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Lílian do Valle
Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas e Formação Humana
Vivemos uma época de poucas certezas, de muito alguma forma de endereçamento imaginário, o sentido ou
desânimo em relação à sociedade, à política, à ação o significado de um ato, de uma experiência ou de uma
humana e seu poder. O ceticismo generalizado apre- vida inteira se revela na interface entre o que é mais singu-
senta-se como o traço talvez mais característico da nova lar, mais particular para o agente/vivente, e sua inscrição
cultura globalizada – seja como uma espécie de idio- simbólica na cultura em que vive. (Kehl, 2002, p. 9)
ma universal em que as teorias da moda se comprazem
e pelo qual justificam sua inoperância, seja como sin- Mas o que parece mais grave no ceticismo con-
toma de um sofrimento com o qual o comum dos mor- temporâneo é que ele não é apenas descrença em re-
tais de nossa época já não consegue lidar. lação aos sentidos que fizeram até aqui existir o mun-
E isso porque a assustadora fragilidade dos senti- do comum e cada existência privada sob a terra; ele é
dos coletivamente instituídos, longe de ser fenômeno também, e sobretudo, marcado pela renúncia mais ou
meramente exterior, prolonga e intensifica o sentimento menos consciente – forma toda própria pela qual o
de vazio e de isolamento em que o cotidiano mergulha ser humano investe a exigência de sentido que, a prin-
cada um – não fossem os humanos seres para quem cípio, está presente em toda forma de vida. É essa,
individuação e socialização caminham juntas: pois, a triste originalidade que nos é concedida: tal
como nossos antepassados, suspeitamos que, por si
Com exceção de algumas produções muito delirantes sós, nem a vida humana, nem o mundo de intenções e
na psicose, que mesmo assim são engendradas a partir de afetos, de relações e de coisas que ela põe em jogo
façam sentido; mas, diferentemente daqueles que nos
* Conferência proferida como aula inaugural do Aleph – precederam, passamos a aceitar que isso deva, de fato,
Programa de Pesquisa, Aprendizagem-Ensino e Extensão em For- ser assim mesmo, que não adianta buscar sentido para
mação dos Profissionais de Educação, no Programa de Pós-Gra- o que somos e vivemos e para aquilo que nos rodeia;
duação em Educação da Universidade Federal Fuminense (UFF), que, sob o peso da provisoriedade e da precariedade
em junho de 2006. que experimentamos cotidianamente em relação a
tudo, essa busca, quando não é vã, é no mínimo insu- da falsa alternativa entre sentido pleno e nenhum sen-
portavelmente frustrante. tido, reconhecendo que unidade e multiplicidade tam-
Assim, não foram os teóricos pós-modernos que bém não são termos opostos de uma alternativa efeti-
“ inventaram” o questionamento sobre a fragilidade e a va, mas apenas faces inseparáveis da mesma realidade.
impermanência das coisas, como se chegou a supor É assim a insistência na unidade paradoxal entre
recentemente. Muito pelo contrário, não é exagero di- soma e psique que nos impele a reconhecer as múlti-
zer que toda a história cultural se escreve como tentati- plas clivagens, as ordens conflitantes de razão, as múl-
va de resposta a essa dolorosa constatação que não ces- tiplas razões de ordenamento da existência humana.
sou de assombrar os humanos: a filosofia e o projeto Psique, indivíduo, coletividade: dimensões da expe-
democrático, as religiões monoteístas, a razão moder- riência humana que são, elas próprias, objeto de no-
na, o próprio capitalismo podem ser entendidos como vas clivagens e conflitos.
respostas oferecidas à mesma questão do sentido. Porém, em todas essas dimensões – para a psi-
De múltiplas formas e a partir das mais diversas que, tanto quanto para a existência individual e para a
condições e vias, as diferentes sociedades foram leva- sociedade – , aquilo que não tem sentido simplesmen-
das a posicionar-se em relação à questão dos sentidos te não existe. É claro que – sem querer abusar dos
da existência; e, conforme as condições de autonomia sofismas – “ não fazer sentido” pode ser uma forma
ou de heteronomia em que estavam mergulhadas, essa tênue e excepcional de fazer sentido, mas então o que
resposta foi apresentada como dogma ou, mais rara- é a-sensato aparece como distúrbio, como ruído incô-
mente, submetida ela própria a pesado questionamen- modo, como escândalo, como desatino que, de toda
to. Quanto a isso, os dias de hoje não constituem qual- forma, suscita uma reação, provoca uma atividade de
quer excepcionalidade. Por isso, se é mesmo necessário significação que visa à superação do mal-estar.
