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Leitura dos Clássicos – Aula 01

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Leitura dos Clássicos – Aula 01: Introdução


Prof. Luiz Gonzaga de Carvalho

Transcrição não revisada ou corrigida pelo professor

Primeiramente darei uma breve explicação sobre o propósito deste curso. A


vida é jogada sobre o ser humano e se levantam inúmeras questões para as quais ele
não está preparado. O ser humano vai à escola, conhece pessoas, mas existem muitas
coisas sobre a vida que ele não tem como aprender simplesmente, digamos, por
meio de tentativa e erro. Questões sobre como lidar com relacionamentos; qual será
a importância da sua profissão para a vida; o que é a vida humana; e até onde a vida
humana pode chegar. Um ser humano pode viver uma vida inteira e não ter ideia de
qual é o horizonte humano real, até onde a vida humana pode se expandir. Uma
pessoa pode viver uma vida inteira dentro de um horizonte humano muito estreito, e
o resto, o que faltou das possibilidades humanas, ficará como um modo de ausência
na sua vida – algo que na sua constituição como indivíduo humano ficará vazio.
Além disso, existem muitos erros que a pessoa pode cometer simplesmente por não
ter ideia de como pode ser ou é a vida humana. Isso vale para qualquer época da
vida: pode-se chegar aos noventa anos e cometer erros gravíssimos, por pura e
simples inexperiência, porque noventa anos é um tempo pequeno de experiência
para um ser como o ser humano. Então para isso existe a cultura. A cultura consiste
em um meio da pessoa se beneficiar das experiências de gerações passadas, das
experiências de seres humanos que viveram há cem, duzentos, quinhentos, mil, ou
dois mil anos atrás. Na medida em que uma pessoa assimila tais experiências, o seu
horizonte começa a se ampliar, e por meio da cultura se pode dialogar com pessoas
que viveram a muito tempo atrás.

Então, fala-se de aprimoramento intelectual pela leitura dos clássicos. Mas o


que é um clássico? Um clássico não é simplesmente uma boa obra de literatura
ficcional ou não ficcional que foi escrita há muito tempo. É claro que muitos
clássicos foram escritos há muito tempo e que todos os clássicos são muito bons,
mas um clássico é principalmente uma obra de literatura em que uma experiência,
ou uma possibilidade humana permanente, ficou registrada de modo
excepcionalmente claro. Algo que afeta a vida de cada indivíduo humano que já
existiu, que existe, ou que venha a existir, ficou ali registrado de maneira
especialmente clara. Significa que aquela obra pode iluminar a vida de qualquer
indivíduo humano, mesmo que ela tenha sido escrita a dois mil anos atrás. Isso
significa que os clássicos são a interface, o meio de ligação que o ser humano tem,
entre o indivíduo e a espécie humana como um todo. É o meio pelo qual ele cresce e
passa de uma partícula na sociedade para um todo orgânico que, às vezes, é até
mesmo maior do que a própria sociedade em que ele vive. Existem indivíduos cuja
vida abarca a sociedade em que vivem e ainda a transcende . Os clássicos são

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justamente as obras que registram essas possibilidades. Registram, por exemplo,


erros permanentes que todo indivíduo humano comete, e como lidar com eles;
registram como lidar com limites insuperáveis, como superar limites aparentemente
insuperáveis.

Um clássico não precisa ser necessariamente uma obra de ficção. Não precisa
necessariamente descrever uma série de ações humanas que não aconteceram e
representar uma vida humana ou o pedaço de uma vida humana. Um clássico pode
ser sobre qualquer assunto. Podem existir clássicos da ciência natural, da medicina,
da matemática, e assim por diante. Em toda e qualquer área da vida humana, no
decorrer da História, o ser humano alcançou certos patamares, e os clássicos
registraram justamente estes patamares. A ação humana não se dá apenas em uma
história individual: ela pode se dar também em uma sucessão de histórias
individuais, às vezes separadas no tempo por séculos ou milênios.

Por exemplo, quando Aristóteles escreveu suas obras sobre a lógica científica
(obras sobre a dialética, lógica analítica e retórica), ele esclareceu certos pontos
sobre estes assuntos que continuam válidos até hoje. Qualquer pessoa que queira
investigar cientificamente uma coisa fará uso daqueles métodos, sabendo ou não.
Aliás, é uma das coisas que ele fala logo no começo da Arte Retórica: “A retórica e
a dialética são artes que todas as pessoas usam, de modo mais ou menos
consciente”. Mas as pessoas as utilizam em geral de maneira mais ou menos cega,
como que tateando: argumentando com elas mesmas, até elas ficarem convencidas,
ou com outros, até que uma hora estes se convencem – e elas não sabem como
conseguiram tal convencimento. Agora, quando se obtém um resultado sem saber
exatamente como isto ocorreu, é muito difícil reproduzir tal resultado. Pode-se
aplicar a mesma série de argumentos para uma outra pessoa e aí não funciona. No
momento em que Aristóteles escreve a arte retórica, escreve sobre dialética ou lógica
analítica, ele esclarece alguns pontos fundamentais, alguns marcos essenciais da arte
da persuasão. Esses marcos continuam sendo os mesmos até hoje, e quem leu essas
obras e os assimilou tornou-se, portanto, mais capaz de avaliar as coisas que sabe ou
pensa que sabe. Muitas vezes, uma pessoa pensa que sabe alguma coisa e decide, por
exemplo, falar sobre aquilo a um vizinho, que responde com três argumentos
contrários, e então lhe vem o pensamento “Caramba, pensava que sabia isso, mas
caiu tudo... Eu era ignorante e não sabia!” Se isto é válido para as artes e para as
ciências, é muitos mais válido para a própria vida humana. A arte de viver é, de
todas as artes possíveis, para o ser humano, a mais sutil e a mais complexa. A maior
parte das obras de literatura ficcional tratam de problemas nessa arte. Umas tratam
melhor e outras tratam pior. E dentre as que tratam melhor, algumas tratam de
pontos de modo universal, de modo que vale sempre. Essa distinção é muito
importante. Um clássico é uma obra que trata ou explicita uma questão de modo
universal, de um modo permanentemente válido. Enquanto existir a espécie humana,
aquilo vai continuar acontecendo daquele jeito.

O primeiro livro que recomendamos para todos é o Como Ler um Livro, de


Mortimer Adler. A maior parte desse livro é dedicada a literatura de não-ficção – a
maior parte deste curso será dedicada a ficção, mas os princípios aplicados aqui são
derivados diretamente dos princípios expressos nesse livro, o qual, aliás, é um
clássico sobre a arte de ler. Outro livro é o A Vida Intelectual, de A. D. Sertillanges.
Ambos os livros não serão necessários para esse curso, mas são livros que vale a

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pena ler e ter para a toda a vida.

