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Conselho Editorial

Betina Schuler (UCS/EMEF Rincão/PM-POA)


Dóris Helena de Souza (SMED/POA)
Gláucia Maria Figueiredo (UNIOESTE)
Karen Nodari (UFRGS/Colégio Aplicação)
Luciano Bedin da Costa (UFRGS/SETREM)
Ludmila de Lima Brandão (UFMT)
Maria Amélia Santoro Franco (Universidade Católica de Santos)
Nadja Maria Acioly-Regnier (Université Claude Bernard Lyon1)
Vânia Dutra de Azeredo (PUC/Campinas)

Comitê Editorial
Carla Gonçalves Rodrigues (UFPel)
Ester Maria Dreher Heuser (UNIOESTE)
Silas Borges Monteiro (UFMT)

realização:

apoio:
Editoração por SUPERNOVA EDITORA

Capa por Leonardo Garbin

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

C788d
Corazza, Sandra Mara (Org.).
Docência-pesquisa da diferença: poética de arquivo mar./
Organizado por Sandra Mara Corazza. Porto Alegre-RS: Doisa;
UFRGS, 2017.
422p.

ISBN 978-85-66308-08-2

1.Educação. 2.Didática da tradução. 3. Transcriação do
currículo. 4.Escrileituras da diferença. I.Título.
CDD 370

Ficha catalográfica elaborada pelo Bibliotecário Douglas Rios (CRB 1/1610)


docência-pesquisa
da diferença:
poética de
arquivo-mar
org.
Sandra Mara Corazza
portanto,
Pedro, Alice, Lucas,
Guilherme, Laura, Antonio...
SUMÁRIO

13 PREÂMBULO
Ester Maria Dreher Heuser

15 APRESENTAÇÃO
Polyana Olini

19 EXERGO – POÉTICA DE ARQUIVO


Sandra Mara Corazza
Parte 1 – Didática da Tradução

Didática da tradução: transcriações do 27


currículo no Projeto Escrileituras
Sandra Mara Corazza
Carla Gonçalves Rodrigues
Ester Maria Dreher Heuser
Silas Borges Monteiro

Didática-artista da tradução: transcriações 40


Sandra Mara Corazza

Didática da tradução, transcriação do 56


currículo (uma escrileitura da diferença)
Sandra Mara Corazza

Escrever e ler na EJA: oficinas 71


biografemáticas de traduções
Larisa da Veiga Vieira Bandeira
Sandra Mara Corazza

Cenalários dos anpedianos biografemáticos 84


Carolina Comerlato Sperb
Sandra Mara Corazza
Karen Elisabete Rosa Nodari

Espaço poético como tradução didática: 97


Bachelard e a imagem da casa
Luiz Daniel Rodrigues Dinarte
Sandra Mara Corazza
Parte 2 – Transcriação do Currículo

111 Currículo e didática da tradução:


vontade, criação e crítica
Sandra Mara Corazza

134 A vontade de potência do professor-artistador:


currículo e didática da tradução
Sandra Mara Corazza

149 Didática da tradução: o professor-artista


e as transcriações do currículo
Sandra Mara Corazza
Cristiano Bedin da Costa

160 Entre raízes e radículas. O que se


passa no currículo escolar
Fabiane Olegário
Sandra Mara Corazza

169 tradução-dramatização do currículo:


imagens do Projeto Escrileituras
Polyana Olini
Sandra Mara Corazza

180 Base Nacional Comum Curricular:


apontamentos crítico-clínicos e um trampolim
Sandra Mara Corazza
Parte 3 – Arquivo EIS AICE

Currículo e didática da tradução: 199


escrileituras da docência
Sandra Mara Corazza
Ester Maria Dreher Heuser
Carla Gonçalves Rodrigues

Escrileitura, criação e multiplicidade do 213


conceito de potência humana
Ana Felícia Guedes Trindade
Sandra Mara Corazza

Pesquisar: uma atitude didático-tradutória 233


de escriler a vida
Róger Albernaz de Araujo
Sandra Mara Corazza

Um percorrido tradutório de pesquisa: 255


espiritografias valéryanas com EIS AICE
Maria Idalina Krause de Campos
Sandra Mara Corazza

Pesquisa empírica-transcendental da diferença: 274


arquivo, escrileituras e tradução de dados
Sandra Mara Corazza

Gematria de EIS AICE: às voltas com um ideograma 292


Fabiano Neu
Sandra Mara Corazza
Parte 4 – Escrileituras da Diferença

309 Ensaiar a escrileiturartista na universidade


Ester Maria Dreher Heuser
Sandra Mara Corazza

334 Cenas e tempos de uma infância sem fim:


o sentimento trágico em Incêndios
Sandra Mara Corazza
Deniz Alcione Nicolay

350 Pensamento, cinema e estética do tempo


Ana Carolina Acom
Sandra Mara Corazza

362 Conhecimento como invenção: Paul Valéry no


ensino da educação contemporânea
Máximo Daniel Lamela Adó
Maria Idalina Krause de Campos
Sandra Mara Corazza

379 O professor-tradutor: imagens do Projeto


Político-Pedagógico na Educação Infantil
Cláudia Schvingel
Sandra Mara Corazza

397 La escrita sociográfica como didactica


transcreadora y productora de presencia
Máximo Daniel Lamela Adó
Sandra Mara Corazza

415 APRÈS-COUP – ARQUIVAMENTO E IMPRESSÃO


Cristiano Bedin da Costa
Máximo Daniel Lamela Adó
418 AUTORES
PREÂMBULO
Ester Maria Dreher Heuser

C ada texto contido nesse livro carrega consigo um tesouro. Acontece que, por um
tempo, esse tesouro esteve meio que nas mesmas condições daquelas histórias que
se ouve sobre preciosidades guardadas num baú enterrado sob as raízes de um Umbu,
próximo a uma casa centenária de estância do pampa gaúcho. Tesouro sobre o qual
a avó fala, conta, acredita que existe. Mas a gente, por um bom tempo, não leva fé,
não vai lá cavar o buraco para se certificar, nem que seja para poder se convencer
que é só coisa da cabeça dela que está muito cheia de vida vivida. A avó, nem aí
para o que a gente pensa das possíveis caduquices dela, continua a falar, a fazer, a
escrever entusiasmadamente e a fabricar coisas com o tesouro que ela acredita existir.
Incansavelmente ela repete, diz de diferentes modos, cria maneirismos na escrita, nos
modos de apresentar em público, inventa cantos paralelos e vai pegando cada um de
jeito. O faz não para provar, para convencer e arrebanhar, mas para experimentar, ver o
que pode acontecer com o tesouro que há muito ela já desenterrou, mas não se contenta
em guardar para si. É uma avó generosa, partilha, dá de presente, mas não de bandeja,
algumas preciosidades. Dá para não pedir de volta, mas tem a expectativa de que sejamos
dignos de sua herança e com ela façamos a diferença. É isso que cada um dos dezoito
herdeiros que a acompanham nesse livro – para além dos netos legítimos Pedro, Alice,
Lucas, Guilherme, Laura e Antonio – se esmera para fazer, após ser pego de jeito,
cada um a seu tempo, do seu jeito, em lugares diversos, seja em Porto Alegre, Cuiabá,
Pelotas, Toledo, Santiago, Isla Negra, Puebla, Pantanal ou nas Cataratas do Iguaçu. O
tesouro? A Transcriação que ganhou novo território em educação com os movimentos
desterritorializantes da afirmativa avó que artista e mostra a potência criadora de uma
docência-pesquisa que traduz transcriando. A avó? Bem, ela é mara, aquela que não
deixa de se pôr em combate incessante a tudo que entristece, diminui e avilta a vida.
Ela está em cada página desse livro, às vezes, acompanhada de um herdeiro, outras,
numa solidão povoada, partilhando seu tesouro com quem quer que abra esse livro-baú.

13
APRESENTAÇÃO
Polyana Olini

Procuramos ficar no presente,


mesmo quando os fantasmas tentam nos desviar.
Patti Smith

Q uando Sandra Mara Corazza escreveu seu primeiro livro, no início dos anos
1990, as preocupações que tomavam a educação procuravam lidar, principal-
mente, com as questões acerca da construção de uma educação pública e democrática
para todas as pessoas. Seu livro Tema gerador: concepção e práticas (1992) procurava
dar aos leitores e leitoras possibilidades para engendrar uma educação para liberdade,
próxima das tensões e conquistas que a sociedade brasileira vinha angariando desde a
abertura política e desde a promulgação da sétima Constituição brasileira, em 1988.
Os textos que compõem a coletânea Docência-pesquisa da diferença: poética de
arquivo-mar tem uma distância de quase 30 anos daquele momento vivido no Brasil e
vivido por Corazza, em sua docência-pesquisa, e de lá para cá seu trabalho não tem feito
menos do que redefinir esses campos. Nas páginas seguintes é possível ver que os Temas
geradores foram transcriados, deram lugar à, sobretudo, noção de escrileituras, que opera
pelas vias da relação experimental com o texto e constitui processos de ruptura com o
previamente instituído para escrever e ler. Ocupam-se justamente das escrileituras, por
meio de um vitalismo de criação com autores como Deleuze, Guattari, Barthes, Valéry,
Bachelard, irmãos Campos e outros intercessores com quem escrevem Sandra Mara e seus
demais autores – Ana Carolina Acom, Ana Felícia Guedes Trindade, Carla Gonçalves
Rodrigues, Carolina Comerlato Sperb, Cláudia Schvingel, Cristiano Bedin da Costa,
Deniz Alcione Nicolay, Ester Maria Dreher Heuser, Fabiane Olegário, Fabiano Neu,
Karen Elisabete Rosa Nodari, Larisa da Veiga Vieira Bandeira, Luiz Daniel Rodrigues
Dinarte, Maria Idalina Krause de Campos, Máximo Daniel Lamela Adó, Róger Albernaz
de Araujo e Silas Borges Monteiro –, dos quais tenho prazer em participar.

15
Não se trata de dizer que Corazza tenha uma escrita historicamente circuns-
crita. Sobre Corazza pode-se usar a expressão intempestiva de Nietzsche (2005, p. 70,
§ Prólogo), na qual os escritos não estão contidos na história, pois se trata de “agir
contra esta época, por conseguinte, sobre esta época e, esperamos nós, em benefício
de uma época vindoura.” Deleuze (2006, p. 17) cita esta mesma frase no Prólogo de
Diferença e repetição, ao tratar da criação do intempestivo como um tempo, saltitante,
molecular e eternamente movente que não é visível por um contorno temporal apreensível.
Aqui está um belo encontro; Sandra aprendeu a escrever contra o seu tempo, contra o
nosso tempo. Ela trazia Temas geradores pois, talvez, queria máquinas elétricas; hoje
ela cria fantasias de escrileitura porque necessita de linhas que traçam o amanhã. Assim,
nem sempre seus textos cabem na história em que as pesquisas pensam a educação hoje.
A preocupação da docente-pesquisadora com o amanhã faz com que colha inovações
e firme parcerias heterogêneas e plurais, num perspectivismo que reabre a docência, o
currículo, a didática e a pesquisa educacional a novas interpretações e métodos.
A compilação de um conjunto de textos coletados traz consigo o problema de
desenvolver critérios de seleção, isto é, definir quais linhas de pensamento devem ser
favorecidas, ou minimizadas ou ainda excluídas. Há aqui uma seleção retrospectiva sobre
o desenvolvimento das vias de investigação presentes neste livro e, ao mesmo tempo, na
dissimetria de um arquivamento que desafia seus leitores a dissolver o tempo e a história.
Ao recolher textos inéditos e publicados entre 2013 a 2017, para que possam ser
lidos em único volume, seleciona extratos de aulas e projetos de pesquisa, artigos-
chave, recortes de pesquisas orientadas e supervisionadas por Sandra Mara Corazza
em diversos níveis – Iniciação Científica, Mestrado, Doutorado e Pós-doutorado. No
exergo, a autora desenvolve elementos que nos provocam a pensar os fluxos marí-
timos de uma poética do arquivo, instaurada no conjunto de pesquisas e escrituras da
coletânea. Os 24 capítulos assinalam posições teóricas e práticas para educação da
diferença e estão organizados em 4 partes: I – Didática da Tradução, II – Transcriação
do Currículo, III – Arquivo EIS AICE e IV – Escrileituras da Diferença.
Este livro pode ser lido como uma composição da trajetória de uma pesquisadora em
seu escopo mais amplo; que busca revelar-se em seus tempos e expandi-los. É também
uma cartografia de sua capacidade de desafiar as fronteiras entre filosofia, literatura,
cinema e educação contemporânea. Numa época em que a Educação é comumente
consumida por queixas, este trabalho coletivo se apresenta surpreendido e encantado
por seus tempos e pronto para converter essa surpresa em uma audácia digna deles;
filosofia-educação para depois de amanhã. Não só reconhece a natureza desterritoria-
lizada de nosso campo comum, mas busca tomar o presente e fazer dele algo tão rico
quanto possível.

