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@ TEXTOS BASICOS DE CIWCIAS SOCIAIS

Diretor:
NEUMA AGUIAR

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PIERRE BOURDIEU

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OTÁVIO GUILHERME VELHO MAURIGE GoDELIER
LoUIS DUMONT
~ DAVID LocKWOüD
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g TALCOTT PARSONS
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PETER BLAU
§ PAUL HATT
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JOHN GOLDTHORPE

HIERARQUIAS
f~ - 9::J O- t;2;0
EM
CLASSES
Organiz,ção de
NEUMA AGUIAR

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ZAHAR EDITORES
RIO DE JANEIRO
94 HIERARQUIAS EM CLASSES
4
3.°) Como se constroem fora das relações de parentesco
reI ções sociais de tipos novos? Citemos, por exemplo, as
cl ses de idade, as associações voluntárias, religiosas, econômi-
ca ,politicas. Essas relações novas podem-se combinar harmo-
ni samente com as organizações de parentesco ou se opor a
eI s. Elas podem também se encontrar no seio de sociedades CASTA,~ACISMOE "ESTRATIFICAÇÃO" *, §
de tro do Estado. ~eflexões de um antropólogo sodal
4.°) Como, se ligando à desigualdade de redistribuição Para E. E. Evans-Pritchard
produto social, aparece uma desigualdade no controle dos
res de produção?
Esses problemas já receberam múltiplas respostas parciais LoUIS DUMONT
qu não iremos analisar aqui. Observemos no entanto que elas
co firmam freqüentemente a tese central de Marx, isto é, Tradução de ROSA MARIA RIBEIRO DA SILVA
qu a desigualdade social protege os interesses coletivos das
co unidades primitivas e é um fator essencial de seu progresso.
T dos os nossos exemplos convidavam de certa forma a re-
to ar teses fundamentais de Marx e particularmente aquelas NUM ARTlGb RECENTE, Raymond Aron escreve, a propósito
so te o tlmodo de produção asiático". da Sociologia, ,que "a teoria critica, comparativa, pluralista é
A essência mesma do "modo de produção asiático" é a ainda incipiente". 1 Tal é a sensação que se tem quando, tendo
ex stência combinada de comunidades primitivas) onde reina a estudado o sis1ema de castas na índia, aborda-se a questão da
po se comum do solo, organizadas, parcialmente, ainda, sobre comparação entre esse sistema social e outros, quando, parti-
a ase de relações de parentesco, e de um poder de Estado cularmente, pr()cura-se o lugar que lhe foi dado nas idéias ame-
q e exprime a unidade real ou imaginária dessas comunidades, ricanas de '''estratificação social". O problema se coloca, para
co trola o 11S0 dos recursos econômícos essenciais e se apropria começar, sob iuma forma muito simples: pode-se, ou não,
di elamente de uma parte do trabalho e da produção das co- falar de "castas" fora da índia? Particularizando, pode-se apli-
m nidades que domina. car o termo à 9ivisão entre brancos e negros no Sul dos Estados
Portanto, na sua essência, o "modo de produção asiático" Unidos? A esta questão, alguns sociólogos americanos respon-
é ma das iormas de transição das sociedades sem classes para deram afirmati"amente, seguindo nisso aliás o sentido comum
as sodedades de classes. Enquanto tal, sua estrutura combi-
na e unifica relações de produção e de organização social, pró- >!< Reprodução autorizada pelo autor e editor do artigo. À pu-
pr as das sociedades sem classes, e relações de produção e de blicação francesa original, mencionada abaixo, adicionou-se o título
d inação novas que fazem uma sociedade de classes. O "modo utilizado posterionnente pelo autor em apêndice do livro: Homo Hie~
de produção asiático" exprime pois, sob uma forma específica, rarchicus, Gallimard, Paris, 1966, pp. 305-323.
§ (Publicado em francês nos Cahiers interno de Sociologie, XXIX,
a contradição da passagem das sociedades sem classes para ~ 1960, pp. 91-112; em inglês: Contrib. to Indian Social., V, 1961,
as sociedades de classes e essa especificidade consiste no fato pp. 20-43; cL crítica de Berreman,. ibid., VI, pp. 122-5.) Estas re-
d que a exploração de classes se realiza através das formas flexões nasceram: principalmente da preparação de um verbete "casta"
co unitárias de propriedade e de posse da terra. para um Vocabulário das Ciências Sociais (UNESCO). Deixa.se de
lado a questão d;a extensão imediata da palavra "casta" (por exemplo,
no Sudoeste da i {\sia) para considerar apenas uma extensão longín~
qua, que parece~ exigir uma confrontação, seja ela precoce e provi-
sória dos pontos :de vista sociológico e antropológico.
1 Raymondi Aron, "Science et conscience de la societé", Archivis
européennes de $ociologie, I, i (1960), p. 29.
9 HIERARQUIAS· EM CLASSES
~
,1
CASTA, RACISMO E "ESTRATIFICAÇÃO" 97
d termo,2 enquanto que os antropólogos com experiência da à idéia geral de "estratificação social", sob a qual eles agrupam
H
i dia responderiam, sem dúvida, na maioria negativamente. 3 ~i freqüentemente os fatos desse gênero. Tentaremos em segui-
t;
I ealmente, a questão terminológica poderia parecer uma sim- da esboçar as: condições de uma comparação verdadeira.
~
p es questão de escolha: ou se seguiria uns e se adotaria uma 1,
d finição muito ampla, e se seria levado então a fazer distin- A) A casta como limite de classe: Kroeher. - Kroeber
ç es como alguns autores que opuseram a "casta racial" (EUA) ,f deu uma defiqição da casta que é considerada, de direito, como
! clássica, porque, como veremos, toda a corrente sociológica
e a "casta cultural' (fndia); ou então, ao contrário, se recusa- 'I conhecida se liga a ela, No seú artigo "casta" da Encyclopaedia
ri toda extensão do termo além do tipo indiano definido tão i of Social Sei~nces (vaI. III, 1930, 254b-257a), ele enumera
p ecisamente quanto possível, e seriam necessários então outros I:
I os caracteres ~ da casta (endogamia, caráter hereritário, nível
t rmos para designar os outros casos. Mas de fato o uso do
relativo) e acrescenta:
t rmo é este e talvez somente peIa crítica de suas implicações
já manifestas seja possível preparar os caminhos de uma com- ,
"Castes, liherefore, are a speeial form of soeial classes,
p ração mais justa. Tratar-se-á pois de criticar o uso ameri- , which in tendency at least are present in every society. Castes
c no dominante para fazer ver como a Antropologia Social pode I
r,
diHer Eram social classes, however, in that they have emerged
aj dar a Sociologia nessa matéria. Dois aspectos particulares j-; iuto social conscÍousness to the point that custam and law
r terão nossa atenção: a idéia que fazem do sistema indiano os !-; attempt their ~igid and permanent separation Eram one another.
L Social classes·. are the generic sai! from which caste systems
a tores em questão, e a situação para eles do conceito de "cas-
t " em relação aos conceitos vizinhos como o de "classe» e
i:: have at various times and places independently grown up., ."
(grifo do autor). 4
'ii Por "sistemas de castas", ele tem em vista, no que se
2 A tendência, que seu único opositor sistemático, O. C. Cox,
segue, além d~ índia, a Europa e o Japão medievais. No en-
d amou de "the caste School of Race Relations" parece ser dona do
te rena. Encontra-se também uma tendência mais moderada~ que 1
i;:
tanto, reconhe;ce implicitamente que os dois últimos casos não
são perfeitos, ,seja porque a organização de casta está limitada
a lica a palavra "casta" nos EUA de maneira monográfica "sem pre- /; em uma part~ somente da sociedade, seja porque se trata de
ju gar" a comparação (Myrdal etc., ver mais adiante). - Os dicioná-
ri s dão, ao lado do sentido próprio do termo, o sentido extenso, por !Il um "quasi-caste system" (Japão), onde a divisão do trabalho