Existe uma parte da educação de uma pessoa que começa num período da vida
e termina em outro. Por exemplo: a educação profissional começa em um
determinado momento, quando você começa a fazer cursos sobre uma profissão ou
se emprega em funções subalternas de uma profissão, e aprende o básico. Você
passa uns dois, três ou cinco anos trabalhando com aquilo e aprende praticamente
tudo sobre aquela profissão. Depois de uma formação acadêmica completa sobre
aquela profissão e cinco anos de experiência, você aprendeu basicamente tudo que
precisa saber daquilo. Mas existe uma educação que não acaba nunca: começa no
momento em que uma pessoa nasce e só terminará no momento em que morre. Esta
é exatamente a educação sobre o que é a vida humana. Os clássicos visam ajudar
justamente essa educação. Ensinar o sujeito a viver a vida humana. Veja bem, o ser
humano nasce e não sabe nada sobre a vida dele – ele só começa a viver. Mas existe
uma parte nele que só quer saber as coisas. Então não basta ele viver a vida; ele não
vai viver a vida sem se perguntar nada sobre ela. Ninguém vai viver a vida sem se
perguntar nada. Ele pode simplesmente se perguntar algo sobre a vida, por exemplo,
diante de um sofrimento: “Uma pessoa querida morreu. Por que isso aconteceu? Era
uma pessoa tão boa, tão querida.” Quando se perceber diante desta situação, ele irá
se perguntar o porquê disto ter acontecido. Ou, às vezes, o contrário: ocorre um
golpe de sorte muito grande e isso também pode assustá-lo e fazê-lo pensar “Nossa,
como isso deu certo? Por que acontecem coisas como sorte e azar?” Quer dizer, a
vida vai colocar diante dele um monte de perguntas, e algumas dessas perguntas têm
respostas, enquanto outras ainda não tem respostas claras – talvez nunca tenham.
Mas justamente os clássicos vão dizer como o ser humano sempre trata destas
questões.

Em nossos cursos de leitura, nós costumamos começar as leituras por um livro


do Alessandro Manzoni, Os Noivos (I Promessi Sposi). Por que costumamos iniciar
as turmas deste curso por esse livro? Porque a qualidade específica desse livro,
como clássico, é justamente mostrar os inúmeros tipos humanos que você encontra
na vida. Essa é uma coisa chocante para os seres humanos: “Por que as pessoas são
tão diferentes de mim?”, algo que nós sempre nos perguntamos. De tempos em
tempos acontece algo e nos perguntamos “Por que o sujeito fez isso? Por que ele é
tão diferente? Por que não faz como eu?” O ser humano se espanta com a
diversidade humana. Ele não espera que isso seja normal. E uma das grandes
qualidades desse livro é mostrar como, no decorrer de uma série de acontecimentos,
o casal principal encontra inúmeros tipos humanos e como tem de aprender a lidar
com esses diversos tipos. O livro ensina que não adianta esperar que todas as
pessoas sejam iguais a eles, porque elas não serão. E que não basta nós nos
conformarmos com isso e somente pensar “As pessoas não são como eu, que
droga!” É necessário adquirir algum grau de compreensão dos outros tipos humanos,
para que se possa lidar com eles. Além disso, às vezes é justamente nos outros tipos
humanos que podemos encontrar elementos que nos explicam o que somos, qual o
nosso tipo humano. Veja bem, é fácil termos uma visão provinciana do real ou da
vida humana e pensar “Eu sou um ser humano. O resto são tipos, modalidades da
minha pessoa.” A pessoa se percebe naturalmente como uma pessoa completa! Sem
reflexão, ela não passa a pensar nela mesma como só mais um tipo humano
delimitado. Espontaneamente, ela só pensa em si mesma como uma pessoa
completa, e, nos outros, como variações estranhas dessa pessoa. Esta é uma coisa

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que só a cultura pode mostrar ao sujeito. Às vezes, uma pessoa de índole bastante
reflexiva, mesmo sem ler, pode chegar a alguma compreensão disso. Todos chegam
a um arranjo qualquer, mas esse arranjo pode não ser suficiente.

A diferença entre uma vida comum e uma vida medida pelos clássicos é
justamente que, quando a sua vida é medida pelos clássicos você faz parte de uma
comunidade maior. Por experiência direta, uma pessoa pode fazer parte de uma
comunidade mais ou menos delimitada no espaço e no tempo. Há pessoas um pouco
mais velhas que as outras, outras um pouco mais novas e pessoas que moram em
lugares um pouco diferentes umas das outras. Mas por meio da cultura ou por meio
da leitura atenta ou inteligente dos clássicos, podemos fazer parte da comunidade
humana como um todo. Além disso, aumentar as possibilidades humanas é muito
importante, porque muitas vezes a maior parte dos esquemas de ação em uma
sociedade são heranças indiretas de coisas que foram expressas nos clássicos.

A maior parte dos valores de uma sociedade – por exemplo, hoje, no Brasil – é
derivada indiretamente, às vezes de modo bastante distorcido, de concepções que
surgiram ou se explicitaram nos clássicos. Para exemplificar com isso funciona: hoje
em dia damos muito valor aos “direitos individuais”. Então, as pessoas têm direito à
vida, à educação, à liberdade, e isso em parte é derivado do ideal revolucionário
iluminista do século XVII e XVIII. Isso surgiu expresso assim na Revolução
Francesa. Mas esses ideais são simplesmente uma elaboração, uma transposição para
o plano social dos valores cristãos que já estavam no Ocidente há centenas de anos.
Por exemplo, a China hoje tem que dar um salto no seu modo de organização
política para uma sociedade mais livre e menos despótica. Todo o mundo sabe desse
problema. O que ninguém sabe é que esse problema surge na China, justamente
porque eles tiveram que “pular” das concepções religiosas, cosmológicas e
metafísicas que possuíam, diretamente para uma organização social e política
moderna, sem passar por aqueles quase dois mil anos de Cristianismo que o
Ocidente presenciou. Veja bem, o pensamento cosmológico e metafísico no
Ocidente era muito semelhante ao pensamento cosmológico e metafísico chinês
antes do Cristianismo, o qual resultou em um outro tipo de pensamento religioso,
moral, metafísico, teológico etc. Depois de dois mil anos (em alguns países, mil
anos) de Cristianismo, começou a surgir a ideia de fazer uma sociedade libertária.
Uma boa parte dessas experiências libertárias no Ocidente deu mais ou menos certo,
ou seja, foi de fato um benefício para as pessoas, justamente porque essa ideia surge
tendo por trás dela os séculos de história cristã. A dificuldade que o chinês tem hoje
de fazer uma sociedade libertária é em grande parte devida à falta dessa história.
Ocorre que no decorrer da história cristã, uma série de obras foi marcando ou
definindo claramente pontos concretos sobre o que era ser um bom cristão. Quando
esses pontos práticos ou esses valores, essas medidas para a ação concreta acabaram
por ser estabelecidos no tempo, foi possível separá-los do pensamento cristão geral
ou da religião cristã, e assim eles se tornam valores autônomos. Por exemplo, no
Ocidente quase todas as pessoas sabem ou pensam que se deve tratar o próximo
como se gostaria de ser tratado. Esse é um valor que está por trás de todas as nossas
instituições e de todos os nossos pensamentos. Originariamente, era um valor
derivado da religião cristã, e, quando se estabelece na mente de todos, ele pode ser
separado do pensamento cristão e uma pessoa qualquer continuar praticando aquilo,
mas ele não pode surgir separado de um pensamento. Os clássicos então nos dizem
muitas vezes a história desses valores ou princípios; quando foram isolados,

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examinados e expressos de modo claro. E assim, pode-se entender como foi possível
a sociedade ter se tornado o que ela se tornou hoje, como ela veio a ser o que ela é
hoje. Então, a pessoa, por meios dos clássicos, das grandes obras, passa a viver no
panorama humano, e não no panorama de sua cidade, profissão, seu país, sua família
ou seus amigos. Ele passa a conversar com a humanidade como um ser humano, e
não conversar como “fulano” ou “beltrano”.

