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Este trabalho tem como objetivo refletir sobre o cotidiano, sobre as pessoas e como
elas percebem o mundo em que vivemos. Ou melhor, sobre como as pessoas vêem o
mundo. Ou sobre como as pessoas não vêem o mundo. A partir dos depoimentos de Win
Wenders e Eugen Bavcar do documentário Janelas da Alma de João Jardim e Walter
Carvalho, pretende-se fazer algumas considerações de como estas pessoas percebem o
mundo e qual a importância da visão para se apreender a vida ao nosso redor.
No documentário foram selecionados depoimentos de 19 pessoas que possuíam
algum grau de deficiência visual (de uma miopia leve à cegueira total) para falar sobre o
olhar. Freire (2002: 01) destaca, em sua crítica sobre o filme, que “o alvo dos olhares da
Janela da Alma é propor a múltipla leitura do discurso imagético, para além da
denotação, submetendo-nos ao olhar convergente que extrapola o mero referencial. O
olhar humano é metáfora da intervenção, podemos escolher a forma de como olhar para o
real ou quando não temos esta escolha, a própria limitação irá criar outras estratégias de
construção do real.”
O tema olhar e “visão de mundo” vem sendo muito explorado pela mídia e pela
literatura. O verbo olhar é carregado de sentidos metafóricos desde a Grécia e seu
significado adquire ao longo da história e nos diferentes contextos comunicativos do nosso
cotidiano diferentes sentidos. Usamos o ver como sinônimo de conhecer, saber e entender.
È comum usarmos a expressão “visão do mundo’ para expressar o que achamos das coisas.
Ao dizer sobre o olhar, utilizamos construções metafóricas que adotam o ver como tema de
percepção e ideologia de mundo. “Falamos em visões de mundo para nos referirmos a
diferenças culturais ou para caracterizarmos diferentes ideologias e estas foram descritas
pelo jovem Marx a partir da retina e da câmara escura, onde imagens se oferecem
invertidas, visão enganada. Falamos em revisão quando pretendemos dizer mudança de
idéias, correção do rumo do pensamento ou da escrita, sem indagarmos por que referimos
ao olhar alterações de idéias, convicções, práticas ou dizeres.” (Chauí, 1988: 32).
Estamos imersos em imagens. A percepção visual nos é exigida a cada passo, a cada
esquina, a cada outdoor, a cada apelo para que olhemos o mundo. Um mundo de imagens
que nos abocanham, que nos vêem como consumidores, numa perspectiva que não mais
existimos como pessoas. “Ora, o que se vê hoje nesse mercado global em que se
transformou o mundo é uma imensa proliferação de imagens diante das quais o sujeito se
vê incessantemente solicitado a se identificar com certos números de ideais que lhe
prometem o bem estar e a felicidade. Acena-se com um número cada vez maior de objetos
para o desejo, como que fazendo supor que um dia a ciência e a técnica realizarão na terra
o paraíso prometido pela religião para o céu.” (Thá, 1995:396)
As imagens são antecessoras diretas da linguagem verbal, tanto em sua história
ontológica quanto em sua filogênese, o que facilita a apreensão mais rápida do conteúdo da
mensagem. Mas, tal rapidez não indica uma precisão, ou uma maneira natural de ler as
imagens, “Várias razões explicam esta impressão “natural” da imagem, pelo menos da
imagem figurativa. Em especial, a rapidez da percepção visual, assim como a
simultaneidade aparente do reconhecimento do seu conteúdo e da sua interpretação.” (Joly,
1994:41). Esta “leitura” das imagens pressupõe também um aprendizado dos significados
construídos culturalmente e historicamente pelo grupo, sem esta compreensão fica difícil
imaginar uma leitura das imagens inerente ao homem, e que estas significações seriam
inatas à espécie humana. A imagem passa a fazer parte de um novo discurso e de uma nova
forma de contar histórias.
Ao cinema destaca-se a universalização da cultura. Os códigos culturais passam a
ser aceitos por um determinado grupo na possibilidade de experienciar o filme ou ao seu
prazer. Turner (1997) aborda que o domínio de Hollywood deixa claro que o cinema nem
sempre explora as diferenças encontradas nas culturais como outras formas de narrativas.