c.. Littré, s./v.: "2.0 } pejorativo, classe na sociedade, considerada então I,
,I,
e a integraçãd à religião permanece.m vagas.
c mo exclusiva e fechada". r:
I-
O essencial, aqui, para nós, é que a casta é um caso li-
3 No entanto, entre os autores recentes familiarizados com o i"
m mite da class~. Por quê? Em primeiro lugar, sem dúvida
si tema indiano, um sociólogo que trabalha no Ceilão insiste na di- pelo fato da :universalidade da Antropologia, como diz L10yd
fe ença fundamenta! entre índia e EUA: Brice Ryan, Gaste in Mo~ I'
I~ Warner, aceit~ndo a definição de Kroeber. 5 Em segundo lu-
d rn Geylon~ New Brunswick~ N. J.~ 1953, p. 18 n.; enquanto F. G.
B iley afimla a priori que a comparação deve ser feita a partir da .''"
p lavra "casta" (Gontribution to Indian Sociology~ Paris~Haia, 4 "Castas,: portanto, são uma fonua especial de classes sociais~
n. 3, 1959, p. 90). Morris Carstairs é menos categórico, mas aceita,
c a definição de Kroeber (abaixo), a utilização americana do termo,
ex 1 função de suas vantagens em relação a "raça" (The Twice-Born~
)! que pelo menos~; tendem a estar presentes em toda sociedáde. No- en.:
tanto castas diferem de classe social, porque emergiram na consciência
social até o ponto em que a lei e o costume atingerp. sua rígida,-e per~
L ndres, 1957~ p. 23). Bem anterionnente~ um indiano, Ketkar~
in istia na divisão hierárquica da sociedade americana a partir da
' ' manente separação uma da outra. Classes sociais são o solo genérico
do qual os sist~mas de casta cresceram independentemente em vários
i
r a e da ocupação, ele enumerava uma hierarquia de 10 grupos (na
v rdade grupos de proveniência). Sem empregar a palavra "casta",
in istia, não sem satisfação, nos traços que lhe lembravam -a índia
( hridar V. Ketkar~ The History of Gaste in lndia, vaI. I, Ithaca~
N Y., 1909, p. 100 n., 102 n., 115 n.). Recentemente a questão geral
'I
fl~}
tempos e lugares. (Tradução inserida pela o~~nizadC?ra,)_ "" :,
5 W. LIoyd Warner (Dir.), Deep South. 'AiSocial Anthropólogi-
cal Study Df Cfste and Class, Chicago (c. 1941), ed.1946;p. 9·~
B. S. Ghurye tcm uma posição próximà" da de Kroeber: grupos de
status bem marcados são comups nas"· culturas indo-européias;' por
é discutida em: E. R. Leach, org., Aspects of Gaste in South lndia~ "i!~
comparação o !sistema' das castas indiano representa sdmente"" lima
G ylon and N.~W. Pakistan~ Cambridge, 1960 (Cambridge Papers in ,1
S eial Anthropology, n.o 2), principalmente p. 5. r!~ forma extrema (IntocabiIidade etc.) (Gaste ánd'"j:iacé -in lndia~' N~ Y.~
1932, pp. 140-(42). .
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98 HIERARQUIAS EM CLASSES CASTA, RACISMO E "nSTRATIFICAÇÃO" 99
gar, porque 'a c~sta é ao mesmo tempo rígida, e relativamente Kroeber, a casta representa no limite uma passagem:, para ele,
rara, enquanto a classe é mais flexível, mais vaga e relativa- é o "grupo ide status" que se transforma em casta,.'quando a
mente muito difundida. Mas o problema é assim apenas afas- separação éi garantida não mais somente por convenções e
tado, porque seria necessário definir a classe e esta é uma ope- leis, mas ritualmente (impureza por cantata). Essa passagem
ração muito mais difícil do que definir a casta. Não importa, cic> "grupo de status" para a casta é concebida geneticamente
a classe nos é familiar, enquanto a casta nos é estranha. Eis-nos ou só logicamente? Weber, pélo menos· na passagem de
já no coração do sócio-centrismo, onde toda a nossa escola Wirtschaft und Gessellschaft que tenho em vista aqui, além
vai~se desenvolver. Se estivéssemos prontos a negociar a de pensar que as castas individuais desenvolvem numa certa
freqÜência relativa da "classe" hipotética, e não tivéssemos medida cultos e deuses distiutos (erro do senso comum oci-
em vista se.c.ão a clareza conceituaI, poderíamos muito bem dental que imagina que o que se distingue deve ser diferente),
inverter os termos e partir do sistema indiano de castas, que faz intervir !outro componente na gênese da casta, isto é, uma
apresenta sob uma forma IÚtida e cristalina aquilo que se dilui diferença considerada étnica. As castas seriam então comuni-
em outro lugar de maneira múltipla. A definição citada parece dades (Gemeinschaften) fechadas em relação ao exterior, en-
mostrar que, quando reduzimos a um epifenômeno - por mais dogâmícas, hcreditando num parentesco' ..de sangue entre seus
importante que se queira reconhecê-lo - a consciência que a membros, que se "colocariam em sociedade" (vergesellschaftet)
sociedade tem dela mesma ("they have emerged into social umas com as outras. Em suma, a casta resultaria de uma con-
consciousness"), 6 ficamos condenados à obscuridade. junção entre "grupos de status" e ((comunidade étnica". Pare-
B) Distinção entre classe, estado e casta. - Mas a uni- ce que nesse ponto há uma dificuldade. Na verdade, Weber
dade do gênero humano não exige que se reduza arbitraria- mantém a diferença entre a Vergesellschaftung de um grupo
mente a diversidade à unidade, pede somente que se possa considerado: étnico, de um "povo pária", tolerado só em ra-
passar de uma particularidade a outra, que se consagrem tan- zão das atividades econômicas indispensáveis que ele exerce,
tos esfcrços quanto necessários a elaborar uma linguagem co· como os judeus na Europa medieval, e a Gemeinschaft, formada
muro onde todas possam ser descritas. Para isso, é precíso por grupos: de status ou, no limite, por castas. Se não me
começar reconhecendo as diferenças. engano, a dificuldade aparece, na fórmula fiual que deve re-
Antes de Kroeber, Max Weber tinha distinguido radical- conciliar as, duas, sob a forma de uma transição artificiál de
mente "classe" e Stand, "grupo de status ou "estado" no
JJ
GeseIlschaft, a Gemeiuschaft (o grifo é meu): "Eine umgrei-
sentido da França do Antigo Regime, como economia de um fende Vergesellschaftung die ethIÚsch geschiedenen Gemeins-
lado e "honra" e relações "da sociedade" do outro. 7 Criticou- chaften zu 'einemspezifischen, politischen Gemeinschaftshandeln
-se sua definição da classe como grupo econômico. O seu mé- zusammenschliesst", ou seja, mais ou menos: HA colocação
rito foi o de ter dado uma que não fosse muito vaga. Admi· em sociedade de comunidades etIÚcamente distiutas limita-as
tamos que as classes sociais de que se fala comumente em a ponto de! reuni~1as, no plano da ação política, numa comuni-
nossas sociedades apresentam os dois aspectos; a distinção ana- dade de um gênero novo". O grupo particular admite então
lítica não é menos indispensável de um ponto de vista com- uma hierarquia de honra ao mesmo tempo que sua diferença
parativo, como se verá a seguir. Aliás, em Weber como em étnica se torna uma diferença de função (guerreiros, sacerdotes
etc.). Por mais notável que seja a conjugação da hierarquia da
diferença ét,IÚca e da divisão do trabalho, pode-se pergnntar
6 "Elas emergiram na consciência social". (Tradução inserida se Weber ~qui não sucumbe, por ter querido unir a uma vi-
pela organizadora.)
são hierárquica considerações "Únicas", englobando ao mesmo
7 Max Weber, Wirtschaft und Gesellschaft~ II, 635-7. Discutido
por Cox, Gaste, Class and Race~ p. 287, e: "Max Weber on Social tempo idéias muito difundidas sobre a origem racial do sis-
Stratification", Am. Soe. Rev., II (1950), pp. 223-7; cf. também tema de castas indiano, e a situação excepcional de algumas
Hans Gerth, "Max Weber vs. Oliver C. Cox", Am Soe. Reu.~ ibid., comunidades minoritárias (judeus, ciganos) nas sociedades
pp. 557-8 (sobre os judeus e castas). ocidentais.
100 HIERARQUIAS EM CLASSES CASTA, RACISMO E "ESTRATIFICAÇÃO" 101