Costumamos começar o curso com Os Noivos, por causa justamente da


apresentação da diversidade de tipos humanos, porque uma das primeiras coisas que
temos que aprender na vida é que existem diversos tipos humanos, e que somos
também só mais um tipo; que para os outros nós parecemos apenas um pedaço
estranho da pessoa deles, e que uma das coisas mais importantes da vida é aprender
a não estranhar os outros tipos humanos. O primeiro passo para se tornar
completamente humano é saber isto: existe algo em você que é sempre só
parcialmente humano, porque é só uma parte da humanidade, e que só a sua
inteligência pode alcançar a humanidade como um todo. Porém, desta vez vamos
fazer um pouco diferente: em vez de começar por Os Noivos, começaremos por
outro livro. Porque Os Noivos tem uma desvantagem para nós brasileiros – em
português este livro torna-se muito arrastado. O resultado é que muitos alunos
desejam abandonar o curso, por volta de metade desse livro. Desta vez começaremos
pelo livro O Fio da Navalha, de William Somerset Maugham.

Este já é um livro diferente, que não trata da imensa diversidade dos tipos
humanos, mas trata de uma outra coisa interessante: os diversos propósitos que o ser
humano pode se propor para a sua própria vida. Começamos a vida cheios de
propósitos e esperanças mais ou menos vagas: “O que eu quero da minha vida? Não
sei... alguma coisa legal. Eu só quero que ela seja legal.” Então o tempo vai
passando, e as pessoas vão se diferenciando também em relação aos propósitos,
porque a vida oferece muitas coisas e não conseguimos escolher todas elas.
Conseguimos, é claro, desejar todas as coisas boas que a vida pode oferecer, mas
não conseguimos escolher. Escolher significa decidir, procurar ativamente todas
elas. Nós só conseguimos algumas. Então, este é um livro sobre um grupo de
pessoas, em que cada um escolhe um tipo de coisa diferente. É uma leitura mais fácil
e fluente. O Somerset Maugham, quando traduzido para o português, é mais fluente
do que o Manzoni. Espero que o pessoal consiga passar da metade desse livro. Além
disso, no Maugham os tipos humanos estão mais estilizados, enquanto o Manzoni é
extremamente realista.

Você vai lendo Os Noivos e aquilo parece uma série de acontecimentos reais
descritos literalmente. Ele não explica muito as pessoas que vão aparecendo, porque
na vida também é assim: as pessoas vão aparecendo, e nenhuma nos explica sobre si
mesmas, ninguém chega e diz “Oi, sou o fulano de tal. Aqui está o meu
temperamento, a minha caracterologia, a minha história. Leia isso antes de se
relacionar comigo.” Você simplesmente vai conhecendo as pessoas, e elas vão
agindo de modo estranho, e você tem que ir aprendendo. O Manzoni coloca o livro
exatamente assim. É uma obra que, para ser digerida e assimilada, subentende já
algum conhecimento de alguns dos propósitos da literatura de ficção. Os grandes
críticos dizem que o Manzoni atingiu um patamar novo na literatura de ficção. Pela
primeira vez ele conseguiu mostrar isso, este problema na vida humana: como as
diversas pessoas vão se apresentando na sua vida e você não sabe quem elas são,

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como são, ou o quê delas esperar; e você está lá precisando fazer uma coisa e
tentando explicar para todo mundo, ninguém está entendendo, e cada um quer fazer
uma coisa diferente. O livro é um pouco angustiante no começo.

Eu peço a vocês que antes da próxima aula leiam este texto, que é um capítulo
do livro Como Ler um Livro (que foi recomendado) especialmente dedicado à leitura
de literatura de ficção: leitura de romances, poesia, peças etc. É um texto bem
simples e bem claro, porque o autor fazia questão de escrever para o homem
comum. Apesar de ser um grande pensador, ele era também um grande educador, e
sua finalidade era abrir os horizontes da cultura e das possibilidades humanas para o
homem comum.

O importante é justamente isto: a vida apresenta questões, problemas ou


mesmo coisas boas que você pode desejar, sem lhe avisar qual a importância de cada
uma destas coisas na sua vida. A vida se apresenta ao ser humano sem apresentar o
valor de cada coisa àquele mesmo ser humano. O valor é algo que a pessoa descobre
aos poucos, no decorrer do tempo. Se for uma pessoa muito inteligente e tiver muita
sorte, pode descobrir muito sobre a vida humana sem nunca ler. Mas normalmente
para descobrir alguma coisa realmente importante para a própria vida, é necessário o
auxílio dos clássicos. Compreender a vida humana é uma tarefa que dificilmente
alguém faz sozinho. Claro, de vez em quando nasce um sujeito como o Buda, que
decidiu e falou “Eu vou sentar sob essa árvore e não vou sair daqui enquanto não
compreender esse negócio.” Mas de fato isso também é muito excepcional! Não
acontece todos os dias, nem acontece em todas as gerações humanas! Sujeitos como
o Buda, Moisés ou Jesus Cristo surgem só de vez em quando. São sujeitos cuja
própria vida é um clássico para o ser humano. Tanto que as pessoas em contato
imediato com eles tiveram o cuidado de registrar os dados importantes sobre aquela
vida, porque viram que essa vida humana é um clássico: nela estão ilustradas
questões fundamentais para a vida de qualquer ser humano.

A primeira modificação que fizemos na lista de livros deste curso foi substituir,
do primeiro lugar, Os Noivos por O Fio da Navalha1 (...) Em seguida provavelmente
vamos ler o Crime e Castigo, de Dostoievsky, que é também sobre uma questão
permanente na vida humana: todos nós, sem exceção, fizemos alguma coisa errada,
de maior ou menor gravidade, que gostaríamos de esconder. Isso nunca aconteceu
com algum de vocês? Todas as pessoas já passaram por isso, e algo dentro da pessoa
a faz “remoer”, “mastigar”, não é? Crime e Castigo é um clássico sobre isto: como
um ato aparentemente sem importância – o ato de ocultar algo que fizemos – pode
afetar uma vida humana; e também como muitas vezes o sujeito pensa que está
ocultando aquele fato, e justamente a pessoa de quem ele está querendo ocultar sabe
exatamente o que ele fez. Isso também é algo que pode sempre acontecer. Outro
livro que também é interessante é O Estrangeiro, de Camus. Quantas vezes, na vida,
um sujeito é indiferente a algo que é de importância crucial? A incapacidade de
sentir algo em relação a alguma coisa que é realmente importante na vida pode
acontecer muitas vezes. Também temos Otelo, de Shakespeare: como pode
acontecer que pessoas excelentes e quase perfeitas sofram imensamente por causa do
engano. Isso também acontece com todos os seres humanos, inúmeras vezes!