“Há um alto grau de codificação cultural cruzada na qual o público concorda em aceitar um
sistema importado de significados com a intenção de apreciar o filme." (p.83), portanto,
uma troca de convenções lingüísticas e culturais em que o acordo se faz no sentido de
aceitar o que se está falando em troca de poder continuar a apreciar a história. Esta troca de
convenções lingüísticas favorece ao "cineasta em sua tentativa de comunicar". (Turner,
1997: p.83)
O cinema é a inauguração de um novo diálogo com a natureza e os homens. Na tela,
a construção dos significados é nova e inusitada, significados esses produzidos pela
linguagem do filme e pelo encontro com cada expectador. Enquanto para Xavier (2002) o
close-up se coloca como revelador das verdades; Munstenberg (1970) destaca que ele é
direcionador do olhar, olhamos o que nos quer se apresentado e não o que queremos. No
cinema há uma identificação do olho com a câmara, o que resulta de um enquadramento
que se faz na câmara. O sujeito percebe este enquadramento como sendo o seu olho. A
moldura da tela serve de limite para o olhar e ao mesmo tempo, como foco direcionado do
que se vai ver. A câmara é mediadora do que se "deve" ver no filme. A construção das
cenas que a câmara faz, traz a linguagem cinematográfica como mediadora do mundo que é
visto. A concepção do que é o filme e como deve ser feito traduz-se na linguagem
específica do cinema.
Sérgio Laia (1995:408) destaca que é a Tv que nos vê. Que nos entende no sentido
de perceber o que nos fascina. “A tv torna-se, literalmente, o canal transmissor de alguma
coisa que te vê”. Somos alvo do espetáculo e nos tornamos parte dele. A propaganda
promete uma satisfação ilusória pela aquisição do produto – pressupõe que todos somos
iguais, ao mesmo tempo, que denuncia nossas diferenças. A sociedade se unifica pelo
consumo (todos fazem parte de um grupo com as mesmas necessidades) e quando não
podem consumir, ela mostra sua divisão. E o sujeito fica aprisionado neste ideal de ser
(ter?) e perde-se como pessoa.
Para Debord (1997), o projeto de vida atual é o projeto do consumo e o lazer se
organiza em torno da mercadoria. Vivemos em função da mercadoria e de suas paixões. A
deusa de nossa vida passa a ser a mercadoria, quase em um fanatismo religioso que promete
a felicidade de ter o produto específico. A cada nova aquisição nos faz querer outra como
dose de um bom Whisky. O Fetichismo da mercadoria atinge momentos de excitação
fervorosa como uma manifestação religiosa. “Neste viés, as imagens televisivas
transformam todo telespectador naquele que a propaganda ironiza como quem não usa as
sandálias raider”. (Laia, 1995:410)
O brilho da tv nos hipnotiza e nos prende o olhar. Não olhamos o que queremos,
vemos o que querem que olhemos. Não somos nos que vemos a tv, ela é que nos olha.
Segundo Laia (1995:408), “também o campo das imagens televisivas se oferecem como
uma espécie de pasto. Pastagem eletrônica para os olhos que se colocam diante delas, efeito
paralisante da televisão obtidos graça ao desarmamento da força ofuscante do olhar pela
compactação violenta da profundeza do campo que, para além da tela, da imagem, resta
sempre ambígua, variável e imperiosa.”
“Felizmente, a maioria consegue ver com os ouvidos, ouvir e ver com
o cérebro, o estômago e a alma. Acho que vemos um pouco com os olhos, mas não
somente.”
“Acho que você é mais consciente do enquadramento. Quando tinha
uns trinta anos tentei usar lentes de contato. Mas, quando estava com as lentes vivia
procurando os óculos, pois eu via bem com as lentes, mas sentia falta do enquadramento.
Acho que sua visão é mais seletiva e você tem mais consciência do que realmente vê.
Quando estou sem óculos, sinto que vejo demais. Eu não quero ver tanto, quero ver com
restrição, mais enquadrado.”
“Quando criança o que eu mais gostava nos livros, não estava
realmente neles, mas o que eu acrescentava. Era isto que fazia a história acontecer. Quando
a gente é criança pode realmente ler entre as linhas. E com imaginação acrescentar tudo.
Nossa imaginação completa as palavras. Senti que quando comecei a ver filmes, eu queria
ler entre as linhas, e, naquela época isso era possível. Nos filmes de caubói de John Ford,
podíamos ler entre as imagens. Havia tanto espaço em cada plano, que a gente podia se
projetar dentro. Os filmes de hoje são completamente fechados, emparedados. Não há
espaço para sonhar dentro deles. A maioria dos filmes não deixa espaço. O que vemos é o
que está ali. Não nos imaginamos dentro deles, eles já vêm prontos.”
“A irmã de meu pai, minha tia favorita, era cega. Quando pequeno,
sempre tentava correr de olhos fechados, pois queria saber como era não poder enxergar.
Saber quanto tempo eu poderia andar pela casa sem enxergar. Nunca consegui ficar mais
que meia hora. Eu não agüentava tinha que abrir os olhos. Ela perdeu a visão quando tinha
7 ou 8 anos e nunca mais enxergou nada. E eu não conseguia imaginar como era não
enxergar. Preocupava muito com isto quando era criança.”