o que permanece é a distinção, analítica tanto quanto se viewed as the extreme case of absolutely rigid elass", neste
deseje, entre grupamento econâmico e grupo de status. No in- sentido a "casta" constitui "a harsh. deviatíon from the ordi-
terior deste último, pode-se em seguida distinguir mais niti- nary Ameriqn Social structure and the American Creed". 11
damente, com Sorokin,8 "ordem" ou "estado" e casta (por A expressão harsh deviation)} é aqui necessária para corrigit
! ((

exemplo, o clero na França do Antigo Regime não se reproduz a continuidade colocada na frase precedente. Finalmente, a
por si mesmo, é um "estado" aberto). identidade de essência postulada entre classe e casta parece
C) A "casta" nos Estados Unidos. - A primeira vista, ter sua raiz no fato de que, uma vez a igualdade reconhecida
um paradoxo aparece nos dois autores mais marcantes entre como a norma, todas as formas de desigualdade tendem a
os que aplicaram o termo "casta" à separação entre brancos aparecer como sendo uma só coisa em razão de sua comum
e negros nos Estados Unidos. Enquanto seu propósito é oposição à norma. E veremos logo que isso é perfeitamente
opor a {(color fine}! às distinções de classe, todos dois aceitam justificado, de modo consciente, em MyrdaI. Mas, se do ponto
a idéia de que a casta é uma forma particular, uma forma ex- de vista de 'uma Sociologia comparativa, propõe-se a descrição
trema da classe, e não um fenômeno diferente. Já vimos como dessas formas de desigualdades em si mesmas, se além disso
Lloyd Warner aceita a continuidade de Kroeber; no entanto, ele se constata em numerosas sociedades a presença de uma norma
insiste imediatamente, desde seu artigo de 1936, no fato de de desigualdade, a unidade suposta entre a classe de um lado
que, enquanto brancos e negros formam duas "castas os dois H
,
e a forma imericana de discriminação de outro perde todo o
grupos se estratificam em classes segundo um princípio comum, sentido, seglj.ndo o próprio testemunho de nossos autores.
de forma que os negros da classe superior são superíores, do Aliás, esses dois autores justificam de maneira muito di-
ponto de vista da classe, aos "pequenos brancos", mesmo sen- ferente o emprego do termo "casta" no que se refere aos fe-
do inferiores a eles do ponto de vista da "casta". 9 Gunnar nômenos americanos. Para Myrdal, a escolha de um termo é
Myrdal também coloca que 10 "caste may thus in a sense be assunto puramente prático. É preciso usar uma palavra cor-
rente (e não procurar escapar ao julgamento do valor implí-
8 Pitirim A. Sorokin, Society, Culture and Personaliy, Their cito numa ial escolha). Entre os três termos disponíveis,
Structure and Dynamics, N. Y. (c. 1947), p. 259 (a "ordem" ou o "classe" nãO convém, "raça" daria um aspecto objetivo a pre~
"estado" como uma "casta diluida", eL o que dizíamos sobre classe e
casta). Max Weber distingue entre grupo de status aberto e fechado
conceítos e: justificações subjetivas, resta "casta", que já foi
(Ces Aufs. z. Religion-soziologie, II 1 cd. 1923, pp. 41-2). É notável empregado flesse sentido, e que pode sê-lo monograficamente
que uma obra recente reconheça dois tipos fundamentais de "estra- sem que seja necessário se preocupar em saber até que ponto
tificação social", o tipo de casta, que compreende as "ordens" ou se trata dai mesma coisa na índia e nos Estados Unidos. 12
"estados", e o tipo de classe aberta, ligados respectivamente aos pólos
da alternativa particularismo/universalismo de Talcott Parsons (Ber-
nard Barber, Social Stratification, A Comparative Analysis of Structure 11 "A casta pode ser vista num sentido como um caso extremo
and Process, N. Y., 1957). de classe absolutamente rígida"... "um desvio acentuado da estru-
9 W. Lloyd Warner, "American Caste and Class", Am. Journ. tura social americana comum e do credo americano". (Traduções
of Social., 42 (1936), pp. 234-7. inseridas pelq organizadora.)
10 Gunnar Myrdal, An American Dilemmo, The Negro Pro- 12 Op. :cit., pp. 667-8. Numa nota, Myrdal coloca uma objeção
blem and A-fodern Democracy (with the assistance of Richard Sterner apresentada especialmente por Charles S. Johnson: a palavra "casta"
and Arnold Rose), Nova York e Londres (c. 1944), p. 675; também sugere um sistema estável, invari~vel, e onde não se encontram ainda
p. 668, "Thc scientifically important difference between the terms as tensões e! fricções que caracterizam as relações entre brancos e
"caste" and "cla3s" as we are using them is from this point of view, negros nos EUA: ele responde que não acredita que um sistema de
a relativel)' large dilference in freedom of movement between groups castas, tendo! essas características, exista (n. 2, pp. 1374-5) e (p.
(grifos G. M.)". [A diferença cientificamente importante entre os termos 668) que a ~ociedade indiana não apresenta atualmente "o equilíbrio
"casta" e classe, tais como os estamos usando, é, desse ponto de vista, estável" que i sociólogos americanos, por causa da distância, freqüen-
uma diferença relativamente ampla na liberdade de movimento entre temente se inclinam a atribuir-lhe. Vê-se aparecer aqui o credo igua-
grupos]. Mesma justificação do emprego do termo (razões práticas, litário. O autor tendo, depois, conhecido a índia, pergunta-se se ele
não indicam identidade com os fatos indianos), em Westie, Am. manteria isso hoje, se manteria mesmo o uso da palavra casta para
Joum. 01 Soc., 63 (1957-8), p. 192, n. 5. a América.
102 HIERARQUIAS EM CLASSES CASTA, RACISMO E "ESTRATIFICAÇÃO" 103

Na verdade, a coloração pejorativa do termo não desgosta o cupa com comparação. Além disso, ele não dá as costas à
autor. Enquanto a palavra "raça" encerra uma falsa justifi~ teoria comp*rativa na medida em que não realiza sua objeti-
cação a palavra "casta" traz condenação. Isso resulta da re-
7 dade senão no caso de poder aderir pessoalmente aos valores
lação com os valores estabelecida nas páginas seguintes. A ideo- da sociedade que estuda? .
logia americana é igualitarista ao máximo. O Credo americano Ao contrário de Myrdal, L10yd Warner pensa que existe
exige a livre concorrência, que, do ponto de vista da estrati- "casta" no Sul dos Estádos Unidos, rio sentido do termo na
ficação social, representa uma combinação de duas normas de índia. Isso resulta de um estudo considerado comparativo
base: igualdade e liberdade, mas aceita a desigualdade como de Warner e Allison Davis, 15 onde os resultados da pesquisa
resultado da concorrência. 13 Deduz-se daí a "significação" das americana s~o resumidos, a "casta H definida, e onde duas ou
diferenças de sia/us social nesse país, concebem-se as classes trt s páginas' são dedicadas aos fatos indianos. O resumo in-
como "os resultados da restrição da livre concorrência", en~ diano, embo'ra fundamentado em bons autores, é pouco con-
quanto que a ('casta", com suas restrições draconianas à livre vincente. Insiste-se na variabilidade do sistema no tempo
concorrência, contradiz diretamente o Credo americano, cria e no espaço; até afirmar: "It is not correct to speak ofan
uma contradição em cada consciência de branco, não se man- Indian caste 'system since there is a variety of systems there".'6
tém senão graças a todo um sistema de preconceitos e deve
em SUma desaparecer. Em ger.al, a casta é concebida como 'uma .variedade da
classe, que difere dela pelo fato de proibir a mobilidade tanto
Tudo isso é muito bonito e não se poderia sem dúvida para cima quanto para baixo. O argumento central é o se-
fundamentar mais solidamente a atitude militante em que guinte: nos estados do Sul, além das incapacidades impostas aos
'Gunnar Myrdal vê a única possibilidade de objetividade ver- negros e a impossibilidade, para eles, de "ascender", não há
dadeira. Especialmente, ele tem o mérito. de nos fazer ver entre brancqs e negros nem casamento nem comensalidade;
ue é numa relação com os valores (não expressada em Kroeber acontece o mesmo na índia entre castas diferentes. Trata-se
\'Qarner) que se compreende melhor a continuidade suposta da mesma espécie de fenômenos sociais: "Therefore, for the
a classe à casta. Mas será verdadeiramente necessário em comparative êodologist and social anthropologist they are forms
udo isso empregar a palavra Hcasta" sem garantias científi- of behavior ""hich must have the sarne term applied to them"
as? 14 A tese teria perdido em eficácia por não fazer uso senão (p.233).'7 .
e expressões como "discriminação", "segregação" etc.? Mes- Essa fórmula tem o mérito de colocar nitidamente o pro-
a na afirmativa, seria necessário arriscar obscurecer a com- blema, de maneira que se nos recusamos, a seguir Warner p0-
aração para favorecer a ação? Gunnar Myrdal não se preo- demos facil~ente dizer por quê... Uma primeira razão, que
parece podej ser amplamente admitida, é que sob o' rótulo
de "formas pe comportamento" ou ((fenômenos sociais",War-
13 Ibid' pp. 670-1. Há aqui um julgamento interessante sobre
7
ner confunde duas coisas diferentes, ou seja, uma soma de tra-
escola de ~~Varner: segundo Myrdal, é preciso colocar o extremo
Jlgualitarismo da "teoria popular nacional" para compreender ao mesmo.
irmpo a tendência desses autores a exagerar o rigor das distinções de
15 W. Lloyd Warner & Allison Davis, "Comparative Study oí
'!Jasse e de casta na América, c o interesse suscitado pelos trabalhos,
{ue foi maior do que comportava sua novidade propriamente científica. American Caste") em Eduard T. Thompson, org.) Race Relations and
t he Race Problem, Durham, Carolina do Norte, 1939, pp. 219-45,
14 Ficamos um pouco surpresos em ver próximo das idéias que
o que concenle à 1ndia, pp. 229-32.
sumimos uma noção bastante estreita do lugar do conceito na cÍ-
16 "Não é correto falar em um sistema de castas indiano desde
,!Cia: "Concepts are oul' created instruments and have no othel' que lá existe :uma variedade de sistemas". (Tradução inserida pela
f l'm of l'eality than in our own usage. Theil' purpose is to help organizadora. )
llake our thinking clear and our observations accurate (p. 667)".
17 HPort~nto, para o sociólogo e o antropólogo social, que têm
(Conceitos são instrumentos criados por nós que não têm outra forma
(e. realidade senão em nosso uso. Sua finalidade é ajudar a tornar uma perspcctiya comparada, elas são fonnas de comportamento que
r osso pensamento claro, c nossas observações acuradas.) devem ser corppreendidas sob o mesmo tenno". (Tradução inserida
pela organizadora.)
04 HIERARQUIAS EM CLASSES CASTA, RACISMO E "EsTRATIFICAÇÃO" 105