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Nota de revisão: A lista de livros sofreu mais mudanças do que está expresso no parágrafo, tanto em
substituição de títulos, quanto em mudanças da ordem de apresentação.

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É por isso que os livros de autoajuda estão fazendo tanto sucesso! Qual é a
diferença? Existem também clássicos da autoajuda, existem alguns que são de fato
excepcionais e que têm valor permanente. A diferença entre um clássico da
autoajuda e estes clássicos aqui é o modo de expressão. Um livro de autoajuda é um
manual prático, que visa claramente ensinar como fazer alguma coisa: “Antes você
agia assim e isso causava tal problema na sua vida. Agora faça ‘assado’ e este
problema irá sumir.” Ótimo. Mas acontece que existem alguns problemas humanos
que não têm uma solução unívoca, que não têm uma solução sempre igual, mas, sim,
uma solução que é modulada pela diversidade das circunstâncias. Então, não basta
dar uma instrução prática para alguns problemas. Alguns problemas têm de ser
compreendidos como um todo, e isso não pode ser explicado em um tratado. Um
tratado que ensinasse a alguém como lidar com este ou aquele determinado
problema teria que ser muito longo para abarcar um número suficiente de
circunstâncias diversificantes. Como não é possível colocar isso em um tratado, o
que se pode fazer? É justamente aí que se faz uma obra de literatura ficcional – ela
sintetiza as diversas circunstâncias possíveis em um único caso, que então representa
a totalidade da possibilidade humana dentro daquele problema ou questão. É como
se, simplesmente ao olhar aquele caso, fosse possível compreender as diversas
circunstâncias em que o sujeito se encontra concretamente. Um sujeito não
compreende as diversas circunstâncias possíveis, mas capta imediatamente as
circunstâncias em que ele está. E o outro, que está em uma circunstância
completamente diferente, mas tem um problema análogo, também capta a mesma
coisa. Este é um poder que é próprio da ficção: a capacidade de sintetizar vários
casos diferentes em único caso. Esta é a diferença crucial: só é possível escrever
tratados ou manuais sobre coisas que têm uma variedade limitada ou determinada.
Quando essa variedade é indefinida – não significa que ela é infinita, mas que não há
como saber até onde vai aquela variação, não há como abarcá-la toda –, que é o caso
comum a muitas das questões e dos problemas da vida humana, você só pode
representá-los simbolicamente, representar a questão por um mito ou um símbolo,
que explica todas as situações possíveis e no qual se encontra a situação ou posição
concreta em que você está.

Isso significa que a “leitura dos clássicos” não deve terminar nesta lista de
livros. “Para que vai servir este curso e esta lista de livros?” – bem, além de
adquirirmos esta experiência universal acerca dos temas que são tratados nestes
clássicos, vamos ver se podemos intermear a leitura com algumas reuniões,
explicando como podemos identificar um clássico: “Como eu chego numa biblioteca
ou livraria e avalio os livros para ver realmente o que é ou não importante para
mim?” A vida é breve e não vamos perder tempo lendo um monte de coisas que nem
são divertidas, nem têm utilidade alguma. De vez em quando, claro, lemos só para
descansar; e de vez em quando lemos para aprender. Quando lemos para aprender,
lemos um clássico. Então, leremos os livros e ao chegar mais ou menos na metade
de cada um (ou um pouco antes, dependendo do tamanho do livro), faremos uma
reunião que não é para leitura, mas para eu comentar aquilo que foi lido e explicar
como, naquele caso particular, poderíamos identificá-lo como um clássico, para
criarmos algumas normas para tentar identificar [clássicos] de modo geral. Existem
meios para a identificação da qualidade ou do valor de um livro. No livro Como Ler
um Livro, o Adler dá uma série de indicações sobre isso – quando você tem dez
minutos para analisar um livro e tem que chegar à conclusão de que se vale a pena
comprá-lo ou não, como se faz? Também vamos ver se usamos algumas das normas

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ou técnicas que o Adler ensina, e outras normas para quando houver mais tempo
para examinar o livro. Mas geralmente há pouco tempo, muitas vezes estamos na
livraria e pensamos “Certo, em vinte de minutos, no máximo, eu tenho que saber se
isto aqui vale a pena ou não”. Ou, às vezes: “Tenho que saber se isto é um bom
presente para o fulano. Vale a pena dar isto de presente para o outro? Para quê eu
quero dar o livro para ele? É um livro que ajudará a vida dele, é um livro só para ele
se divertir um pouco, ou, às vezes, não é uma coisa nem outra, é só um livro que se
coadune com o tipo humano ao qual aquele outro pertence, de maneira que ele se
encontre naquele livro”. Neste curso vamos aprender também a fazer isso.

A leitura será feita desta forma: nas aulas as pessoas farão uma leitura em voz
alta de um certo número de páginas, e combinarão de durante a semana ler mais um
certo número de páginas. Durante a semana a pessoa também fará um pequeno
resumo das questões que se levantaram para ela com essa leitura. Ela pode fazer
também um esquema das ações que aconteceram e que foram relevantes para ela: o
que aconteceu aí que foi mais relevante para você, ou mais interessante, ou mais
estranho? Dessas pessoas que foram aparecendo no livro, quais são mais familiares
para você e quais são mais estranhas? Esse resumo é muito importante, pois por
meio dele você vai começar a se delinear como pessoa humana. Mais ainda: às vezes
também teremos que diferenciar, nesse resumo, “’quais as pessoas que me são
estranhas, quais as que me são familiares, quais as que eu queria que não fossem
estranhas e as que eu queria que fossem familiares ou que não fossem familiares?”
Essa é uma diferença que temos também que fazer: “Dessas pessoas, eu queria ser
um pouco mais como aquela, e queria ser um pouco menos como aquela outra; mas
na verdade eu sou mais como esta outra e menos como aquela.”

Então, a primeira coisa quando lemos literatura de ficção é fazer isso: nós nos
imaginarmos como os personagens. E isso significa que teremos que passar de um
personagem para o outro e, em cada momento, tentar ser cada um deles: “Agora eu
sou o fulano, agora eu sou o ciclano etc...”, e aí tentar entender porque ele fez
aquilo. Nós não precisamos tentar entender por que nós não faríamos aquilo –
porque isso nós já sabemos. Os motivos para sermos como somos, nós já
conhecemos. Eu quero que cada um dos alunos do grupo passe a conhecer os
motivos que os outros têm para serem os outros. Criada essa habilidade com os
clássicos, o que vai acontecer é o seguinte: simplesmente nas diversas circunstâncias
da sua vida, nas diversas situações humanas, dentro dos diversos grupos de que você
participa, você começará a entender melhor aquelas pessoas, e vai saber lidar melhor
com elas. Para começar, você vai entendê-las como pessoas. Elas vão deixar de ser
uma coisa falante, que age de modo estranho, e vão passar a ser pessoas inteiras,
mesmo que muito diferentes de você.