conceder alguma originalidade aos tempos atuais, de- Mas não há para o humano, ou para qualquer das
veremos então identificá-la ao fato de nunca termos dimensões em que se pense isolá-lo, a possibilidade
sido tantos a acreditar que já não faz sentido buscar de viver fora do sentido, de conviver passivamente
sentido para as coisas; e, também, à enganosa crença com o que clama por ser significado: não sendo deu-
de que é possível sobreviver sobre as ruínas dos senti- ses nem bestas, os humanos estão condenados a pro-
dos revolutos – eis que, tal qual anjos que, desencar- ver sua existência de sentido minimamente manifes-
nados, não necessitam das baixezas da alimentação to, ainda que o façam de forma não-intencional e
para prosseguirem em vida, nós nos elevaríamos so- inconsciente. Por isso, a outra face do ceticismo é
bre o passado como aqueles que se nutrem apenas de sempre o fatalismo – exato contrário do que se pode-
interrogações e de incertezas… ria chamar de movimento instituinte. Vale a pena res-
Pois são, paradoxalmente, as teorias que preten- saltar: o ceticismo é e não poderia ser senão profun-
dem fazer a crítica radical da razão moderna aquelas damente conservador. Sua ação sempre acaba por
que hoje revigoram a crença de que é possível reali- implicar a ratificação daquilo que é, ela sempre desá-
zar plenamente o sonho – diga-se de passagem, au- gua na blindagem do status quo, não apenas por levar
tenticamente moderno – de desencantar inteiramente à imobilidade de fato, mas sobretudo por divulgar a
o mundo, emancipando os humanos dos limites de crença de que qualquer movimento é… inútil.
que é feita toda humanidade.
Esses limites, que a tradição filosófica se havia Sentido e funcionalidade
habituado a associar aos instintos e à corporeidade, e,
em seguida, a tudo o que se opunha a uma razão in- Ao afirmar que a exigência de sentido está pre-
sistentemente identificada ao cálculo e à instrumen- sente em toda forma de vida, empregou-se uma
talidade, são agora os que nos obrigam a desconfiar acepção inegavelmente ampliada da palavra “ senti-
do” – aquela mesma de que partiu Cornelius No entanto, para o vivente em geral – para o ví-
Castoriadis (1992) para fazer esta postulação, à pri- rus, para a lesma, para um cão, ou mesmo para uma
meira vista absurda, segundo a qual a criação não é célula de nosso organismo – , o que se pode chamar
um monopólio do humano, mas que, muito pelo con- de “ sentido” se esgota na pura funcionalidade. Em
trário, “ todo vivente cria seu mundo próprio” (p. 206). outras palavras, nesse caso mais genérico, o “ senti-
do” está integralmente relacionado à sobrevivência,
Há, pois, o que se poderia chamar de movimento de forma que todos os organismos vivos, dos mais
instituinte na base de tudo que respira – de tudo quanto, simples aos mais complexos, desenvolvem estratégias
diria Péricles, florescendo, conhecerá também fatalmente (que vão também das mais simples às mais comple-
o seu declínio. (Tucídides, 1987, II, 64, 3) xas) para evitar aquilo que põe sua conservação e a
reprodução de sua espécie em risco, e para aproxi-
Torna-se então possível dizer que, em uma pri- mar-se daquilo que, ao contrário, contribui para sua
meira abordagem, a própria vida nada mais é do que conservação/reprodução. Essa é a única finalidade da
um incessante movimento instituinte pelo qual o vi- existência do vivente: para ele, a criação de sentidos
vente se dá as condições de sua sobrevivência. A vida está estritamente limitada à sobrevivência, e assume
é pulsão de conservação que leva o vivente a dever o que Castoriadis denomina uma forma canônica, rí-
relacionar-se com tudo que existe de uma maneira que gida, que não poderá ser ameaçada sem ameaçar a
lhe seja favorável, benéfica para sua conservação, ou própria existência do vivente.