“Nós vemos muitas coisas fora do contexto. A maioria das imagens
que vemos está fora do contexto. A maioria das imagens que vemos não tenta nos dizer
coisa alguma, tenta nos vender alguma coisa. Na realidade, a maioria do que vemos, nas
revistas, na tv, tenta nos vender alguma coisa.”
“Mas, a necessidade humana mais básica é que essa alguma coisa
faça sentido. Como a criança que vai para a cama e quer ouvir história. Não é tanto a
história que importa, mas o ato em si de contar uma história cria segurança e conforto.
Acho que mesmo quando crescemos, continuamos a gostar do conforto que a história
proporciona, qualquer que seja o assunto. A estrutura da história cria um sentido, e a maior
parte de nossa vida não tem sentido.”
“Nós todos procuramos por um sentido. Acho que é o mesmo com
todas as outras coisas que nos temos em demasia. Temos muitas coisas em demasia hoje em
dia. E a única coisa que não temos em demasia é tempo. Muitos de nós temos tudo em
demasia. E ter tudo em demasia significa não ter nada.. E o excesso de imagens, hoje,
significa, basicamente, que nós não conseguimos prestar atenção. Não conseguimos mais
nos emocionar com as imagens.”
“Hoje as histórias têm que ser fantásticas para nos emocionar, pois
não conseguimos mais ver histórias simples.”
As falas nos depoimentos de Win Wenders e Eugen Bavcai são quase uma denúncia
sobre a vida vazia que vivemos em função do exagero. Exagero de imagens prontas, sem
sentido e descontextualizadas. Descontextualizadas, do sujeito, da pessoa e de sentido da
vida. È interessante como o contraste entre a capacidade de ver e a cegueira -a
impossibilidade de ver – é freqüente em suas falas.
Win Wenders, inicialmente, destaca o ver como algo que não está somente
relacionado ao sentido da visão. O “ver” aparece como sentir, como entrar em contato com
o mundo com todo o corpo, “com o cérebro, o estômago, a alma.” Langer (1989) destaca
outras formas de se perceber o mundo além da visão e da linguagem. A música e as
atividades artísticas possuem formas diferentes de se perceber o mundo, que são diferentes
dos conhecimentos lingüístico e visual. “Um símbolo artístico – que pode ser produto da
habilidade humana ou (em um nível puramente pessoal) algo da natureza visto como
‘forma significativa” – possui mais do que significado discursivo ou apresentativo: sua
forma como tal, como fenômeno sensorial, tem o que chamei de significado ‘implícito’,
como o ritual eo mito, mas de uma espécie mais geral.” (Langer, 1989: 258). Sobre esta
impossibilidade de reduzir o conhecimento e o saber a apenas uma forma perceptiva ou
linguística;; Kristeva (1988:24) fala sobre o amor: “... é possível falar de um amor, do Amor
é forçoso aceitar também que, por vivificante que seja, o amor não nos habita nunca sem
nos queimar. Falar dele, mesmo em posterioridade, talvez não seja possível senão a partir
dessa queimadura....consecutivo ao aumento exorbitante do Ego amoroso, tão
extravagante em seu orgulho quanto em sua humildade, esse desfalecimento delicioso está
no cerne da experiência.”
Win Wenders fala sobre a necessidade de “enquadrar” o que se vê. Selecionar o que
olhar para poder conseguir entender o que se coloca, tomar “mais consciência do que
realmente vê”. Se vemos demais, corremos o risco de nos cegarmos, de não vermos o que
realmente importa. “Somos bombardeados por imagens como jamais ocorrera na história
da humanidade. Os homens aprenderam a se adaptar a esta evolução. Eles ‘vêem mais
rápido’ e compreendem mais rápido as relações visuais. Em contrapartida, outros sentidos
atrofiaram” (Wenders, 1992:02).
A capacidade de fantasiar, de nos colocarmos no que vemos, parece ter-se perdido.
O significado de que necessitamos se perdeu na imensidão de coisas a adquirir. Coisas
físicas, intelectuais e até pessoas. Eugen Bavcai destaca que somos todos cegos. Cegos
porque não temos mais o ‘olhar interior’. As imagens já estão prontas, não há espaço para
imaginar, sonhar ou fantasiar. Podemos pensar que as imagens se desbotaram e perderam
seu brilho. Sobre isto Minkowski (1999:32) escreve, “tudo perde seu brilho com o uso. È
uma manifestação geral e essa perda do brilho nos é familiar. Nós dissemos bem, tudo
perde seu brilho com o uso e nem tudo se usa com o tempo. Porque se 'usado' é , ela tem
uma característica que lhe é própria; não se trata daquela que os objetos e as coisas,
mesmo as mais sólidas, sofressem a ação do tempo, ficando em pedaços, mas de que certos
fenômenos da vida "empalidecem" fatalmente à medida que nós fazemos seu uso." Parece
que o uso de imagens de uma forma vazia e sem vida as empalideceram, Justamente porque
a vida, a pessoa, não possui espaço para aí se colocar. O Sujeito se perdeu na quantidade de
informações e imagens que são apresentadas a ele com um único objetivo: que ele compre.