16
Referências
CORAZZA, Sandra Mara. Tema gerador: concepção e práticas. Ijuí: Unijuí, 1992.
DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. (Trad. Luiz Orlandi e Roberto Machado). Rio de
Janeiro: Graal, 2006.
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Da utilidade e desvantagem da história para a vida. In:
Escritos sobre história. (Trad., apresentação e notas Noéli Correia de Melo Sobrinho). São
Paulo: Loyola, 2005.
SMITH, Patti. Linha M. (Trad. Claudio Carina). São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

17
EXERGO – POÉTICA DE ARQUIVO
Sandra Mara Corazza

C
omecemos pelo incipit deste livro, isto é, por seu exergo. Afirma Derrida (2001,
p. 17) que a forma do exergo é elíptica, já que, de antemão, permite acumular
um capital e, ainda, preparar a mais-valia de um arquivo: “Um exergo estoca por
antecipação e pré-arquiva um léxico que, a partir daí, deverá fazer a lei e dar a ordem
contentando-se em nomear o problema, isto é, o tema”. Assim o exergo impõe uma
função lexical, que institui e conserva a tematização do livro – violência do próprio
arquivo.
O arquivo de Docência-pesquisa da diferença: poética de arquivo-mar não encontra
a sua matéria no conjunto dos 24 textos, aqui reunidos; senão nas diversas docências
e pesquisas, de caráter empírico-transcendental (Deleuze, 1988), que dão sustentação
aos textos e funcionam como os seus pontos arquimédicos (Corazza, 2014). Arquivo
que reúne dados-fluxos, constituídos pela “consciência dos pesquisadores sobre o seu
caráter inventivo e criador, obtido por meio de um método como trabalho tradutório
de pensamento e de escritas-leituras (escrileituras)” (Corazza, 2016b, p. 328).
Trabalho tradutório, que engendra uma alteridade radical daquilo que, no arquivo,
encontra-se escrito, como um exercício de estilo (Deleuze, 2003), realizado pelo livro
enquanto máquina abstrata (Deleuze e Guattari, 1997): nem real, nem fictícia, mas virtual
e problemática. Traduções, que carregam a tradição e dela pilham, formam e fazem devir,
avançam e regridem, engolem e devolvem, trazem e levam, vão e vêm, sopram ondas
e assopram espumas. Por isso, o seu arquivo é pensado como o mar:

porquanto desmesurado, invasivo como as marés de equinócio, as avalanchas ou


as inundações. A comparação com fluxos naturais e imprevisíveis está longe de
ser fortuita; quem trabalha em arquivos se surpreende muitas vezes falando dessa
viagem em termos de mergulho, de imersão, e até de afogamento... o mar se faz pre-
sente (Farge, 2009, p. 11)

19
Essa evocação pelágica direciona o livro à poética figural (Barthes, 1989) de um
arquivo-mar, que chega como pura artimanha do acaso, migrado do plano aquaviário
e constituído por caracóis de discursos, brumas de devaneios, névoas salinas, cracas
de metamorfoses, maledicências do sol, danças da lua. Arquivo entendido não como
fonte, espelho, esquema ou estrutura, mas desde o método dramático (Corazza,
2013), feito por simulações, meio codificadas e meio projetivas, que criam o caudal
quadripartido do livro, qual seja: didática da tradução; transcriação do currículo; EIS
AICE; escrileituras da diferença.
Fluindo de matérias pesquisantes e de corpos docentes que flutuam – enredados
nas ações de ler e de escrever –, esse arquivo-mar é delimitado “(como um signo) e
memorável (como uma imagem ou um conto)” (Barthes, 1989, p. 2). Enquanto o livro
é sua expressão, história inventada, relevo de linguagem, estribilho de canção, quase
romance, levantamento batimétrico, mapeamento sonográfico, fantasmagoria luminosa,
carranca de proa. Em sua superfície, pululam os textos, esvaziados de garrafas de
mensagens, pois o seu princípio ativo não é o que dizem, mas aquilo que articulam:
modos transcriadores de docência-pesquisa, realizados por experimentações tradutó-
rias de currículos e de didáticas, no plano da filosofia da diferença (Corazza, 2016a).
Como figura, o arquivo-mar anima todo o livro que, em seu meio, mergulha e se
debate, transtornando-o, no momento da armação, quando passa nadando por um texto,
ou monta firme em outro, transmutado em cavalo-marinho. Pouco importa que exista
tal dispersão porque é a rara, ruidosa ou excessiva passagem dessa figura que aglutina
os textos, deixando-os, para além de suas apresentações e publicações anteriores,
imprimirem-se na nova correnteza.
Dos dados-fluxos desse arquivo não formulamos definições, visto não serem an-
teriores a si mesmos, o que impossibilita dizer o que são, sem levar em conta o que
deles é apresentado no livro. Delimitar, previamente, as suas definições implicaria pro-
jetar, sobre as docências-pesquisas que os sustentam, referentes exteriores (históricos,
psicológicos, cognitivos) ou significados transcendentais (Corazza, 1995) – os quais
poderiam constranger as leituras e escrituras por vir, em nome de alguma suposta verdade.
Mas, como verificamos, não é por demarcar a inexistência de qualquer essência
desses dados-fluxos, que deixamos de incluir a problemática da escorredia nomeação do
arquivo-mar; desde que o problema de sua verdade figural (e em decorrência do próprio
livro) encrava-se em cada texto, que se oferece enquanto docência-pesquisa, ou mesmo
que, com ela, apenas tagarele.
Assim, a poética de arquivo encontra os seus elementos em áreas marítimas (também
fluviais e lacustres), canais naturais e artificiais, molhes e quebra-mares, a favor e contra
ventos, marés, bancos de areia, tráfego restrito, perigo de abolroamento e de naufrágio.

20
Os pesquisadores-docentes são humanos, de tipo misto, pois transitam entre a terra e
o ar, a água e o fogo (Bachelard, 2008; 2013; Dinarte; Corazza, 2016); lidando com
tais elementos, em suas interações, incompatibilidades, avaliações de tempo-espaço,
julgamento crítico.
Se, no território da tradição dualista dicotômica, há uma crença na existência de
dois domínios – um denominado teoria e o outro prática (mesmo que apanhados num
encadeamento constritivo) –, a poesia do arquivo-mar é, desde sempre, desarranjada,
pois,

o discurso sobre aquilo que funciona tem um meio próprio, desenvolvido pela
linguagem e pelo raciocínio, possuindo seus pontos de inflexão e de silêncio, impasse
ou supressão, que são as suas condições de possibilidade, delimitadas pelo território
teórico; enquanto aquilo que funciona tem também as suas condições de possibilidades,
definidas pela dinâmica própria à prática, reproduzida, de uma maneira ou de outra, no
nível discursivo (Corazza, 2017, p. 4).

Operando com vontade vital, experiência e conhecimento, os arquivistas traduzem


teorias originais e práticas de partida, para movimentarem os seus percorridos,
atualizando-as em termos de recursos, profundidade, relevo, clima, limites, problemas,
sem pretenderem paralelismo ou redutibilidades entre elas. Acontece que a navegação
tradutória, de percurso mais ou menos seguro ou tateante, consiste em um conjunto
inédito de movimentos, que resulta da transcriação tanto de processos teóricos como
de procedimentos práticos.
Feitas, quase sempre, em condições adversas e traiçoeiras, restritas e desconhecidas,
suas manobras acabam encaminhando a algum porto, cais ou costa; mesmo que as
passagens e paragens tenham sido aterrorizantes, dolorosas ou desventuradas, como se
Caronte as conduzisse. Mais do que cartografar costas, recifes, baixios, nominar barras,
bacias, correntes, os arquivistas mostram como fazer, salvaguardando vidas, preservando
culturas, escoando cargas, revolvendo e mantendo a liquidez do arquivo.
Enquanto experiência coletiva e singular, a docência-pesquisa tradutória resulta do
trabalho que pensa as próprias vivências como transcriadoras: “pura prática de existência
(prática de conjunto conduzindo seu próprio saber, uma teoria prática)” (Blanchot, 2010,
p. 179). Por isso, o arquivo-mar desregra os acontecimentos, ao fazer algo diferente com
aquilo que o constituiu e dar a ver o que ele mesmo constrói, sem morrer na praia.
Por conseguinte, este livro não dá banho de real, não se atira em algum chão, não salta
de nenhuma nuvem, nem hipoteca ou faz hidromancia com o futuro; tampouco, patrocina
o ingresso, em sua paisagem, de indivíduos metafísicos ou de sujeitos da consciência.
Os arquivistas consistem em personagens concretos, embora borrados, destituídos da

21
presença de entes, que desenvolvem o jogo descentrado da diferença, para dissolver
sólidos de escritas-leituras com poder de suplência (Derrida, 1973).
O arquivo-mar se arremessa aos textos, cuja intencionalidade é o farol cego do
pensamento e da linguagem de quem os produz; farol que, feito um astrolábio, octante
ou sextante, a um só tempo, abre e limita a visibilidade, isto é, o sentido – localizado
em um lugar intermediário, que Derrida (1972) chama hímen. Preso na fundura de um
jogo aporeticamente indecidível, esse farol é a gênese do fora das pesquisas-docên-
cias – fora que promove sua adição produtiva à sorte da nossa profissão e à positi-
vidade da cultura.
Inchada de águas, a textualidade do livro esforça-se para deixar escorrer as lei-
turas em direção às transgressões das escrituras. Logo, o livro espera que os atos de
leitura e as trocas com os textos constituam o seu próprio interesse; além de reali-
zarem os dramas dos autores, em suas relações paradoxais e insubstituíveis com cada
pesquisa e docência.
O que vale é a propriedade do plano de pensamento da diferença, no qual, o livro é
escrito e será lido, que o faz ingressar numa caixa de ressonâncias de problemáticas e
de analíticas criadas por suas escrileituras. Embora ele também possa ser tomado como
“um vestígio, um sonho, um fragmento de sonho, um eco da noite... esse outro teatro,
esses golpes do fora...” (Derrida, 1991, p. 124) – golpes de uma docência-pesquisa,
como deslizamento de forças, acontecimento de polissemia, coreografia desconjuntada,
injunção de duplos, prazer da intertextualidade.
Em que pesem suas partes, títulos, subtítulos, notas de rodapé, referências, a dis-
posição dos textos é distribucional, não integrativa, deixando o livro sempre na hori-
zontal, sem elevá-lo a um nível superior, do tipo: Esta é uma nova teoria – ou prática – de
docência-pesquisa. Mesmo que aos textos tenha sido atribuída uma contiguidade,
para ligá-los entre si, percebemos como cada um agita-se, explode, vibra, despoja-se,
contorce-se e se rebela, tentando ficar excluído da narrativa unívoca.
Não esperemos demasiado da ordem dos textos, pois, como um navio ébrio, o livro
gira e desnorteia os seus escritores e leitores. Não há, nele, quaisquer redenção e pastoral
de teorizagem ou transcendência e tentação de praticagem; tampouco, ontologia,
deontologia, ascética ou teleologia, desde que não é escravo de opinião geral, lógica,
pontos finais, depreciação sobre sua fraqueza, exigência de provocar turbilhões.
Assim como o arquivo-mar, é próprio deste livro que os seus textos não consigam se
enjambrar em uma balsa, organizar uma só rota, acorrer a um horizonte definitivo, visto
que não há primeiros nem últimos, mas um cardume sucessivo. Essa condição leva cada
leitor a se apropriar um pouco de um, a suprimir outro, a acrescentar um texto seu; ou,
então, a seguir adiante, sem nada transportar ao estaleiro.

22
Em consequência, encontraremos, tão-somente, a afirmação e a constituição de várias
existências, que circunscrevem e positivam os autores como viventes de docências-
pesquisas; existências, cuja navegabilidade fica suspensa, por um instante, no arquivo, e
retida, em outro momento, pelo livro; então, levanta velas e volta outra vez a vogar, por
haver cumprido suas escritas-leituras.
Caso essas escrileituras lhes pareçam dormentes, desmaiadas, submersas, afogadas
ou mal ditas, saibam que foi o léxico do exergo que sancionou tal ou qual encenação
poética. É que, no olho onírico do arquivo-mar; no canto de sereia de cada docência;
e nas águas-vivas de toda pesquisa, existem gradientes de artistagens (Corazza,
2006) – todas elas mareadas de alucinação textual, dotadas de emoção netuniana e
padecendo de um suspense tempestuoso.

Referências
BACHELARD, Gaston. A água e os sonhos: ensaio sobre a imaginação da matéria. (Trad.
Antonio de Pádua Danesi). São Paulo: Martins Fontes, 2013.
BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. (Trad. Antonio de Pádua Danesi). São Paulo:
Martins Fontes, 2008.
BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso. (Trad. Hortência dos Santos).
Rio de Janeiro: Francisco Alves. 1989.
BLANCHOT, Maurice. O amanhã brincalhão. In: BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita
3: a ausência de livro, o neutro, o fragmentário. (Trad. João Moura Jr.) São Paulo: Escuta, 2010.
p. 179-199.
CORAZZA, Sandra Mara. Artistagens – filosofia da diferença e educação. Belo Horizonte:
Autêntica, 2006.
CORAZZA, Sandra Mara. Currículo e didática da tradução: vontade, criação e crítica. Educação
& Realidade, Porto Alegre, v. 41, n. 4, p. 1313-1335, out./dez. 2016a.
CORAZZA, Sandra Mara. Didática da tradução, transcriação do currículo: escrileituras da
diferença. Projeto e Plano de Trabalho Produtividade em Pesquisa (PQ). Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq. Apresentado ao CNPq em julho de 2014,
aprovado sob n. 304380/2014-8, entre 01 de março de 2015 e 28 de fevereiro de 2019. Porto
Alegre, 2014, 41 p.
CORAZZA, Sandra Mara. Inventário de procedimentos didáticos de tradução: teoria, prática e
método de pesquisa. Revista Brasileira de Educação – Associação Nacional de Pós-Graduação
e Pesquisa em Educação, 2017. (No prelo)

23
CORAZZA, Sandra Mara. O construtivismo pedagógico como significado transcendental do
currículo. In: VEIGA-NETO, Alfredo. (Org.). Crítica pós-estruturalista e educação. Porto
Alegre: Sulina, 1995. p. 211-229.
CORAZZA, Sandra Mara. O que se transcria em educação? Porto Alegre: UFRGS; Doisa,
2013.
CORAZZA, Sandra Mara. Pesquisa empírica-transcendental da diferença: arquivo, escrileituras
e tradução de dados. In: KOHAN, Walter Omar; LOPES, Sammy William; MARTINS, Fabiana
Fernandes Ribeiro. (Orgs.). O ato de educar em uma língua ainda por ser escrita. Rio de
Janeiro: NEFI, 2016b. p. 327-339.
DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. (Trad. Luiz Orlandi e Roberto Machado). Rio de
Janeiro: Graal, 1988.
DELEUZE, Gilles. Proust e os signos. (Trad. Antonio Carlos Piquet e Roberto Machado). Rio
de Janeiro: Forense Universitária, 2003.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Conclusão: regras concretas e máquinas abstratas.
(Platô 15.) Tradução Peter Pál Pelbart. In: DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs.
Capitalismo e esquizofrenia. V. 5. (Trad. Peter Pál Pelbart e Janice Caiafa). São Paulo: Ed.34,
1997. p. 215-232.
DERRIDA, Jacques. A farmácia de Platão. (Trad. Rogério da Costa). São Paulo: Iluminuras,
1991.
DERRIDA, Jacques. Gramatalogia. (Trad. Miriam Schnaiderman e Renato Janini Ribeiro).
São Paulo: Perspectiva, Ed. da Universidade de São Paulo, 1973.
DERRIDA, Jacques. La dissémination. Paris: Éditions du Seuil, 1972.
DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo: uma impressão freudiana. (Trad. Claudia de Moraes
Rego). Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.
DINARTE, Luiz Daniel Rodrigues; CORAZZA, Sandra Mara. Espaço poético como
tradução didática: Bachelard e a imagem da casa. Educação & Formação. Fortaleza, CE,
v. 1, n. 2, p. 136-149, maio/ago. 2016.
FARGE, Arlette. O sabor do arquivo. (Trad. Fátima Murad). São Paulo: Editora da Universidade
de São Paulo, 2009.