Quando somos adolescentes, boa parte do nosso esforço é justamente se


adequar a um grupo, se inserir em algum grupo e se estilizar para se tornar uma
pessoa daquele grupo. Por que o ser humano faz isso logo no começo da vida
adulta? A adolescência é justamente o comecinho, o prefácio, o preâmbulo à vida
adulta. Por que ele faz isso? Porque ele instintivamente sabe que ele não tem como
se definir como pessoa senão assimilando os aspectos das outras pessoas; ele sabe
que o único jeito de ser uma pessoa definida é pegando um pedaço desse aqui, um
pedaço daquele outro, e mais outro etc, e isso compõe a pessoa que você é. E isso é
evidentemente mais fácil quando você seleciona um grupo de pessoas em que todas

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elas são mais ou menos semelhantes. Esta seleção inicial que deu um estilo inicial à
nossa pessoa evidentemente vai mudar no decorrer do tempo. Isso acontece porque
sairemos daqueles grupos e entraremos em outros, conheceremos outras pessoas, e
assim por diante. Mas a nossa experiência humana individual é sempre limitada.

Por exemplo, o sujeito primeiro fazia parte do grupo dos roqueiros da escola:
usava jaqueta de couro, ferros nos sapatos, e esta foi a primeira estilização que ele
teve do que era uma pessoa humana. Ele era rebelde, não concordava com os
outros...Depois ele sai daquela escola e vai para a faculdade, para começar a estudar
medicina. Ele vai passar provavelmente os próximos trinta, quarenta ou cinquenta
anos de sua vida convivendo principalmente com médicos e com pessoas ligadas à
atividade médica. Ele pode, é claro, renovar – e ele vai renovar – a estilização da
pessoa dele, de roqueiro para médico, mas ainda assim a experiência humana que ele
tem é muito limitada, e tem um desvio de perspectiva. Ele terá, por exemplo, muito
mais experiência das pessoas dentro da atividade médica do que das pessoas fora
dessa atividade. Por mais experiências que ele tenha das outras pessoas, essa
experiência é distante e pequena em relação à experiência das pessoas que ele tem
na atividade médica. Isso significa que as possibilidades humanas que se ofereceram
a ele como instrumentos de estilização e de criação da sua própria pessoa são
limitadas; e são enviesadas, parciais, derivam principalmente de um certo grupo de
tipos humanos: o grupo de tipos humanos que aguenta a profissão médica. Toda e
qualquer profissão exige algo do ser humano, e nós aguentamos algumas coisas e
não aguentamos outras, não é? Pois bem, as pessoas que ele conhece são justamente
aquelas que aguentam aquilo. Então já há um tipo humano limitado ali. E muitas
vezes há um elemento dele que não se realiza justamente porque certa possibilidade
não se oferecia naquele grupo.

Nós não descobrimos que pessoa somos olhando para dentro de nós mesmos.
Só descobrimos que tipo de pessoa somos olhando as outras pessoas. Só viramos
uma pessoa olhando as outras pessoas. Todo e qualquer atributo pessoal foi
adquirido ou assimilado, de maneira mais ou menos voluntária, olhando outras
pessoas. Isso começa com a própria linguagem. A própria linguagem humana foi
adquirida assim. Quando você nasceu, não podia expressar nada para si mesmo.
Você olhou os outros e viu que eles faziam isso, e aí você assimilou isso. Você
pensou “Isso é legal!” Você percebeu que isso era uma possibilidade que ampliava o
seu horizonte. A partir desse momento que você aprende a linguagem, tudo o mais
que você pode criar em você como pessoa depende também da indicação dos outros.
Claro que existe criatividade no sentido pessoal – você elabora criativamente a sua
pessoa, você não simplesmente imita os caracteres das outras pessoas, você os
modifica e os adapta dentro de você. Mas sem essa indicação inicial dada pelas
outras pessoas, a sua imaginação é muito limitada, de modo que para que nos
tornemos uma pessoa humana maximamente completa, precisamos ter uma certa
experiência da humanidade como um todo. Não basta ter a experiência das pessoas
que eu conheço diretamente, porque este grupo pode não refletir a humanidade como
um todo, mas só um aspecto dela. E muito provavelmente só vai refletir um aspecto
dela; é quase certo que só vai refletir um aspecto dela, e este pode ser justamente um
aspecto que não é suficiente para mim como pessoa. Um aspecto que não oferece
possibilidades que existem em mim. Mas essas possibilidades que existem em mim
clamam por realização. “E eu olho naquele grupo, aquelas pessoas, e eu não sei, eu
não acho, eu não encontro o que eu quero!” – assim passamos, às vezes, décadas, às

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vezes, uma vida inteira não sendo a pessoa que queríamos ser, só porque não vimos
uma indicação de como era essa pessoa.

A pessoa humana é uma elaboração criativa permanente. A sua pessoa é algo


que você desenvolve permanentemente, e você só a desenvolve por meio das
indicações. Por exemplo, quando somos crianças, associamos os traços pessoais
humanos aos diversos ramos de atividade. Se você perguntar a uma menininha de
sete, oito ou dez anos o que ela quer ser quando crescer, ela dirá: “Eu quero ser
professora”. Se perguntar a um menino, ele dirá: “Eu quero ser policial” ou “Eu
quero ser bombeiro”. O que a menina quer dizer com isso? Ela que dizer apenas o
seguinte: “Eu quero ser boa, porque a professora é boa, é uma pessoa que cuida dos
outros”. Ela está vendo um traço pessoal representado por uma profissão. O mesmo
vale para o menino. “Eu quero ser forte e corajoso.” Ele não quer necessariamente
ser policial, mas ser forte e corajoso, porque estes são traços pessoais, e ele já leu
aquela possibilidade nele, e aquela possibilidade já está pedindo para ser realizada.
Então, é assim que a apresentação das outras pessoas na nossa vida vai
correspondendo às possibilidades dentro de nós, e nem sempre somos capazes de
traduzir exatamente essa possibilidade para o que ela significa em termos de pessoa.
Já começamos confundindo e representando esses traços pessoais por papéis sociais
(o professor, o médico, o advogado, o policial e assim por diante).

