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Aula de 24/01/1996

– Corpo orgânico e
corpo expressivo
Equipe Acervo Claudio Ulpiano on 22 de Março de 2010
(…)

[E eu vou] passar agora para


um canto de que eu não falei
no Olivier Messiaen,
chamado CANTO
TERRITORIALIZANTE.
Naquele momento, eu falei
em dois cantos: no canto
amoroso – canto de sedução,
canto da primavera – que eu
relacionei à representação
orgânica; e no canto gratuito
– que eu disse não ser, de
maneira nenhuma, um canto
orgânico. Seria…
(Não há nenhuma dificuldade em fazer a oposição que eu vou fazer
agora:)
Eu vou colocar aquele canto – que eu chamei de canto gratuito –
literalmente como um canto estético; e opor, então, ESTÉTICA e
ORGANISMO. Ou seja: quando o pássaro faz o canto para o crepúsculo,
ele tem como objetivo a BELEZA; o objetivo dele é a ARTE. Arte, no
sentido de que ele não tem nenhum objetivo de colocar um órgão ou [
efetuar ] uma função de órgão: ele não busca a reprodução, ele não quer
prazeres individuais, ele não visa a nada disso; pelo contrário – porque
no canto gratuito o pássaro está correndo um risco de morte assustador,
pois ele se entrega inteiramente ao crepúsculo. Então, ele abandona
(atenção para essa categoria: eu estou misturando categorias, eu vou
passar inclusive uma categoria do Nietzsche) a prática conservativa.
A prática conservativa [corresponde ao] que se chama CORPO
REATIVO – que é um corpo inteiramente voltado para a conservação. É
isso que se dá no canto primaveril, um canto voltado inteiramente para a
conservação – e foi inclusive por isso que eu usei um conceito de
biologia molecular… Eu disse que quando o pássaro está exercendo esse
canto orgânico, esse canto primaveril, ele está passando
um sonho da vida: que é a replicação; um sonhoda vida: que é a
reprodução – a vida teria esse sonho! O que implica em dizer que o canto
gratuito faria uma deriva no que eu chamei de corpo reativo, no que eu
chamei de corpo conservativo – que é como se o corpo abandonasse o
governo do organismo e se arriscasse nessa região do estético, na região
da arte. Então, a partir disso, eu acho que eu posso colocar – e nada me
impede de fazer isso! – que o mesmo pássaro, que eu chamei de grive
musicienne, (eu vou usar, um pouco diferencialmente, o Leibniz) o
mesmo pássaro teria em seu corpo duas forças: uma força de
conservação e uma força selvagem, violenta, conquistadora –
cujo único objetivo seria a criação,a invenção e a produção. É como se
fosse uma auto – poiesis: um poder auto criativo que passaria naquele
corpo.
A partir daí, eu aplico [essas categorias ] a qualquer corpo: qualquer
corpo vivo teria nele essas duas forças – uma força orgânica
conservativa e uma força que por enquanto (eu não vou usar Nietzsche)
eu vou chamar de FORÇA ESTÉTICA – voltada exclusivamente para
a produção de alguma coisa: no caso do pássaro, para a produção dos
cantos – cantos para o crepúsculo. (Tá?)
Agora, o terceiro canto – o canto que eu não enunciei: um canto que está
inteiramente ligado a todos os animais, incluindo o homem. A todos os
animais incluindo o homem, no sentido de que a ciência etológica, que
eu chamei de biologia do comportamento, trabalha com pássaros, com
moléculas e também com o homem. Então, existem determinados
animais que são territorializantes; e outros, que não são territorializantes.
Quer dizer: alguns animais que produzem território; e outros
que não produzem território. Produzir territórios…
O território não tem que obedecer à geografia humana: o território do
animal pode ser um território no ar, pode não ser nada na terra, pode ser
um território temporal… Por exemplo, dizem que o gato ocupa um
determinado território durante umas duas horas e depois o
abandona. Outro gato vai ocupar as outras duas horas. Então, o território
de um animal não é recoberto pelo modelo geográfico humano.
Vamos chamar o território animal de PAISAGEM. É
uma paisagem onde o animal, que é territorializante, vai produzir
marcas; marcas que limitem o território dele: ele dá limites ao território!
Quando, por exemplo, o lobo marca um território (vocês podem
usar assinar), quando ele assina o seu território, o lobo marca ou assina
esse território com fezes e urina. Mas o pássaro, ao marcar seu território,
ele faz isso com o canto: é cantando que ele marca território. Então, – e
aqui está o momento chave -, na hora em que o pássaro marca o seu
território, ele não está fazendo uma prática orgânica, não é uma prática
orgânica. A prática orgânica no pássaro (ou mesmo em todos os animais
territorializados) aparece depois de constituído o território dele. Ou seja,
eu agora vou mudar de nomenclatura e dizer que os pássaros –
ou qualquer ser vivo – têm dois tipos de corpo: um CORPO
ORGÂNICO e um CORPO EXPRESSIVO. Então, eu passei a usar a
categoria de expressivo e vou dizer que, quando um pássaro
vai marcar o seu território, o corpo dominante nele, nesse momento, é
o corpo expressivo.
Esse corpo expressivo ainda não tem função orgânica: o
pássaro marca o território para, a partir dele, de seu território marcado,
começar a exercer suas funções orgânicas.
(Nós aqui vamos usar uma estratégia, para vocês entenderem bem).

Segundo o que eu estou dizendo, portanto, só há canto amoroso, o canto


primaveril, depois do território constituído.

Assim, o pássaro primeiro constrói o território dele – e quem constrói


esse território não é o corpo orgânico; quem constrói o território é o
corpo expressivo: o mesmo corpo que aparece no canto para o
crepúsculo. O corpo que aparece no crepúsculo é o mesmo corpo que
produz um território.
Então, o que me importa aqui, até esse momento, é o fato de um
corpo não se definir ou não se resumir ao organismo: um corpo não se
resume ao organismo. O organismo não é equivalente a corpo vivo.
Corpo vivo e organismo não se equivalem: o corpo vivo
implica também o que eu chamei de FORÇAS EXPRESSIVAS. Então
(a tenção para o que eu vou dizer), essas forças expressivas produziriam
o território. Eu vou chamar essas forças expressivas de territorializantes;
e dizer que o corpo orgânico apareceria a partir do território produzido
por essas forças expressivas. O corpo orgânico é um prolongamento do
corpo expressivo: ele prolonga o corpo expressivo. A partir daí, nada me
impede de dizer que o corpo expressivo é genético em relação ao corpo
orgânico – ele é a gênese do corpo orgânico. Até que…
Se eu estiver me excedendo um pouco aqui… Não, não estou me
excedendo; mas se estivesse, não teria importância, porque é esse o uso
que estou fazendo, para nós penetrarmos no campo transcendental e no
plano de imanência.
Então, pela explicação que eu dei, um corpo vivo teria duas forças: uma
força orgânica e uma força expressiva. A força orgânica só emergiria a
partir de um território produzido – produzido pela força expressiva.
Então, se a força orgânica só emerge a partir de um território produzido,
significa que a força expressiva – que é a força territorializante – é uma
força genética: é a gênesedo organismo; a partir de onde o organismo
aparece.
– O que nos importa aqui? O que nos importa aqui é a idéia de gênese; e
a idéia de representação orgânica como produto de uma gênese. O que
eu estou colocando pra vocês, sempre da maneira mais cadenciada
possível, é que atrás de uma representação orgânica, atrás do organismo
existe a força genética desse organismo. Essa força genética chama-
se força expressiva.(Certo?)
E agora, quando você tem o organismo, ou seja, os cantos chamados
cantos primaveris, os cantos amorosos, você tem um organismo
em pleno funcionamento; um organismo com as suas funções – em pleno
funcionamento! Então, quando você tem esse organismo territorializado,
dentro de um território, o pássaro, por exemplo, que está na sua
representação orgânica, na prática do canto amoroso, do canto da
primavera, eu vou passar a chamá-lo simplesmente de INDIVÍDUO. Ou
seja, eu estou dizendo que os seres vivos se constituem como
indivíduos: todos os seres vivos são individuados.
Por exemplo, eu sou um indivíduo, ela é um indivíduo, ele é um
indivíduo, uma barata que aparecer aqui é um indivíduo, uma mosca que
aparecer aqui é um indivíduo…
A força plástica (eu já tinha colocado isso)… a força plástica constitui
indivíduos. A força orgânica constitui indivíduos. Então, sempre que
você encontrar um ser vivo, você estará diante de um indivíduo – você
estará nitidamente diante de um indivíduo.
Por exemplo, aparece uma pulga, e a gente mata a pulga: matou um
indivíduo.A gente mata um mosquito: matou um indivíduo.
O vivo é o indivíduo. Se você sai do vivo e vai procurar os indivíduos no
mundo físico – é mais complicado.
– Por exemplo, o Pão de Açúcar. O Pão de Açúcar seria um indivíduo?