para conservação de sua espécie – o que, em termos Somente para o humano a exigência de sentido
do vivente, é estritamente a mesma coisa. E como a escapa às regras da funcionalidade, autonomiza-se em
natureza não contém informações previamente codifi- relação à finalidade de preservação e reprodução. Isso
cadas e à disposição das formas de vida capazes de quer dizer que os sentidos criados pelos humanos têm
interpretá-las, cabe a cada vivente “ in-formar”, isto é, finalidades que vão muito além da simples sobrevi-
formar em si, a partir de si, o que por um abuso de vência. Isso levou os filósofos a repetirem que os se-
linguagem estamos chamando de sentido ou de signi- res humanos não têm instintos que lhes sejam pró-
ficação. O vivente deve criar o sentido, isto é, uma prios. De forma um pouco mais rigorosa, poder-se-ia
forma de fazer entrar em seu mundo próprio aquilo dizer que somente eles, entre todos os viventes, têm a
com o que se entra em relação; ele deve criar uma re- possibilidade de negar as determinações naturais que
presentação que traduzirá um afeto (um modo especí- se expressam como instintos, fabricando para si como
fico de deixar-se afetar) e manifestará uma intenção que uma “ segunda natureza”.
(um desejo), que estarão relacionados a cada experiên-
cia específica. A representação é a valoração necessá- A possibilidade de negar as leis da natureza que se
ria do que é apresentado: a partir dela, o que é apresen- impõem sob a forma de instintos marca a singularidade do
tado se torna suporte de um afeto (atração/repulsa), homem em relação ao animal, o que conduz Rousseau (1969,
que passa a guiar a intenção (desejo), conduzindo a p. 173) a afirmar que não há, entre os humanos, nenhum
uma ação: aproximação ou afastamento. E isso, alerta- instinto que lhes seja próprio; de forma que, “ elevando até o
nos Castoriadis (1992, p. 221), “ vale tanto para a bac-
téria quanto para um indivíduo ou uma sociedade”.1
cífica, isto é, singular. Mas ela se apóia em um ‘certo ser-assim’
do mundo: o ‘choque’ não é, portanto, inteiramente indeterminado
1
Diz Castoriadis (1987, p. 221): “ nos termos antigos, lógi- e indiferenciado. O que significa que o mundo deve se deixar or-
co-poiético, o tímico e o orético”. E ainda: “ Esta representação ganizar por esta organização própria que o vivente a cada vez es-
nada tem de objetiva: ela é seletiva, ela é determinada, ela é espe- tabelece para si de forma singular” (idem, ibidem).
instinto das bestas”, eles, que não têm “ … talvez nenhum que mente à autofinalidade de preservação. Mas isso não
lhes pertença,… se apropriam de todos”. (Valle, 2002, p. 104) quer dizer, evidentemente, que não pese sobre os in-
divíduos e sobre as sociedades uma força de conser-
E mais ainda: em certos casos, os sentidos que o vação, que visa cegamente à manutenção do status
humano constrói para si, para seu mundo, individual quo e que torna corriqueira a criação ou a auto-insti-
ou coletivamente, vão mesmo contra a funcionalida- tuição em condições que, assim, só podemos nomear
de. Exemplos não faltam, na história, de sentidos que, de heterônomas, ou de fechamento, posto que tudo
para o bem ou para o mal, conduzem os homens e as que fazem é reiterar o que já existe. Muito pelo con-
sociedades a abdicar da luta pela sobrevivência, pre- trário, aquilo que podemos considerar o núcleo pri-
cipitando de forma intencional o seu próprio fim. mitivo de nossa identidade, a psique original – que
Essa característica do humano e das sociedades é Castoriadis denomina “ mônada psíquica” – , é, inicial-
essencial para a democracia: ela implica a possibilida- mente, inteiramente fechada ao exterior. Esse fecha-
de de radicalizar-se o questionamento do instituído, mento original tende, no entanto, a ser rompido de
levando-o mesmo até o ponto de ruptura com o mundo maneira mais ou menos violenta pela socialização –
próprio – pelo menos nos termos em que o indivíduo e que começa quando o recém-nascido entra em conta-
a sociedade o haviam construído para si. Do ponto de to com a sociedade ou com seu primeiro representan-
vista da funcionalidade, uma revolução, tanto quanto o te: a mãe. A abertura a sentidos que não estavam ori-
autoquestionamento, são aberrações, já que sempre ginalmente instituídos é o que, entre outras coisas,
colocam em risco a sobrevivência do ser – indivíduo permite que a psique possa significar o próprio cor-
ou sociedade – tal como até então ele se definira. po, dando início ao processo de autocriação, de insti-
E não será apenas uma provocação concluir que o tuição das condições para um auto-reconhecimento,
conservadorismo situa o humano no nível da pura fun- para o estabelecimento da identidade daquele que
cionalidade a que estão presos todos os demais viven- poderemos denominar “ indivíduo”.2
tes – na medida em que para estes, como mencionado A psique é, pois, ela também, capaz de disfun-
ainda há pouco, vigora a exigência de um sentido fixo cionalização em relação à autofinalidade da preser-
e imutável. Repare-se, de passagem, que a insistência vação – maneira talvez rebarbativa de dizer que tam-
em comparar os fenômenos humanos aos fenômenos bém a psique pode abrir-se ao que ela originalmente
biológicos – modismo recentemente reintroduzido na não é, e construir sentidos antes inexistentes para si.