Vamos descobrindo os traços pessoais necessários para que nós mesmos


sejamos felizes como pessoa, olhando as outras pessoas, mas toda a experiência
concreta, toda experiência individual é limitada a um grupo humano mais ou menos
restrito. E, muito antes de descobrirmos que pessoa queremos ser, temos que decidir
que profissão vamos ter. Então lá por volta dos dezessete, dezoito ou dezenove anos
você já tem que decidir-se por uma profissão, e você ainda não tem a menor ideia de
quem quer ser como pessoa e quais atributos pessoais você quer ter! No entanto,
essa escolha da profissão vai decidir que grupo humano, que tipos de pessoas você
vai conhecer e, portanto, quais são as possibilidades de desenvolvimento pessoal que
a sua vida concreta vai lhe oferecer. É justamente esta disparidade entre uma
necessidade interior de realização pessoal e a necessidade exterior de escolha
profissional que precisa ser compensada por este processo de educação permanente
pela leitura dos clássicos. Se você pudesse dizer “Eu só vou escolher uma profissão
lá pelos cinquenta ou sessenta anos, porque já saberei exatamente que pessoa quero
ser, já terei andado pelo mundo todo, terei conhecido todos os tipos de pessoas, e aí
vou começar a trabalhar.” Nesse caso, talvez os clássicos fossem, em ampla medida,
dispensáveis... Aliás, muitos autores de clássicos viveram vidas assim. O Joseph
Conrad, por exemplo, pensou: “Quer saber?Vou aí fazendo tudo o que eu acho
interessante. Quero conhecer um monte de lugares, um monte de tipos de pessoas e
depois descubro o que eu quero fazer.” É claro que essas pessoas adquirem uma
ampla experiência humana, a qual, muitas vezes, de fato substitui a leitura de muitos
clássicos. Mas isso nem sempre é possível. Aliás, geralmente não é possível. É
assim: aos dezessete anos você ouve dos pais: “Pode escolher, filho: você vai prestar
vestibular para quê?” Depois de dois ou três anos de faculdade, dificilmente o jovem
vai mudar de ideia. Assim já está delimitado que ele vai conhecer este tipo de
pessoas e não aqueles outros. E o jovem então descobre que a profissão até é
interessante, até gosta dela, mas ele não sabe mais quem quer ser, e ali não há como
ele se descobrir.

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Leitura dos Clássicos – Aula 01

Esta é provavelmente uma das maiores causas de frustração na vida humana: o


fato de o sujeito ter que esquecer-se de si mesmo como pessoa. Mais ainda: se ele
esquece de si mesmo como pessoa, abandona a si mesmo como pessoa, ele não tem
como entender os outros como pessoas; ele também acaba esquecendo que os outros
também são pessoas, e elas passam a ser meras funções sociais: “Este sujeito é a
‘máquina’ que vende isto, aquele é a ‘máquina’ que faz aquilo, este é a máquina que
faz não sei o quê”. Não existe nada mais triste do que uma vida humana vivida
assim, de modo completamente infrapessoal – não digo impessoal, mas de fato
infrapessoal, ou seja, abaixo do nível pessoal. Claro, evidentemente há um sem
número de ações e de situações em que basta o nível infrapessoal. Se vou comprar
um maço de cigarros na banca de jornal, não preciso agir como pessoa humana
completa; nem o vendedor do maço de cigarros na banca. Mas não se pode viver
uma vida toda só constituída de ações infrapessoais. Isso é o sinônimo de
infelicidade. Em um pequeno círculo, o sujeito tem que ser uma pessoa completa, e
os outros que pertencem àquele mesmo círculo também têm que ser pessoas
completas. Isto só é possível assimilando essa experiência indireta, essa experiência
de pessoas que não se conhece, com as quais não se convive. Este é um ponto
importante sobre a vida humana: não entendemos a vida humana por análise
estatística. Não basta fazer uma estatística, por exemplo, de como os brasileiros
reagem a tal coisa, e por esta resposta descobrir que a norma humana é a da maioria.
Porque a maioria das ações humanas, no cotidiano, são ações infrapessoais. A
maioria das ações é irrelevante para explicar o que é uma pessoa. Quando você vê a
caixa do supermercado entregando os produtos, recebendo o dinheiro e lhe dando o
troco, você não vê nada sobre a pessoa dela, você não tem a menor ideia de quem ela
é. Embora ela faça essa ação inúmeras vezes no decorrer de sua vida, essa ação é
não-significativa.

Aluno: Também há momentos em que o vendedor de cigarro, ou a caixa de


supermercado, se revela tão plenamente humano que transforma um momento às
vezes tão banal em um momento de inspiração e comunicação (...)

Prof: Em um momento de excepcional valor! (...)

Aluno: Você fica até assustado...

Prof: Você fica assustado, exatamente!

Aluno: Assustado sobre como a pessoa se mostrou naquele momento, naquela


forma, tão plenamente. É emocionante, até. Somos “atropelados” por uma
circunstância assim.

Prof: Realmente, você se sente atropelado por uma circunstância assim, em


que algo que parecia só uma pecinha banal da vida era uma pessoa completa, de
imenso significado para a nossa própria vida. Isso também acontece.

Isso significa que, embora a caixa de supermercado provavelmente entregue o


troco às pessoas milhares de vezes na vida, e que faça outras coisas poucas vezes,
essas outras coisas são mais significativas a respeito de quem é ela do que as
inúmeras de vezes em que ela entregou o troco aos clientes. Então, a análise
estatística das ações da vida humana não diz nada sobre um ser humano, porque

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Leitura dos Clássicos – Aula 01

você pode repetir ações não-significativas inúmeras vezes e elas não dirão nada do
que é você.

Por isso é tão difícil aprender o que é o ser humano e até onde pode chegar
uma pessoa humana simplesmente observando os inúmeros atos das pessoas que
conhecemos. Porque os atos significativos são em número pequeno em relação aos
atos não-significativos. Um clássico vai se diferenciar justamente por concentrar
anormalmente uma quantidade de atos significativos. Quando se lê uma obra de
ficção, um clássico da literatura, a maior parte dos atos descritos na obra são
significativos das pessoas que os fazem. Estão ali ilustrando o que são pessoas
humanas. A maior parte dos atos não-significativos não vai aparecer. Vocês já
repararam que no cinema ninguém nunca termina uma refeição? Porque aparecer o
sujeito na refeição inteira é não-significativo. No máximo, se indica que está na hora
de ele almoçar, e aparece o personagem pegando o prato, e pronto, sumiu; daí ele
recebe um telefonema depois de duas garfadas e tem que sair e deixa a comida lá.
Ninguém come no cinema, nem na literatura, porque isso é pouco significativo. Isso
explica muito pouco sobre quem é aquela pessoa. (...)

Aluno: Eu sempre achava estranho que nos filmes, nos romances etc., os
heróis, os cavaleiros nunca faziam nada para ganhar dinheiro para sustentar a própria
vida. Eles saem e fazem a cena toda, mas e daí? Eles têm alguma herança ou um tio
misterioso...

Prof: Exatamente! Eles estavam apenas cuidando do seu heroísmo, de praticar


ações heroicas. Certamente os heróis também tinham que fazer alguma coisa para
sustentar a própria vida, mas isso não é interessante de ser registrado, porque não
explica a pessoa do herói. Não explica o que é ser um herói. Não explica nem
mesmo o que é ser uma pessoa humana, não explica nem o que é ser um vilão. Não
explica nada. Só explica que ele comeu, que tinha um aparato biológico que exigia
comida de tempos em tempos, assim como eu. Então, na vida concreta
inevitavelmente a nossa experiência será cercada de inúmeros atos não-
significativos.