Essa é uma questão muito difícil, porque, inclusive, não se consegue


dizer onde estão os limites do Pão de Açúcar; e o vivo tem seus
limites precisos.Então, o indivíduo é a marca do vivo: todo vivo é
individuado.
(Tem café pra mim?)

O que eu estou colocando nesta aula – de modo um pouco forçado – é


que indivíduo equivale à representação orgânica – eu
estou constituindo uma equivalência entre organismo e indivíduo. E não
é muito forçado, porque, se eu usar as forças plásticas do Leibniz,
é exatamente isso; ou seja, – o organismo é um indivíduo.
Agora, a filosofia e, junto com ela, as ciências sempre se empenharam
em compreender o que é o indivíduo. Durante todos esses séculos, com
pequenos cortes – que neste instante não importam – a ciência e a
filosofia têm feito um empenho para entender o que é o indivíduo. (Isso
daqui vai nos levar pra [ determinados ] caminhos, que vão surgir… lá
pela oitava a décima aulas). Então, quando vocês encontram uma ciência
– a ciência é necessariamente empenhada em dar conta dos indivíduos
que existem na realidade.
Mas eu coloquei a diferença do canto expressivo para o canto orgânico e
disse que o canto expressivo é um canto territorializante. A partir de
então, eu estou dizendo que o canto expressivo ainda não é a postura da
individuação: o canto expressivo é anterior ao indivíduo orgânico. Esse
canto expressivo, então, passaria a ser a gênese do canto orgânico,
a gênese da representação orgânica. Ou melhor, e isso é final – todo vivo
é um indivíduo. Todo vivo é um indivíduo, todo vivo é orgânico. Então,
quando eu digo: ― todo vivo é um indivíduo, todo vivo é orgânico ‖, eu
fiz uma equivalência perigosíssima – porque eu disse que a
vida equivale a indivíduo e a organismo – mas é FALSO: porque a
vida não equivale a indivíduo e a organismo – porque indivíduo e
organismo pressupõem uma gênese – e a gênese do indivíduo, a gênese
do organismo, chama-se SINGULARIDADE.
Então, eu estou dizendo pra vocês que, quando nós pensamos a vida,
quando nós formos pensar a vida, o que nos aparece para a
experimentação, o que aparece no mundo empírico, pra se experimentar,
pra se observar, pra você fazer seus cálculos e sua teoria, são os
indivíduos e o organismo. Mas o indivíduo e o organismo não se
equivalem à vida. Não há equivalência entre o indivíduo – que é igual a
organismo – e vida. Para se pensar a vida, tem-se que incluir a gênese do
indivíduo. E quando você abandona o indivíduo e parte para a prática
genética do indivíduo, encontra-se alguma coisa que eu vou passar a
chamar de singularidade.
Então, no momento em que eu falo que existe alguma coisa no mundo
da vida que não é o organismo, ou seja, que a vida não se equivale a
organismo, não é sinônimo de organismo – é que existe alguma coisa
que é pré -individual, alguma coisa que é pré -orgânica – que eu estou
chamando de singularidade – e esta coisa é a gênese da vida. Ou seja,
a vida, para se compreender a vida, tem-se que compreender os
seus elementos genéticos – elementos esses que se chamam
singularidades.
(Então, vamos voltar, vamos voltar. Eu vou repetir o que estou dizendo).

Eu pego um cientista, vamos ver, um biólogo, eu pego um biólogo e


digo para ele fazer um estudo sobre a vida. O que esse biólogo vai
encontrar? Vai encontrar o organismo – ele só vai encontrar indivíduos.
Todo o trabalho dele vai ser em cima de indivíduos, porque o indivíduo
é o vivo constituído. O vivo, quando ele se constitui, ele é o indivíduo,
ele é o indivíduo.
Aluna: Moléculas, células?…

Cláudio: Seria… seriam indivíduos. Tudo isso é


indivíduo: moléculas, células,vírus, átomo... isso tudo é indivíduo. Tudo
o que você encontra na sua experimentação – não importa, no caso do
átomo, que essa experimentação não possa ser observada a olho nu – é
indivíduo. E o que eu estou colocando pra vocês é a existência de
uma gênese do indivíduo. Essa gênese – aqui é um momento grave –
essa gênese não é individual. Ou seja, aquilo que produz o orgânico,
aquilo que produz o vivo, aquilo que produz o indivíduo vivo não
é individual – chama-se singularidade. É um momento difícil, mas aqui
nós já temos uma marcação, uma assinatura que vai dar uma orientação
pra vocês. A orientação é que essa singularidade, essa gênese da vida,
chama-se CAMPO TRANSCENDENTAL. E o indivíduo – o orgânico
enquanto tal – pertence ao que estou chamando de FORMA EMPÍRICA.
Então, quando você encontra um cientista, um observador do mundo, o
que esse observador faz? Ele observa indivíduos – porque a nossa
sensibilidade só pode apreender os indivíduos – a nossa
sensibilidade não apreende a singularidade.
– Por que a sensibilidade não apreende a singularidade? Porque a
singularidade só pode ser pensada. Só pode ser pensada. E esse aqui é
um momento gravíssimo – porque eu estou constituindo pra vocês a
idéia de que existem DUAS REALIDADES: uma realidade clara, fácil
de entender (ainda que seja clara e fácil de entender eu vou dar uma
orientação pra vocês entenderem melhor ainda) – que se chama o
indivíduo; e a outra realidade – que se chama singularidade. E aqui
aparece alguma coisa como se fosse uma torção do pensamento: a
singularidade é tão real quanto o indivíduo; mas ela não pertence
ao mundo empírico – logo, ela não pode ser observada pela
nossa sensibilidade; a singularidade é aquilo que só pode ser pensada.
(Então, eu vou deixar isso de lado; e vou voltar, procurando aumentar a
potência de compreensão dessa questão pra vocês).

