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Resumo: O presente estudo configura-se como uma leitura da obra de Darcy Ribeiro
intitulada - O Povo Brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. Através dela se
investiga o tema da formação e do sentido do Brasil e do Rio Grande do Sul. O estudo é
de caráter bibliográfico, com enfoque hermenêutico e crítico-dialético. Trata-se de uma
abordagem que tenta compreender o enfoque teórico-metodológico utilizado por
Ribeiro na produção da escrita historiográfica, bem como analisar o próprio conteúdo
desta produção em relação à caracterização da sociedade brasileira e gaúcha.
Compreende-se, com tal empreendimento, o valor original do método na produção de
uma escrita historiográfica sobre a constituição do povo brasileiro e do povo gaúcho, o
qual procura evidenciar a necessidade de uma teoria social crítica para entender nossa
constituição histórica e cultural em caráter não etnocêntrico. Após ler a obra
compreendemos melhor o Brasil atual e, nos tornamos mais conscientes das matrizes
históricas que constituem a exploração de classe, a dominação cultural e a
discriminação étnica e racial.
Palavras- Chaves: História do Brasil. História do Rio Grande do Sul. Darcy Ribeiro.
Introdução
Estas questões nos orientam para a leitura da obra e nos permitem pensar o
significado e o sentido do Rio Grande do Sul conforme nos apresenta Darcy Ribeiro.
Outrossim nos orienta para um tipo de abordagem hermenêutica e crítica que investiga o
método e a perspectiva utilizada pelo autor para abordar os temas referentes à história.
Interpretação que abre para o tematizado pelo autor, mas que também questiona o não
dito. Enfim, o projeto de pesquisa pretende adentrar o tema da história do Rio Grande
do Sul a partir de um autor que se defronta com a crise civilizatória do Brasil. Resta-nos
saber a partir deste escrito os desafios para continuar pensando nossa identidade sulina
na interface deste povo denominado de brasileiro.
Darcy Ribeiro tem uma preocupação existencial com a escrita do livro. Segundo ele,
“não era já a síntese que me propusera. Era, isto sim, a versão resultante de minha
vivências nos trágicos acontecimentos do Brasil de que havia participado como
protagonista (RIBEIRO, 1995, p.13)”. Darcy se interroga no livro acerca das razões do
golpe e o livro aparece como uma tentativa de explicar e entender o Brasil. Nas
seguintes palavras de Ribeiro torna-se possível compreender o motivo de fundo da obra:
“Esse era o nervo que pulsava debaixo do texto, a busca de uma resposta histórica,
científica, na arguição que fazíamos nós, os derrotados pelo golpe militar. Por que, mais
uma vez, a classe dominante nos vencia (ibidem)”?
O Povo Brasileiro aparece como a última grande obra do autor. Antes dela aparecem
O Processo Civilizatório, As Américas e a Civilização, O Dilema da América Latina,
Os brasileiros: Teoria do Brasil, Os índios e a civilização. Ribeiro (1995) situa estas
obras anteriores como Estudos de antropologia da civilização e, todas elas, lhe permitem
constituir fundamentos teóricos que ajudam a tornar o Brasil explicável e logo
alimentam a obra que se apresenta como O Povo Brasileiro. Mas, antes de ser apenas
um texto acadêmico, a obra é um esboço do sentimento e do entendimento do autor
sobre a moralidade que institui o Brasil e, por isso, possui dimensões éticas e políticas
claras e assumidas. “Este é um livro que quer ser participante, que aspira influir sobre as
pessoas, que aspira ajudar o Brasil a encontrar-se a si mesmo” (RIBEIRO, 1995, p.17).
Darcy Ribeiro se coloca existencialmente na obra e imagina com ela deixar seu registro
na construção de “uma nova luta por um Brasil decente” (RIBEIRO, 1995, p.17).
O livro tem como objeto a constituição do Brasil e dos brasileiros. O autor busca
reconstituir a gênese da sociedade brasileira na confluência de grandes culturas –
Europeia – Ameríndia – Africana. Os brasileiros não são os portugueses, os negros, ou
mesmo os ameríndios, mas são forjados, principalmente, por estas culturas e etnias.