24
Didática da Tradução
Parte 1
Didática Da Tradução:
Transcriações Do Currículo No
Projeto Escrileituras

Sandra Mara Corazza


Carla Gonçalves Rodrigues
Ester Maria Dreher Heuser
Silas Borges Monteiro

O projeto Escrileituras: um modo de ler-escrever em meio à vida


(OBEDUC-CAPES/INEP 2011-2014), assim como este artigo, compreende
que a Educação, o Currículo, a Didática, a Filosofia, a Arte e a Ciência são
dotados de um caráter eminentemente construcionista, social e historicamente
construídos; portanto, são arbitrários e ficcionais, abertos para serem modificados,
transformados, potencializados. O discurso de cada uma dessas invenções fornece
uma das tantas maneiras de dizer e formular o mundo, de interpretá-lo e atribuir-lhe
sentidos. O Projeto Escrileituras, que ora se apresenta, toma elementos de cada uma
dessas invenções e se esforça para também dizer o mundo; parte infinitamente
pequena deste mundo, é verdade; no entanto, para os que com ele se envolvem é uma
parte expressiva que passou a constituir o seu próprio mundo; o que implica, quiçá,
em produzir mais um diagrama para o mapa do mundo. Compreende-se que essa
experiência, construída ao longo de quatro anos de funcionamento, pode contribuir,
talvez, especialmente, por seu hibridismo e pela multiplicidade de uma “didática e
um currículo da tradução transcriadora”, para a tematização acerca do Currículo na
contemporaneidade, a qual exige que seja “sem fronteiras”.

27
Como funciona o Projeto Escrileituras: sua Rede de Núcleos
O projeto Escrileituras: um modo de ler-escrever em meio à vida (2011-2014)
está localizado na conjunção dos atos de criação didática, formulação curricular e
formação de professores-pesquisadores, é dele que o presente artigo se ocupa. Trata-
se de Projeto financiado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino
Superior (CAPES), no contexto do Programa Observatório da Educação, em parceria
com o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Anísio Teixeira (INEP) e a Secretaria de
Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI) do Ministério
da Educação do Brasil (MEC). Valendo-se da base de dados do INEP, o Projeto visa
articular pesquisa, ensino e extensão, para estimular a produção acadêmica, científica
e profissional, com vistas à elevação do Índice de Desenvolvimento da Educação
Básica (IDEB) das escolas participantes, bem como contribuir para a formação inicial
e continuada de professores.
Considerando sua função física, empírica, conceitual e operatória, o Projeto prima
pela diversidade de materiais e multiplicidade de bolsistas e pesquisadores. Desen-
volve-se, simultaneamente, em quatro Núcleos sediados em quatro universidades:
Universidade Federal do Rio Grande do Sul/UFRGS (sede); Universidade Federal de
Pelotas/UFPel; Universidade Federal do Mato Grosso/UFMT; e Universidade Estadual
do Oeste do Paraná/UNIOESTE); e em quase duas dezenas de escolas públicas,
distribuídas em três estados do Brasil. Também está articulado com institutos e centros
federais, escolas e secretarias de educação, movimentos sociais e civis, municipais e
estaduais, outras universidades e órgãos públicos.
Realiza estudos e práticas de escrita e leitura para crianças, jovens e adultos,
através da renovação dos processos de aquisição e utilização da linguagem, enfocando
especialmente o que segue: conteúdos escolares e operações mentais; interpretação de
leituras e raridades de escrituras; variações contínuas de temas; criação de imagens e
processos de pensamento; formas de conteúdo e de expressão; sensibilidade para as
artes e linguagens; habilidades e competências para formular problemas, em ciências
humanas, sociais e exatas.
A denominação central Escrileituras se deve à condição de o Projeto lidar com
escritas e leituras singulares, produzidas por um leitor, que transita entre o prazer de
ler e o desejo de escrever, e vice-versa. Escrileitura que, portanto, é autoral, não po-
dendo ser imitada nem funcionar como modelo ou método. Movimentada com leituras
fertilizadoras e com escrituras agitadoras de ideias, advindas de várias áreas, trata-se
de escrileituras avaliadas por sua capacidade de traduzir acontecimentos e produzir
efeitos artistadores; transformar forças em novas maneiras de sentir e ser; engendrar

28
diferentes práticas de educar e revolucionárias formas de existência. Os resultados
dessas escrileituras são considerados textos que reivindicam posturas multivalentes de
coautoria entre leitor e escritor, para se transformarem em exercícios de pensamento;
e cuja concepção e prática supõem textos abertos às interferências do leitor, isto é,
escrevíveis de múltiplos modos e traduzíveis para diferentes línguas.
O Projeto funciona, primacialmente, através do planejamento, organização
e desenvolvimento das Oficinas de Transcriação (e de AutOficinas), que implicam o
campo do vivido, em um tempo presente do acontecimento e atravessam a ortodoxia
dos textos, reivindicando novas possibilidades de inscrever signos e de escriturar
sentidos. Essas alterações de codificações e sistemas semióticos abrem passagem,
também, para escritas formais, escolares e acadêmico-científicas; já que o Projeto usa
como critério para um texto bem sucedido aquele que implica o exercício em dobra de
práticas legitimadas e não-legitimadas de leitura e escritura. Para o coletivo de quase
uma centena de participantes, os atos de ler e de escrever são tomados como criadores
de novas subjetivações e de relevantes funções objetivas sociais, culturais, comuni-
tárias, grupais e políticas (Heuser, 2011).
Tributários da filosofia da diferença, teorias de tradução literária e poética, bem
como de formulações didáticas e curriculares contemporâneas, os movimentos dessa
Rede, formada pelos quatro Núcleos, compreendem modos plurais de intervenção, nas
formas de ensinar e de aprender a ler e a escrever; modalidades de planejar, organizar
e desenvolver as Oficinas; criação de espaços-tempos para encontros, pragmáticos e
críticos, que passam pela escrita-e-leitura e configuram uma determinada epistemologia
educacional. Em zonas de indiscernibilidade dos cenários contemporâneos, a Rede de
Núcleos segue devires e fluxos. Através de vivências sensíveis e relacionais, produz
formas deformadas, figuras desfiguradas, paradoxos e não-sensos. Fazendo correr
interesses e gostos pelos textos, arranca o figural e isola o material, tornando notáveis
ideias já criadas. Desfazendo jogos de forças e efeitos sobrecodificados, produz sensações
e ações práticas sobre autores. Liberando forças vitais dos participantes, trabalha para
que potências informes reencontrem a própria virtualidade, por meio da desestrati-
ficação de camadas sedimentadas de saber, poder e subjetividade.
A ideia de Oficina não remete a um local para execução de consertos, ajustes ou
retificações; mas indica um espaço e um tempo, no qual se exerce o ofício (como tekné)
de escritura-e-leitura. Na articulação dos três planos de pensamento, filosófico, artístico
e científico, os Núcleos optam por uma variada tipologia de Oficinas, dentre as quais
citamos uma produzida em cada Núcleo, a saber: Desconstruir o texto, viajar por suas
múltiplas janelas; Tramas e usos do passeio urbano: por uma estética professoral;
Cores, sabores e texturas. Fantasias do corpo em cena; Literatura potencial. Não

29
obstante essa pluralidade de áreas e diversidade de tematizações, o Projeto em
Rede salvaguarda os seguintes elementos comuns das Oficinas: transdisciplina-
ridade e imersão na estrangeiridade dos textos; problematizações múltiplas acerca do
lido e escrito; exercícios de correlações entre leitura, invenção, afectos e pensamento;
cartografia dos processos históricos de individuação; procedimentos de in(ter)venção na
leitura e na escritura; atos de criação da pedagogia, da didática, do currículo, da aula; e
assim por diante (Monteiro, 2011).

Didática e currículo da tradução transcriadora


A pesquisa do processo criador em educação leva o Projeto Escrileituras à
conceitualização distintiva da didática e do currículo, por meio da tradução diferencial
do pensamento artístico, científico e filosófico. Tradução, que compreende a tradição
(considerada obra aberta), a qual apenas recebe este nome por resultar de escolhas e
mediação, lembrança e escrileitura de signos, imagens e espaços. Desse modo, o Pro-
jeto trata o currículo e a didática como movimentos da prática do pensamento educa-
cional, na direção tradutória de atos transcriadores, que implicam menos transportar
ou transpor os sentidos de uma língua para outra e mais verter ou recriar discursos e
culturas; dotando-os da consistência de romper com o estabelecido, ao empreender novos
recomeços; e da capacidade de se apropriarem do antigo ou estrangeiro, ao entrecruzá-
los com as línguas curriculares e didáticas e fazer ressoar suas próprias vozes (Campos,
H., 1972; Campos, A., 1986; Valéry, 2003; Pimenta, 2011; Candau, 2012).
Esse currículo – nômade, vagamundo, do acontecimento – e essa didática – dra-
mática, artista, do informe – não expressam qualquer teoria da cópia, mas produção da
diferença no mesmo, por meio de operações que transferem algo do original para as
línguas didática e curricular de chegada, expandindo a linguagem educacional. Didática
e currículo que estão articulados a uma teoria criadora; e que, por isso, não são guiados
por uma tradutologia ou ciência da tradução, mas por uma poética do traduzir. Poética
experimental, que produz efeitos pedagógicos e epistêmicos, contrários ao cientificismo
estruturalista, de vocação positivista; e que se operacionaliza como estratégia contra a
manutenção dos dogmatismos, sendo inseparável de uma transformação das relações
interculturais, propiciadora de encontros e de intercâmbios linguísticos. Enredadas em
problemas filológicos, literários e poéticos, as traduções são feitas com textos, não
exclusivamente com línguas, e levantam questões éticas e políticas acerca da subjetivi-
dade do tradutor e das relações entre identidade e alteridade (Campos, H., 2006).
Para essa concepção e ação tradutórias, por meio da autoria ficcionalmente cria-
dora, tanto o currículo como a didática funcionam como discursos culturais afirmativos,

30
desde que conduzem determinadas interpretações e avaliações, não mais sendo conduzi-
dos pelas existentes. Primeiramente, o currículo realiza traduções das matérias originais,
advindas da Arte, da Ciência e da Filosofia; para então ser dramatizado, didaticamente,
na cena atual da aula ou da Oficina, sua zona prática e proximal de criação em processo;
e tudo novamente recomeçar. Nesses dois domínios – didática e currículo da tradução
transcriadora –, residem a especificidade prazerosa e a potência criadora do trabalho
dos participantes do Escrileituras. Por isso, a tradução percorre as Oficinas, como um
dispositivo, cuja natureza é constituída pela transcriação de perceptos e afectos (fabulados
pela Arte), de funções (produzidos pela Ciência) e de conceitos (criados pela Filosofia)
(Deleuze, Guattari, 1992). Com um currículo e uma didática da transformação, o Projeto
aponta para a constituição do informe, num não-lugar e numa não-relação, por meio dos
atos de ver, falar, interpretar e escrever; de pensar do lado de Fora; e, logo, daquilo que
acontece quando alguém diz: Tive uma ideia, em didática e em currículo (Oliveira, 2014).
Pela via da traduzibilidade curricular e didática, os textos e as séries culturais se
transtextualizam e transculturam, no imbricamento dos dinamismos espaços-temporais
dos participantes. Os circuitos e transcursos tradutórios do Escrileituras privilegiam
elementos extraídos de obras já realizadas, que outros criaram, em outros tempos,
espaços, línguas, como as suas efetivas condições de possibilidade, necessárias para a
própria execução; e, ao mesmo tempo, como o privilegiado campo de experimentação,
necessário para as próprias criações, as quais atribuem uma sobrevida aos textos originais
(Campos, H., 2006).
Com esses elementos, os escrileitores constituem um campo artistador de variações
múltiplas e disjunções inclusivas, que compõe linhas de vida e devires reais, promove
fugas ativas e desterritorializações afirmativas, atribuindo primado à fluidez criadora em
detrimento das normas formais. Executam uma espécie de autopoiese da Ciência, da Arte
e da Filosofia, em campos de comutabilidade e diferencialidades, que circunscrevem o
funcionamento e os limites das suas traduções. Valorizando a multiplicidade, o Projeto
mescla o que passou, o que nos afeta e os mundos possíveis por construir. Transpondo
uma cultura na outra, mediante um continuum de transformações, suas traduções se
baseiam na nomeação criadora; a tal ponto que chegam a diferenciar os mapas da cultura
e da civilização, numa crítica-clínica do pensar, do escrever e ler, do educar e viver
(Corazza, 2012).

Um método perspectivista
As traduções artísticas, científicas e filosóficas, promovidas pelas Oficinas de
Escrileituras, são guiadas pelo método da dramatização do informe (Deleuze, 2006;

31
Valéry, 2003), que dispõe a geografia contra a história, o mapa contra o decalque
e o rizoma contra a arborescência (Deleuze, Guattari, 1997). Por não opor a unidade
abstrata da teoria à multiplicidade concreta dos fatos, trata-se de um método que não é
teorético, mas de teor ensaístico; e que, ao não desqualificar os elementos especulativos,
para lhes contrapor o rigor de conhecimentos legitimados, tampouco é um método
positivista.
Consiste, antes, em um método de criação perspectivista, que deriva de inflexões
diferenciais e estabelece um ponto de vista, como lugar, foco ou posição. Essa atitude
conforma uma radical liberdade, na constituição daquilo que o Projeto considera objetivo,
por processar a escolha de um ponto original, escolhido pelos participantes, que são os
seus artistas-sujeitos; isto é, aqueles que se instalam naquela variação de ponto de vista;
sem que este ponto varie com cada participante, mas enquanto condição para que cada
um deles apreenda algo.
Assim, as subjetividades participantes do Projeto articulam objetividades nas
Oficinas; mesmo que a liberdade e a arbitrariedade, que as compõem, não deixem
de conter regras objetivas e verificáveis. Diante da variedade dos pontos de vista das
diversas áreas e campos do Projeto, aquele ponto de vista do método ocorre sobre
uma variação; e esta não existe sem aquele ponto. O movimento de perspectivar é a
vida mesma do Escrileituras, que possui regras exclusivas, que o fazem abrir-se sobre
outros pontos, na medida em que convergem ou se bifurcam como uma divergência
afirmativa.
Para a metodologia do Projeto, a grande força é a do informe, para a qual, o ponto
de vista dos participantes funciona como jurisprudência ou arte de julgar. Cada pro-
cedimento de tradução apresenta valor mais forte ou mais fraco, em função da abran-
gência multiforme e plural do seu campo tradutório; maior ou menor desconhecimento
do próprio caráter ficcional; delimitação interperspectivista, na relação com outras
traduções feitas; possibilidade de fazer experimentações marginalizadas por traduções
e perspectivas anteriores.
Na medida em que realizam traduções curriculares e didáticas, os procedimentos
empregados pelos participantes instauram ideias, empirias, abstrações, imagens,
vocabulários, recorrências, metáforas, polêmicas, esquemas de inteligibilidade, vozes,
referentes enunciativos, condições de validade, regras de leitura, operadores textuais.
Eternamente movente e maximamente diferenciado, o método do Projeto tem, não
obstante, a responsabilidade de produzir efeitos de real, sejam científicos, artísticos ou
filosóficos, no mundo da educação; de maneira a formar um palimpsesto, didático e
curricular, que faz, ao mesmo tempo, combate crítico e traz prazer e gosto (Dalarosa,
2012).