Eu disse que o indivíduo é aquilo que ocupa o que eu chamei de


FORMA EMPÍRICA; e a forma empírica é tudo aquilo que nós
podemos observar e experimentar. Por exemplo, quando eu produzo um
enunciado, esse enunciado é um individuo. Quando eu vejo uma
molécula, quando entro em contato com uma casa, quando entro em
contato com um copo… Qualquer coisa que pertence à forma empírica é
chamada de indivíduo. Muito bem! Essa tese de que a forma empírica é
preenchida pelos indivíduos, ou seja, de que os indivíduos são aquilo que
existe na realidade… E isso é a coisa mais fácil de vocês entenderem…
Olhem para esta sala: tem uma série de indivíduos homens, tem
uma série de indivíduos cadeiras, tem um indivíduo mesa,
tem dois indivíduos ventiladores, tem um indivíduo teto… – então, a
realidade é constituída de indivíduos. E a questão do indivíduo fica
muito clara, quando se passa para a vida, porque os seres vivos
são precisamentedemarcados. O ser vivo é precisamente demarcado –
porque a vida é uma escultora, a vida é apaixonada pela variação das
formas: ela é capaz de produzir
uma aranha, um cavalo, uma vaca, uma flor... Então, quando
a vidaproduz essas formas, essas formas (que a vida produz) chamam-
se indivíduos. Então, o mundo da forma empírica é o mundo das formas
– onde tudo tem forma. Aí, vocês podem me perguntar: tudo? Tudo?
Tudo? A música tem uma forma? A sonata, a sinfonia, seja lá o que
for… tudo tem uma forma!
Al: A alma tem forma?
Cl: A alma… É muito fácil responder isso: ela pertence ao mundo
empírico? Se pertencer, não interessa: tudo que pertence ao mundo físico
tem uma forma. O Nietzsche chamava isso de apolíneo – o MUNDO
APOLÍNEO: é o mundo das formas. (—??—). Tudo o que pertence ao
que eu chamei de forma empírica é dotado de uma forma – não importa
qual seja essa forma.
Agora, no século XIV, (eu vou usar o século XIV como uma estratégia
de orientação pra vocês!), os pensadores do século XIV, sobretudo a
chamada ― escola tomista‖ (de São Tomás de Aquino) afirmavam que a
realidade – logo, a forma empírica – era constituída de duas realidades:
uma, o indivíduo; e a outra, eles chamavam de UNIVERSAL. Então,
para eles, a realidade era constituída de dois elementos: o individual e
o universal. Essa palavra universal complica um pouco. Mas…
– O que quer dizer universal? Universal quer dizer a espécie à qual o
indivíduo pertence. O indivíduo humano, por exemplo, pertence à
espécie homem, o indivíduo cachorro à espécie cachorro, o indivíduo
‗collie‘ pertence à espécie cachorro… Então, para os pensadores do
século XIV, a realidade era constituída de duas formas: a forma
UNIVERSAL ou forma ESPECÍFICA; e a forma INDIVIDUAL.
O real, então, para eles era constituído por essas duas formas: a
individual e a universal ou espécie. (Vocês entenderam isso?) Era
constituído pelo indivíduo e pela espécie, pela forma. Por exemplo, qual
é o nome de um livro de Darwin? Evolução das… espécies. Quer dizer,
evolução do universal – é isso que ele está dizendo. Ele está dizendo
que a espécie é uma realidade que evolui. Então, o Darwin está inscrito
nessa postura de que a realidade é constituída de indivíduos e
de espécies ou universais. (Certo?)
Agora, no século XIV, quando essa teoria está colocada, aparece um
pensador chamado Guilherme de Ockham; e esse pensador
vai desfazer essa noção – ele desfaz essa noção. Ele vai dizer o seguinte:
a realidade (aqui é um momento chave), a realidade não é constituída de
duas formas. (Quais seriam as duas formas? A individual e a universal).
Ele vai dizer que o universal não é real – que o universal é MENTAL. O
universal é mental. Vou dar um exemplo pra vocês. Então, o que o
Ockham está dizendo é que a única coisa real é o individual – e que o
universal é mental. Como é que a gente compreende isso? Por exemplo,
você pega um pronome-adjetivo demonstrativo e um substantivo. Pega o
substantivo cadeira e antepõe ao substantivo cadeira o pronome-
adjetivo esta e diz – esta cadeira. Quando você diz isto, ― isto ‖ é uma
palavra que indica uma realidade no mundo. Ou seja, quando eu
digo esta cadeira, esta mesa, estes óculos, este boi, este cachorro, este
mosquito... eu estou indicando realidades individuais – que existem no
mundo. Ou seja, esta cadeira, esta mesa, este cachorro… todos esses três
enunciados têm um referente: alguma coisa que existe para lá do próprio
enunciado.
Mas quando eu digo: a cadeira, a mesa, a rosa, o copo, o rádio… para lá
do enunciado o rádio, a cadeira, a mesa… não existe NADA. O que a
escola do Guilherme de Ockham vai dizer é que os universais
são apenas SIGNOS. Ou, para ficar mais fácil pra vocês,
são meras palavras – flatus vocis... meras palavras. A mesa… atrás da
mesa, para lá da mesa… tem alguma coisa? Nada! Ou seja, não
existe nenhum objeto que corresponda ao enunciado ‗ a mesa ‗; mas
existem objetos que correspondem ao enunciado ‗ esta mesa ‗. Então,
‗ esta mesa ‗ indica realidades individuais no mundo – e ‗ a mesa ‗ não
indica nenhuma realidade. Se não indica nenhuma realidade – ‗ a mesa
‘ é um mero signo.
Esse é um momento belíssimo da história do pensamento – porque fica
constituído o que se chama CAMPO ONTOLÓGICO. Campo
ontológico quer dizer aquilo que existe – aquilo que existe é o indivíduo.
Então, nesse momento, foi constituído o campo ontológico e nasceu o
que se chama SEMIÓTICA.
Semiótica são palavras que não indicam nenhuma realidade; elas
são puros signos.
Nesse momento, então, nascem dois campos: o ontológico – preenchido
pelos indivíduos; e o semiótico – preenchido pelos universais. (Certo?).
Então, a semiótica nasceu no século XIV, na escola de Guilherme de
Ockham – e o real ficou constituído de quantas coisas? O que é o real? O
real passou a ser apenas o indivíduo: só os indivíduos são reais! E nesse
século XIV, na linguagem de Guilherme de Ockham… (evidentemente
em latim, não é?) o indivíduo é sinônimo de singular. Então, tanto faz
você dizer singular, ou dizer indivíduo que você está dizendo
a mesma coisa. Então, para ele, indivíduo e singular são a mesma coisa e
se você diz: ―o real, o empírico é constituído por indivíduos ou
constituído por singularidades‖, você diz a mesma coisa – e o universal
passa a ser um objeto mental.
Depois, quando chega a linha de determinados pensadores que mais
tarde eu vou explicar, vai haver uma separação ontológica
entre individual e singularidade, entre indivíduo e singular. Essa linha
vai dizer que o real não éconstituído somente de indivíduos, é
constituído de DUAS realidades: o indivíduo e o singular.
Enquanto, no século XIV, o singular era apenas um sinônimo
de individual, e para algumas escolas o individual e
o universal eram ambos reais, – Guilherme de Ockham desfaz o
universal como realidade, coloca o universal ou a espécie como
OBJETO MENTAL e dá o SINGULAR como sinônimo de
INDIVIDUAL. Então, o que eu acabei de dizer, é que nós nunca
encontraremos o universal aqui [no nosso mundo ]. Não existe universal,
o universal é mental!
Determinadas escolas do século XX (eu vou dizer assim, para não
complicar) vão fazer a separação do individual e do singular – e dizer
que o real é ocupado por duas realidades: a realidade individual e a
realidade singular. Então, nós teríamos duas realidades:
uma individual (agora já fica mais claro para eu dizer), essa realidade
individual chama-se forma empírica. Então, a forma empírica é
preenchida somente por individuais e na hora em que há o desencontro –
quando acaba a sinonímia e a equivalência de individual e singular –
uma nova realidade passa a existir. Uma realidade, a forma empírica –
preenchida pelos individuais; a outra realidade, chamada campo
transcendental – preenchida pelos singulares ou...
– Eu disse pra vocês que os singulares seriam a gênese do individual?
(Se alguma coisa é genética da outra, você pode chamar a coisa que é
genética da outra de pré. Então o singular é o pré – individual. Então, o
campo transcendental e a forma empírica passam a ser as duas
realidades. Nós teríamos duas realidades: a que eu chamei de forma
empírica, preenchida pelos individuais e a outra realidade, que eu
chamei de campo transcendental, preenchida pelos…?
Als: pela singularidade, pelos singulares.

(Tá? Eu agora só vou passar por aqui!)

Há outro elemento em que vocês têm que se apoiar, antes de eu penetrar


no estudo… é que os singulares são a gênese do individual. (Atenção:) A
GÊNESE DO INDIVIDUAL.
– O que é o universal? O universal é um objeto mental. Esse objeto
mental tem origem na forma empírica – o que implica em dizer que na
forma empírica existem os indivíduos e os SUJEITOS. Então, na forma
empírica existem duas coisas; aliás, uma só – porque o sujeito é um
indivíduo.
Então, existem indivíduos e sujeitos: por exemplo, este copo é um
indivíduo, eu sou um indivíduo, mas além de ser um indivíduo eu sou
um…? (Als:) sujeito! (Muito simples… a definição de sujeito é
simplérrima!) O sujeito é aquele que faz representações mentais. Então,
o universal é uma…? (Als:) representação mental!
Então, a forma empírica é preenchida pelos indivíduos e
pelos sujeitos (algum problema?). E o sujeito é aquele que faz
representações mentais. Logo, o universal é uma…?
(Als:) representação mental!
Muitos pensadores, quando se encontram com o singular, dizem: ―Ah! O
singular é também uma representação mental ‖. Eu estou
dizendo: Não! O singular não é uma representação mental – o singular é
uma realidade tanto quanto a forma empírica é uma realidade; só que
essa realidade chamada singular não tem as mesmas estruturas da
realidade chamada forma empírica. Então, nós passamos a ter os objetos
mentais, que pertencem ao sujeito. Esses objetos mentais são muito
fáceis de se compreender: os nossos sonhos, os
nossos delírios, as palavras universalizantes – que são o artigo definido
mais um substantivo: o homem, a cadeira... Então, tudo que se passa na
nossa subjetividade chama-se objeto mental. O que é o sonho? Um
objeto mental. O que é o delírio? Um objeto mental. O que é a tristeza?
Um objeto mental. (Certo?) Então, os objetos mentais e os indivíduos
preenchem o que se chama forma empírica. Eles preenchem a forma
empírica.
(E, agora, começa a ficar mais difícil. Começa a ficar mais difícil para se
entender).

A singularidade não é nem individual nem mental – ela é real, mas aqui
aparece… apareceram… Vamos voltar ao Guilherme de Ockham:
O que o Guilherme de Ockham fez de mais magnífico? Foi ter
constituído um campo ontológico – que é o campo do indivíduo; e um
campo semiótico – que é o campo do universal. Foi isso que ele fez.
Agora, quando nós chegamos aqui nós temos
a singularidade. A singularidade não é um campo mental; ela é uma
realidade tão real quanto o individual. Só que as estruturas do
individual não são semelhantes às estruturas do
singular, sobretudo porque o singular não tem estrutura. Eu disse pra
vocês que a forma empírica, ou melhor, que o mundo empírico é
constituído de indivíduos; e os indivíduos e os sujeitos são duas formas.
Então, no universo, no que eu chamo de campo transcendental, – onde
estão as singularidades -, não existem formas. Se o Nietzsche, por
exemplo, estivesse aqui, como é que ele chamaria essas singularidades?
Ele as chamaria de FORÇAS. (Posso usar diversos pensadores que vão
pensar dessa maneira). Então, essas singularidades…
(Eu vou repetir, pra vocês compreenderem melhor).
Há um pintor do século XX, que morreu há pouco tempo, chamado
Francis Bacon. Vocês conhecem o Francis Bacon?