Aluno: Não é exatamente [inaudível] definição de “cultura” no Brasil? E o que


realmente é cultura? O registro dos atos não-significativos é cultura no Brasil.

Prof: Exatamente. O valor de uma cultura é medido justamente pela proporção


de atos significativos que há na sua totalidade. Quanto maior é a concentração de
atos significativos numa cultura, mais valor ela tem.

Aluno: A percepção e diferenciação entre ato significativo e ato não-


significativo é inerente ao ser humano. Essa chave é humana.

Prof: Exatamente! Como já falamos, desde criança já começamos a captar


essas necessidades pessoais; a necessidade de criação e elaboração ou
desenvolvimento de uma pessoa. Desde pequeninho a criança olha o policial e pensa
“É, eu quero ser policial.” Ali ela já captou uma possibilidade significativa. Não é
que ela quer vestir um uniforme, ter um revólver e arriscar a vida por um salário
miserável. Não é nada disso, ela não viu nada disso. Viu apenas uma coisa: ele é
forte e corajoso. É um valor. E um valor é um atributo pessoal e não uma função

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Leitura dos Clássicos – Aula 01

social. A profissão é uma mera função social. Ela serve como instrumento de
realização ou de expressão dos seus valores, mas ela por si não tem significado.
Então, desde pequenos já começamos a captar a importância disso. A única coisa em
que começamos a prestar atenção é isso – porque essa é a única coisa realmente
importante na vida humana. Porém, acontece que as melhores possibilidades da
nossa pessoa às vezes não são ilustradas para nós, pela nossa experiência. Às vezes,
a experiência direta não mostra o que havia de melhor na pessoa, que poderia ter
sido; e é justamente, para corrigir isto que existe a cultura. Ela vem para mostrar as
possibilidades, muitas vezes incomuns, mas que podem estar em nós. Ou seja, na
medida mesma em que a sua vida é vivida como expressão de uma pessoa em
crescimento, ela se torna única. Um bom médico é igual a qualquer outro bom
médico, um bom advogado é igual a qualquer outro bom advogado, um bom
mecânico é igual a qualquer outro bom mecânico, não existe unicidade em uma
profissão ou função social.

Aluno: Eles podem ser substituídos.

Prof: Exatamente. Os melhores médicos da nossa geração todos morrerão, e


serão substituídos pelos melhores médicos da geração seguinte, e assim por diante.
E, enquanto médicos, eles muito provavelmente algum dia serão esquecidos. Mas a
vida que é vivida como de uma só pessoa é, de fato, única. Ninguém pode ser igual a
uma pessoa que se desenvolveu. Todas as vidas pessoais são infinitamente
preciosas. É este fato que fundamenta todos os nossos pensamentos acerca, por
exemplo, do direito à vida. Por que as pessoas têm direito à vida? Porque elas
podem ser únicas. Porque podem ser joias preciosas. Porque isto é possível para
elas, e ninguém tem o direito de eliminar essa possibilidade, mesmo que ela não se
realize.

[INTERVALO]

Isso só é alcançado quando você é a maior pessoa que você pode ser! Tornar-se
uma pessoa célebre ou não. Você pode ser a única testemunha da pessoa que você
foi, mas você foi ela, você sabe disso, e tem uma parte em você que sabe que esse
testemunho é verdadeiro. É aquela parte que só precisa da verdade.

Não existe nada mais terrível do que o sujeito chegar ao fim da vida, e essa
parte que só precisa da verdade dizer “Você não foi a pessoa que você poderia ter
sido. Você nem sabe quem você foi”. Não existe nada mais triste do que isso. E isso
é tão necessário para o ser humano quanto o alimento todo dia. Parece que não,
porque é mais ou menos imaterial, então dá a impressão que não é tão necessário,
mas isso é tão necessário quanto o alimento todo dia. É só isso que vai permitir um
dia olharmos para toda a nossa vida e dizer “Quer saber? Eu faria tudo de novo
exatamente igual, porque no final do processo virei exatamente a pessoa que eu
queria ser. Eu completei a minha vida”. É isso que, por exemplo, o Cristo fala
quando faz a “Parábola dos Talentos”. Do sujeito que enterra seu talento e o sujeito
que faz seu talento render; ou o que o Buda fala da diferença entre Samsara e
Nirvana, entre o sujeito ficar vivendo uma série de ciclos incompletos, que nunca se
completam, que só repetem o ciclo das mortes e dos nascimentos, sem nunca chegar
a uma realização. Cada vez que o sujeito termina um ciclo, ele pensa “Tenho que
começar tudo de novo, porque eu não fiz nada. Ainda sou exatamente a mesma não-

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Leitura dos Clássicos – Aula 01

pessoa que era quando nasci!” A coisa mais importante sobre a vida humana é algo
que só é dado no seu final:é a capacidade dessa parte que há em nós, que só quer a
verdade, de dizer “Você foi a pessoa que queria ser, que você precisava ser”. E você
dizer sinceramente para si mesmo “Eu faria tudo exatamente igual”. Porque não
importa se houve um monte de erros, o que importa é que o sujeito chegou onde
queira chegar como pessoa. Não ficou faltando nada. Não existe nada mais terrível
do que chegar diante da morte e falar “Mas ficou faltando um monte de coisa! E isto,
aquilo e aquilo outro? E agora?”

Por isso que Aristóteles, na Ética – também outro grande clássico –, dizia “Não
é possível dizer se um homem é feliz ou infeliz antes da sua morte. Só os mortos são
felizes ou infelizes, porque só deles se pode dizer se eles completaram a vida deles
ou não. E a felicidade é exatamente a completude da vida”. No processo, temos
imagens e graus dessa completude, então temos evidentemente alguma felicidade
nele também. Mas só se pode julgar a felicidade ou infelicidade na hora da morte.
Então, é algo para o qual deve-se começar a trabalhar desde hoje.

Essa também é uma característica exclusivamente humana. De todos os


animais, o único capaz de antecipar esse fenômeno estranho que é a morte é o ser
humano. É o único que consegue saber: “Um dia não estarei mais aqui, não farei
mais nada, e ninguém vai me ver e eu também não vou ver nada”. Os animais se
afastam quando pressentem que irão sofrer; mas da morte mesmo eles não sabem. A
ideia de sumir e não voltar mais àquele mundo é difícil para ele captar. Ela envolve
o conceito abstrato de permanência ou impermanência, do qual ele não tem ideia.
Para um cachorro, o outro cachorro que morreu está dormindo, e ele pode sofrer
com a ausência daquele cachorro, mas ele não sabe por que ele não volta mais. Um
dia ele dormia e depois voltava, agora ele não volta mais. Por quê? Ele não pode
concluir “Ele morreu”. As pessoas podem. E é crucial que possam, na hora da morte,
dizer “Minha vida foi completa, porque eu me tornei a pessoa que eu podia me
tornar. A pessoa mais plena que eu podia ser”.