Assim, o Brasil e o brasileiro são investigados sob a ideia de um povo e de uma nação
que se diferencia, na sua constituição, dos povos lusitanos e dos povos europeus e
africanos em geral. Compreender a forma como se constitui um Brasil uno e diverso,
marcado por desigualdades e diferenças econômicas, sociais, culturais, ambientais e
políticas torna-se a centralidade da obra. Nela, depositam-se explicações teóricas gerais
e amplas sobre o processo civilizatório do Brasil, bem como explicações teóricas
particulares e específicas de sua constituição regional enquanto nação. Outrossim,
lembrando Walter Benjamin1, a obra parece representar uma espécie de história a
contrapelo, no sentido de que nossas mazelas atuais são compreendidas em sua
produção histórica. Darcy vive o presente do Brasil e sem deixar de estar nele, tematiza
como chegamos até ele. Não é uma letra morta, mas uma palavra viva que anima a
escrita do autor, conforme nos ensinou Bakthin2, o que torna o valor da obra uma
presença viva e política no imaginário de nosso tempo. A gênese da sociedade e da
cultura brasileira torna-se, portanto, o ponto unificador de toda obra.
1
“Não há documento de cultura que não seja também documento de barbárie. E, do mesmo modo que ele
não pode libertar-se da barbárie, assim também não o pode o processo histórico em que ele transitou de
um para outro. Por isso o materialista histórico se afasta quanto pode desse processo de transmissão da
tradição, atribuindo-se a missão de escovar a história a contrapelo” (BENJAMIN, 2012, 13).
2
“A memória da história da humanidade está cheia destes signos ideológicos defuntos, incapazes de
constituir uma arena para o confronto dos valores sociais vivos. Somente na medida em que o filólogo e o
historiador conservam a sua memória é que subsistem ainda neles alguns lampejos de vida” (BAKHTIN,
1981, p.46).
Darcy Ribeiro é antropólogo, por pensar, sobretudo, o homem e a cultura e, por
ter buscado compreender a experiência de vida dos povos indígenas, dos negros e dos
povos lusitanos, que constituem o Brasil, é historiador, por pensar a gênese histórica e
civilizacional do homem, da cultura e da sociedade, é sociólogo, por pensar a
estruturação de uma sociedade, em sua interface com a vida econômica, social, cultural,
histórica e política. Darcy é filósofo crítico, por se perguntar acerca de quem somos
identitariamente, e buscar problematizar a forma como fomos descritos pela
historiografia oficial. Darcy é político, por entender que a história (e o curso do mundo
e das sociedades humanas) está sendo permanentemente escrita pelos homens. Neste
sentido, emergem na revisão bibliográfica da obra autores que versam sobre a vida dos
índios, dos negros, dos lusitanos, dos imigrantes no contexto de emergência e
constituição do Brasil. Todos os escritos estudados são organizados sob a perspectiva de
Darcy, que de forma original, as situa na interface da problemática econômica, social,
cultural e política que vive a sociedade brasileira ao longo de cinco séculos e que
permitem gestar algo novo: o povo brasileiro. Realizar a crítica da gênese das relações
sociais e culturais do Brasil parece ser a forma encontrada por Darcy para entender a
forma desigual que se distribuiu o poder no Brasil. As fontes utilizadas pelo autor,
portanto, percorrem a historiografia em geral, valendo-se desde escritos de freis
lusitanos, como de antropólogos, geógrafos, historiadores, sociólogos, literatos,
filósofos e economistas.
3
Na leitura de Ribeiro, “o Brasil Sulino surge à civilização pela mão dos jesuítas espanhóis, que fazem
florescer no atual território gaúcho de missões a principal expressão de sua república cristã-guaranítica”
(1995, p.409). Esta incorporação se deu de forma bastante diferenciada do modelo colonial escravista,
uma vez que “o modelo jesuítico buscava assegurar-lhe uma existência própria dentro de uma
comunidade que existia para si, isto é, que se ocupava fundamentalmente de sua própria subsistência”
(RIBEIRO, 1995, p.410).