área da educação, que assim achou estar-se munindo Em uma palavra, a psique é capaz de transformar-se
para tratar da complexidade – não é somente uma vol- em outra coisa diferente do que era. Porém, um enor-
ta inaceitável à ingênua concepção de uma ciência única me paradoxo, paradoxo tipicamente humano, faz,
para explicar tudo que há; é, muito particularmente, como diria Piera Aulagnier (1975, p. 27), que a psi-
uma terrível concessão a esse conservadorismo, redu- que só adquira o sentido que não tinha, só se transfor-
ção do humano à animalidade, na qual ele se confunde me no sentido que não era, transformando tudo nela
com tudo que respira, e ocultamento da dimensão so- mesma, metabolizando o outro. Isso fica evidente na
mente própria à humanidade, a dimensão que nos faz própria corporeidade, cujo sentido é, para a psique,
únicos entre os viventes: a autonomização da ativida- uma aquisição – mas uma aquisição que é, que não
de de criação. pode ser nada além de sentido.
Psique e sentido
2
A contraprova estaria nos transtornos nesse processo de
A criação de sentido é, pois, no humano, disfun- ruptura da mônada psíquica que caracterizam a anorexia infantil,
cionalizada, já que somente aí ela não atende unica- brutalmente fatal para recém-nascidos.
No entanto, logo essa corporeidade deverá, de cer- tidos do que podemos dar-nos conta, quanto há
ta forma, ser colocada em questão, para que haja socia- subdeterminação, já que um símbolo psíquico está
lização. É o que os psicanalistas chamam de substitui- como que permanentemente à disposição de novos
ção do prazer de órgão pelo prazer de representação – sentidos que lhes sejam agregados. E há, igualmente,
a sublimação que caracteriza a superação das fixações uma supra-simbolização daquilo que é simbolizado,
próprias às fases oral e anal. A capacidade de investir pois o sentido psíquico sempre é e pode ser simboli-
em um objeto de prazer que é pura representação forne- zado de múltiplas e incontáveis maneiras. No entan-
ce à psique sua onipotência, que Freud denominara “ ilu- to, por mais que, simbolicamente, um mesmo sentido
sória”. Castoriadis, no entanto, corrige: do ponto de vista possa assumir roupagens totalmente díspares, e ter
psíquico, essa onipotência nada tem de uma ilusão, ela uma infinidade de representações que lhe correspon-
é uma realidade. O objetivo da psique, lembra ele, “ não dem, sempre resta algo de incomunicável, de irrepre-
é transformar a realidade exterior, apenas transformar a sentado e irrepresentável na psique.
representação (emancipá-la, se pode-se assim dizer) para Resta, porém, que essa espantosa maleabilidade
torná-la agradável” (1992, p. 215). De forma que não do movimento instituinte da psique vai marcar pro-
há regularidade nas relações entre o objeto representa- fundamente a existência humana, fazendo com que
do e a representação psíquica. Não estando presa às re- ela se distinga radicalmente do modo de existir do
presentações uma vez instituídas, nem a uma forma de vivente em geral.