32
Dispersão e polissemia de matérias e de textos
A seleção e articulação das matérias das Oficinas exigem de cada participante
que adote uma postura e o estado de manter-se à espreita daquilo que o põe a pensar;
isto é, dos signos, das imagens e das problemáticas culturais, que são exteriores ao
próprio pensamento (Deleuze, 1988; Heuser, 2010; Machado, 2010). Nessa direção,
os participantes selecionam textos, cujas matérias têm força suficiente para mover uma
(re)escrita e uma (re)leitura; além de afetarem a corporeidade de quem lê e escreve,
espalhando-se por outros textos e gerando outras perspectivas.
Logo, os textos escolhidos e trabalhados são considerados abertos e dispersos,
polissêmicos e difusos, experimentais e ambíguos, carregando galáxias de sentidos,
tramas de códigos e processos fragmentários. Associando pesquisadores, obras e áreas,
autores e tradutores, os textos mais interessantes são aqueles que são redigíveis (isto é,
escrevíveis) e que estimulam os participantes a modulá-los, produzindo um jogo semi-
arbitrário de interpretações e de avaliações. Por meio de suas traduções, eles passam do
papel de consumidores passivos ao de produtores críticos de escrileituras, que podem
abrir e criar o seu próprio texto (Barthes, 2004).
Toda escritura e leitura, realizadas no espaço-tempo do Projeto, tendem a favorecer
culturas do dissenso, reinventar significações, posições de indivíduos, comunidades e
grupos; criar novas linhas de saberes, sentires e fazeres; realizar atos minoritários de
ruptura e consonâncias; instalar-se em regiões desconhecidas de problemas; revelar
aspectos ocultos dos seres e circuitos inéditos de pensamento; transformar momentos,
lugares, incidentes e circunstâncias em móveis fecundos de experimentações.
Essa espécie de criacionismo do Projeto é tecida em regime de intertextualidade
e movimentada por procedimentos crítico-genealógicos e exploratório-experimentais;
os quais partem de clichês (formas, sentidos, interpretações, identidades) e buscam
identificar a imagem correspondente do pensamento, em seus pressupostos de doxa
e senso comum, para borrá-los, por meio de traços pré-individuais, involuntários,
contingentes, não-representativos, não-ilustrativos, não-figurativos e não-narrativos,
que funcionam como força motriz de novos estilos no modo de ler e de escrever
(Rodrigues, 2013).

Modificações nos modos de vida professoral


Se se produzem novos estilos no modo de ler e escrever, com o Projeto Escrileituras
novos modos de ser professor também são criados. Tanto os dezoito (18) professores
de Educação Básica que participam enquanto bolsistas do Projeto para atuarem como

33
professores-pesquisadores, criadores e promotores de Oficinas de Escrileituras,
tanto quanto as centenas de professores que participaram, nos diferentes Núcleos
do Escrileituras, das atividades de formação continuada, sofreram modificações.
Considerando tanto uns quanto outros, verifica-se que uma das principais finalidades
do Projeto se cumpriu com expressivo êxito; trata-se do objetivo de expandir o conceito
de texto para além das noções de registro e prazer, que permita uma possibilidade ao
inusitado, à raridade e ao desejo de ler e de escrever, ultrapassando assim as escolhas
definidas por territórios identitários.
Inicialmente este objetivo estava voltado, principalmente, aos estudantes das es-
colas que aderiram ao Projeto, mas, no decorrer dos trabalhos, na medida em que os
professores bolsistas se apropriaram do pensamento da filosofia da diferença, teorias
da tradução poética e literária, que orientam o Projeto e que estabeleceram uma nova
relação com o ler e o escrever, tal objetivo foi alcançado igualmente e de modo ex-
pressivo com eles, assim como afirma uma professora de matemática: “Participar do
Projeto tem uma importância enorme para mim, é um fazer sem se entender, pois ainda
sinto que sei pouco do que deveria e que, ao mesmo tempo, é muito se analisar o quanto
sabia quando o Escrileituras começou; sei que esses estudos sobre as Filosofias da
diferença fazem parte do que hoje sou”, e finaliza com as palavras de Clarice Lispector
que antropofagizou e fez suas: “estou me sentindo como se já tivesse alcançado secre-
tamente o que eu queria e continuasse a não saber o que eu alcancei”.
Os professores participantes do Projeto ultrapassaram a identidade de ser professor
de escola, aquele que só repassa os conteúdos produzidos na universidade e inventaram,
para si, a partir de suas experiências singulares com as matérias de escrita e de leitura do
Escrileituras, uma docência-pesquisadora (Tadeu; Corazza; Zordan, 2004). Sobre essa
passagem de professor de escola a professor pesquisador, uma professora de Filosofia
problematiza:
Com relação à pesquisa, infelizmente a estrutura educacional é pensada como
desvinculada dela. O professor é visto e tratado apenas como aquele que executa as
aulas. Não há, por parte do sistema, uma preocupação com a formação, com o tempo
para estudo e preparo das aulas. A escola não pensa a pesquisa, ela só funciona com
práticas repetitivas, trata as teorias como sendo algo já pronto que deve ser sempre
repetido, como se isso já estivesse sempre dado, pressuposto, sem a necessidade de
revisão, de construção, de novidades, de criação. Por isso, antes de ser bolsista do
Escrileituras, muitas vezes, me entristecia, pelo fato de não conseguir mais estudar, ler
e escrever. Sentia-me como uma cuidadora das crianças e, muitas vezes, me perguntava
como poderia fazer diferença em uma estrutura tão fechada e repetitiva. [...] Mas algo
mudou. Quando preparo e trabalho as aulas, imagino que estou preparando e depois
inserida em uma cena de teatro. Penso a aula e tento encontrar nela formas de escapar,
de fazer os alunos escaparem. Divirto-me tentando tornar nossos momentos, os benditos

34
50 minutos, mais alegres e livres, por mais que ainda tenhamos que reproduzir. De
certa forma, me alegro em saber que não estou ‘capturada’ de todo. O Escrileituras me
permite e me serve de instrumento para pensar a minha prática, com ele aprendi a olhar
as fendas, aquilo que escapa, que ocorre e não estava previsto, o que torna a aula alegre e
potente. Penso, pesquiso e, na medida do possível, estou escrevendo sobre o que se passa
em minhas aulas, o porquê delas não me satisfazerem e o que é preciso para que sejam
melhores, mais potentes, e, para que possam fazer sentido aos alunos.

O auxílio financeiro, sem sombra de dúvidas, foi um fator imprescindível para que
o grupo de professores se tornasse coeso e se comprometesse a assumir os desafios
lançados por uma proposta aberta que exige a realização do tripé universitário de ensino,
pesquisa e extensão com uma postura ao mesmo tempo crítica e criativa. A bolsa de
estudos, dentro de seus limites, deu dignidade ao trabalho docente que vai além do dar
aulas. É o que testemunham dois outros professores:
Com bolsa-auxílio pude adquirir obras e periódicos para leituras, participar de eventos
me aproximando de outras pesquisas e pessoas, dando-me muito mais subsídios e
qualificação para desenvolver um trabalho ainda melhor na minha escola, superando,
ou amenizando as fragilidades que ela apresenta.

A bolsa de estudos é um diferencial para nós professores: possibilita a compra de livros


e custeio das necessidades práticas voltadas à pesquisa, permitindo uma dedicação com
maior exclusividade, aliviando as preocupações diárias de custeio da vida.

As condições materiais proporcionadas pelo Projeto, ainda que estejam abaixo


das reais necessidades demandadas pelas produções criadas em meio ao Escrileituras,
possibilitaram a realização de atividades que, antes, eram da ordem do sonho para alguns
professores, como viajar para o exterior e seguir os estudos em nível de doutorado. É o
que narra, com emoção, uma professora das séries iniciais, hoje Pedagoga, graduada e
mestre em Letras:

Voltar a estudar por meio do projeto de pesquisa Escrileituras, com bolsa, foi
inicialmente inacreditável! A começar pelo estudo e compreensão de conceitos de
Oficina, Escrileituras, Transcriação, até a possibilidade de inscrever-me em eventos
diversos, dentro e fora do país [...]. Escrever muitos textos no decorrer de um ano, dois,
três, quatro, tem sido uma expectativa constante! Conhecer outros países, na atualidade
pode ser considerado uma banalidade. Para mim, que, por minha origem, tenho sido
movida a desafios grandes demais para serem compreendidos, por vezes, até por mim
mesma, tem sido motivo de surpresa, orgulho e Vida! Para apresentar trabalhos nascidos
das vivências com Oficinas de Transcriação, então... Tem sido uma realização de coisas
que talvez, e muito provavelmente, não teriam sido possíveis de outro modo. Conviver

35
com o rigor da escrita, da leitura e aprender a morrer muitas e inusitadas vezes, tem sido
um exercício de grandioso crescimento.

Pode-se afirmar que cada experiência de formação docente seguiu um processo


de diferenciação interna que animou essa professora, expressando um modo de
existência. Com tal concepção de experiência, focaliza-se aquilo que se oferece em uma
experimentação de pesquisa como campo de construção, não apenas dos saberes daí
advindos, mas includentes dos processos de subjetivação, de uma subjetividade que aspira
à imanência com o mundo. Isto porque, nas experiências feitas, foram ensaiadas novas
relações entre os seres, construídas novas composições; uma geografia do pensamento
inédita, fazendo do “pensamento um plano de composição onde os acontecimentos se
tecem e destecem” (Tadeu; Corazza; Zordan, 2004, p. 68).
Essa imanência com o mundo é trágica! Implica em afirmar as belezas e os horrores
da existência, assim como viver as dores e os prazeres de uma docência-pesquisadora,
como relata uma professora de Artes:
Minha situação de professora-pesquisadora, a partir da inserção no Projeto Escri-
leituras, me provocou constatações um tanto quanto dolorosas, no decorrer deste
processo, pois, ao mesmo tempo em que pude perceber o quanto desconhecia de
minha área e das outras e, então, tomar consciência de minhas limitações, também
percebi o quanto nos omitimos quando não assumimos a postura de pesquisadores, pois
deixamos de ser sujeitos de nossas ações. Assumir a postura de professor-pesquisador-
criador nos dá autonomia, porém nos coloca em choque com muitos padrões e ‘pré-
conceitos’ com o próprio sistema, o currículo, a metodologia. Tem seu lado positivo,
acarreta movimentos e necessidades, nos torna mais preocupados com a dinâmica de
sala de aula, com a efetivação da aprendizagem, com a busca de mais olhares sobre
um mesmo texto/conteúdo. As possibilidades de criação fomentadas na provocação
de produção de nossas oficinas, a partir dos conceitos de signo e as possibilidades de
encontros e afetação, me impulsionaram a novas pesquisas, a momentos de extrema
importância no conduzir de meu planejamento e de minhas aulas posteriormente.

A atenção às transformações nos modos de vida professoral, acionadas pelo


exercício do pensamento produzido no âmbito do Projeto, vem indicando efervescência
na produção de referências para a educação, tanto conceitual como nos modos de fazer,
ou como se costuma diferir, na relação estabelecida entre teoria e prática. Os estudos
realizados no Projeto, especialmente a obra O que é a filosofia? (Deleuze; Guattari,
1992), afirmam a heterogênese do pensamento posto em movimento pelo entrelaça-
mento, sem síntese nem identificação, das três filhas do caos, as caóides Filosofia, Arte
e Ciência. Heterogênese posta em ato nas leituras e escrituras que impulsionam a criação
de Oficinas. Essas leituras e escrituras produzidas em diferentes linguagens consideram

36
que o entrelaçamento das três caóides oferece movimentos à educação, especificamente
ao currículo, ferramentas para problematizar e operar sobre o terreno pantanoso da
complexa situação dos processos de formação docente nos quais se vem trilhando.
Nessa direção, as pesquisas em meio às diferentes formas de pensamento – o científico,
o filosófico e o artístico –, tornam-se potentes para tirar a escola de seu próprio conflito
de identidade pelo qual tem passado, pois a pesquisa dá a oportunidade de conhecer
efetivamente as necessidades daquele local.
Além dos professores bolsistas, o Projeto também contribuiu para transformações
nos modos de ser daqueles professores que participaram de Oficinas nos diferentes
Núcleos. Nessa direção, afirma a professora de Educação Física:
Na primeira Oficina1, o nosso grupo não estava preparado para aquela atividade, porque
trabalhar com Filosofia é difícil, a gente trabalhar com Filosofia... Assim... É engraçado.
Primeiro porque de alguma forma mexeu comigo, daí eu comecei a anotar e anotar
[...] Então, me produziu um sentimento, me provocou.

A filosofia da diferença e as práticas estéticas atuais reunidas têm mostrado uma


expressiva capacidade de contribuição para problematizar os processos de subjetivação
docente, mediante as transformações sociais. As discussões conceituais e os modos de
fazer que esses campos põem em jogo, atualmente, têm muito a auxiliar nos estudos
sobre como alguém se torna professor, com vistas a superar o entendimento do
campo da arte como disciplina, abordando-o como potência de criação e a superar a
identificação do campo filosófico com discursos herméticos de especialistas, para apren-
der com suas formas de problematizar a realidade e produzir diferença.
Não há maiores dúvidas de que as Oficinas favorecem outras maneiras de pensar,
melhor dizendo, pensar-se. Algo que destitui as habilidades que um professor deve
atingir, previamente definidas como uma identidade a ser alcançada, possibilitando a
construção de critérios de existência para uma vida que também é docente, mas não
somente docente, tal qual aponta o professor de História:
As Oficinas foram interessantes porque me ajudaram a voltar pra mim mesmo [...] Eu
estou em um processo de reconstrução pessoal e profissional. Eu sinto a necessidade
de encontrar novas narrativas atento a mim mesmo. Eu hoje estou procurando outra
narrativa, além da historiográfica, para tentar me referenciar, para tentar auto-
referenciar, novamente.
1
Na oficina referida estiveram implicados estudos de textos de Deleuze, Guattari, Derrida e Nietzsche, intercalados
com textos literários, obras de arte e projeções de vídeos. Foram utilizados fragmentos das obras literárias e poéticas
de Samuel Beckett, Clarice Lispector, Manoel de Barros e Arnaldo Antunes; visita às páginas virtuais de artistas na
internet, vídeos e imagens artísticas de práticas contemporâneas, tendo como destaque o trabalho de Eduardo Kac,
Orlan e Lígia Clark, bem como projeção, em DVD, da cinematografia de Agnès Varda.