Esta dimensão econômica explicitada por Ribeiro ajuda a entender a constituição
do Brasil Sulino. Tratava-se de primeiramente domesticar os índios e depois incorporar
o território ao restante do país. Ribeiro assim explicita a dimensão mercantil que os
índios e em seguida o gado representavam para a colonização da região. Segundo ele
“os índios escravos do século XVII e o gado do século XVIII, sendo ambos mercadorias
que podiam transportar-se a si próprias ao mercado (...), dariam ao extremo sul
condições econômicas de vincular-se com o norte e com o centro do Brasil” (RIBEIRO,
p.411). A colonização do Rio Grande do Sul, como vemos, emerge dos interesses
portugueses e espanhóis, os primeiros tentando extrair e se apropriar dos índios como
forma de mercadoria a ser gasta nos trabalhos escravos e, os segundos, pelas mãos dos
jesuítas espanhóis, tentando criar uma república cristã-guaranítica.
A Colônia do Sacramento tem uma importância política que associada com
outros fatores, colaboraram para definir o território gaúcho por meio de intensas
negociações. Ribeiro destaca como um dos fatores de unificação da região sul ao resto
do Brasil a “postura portuguesa dos luso-brasileiros do extremo sul frente à postura
castelhana” (RIBEIRO, 1995, 412). Levanta também a ideia da vinda dos colonos
açorianos ,e dos imigrantes centro-europeus, ocorrida depois da Independência, bem
como a própria condição de fronteira do Brasil Sulino.
Em se tratando da constituição étnica do gaúcho, Ribeiro (1995, p.414) enuncia
que os gaúchos brasileiros tem uma formação comum à dos demais gaúchos platinos.
Ribeiro pontua o núcleo guarani, o núcleo neoguarani e a prole de portugueses
instalados na Colônia do Sacramento. O primeiro núcleo devido os ataques dos
bandeirantes paulistas e da expulsão da Companhia de Jesus colocaram-se em diáspora,
mas acabaram-se incorporando-se à sociedade nacional através do “engajamento
compulsório em sua força de trabalho” (ibidem). O núcleo guarani que acabou sendo a
proto-célula do gaúcho forjou-se no território das Vacarias Del Mar (o Uruguai de hoje).
“Posteriormente, sob a influência de forças conformadoras endógenas, essa matriz se
dividiu para atrelar-se às entidades nacionais emergentes, como argentinos, uruguaios,
paraguaios e brasileiros” (RIBEIRO, 1995, p.416). Na interpretação de Ribeiro
(ibidem), “esses eram os gaúchos originais, uniformizados culturalmente pelas
atividades pastoris, bem como pela unidade de língua, costumes e usos comuns”.
Este primeiro momento da constituição do gaúcho contrasta com uma condição
que iria mudar ao longo dos séculos em medida que a colonização iria consolidando a
distribuição de terras sob forma de sesmarias, criando a emergência das estâncias e uma
nova lida para o gaúcho. Agora se tratava de não mais lidar como gado selvagem, como
tornara-se a função do gaúcho campeiro, mas de lidar com o gado no pastoreio, numa
atividade altamente racional. A nova forma de inserção do Brasil sulino à economia
brasileira pela via do charque criara uma nova forma de relação social, na qual “o
estancieiro vai deixando de ser o caudilho para tornar-se o patrão de seus gaúchos”
(RIBEIRO, 1995, p.421). Este novo gaúcho sedentarizado, sob a nova forma de
propriedade, é “compelido a assumir seu novo papel de simples peão” (idem, p.422).