representação canônica, rígida, permanente, a imagina-
ção humana cria e recria incessantemente os objetos de O indivíduo-social e o social histórico
investimento psíquico, tanto quanto institui e reinstitui
constantemente as relações com eles estabelecidas. A Essa plasticidade é condição necessária para que
possibilidade de “ autonomização do afeto e do desejo” haja um outro tipo, ainda, de movimento instituinte –
em relação às demandas imediatas, que são as do cor- aquele que faz existir as sociedades. As sociedades
po, possibilita, no humano, a ultrapassagem da dimen- são criações humanas – talvez seja esta afirmação a
são funcional. Instala-se assim uma atividade livre de contribuição mais conhecida de Castoriadis: a crítica
criação de sentidos que fez com que Castoriadis defi- à idéia de que aquilo que as sociedades são depende-
nisse a psique como “ fluxo representativo ilimitado e ria inteiramente, seria inteiramente determinado por
incontrolável” (idem, p. 216). leis naturais ou mesmo históricas. A sociedade – ou o
Identificamos, assim, entre os viventes, um tipo social-histórico, como o filósofo costumava denomi-
de movimento instituinte muito específico, sui generis, nar – é autocriação. Mas a sociedade não é criação de
que é próprio da psique. Melhor ainda: a psique não é um indivíduo ou de um grupo particular, e sim do que
outra coisa senão este movimento ininterrupto de cria- o autor chama de “ coletivo anônimo”, ou “ sociedade
ção de sentidos, que pode evidentemente assumir um instituinte”, em oposição à sociedade instituída. A
caráter conservador, ou não – não seria possível defi- auto-instituição da sociedade, diz o autor, é
nir a neurose como fixação e re-criação constante de
um mesmo afeto, numa espécie de looping cogniti- [...] a criação de um mundo humano: de “ coisas”, de
vo? Mas é preciso reconhecer a extraordinária labili- “ realidade”, de linguagem, de normas, valores, modos de
dade da psique, à qual Castoriadis (1992) se referiu viver e de morrer, objetivos pelos quais vivemos e outros
como um misto de “ economia e prodigalidade sim- pelos quais morremos – e, obviamente, em primeiro lugar e
bólicas”. Essa labilidade vem do fato de que, na rela- acima de tudo, ela é a criação do indivíduo humano no qual
ção entre o sentido e sua representação, na relação a instituição da sociedade está solidamente incorporada.
entre símbolo e simbolizado, há tanto uma suprade- Nesta criação geral da sociedade, cada instituição particu-
terminação do símbolo, que sempre carrega mais sen- lar e historicamente dada da sociedade representa uma cria-
ção particular. Criação, no sentido em que a entendo, signi- a elucidação do fato de que socialização e individua-
fica a instauração de um novo eidos, uma nova essência, lização são um só e mesmo fenômeno pode ser dada
uma nova forma, no sentido pleno e forte deste termo: no- como uma das grandes contribuições que a obra de
vas determinações, novas normas, novas leis [… ] não ape- Cornelius Castoriadis tem a fazer ao pensamento e à
nas leis “ jurídicas”, mas maneiras obrigatórias de perceber prática educacional.
e de conceber o mundo social e “ físico”, e de nele agir. Em Como pudemos pressentir ao falarmos da mônada
virtude desta instituição global da sociedade, criações es- psíquica, a individuação depende de um movimento
pecíficas aparecem em seu interior: a ciência, por exemplo, instituinte de abertura ao mundo, a sentidos externos.
tal como a conhecemos e concebemos, é uma criação parti- Assim, como o filósofo não cessava de repetir, o que
cular do mundo grego-ocidental. (Castoriadis, 1987, p. 271) se opõe à sociedade não é o indivíduo, mas a mônada
psíquica. O indivíduo social, como ele o denomina-
Também no caso da sociedade, o movimento va, é “ psique socializada”, ainda que a socialização
instituinte é necessariamente um fluxo ininterrupto de da psique sempre seja parcial, nunca se dando nem
criação e recriação não só da realidade material, mas inteiramente, nem permanentemente.
dos sentidos que a ela são concedidos, e que fazem De modo que dois movimentos instituintes se
com que essa realidade material exista para cada um confundem aqui, sendo um a origem do outro: aquele
de nós e exista, com diria Hannah Arendt (1987, p. 67), pelo qual os humanos criam, a cada vez, os termos e
como “ terreno comum a todos, [onde] os que estão pre- condições de sua existência comum, criam a socieda-
sentes ocupam [… ] diferentes lugares, o lugar de um de; e aquele pelo qual cada sociedade cria, a cada vez,
não podendo jamais coincidir com o de outro”. No en- seus indivíduos. De modo geral, longe de estarem em
tanto, é claro que, tal como a criação psíquica, a cria- oposição, os indivíduos são as primeiras criações das
ção social pode dar-se – e quase sempre se dá – em sociedades que eles próprios criaram. E, novamente,
condições de heteronomia, isto é, de mera reiteração aqui a atividade de instituição encontra a dimensão
daquilo que está já instituído, sem questionamentos e, da funcionalidade: O indivíduo “ funciona” porque se
portanto, sem possibilidades de auto-alteração. socializa, e “ faz funcionar a sociedade”, provocava
A tradição acostumou-nos a pensar nas socieda- Castoriadis (1992, p. 220-221).