çps particulares (endogamia, proibição de comensalidade e de Pode-se entrar em contato com a deformação a que foram
obilidade etc.) e um sistema social total, ((casta" no caso submetidos aqui os fatos sociais tomando o exemplo da endo-
i!diano significando evidentemente "sistema de ca.stas". Não gamia. Warnet e Anison a apresentam como um fenômeno
f i colocada a questão de saber se a soma dos traços conside- de comportamento, e não como um fenômeno de valores.
r dos é· suficiente - com a exclusão de todos os traços não~ Assim, ela seria a mesma coisa que a endogamia de fato de
- onsiderados - para definir o sistema social: não se trata de uma tribo qu~ não tivesse nenhum preconçeito contra o in-
f to do sistema, mas somente de um certo número de traços tercasamentocom uma outra tribo, mas que circunstâncias da-
o sistema indiano de castas que, na visão do autor, seria su- das impediriam de praticá-lo. Se, ao contrário, a endogamia
fkiente para definir esse sistema. Na verdade, .temos aqui é um fenômenQ de valores, é injustificável cortá-Ia na análise
lima escolba que não bá nenhuma necessidade de seguir. 18 dos outros fef\ômenos de valores, e em particular (mas não
somente) das Justificaçães que se dá a ela. Ora, é somente
Tentemos agora mostrar as razões que atuam contra a es- assim que se !pode confundir discriminação racista e sistema
olha proposta. Admite-se geralmente, em Antropologia 50- de castas. Mas, diremos, não é possível que a análise revele
ial pelo menos, que os traços particulares devem ser vistos um estreito parentesco entre fatos sociais exteriormente seme-
as suas relações com os outros traços particulares. Resulta lhantes e ideo~ogicamente diferentes? Conviremos, sem difi-
aí, a seu ver, uma conseqüência radical; um traço partícular, culdade, que a: coisa é possível, marcaremos somente vigorosa-
e ele é tomado não em si mesmo, mas na sua situação con- mente que não chegamos aí, nem de longe, e que a tarefa no
reta num sistema (o que se chama às vezes sua "função") momento é t9mar os fatos sociais tal como se apresentam,
ode ter uma significação totalmente diferente conforme a si- sem lhes apliçar uma discriminação tão injustificada cientifi-
uação que ocupa, o que vem a dizer que ele é na realidade camente quanto o é na sociedade americana a discriminação
'iferente do ponto de vista sociológico. Da mesma forma, a a que nossos :autores se dedicam. O ponto capital é que a
ndogamia de um grupo: não basta dizer que o grupo "se recusa em da~ o legítimo lugar aos fenômenos de consciência
echa", porque esse fechamento talvez não seja sociologica- torna a verdadeira comparação sociológica impossível, porque
l1ente a mesma coisa aqui e ali: em si ele é a mesma coisa, ela acarreta uma atitude sócio-cêntrica. Na verdade, para sair
ltnas não é simplesmente um fato sociológico, porque não é, de sua própria sociedade, é precíso tomar conscíêncía de seus
m primeiro lugar, um fa to consciente. Chega-se necessaria- valores e de suas implicações, o que é sempre difícil e se torna
ente à ideologia, que a Socíologia behaviorista de Warner e impossível se: os valores são negligenciados. Tem-se a confir-
utros escamoteia, colocando em suma que, entre os traços mação disso, aqui mesmo, no fato de que, no sistema concei-
articulares a observar nas relações, os traços ideológicos não tuaI de Wartjer, a continuidade entre classe e casta procede,
êm o mesmo estatuto que os outros. O esforço de Durkheim como vimos, ide uma relação insuspeitada com a norma igua-
c de Max \'Veber também) tinha no entanto, em grande me- litária, enquapto ela se apresenta como um objeto de com-
ida, levado à necessidade de lhes reconhecer a mesma exis~ portamento.
ência objetiva que aos outros aspectos da vida social. Não se A crítica: da "Caste School of Race Relations" foi nota-
rata naturalmente de pretender que a ideologia seja necessaria- velmente conduzida por Oliver C. COX. '9 A partir das mes-
ente a realidade última do fato social e forneça sua "expli- mas fontes qtJe Warner, Cox, de quem é preciso admirar a in-
ação", mas somente que ela é a condição de sua existência. tuição, destacou uma imagem do sistema que é infinitamente
mais verdadei,ta do que aquela com que Warner se contentou.

18 Na verdade, a escolha efetuada é clara no seu pnncipIO:


aracterizou-se o sistema das castas indiano por somente aqueles seus 19 Oliver: C. Cox, "Race and Caste, a Distinction", Am. Journ.
raços que se pensa encontrar na América, onde aliás eles não cons- of Soe., 50, 1944-45, pp. 306-8, e sobretudo Caste, Class and Roce,
ituem um sistema inteiro, mas só uma parte do que se designa como a Study in Social Dynamics, Nova York, 1948~ do qual são tiradas nos~
istcma de c.iassC' e de casta ("class and caste system"). s<t:- rcfercncins.
106 HIERARQUIAS EM CLASSES Ct,STA, RACISMO E "ESTRATIFICAÇÃO" 107

Sem dúvida não se pode estar em tudo de acordo com Cox, distinção secunçária. John Dollard escrevia em 1937; 23 "Ame-
mas é preciso não esquecer que ele trabalhava com fontes se- rican caste is pinned not to cultural but to biological factors." 2.
'cundárias (a partir de Bouglé, por exemplo). Além disso, os Em 1941, num artigo intitulado "Intermarriage in Caste So-
imites da compreensão de Cox nos ensinam precisamente sobre ciety" onde el,e considerava, além da índia, os Natchez e a
s nossos preconceitos ocidentais mais enraizados. Ele é 50- sociedade do ~ul dos Estados Unidos, Kinsley Davis se colo-
retudo insuficiente no que concerne às ligações religiosas do cava a pergunt~: Como O casamento entre unidades diferentes
istema (o puro e o impuro), porque para o ocidental a so- é possível nessas sociedades, enquanto a -estratificação em cas-
iedade é dada independentemente da religião, e ele tem a tas depende eSlritamente da endogamia de casta? Ele respon-
aior dificuldade em imaginar que possa ser de outra forma. dia, em substância, que era necessário distinguir entre um
o contrário, Cex vê bem que é preciso não falar da casta, "racial caste system", onde os híbridos colocam um problema
as do sistema (pp. 3-4), que não se trata de uma ideologia agudo, e um j<nonracial caste system", onde isso não ocorre.
acial: ". .. although the individual is bom heir to his caste, his Na índia, a hipergamia, tal como é definida para a índia do
dentification with it is assumed to be based upon some sort of Norte por Blurit, isto é, o casamento entre um homem de sub-
sychological and moral heritage which does not go back to casta superior I e uma mulher de subcasta inferior no interior
my fundamental somatic determinant" (p. 5).20 da mesma cas~a, consiste principalmente nQ fato de constituir
Ele escreve ainda (p. 14): "Social inequality is the key- um elemento çe "solidariedade vertical" e de permitir trocar
ate of the system... lhere is a fundamental creed ar pre- prestígio por hens (p. 386). (Esse último ponto é de fato um
umption (of inequality). .. antithesis of the Stoic doctrine of aspecto essencial da verdadeira hipergamia - aquela em que
uman equality ... " 21 Vê-se que Cox coloca em evidência o status ou o !prestígio do marido, assim como dos filhos, não
ontos importantes, e incontestáveis, todas as vezes que ele é afetado pelô status relativamente inferior da esposa ou da
uer destacar a diferença entre a índia e a América. Não me mãe. ) Outra' diferença entre as duas espécies de "sistemas
stenderei sobre sua critica de Warner e de sua escola, mas de castas": osi sistemas ditos "raciais" opõem na maioria das
á o vimos tocar no essencial: o sistema indiano é um sistema vezes dois grupos somente, os outros um grande número de
ocial coerente fundado sohre o princípio da desigualdade, en- "estratos".' Finalmente, K. Davis observa que a hipótese da
uanta o ((color bar" americano contradiz o sistema igualitário origem racial ço sistema indiano não está provada, e que em
o interior do qual ele se encontra e constitui de alguma forma rodo caso ela atualmente não é racial (n. 22). É curioso que
lma doença sua. 22 tudo isso não' tenha levado Davis a refletir sobre a inoportu-
O emprego da palavra "casta" para designar a segregação nidade de designar pelo mesmo termo realidades diferentes.
acista americana conduziu alguns autores, preocupados em re- Para ele, a casta, qualquer que seja aliás seu conteúdo, é
onhecer apesar de tudo a diferença ideológica, a fazer uma "an extreme ~orm of stratification",25 como para outros ela
era um caso limite da classe. Isso nos leva a perguntar pela
natureza dessa: categoria de "estratificação".
20 "... embora o indivíduo ao nascer seja herdeiro da sua
'psta. sua identificação com ela pressupõe-se que seja baseada em D) A "estratificação social". - Na realidade, se o termo
;;lJguma esptcie de herança moral e psicológica que não se reporta merece algum~ atenção, em virtude da proliferação nos Esta-
nenhum determinante somático fundamental". (Tradução inserida
I[ela orgarÚadora.)
21 "A desigualdade social é a chave do sistema... há um credo
f IOdamental ou pressuposto (de desigualdade) ... antítese da doutrina 23 John Dollard, Gaste and Glass in a Southern Town, Nova
c'lóica da igualdade humana". (Tradução inserida pela organizadora.) York (c. 1937),: ed. 1940, p. 64. - Kingsley Davis, "Intennarriage
22 A tese de Cox parece ter tido relativamente lJouco eco. So- in Caste Society!', Am. Anthro. Rev.} 43 (1941), pp. 376-95.
'-fkin no entanto remete a seu artigo e toma posição semelhante: a 24 "A casta americana está ligada não a fatores culturais, mas
rJação entre brancos e negros tem alguns elementos da relação biológicos". (Tradução inserida' pela organizadora.)
{~llre <"astas; mas difere fundamentalmente clela (op. cir., p. 258 J 25 "uma forma extrema de estratificação". (Tradução inserida
I. i 2). pela organizador:a.)
108 HiERARQUIAS EM CLASSES CASTA, RACISMO E "ESTRATIFICAÇÃO" 109