Francis Bacon… eu vou trazer na próxima aula. Ah! Nós temos aqui?
Pronto, está aqui, vejam o Francis Bacon…

Evidentemente, que aqui vocês não têm o Francis Bacon inteiro, isto
aqui é apenas um rosto. (Certo?) E o Francis Bacon pinta telas, onde
aparece o corpo inteiro, e ele pinta inclusive trípticos… que são
três painéis que ele faz. Agora, eu vou usar o Francis Bacon da seguinte
maneira: o mundo, a natureza é constituída de dois campos reais: um
chamado empírico – que é o lugar das formas; e outro,
chamado singularidade – que não tem formas; e eu chamei de forças. O
Francis Bacon é um pintor que só tem uma questão – pintar
as forças. Toda a questão dele é pintar as forças. (Não vou dar aula de
Francis Bacon hoje…) Toda a questão dele é pintar as forças.
Você nota que só isso aqui já dá para notar que ele está fazendo uma
destruição absoluta do rosto. O objetivo dele é desfazer a forma, é
desfazer a forma do rosto. Claro que isso não fica muito evidente nesse
momento, mas na frente vai ficar! Eu vou colocar o Francis Bacon como
sendo um pintor a partir de duas realidades. Quais são as realidades?
A empírica e a transcendental. Empírica, forma; o transcendental,
singularidades ou forças (Tá?).
Vamos ver, por exemplo, o Dalí. O Dalí é pintor de quê? Ele é pintor de
objetos mentais.

E ele dá aos objetos mentais a forma que o objeto mental tem enquanto
objeto mental: relógios desmilinguidos, campos imensos… tudo
aquilo que aparece nos sonhos.
Então, eu posso dizer tranquilamente que o Dalí é um pintor dos objetos
mentais, mas o Francis Bacon, não. O Francis Bacon é um pintor das
forças – ele quer pintar as forças. Então, estou chamando as forças de
singularidades. E essas singularidades, eu disse que elas são a gênese do
indivíduo. A GÊNESE! Nós temos um prejuízo muito grande (atenção, é
um momento muito forte!), nós temos um prejuízo muito grande ao
pensar gênese! E a nossa dificuldade em pensar gênese é por causa das
velhas teogonias: as teogonias orientais, mesmo as teogonias gregas –
Hesíodo, por exemplo, em que a gênese era separada do objeto que ela
produzia. Então, nós achávamos que a gênese se dava num determinado
tempo: num determinado momento, apareciam as forças genéticas; essas
forças genéticas produziam o que tinham que produzir, e desapareciam;
e aquilo que estava produzido passaria a existir. O que eu estou dizendo
não é isso.
Eu estou dizendo que a singularidade… que eu chamei de campo
transcendental (O indivíduo… indivíduo e sujeito eu chamei
de formas.), essa singularidade, o campo transcendental, é genética –
mas, só que a gênese nunca abandona o indivíduo: estão sempre juntos!
Quer dizer, o velho corte teogônico… (Vocês entenderam o que eu falei
da Teogonia?). A teogonia –estou dizendo, aqui, Hesíodo… As
teogonias explicam a formação do mundo através de processos
genéticos, mas elas separam a gênese: o criador do criado. É muito
semelhante, muito semelhante ao Deus cristão: é um processo de criação
em que o criador e o criado ficam separados. Aqui, nesse processo que
estou dizendo pra vocês, não há a separação do criador e do criado. O
criador e o criado estão juntos. Então, a singularidade está o tempo
inteiro presente no indivíduo. As singularidades (Atenção, já vai ficar
mais fácil!) são os fluxos intensivos de um corpo. Ou seja, todo corpo
tem um organismo: são o organismo e as funções dos órgãos
que individuam um corpo vivo e fazem dele um sujeito; mas nesse
corpo atravessam o que se chama fluxos intensivos. São esses fluxos
intensivos que eu estou chamando de… campo transcendental ou de
singularidade.
Alª: Não é a força elástica?…

Cl: Não seria a força elástica. Vocês notem que, quando eu toquei
na força elástica, eu a chamei de in-orgânica. Disse que a força
plástica era orgânica. Mas eu apontei para a alma e disse que ela
era an orgânica. A alma são essas forças!…
Alº: Esses conceitos, eu talvez confunda um pouco… é a força
inorgânica e a anorgânica..

Cl: Eu distingui a plástica e a elástica. (Não é?) Sobre a elástica… não


falei nada; eu disse que ela era uma força inorgânica, ―molável‖, com
molabilidade, que produzia molas. Mola é o seguinte: você pega um
elástico, distende o elástico, e ele volta, (não é?). O que significa que o
elástico é constituído de molas. Porque a mola é aquilo que estica e volta
para o lugar. É isso, a matéria inorgânica: ela é uma molabilidade. Então,
a força inorgânica é elástica; a força orgânica é plástica; mas eu falei na
existência de uma outra coisa – a alma… a alma. A alma seria uma outra
coisa. Então, eu vou identificar a alma ao próprio corpo,
sendo altamente nietzschiano, dizendo que a alma é corpo.
Alª: É o cristalino…
Cl: É o cristalino. É o cristalino. A alma é corpo, a alma é corpo – mas
não o orgânico. A alma é vida – mas não é orgânica: chama-
se an orgânica. Há um grande pensador que viveu no século XX, ele não
é muito considerado nos meios clássicos, mas é um pensador
excepcional, chama-se Antonin Artaud. E Antonin Artaud chamava essa
alma, esse campo transcendental, essa singularidade, essas forças… de
CORPO SEM ÓRGÃOS. Podem marcar: corpo sem órgãos. Então, a
noção de corpo sem órgãos se aproxima… Corpo sem órgãos, Cso.
Alª: A arte é uma singularidade?

Cl: Olha… Não necessariamente… não necessariamente! Porque eu diria


que a arte seria uma singularidade… então, se a arte fosse uma
singularidade o artista estaria sempre expressando forças, expressando
singularidades, expressando o anorgânico, expressando o cristalino…
Mas nós conhecemos artes orgânicas. Por isso que eu vim dar a minha
aula…

Alª: Mas isso não é arte.

Cl: Eu botaria em questão… Mas eu prefiro não fazer isso já. Mas está
bem colocado! Porque a arte orgânica é a arte da representação. (Mas eu
ainda não vou colocar nesta aula… Eu ainda não vou passar essa questão
nesta aula. Acho que na aula que vem a gente entra nisso.)

O importante agora é a gente compreender a possibilidade do que estou


chamando de corpo sem órgãos (Cso). Corpo sem órgãos, sinônimo:
fluxos intensivos. Os fluxos intensivos do corpo.

Alª: Eu não entendi, eu estava pensando nisso de hoje, mas no que você
disse na última aula, sobre a questão do orgânico, dos órgãos, que o
organismo… aprisiona a vida…

Cl: É. Ainda é difícil… Você vai entender! Vai passar a fazer parte da
sua vida. Pode ficar certa de que você vai entender. Porque essa questão
que estou dizendo… (Só para responder a ela). Quando eu disse que o
organismo aprisiona a vida, isso é o Artaud. O organismo prende a vida.
(Mais tarde eu voltarei a isso para colocar pra você… Na hora em que eu
tiver o campo teórico suficientemente exposto, para que você possa
compreender. Eu acho que o estudante compreende, quando eu
compreendo. Eu sou uma espécie de imagem modelo da aula. (Viu?).
Por exemplo, se eu dissesse agora, para você: Ah! Ah! Ah! O organismo
não se equivale à vida, há alguma coisa a mais, eu não compreenderia!
Seria um enunciado solto. (Entendeu?) A aula é
um processo que expressa o pensamento daquele que a está dando.
Então, quando eu obtenho a compreensão de alguma coisa, eu acredito
de imediato que vocês compreenderam. Entendeu? Então, eu não posso
precipitar alguma coisa descontextualizada. Se eu descontextualizo, se
eu jogo aquilo, vira mera palavra, flatus vocis.
Al: Claudio, eu acho que o que está me dificultando é que eu estou
procurando associar com o canto territorial, e ele é associado com a
força elástica…

Cl: Não! Não! O canto territorial está associado ao anorgânico.

Alª: E o canto gratuito?

Cl: Também. Todos dois! Todos dois! Todos dois!…

Alª: Então, a força elástica não tem canto —-.

Cl: Nada… Não tem canto nenhum. A força elástica não canta, a força
elástica é mola. São molas… Depois eu vou explicar melhor a questão
do que é exatamente a força elástica, do que é a força plástica…

Alª: Eu estava pensando nos três cantos com as três forças…

Cl: Não… O que eu estou chamando de anorgânico não é nem a força


elástica nem a plástica.

Alª: O canto territorial e o canto gratuito fazem parte do anorgânico?

Cl: Fazem parte do cristalino… do cristalino.

(Então, vamos concluir aqui).