A percepção desta sociedade regida pelo espetáculo é claramente percebida no depoimento
de Win Wenders, quando ele declara que não conseguimos mais nos emocionar pelas
histórias simples, elas precisam ser fantásticas para podermos nos sensibilizar. Tanto Win
Wenders, quanto Eugen Bavcai relatam o prazer de poder fantasiar e construir a partir das
estórias contadas seja no cinema, seja nos livros ou pelo outro. Destacam a necessidade das
estórias possuírem “espaços” para que sejam preenchidos. Talvez com suas histórias, talvez
com a história de todos, mas que coloquem a pessoa como ativa no processo de “ouvir e
interpretar as estórias”.
As experiências do dia a dia são significadoras dos valores e sentidos que nos
compõe a interpretação dos eventos. Através das atividades o homem consegue mudar e
adaptar a natureza às suas necessidades. Recria o mundo e constrói sistemas de regras e de
significados sociais e culturais. As atividades culturais e artísticas são exemplos destas
criações. As atividades culturais, como representações dos grupos, são manifestações que
possuem os cânones sociais, e que, dialeticamente, influenciam e são influenciados pelas
mudanças por que passam. Neste sentido, todas as atividades culturais possuem em si vozes
da sociedade e da cultura de um povo, uma vez que são representativas de uma produção
humana e que possuem conteúdos ideológicos e socialmente compartilhados.
Minkowski (1999), propõe uma análise da perda do contado com o vivido e da
afetividade nos pacientes psicopatológicos. Pensamos, então se não estaríamos vivendo
uma crise psicopatológica que nos causasse uma cegueira do que poderíamos reconhecer
como vida plena. O espetáculo seria tamanho que ofuscaria nossa visão como pessoas.
Haveria então uma cisão do que acreditamos ver e o que realmente mostra-se a nós. "A
consciência espectadora, prisioneira de um universo achatado, limitado pela tela do
espetáculo, para trás da qual sua vida foi deportada, só conhece os interlocutores fictícios
que a entretêm unilateralmente com sua mercadoria e com a política da mercadoria. O
espetáculo, em toda a sua extensão: é sua 'imagem do espelho'. Aqui se encena a falsa
saída de uma autismo generalizado" (Debord, 1997:46).
José Saramago, em seu livro 'Ensaio sobre a cegueira' (1995), faz uma imensa
metáfora sobre a nossa incapacidade de ver. A história é sobre uma epidemia de cegueira.
Uma cegueira branca, leitosa em que cada um dos personagens vai entrando e sendo
confinado a um manicômio para que não contaminem os outros. No manicômio uma
sociedade se organiza em função da patologia. Os nomes dos personagens não são
importantes, não há nomes. Não há identidade, não há pessoas. "Em ensaio para a
cegueira, Saramago opta pelo anonimato das personagens, como uma maneira de
universalizar a experiência, abrangendo, todos os nomes." (Carreira, 2002:03)
O trabalho pretendeu fazer uma reflexão sobre como as mudanças do mundo atual
nos fazem ficar insensíveis às coisas cotidianas da vida. Coisas simples e corriqueiras que
fazem parte da vida humana e que estão deixando de serem percebidas. O outro já não tem
valor pelas suas histórias, sua vida ou seus fatos. A mercadoria e o consumo estão
abocanhando a pessoa que vive em cada ser humano: seus contos, sua simplicidade, sua
alegria. A cultura que impera é a do consumo. Consumir é a única regra do grande mundo
globalizado. Perdemos a identidade, o jeito de ser e de fazer algo.
O mundo; invadido pelas imagens, da tv, do cinema, das propagandas que sempre
estão nos vendendo algo; está nos cegando. O “cegar” aqui chega como uma
impossibilidade de perceber quais são as coisas que realmente fazem sentido para a maioria
das pessoas. O que é ser humano e quais seriam nossas verdadeiras necessidades. Cegamos.
Pouco se fala do que se sabe da vida. Pouco se pensa. Pouco se retruca. Muito se compra.
Tudo se vende. As falas de Win Wenders e de Eugen Bavcai são vozes que ecoam em cada
pessoa, muitas vezes surdas pelos apelos de cada outdoor.
A visão como forma de conhecer o mundo acabou por se tornar o meio pelo qual as
pessoas são mais invadidas. Persuadidas e negadas. A reflexão proposta por José Saramago
ao final de seu livro nos deixa outra lacuna:
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