os Unidos de estudos publicados sob este título e das dis- vis tinha, três: anos antes, colocado definições de base para
ussões teóricas a que ele deu origem, no essencial ele não o estudo da estratificação (status, s/ratum etc.). Aqui os
ntroduz nada de novo do ponto de vista que nos ocupa, autores se colocavam a questão da "função" da estratificação.
remos encontrar aqui o estado de espírito que já encontramos, Seria necessário voltar a isso: como acontece que desigual-
"'Os ele vai-se chocar com certas dificuldades. Como Pfautz dades palpáveis, tais como as que se tem em vista quando
econhece quando apresenta uma bibliogragia crítica dos tra- se fala de claSses sociais, se verifiquem· numa sociedade que
alhos publicados em 1945 a 1952, trata-se essencialmente da não reconhece çomo norma sen.o a igualdade? Davis e Moore
'classe",26 No entanto, a distinção de Weber triunfou: podem- emitem a hipótese de que se trata d~ um mecanismo compa~
se distinguir tipos de estratificação social conforme a base da rável ao do mercado: a desigualdade dos recompensas ("re-
esigualdade seja o poder, o prestígio ou uma combinação dos wards") é neçessária numa sociedade diferenciada para que
ais; as classes são concebidas em geral como implicando uma as ocupações mais dificeis ou mais importantes, as que pedem
ierarquia de poder (político tanto quanto econêmico), as uma longa formação de aptidões particulares, ou comportam
astas e os "estados" uma hierarquia de prestÍgio (pp. 392-393), pesadas responsabilidades, sejam efetivamente preenchidas.
No entanto, os estudos de comunidade de Warner e outros COll- Buckley objetou que Davis e Moore tinham confundido estra-
luem que a hierarquia de status é problema de prestígio-e tificação verdadeira e diferenciação pura e simples: o proble-
I,ão de poder. Observemos o uso da palavra "hierarquia" que ma da estratifiCação não é, ou não é somente, saber como in-
arece introduzir-se para permitir distinguir espécies diferen- dividuos poteI1cialmente iguais no inicio chegam a situações
es no interior do gênero "estratificação". Ora, são dois desiguais (é oi "achieved inequality"), mas saber como a de-
onceitos muito diferentes: a impassibilidade quase geológica sigualdade se mantém, os termos stratum ou estratificação
'!

everia dar lugar à consideração dos valore~? sendo geralmente tomados como implicando uma permanência,
uma herança de desigualdade (" ascribed inequality"). Res-
A controvérsia teórica, que se deu nas colunas da American pondendo por, sua vez a Buckley, Davis reconheceu a dife-
ocíological Review, é muito interessante pelo fato de que rença dos pontos de vista e acrescentou que no fundo a animo·
'sclarece as preocupações e os postulados implícitos de alguns sidade do crítico lhe parecia dirigida contra a tentativa de
ciólogos. 27 O ponto de partida é um artigo de Kingsley explicar funcionalmente a desigualdade. A nosso ver, Davis
avis e Wilbert E. Moore, publicado em 1945. O mesmo Da- teve razão em, colocar a questão da desigualdade, ele errou,
como Buckley:, parece implicá-lo, ao colocá-Ia no ponto em
que a desigualdade está no mínimo, em lugar de afrontá-la
26 Harold W. Pfautz, "The Current Literature on Social Stra-
t fication, Critique and Bibliography", Am. Journ. of Soe., 58 (1953), sob suas form,as mais fortes e mais articuladas; mas, assim
I . 391-118. A teoria da estratificação é abordada não mais a partir fazendo, ele permanecia na tradição que percebemos aqui, uma
d classe, mas de um ponto de vista absolutamente geral, por Talcott tradição que Se refere sempre à igualdade como norma, assim
I arsons em: "A Revised Theoretical Approach to the Theory of como a controvérsia e o emprego mesmo do termo "desigual-
S cial Stratification" (R. Bendi.\: e S. M. Lipset, orgs., Class, Status
a Id POlUa, a Reader in Social Stratification, Glencoe, lllinois, 1953),
dade" o mostram.
tnc!. franco em Elements pour une sociologie de faction, Paris, 1955, Num artigo recente, Dennis H. Wrong resume o debate.
P)· 256-325. Embora conserve a etiqueta, a obra se situa fora da Ele marca os limites da teoria de Davis e Moore e cita, de
c rrcnte que se critica; a concepção geral (in fine) faz o próprio
t rmo perder suas implicações habituais. Parte-se de -.:alores e da
um trabalho cjo primeiro, uma' passagem que marca sempre
h erarquia que daí resulta necessariamente. O quadro conceituaI a procura da necessidade funcional da estratificação, a qual
é o da teoria geral. seria ilustrada pelo fato de que os varredores tendem a ter
27 KingsIey Davis, "A Conceptual, Analysis of Stratification",
Ar' Soe. Rev., 7 (1942), pp. 309-321; K. Davis e Wilbert E. Moore,
" ome PrincipIes of Stratification", A. S. R.) 10 (1945), pp. 242-9; 24 (1959), p. 8,2; Dennis H. Wrong, A. S. R., p, 24, pp. 772-82,
\- . Buckley, "Social Stratification and Social Differentiation", A. S~ R., Encontrar-scwão nos artigos de Bucklcy e de 'Wrong as referências a
2 (1958), pp. 369-75; K. Davis, "A Rep1y to Buck1ey", A, S, R., outros artigos não-utilizados aqui.
110 HIERARQUIAS EM CLASSES CASTA, RACISMO E ".t:STRATIFiCAÇAO" 111