O que estou chamando de campo transcendental é tão real… (Atenção


aqui!). Quando eu falo real é a mesma coisa que: não é mental. É a
mesma coisa. Não é mental, é autônomo – independe da minha mente
para existir (certo?). Então, isso é a singularidade, o campo
transcendental, o que mais?… (Todos os nomes que eu dei, tá?)
(Mas, agora, atenção:)

Há uma diferença do empírico e do transcendental. O empírico é


FORMA… é forma. Logo, se o empírico é forma e o transcendental não
é forma, nada me impede de chamar o transcendental de AFORMAL. E
se eu chamar o transcendental de aformal, eu serei forçado
imediatamente a dizer que o transcendental é CAOS.
Então, aqui emerge, então, emerge… (fim de fita)

Parte II
(…) o MUNDO EMPÍRICO [que] é constituído por indivíduos; e os
indivíduos têm uma forma. Se eles mudam de forma, isso se
chama trans – formação – aí eles passam para outra forma. Por exemplo,
vocês vão encontrar… eu acho que eu posso até dizer que, em seus
relógios líquidos, o Dalí trabalharia com transformações. Ele trabalharia
com transformações. Agora, quando você pega esse pintor chamado
Francis Bacon, e eu disse que Francis Bacon objetivava pintar as
singularidades… (Foi isso que eu disse?) Pintar as forças… as
singularidades. Mas eu vou apresentar outro pintor, ou outraescola, que
visaria a pintar essas singularidades. E com essa outra escola a questão
vai ficar mais clara: é o expressionismo abstrato ou a pintura informal. E
eu acho que o melhor exemplo é o Pollock… Todo mundo conhece o
Pollock? O Pollock… é o seguinte (eu vou explicar pra vocês:)
Você pega um tecido, o tecido é constituído de dois elementos
entrelaçados: a trama, que é o elemento horizontal do tecido; e o urdume
– que é o elemento vertical do tecido. O tecido vai fazendo assim… o fio
da trama se entrelaçando ao urdume. (Não é?) Uma trama e um urdume:
chama-se urdidura, a trama e o urdume… e isso é um tecido. Para
produzir o tecido, o tecelão vai trabalhar com fios, que podem ser de
origem animal, vegetal, artificial, plástico… não importa, ele pega esse
fios e faz a urdidura – tramamais urdume.
Mas existe outro tipo de prática, utilizada pelos nômades, que é pegar
um emaranhado de fibras, sem distinção de fios, ou fios emaranhados,
tudo misturado, colocá-los sobre uma superfície e socá-los: pá!pá!pá!pá!
– ou prensá-los. É assim que se produz uma coisa chamada feltro. O
feltro não é um tecido, não é constituído por… trama e urdume. O feltro
é socado e, sendo socado, os fios do feltro são um emaranhado. A
pintura do Pollock são fios emaranhados. (Entenderam?)

Então, nada me impede de dizer que o Pollock é o pintor dos feltros.


Nada me impede de dizer que ele pinta feltros e o Mondrian pinta
tecidos. Nada me impede. (Certo?) Esses feltros são indicativo de
singularidade. Por quê? Porque esses fios são caóticos, eles não têm
forma, eles são caos puro, são caos puro.

E é muito interessante, porque o feltro é a vestimenta e a casa dos


nômades. As tendas nômades são feitas de feltro. O que eu estou dizendo
para vocês é que existem – vou usar a palavra vestimenta – vestimentas
sedentárias, produzidas a partir dos tecidos; e as vestimentas nômades,
produzidas a partir desses emaranhados. Então, esse emaranhado é
exatamente aquilo que o Pollock pinta. Eu vou chamar esse emaranhado
de singularidade, de caos, de força. (Certo?) Caos, força e singularidade.
Mas o Francis Bacon também visa a pintar as forças. (Não foi isso que
eu disse?) Ele visa a pintar as forças. Mas à diferença do Pollock, o
Bacon produz formas: ele produz formas.
Olha aqui: não é nitidamente uma forma? Não é inteiramente diferente
do emaranhado do feltro? Completamente diferente! Só que
as formas do Bacon não vão sofrer transformações – ainda que pareçam
ser transformações. Elas vão sofrer DEFORMAÇÕES.
A deformação é um processo que o Bacon vai usar para atingir o campo
transcendental. Então, o que eu estou dizendo pra vocês, é o seguinte:
que quando um pintor quer atingir esse campo transcendental, nós
conhecemos na história das artes plásticas (mais do que isso, ouviu? Eu
vou resumir, mas é mais do que isso)… Nós conhecemos dois processos:
o processo da arte informal, que é o processo do Pollock, que eu estou
usando como exemplo – que é liberar as forças, sem
constituir nenhuma forma. É uma pintura centrada nas linhas...
e não nas superfícies.
Enquanto que o Bacon, não: ele vai tentar deformar as figuras para,
nessa deformação, atingir o campo transcendental, atingir as forças. Por
exemplo, eu vou dar um exemplo mínimo pra vocês: o Francis Bacon é
capaz de pintar a câimbra, é capaz de pintar o espasmo. São exemplos
mínimos! Isso também ocorre no Egon Schielle. A câimbra e
o espasmo são duas forcas. Então, para tentar manifestar essas forças ele
cria deformações nas imagens que ele produz. As deformações do Bacon
têm como objetivo o campo transcendental.
Al: O Bergman também é um cineasta das forças, não é? Essa coisa da
câimbra e do espasmo… Eu estava assistindo o filme ontem e o tempo
todo estava no primeiro plano também… o filme é todo em primeiro
plano e… as sensações…

Cl: É muito bonito você aproximar o Bergman do Bacon… E é


exatamente isso, o Bergman. (Cadê o rosto? Pega o rosto!) Vocês viram
o Bergman (não é?). O que o Bergman faz no filme dele é uma
desformalização: ele desfaz o rosto da Liv Ulman e o rosto da Bibi
Anderson, ao ponto de a Bibi fingir que é a Liv para o marido. Então,
toda a prática do Bergman é… (vou usar uma linguagem francesa) é
um effacement, é uma desrostificação. [Claudio mostra um rosto do
Bacon] Igualzinho… O que o Bacon faz aqui… ele escova, ele varre o
rosto para desfazer as formas. Ele varre o rosto para desfazer as formas.
E o objetivo dele é quebrar o domínio das formas e mergulhar nas
forças ou no campo transcendental.
(Que horas são, S.? Vou dar um intervalo para o café!)

(Vamos tentar agora elevar a compreensão do que eu disse… Eu estou


começando, R.)

Leibniz…

Leibniz é um filósofo do século XVII. Quer dizer, ele está no fim do


XVII, no centro da Revolução Científica.
Eu vou recolocar o que eu dei na primeira aula – e eu disse pra vocês que
o futuro altera o passado. Muitas coisas que eu disse na aula passada,
dizendo agora a compreensão aumenta.
Leibniz é a filosofia barroca – e o barroco são os escombros da filosofia
teológica. Ou seja, o barroco é a tentativa de salvar a filosofia teológica.
Então eu diria: crise da teologia… crise da razão teológica, vamos usar
assim. Crise da razão teológica… Na crise da razão teológica o
surgimento de uma razão barroca. (Não vou explicar ainda o que é a
razão barroca, só isso).
Da mesma forma, nós estaríamos numa crise do humanismo, da razão
humanista, e na emergência de uma razão neo-barroca. Deleuze é
um neo -barroco. Da mesma forma que o Leibniz é um pensador
barroco.
Eu vou usar o Leibniz, eu vou usar o Leibniz.