[Devemos] lembrar as pessoas, ainda enquanto jovens: “Você tem que começar
a planejar essas coisas, porque um dia você morre.” Isso parece muito estranho para
um jovem de quinze anos. “Imagina... tenho só quinze anos. Para com isso, sai para
lá!” Mas a verdade é que nessa idade da vida, por volta dos quinze anos, esse
problema da pessoalidade começa a se colocar. E o ser humano pensa “Eu não sei
quem quero ser, e já tenho que começar a fazer um monte de coisas como se fosse
um adulto (e para ele a palavra “adulto” significa pessoa completa), eEntão tenho
que começar a agir como se eu fosse uma pessoa completa, mas não tenho a menor
ideia de quem sou ou de quem quero ser”. Quando somos jovens a melhor coisa que
podem nos dizer é “Comece a pensar que pessoa você quer ser, e só há um jeito de
você saber isso: conhecendo pessoas humanas. E a única maneira de você conhecer
pessoas humanas, em número suficiente para ter uma ideia de quem você quer ser, é
por meio da leitura dos clássicos. Porque quando você encontra as pessoas no dia-a-
dia, você tem muito poucas informações sobre elas, como pessoa. Você tem alguma
informação dos outros como pessoa, de alguns membros da sua família, que moram
na sua casa, e de alguns amigos. Você conhece alguns traços pessoais deles, mas
isso é uma amostra muito pequena. Isto mostra muito pouco sobre a vida, para você
decidir quem você quer ser como pessoa”. É justamente nessa idade que é crucial,
indispensável começarmos essas leituras.

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Leitura dos Clássicos – Aula 01

Claro, pode-se começar em qualquer período da vida. Como se trata de uma


obra pessoal, interior, ela não é medida pelo tempo do mesmo modo que, por
exemplo, as próprias necessidades biológicas: para eu crescer, de bebê até adulto,
vai demorar dezoito anos e acabou, não tem discussão. Mas, para eu crescer como
pessoa, é muito descontínuo: posso dar saltos de um momento para o outro; às
vezes, é uma coisa que eu descobri e dei um salto! Então, não é algo medido pelo
tempo, mas quanto antes começamos, melhor. E se começamos justamente quando a
vida nos colocou esta questão – e isto nos é colocado na adolescência –, melhor
ainda. Eu digo: olha, você está começando com o pé direito. Você está tendo uma
chance que poucas pessoas têm e que é importantíssima! Eu sei que nessa idade ler é
encarado assim: “Não, é chato... Quantas páginas tem esse negócio? Trezentas!? E
só tem letra, não tem nenhuma figura, que chatice!” Eu sei, parece chato, porque
vemos letras, palavras e papel. Mas isso aqui não são letras, são as pessoas que você
pode ser, e que você não sabe – e que você quer descobrir, porque precisa descobrir!
Porque você precisa ser alguém! Ser uma pessoa. Você já sente isso dentro de você.

Por que o adolescente sente tanta dificuldade de simplesmente obedecer às


instruções? Com crianças, é a coisa mais fácil do mundo. “Não faça isso!” – e ela
não faz. Se ela desobedece, você fala grosso com ela, aí ela para de fazer. Você fala
“Fez isso? Então não ganha sobremesa!”, e ela para de fazer. Ao se tornar
adolescente isto começa a não funcionar mais. Ele pensa “Não quero só obedecer.
Eu quero ser uma pessoa também.” Só que ele não sabe que pessoa ele quer ser,
evidentemente. Mas ele sabe que quer ser, que quer ter a capacidade de tomar as
decisões de sua vida por ele mesmo, sem os outros. Mas por que os pais não
deixam? Porque os pais estão morrendo de medo que ele só tome decisões erradas,
e, de fato, a maioria das decisões será errada. Mas a leitura dos clássicos e o
conhecimento dessas pessoas humanas vão facilitar ou diminuir a margem de erro.
Ele pensa “Se eu ganhar dinheiro, vai diminuir a margem de erro.” Não, uma pessoa
pode ganhar um monte de dinheiro, só tomar decisões erradas e ser uma pessoa
incrivelmente infeliz. Ou então: “O negócio é ser famoso. É arrumar trezentas
namoradas ao mesmo tempo. É todas as mulheres gostarem de mim!” Uma pessoa
também pode conseguir isto e sua vida ser uma droga. A verdade é que não existe
uma resposta antecipada sobre o que fará da sua vida uma boa vida. Porque cada
sujeito terá que descobrir que pessoa ele é, e isso ninguém sabe. Não é só o jovem
que é ignorante, os seus pais também não sabem! Ninguém sabe que pessoa o ele
tem que ser. É algo que ele terá que descobrir. E isso vale para todos nós.

Às vezes, ocorre aos trinta, quarenta, cinquenta, sessenta ou setenta anos que
um sujeito descobre um aspecto da sua pessoa e pensa “Nossa, eu precisei disso a
minha vida toda e só descobri agora. Ótimo, agora eu tenho, agora eu faço”. A
pessoa vive em um plano de imortalidade. O plano de existência da pessoalidade é a
imortalidade. Isso significa o seguinte: quando o sujeito descobre um aspecto
fundamental da sua pessoa aos setenta anos de idade, de repente é como se aquilo
tivesse estado sempre com ele. Ele apaga toda a história e a reescreve – porque, de
repente, ele virou outra pessoa! Como na história do bom ladrão do Cristo, onde ele
descobriu na última hora quem era a pessoa dele, que ele era bom! E aquilo fez toda
a diferença, aquilo apagou toda sua história e a reescreveu. Antes daquele momento,
ele podia falar “Minha vida não valeu nada.” Dois minutos depois daquele momento
ele pôde falar “Minha vida fez todo o sentido do mundo”.

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Leitura dos Clássicos – Aula 01

Concluindo: faz de conta que um livro não é papel e letras, que não é uma
coisa chata e longa, que não é tão legal como um videogame ou um filme! Eu sei
que videogame e filme são mais legais, mas eles vão lhe ensinar menos sobre esse
ponto crucial da sua vida, que é: Quem eu quero ser? Não “o quê” eu quero ser, mas
“quem” eu quero ser? Este nome aqui, Luiz Gonzaga de Carvalho, ele significa
“quem”? Vemos o nome primeiro e a pessoa depois. No começo, o nome não
significa nada, significa apenas um pedaço de carne que anda em duas pernas, e
somos nós que vamos dar um significado a esse nome. Então, se vocês fizerem isto,
a vida de vocês será um sucesso, porque a vida de vocês será tudo o que vocês
realmente querem que ela seja.

Então, semana que vem vocês estarão lendo O Fio da Navalha. Por hoje, é só.

Transcrição: Luan Cavalcanti Viana, Carlos Augusto G. do Nascimento

Revisão: Juliana M. B. Ferreira do Amaral, Rodrigo Dubal

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