um status inferior em todas as sociedades (ele pensa na ín- Como diz RaYfIlond Aron: "No centro da problemática das
dia). 28 Terminando, Wrong solicita estudos sobre certas re- classes, perceb<;> a antinomia entre o fato da diferenciação e o
lações entre o ideal igualitário e outros aspectos da sociedade, ideal de igualdade". 31 Essas realidades se nos tornaram opa-
como os efeitos indesejáveis de nma igualdade ou de uma mobi- cas (e mais ainda, sem dúvida, para os americanos) pelo fato
lidade extremas (p. 780). A igualdade e a desigualdade são de que nossos! valores, nossas formas de consciência, recusam-
pois tomadas aqui como duas tendências opostas que se es- -nas ou ignoram-nas. Para melhor compreendê-las, há interes-
tudam no plano funcional. A propósito dos utopistas, Wrong se em voltar :'para sociedades que, ao contrário, as aprovam
lembra a dificuldade que há em "fazer o salto da história para e destacam. Passaremos assim da "estratificação" à hierarquia.
a liberdade" (p. 775). E) A j n~ia e a hierarquia. - É impossível aqui descre-
Ocorreu pois alguma coisa nesse ramo da Sociologia ame- ver com detalhes o sistema das castas. É necessário antes,
ricana. A multiplicação dos estudos sobre as classes levou a depois de ter 'lembrado seus principais traços, rapidamente iso-
fazer intervir os valores e a palavra, carregada de valores, lar mais ou rr:tenos arbitradamente o aspecto que rios interessa
"hierarquia", a procurar as funções (e disfunções) tanto da- aqui. Pode-s,e partir da definição de Bouglé: a sociedade é
quilo que nossas sociedades valorizam quanto daquilo que elas dividida num grande número de grupos permanentes que são
,i
não valorizam (a desigualdade) e que por alguma razão se ao mesmo tempo especializados, hierarquizados e separádos (em
designou com uma palavra neutra ou mesmo pejorativa: a matéria de ca.samento, alimento, contato) uns em relação aos
"estratificação". Na realidade, o que se opõe à norma igua- outros. 32 Basta acrescentar que o fundamento comum desses ....
litária não é essa espécie de resíduo, de precipitado ou de le- três caracteres é a oposição do puro e do impuro, oposição
gado geológico, são forças, fatores {lU funções, que a norma hierárquica ppr natureza e que implica separação e, no plano
ígualítária nega, mas que nem por isso" deixam de existir; profissional, 'especialização para as ocupações que são perti-
para traduzi-las, a palavra "estratificação" é inadequada. Nel- nentes quant}> à oposição; que essa oposição fundamental se
son N. Foote escrevia, em 1953, como prefácio a uma série de
segmenta, ind'efinidamente; e, se se quer, que a realidade con-
estudos: 29 "The dialectical theme of American History... has ceituaI do sistema está na oposição e não nos grupos que ela
been a counterpoint of the principIes of hierarchy and equa-
Uty." 30
opõe (o qu~ explica o caráter estrutural destes, casta e sub-
casta sendo ~ mesma coisa vista de pontos diferentes).
II O que constitui para nossos sociólogos o "problema das
classes sociais", ou da "estratificação social", é a contradição Reconheceu-se 33 que a hierarquia tinha-se tornando assim
entre o ideal igualitário aceito por todos esses estudiosos como perfeitamente unívoca quanto a· seu princípio. Infelizmente,
pela sociedade da qual eles fazem parte, e um conjunto de tendeu-se por vezes a obscurecer esse ponto quando se falou,
./'\ fatos qae mostram que a diferença, a diferenciação, tendem ao lado de ,um status religioso (ou "ritual") de um "status
mesmo a tomar entre nós um aspecto hierárquico e a se tor- secular" (ou "social") fundado no poder, na riqueza etc., e
nar desigualdade, ou discriminaçãó, permanentes e hereditárias. que os indianos levariam também em consideração. Natural-
mente os indianos não confundem um homem rico e um
homem pobte, mas, como os espec~alistas parecem dar-se conta
28 Infelizmente, não pude consultar durante a preparação deste
artigo o livro de Kingsley Davis, Human Society, Nova York, 1949,
citado por Wrong e que teria sido de particular interesse visto que 31 O p. dit.
o autor se preocupava com a índia nesse período (cL The Popula~
tion ai India and Pakistan, Princeton, 1951). 32 Célestin Bouglé, Essais SUT le régime des castes, Paris, 1908,
29 Ne1sor:. N. Foote, ""Destratification and Restratification, Edi- p. 4. EncorHrar~se-ão uma tradução inglesa das teses de Bouglé e
torial Foreword", Am. ]ourn. ai Social., 58 (1953), pp. 325~6. um comentár(o de seu livro e do de Hocart, que coloca a questão
30 "O tema dialético da história americana tem sido um can· do poder, em Contributions to Indian Sociology, Paris-Haia, Mouton,
traponto dos princípios de hierarquia c igualdade". (Tradução in- n.' 2, 1958.
serida pela organizadora.) 33 Talcc~tt Parsons, loco cito (trad. franc., pp. 284-5).
112 HIERARQUIAS EM CLASSES CASTA, RACISMO E "ESTRATIFICAÇÃO" 113

cada vez mais, é preciso distinguir duas coisas bem diferentes: o lugar supremo, como é o caso geral, não é verdadeiramente
de um lado, a escala de status (ditos "religiosos") que chamo em razão de 'seu poder, mas em razão da natureza religiosa
hierarquia, e que não tem nada a ver com o fato do poder; de sua função.' Do ponto de vista da hierarquia, em todo caso,
do outro, a distribuição do poder, econâmico e politico, que é é o inverso do que se supõe na maior parte do tempo, isto é,
muito importante de fato, mas é distinta de, e subordinada à que o poder ~ o essencial e atrai para ele as dignídades reli-
hierarquia. Perguntar-se-á então como se articulam um sobre giosas ou aí encontra um apoio e uma justificação.
o outro hierarquia e poder? 34 Precisamente a sociedade in- É permitido ver no princípio hierárquico, tal como a
diana responde de maneira muito explícita a essa questão. índia o mostra, no estado puro, um traço fundamental das
A hierarquia culmina no brâmane, ou sacerdote, é o brâmane sociedades coIhplexas que não a nossa, e um princípio de sua
que consagra o poder do rei, que, no mais, repousa apenas unidade não '.•material, mas conceitual e simbólica: ai está a \
na força (eis aí um resultado da dicotomia). Desde uma época "função" essencial da hierarquia: ela expressa a unidade de
muito antiga, as relações do brâmane e do rei, ou xátria, tal sociedade' ao mesmo tempo ligando-a ao que lhe aparece ()-
estão fixadas: enquanto o brâmane é espiritualmente ou abso- como universal a saber, uma concepção da ordem cósmica, com M

lutamente supremo, é materialmente dependente; enquanto o porte ela ou não um deus, ou um rei como mediador. Caso se
rei é materialmente o senhor, é espiritualmente subordinado. queira, a hierarquia "íntegra" a sociedade" ·com referência aos
Uma relação semelhante distingue os dois fins humanos su- valores. Além de se estar geralmente pouco disposto a pro-
periores, o dahrma (ação conforme a) ordem universal, o curar as funções sociais a esse nível, objetar-se-á que há sociedades
artha (ação conforme o) interesse egoísta, que são por sua sem hierarquias, ou ainda sociedades onde a hierarquia não
vez hierarquizados, de tal maneira que o segundo não é legí- cumpre o papel indicado. É verdade que, por exemplo, di-
timo senão entre os limites prescritos pelo primeiro. Assim versas tribos, f se não ignoram toda desigualdade, podem não
também ainda, a teoria do dom aos brâmanes, ação meritória ter nem reis flem sociedades secretas em graus sucessivos. Mas
por excelência, pode ser olhada como estabelecendo um meio trata-se de so~iedades relativamente simples, pouco numerosas,
de transformação dos bens materiais em valores (d. a hiper- com divis~o de trabalho pouco desenvolvida.
gamia, pp. 152-3: tira-se o prestígio do dom de uma filha a F) A r~volução moderna. - Restam as sociedades de
superiores) .
tipo ocidental moderno, que chegam a inscrever a igualdade
ESS2 separação do poder e do status ilustra perfeitamente de princípio, em suas constituições. É verdade que existe
a distinção analítica de Weber, e seu interesse pela comparação entre uma e outras um corte profundo, desde que se considerem
vem de que ela apresenta uma forma pura, um "tipo ideal" os valores e hão somente o comportamento. O que ocorreu?
realizado. Percebem-se dois traços notáveis: na índia de iní- Pode-se ter aqui um ponto de vista simples? As sociedades
cio, toda. totalidade se expri~e sob a forma de uma enumera- do passado, a maior parte das sociedades, acreditavam funda-
ção hierárquica dos componentes (do Estado ou reino, por mentar-se na !ordem das coisas (naturais tanto quanto sociais),
exemplo) a hierarquia marca a integração conceitual de um pensavam copiar ou delinear suas convenções a partir dos
conjunto,. eIa é de alguma forma seu alicerce intelectual. Em princípios da :vida e do mundo. A sociedade moderna pretende
seguida, se se quer generalizar, pode~se supor que a hierarquia, ser "racional~', estendendo que se destaca 'da natureza para
no sentido em que tomamos a palavra aqui, de acordo com sua instaurar uma ordem humana autônoma. Trata-se de tomar
etimologia, não se liga nunca ao poder como tal, mas sempre as medidas reais do homem e deduzir delas a ordem humana.
às funções religiosas, porque a religião é a forma que toma o Nenhuma di~tância entre o ideal e o real: tal como num
universal nessas sociedades. Por exemplo, quando o rei tem projeto de engenharia a representação criará o real. Nesse
jogo, a sociedade, velho mediador entre o homem particular e
a natureza, desaparece. Há apenas indivíduos humanos que é
34 O que se segue é resumido segundo: "La conception de Ia preciso acomodar entre si. O homem tirará dele mesmo uma
royauté dans Inde ancienne (Ap. 3)." (Homo Hierarchicus), op. cito ordem, que o satisfará certamente. No princípio dessa racio-
s
114 HIERARQUIAS EM CLASSES CASTA, RACISMO E "ESTRATIFICAÇÃO" 115