Leibniz afirma a distinção entre duas idéias: a idéia de POSSÍVEL e a


idéia de REAL. Então, para o Leibniz, possível e real não são a mesma
coisa; mas, segundo ele, tudo aquilo que for real, antes de ser real é
possível. Então, para o Leibniz…, tudo que é real, antes de ser real é
possível. Mas, segundo ele… (eu ainda não expliquei o que é o possível
e nem expliquei o que é o real. Apenas disse que o real e o possível não
são a mesma coisa e eles têm uma relação de antecedente e consequente.
O possível é o antecedente – literalmente, em termos lógicos – o possível
é o antecedente e o real é o consequente). Mas o Leibniz vai explicar que
o possível é INFINITO. Ou melhor, segundo Leibniz, existem
INFINITOS MUNDOS POSSÍVEIS.
Por exemplo: você pega o Judas (isso porque me perguntaram aqui sobre
os condenados), você pega Judas e nesse mundo que está aqui, Judas
pecou. (Certo?) Mas é possível a existência de um Judas não -pecador.
Então, a idéia de um Judas não pecador impõe a presença de uma
quantidade infinita de mundos. Ou seja, esse mundo que está aqui, que é
o único mundo (agora vai ficar muito claro) que é o único mundo que se
tornou real… esse mundo em que nós vivemos é o mundo que se tornou
real, mas para o Leibniz havia e há uma quantidade infinita de
MUNDOS POSSÍVEIS e somente um se tornou REAL.
Conclusão: o possível é muito mais amplo do que o real. Então, para ele,
há – eu não estou usando a palavra existe – há uma
quantidade infinita de mundos possíveis e apenas um se tornou real
(Certo?). Então, quando Deus (vamos dizer assim, porque Leibniz
trabalha com Deus) quando Deus delibera de criar um mundo, o que ele
faz? Ele vai ao infinito dos mundos possíveis procurar aquele que é
MELHOR. Então, ele tem um critério… Deus tem um critério do
melhor, não interessa o que é agora, ele tem um critério do que
é melhor. Aí, ele torna esse mundo que está aqui, ou melhor,
o nosso mundo que, naquele instante, era um dos possíveis entre os
infinitos outros mundos, e torna o nosso mundo real – e os outros
mundos continuam apenas no campo do possível.
Ou melhor, no momento em que Deus torna esse nosso mundo – que era
um mundo possível – quando ele o torna real… Ele torna real, porque o
‗nosso mundo‘, é o melhor dos mundos… Ele só torna o nosso mundo –
que é um mundo possível – um mundo real, porque o nosso mundo é
o melhor dos mundos, os outros mundos que também eram possíveis,
torna m- se impossíveis.
O que quer dizer isso? Quer dizer o seguinte: o Leibniz pode escolher
entre uma infinidade de mundos para tornar um deles real. Ele escolhe
um – o nosso – porque, segundo ele, o nosso é o melhor dos mundos.
Então, sempre que Deus tiver que escolher um mundo para existir, qual
o mundo que ele vai escolher? O nosso, o melhor. No momento em que
ele só pode escolher um mundo, os outros se tornam impossíveis.
Eu só estou dando um exemplo desse processo, porque eu não vou nem
prosseguir, mas só para espetar o vírus em vocês… Porque este
problema do possível e do impossível vai ser trabalhado na frente, porque
é a única maneira que nós temos para compreender as formas do
pensamento com o campo transcendental.
Então, o que aconteceu?… Deus trabalha ou não com o infinito? No
possível, Deus está diante do infinito? O infinito dos mundos possíveis.
Então, quando Deus está diante dos infinitos mundos possíveis, Deus
está mergulhado no caos – o caos dos infinitos mundos possíveis. Ele
está mergulhado no caos. Então, ele vai retirar desse caos o melhor dos
mundos e tornar, esse melhor dos mundos, real. Então, ele torna o nosso
mundo real. Então, esse mundo que está aqui se tornou real. Mas cada
mundo possível, ou este nosso mundo é, nele mesmo, INFINITO. Então,
o nosso mundo, ele é infinito. Da mesma forma que antes nós tínhamos o
infinito dos mundos possíveis, agora nós temos o nosso mundo que é
infinito.
– O que quer dizer infinito? (Na maior simplicidade, para vocês
entenderem…) Para o Leibniz, se você for dividindo a matéria num
ponto cada vez menor, você vai dividir a matéria ao infinito, porque a
matéria nunca acaba. Ou seja, ela vai se tornando infinitesimal, mas
sempre existirá… Não vai nunca chegar o momento em que ao rasgar a
matéria não haja duas metades. Vai haver sempre duas metades. E
sempre que houver duas metades o outro todo também são duas
metades. Então, para ele, a matéria é infinita. Se a matéria é infinita,
nesse instante, lá no infinito da matéria, dois elementos se chocaram e
fizeram ruído – e nós não ouvimos…
O que eu estou dizendo é que a nossa percepção é constituída para
apreender do mundo um pequeno conjunto. A nossa percepção é
constituída para apreender um pequeno conjunto do mundo. Então, se,
por acaso, a nossa percepção se desarrumar, nós mergulhamos no
infinito do mundo e passamos a ouvir o barulho
daquela pequenina matéria que se chocou com a outra – e
enlouquecemos. Mas [em que circunstâncias] nós enlouqueceremos? No
momento em que se quebrarem os limites da nossa percepção! Os limites
da nossa percepção são constituídos para impedir que nós caiamos na
loucura total, no delírio total, no CAOS. Então, nós, os homens, somos
dotados de uma força chamada PERCEPÇÃO. E com essa força,
chamada percepção, nós apreendemos uma determinada parte do mundo.
Se essa força chamada percepção, que é uma força limitadora, se
quebrar, nós mergulhamos no infinito do mundo – o que significa que
todos nós estamos ameaçados pelo caos o tempo inteiro. O caos nos
ameaça o tempo inteiro. (Entenderam?)
O caos nos ameaça o tempo inteiro. E essa ameaça do caos é muito fácil
de ser compreendida, porque a qualquer instante da nossa vida, quando
nós vamos centrar alguma coisa pra pensar, alguma coisa
para observar, esse elemento que nós centramos pra observar ou pra
pensar, nós arrancamos do CAOS… nós arrancamos do caos. Porque
nós somos constituídos por uma percepção clara – e essa percepção
clara é uma pequena porção de realidade; mas essa percepção clara está
pousada sobre um infinito de percepções sombrias e obscuras. Então, o
nosso espírito, o fundo do nosso espírito é sombrio, escuro, penetrado
do infinito deste mundo que está aqui. Então, nós carregamos dentro de
nós o infinito da natureza. Cada um, cada ser vivo, carrega consigo o
infinito de todo… (eu vou usar a palavra mundo,ouviu?) Cada um de nós
carrega consigo o infinito deste mundo.
Por exemplo, nesse instante um pequeno raio cortou a superfície gasosa
do planeta Júpiter – isso faz parte do meu fundo sombrio! Cada um de
nós carrega consigo o seu fundo sombrio. O fundo sombrio é o infinito
do mundo inteiro. E isso é uma maneira de pensar barroca. É uma
maneira de pensar barroca! Por isso, as telas dos pintores barrocos (eu
vou trazer na próxima aula o El Greco para vocês verem). As telas dos
pintores barrocos… o fundo das telas é um fundo sombrio.
Alº: Tem um Caravaggio aí…

Cl: Me dá o Caravaggio.

É um fundo sombrio. É um momento… (Atenção! Porque isso é básico


para as próximas aulas… pra mim, ouviu?) Você pega o Renascimento,
a pintura da Renascença e a pintura barroca… a diferença básica de uma
e outra pintura é que [n]a pintura da Renascença o fundo é giz ou gesso
branco, enquanto que o fundo barroco é o fundo sombrio.

Olha lá! Olha o fundo… olha o fundo sombrio: eles trabalham muito
com marrom e vermelho. Então, desse fundo sombrio é que vão ser
extraídos os clarões, a percepção clara. (Não sei que tela era essa… Nem
vi direito. É um rosto que está ali?). Então, nessa tela, o que é claro é
aquele rosto. Aquele fundo que está ali é o infinito do mundo
inteiro. Esse infinito do mundo inteiro, cada ser vivo – e o nome do ser
vivo é… mônada (m-o-n-a-d-a, proparoxítona) – cada ser vivo carrega
consigo o infinito do mundo inteiro. O infinito do mundo inteiro
está dentro dele. Então, acontece uma das coisas… Somente uma razão
barroca pode construir alguma coisa desse tipo… As mônadas são
finitas, porque cada ser vivo é finito, mas carregam dentro de si o
infinito do mundo inteiro. Por isso, é muito simples compreender isso…
necessariamente, cada mônada tem como fundo o sombrio. Porque tem
como fundo tudo que existe no mundo inteiro (está bem assim?).
Al: Eu não entendi… essa questão dos dois elementos que se chocam…

Cl: Ah! O que eu quis dizer é o seguinte: por exemplo, você quer ver?
Olha aqui: [Claudio bate numa superfície:] pá…pá..pá… Você ouviu,
não ouviu? Agora, nesse instante, lá, no infinitesimal, há uma porção de
objetos se chocando e tais objetos se chocando fazem parte do nosso
fundo sombrio. Fazem parte do nosso fundo sombrio. (Não sei se está
claro isso daqui…). Nós temos uma pequenina porção de claro… muito
pequena… Eu não dei o exemplo do carrapato? Quais são os clarões do
carrapato? Sangue quente, luz e… sangue quente, luz e suor. São os três
clarões dele. Agora, nós estamos mergulhados num fundo sombrio onde
tem infinitos elementos que nós poderíamos apreender e não
apreendemos. Então, nós estamos ameaçados, o tempo inteiro, de cair no
caos. Nós estamos o tempo todo ameaçados de mergulhar no caos.
(Vocês entenderam aqui? Não? O fundo sombrio exatamente o que é?) O
fundo sombrio é o infinito da natureza que está dentro de nós. Está
dentro de uma pulga, está dentro de um cachorro… Está dentro de
qualquer ser vivo. Qualquer mônada.
Al: Então, ao mesmo tempo em que ela equilibra, ela também reduz…

Cl: Equilibra o quê?

Al: O… o ser humano. Essa percepção que ela delimita…

Cl: Delimita… Nós delimitamos…

Al: Delimita, mas também reduz…

Cl: Reduz como?