des como construções supra-humanas ou extra-sociais: O que podemos perceber, portanto, é que a exis-
como devendo sua existência à natureza “ sociável” tência humana depende de um movimento continua-
do homem, ou ao gesto divino, ou à determinação da mente instituinte, que se dá no nível natural-funcio-
história, a uma necessidade natural de sobrevivência, nal, comum a todo vivente, e nos níveis psíquico e
ou mesmo ao acaso. A mesma tradição habituou-nos social – somente presentes no humano. Porém, a exis-
a pensar que indivíduo e sociedade se opõem, que há tência desses níveis não se constitui, em si, nem em
conflito insuperável entre o que seria, por um lado, a ultrapassagem, nem em exclusão do nível da funcio-
subjetividade, a autenticidade sempre interior, a sin- nalidade, mas, até certo ponto, como vimos, o suben-
gularidade que não se pode compartilhar, pois que tende. Na base da vida, em seu sentido mais amplo e
expressá-la em termos comuns seria perdê-la; e, por mais simples, tanto quanto em seu sentido mais ela-
outro, a sociedade, pura objetividade, artificialidade borado e específico, há criação. Isso, contudo, em nada
sempre inautêntica, já que puramente convencional, garante a democracia.
toda exterior, irredutível aos sujeitos. Por força da mais
simples coerência, deve-se observar que, tanto quan- Democracia e criação
to não há sociedade sem indivíduos, não há indivi-
dualização sem sociedade. No entanto, essa constata- Longe disso, se o que vimos até aqui acerca das
ção vem sendo ocultada de forma tão sistemática que relações entre indivíduo e sociedade é verdadeiro,
assim como em nível orgânico a sobrevivência de- de “ especialistas de governo”. Na democracia grega,
pende do fechamento do vivente, da preservação do nos poucos casos em que há atribuição de magistratu-
sentido de sua existência, da reiteração conservadora ras, a indicação não se dá somente ou sobretudo por
daquilo que já existe, no nível social a manutenção eleição, mas igualmente por sorteio e por rodízio. Os
do status quo, a preservação da sociedade, depende magistrados devem, no entanto, prestar contas perio-
da fabricação de indivíduos a ela perfeitamente iden- dicamente à coletividade, pois apenas ela é soberana.
tificados e prontos a não colocar jamais em questão Mas há ainda dois outros princípios: a permanente in-
sua existência tal qual ela é, e a rejeitar prontamente terrogação, feita atividade coletiva explícita, constan-
tudo que é estrangeiro e diferente. te, aberta e ampliada, que impede que a democracia se
E foi assim que se deu, de forma maciçamente extinga a ela mesma pela fixação de novos dogmas; e
recorrente ao longo da História humana. Nada no que a autolimitação, que significa que a coletividade deve
é o humano e tampouco no que são as sociedades in- saber precisar os limites de sua atividade instituinte.
duz à invenção da democracia. Em outras palavras, a “ Em uma democracia”, diz Castoriadis, “ o povo pode
democracia não pode ser deduzida nem da natureza fazer toda e qualquer coisa – e precisa saber que não
humana, nem da História; ela é uma criação e, como deve fazer toda e qualquer coisa” (1987, p. 304).
tal, não pode ser “ explicada”. O projeto democrático O movimento que institui a democracia é aque-
irrompeu pela primeira vez no mundo grego como le, portanto, que cria a igualdade de participação no
novidade que nada, no passado, havia preparado. poder, que cria o espaço público como lugar que per-
Vale a pena mencionar, ainda que rapidamente, tence a todos, mas a ninguém de forma particular, e
alguns dos principais traços pelos quais, segundo onde se pratica a deliberação e o autoquestionamento
Castoriadis, o regime democrático se fez novidade coletivos. Reparem que a liberdade de discurso e de
radical no mundo antigo, pelos quais os gregos reali- pensamento não é pouca coisa, ali onde, abdicando
zaram a invenção do projeto de autonomia. Registre- da violência, como diria Arendt, os homens conce-
se, contudo, que essas características só se distinguem dem à palavra toda sua força instituinte. No regime
artificialmente, já que, na prática, elas estão intima- democrático, essa liberdade associava-se a dois di-
mente ligadas umas às outras. reitos fundamentais: a isègoria, direito igual para to-
Autonomia significa: dar-se seu próprio nómos, dos de falar com toda a franqueza, e a parrhèsia, o
suas próprias leis, suas próprias determinações. Para compromisso que cada cidadão assume de pronunci-
que a pólis se desse suas próprias determinações, ou ar-se efetivamente com toda a liberdade, sempre que
seja, para que de fato houvesse auto-instituição, foi se trate de assuntos públicos.