nalidade, Hobbes coloca não o ideal, sempre discutível, mas G) D4 hierarquia à discriminação. - Pode-se tentar,
a paixão mais geral, o motor comum das ações humanas, isto em grandes' linhas, aplicar essa perspectiva comparativa ao fe-
é, a realidade humana mais segura. O indivíduo se torna a nômeno racista americano. É evidente por um lado que a
medida de todas as coisas, a fonte de toda "racionalidade", e sociedade não deixou de ser sociedade, enquanto totalidade
o princípio igualitário é o fruto dessa atitude, porque é con· hierarquizad$, no dia em que ela quis ser uma simples coleção
forme com a razão, sendo a visão mais simples da matéria, e de indivíduos. Principalmente, tendeu-se a continuar fazendo
se opõe plenamente às velhas hierarquias. 35 distinções hierárquicas. Por outro lado, o racismo é, -tal como~
Dessa forma se opõe às sociedades que se acreditavam se o reconhece, maís geralmente um fenômeno moderno. 1
naturais aquela que se pretende racional. Da mesma forma (Procurou~se às vezes sua emergência nas causas econêmicas, !
que a socíedade "natural" se hierarquizava, encontrando sua sem se perceber as ligações ideológicas muito mais próximas
racionalidade ao se colocar como totalidade numa totalidade e prováveis.) A hipótese mais simples consiste em supor
mais ampla, e ignorava o "indivíduo", assim também a socie~ que o racisJiIlo responde, sob uma forma nova, a uma função ~
dade «(racionar', não conhecendo senão o indivíduo, isto é, antiga_ Tudo se passa como se ele representasse, na sociedade
não vendo o universal senão em cada homem particular, se igualitária, l,lm ressurgimento- daquilo que se expressava dife-
situa ",b o signo da igualdade e se ignora enquanto totalidade rentemente, 'mas diretamente e naturalmenté, na sodedade hie-
hierarquizada. Num sentido, o "salto da história para a li- rárquica. Tornar a distinção ilegítima é ter a discriminação.
berdade" já foi realizado: vivemos numa utopia realizada. Suprimir os lmodos antigos de distinção é ter a ideologia racista.
Entre esses dois tipos, que é cômodo opor diretamente, se Pode-se] precisar e confirmar essa visão? As sociedades
situa sem dúvida um tipo intermediário, onde natureza e do passado 'conheceram uma hierarquia de status levando con-
convenção são distinguidas, onde as convenções sociais são sigo privilégios e incapacidades, entre outras a incapacidade
passíveis de ser julgadas em relação a um modelo ideal aces- jurídica total, a escravidão. Ora, precisamente a história dos
sível somente à razão. Mas quaisquer que sejam as transições Estados Un1dos nos diz que a discriminação racial sucedeu a
que expliquem a gênese do segundo tipo a partir do primeiro, escravidão dos negros, uma vez abolida esta. (Ficamos ten-
é na revolução moderna, que separa esses dois tipos, essas tados a nos surpreender de que essa transição capital não tenha
duas faces da mesma moeda, que se encontra sem dúvida o sido mais s,istematicamente estudada, de um ponto de vista
problema central da Sociologia comparativa: como descrever, sociológico, :do que parece ter sido, mas talvez nossa igno-
na mesma linguagem, duas "escolhas" tão completamente opos- rância seja a única em causa. 36) À distinção entre senhor e
tas, como explicar tanto a revolução nos valores que trans- escravo suc~deu a discriminação dos brancos em relação aos
formou as sociedades modernas como a "unidade da Antropo-
logia"? Não recusando reconhecer a mudança e reduzindo 36 cr. Ounnar Myrdal, ibid., pp. 518 e seg., os "Jim Crow
tudo ao comportamento, ou estendendo a obscuridade de um Laws", etc. A reação à supressão da escravidão não é imediata,
lado ao outro, como quando se fala da "estratificação sociaI" mas se elabor'a lentamente. A discriminação é apresentada como uma
em geral, mas percebendo que, nas partes onde uma das faces simples separação sob o slogan "separate but equal". Para o período
é obscura e confusa a outra é distinta e clara, utilizando o anterior à Guerra Civil, igualmente, Myrdal dá uma história sucinta,
mas a análise pennanece, parece, por. fazer. Ela promete ser frutí~
que é consciente em um dos dois tipos de sociedade para de- fera, testemun;ham por exemplo as declarações de Jefferson e de Lin~
cifrar o que não é consciente no outro. coIn (cf. Times Literary Supplement~_ 22 de julho de 1960, pp. 457-8,
segundo J. W. Schulte-Nordholt, The People that Walk in Datkness,
Londres, Burke, 1960). _ P. S. Artigos recentes de P.~L. van der
35 Sobre Hobbes e sobre a sociedade a~tificial, "racional" en- Berghe dão em parte satisfação ao meu desejo. Cf. em último lugar:
quanto calculada a partir da realidade do homem "individual" e não "Apartheid, une interpretation' sociologique de Ia ségrégation raCiaIe",
inspirada numa ordem ideal, cL Leo Strauss, Droit naturel et histoire Cahiers interno de Sociol., XXVIII (n.s.,· 7.9 . ano, 1970), pp. 47~56.
(trad. fr.), Paris, 1954, pp. 188 e seg.; Elie Halevy, La formation du Segundo esse ~ autor, a segregação substituiu a etiqueta como modo
Radicalisme philosophique, 3 vols.) Paris, 1901-1904, vaI. I, pp. 3, de distância social. Essa mudança corresponde à passagem' da escra..
41, 53, 90; III, pp. 347-48; etc. vidão ao racismo.
116 HIERARQUIAS EM CLASSES Cj\STA, RACISMO E "ESTRATIFICAçÃo" 117

negros. Por que essa forma racista? Colocat a questão já tudo O que é "néntal tende a ser antes individual. Assim dife-
é por um lado resolvê-la: a essência da distinção era jurídica; renças mentais' serão atribuídas aos· tipos físicos. Será procurar
suprimindo-a, favoreceu-se a transformação de seu atributo ra- muito longe? É somente insistir na ascendência cristã do in-
cial em substância racista. Para que fosse diferente teria sido dividualismo ~ do igualitarismo modernos: o indivíduo não
necessário vencer a própria distinção. tem senão· "próximos" (mesmo seus rivais são tomados como
O racismo, em geral, tem certamente ligações mais com.. sujeitos) e acredita na igualdade fundamental de todos os
plexas. Além da diferença interna de status, as sociedades homens tomados em particular; ao mesmo tempo, para ele,
tradicionais conhecem uma diferença externa, ela também a inferioridade coletiva de uma categoria de homens, quando
nuançada de hierarquia, entre o "nós" e os ((outros". Era nor~ ele está interessado em afirmá-la, se exprime e se justifica pelo
malmente social e cultural. Para os gregos como para outros, que os diferencia fisicamente dele mesmo e de seu grupo. Em
os estrafigeíros eram bárbaros, pessoas estranhas à civilização suma, a proclamação da igualdade fez explodir um modo de
e à sociedade do "nós", e que, por esse motivo, se tornavam distinção centtado no social, mas que misturava indistintamente \ ~
facilmente escravos. No Ocidente moderno, não somente os aspectos soci~is, culturais e físicos. O dualismo subjacente I \i
cidadãos são livres e iguais em direitos, mas a noção de igual- conduzia, par~ reafirmar a desigualdade, ·a colocar na frente
dade de princípio entre todos os homens traz, ao nível da os aspectos físicos. Enquanto na índia a· hereditariedade é I'
mentalidade popular pelo menos, a da identidade profunda de um atributo do status o racista atribui um Ustatus/J à "raça". \
todos os homens, porque eles não são mais tomados como Tudo isso pode parecer uma visão do espírito. No en·
uma amostra de uma cultura, de uma sociedade, de um grupo tanto, a hipótese se confirma ao menos em parte na leitura
sodal, mas como indivíduos existindo em si e por si. 37 Em do livro de (tunnar Myrdal, que colocou em evidência, a partir
outras palavras, o reconhecimento de uma diferença cultural dos fenômenos americanos, a ligação estreita entre igualita-
não pode mais justificar etnocentricamente uma desigualdade. rismo e racismo. Para começar, ele destaca a tendência da
Observa-se que, em certas circunstâncias que seria necessário filosofia das luzes para minimizar as diferenças inatas; em geral
precisar, uma diferença hierárquica continua a ser colocada, e particularm'ente na América, a doutrina, essencialmente mo-
mas que ela se liga dessa vez aos caracteres somáticos, à fisio- ral, dos "direitos naturais" do homem, se apóia num iguali':
nomia, à cor da pele, ao "sangue". Sem dúvida foram esses tarismo bioI6gico:· todos os homens são "criados iguais". O
em todos os tempos sinais da distinção, mas tornaram-se sua periodo 183Q-1860 vê O desenvolvimento de uma ideologia
essência. Como explicar isso? Pode-se, aqui, lembrar que para a defesa da escravatura: a escravidão sendo condenada
somos os herdeiros de uma religião e de uma filosofia dualistas: em nome da igualdade natural, seus .defensores opõem a
a distinção do espírito e da matéria, da alma e do corpo, im- esta a doutriha da desigualdade das raças; mais tarde, o argu-
pregna toda nossa cultura, e a mentalidade popular em parti- mento servirá para defender a discriminação, que se estabele-
cular. Tudo ocorre como se a mentalidade igualitário-identi- ceu a partir do momento em que, por volta de 1877, o Norte
tária se situasse no interior desse dualismo, cama se a igualdade renuncia a i~por a assimilação. Pesaremos as conclusões: 38
e a identidade, atuando sobre almas individuais, fizessem que
a distinção não se pudesse ligar senão aos corpos. Observemos 38 Gunn"r Myrdal, ibid., pp. 83 e segs., as citações são da p.
ainda que 2 discriminação é coletiva: tudo ocorre como se só 89. Myrdal coloca igualmente o desenvolvimento da visão biológica
os caracteres físicos fossem essencialmente coletivos ali onde do homem: o: Homo sapiens como uma espécie do mundo animal;
cL também p.; 591: "The persistent- preoccupation with sex and mar-
riage in the r~tionalization... Is, to this extent, an irrational escape
on the part o( the \vhites from voicing an open demand for difference
37 Porque a transição da "igualdade" à "identidade!! se opera in social statu$... For its owri sake." ("A racionalização, através de
sobretudo na mentalidade popular torna-se roais difícil apreendê-la uma prcocupaç:ão persis-tentc com sexo e qsamçn·to... É de cert~
do que se ela fosse criação dos grandes autores. No entanto me pro- forma uma maneira irracional da parte dos "brancos de fugir à ex-
ponho estudar mais de perto a complementaridade particular entre pressão aberta: de Um desejo por 'diferenças> de Siatus "soei-alo . o.. Pelas
igualitari~mo e racismo. próprias difen:inças.")
118 HIERARQUIAS EM CLASSES CASTA, RACISMO E "ESTRATIFICAÇÃO" 119