37
Considerando que “[...] a vida deve ser traduzida, como processo de criação”
(Villani, 1999, p. 71), com esses elementos originais constitui um campo de variações
múltiplas e disjunções inclusivas, que compõe linhas de vida e devires reais, promovendo
fugas ativas e desterritorializações afirmativas de uma vida potente: “[...] eu posso me
expor, eu posso brincar, eu posso cantar, eu sou desengonçada. Certo! Eu posso ser
mais autêntica [...]”, garante uma professora sobre aquilo que lhe passou durante a Ofi-
cina que possuiu caráter lúdico de ativação de um estado crianceiro na vida cotidiana.

Um currículo e uma didática que podem (re)diagramatizar o mapa


do mundo

As traduções da diferença, feitas pelo Escrileituras, ampliam os repertórios


curriculares e didáticos, ao reler e reescrever, transladar e reexperimentar os acervos
artísticos, filosóficos e científicos, ou aqueles que foram marginalizados ou falsificados;
os quais, graças a ela, seguem vivos e ativos, em seus veios de criação. Consistem em
momentos chave na continuidade e descontinuidade da vida das obras e dos autores, das
estruturas e dos movimentos do mundo.
É assim que o Projeto leva a estabelecer um tipo autoral de vice-dicção, com lances
inventivos, que não deixa os textos e discursos assumirem um aparato estático e definitivo;
mas os obriga a permanecer em movimento labiríntico, carreando novos problemas
didáticos e enunciações curriculares. Transcriando a escritura e a leitura, o Projeto
Escrileituras faz a diferença do pensar e do viver; fornece um roteiro fabulador de como
educar, sob o signo da invenção; e (re)diagramatiza o mapa do mundo, por meio da alegria
de ler e da liberdade vital de escrever.

Referências
BARTHES, Roland. O rumor da língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
BECKETT, S. Malone morre. São Paulo: Códex, 2004.
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Artigo apresentado no Seminário Educação 2014 Educação e seus modos de ler-escrever em


meio à vidas, realizado em Cuiabá, MT, na Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT),
entre 23 e 26 de novembro de 2014, sob a coordenação de Silas Borges Monteiro e Edson
Caetano; publicado em Revista de Educação Pública, Cuiabá, MT, v. 24, n. 56, maio/ago. 2015.

39
DIDÁTICA-ARTISTA DA
TRADUÇÃO: TRANSCRIAÇÕES

Sandra Mara Corazza

Como, na área da Educação, pensar em termos dos processos de criação de cada


um de seus domínios? Como definir cada domínio por sua respectiva atividade cria-
dora? Nesse enfoque criacionista, o que a Pedagogia, o Currículo e a Didática criam?
Quais as especificidades dos seus atos de criação em processo? O que acontece
quando temos uma ideia em Currículo, em Pedagogia, em Didática? O Currículo e a
Didática seriam engendrados pela criação pedagógica? No caso deste texto: em que
consistem os meandros e limites de criação da Didática? O que é criar didáticas?
Como se dão as ações de ver, falar, escrever, interpretar e traduzir de maneira didática?
Como ocorrem a produção de informes e a irrupção de novidades didáticas? Para criar
em Didática, em que medida necessitamos de outros processos, como os literários,
cinematográficos, musicais, plásticos, científicos, filosóficos? Quais as diferenças entre
esses processos e os didáticos? Como desenvolver didáticas, a partir de um objeto, tema
musical, fórmula matemática, passo de dança, fato policial, ritmo, melodia, pintura,
filme, ensaio, romance?
De onde surgem as formas didáticas? A Didática carrega um capital prévio de
formas, tal como sugerido pela ideia de estrutura? Ou a forma didática é sempre inédita,
enquanto um fenômeno de auto-organização da matéria (Focillon, 2001)? A Didática

40
abala qualquer estrutura ou forma preestabelecida, segundo a sua mobilidade vai se
processando; a qual inclui até mesmo o ponto de vista criador? Os planos, esboços,
esquemas, definidos didaticamente, devem ser esquecidos, em algum momento, para
que sucedam rasuras, silêncios, grau zero? Como a criação didática atribui valor
e sentido a elementos de perceptos e afectos, fabulados pela Arte; das funções, pro-
duzidas pela Ciência; e dos conceitos, criados pela Filosofia (Deleuze; Guattari, 1992)?
Como a Didática opera com esses elementos, para torna-los didáticos? De que maneira
os didatas contemporâneos, criadores de didáticas (ANPED, 2012; ENDIPE, 2012),
processam esses elementos e os integram ao mundo educacional? Ao educar, cada
um de nós cria didáticas? Quais? Como? Quando? Onde? Por quê?
Tomando tais questões como desafios, este texto localiza a Didática como
resultante dos atos de criação pedagógica; e, ao mesmo tempo, como o meio em que
a própria Pedagogia funciona, ao atualizar-se em Currículo: “a didática, o que se cria
em Pedagogia, é um modo, um processo de atualização de uma ideia de natureza
pedagógica que se expressa em currículos” (Oliveira, 2012, p. 27). Pensa a Didática
como inseparável de variadas traduções e definições comunicáveis; embora provisórias
e sujeitas a contínuas reformulações. Considera os percursos, realizados na história da
Didática (Candau, 1984; Pimenta, 1991; Libâneo, 2012), como índices de processos
singularmente criadores de conhecimento, registro, memória, tratamento metodo-
lógico, relacional e dialógico. Encontra alegria no babelismo didático de diferença
e abertura, passagens e transposições, pluralidade e multiplicidade de influências,
textos e autores. Configura a Didática como um território transdisciplinar, translin-
guístico, transemiótico, transliterário, transartístico, transcultural e transpensamental;
que nasce e vive em diversas obras de diferentes línguas (Barthes, 2006).
Concebe, ainda, esse território didático indissociável de uma ética, de uma política
e de uma prática tradutórias, que realiza artistagens (Corazza, 2006; 2011; 2012a),
desde os seguintes apoios teóricos: a) filosofia da diferença, atinente à criação e ao
pensar (Deleuze, 2003; Deleuze; Guattari, 1992); b) teorias da tradução literária no
Brasil, que a tratam como processo criador, ao lado de Haroldo de Campos (1972; 1976)
e Augusto de Campos (1978; 1986); c) obra de Paul Valéry (1997; 1998; 2003), relativa
a exercícios do informe e método de criação; d) formulações didáticas contempo-
râneas, especialmente de Selma Pimenta (2011) e Vera Candau (2012), dentre outras.

DidáticArtista
É em transcursos e circuitos de tradução, que a Didática-Artista (DidáticArtista,
foneticamente) movimenta os seus processos de pesquisa, criação e inovação. Acolhe

41
e honra os elementos científicos, filosóficos e artísticos – extraídos de obras já rea-
lizadas, que diversos autores criaram, em outros planos, tempos, espaços –, como as
suas efetivas condições de possibilidade, necessárias para a própria execução; e, ao
mesmo tempo, como o privilegiado campo de experimentação, necessário para as
próprias criações. Com esses elementos, constitui um campo artistador de variações
múltiplas e disjunções inclusivas; que compõe linhas de vida e devires reais, pontos
de vista ativos e desterritorializações afirmativas.
Quando, em detrimento das normas formais, potencializa fluxos informes, que se
insinuam entre os blocos sensíveis e epistêmicos da Filosofia, da Arte e da Ciência,
essa Didática fissura as certezas e verdades herdadas. Eminentemente heterogênea,
maquina as suas composições contra a homogênese. Embora suscetível a sistemas de
ações estáveis, considera-se um território em processo, obra sempre aberta, distante
do equilíbrio e do apaziguamento; e, mesmo quando estabiliza as suas ações, encontra
maneiras de bifurcar-se, para ingressar em novos regimes de instabilidade. Executa
uma autopoiese, através de novas codificações didáticas, em campos de comutabi-
lidade e diferencialidades, que circunscrevem suas demarcações e funcionamento.
A principal matéria da DidáticArtista é a vida mesma, promovida por encontros
com formas de conteúdo e de expressão do mundo histórico, filosófico, geográfico,
científico, artístico e linguístico. Ao mesmo tempo em que se apropria dessas formas,
desafia as línguas que as produziram, liberando-as dos meios que as articularam.
Conserva, no entanto, traços dos elementos originais, transformando-os e agenciando-os
de maneiras inusitadas. O seu realismo não se reduz, assim, à mimese do real; desde que
busca, aí, o outro misterioso da realidade, que possibilita a existência didática criadora.
Contrária ao idealismo e ao racionalismo, suscetível a imagens de pensamento e
a problemáticas culturais, a Didática agita-se num misto de empirismo transcendental
(Deleuze, 1988), que valoriza a multiplicidade. Funcionando como resistência às
repetições do mesmo e luta contra a mediocridade da opinião, mescla e cruza o que
passou, o que nos afeta e os mundos possíveis por construir. O seu método de criação
possui orientação cartográfica (Deleuze; Guattari, 1997; Corazza, 2010; Kastrup; Passos;
Escóssia, 2010); composto por velocidades e lentidões, que transversalizam e cortam
em diagonal functivos, conceitos, perceptos e afectos. Para extrair acontecimentos
inteligíveis e sensíveis desses elementos, que persistem em seus corpos, estados
de coisas e seres, executa traduções das línguas originais de partida para a língua de
chegada (língua-meta, língua-alvo), que é didática.
Rejeitando modelizações confinantes, que requerem regularidades, médias e mé-
tricas, elege o processual e a reversibilidade. Construindo dobras didáticas no plano
de imanência (da Filosofia), de composição (da Arte) e de referência (da Ciência),

42
captura e libera as forças vitais, que agem sob as formas. Trabalhando as potências que
essas formas carregam, substitui a relação forma-matéria pela relação força-material.
Associando obras, autores e tradutores, em devires de mutação das culturas, favorece
culturas do dissenso. Reinventando significações, posições de indivíduos, comuni-
dades e grupos, cria novas linhas de saberes, sentires, fazeres. Realizando atos minori-
tários de ruptura e consonâncias, instala-se em regiões desconhecidas de problemas.
Revelando aspectos ocultos dos seres e circuitos inéditos de pensamento, transforma
momentos, lugares, incidentes e circunstâncias em móveis fecundos de experimentações.
Esse criacionismo didático movimenta-se através de procedimentos crítico-
genealógicos e exploratório-experimentais (Feil, 2011; Corazza, 2012b), que partem
de clichês – formas, sentidos, interpretações, indivíduos, identidades, conhecimentos.
Identifica, então, a imagem dogmática de pensamento, que lhes corresponde, em seus
pressupostos explícitos e implícitos de doxa e senso-comum (Heuser, 2010). Borra
e raspa os clichês, através de diagramas, ou conjuntos operatórios de traços pré-
individuais, involuntários, contingentes, não-representativos, não-ilustrativos, não-figu-
rativos, não-narrativos.
Nessas zonas de indiscernibilidade e indeterminação, a DidáticArtista segue de-
vires, ao produzir formas deformadas, figuras desfiguradas, paradoxos e não-sensos.
Ao arrancar e isolar o material, o figural e o jogo de forças (Deleuze, 2007) dos elemen-
tos científicos, artísticos e filosóficos, desfaz os efeitos sobrecodificados e redistribui
suas potências informais. Ao propor e desenvolver novas vivências relacionais de
alunos e professores com os elementos originais, injeta-lhes interesse e faz circular
vitalidade. Ao traduzi-los didaticamente, em cenários contemporâneos, torna notáveis
ideias já criadas e vivifica currículos; libera forças indomesticadas dos participantes,
onde quer que estejam represadas; desestratifica camadas sedimentadas de saber,
poder e subjetividade, trabalhando para que reencontrem a sua virtualidade.

Processo de tradução
Considerando que “a vida deve ser traduzida, como processo de criação” (Villani,
1999, p. 71), a tradução percorre a DidáticArtista, como um dispositivo que a desencadeia
e uma prática que a desdobra. Sua natureza didática passa a ser constituída pela tradução
de perceptos, afectos, funções e conceitos; vertendo-os das línguas em que foram criados
e expressando-os na cultura, no meio e na língua da Didática. Nesse processo tradutório,
distingue entre descoberta e invenção; já que a descoberta “incide sobre o que já existe,
atualmente ou virtualmente; portanto, cedo ou tarde ela seguramente vem”; enquanto
“a invenção dá o ser ao que não era, podendo nunca ter vindo” (Deleuze, 1999, p. 9).

43
A Didática funciona, preferencialmente, sobre o plano empírico-transcendental de
uma tradução-invenção, que liga o tempo ordinário e a produção de novos elementos
artísticos, científicos e filosóficos; não segue “linha reta, nem nas coisas, nem na
linguagem”; mas assume “desvios femininos, animais, moleculares” (Deleuze, 1997,
p. 12; Deleuze; Guattari, 1977). A tradução didática é, assim, uma espécie de “des-
tradução”; que não age como “teoria da cópia ou do reflexo salivar”; e sim como
“produção da di-ferença no mesmo” (Campos, 2008, p. 208); ou uma “operação contra a
corrente” que, mais do que transferir elementos para a língua didática, toma os originais
distantes “como ponto de chegada”; em direção ao qual expande a própria língua
(Mandelbaum, 2005, p. 198).
Nas relações educacionais, curriculares e pedagógicas, com os mundos da Arte, da
Filosofia e da Ciência, essa tradução introduz novos modelos, ideias, gostos, vocabu-
lários, sintaxes, estilos. Sendo mimética e não-mimética, a um só tempo, funciona com
a força motriz das mudanças, assegurando uma “sobrevida” dos elementos originais,
como “estágio do seu perviver”; para que vivam “mais tempo e também de modo
diverso”. Capaz de anamorfoses, quando reescreve e repensa os originais, torna-se
capaz “de ser ela mesma e um outro” (Paz, 1981, p. 11).
Acontece que, para a Didática da Tradução, todas as línguas são diferenciais. Pela
via do trânsito entre o original e sua tradução, requer diálogos entre elas, sob a con-
dição que cada língua aceite tornar-se dupla de si mesma. A tradução é, dessa maneira,
um ato político, que desfuncionaliza línguas instrumentais e aproxima distâncias, num
processo de transformação cultural. Em seus atos de traduzir, opera como meio, que
desestabiliza o próprio status quo da linguagem educacional. Revela-se como dissidente
das línguas legitimadas, transtornando suas palavras originais, para lhes devolver
“o sentimento do diferente, o poder de conceber o ‘outro’”, numa reconfiguração de
si própria. Vertendo, refratando, mesclando e reescrevendo saberes, desejos, sujeitos,
valores, planos de pensamento e culturas, enceta ações recíprocas entre as línguas
traduzidas; desapropria pertencimentos, liberando “referências a sangue, solo ou his-
tória coletiva”; alimenta-se de diferentes línguas, sem sofrer “de otite” (Matos, 2005,
p. 144; p. 139; p. 132).
Em estado de heterofilia e de anacronismo explícito, a tradução didática compar-
tilha línguas heterogêneas e simultâneas, modificando e desfazendo identidades
sedentárias dos elementos originais. Sob o fascínio das interinfluências trazidas pelas
linguagens contemporâneas, implica a invenção de um corpus crítico-seletivo, que liga,
criteriosamente, “tradução poética, operação metalingüística, paródia, carnavalização,
intertextualidade, literatura comparada e relações entre diversos sistemas de signos”
(Santaella, 2005, p. 222).

