beatriz da Costa Pan. A mulher e a Mulher Maravilha: uma questão de


história, discurso e poder (1941-2002). Dissertação de Mestrado no Programa de Pós
Graduação em História Social da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo. São Paulo, 2010.

FRIEDAN, Betty. A Mística Feminina. Petrópolis: Vozes, 1971.

MOYA, Alvaro de. História da História em Quadrinhos. 2º ed. São Paulo: Brasiliense,
1996.

NETTO, Antônio Garcia de Miranda (et all). Dicionário de Ciências Sociais. 2ª ed. Rio de
Janeiro: Ed. Fundação Getúlio Vargas, 1987.

OLIVEIRA, Selma Regina Nunes. Mulher ao Quadrado - as representações femininas


nos quadrinhos norte-americanos: permanências e ressonâncias (1895-1990). – Brasília:
Editora Universidade de Brasília: Finatec, 2007.

PERROT, Michelle. As mulheres ou os silêncios da história. Baurú, SP: EDUSC, 2005.

REBLIN, Iuri Andréas. A superaventura: da narratividade e sua expressividade à sua


potencialidade teológica. – São Leopoldo: EST/PPG, 2012.

SAMARA, Eni de Mesquita (org). Gênero em debate: trajetória e perspectivas da


historiografia contemporânea. São Paulo: EDUC, 1997.

SAYÃO, Deborah Thomé Corpo, poder e dominação: um diálogo com Michelle Perrot e
Pierre Bourdieu. Perspectiva. Florianópolis, v.21, n.01, p. 121-149, jan./jun.2003

Quadrinhos

Action Comics, n° 252, Maio de 1959.

Action Comics, nº 276, 1961.


Supermoça. Star Álbum, Rio de Janeiro, EBAL, n. 8, junho/1969.

Supermoça. Star Álbum, Rio de Janeiro, EBAL, n. 10, 1969.

Supermoça. Star Álbum, Rio de Janeiro, EBAL, n. 11, 1969.

Supermoça. Star Álbum, Rio de Janeiro, EBAL, n. 13, 1969.

Supermoça. Star Álbum, Rio de Janeiro, EBAL, n. 15, 1970.


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Links

Superman, nº 123, August, 1958. Disponível em:


http://thatsmyskull.blogspot.com.br/2005/09/jimmy-olsen-needs-counselling.html, acesso em
20/10/2012.

La Doce Vita. Disponível em http://cidadaoquem.blogspot.com.br/2010/12/super-


familia.html, acesso em 20/10/2012.

Dados da autora: Mestranda em História na Universidade Salgado de Oliveira, Professora da


Educação Básica, graduada em História pela FAFIC/Cataguases, especializada em História do
Brasil pela Universidade Federal de Juiz de Fora (MG) e membro da Academia
Leopoldinense de Letras e Artes de Leopoldina (MG). Foi uma das contempladas pelo
Prêmio Professores do Brasil, em 2008, pelo projeto Gibiteca na Escola. Realiza pesquisas
sobre quadrinhos e educação, educação patrimonial, história local e quadrinhos e
história. nogueira.natania@gmail.com

Publicado na revista Labrys, Études Féministes/ estudos feministas - janvier / juin 2013
-janeiro / junho 2013, disponível em
http://www.tanianavarroswain.com.br/labrys/labrys23/culturepop/natania.htm

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