"The dogma of racial inequality may, in a sense, be regarded começo de seh estudo, para o fato de que a distinção de
as a strange fruit of the Enlightenment. .. " " ... The race dogma status traz e i supõe a igualdade nO interior de cada status
is nearly the only way out for a people so moralistically equa- (op. cit., n. 1). Inversamente, a igualdade se afirma, no inte-
litarian, in ir is not prepared to live up to irs faith. A nation rior de um grupo que se hierarquiza em relação a outros,
less fervently commitled to democracy could probably live assim nas cidades gregas, e, no mundo moderno, democracia
happily in a caste system ... " "... race prejudice is, in a e imperialismoi britânicos,41 este último se tingindo de hierar-
sense, a function... (a perversion) of equalitarianism".3' quia (racismo: incipiente na índia na segunda metade do sé-
Se é assim, é permitido duvidar de que, na luta contra o culo XIX). Ê essa relação estrutural que o ideal igualitário
racismo em geral, o simples apelo, por mais solene que seja, tende a destruir, e o resultado de sua ação é O que se estuda
ao ideal igualitário, mesmo acompanhado de uma crítica cien- na maioria das vezes sob o nome de "estratificação social".
tífica dos preconceitos racistas, seja suficientemente eficaz. Seria Em primeiro lugar, a relação se inverte: a igualdade vai con-
útil impedir o deslocamento do princípio moral da igualdade ter desigualdades ao invés de ser contida na hierarquia. Em
dos homens para a noção da identidade dos homens. A igual- segundo lugar, se opera toda uma série de transformações que
dade pode certamente, nos nossos dias, aliar-se ao reconheci- se pode, talvez, resumir dizendo que a hierarquia é recalcada,
mento de diferenças, com a condição de que essas diferenças tornada não-consciente: ela é substituída por uma rede múl-
sejam moralmente neutras. É preciso dar às pessoas meios tipla de desigualdades, casos de fato e não de direito, quanti-
de pensar a diferença. A difusão das noções pluralistas de tativas e gradljais e não qualitativas e descontínuas. Dai por
cultura, de sociedade etc., vindo contrariar e limitar o indi- um lado a dificuldade bem conhecida da definição das classes
vidualismo, é bem indicada. 4O Finalmente, se a tendência a sociais.
hierarquizar está sempre presente, se a proclamação do ideal H) Conclusão. - Para concluir em geral, a comparação
moderno não basta para fazê-Ia desaparecer~ mas ao contrário, pede conceito~ que levem em conta valores que sociedades
por um mecanismo complicado, pode torná-Ia mais feroz e diferentes de, alguma forma escolheram. Essa escolha dos
mórbida, é preciso não perder de vista os antagonismos e os valores tem como conseqüência que certos aspectos da rea-
interesses que a exploram, mas isso ultrapassa nosso quadro. lidade social ~ão claramente e conscientemente elaborados, en-
Detendo aqui a tentativa de definição do racismo, gosta- quanto outros' são deixados na sombra. Para expressar o que
ríamos ainda de lembrar, mesmo que sumariamente, uma re- a sociedade considerada não expressa, o sociólogo não pode
lação estrutural que comanda os desenvolvimentos possíveis inventar conceitos, porque, quando ele tenta, não consegue,
da comparação. A igualdade e a hierarquia não se opõem como no caso: da C'estratificação social", senão traduzir de ma-
de fato de maneira mecânica que somente a consideração dos neira ao mes~o tempo pretensiosa e obscura os preconceitos
valores poderia levar a conceber: o pólo não-valorizado da de sua própri'a sociedade. Ê preciso pois ter recorrido a so-
oposição não está menos ·presente, cada um supõe o outro e se ciedades que ~xpressaram esses mesmos aspectos. Uma teoria
apóia no outro. Talcott Parsons chama a atenção, desde o geral da desigualdade, se for preciso uma, deve ser centrada
nas sociedades que lhe dão um sentido, e não naquelas que,
mesmo apresentando algumas de suas formas, escolheram negá-
39 "O dogma de desigualdade racial pode num sentido, ser visto,
Orno um estranho fruto do iluminismo ... " «... O dogma racial é -Ia. Deve ser uma teoria da hierarquia sob suas formas va-
proximadamente a única saída para um povo moralisticamente igua- lorizadas (ou: simples e direta,) e não-valorizadas ou desvalo-
itário se ele não está preparado para viver de acordo com sua fé.
ma nação menos fervorosamente comprometida com a democracia
aderia provavelmente viver feliz num sistema de castas ... " "... o 41 Maquiavel obsen,a que uma "república" que quer estender
rcconceito racial, é num sentido, função (perversão) do igualita- seu império, e pão ficar pequena e estagnada, deve como Roma con~
ismo". (Tradução inserida pela organizadora.) fiar a guarda da liberdade ao povo e não, como Esparta e Veneza,
40 Claude Lévi-Strauss, Race et Histoire, UNESCO (c. 1952), aos grandes. (Discurso sobre a Primeira Década de Tito Lfvio, I,
p. 50. cars. V-VI.)
120 HIERARQUIAS EM CLASSES
5
rizadas (ou complexas, híbridas e vergonhosas). (Ainda é
preciso observar, depois de Talcott Parsons, 42 que não se
trata aqui senão de uma maneira particular de considerar a
totalidade do sistema social.) Procedendo assim, não se imporá,
bem entendido, a uma sociedade os valores de uma outra,
haverá apenas um esforço para colocar uma perspectiva 43 re- FONTE DE VARIAÇÃO DAS IMAGENS QUE A CLASSE
cíproca dos diversos tipos de sociedade. Tenderemos a ver TRAMUIADORA TEM DA SOCIEDADE *.
cada sociedade à luz não só dela mesma, mas das outras. Do
ponto de vista da Antropologia Social, isso aparece não somente
como a fórmula de uma comparação objetiva, mas mesmo como DAVID LOCKWOOD
a condição da compreensão de cada sociedade particular.
Tradução de MARIZA PEIRANO

E M SUA MI\roRIA,as pessoas visualizam a· estrutura de clas-


se da sua soçiedade do ponto de vista das vantagens do seu
próprio HmeíQH, e suas percepções da sociedade mais ampla
variatão de acordo com a experiência que têm da desigualda-
de social nas, pequenas sociedades em que transcorrem suas
vidas quotidi~nas. Essa suposição de que a consciência social
do indivíduo ié, em grande escala, influenciada pelo seu con-
texto social imediato· já provou sua utilidade no estudo das
"imagens da 'wciedade" e foi colocada de forma mais clara
por Bott, que' escreve: "As pessoas experimentam diretamente
as distinções de poder e prestígio em seus locais de trabalho,
entre seus co~egas, em escolas e em seus relacionamentos. com
amigos, vizinhos e parentes. Noutras palavras, os ingredientes,
a matéria·prima da ideologia de classe estão localizados mais
nas várias experiências sociais primárias do· indivíduo do que
na sua posiç~o numa categoria sócio-econômica. A hipótese
desenvolvida aqui é a de que, quando um indivíduo fala sobre
classe, está tentando dizer alguma coisa, de uma forma sim-
bólica, sobre suas experiências de poder e prestígio nos grupos
a que pertence e. sobre seus relacionamentos sociais tanto no
passado como ~_ no presente. 1

'" Reprodu7;ido COm a permissão do autor e do editor da Socio-


logical Review, Volume 14, nove;nbro de 1966. (Originalmente apre-
42 cr. nota 17. (Nota 26 nesta tradução,) sentado como uma conferência da Universidade de Gottingen, feve-
reiro de 1966.) .
43 E. E. Evans Pritchard, Social Anthropology, Londres, 1951, 1 Elizabeth Bott: Family and Social Network, Londres, 1957,
p. 129.
p. 163.

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