44
A novidade imprevisível das suas invenções exige que a Didática não traduza
tudo; mas privilegie aqueles elementos que mudam, afetam ou revolucionam cada
uma das áreas com as quais trabalha. Segue, assim, Augusto de Campos (1978, p. 7),
que afirma: “nunca me propus traduzir tudo. Só aquilo que sinto. Só aquilo que
minto. Ou que minto que sinto, como diria, ainda uma vez, Pessoa em sua própria
persona”. Por isso, traduz aquilo que, dotado de “obscuridade ou dificuldade intencional”,
apresenta maiores desafios, pois mais recriáveis se mostram, “enquanto possibilidade
aberta à recriação”; ou mesmo aquilo que releva de um projeto “de militância cultural”
(Campos, 1992, p. 35; Milton, 1998, p. 206).
A tradução didática é, assim, “transcriação e transculturação”; já que textos e
séries culturais “se transtextualizam no imbricar-se subitâneo de tempos e espaços”
diversos: “Transcodagem. Tropismo. Tradução” (Campos, 1976, p. 10-11). Consiste
numa questão de forma, mas também de alma, na ressonância do poema de Augusto
de Campos (1986, 2ª orelha):

re-criar é a meta/ de um tipo especial/de tradução:/ a tradução-arte// mas para


chegar à/re-criação/ é preciso identificar-se/ profundamente/ com o texto original/
e ao mesmo tempo/ não barateá-lo/ enfrentar todas as suas/ dificuldades/ tentar
reconstituir/ a criação/ a partir de cada palavra/ som por som/ tom por tom// é uma
questão de forma/ mas também/ é uma questão de alma

Dobra transcriadora
Ao dobrar as línguas originais sobre as próprias formas, a DidáticArtista parte em
busca de novos sentidos e valores, usando a reimaginação: “‘reimaginar’ (prefiro esta
palavra, no caso, ao conceito usual de ‘traduzir’)” (Campos, 1972, p. 121). Mesmo
que afectos, perceptos, conceitos e funções lhe pareçam, em princípio, linguística e
culturalmente intraduzíveis, a Didática recorre à “área da traduzibilidade” de textos
criativos (aos quais é atribuído o estatuto de impossibilidade), para “traduzir o intraduzível”
(Campos, 1992, p. 35). Assume, desse modo, a “possibilidade, também em princípio,
da recriação”, movimentando-se “por transcriações, a partir das latências do original”
(Matos, 2005, p. 137). Considerando que é da natureza da tradução ser infiel ao original,
sabe que toda didática criada não pode ser menos do que resultado de alguma artistagem,
dedicada a verter elementos que valem a pena: “Somente as coisas impossíveis são
dignas de ser feitas”; ou, “Impossível, claro – é por isso que faço” (Milton, 1998, p. 144).
Como prática teórica transcriadora, à Didática importa não reconstituir a informação
semântica ou formal de um elemento original; mas, reconstituir os movimentos de
sua língua e sistema de signos. Portanto, pode ocupar-se de: linguagem verbal e não-

45
verbal; elementos de estrutura e visuais; homologias fônicas e sintáticas; espacialização
e imagética visual; filmes e cartazes publicitários; combinações sonoras e coreografias
logopaicas; assonâncias, rimas, aliterações, métrica, ritmo, melodias, canções; fórmulas e
equações matemáticas; etc. Essas traduções não são funcionais, automáticas, etimológicas,
estruturalistas, hermenêuticas, celebrações epifanísticas, sobretraduções, semidecalques,
superafetações; também não soam como extravagâncias; não traduzem palavra por
palavra, linha por linha; não transmitem mensagens; não contém purismos acadêmicos;
não explicam os textos pelo contexto histórico, econômico, social, ideológico ou político.
Ao contrário, consistem em traduções, nas quais são postas tão altas potências
recriadoras, que os seus efeitos valem como se fossem as obras originais, vivas e
abertas (Paes, 1990; Laranjeira, 1993; Wanderley, 1993). Assumindo a realização
de transposições criadoras, a Didática da Tradução pode, ainda, ser designada por:
“transparadisação, transluminação, transluciferação mefistofáustica, bem como os
mais comuns recriação e reimaginação” (Milton, 1998, p. 208; Campos, 1987). Não
surpreende que as transcriações do Didata-Tradutor – ou Professor – sejam, mais ou
menos inventivas, segundo a sensibilidade e a capacidade artistadoras de cada um
(Jakobson, 2001; Campos, 2004).

Didata-Tradutor
O Professor não se obriga a transmitir o conteúdo literal ou verdadeiro dos ele-
mentos originais científicos, filosóficos, artísticos; não faz cópia, dublagem ou
fingimento; não é um bufão, escravo ou ladrão dos autores e obras que traduz; não busca
a autenticidade textual; não preserva a essência dos originais; não é um conselheiro,
que goza de intimidade com as obras; não trata o original como sagrado; não remove
a tampa de um poço escuro; não é filtro do autor ou chave do texto; não é fotógrafo,
taxidermista ou anatomista; não é filólogo, erudito ou paleólogo; não é o traduttore-
traditore (tradutor-traidor) do trocadilho italiano, nem o sourcier-sorcier (descobridor
de fontes e mágico) dos franceses; não é um autor-camaleão ou um “trad-revisor”; não
tira a casca, que reveste “a fruta original”, nem ergue um “manto real de amplas dobras”;
não faz “treinamento na selva”, nem protagoniza uma “ressurreição” (Milton, 1998,
p. 2-6; Santaella, 2005, p. 227).
Suas traduções, também, não têm o escopo de servir como simples auxiliares à
leitura dos originais. Ao contrário, esse Didata-Tradutor é um escrileitor (escritor-
e-leitor), que transcria e transcultura os elementos científicos, filosóficos e artísticos,
reconhecendo a sua própria produção, em meio a um “universalismo polimorfo e
cosmopolita”, de tipo novo: “transverso a governos, economias e mercados”; e que

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“instala em nós a diferença como condição de nosso estar com os outros” (Mandelbaum,
2005, p. 199; Matos, 2005, p. 134). Sem medo do novo ou medo do antigo, defende “até
a morte o novo por causa do antigo e até a vida o antigo por causa do novo”; desde que
“o antigo que foi novo é tão novo como o mais novo”; cabendo-lhe discernir entre eles
(Campos, 1978, p. 7).
Cultivando uma saudável empatia com os elementos originais, exercita suas fantasias e
habilidades amorosas, projetando-as em experimentações tradutórias. Usando a recriação
imaginativa, por meio de escrileituras (escritas-e-leituras) e diálogos críticos, encaminha
o estranhamento dos originais, num processamento singular de interpretações. Como se
possuísse mirada aléfica, exercita um olho criador, que condensa, presentifica e vivifica
o passado e a tradição dos originais, reinventando-os, por meio da tradução, como queria
T. S. Eliot (apud Campos, 1972, p. 110): “necessitamos de um olho capaz de ver o
passado em seu lugar com suas definidas diferenças em relação ao presente e, no entanto,
tão cheio de vida que deverá parecer tão presente para nós como o próprio presente”.
Não se contentando com repetições empobrecedoras, o Professor procede a uma
re-doação da forma, ao empregar recepções disseminadas dos originais, que prefi-
guram aquelas do “espectador de cinema, enquanto examinador distraído” (Oseki-
Dépré, 2005, p. 214). Reconhecendo-se como datado e situado, em sua contempora-
neidade, e necessitando tomar decisões criadoras, que confiram algum sentido aos
originais da Arte, da Ciência e da Filosofia, trata-os como diferentes de tudo aquilo que
ele mesmo poderia produzir em cada uma dessas áreas. E, quando não consegue efetuar
uma tradução que produza a diferença, presume ter-lhe faltado a imaginação necessária:
“se o tradutor não traz o seu próprio ser, seu relacionamento com sua sociedade”, o
resultado da tradução será “artificial, frágil e flácido” (Milton, 1998, p. 101).

Procedimentos didáticos
Nas ações de traduzir didaticamente, cada elemento original é concebido e tratado
como algo já criado, mas “visto por alguém que só pode enfocá-lo pela ótica do tempo
presente” (Campos, 1972, p. 112). Logo, os procedimentos tradutórios não compreendem
ou referem-se a sistemas prontos de interpretação; mas desenvolvem experiências, que
têm relação com modos de desterritorialização do existente. Por isso, pretendem que os
elementos didáticos, emersos dos originais, valham em lugar dos mesmos; para fazer
com que a Didática funcione criadoramente. Parafraseando Valéry (1945, p. 173), os
procedimentos didáticos não tentam impor à língua dos alunos aquela que os professores
não impõem ao próprio ouvido: “Isto é traduzir de verdade. Isto é realmente traduzir, é
reconstituir o mais próximo possível o efeito de certa causa”.

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Por conseguinte, o Professor é um agente de fluxos da invenção, reproduzindo
“o original com sua marca distintiva” (Milton, 1998, p. 221). Assim, suas traduções
transgridem as circunscrições sígnicas; rompem a relação aparente entre forma e
conteúdo; recusam-se a ficar atreladas à “tirania de um logos pré-ordenado”. Subversoras
por excelência, propõem-se, no limite, a ser operações radicais de transcriação; visando
converter, “por um átimo que seja, o original na tradução de sua tradução” (Santaella,
2005, p. 228).
Entretanto, mesmo que um elemento traduzido traga sempre algo de novo ao
mundo, “por força há de se manifestar através das ideias já prontas que encontra
à sua frente e arrasta em seu movimento” (Bergson, 2006, p. 129). Ou seja, o Didata
traduz ideias prontas; porém, o faz “sob o signo da invenção”, que rasura a origem
e oblitera a sua originalidade; visto que a tradução está, para ele, desde o início, dis-
posta “como espécie da categoria criação” (Campos, 1972, p. 111). Ao traduzir ele-
mentos já existentes, o Didata não os funde numa generalização ou síntese superior;
ao contrário, através de um projeto radical de intertextualidade, transcria-os; expondo-
se aos riscos que envolvem toda audácia e “aventura do involuntário” (Deleuze, 1988,
p. 270).
Transforma-se, assim, em um Didata-Artista (DidatArtista), envolvido em um
perigoso traduzir que é sempre “retraduzir, ao sabor das mutações da língua ‘cativa’
do original, transpondo-a”. Esse gesto rompe o dogma da unidade identitária entre
línguas de partida e línguas de destino; pois a tradução, em si mesma, manifesta que “o
caráter originário é sempre plural” (Matos, 2005, p. 146); e “libera a forma semiótica
oculta no original, no mesmo gesto em que se dessolidariza, aparentemente, de sua
superfície comunicativa” (Campos, 2008, p. 208; Benjamin, 2011). Conversando
com o elemento que traduz; promovendo a catarse de formas desconhecidas; e conju-
rando outros sentidos, o Didata descobre o autor “dentro dele mesmo” (Milton, 1998,
p. 140); intuindo que, ao traduzir, está encontrando uma solução possível para os
seus próprios problemas de criação (Valéry, 1984; 1991; 1996; 2009).
Alargando as fronteiras da linguagem educacional, como tradutor didático, o
Professor “subverte-lhe os dogmas ao influxo do texto estrangeiro” (Campos, 1976,
p. 35), por meio de: bricolagens de saberes e intuições; agenciamentos de elementos
heterogêneos e acontecimentos; processos de singularização e forças de experime-
ntação; fabulação de finitos abertos ao infinito; crivos no caos circundante (de-Fora) e
extrações de Ideias; evocação e deslocamentos do estranho linguístico; transformação de
elementos familiares e forças distantes em “mundos possíveis” (Deleuze, 1991; 1998).
Assim, cada uma das línguas originais, de que o Tradutor se ocupa, passa por tantas
transmutações didáticas, que acaba não sendo mais língua de ninguém.

48
Elementos isomórficos
Em cada Didata-Tradutor, habita, por conseguinte, um Autor; constituído por
lances inventivos, desde que traça “uma espécie de língua estrangeira, que não é uma
outra língua, nem um dialeto regional redescoberto, mas um devir-outro da língua”.
Tumultuando a linguagem da Educação, escava uma outra língua nas línguas originais;
fazendo com que estas sofram, por sua vez, reviravoltas, que as levam “a um limite,
a um fora ou um avesso que consistem em Visões e Audições que já não pertencem
à língua alguma” (Deleuze, 1997, p. 15-16).
Os procedimentos tradutórios implicam mais do que transportar ou transladar os
sentidos de uma língua para outra; visto que o elemento a ser vertido é recriado, de
acordo com um “estoque de formas”, referente ao domínio das possibilidades de
agenciamento “da língua para a qual o texto é traduzido” (Campos, 1972, p. 110).
Rompendo com o traçado reto da tradição, a Didática apropria-se dos elementos
originais da Arte, da Filosofia e da Ciência, tornando-os seus; e, neles, fazendo ecoar a
própria voz do Didata; de modo a não conseguir mais separa-la das vozes precursoras.
Assim, para que a língua-meta capture forças, repertórios, perspectivas e sentidos das
línguas originais, a maior responsabilidade do Professor é agir como um atualizado e
competente escrileitor daqueles elementos que são transcriados. A sua língua materna
será, a partir de então, a didática, usada para liberar as línguas precedentes.
A fim de realizar essa apropriação criadora, o Professor necessita apresentar: “nível
curricular”, para selecionar os mais importantes elementos filosóficos, artísticos e
científicos do seu tempo e espaço; “irreverência temática”, para privilegiar elementos,
obras e autores emergentes, marginalizados ou anômalos, que introduzem novos e
heterodoxos temas, questões e problemas; manejo da linguagem educacional como
instrumento de experimentação dos variados elementos das línguas; além de trabalhos
“de estruturação e de ajuste”, feitos em termos de artesanato (Milton, 1998, p. 209-210).
Suas recriações didáticas possuem uma ampla gama de formas à disposição:
orgânicas, analógicas, qualidades musicais, ironia, humor, tragédia, comédia, inter-
textualidade, metáfrase, imitação, misturas híbridas. Porém, mesmo realizando encontros
entre traduções e originais, a língua didática não pode perder o parentesco, a proximidade,
a vizinhança com as outras línguas. É preciso que o DidatArtista mantenha uma relação
de isomorfia (“paramorfia” – “do sufixo grego pará, ‘ao lado de’, como em paródia,
‘canto paralelo’”) entre os elementos originais e as traduções. Para que, operatoriamente,
as traduções didáticas consistam em “criação paralela, autônoma, porém recíproca”
(Campos, 1992, p. 35); que evitam “o problema das equivalências sem cair na ideia de
tradução-cópia do original” (Oseki-Dépré, 2005, p. 214).