preciso que se instalassem princípios e procedimen- No entanto, como nos adverte Castoriadis, numa
tos públicos de deliberação coletiva. democracia o movimento instituinte vai bem mais
Por um lado, foi preciso que o démos se procla- longe. Não basta – como tantas vezes queremos acre-
masse absolutamente soberano – na criação das leis, ditar – instaurar as leis, por melhores que sejam, mais
na jurisdição, no governo. E que, compondo o démos, legítimas em termos de sua criação e mais democráti-
os cidadãos se declarassem iguais – não no sentido cas em termos de seu conteúdo; é ainda preciso inter-
passivo e totalmente formal que a igualdade diante rogar-se acerca dos cidadãos que efetivamente irão
da lei adquiriu entre nós, mas como igualdade de pa- exercer esses direitos, essa participação.
lavra e de participação em todas as deliberações que
concerniam aos destinos comuns. Democracia e formação humana
A participação direta, tal como apenas os antigos
a conheceram, opõe-se não só à moderna idéia de re- A imprudente confiança que as sociedades, so-
presentação, quanto à não menos moderna concepção bretudo a partir da Modernidade, tenderam a deposi-
tar na construção das leis – patente, em nossa Histó- um espaço para a propaganda, para a mistificação e para a
ria, em pelo menos dois momentos que, não por aca- pornografia – a exemplo do que ocorre cada vez mais nos
so, anteciparam fortes frustrações coletivas e um acen- dias de hoje. Não existem dispositivos jurídicos que pos-
tuado descrédito em relação às instituições políticas: sam frear uma tal evolução – sem introduzir males piores
a Proclamação da República e o movimento consti- que os que se pretendem extirpar. Apenas a educação
tuinte de 1988 – não é apenas resultante de um idea- (paidéia) dos cidadãos enquanto tais pode dotar o “ espaço
lismo exacerbado e pouco prático, mas é também a público” de um autêntico e verdadeiro conteúdo. Mas essa
conseqüência direta de uma visão bastante equivoca- paidéia não é, basicamente, questão de livros ou verbas
da e incoerente, que insiste em acreditar que a demo- para as escolas. Ela consiste, antes de mais nada e acima de
cracia pode ser construída apenas com a participação tudo, na tomada de consciência, pelas pessoas, do fato de
de alguns – daqueles que previamente a concebem. que a pólis é também cada uma delas, e de que o destino da
Da atividade política vista como aplicação de pólis depende também do que elas pensam, fazem e deci-
saber especializado e terreno de especialistas decorre dem; em outras palavras: a educação é participação na vida
um conjunto de leis e de políticas públicas que, sem política. (Castoriadis, 1987, p. 301)
sujeitos que as encarnem, permanecem vazias e ine-
fetivas. Já nos habituamos à indagação acerca de que Não há construção política sem formação huma-
leis e políticas deverão ser introduzidas; mas, quanto na. É essa a implicação da idéia segundo a qual o
à indagação sobre os indivíduos capazes de fazer exis- indivíduo social e a sociedade são produtos um do
tir essas leis e políticas, pouco se fez. Quando, para outro. Dessa forma, quando se diz que a democracia
além dos jargões inexpressivos, a cidadania é objeto cria democratas, também se está dizendo que apenas
de reflexão, a maior parte do tempo acredita-se dever democratas criam efetivamente a democracia. A
deduzi-la do conjunto de leis e políticas instituídas paidéia democrática é, afirma Castoriadis, a forma-
por uma pequena elite – pelos governos e pelos parti- ção de um tipo de subjetividade até então inexistente:
dos políticos. a subjetividade reflexiva e deliberante. Reflexividade,
É bem verdade que os antigos não cessaram de isto é, capacidade de autoquestionamento que, para
enfatizar o caráter formador das leis, e na Grécia os caracterizar a sociedade, deve forçosamente estar pre-
legisladores eram considerados verdadeiros educado- sente em cada indivíduo que a compõe.