Al: Reduz, no sentido de não poder, não ter essa amplitude…

Cl: Claro! Não pode ter… não pode ter! O Leibniz é muito definitivo: só
uma mônada pode ter infinito – Deus. Para ele, então, cada ser vivo,
cada mônada tem um clarão. Mas, prestem atenção, se vocês quiserem
observar com presteza o que Leibniz está dizendo, na hora em que vocês
produzem um pensamento ou uma imagem, seja o que for, vocês vão
verificar claramente que aquele pensamento e aquela imagem estão
subindo de um fundo sombrio.
(Vou mudar a linguagem)…

Nós vivemos mergulhados na confusão. Dessa confusão, a gente retira


alguma coisa que se torna uma clareza para nós. Isso daqui que está
acontecendo é porque o século XVII, com a orientação teológica do
século XVII – e isso também aparece no século XX – é apaixonado pela
claridade… pela claridade. E os barrocos vão inventar um novo tipo de
luz, uma luz mortiça, uma luz completamente diferente. Vocês podem
verificar isso no expressionismo alemão, sobretudo no cinema. Por
exemplo, os filmes de Murnau – Nosferatu, O Gabinete do Doutor
Calligari – as sombras e as luzes… O expressionismo alemão
é produto do mundo barroco.
Então, o barroco está dizendo que não é a vitória do claro sobre
o escuro. Não é nada disso: a vida não é isso! A vida é sempre alguma
coisa… Requer muito esforço, é através de muito esforço que nós
conseguimos tirar alguma coisa desse fundo sombrio, arrancar alguma
coisa desse fundo sombrio. Mas a nossa vida é mergulhada nesse fundo
sombrio. Então, aqui vai ficar muito claro: a morte é a perda do clarão –
e nós mergulhamos no fundo sombrio. Então, aqui é uma das coisas mais
bonitas da filosofia do Leibniz. Ele diz que nenhuma alma desaparece…
nenhuma alma desaparece: elas mergulham no fundo sombrio! E, agora,
ele diz outra coisa lindíssima: mas como a tendênciadas almas é
ter clarões, elas voltam! A beleza... não religiosa; não religiosa…
porque vocês vão ver aparecer pensamentos sobre a eternidade –
em estética ou em arte – muito mais poderosos do que os pensamentos
da eternidade feitos pela teologia. Isso porque a teologia – aí quem diz
isso não é o Leibniz, quem diz isso é o Proust – jamais poderá mergulhar
na eternidade. A teologia não nos dá a eternidade. O que ela nos dá, é
uma imagem deficiente da eternidade.
O que eu estou dizendo, então, é que os objetivos da filosofia barroca, o
objetivo do Leibniz é mostrar que uma alma são os seus clarões. Os seus
clarões ou os seus relevantes, os seus
notáveis… Clarão, relevante, notável – são as partes claras que nós
temos na nossa vida. Então, essas ‗partes claras‘ emergem do ‗fundo
sombrio‘. Se nós perdêssemos essas partes claras, nós cairíamos no
fundo sombrio – e isso é o CAOS. O caos não é
propriamente desordem – o caos é a presença de forças que
se cruzam.Façam uma experimentação na sua própria subjetividade, que
vocês vão ver que a cada instante da nossa vida, determinadas
inclinações se confrontamdentro de nós, querendo se tornar claras.
Determinadas tendências… É isso que se chama inquietude. Nós somos
seres… todo ser vivo é inquieto; e a inquietude é porque a todo instante
das nossas vidas determinadas forças querem subir e se
tornar clarões. Se nós não tivéssemos a inquietude nós seríamos como
uma televisão com defeito, ficaríamos congelados numa só percepção. O
que nos impede de ficar congelados numa só percepção é a existência,
em nós, da inquietude. Essa inquietude é que nos tira de uma percepção
– e nos conduz para outra. A perda da inquietude – é a morte. Perde-se a
inquietude – perde-se a percepção e mergulha-se no fundo sombrio.
Então, a morte, para o Leibniz, é a mesma coisa que um aturdimento – é
como se a gente tivesse mergulhado num mar de ondas violentas,
produzindo trovoadas enormes e nós não fossemos capazes de discernir
ou distinguir nada. Nós cairíamos no que estou chamando de
aturdimento… como um homem diante do mar… e o mar…
Al: É o caos, não é?

Cl: É o caos. Isso é o caos. Então, o caos é o confronto de forças, forças


que estão percorrendo aquele… aquele fundo sombrio.

Al: A singularidade está no fundo sombrio?

Cl: Está no fundo sombrio. Está lá… está lá, no fundo sombrio. Porque o
que a gente tem que compreender é que… (aqui vai ser uma
coisa muito forte, a sua pergunta foi linda, eu vou forçar por aqui). O
Leibniz diz que não existe o mundo fora da gente. O mundo
está dentro da gente. Cada um de nós carregao infinito do mundo
inteiro. Cada um de nós carrega o infinito do mundo inteiro. Então, o
mundo que nos aparece não é nada mais que uma pequena alucinação –
cada um de nós tem uma alucinação. Nós temos uma alucinação… e
aparece o meu mundo, aparece o mundo dela, aparece o mundo dele…
Nós estamos mergulhados em alucinações! Por isso – aí eu estou te
dando essa resposta por causa disso – a diferença do homem comum
para o artista é que o homem comum não pode jamais se comunicar com
outro homem. Não há como um homem se comunicar com outro. Porque
nós estamos fechados na nossa mônada. Não há como nós entrarmos em
comunicação com ninguém. Nós vivemos numa supostailusão
comunicativa nos processos do amor e da amizade. São dois processos
ilusórios! Nós só podemos entrar em comunicação pela arte. Que é o
momento em que você bota para fora, você revela alguma coisa, você
traz pra fora alguma coisa em que todos podem conviver. O que estou
dizendo é que cada mônada carrega consigo o mundo inteiro. Isso se
chama SOLIPSISMO: cada mônada carrega consigo o infinito do mundo
inteiro. Então, quando eu expresso o meu mundo, a expressão do meu
mundo é a minha subjetividade. Ninguém conhece essa subjetividade,
ninguém conhece! Nós vivemos mergulhados na mais completa
confusão, no mais completo atordoamento – os homens, ou os seres
vivos são quase que totalmente atordoados: eles vivem naquele clima de
atordoamento! O esforço da arte e da filosofia é vencer o atordoamento.
Al: O canto do pássaro estaria no caos?

Cl: O canto do pássaro – o canto gratuito?

Al: É o canto gratuito, o cristalino.


Cl: O canto gratuito?… O canto gratuito não é um canto orgânico. O
canto gratuito é o seguinte: o pássaro se encontra com o crepúsculo. O
crepúsculo são as forças da natureza. No pássaro, são outras forças. No
ser vivo, essas forças chamam-se SENSAÇÕES. Quando as sensações
do pássaro se encontram com as forças da natureza – nasce o RITMO.
Então, o que o pássaro faz ao cantar, é a produção de ritmo –
ele inventa ritmo. O u seja: os ritmos vêm do caos. Os ritmos vêm do
caos e organizam o caos: os ritmos são como que clarões para aquele
pássaro!
Al: —- é uma abertura da mônada para o infinito?…

Cl: Ela tenta se abrir para o infinito, ela tenta se abrir para o infinito.
Tenta ir além dos seus limites – a arte e a filosofia… seriam
a quebra dos limites. Como eu chamei o pensamento do Deleuze
de neo -barroco e falei numa crise da razão humanista… Porque a razão
humanista é aquela que quer nos deter nos nossos clarões; e a razão
barroca é aquela que quer ir além dos nossos clarões: mergulhar no
infinito. Por isso que o mundo barroco – por exemplo Jorge Luiz Borges
– é um mundo cheio espelhos, cheio de labirintos,cheio de corredores...
porque é um mundo que não tem limites. É um mergulho no que se
chama labirinto, um labirinto sem linhas para você poder se conduzir ali
dentro.
Hoje, a razão barroca tem que dar conta disso daqui, inclusive em termos
de lógica – e aí se inventou a lógica combinatória. A lógica combinatória
é exatamente para dar conta, em termos de lógica, desse infinito que está
aí.