49
Os movimentos de derivação e de ramificação por obliquidade das traduções
consistem, acima de tudo, em vivências interiores dos mundos e das técnicas dos
elementos originais, que causam novos efeitos ou variantes, que eles próprios autorizam
“em sua linha de invenção” (Campos, 1992, p. 37). Logo, a mira tradutória do Didata
é “produzir um texto isomórfico em relação à matriz, um texto que, por seu turno,
ambicione afirmar-se como um original autônomo, par droit de conquête” (Santaella,
2005, p. 225).

Trabalho crítico e técnico


O Professor domina a tradução quando coloca o “seu próprio ser dentro dela”. Para
tal, permite que uma tradução seja mais subjetiva “do que imitação e mais visceral do
que paráfrase”, escolhendo reproduzir o significado do original e ficar abaixo do nível
estético do restante; ou, então, garantir um equivalente próximo. Uma das normas básicas
da tradução didática fica sendo “verter não inverter” (Campos, 1986, p. 17). Além disso,
importa também não se entregar a traduções facilitadas (“pseudotraduções”), feitas com
termos preestabelecidos, que não possibilitam contato com outros modos de pensa-
mento e estilos de escrever e ler. Ainda, não fingir que os elementos de partida são
escritos na mesma língua de chegada; pois essa condição transmite uma “ilusão do
natural” e a impressão que as línguas são transparentes (Milton, 1998, p. 167).
O trabalho prévio às traduções é, primeiramente, crítico, no sentido poundiano
da palavra crítica, isto é: “uma penetração intensa da mente do autor”; em seguida, o
trabalho torna-se técnico, ou seja: “projeção exata do conteúdo psíquico de alguém e,
pois, das coisas em que a mente desse alguém se nutriu”. Ao desmontar e remontar “a
máquina da criação” (Campos, 1992, p. 37; p. 43), em face do processo inventivo dos
elementos existentes – numa atitude de “crítica genética” (Gréssilon, 2007; Salles, 2008;
Willemart, 2000; 2002; 2005; 2008; 2009; Zular, 2002) –, o Didata-Tradutor home-
nageia a habilidade que os autores tinham sobre os elementos que criaram. A partir
daí, aquilo que ensina (escreve, lê, fala, faz) compõe um elemento propriamente
didático; que segue tons e contornos daquele (pretenso) original que tinha diante de si.
Sendo crítica e técnica, a tradução é uma “forma privilegiada de leitura” (Campos,
1972, p. 115), resultante de “uma leitura afiada, detalhada, quase musical” (Mandelbaum,
2005, p. 198). Leitura que compreende não a simples descodificação do elemento
original; mas, o mapeamento das condições, em que foi criado, em termos do espaço-
tempo que ocupa na língua e na cultura de origem, na literatura da área, no conjunto
da obra do autor. Na continuidade, o movimento é o do trabalho transcriador; por meio
do qual os elementos didáticos são transvertidos.

50
Toda leitura (difícil) é uma tradução, como afirma Valéry (1956, p. 4): “qualquer
tipo de escritura que necessita de um certo tempo de reflexão é tradução”; e “não há
nenhuma diferença entre esse tipo de tradução e aquele que envolve transformar um texto
de uma língua para outra”. Por isso, a Didática é eminentemente crítico-vivificadora,
que revolve as entranhas dos elementos artísticos, científicos e filosóficos, para trazê-
los novamente à baila, em outros corpos linguísticos, pragmáticos, intelectuais; desde
que a sua tradução é “uma das melhores formas de crítica”; ou, pelo menos, “a única
verdadeiramente criativa, quando ela – a tradução – é criativa” (Campos, 1978, p. 7).

Estratégia de renovação
Através da DidáticArtista da Tradução, o velho é tornado novo, seguindo a
máxima de Ezra Pound (2006): Make it New – isto é: renovar, vitalizar, dar nova
vida àquilo que passou. Ao traduzir os elementos filosóficos, científicos ou artísticos,
a Didática reconfigura-os, inventivamente, num palimpsesto que ultrapassa qualquer
limite disciplinar; inclusive os próprios. Em suas operações programáticas, lida com a
tradução, tanto no aspecto micro de procedimentos transcriadores; quanto no aspecto
macro, sistêmico, de seleção dos elementos a serem traduzidos. Guiada pelo valor
da interlocução crítica com o alheio a si, anima-se na confluência isomórfica entre
esses elementos e aqueles transcriados, tornados didáticos.
Na produção de traduções, o Didata considera “boas” aquelas que funcionam; isto
é, que atribuem Vita Nuova aos originais e passam a sensação que eles ainda vivem.
Considera traduções didáticas “ruins” aquelas que matam a vitalidade para pensar, ler
e escrever o elemento traduzido, tornando-o desqualificado, fácil, trivial ou comum.
O erro elementar do Professor é conservar o estado da própria linguagem educa-
cional, sem deixá-la ser afetada por outras línguas; e a sua maior covardia (diante
da aparente impossibilidade de traduzir) é desistir de realizar as traduções, antes mesmo
de começa-las ou de termina-las.
Em Didática, uma tradução será honestamente exitosa, se assumir a função de um
verdadeiro elemento científico, filosófico ou artístico; não apenas como uma tradução,
que queda em lugar desses elementos. Assim, em vez de mera representante ou
substituta dos perceptos, afectos, conceitos e funções, a tradução será eficaz se, após
minuciosamente trabalhada, tornar-se autônoma como uma obra de Arte, de Filosofia
ou de Ciência. Isso acontecerá, se guardar, com os elementos de partida, relações de
reimaginação, para além do literalismo rudimentar e da banalidade explicativa. Então,
as traduções do Professor-Artista poderão, por vezes, tornar-se mais importantes do que
os originais; desde que a língua didática mostre-se digna de repercutir os seus impactos,
enquanto estratégia de renovação dos sistemas educacionais e culturais contemporâneos.

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Este artigo foi publicado em Mutatis Mutandis, Medellín, Colombia, v. 6, nº1, 2013; com o título
Didática-artista da tradução: transcriações do currículo, foi publicado no livro O que transcria
em educação? Porto Alegre, RS, editora UFRGS; Doisa.

55
DIDÁTICA DA TRADUÇÃO,
TRANSCRIAÇÃO DO CURRÍCULO
(UMA ESCRILEITURA DA DIFERENÇA)

Sandra Mara Corazza

O problema e a poética

Não nos propomos, aqui, a resolver algum problema existente, mas, a desenvolver “as
implicações necessárias de uma questão formulada”; isto é, a “mostrar como as coisas
não seriam o que são se a questão não fosse essa” (Deleuze, 2001, p. 120). Nesse sentido,
objetivamos cobrir a descoberta e a invenção do seguinte problema: do ponto de vista da
filosofia da diferença, o que criamos em educação? Em termos dos processos de criação,
o que fazemos quando educamos? O que se passa, na cena dramática da aula, quando
ensinamos as matérias criadas pela filosofia, pela arte e pela ciência (Deleuze; Guattari,
1992), presentes nos currículos? Apesar dos fatores adversos, como conseguimos
cultivar um gosto por educar e prosseguir educando? De que maneira ocupamos esse
nicho prazeroso de criação no campo educacional?
Entre as implicações, daí derivadas, fazemos aparecer a didática da diferença –
antes de tudo, uma perigosa expressão. Acontece que, quando essa expressão dá vida a
um problema, que nunca poderia ter surgido sem ela, e dizemos didática da diferença,
sabemos o que nomeamos? Sabemos quem, quando, o quê, em que circunstâncias, qual
o tipo disso que nomeamos?

56
Ora, para ser filosoficamente honestos, consideremos que, por definição, didática
e diferença seriam incompossíveis; logo, a princípio, uma didática da diferença seria
impossível de ser pensada. Embora, talvez, pudessem existir didáticas para as dife-
renças – entendidas ao revés do conceito de diferença pura, enquanto condição ima-
nente ao ser (Deleuze, 2009) –; as quais se disporiam, desde o século XVII, como uma
didática normativa, enquanto “caminho fácil e seguro de pôr estas coisas [bons costumes,
vida presente e futura, fundamentos e verdades] em prática com bom resultado”
(Coménio, 1985, p. 43). Didáticas que, como ordenamentos das percepções sensíveis
ou do conhecimento da natureza das coisas, agrupariam e comprovariam fatos parti-
culares para chegar a conceitos gerais e vice-versa. Naquilo que nos toma, em relação
à diferença pura, tais didáticas só poderiam ter, por missão, regulá-la, minimizá-la
ou, mesmo, exterminá-la, como multiplicidade heterogênea, potência de invenção do
imprevisível e força de produção da novidade.
Contudo, se alguma didática, em meio à diferença, é – possível – como experi-
mentação de pensamento, escritura e leitura (escrileitura) –, podemos dela falar
como uma didática da tradução (Corazza, 2011; 2012; 2013a; 2013b; Dalarosa, 2012;
Oliveira, 2012). Tradução da tradição – considerada “coisa aberta” (Benjamin, 2008,
p. 65) –, a qual apenas merece este nome porque resulta das escolhas e mediação,
lembrança e escrileitura dos signos traduzidos: inicialmente, da ciência, da arte e da
filosofia pelos currículos; e, daí, para a cena da aula.
Tratamos, desse modo, a concepção de didática, enquanto um movimento do
pensamento, uma direção tradutória dos atos curriculares – por si próprios, trans-
criadores de elementos artísticos, filosóficos e científicos. Tradução, que implica menos
transportar ou transpor (Chevallard, 1985) os sentidos de uma língua para outra e
mais verter ou recriar: dotando-se da consistência de romper com o estabelecido; em-
preendendo novos recomeços; apropriando-se do antigo ou estrangeiro e tornando-os
seus, ao entrecruzá-los com a língua didática e fazer ressoar a sua voz.
Para essa didática da diferença, não existe “linha reta, nem nas coisas, nem na
linguagem”; de modo que a sua língua “tem de alcançar desvios femininos, animais,
moleculares, e todo desvio é um devir mortal” (Deleuze, 1997, p. 12). Talvez, ela também
possa ser chamada didática da des-tradução, não “como teoria da cópia ou do reflexo
salivar, mas como produção da di-ferença no mesmo” (Campos, 2008, p. 208); ou,
operação contra a corrente, que transfere algo do original (sempre plural) para a língua
de chegada, expandindo a própria linguagem (Ottoni, 1998). Didática que se encontra
implicada e articulada a uma teoria criadora da literatura (Oustinoff, 2011); e, por
isso, não é movimentada por uma tradutologia ou ciência da tradução (Silveira, 1954),
mas tributária de uma “poética do traduzir” (Meschonnic, 2009; 2010; Serres, 2010).

57
Poética experimental, que produz efeitos epistemológicos e pedagógicos, contrários
ao cientificismo estruturalista, de vocação positivista, ope-racionalizada como uma
estratégia contra a manutenção dos dogmatismos e, portanto, inseparável de uma
transformação das relações interculturais: “Conceber a tradução como fato cultural
é, antes de tudo, entender sua prática como propiciadora de encontros e intercâmbios
linguísticos e interculturais” (Ferreira, 2011, p. 24; Galery, 2009; Lefevere, 2007).
Enredada, ainda, em problemas filológicos (saber das línguas), literários e poéticos, a
tradução didática é feita com textos, considerados como discursos, e não exclusivamente
como línguas: “É porque não traduzimos propriamente línguas, mas discursos, que o
traduzir levanta questões de ética e de política acerca da subjetividade do tradutor e da
relação identidade/alteridade” (Brait; Souza-e-Silva, 2012, p. 25).
Para essa concepção, por meio de uma autoria ficcionalmente criadora, a própria
didática acaba funcionando como discurso, desde que conduz uma determinada in-
terpretação e avaliação; e, não mais sendo conduzida pelas existentes, alcança a lite-
ralidade dos perceptos, afectos, funções e conceitos. Para indicar as traduções didáticas
da diferença, usamos os seguintes termos e neologismos, entre outros: “transcriação,
transparadisação, transluminação, transluciferação mefistofáustica” (Campos, 2008,
p. 179); “bem como os mais comuns ‘recriação’ e ‘reimaginação’” (Milton, 1998, p. 208).

A (in) traduzibilidade e a pervivência


A conceitualização distintiva da didática da diferença, que especifica o seu
sentido, pela tradução, nos leva a entender o processo criador em educação, mediante
a reformulação da própria didática: em termos não mais de normatividade, mas de
transcriação do pensamento filosófico, artístico e científico; bem como da escrilei-
tura curricular. Como uma didática da transformação e do desdobramento dos origi-
nais, aponta para a constituição das formas (Focillon, 2001), num não-lugar e numa
não-relação, por meio dos atos de ver, falar, interpretar e escrever; de pensar do lado
de-Fora; e do que acontece quando alguém diz: “Tive uma ideia”, em pedagogia, didá-
tica e currículo.
Essa didática argumenta que a tradução consiste numa forma que encontra, nas
matérias originais – consideradas amorfas, em estado informe (Deleuze; Guattari,
1995) –, a lei da sua própria traduzibilidade, autorizada por sua linha de invenção. A
traduzibilidade de uma matéria, que tomamos como ponto de partida, permite indagar
se os originais seriam realmente possíveis de serem traduzidos; devido, afirma Ricoeur
(2011, p. 59), a “uma heterogeneidade radical que deveria a priori tornar a tradução
impossível”. Se Ricoeur recorre à prática da tradução para resolver essa intraduzibi-

58
lidade inicial, por meio da “construção do comparável” – “Grandeza da tradução, risco
da tradução: traição criadora do original, apropriação igualmente criadora pela língua
de acolhida” (Ricoeur, 2011, p. 68) –; já a posição de Benjamin (2008, p. 67) é a de
que “se a tradução é uma forma, a traduzibilidade deve ser essencial a certas obras”.
Parece ser o que experimentamos ao educar, isto é: ao atribuir uma tradução às
matérias – sejam científicas, artísticas ou filosóficas, expressas pelos currículos –, ecoa-
mos um determinado significado, que já existia nos originais, como a sua possibilidade
mesma de existir. Graças às traduções didáticas, as matérias de chegada mantêm en-
contros, mesmo fugidios, com as de partida; sem, no entanto, perder o parentesco, a
proximidade, a vizinhança entre as línguas, que é aquilo mesmo que as torna estrangeiras:
“uma espécie de língua estrangeira, que não é uma outra língua, nem um dialeto regional
redescoberto, mas um devir-outro da língua, uma minoração” (Deleuze, 1997, p. 15).
Com Deleuze, podemos pensar que esse procedimento de cavar a estrangeiridade,
na própria língua didática, ajuda a revirar a linguagem da educação, desde que:

uma língua estrangeira não é escavada na própria língua, sem que toda a linguagem
por seu turno sofra uma reviravolta, seja levada a um limite, a um fora ou um avesso
que consistem em Visões e Audições que já não pertencem à língua alguma (Deleuze,
1997, p. 16).