res (Jaeger, 1964, p. 513). No entanto, entre esses úl- A subjetividade democrática é aquela que é ca-
timos sempre figuraram, em grau igual de importân- paz de questionamento de si, de oposição interna, de
cia, os poetas e artistas que erigiam obras culturais. A abertura ao novo. Nela, o constante movimento insti-
política definia-se originalmente, no regime demo- tuinte faz-se acompanhar da crítica e da reflexão, a
crático, como instituição da vida comum, da pólis, criação faz-se explícita e deliberada. Mas não é ape-
envolvendo muito mais do que a atividade legislati- nas do ponto de vista da razão, do lógos, que a subje-
va. Nesse contexto, a reflexão sobre a formação hu- tividade democrática se distingue de tudo o que o
mana estava longe de ser considerada uma questão humano apresentou até então. Essa subjetividade tam-
menor, ou acessória. Atividade instituinte, a forma- bém se traduz em um tipo de investimento afetivo
ção dos cidadãos era, tanto quanto a construção da muito singular. Referi-me anteriormente à sublima-
vida comum, objeto de interrogação e deliberação ção, que consiste na substituição do prazer de órgão
coletivas. pelo prazer de representação: trata-se, como afirma-
do, de um mecanismo essencial na auto-instituição
Quanto a este aspecto, os traços determinantes são a de todo humano, que consiste na capacidade de a
coragem, a responsabilidade e a vergonha (aidôs, aischunè). criança paulatinamente deixar de investir afetivamente
Na ausência delas, o espaço público torna-se simplesmente apenas nos objetos de prazer mais imediatos, mais
sensoriais e próximos – portanto, objetos privados – JAEGER, Werner (1964). Paidéia. La formation de l’homme grec
para investir em “ objetos” imateriais (que não nos for- (La Gréce archaïque. Le génie d’Athènes). Paris: Gallimard, 1964.
necem qualquer experiência dos sentidos, mas que são KEHL, Maria Rita. Sobre ética e psicanálise. São Paulo: Compa-
socialmente instituídos, que só existem na e pela so- nhia das Letras, 2002.
ciedade), aí encontrando prazer. Essa passagem aos ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discours sur l’origine et les
objetos de investimento social é a marca que a socie- fondements de l’inégalité parmi les hommes. Paris: Gallimard,
dade apõe aos sujeitos. Há assim como uma cadeia Pléiade, 1969. t. III.
de objetos de investimento, e o deslocamento daque- TUCÍDIDES. História da guerra do Peloponeso. 3. ed. Brasília:
les que são mais privados àqueles que são mais públi- Editora Universidade de Brasília, 1987.
cos é também condição de socialização indispensá- VALLE, Lílian do. Enigmas da educação. A paidéia democrática,
vel para que os sujeitos efetivamente invistam em entre Platão e Castoriadis. Belo Horizonte: Autêntica, 2002.
objetos tais como a democracia, a igualdade, o
autoquestionamento… Na maior parte do tempo, esses LÍLIAN DO VALLE, doutora em educação pela Universi-
objetos não são tangíveis; aceitar continuar investin- dade Paris V, é professora titular de filosofia da educação da Uni-
do neles não é apenas uma decisão racional, mas en- versidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), na qual coordena
volve um modo de ser muito específico: este mesmo atualmente o Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas
que só é próprio das subjetividades reflexivas e deli- e Formação Humana. Publicou, entre outros: A escola e a nação
berantes em uma democracia. (São Paulo: Letras & Letras, 1996), A escola imaginária (Rio de
Janeiro: DP&A, 1997), Enigmas da educação (Belo Horizonte:
Referências bibliográficas Autêntica, 2002), Bases antropológicas da cidadania brasileira:
sobre escola pública e cidadania na Primeira República (Revista
ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense, 1987.
Brasileira de Educação, n. 19, p. 29-42, jan./abr. 2002). Pesquisa
AULAGNIER, Piera. La violence de l’interprétation. Paris: PUF,
em andamento: “ O sujeito isolado: raízes antropológicas da crise
1975.
de socialização e da identidade contemporâneas”. E-mail:
CASTORIADIS, Cornelius. As encruzilhadas do labirinto II. Do-
lvalle@infolink.com.br
mínios do homem. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
. As encruzilhadas do labirinto III. O mundo frag-
Recebido em agosto de 2006
mentado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
Aprovado em outubro de 2006