(Bom…)

O melhor dos mundos possíveis…

Leibniz diz que, dentre o infinito de mundos possíveis, Deus


escolheu um – que para ele é o melhor…
(Atenção, que eu agora vou passar a falar sobre isso. Agora vai passar
uma aula muito rigorosa em termos de filosofia…)
Leibniz colocou como mundo existente… o melhor dos mundos
possíveis e esse melhor dos mundos possíveis é o melhor
na imanência do mundo. É o enunciado mais poderoso que eu deixo aqui
nessa aula, viu? O melhor é melhor na imanência do mundo! O que eu
estou dizendo aqui? Eu estou dizendo que o próprio ser do mundo que é
melhor. Não é porque existe alguma coisa superior que esse mundo
copiaria, que ele é melhor. Ele é melhor nele mesmo. (Vou explicar para
vocês.)
A filosofia, ao nascer, nasce sob o regime de dois mundos – é o modelo
platônico. Ela nasce sob o regime de dois mundos: o MUNDO
SUPERIOR, que este mundo – que é o nosso – deve copiar. Então, o
mundo, o nosso mundo,quando nasce, é considerado um MUNDO
CÓPIA. No platonismo, existe o mundo superior que o nosso
mundo copia.
(Eu, agora, vou explicar isso na prática:)

Um pensador grego, chamado Sócrates – ele nunca escreveu um livro,


ele passava a vida dele em conversas com as pessoas, na Grécia;
ele discutiacom as pessoas… ou melhor, o objetivo dele era acabar com
as discussões – e acabar com as discussões constituindo algum
componente que era indiscutível. Então, há no Sócrates um calor
filosófico – o filósofo é aquele que não discute; então, ele visava a acabar
com as discussões. O filósofo não discute, a discussão é um
processo opinativo e que não tem nada a ver com a filosofia. Então, o
Sócrates, naquele momento, fez determinadas práticas que a cidade dele
considerou como práticas criminosas. E o Sócrates, por causa disso, foi
julgado; e, ao ser julgado, é condenado à morte – e essa condenação é
para beber cicuta. Mas, ao ser condenado à morte, está havendo uma
festa em Delfos e Atenas manda um navio para Delfos, para participar
da festa. E enquanto o navio não voltar para o porto de Atenas, os
condenados à morte não podem morrer. Eles não morrem (tá?).
Então, Sócrates está em Atenas, condenado à morte… Por
quem? Quemcondenou Sócrates à morte? Quem condenou Sócrates à
morte foram as leis de Atenas. Então, Atenas é uma cidade grega,
chamada cidade-estado e ela tem suas próprias leis, assim como as outras
cidades da Grécia – cada uma delas possui as suas leis próprias.
Sócrates foi condenado pelas leis de Atenas, mas os amigos de Sócrates
achavam que aquele julgamento que fizeram com ele tinha sido um
julgamento injusto; e, por isso, aconselhvam-no a fugir: ―Sócrates, foge;
vai embora Sócrates. Você vai para Mégara, vai para Tebas, vai para
Esparta… onde a lei é outra, aí você estará livre. Mas Sócrates não fugiu,
esperou o navio chegar… bebeu a cicuta e morreu. Então, a pergunta é:
por que o Sócrates morreu? Por que ele bebeu a cicuta?

(Então vamos examinar… para vocês entenderem o que é Leibniz).

O Sócrates bebeu cicuta porque a cidade grega ou qualquer cidade grega


é governada pelas leis da cidade. Então, a lei na Grécia é uma
lei relativa: cada cidade tem a sua própria lei. (Nada do que eu digo é
perdido, viu? Quando eu digo a lei é relativa eu tenho um objetivo.)
Então, as leis gregas são relativas, cada cidade tem a sua própria lei. Mas
existe naquele momento da Grécia, o que se chama o modelo platônico
da lei. E Platão coloca que existe uma entidade que ele chama de O
BEM e esta entidade chamada O BEM seria a entidade que deveria
governar os homens. Então, os homens não necessitariam de leis, eles
deveriam entrar em contato com O BEM e se submeter a tudo aquilo que
O BEM determinar que eles façam. Mas acontece que o bem
está muito distante, o bem está muito indeterminado; e os homens
discutem… é a discussão que nós fazemos – o que é O BEM, o que é O
MAL. Nós discutimos assim: matar um homem que está condenado à
morte, vamos dizer, pelo câncer, não tem mais salvação… ou matar um
homem que teve morte cerebral – é bom ou mau?
E nós ficamos sem responder, não sabemos dizer exatamente. Um diz
é bomoutro diz é mau – não sabemos o que dizer!…
Então, o que a gente faz? Se submete à lei, aceita a lei, aceita a lei: nós
não cometemos eutanásia, porque aceitamos a lei. Então, o que
acontece? Por que nós não conseguimos compreender exatamente o que
é O BEM, nós botamos no lugar do BEM a lei. Então, para os gregos a
lei é a representantedo BEM: a lei representa o BEM. Qual é o motivo
de a lei representar O BEM? A lei representa O BEM porque, através do
nosso pensamento, nós não conseguimos atingir O BEM. Então nós
colocamos a lei no lugar do BEM e a partir da colocação da lei em lugar
do BEM, aparece outra figura – a outrafigura chama-se O MELHOR.
O melhor para aquele homem que não conhece O BEM diretamente, o
melhor para ele é – obedecer à lei. O homem deve obedecer à lei porque
a lei é a representante do BEM. Então, constitui-se esse modelo na
Grécia: existe O BEM, O BEM não é conhecido pelos homens: no lugar
do BEM entra a lei e os homens para se tornarem o que os gregos
chamam de agatós (virtuosos), eles passam a obedecer à lei. O que é o
melhor para o homem nesse modelo? O melhor é obedecer à lei.
Essa estrutura que está aí foi integralmente retomada pelo cristianismo.
O cristianismo bota Deus no lugar do BEM – mas é a mesma coisa, a
mesma coisa. Então, O BEM, A LEI e O MELHOR.
– O que é O MELHOR? Obedecer à lei. (Todo mundo entendeu?)
O melhor é obedecer à lei.
Então, a partir disso, nós temos Leibniz. O que é que o Leibniz vai criar?
O melhor dos mundos possíveis. Então, quando a gente ouve o Leibniz
criar o melhor dos mundos possíveis, no universo cristão, o que teria que
ser o melhor dos mundos possíveis? O mundo que obedecesse… à lei,
por causa do… BEM. Mas acontece que a razão barroca são
os escombros da razão teológica. Então, o melhor para o Leibniz não é
aquilo que obedece à lei, o melhor é aquilo que pode CRIAR e
INVENTAR. O nosso mundo é o melhor, porque nele pode haver
criação.
Então, é uma das coisas mais lindas que se pode compreender no espírito
humano. Foi necessário a quebra e os escombros da razão teológica para
a alteração da compreensão do melhor. Porque se você fosse falar com o
Sócrates, com os homens que se originam do pensamento teológico ou
da filosofia grega, o melhor para eles era definitivamente… (o quê?)
obedecer à lei.
Para o Leibniz, não. O melhor não é jamais obedecer à lei; o melhor é
CRIAR e INVENTAR. Logo, os homens progridem… Os homens
progridem, porque eles estão no reino do melhor. Eles podem progredir
os seus modos éticos, as suas tecnologias… e aqui é que aparece a
questão que ela [uma aluna] fez para mim: a questão lindíssima do
Leibniz. Nós estamos no… melhor dos mundos possíveis; e esse melhor
dos mundos possíveis foi criado por Deus. Deus criou o melhor dos
mundos possíveis. Então, Deus para o Leibniz nãoreproduz o Deus
teológico; já é um Deus barroco – que criou o MELHOR, sem LEI
e sem BEM. O melhor dos mundos do Leibniz, não precisa
de outromundo! E a constituição do nosso mundo, que é o melhor dos
mundos, que é o mundo em que se pode criar e que se pode inventar...
logo, o homem já é, por natureza, uma tendência para o infinito, no
sentido de que ele não precisa ficar limitado a nada – a tendência dele
é criar e inventar e não se submeter a uma lei, não se submeter a um
BEM superior: não existe nada superior… Isso que eu chamei de o
melhor dos mundos possíveis se explica pela IMANÊNCIA, ele não
precisa da transcendência do BEM, nem da transcendência do
MELHOR. Ele se explica pela sua própria imanência. E isso é que se
chama PLANO DE IMANÊNCIA.
Plano de imanência. Plano de imanência é alguma coisa que para se
explicar não precisa de outra. Ela própria se explica.

Vamos ver outra vez o modelo platônico. Quando é que se é melhor no


mundo platônico? Quando se obedece à lei! E a lei é o quê?
Representante do BEM. Então, O MELHOR é explicado
pela transcendência do BEM. A transcendência do BEM é que explica o
MELHOR e no Leibniz, não. No Leibniz o melhor se explica nele
mesmo – esse mundo é o melhor porque nele há criação.
Al: —–
Cl: Exato. Isso é o modelo platônico. Não quer dizer que todo grego se
dá assim, (Entendeu?). É o seguinte, a sua colocação… A polis (palavra
grega – Petró-polis) cidade. A cidade grega é uma cidade que sai da
cidade oriental e se constitui lá naquele Mediterrâneo (não é?). E na
cidade grega, ao nascer, nasce uma coisa que não existia na cidade
oriental, que se chama a PALAVRA DIÁLOGO. A palavra diálogo…
(eu acho que eu já falei pra vocês) emerge na cidade grega, onde cada
cidadão tem a plena potência de falar o que bem entender; ele pode falar
o que ele quiser… O único problema é que se ele falar... o interlocutor
pode refutar. Então, se ele falar uma besteira os interlocutores vão rir.
Assim, na hora em que o grego fala, ele se prepara.
Mas o mais importante é que as leis da cidade grega, essas leis que
condenaram Sócrates, são formadas pelos cidadãos gregos. Eles é que
constituem as leis. Eles próprios constituem as leis. E as leis deles, as
leis dos gregos, são constituídas pelas faculdades que eles consideram
superior, que é a razão. Então, esse momento é um momento muito forte
do pensamento, porque nasceu…

(fim de fita)

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