“Todavia, o peão de estância, ainda assim, é um privilegiado na paisagem
humana da campanha. Com o gado cresceu a população, que, sobrante das singelas
necessidades de mão-de-obra das lides pastoris, foi sendo desalojada das estâncias”
(RIBEIRO, 1995, p.423). A condição do aumento da população, e da configuração
social marcada pelo predomínio da propriedade privada da terra e dos meios de
produção, cria uma massa de trabalhadores gaúchos que se transformam em reservas de
mão-de-obra à espera de trabalho nas estâncias. “São trabalhadores de changa,
biscateiros subocupados mas prolíficos, cujas famílias crescem na penúria, vitimadas
por moléstias carenciais, por infecções, enfim, por todos os achaques da pobreza, com
mais um subproduto do latifúndio pastoril” (idem, p.424).
Enfim, percebe-se que Ribeiro (1995), mostra as contradições deste Brasil
sulino, que se produz numa forma de crescente concentração de terras nas mãos de
poucos, o que acaba por produzir uma população de marginalizados. Os gringos
imigrantes tornam-se pequenos proprietários e os caboclos tornam-se sem-terra.
Outrossim, partes destas regiões gringas e nipo-brasileiras avançam tardiamente para
um processo de industrialização, facilitadas pelo bilinguismo. O tema da escravidão do
negro e sua incorporação na lida de campo (bem como sua participação na constituição
da etnia gaúcha), não é mencionado suficientemente por Ribeiro, o que mostra que o
tema na época da produção do livro não tinha um grande significado na historiografia;
aspecto que foi destacado por Maestri em seu livro sobre a escravidão no Rio Grande do
Sul.
Considerações Finais
A obra consiste num claro esforço do autor em pensar o Brasil e o Rio Grande
do Sul a partir de sua história. No último tópico do livro, intitulado o destino nacional,
pode-se compreender como a síntese de todas as partes anteriores. Nesta, o autor parece
querer responder às questões que se apresentavam na introdução e nos capítulos
anteriores: Como entender nossa identidade enquanto povo e como pensar nossa
constituição social? Onde se coloca nossa possibilidade de liberdade? Quando nos
tornamos um povo capaz de projeto próprio? Estas parecem questões de fundo que são
retomadas nas considerações finais. Elas possuem um horizonte político e ético e são
assumidas pelo autor a partir de uma perspectiva crítica da civilização ocidental e do
capitalismo moderno. Este caminho permite reescrever a teoria social do Brasil, intuito
maior do autor. Em sua leitura não somos um povo transfigurado da Europa ou da
África, somos, isto sim, um povo novo, uma civilização nova, em processo de ser, mas
impedidos de sê-lo (RIBEIRO, 1995, p.453). Em suas palavras:
Não há, nunca houve, aqui um povo livre, regendo seu destino na busca de sua
própria prosperidade. O que houve e o que há é uma massa de trabalhadores
explorada, humilhada e ofendida por uma minoria dominante, espantosamente
eficaz na formulação e manutenção de seu projeto de prosperidade, sempre
pronta a esmagar qualquer ameaça da ordem social vigente (RIBEIRO, 1995,
p.452).
Em suma, o autor parece ter nos ajudado um pouco para entender de onde
viemos e como nos plasmamos enquanto povo, sociedade, cultura e nação. Outrossim,
parece ter nos mostrado nossas misérias e nossas contradições históricas. Após ler o
livro, somos outros, muito mais sensíveis para os processos de discriminação,
exploração e preconceito que constituem nosso cotidiano massificado. Tornou-se
possível entender a forma subordinada de incorporação das populações indígenas ao
processo civilizatório no Brasil Sulino, bem como a sua grande contribuição na
definição desta identidade étnica do gaúcho original. Outrossim, percebeu-se o lugar do
colonizador lusitano, espanhol e do imigrante centro-europeu no processo de
constituição do gaúcho e da sociedade sulina. A rica participação do povo negro, no
entanto, não ganhou destaque na obra de Darcy Ribeiro quando o assunto foi o Brasil
Sulino, o que, no entanto, não retira o valor da obra. Com Darcy Ribeiro entendemos de
forma articulada as grandes mudanças sociais e econômicas que ocorrem em solo sulino
e, junto com elas, entendemos a constituição deste povo em suas matrizes étnicas,
culturais e identitárias.
Referências Bibliográficas