Assim, ao traduzir didaticamente, na cena da aula, realizamos uma operação de


“isomorfismo ou paraformismo”; ou, mesmo, uma “plagiotropia, cujo sinônimo seria
transculturação” (Campos, 1992, p. 35); já que não apenas os textos, mas as séries
culturais “se transtextualizam no imbricar-se subitâneo de tempos e espaços literários
diversos: Transcodagem. Tropismo” (Campos, 1976, p. 11). Essa transculturação cruza
planos de pensamento, de composição e de coordenação, desapropriando pertenci-
mentos e liberando-os de “referências a sangue, solo ou história coletiva” (Matos, 2005,
p. 142). Não só reconhece as diferenças entre culturas, mas, sobretudo, as produz,
num “universalismo polimorfo e cosmopolista”, “transverso a governos, economias
e mercados” (Mandelbaum, 2005, p. 199); o qual “instala em nós a diferença como
condição de nosso estar com os outros” (Matos, 2005, p. 133).
A didática da tradução considera que todas as línguas são diferenciais e que o seu
trânsito dos currículos às aulas, feito por meio da língua didática, requer diálogos entre
elas, com a condição que cada língua esqueça a própria origem, para se tornar dupla de
si mesma. Dotada de um anacronismo latente, leva as matérias a compartilharem espaços
e tempos heterogêneos e simultâneos, fazendo com que a sua tradução não assimile, mas
aproxime distâncias, numa espécie de heterofilia, que desfaz as identidades sedentárias.

59
Ao verter e refratar as línguas da filosofia, da arte e da ciência, que se alimentam
de diferentes culturas, a língua didática produz mesclas e correspondências críticas
entre elas; ao mesmo tempo em que encontra um meio, para desestabilizar e des-
funcionalizar a própria linguagem educacional, levando-a a dissidências, transtornos e
estragos, que lhe devolvem o poder de conceber as outras, numa reconfiguração de si
mesma, a partir da diferença e da multiplicidade.
As correlações entre essas línguas e os resultados da tradução didática consistem,
ao mesmo tempo, naquilo que existe de diferencial na própria matéria original e que
lhe assegura “a pervivência [Fortleben] do seu viver”, dirá Campos (2008, p. 189),
remetida “não à vida do original, mas à sua sobrevida, ao estágio do seu perviver”. A
traduzibilidade de uma matéria é, assim, o que lhe garante a atualidade, como dando
ativamente o que pensar, sentir, fazer, afirma Benjamin (2008, p. 69):

Traduções que são algo mais do que meras transmissões surgem quando uma obra
alcança, ao longo da continuação de sua vida, a era de sua fama (como costumam alegar
os maus tradutores em favor de seu trabalho), quanto lhe devem existência. Nelas, a
vida do original alcança, de maneira constantemente renovada, seu mais tardio e vasto
desdobramento.

Dessa maneira, a tradução não ambiciona atingir qualquer semelhança com o


original, desde que a própria vida deste consiste, desde sempre, em renovação das
suas marcas de historicidade. Mediante essa concepção didática e práxis tradutória, os
originais se modificam, ao mesmo tempo em que as línguas se transformam. Em vez
de as palavras originais se manterem e de a tradução desaparecer, ambas as formas são
transformadas e vivificadas pelas variações de leituras e variantes de escrituras, feitas
com e por dentro dos textos e discursos.
Sendo mimética e não-mimética, a tradução torna-se uma “‘sobrevida’ do texto
original”, que “vive mais tempo e também de modo diverso” (Paz, 1981, p. 11). Como
transcriadora da estranheza inicial das línguas, tanto de partida como de chegada, a
didática nos faz passar de uma metafísica para uma física ou pragmática da tradução
(Paes, 2008; Rónai, 1967; 1987; 2012), assegurando a dotação de provisoriedade e de
imanência às matérias.
Além disso, os conceitos de “tradução essencial” e “de língua pura”, na ontoteologia
benjaminiana, envolvem a ideia de uma retificação de falsos traslados e não uma
busca do autêntico no arcaico (Lages, 2007; Vieira, 1996). Seguindo-os, a didática da
diferença não tem como não trabalhar com os percursos históricos das matérias, por
meio dos quais os currículos e as aulas vêm transmitindo (de fato, traduzido), de maneira

60
mais ou menos falsa, os elementos artísticos, filosóficos e científicos. Campos (2013,
p. 170) sugere, como exemplo, a tradução do logos grego pelo termo latino ratio, que
serviu para falsificar o original. A didática realiza, assim, uma tradução restauradora,
que visa “liberar o sentido verdadeiro original, obscurecido pela tradição falsificadora”
(Campos, 2013, p. 171).
Tradução, aqui, não quer dizer sentido verdadeiro, mas, transcriação ou trans-
poetização, calcadas nas potências dos originais, pois toda tradução nada mais é do que
“a transposição de uma língua na outra mediante um continuum de transformações”
(Benjamin, 2008, p. 18). Tradução que adota uma concepção de linguagem não
instrumental; não fundada na transitividade da função referencial; nem centrada na
comunicação, e sim na nomeação; numa explícita posição de autorreferencialidade,
derivada da função poética.
Com os irmãos Campos, a didática da diferença trata a origem da língua pura
benjaminiana, “não como gênese, mas como salto vertiginoso”, convertendo-a em um
“’lugar semiótico’ – o espaço operatório – da transposição criativa (Umdichtung, ‘trans-
poetização’, para W. Benjamin; ‘transcriação’, na terminologia que venho propondo)”.
Desse modo, o “tradutor-transcriador como que ‘desbabeliza’ o stratum semiótico das
línguas interiorizado nos poemas” (Campos, 2013, p. 168):

Essa reconstrução (que sucede a ‘desconstrução’ metalinguística de primeira instância),


dá-se não por Abbildung (afiguração imitativa, cópia), mas por Anbildung (figuração
junto, parafiguração), comportando a transgressão, o ‘estranhamento’, a irrupção da
diferença no mesmo.

Movimentando-se nesse espaço de retradução, os elementos curriculares não são


comunicáveis, mas transcriáveis; pois é a transcriação que engendra “o corolário da
possibilidade, também em princípio, da recriação”. Desse modo, as traduções não podem
ser menos do que uma questão de arte: “não é surpreendente, pois, que o tradutor se
empenhe em traduzir o intraduzível” (Campos, 1992, p. 35).
Existe, aí, uma práxis tradutória, efetivamente materializável, desenvolvida em
um sistema de creative transposition (transposição criativa), válida para a concepção
da tradução de poesia, como diz Jakobson (2010, p. 91):

Só é possível a transposição criativa: transposição intralingual – de uma forma poética


a outra –, transposição interlingual ou, finalmente, transposição intersemiótica – de
um sistema de signos para outro, por exemplo, da arte verbal para a música, a dança, o
cinema ou a pintura.

61
Ao optar pelas traduções não essencialistas, tanto o currículo quanto a didática
da diferença realizam mais do que meras transmissões; condição que lhes atribui o
valor de dar prosseguimento ao vitalismo de: paisagens, blocos de sensações e lingua-
gens artísticas; ideias, argumentos, temas filosóficos; problemas, functivos e estados
de coisas científicos. Alcançando, “de maneira constantemente renovada, seu mais
tardio e vasto desdobramento” (Jakobson, 2008, p. 69), cada um desses originais
“evolui, cresce, alçando-se a uma atmosfera por assim dizer mais elevada e mais pura
da língua” (Benjamin, 2008, p. 73).
A tradução opera entre as línguas, como se transplantasse “o original para
um âmbito – ironicamente – mais definitivo da língua, mais definitivo ao menos na
medida em que o original não poderá mais ser transferido dali para parte alguma por
nenhuma outra tradução” (Benjamin, 2008, p. 74). É justamente desses procedimentos
tradutórios singulares que deriva o novo, como “processo de recuperação viva e crítica
do passaturo” (Pignatari, 1971, p. 8), desde que a sua apreensão “representa a continui-
dade e a extensão da nossa experiência do que já foi feito, e nesse sentido ‘quanto
mais nós compreendemos o passado, melhor nós entendemos o presente’” (Campos,
1972, p. 154).
Logo, quando ensinamos, traduzindo, tomamos as heranças, como tradição viva,
que dão o que pensar, e assumimos a concomitante responsabilidade de traduzi-las
como não mortuárias. Preparamos, assim, as condições de criação do que ainda não
foi criado, já que “o conhecimento efetivo do que-foi-feito é a melhor maneira de nos
prepararmos para fazer e entender o-que-não-foi-feito e o-que-se-pode-fazer-de-novo”
(Campos; Pignatari; Campos, 1991, p. 29).
As traduções didáticas são compostas quando incorporamos, afirmativamente,
o acaso ao processo criador, o que implica liberdade de escolha; mas, acima de tudo,
“liberdade vigiada por uma consciência seletiva e crítica” (Campos; Pignatari; Campos,
2006, p. 136). Por isso, necessitamos atuar, na relação curricular e didática, com critérios
de seleção e descarte, impondo “balizas (formantes) à pura fermentação do acaso”
(Campos, 1972, p. 26). Da transcriação dos nossos próprios elementos educacionais
depende a intensidade de permeação entre ações de pesquisa e prática docente com as
diversas manifestações artísticas, filosóficas e científicas.

O babelismo e a criação
Assim como não “existe uma Musa da filosofia, nem existe uma Musa da tradução”
(Benjamin, 2008, p. 75), também a didática é um trabalho árduo, que busca mais do que
a reprodução do sentido, referindo-se aos percursos, pelos quais a tradição tem produzido

62
e transposto aquilo que já foi dito, feito, sentido; mediante o que Derrida (2002,
p. 50) denominou “contrato de tradução”: “himeneu ou contrato de casamento com
promessa de inventar um filho cuja semente dará lugar à história e ao crescimento”.
Por esse contrato vital, realizamos a tradução como uma transconstrução, in-
terpretativa e valorativa, das matérias originais, desde que consideramos todas as línguas
insuficientes e, ao mesmo tempo, verdadeiras. Nessa tradução, a dinâmica da origem
e a necessidade de desconstrução se encontram, usufruindo a alegria do babelismo de
diferença e abertura, relacional e dialógico, passagens e transposições, pluralidade e
multiplicidade de línguas, influências, textos: “a questão da desconstrução é também
do começo ao fim a questão da tradução” (Derrida, 1998, p. 19).
Recorrendo ao currículo, a tradução percorre a aula, como um dispositivo que
desencadeia a sua dramaticidade, ou como uma prática que a desdobra, lidando com
a própria vida, tratada como processo criador, que é necessário traduzir. Fica, assim,
integrada a uma pedagogia ativa, dotada de força criadora, que privilegia os construtos
que afetaram ou revolucionaram cada área de conhecimento; bem como os elementos
mais obscuramente desafiadores, enquanto possibilidades abertas à recriação.
Capaz de anamorfoses, a didática da diferença é translingüística, transliterária,
transcultural, transpensamental, funcionando sobre um plano empírico-transcendental,
que liga o tempo ordinário à produção de algo novo. Suas interinfluências são trazidas
pelas linguagens contemporâneas, implicando-a na invenção de um corpus crítico-
seletivo, que interliga “os conceitos de tradução poética, operação metalinguística,
paródia, carnavalização, intertextualidade, literatura comparada e relações entre diversos
sistemas de signos” (Santaella, 2005, p. 222).
Como seres de linguagem da contemporaneidade, que transversalizam a tradição,
usamos a forma privilegiada de leitura e de escritura, que é a tradução, para trans-
codificar os elementos originais e mapear as suas condições linguísticas, históricas,
intelectuais, em que foram criados, além do espaço que ocuparam na língua e na cultura
de partida, na literatura ou no conjunto da obra daquele autor. Fazendo os originais
funcionar autonomamente e reeditando as suas potências – não como monumentos
gloriosos, mas como coisas criadas –, desmontamos e remontamos as máquinas de
criação, que os engendraram, como produtos supostamente acabados. Assim, mantemos
as assinaturas criadoras e homenageamos o conhecimento e a habilidade que os autores
tinham sobre aquilo que criaram.
Ao traduzir polifonicamente, cultivamos uma empatia com os perceptos, afectos,
conceitos e funções originais, desenvolvendo habilidades de nos projetar em suas
experiências precursoras; além de exercitar uma dedicação amorosa, para traduzir
essas experiências, numa recriação fantasística e imaginativa. Para tal, transladamos

63
os próprios signos em linguagem verbal e não-verbal; elementos de estrutura e visuais;
homologias fônicas e sintáticas; espacialização de poemas e imagética visual; filmes
e cartazes publicitários; combinações sonoras e coreografias logopaicas; assonâncias,
rimas, aliterações, métrica, ritmo, melodias de canções; e assim por diante (Plaza, 2010).
Mais do que reconhecer, compreender ou nos referir a sistemas de interpretação
prontos, desenvolvemos experimentações de desterritorialização, para dotar os origi-
nais de novos contornos, modelos, formas, gostos, vocabulários, sintaxes. Nesses
procedimentos tradutórios, ao reproduzir os originais com marcas distintivas, atuamos
como antropófagos, tal como Augusto de Campos (1978, p. 7) refere-se às suas tra-
duções dos trovadores provençais:
A minha maneira de amá-los é traduzi-los. Ou degluti-los, segundo a Lei Antropo-
fágica de Oswald de Andrade: só me interessa o que não é meu. Tradução para mim
é persona. Quase heterônimo. Entrar dentro da pele do fingidor para refingir tudo de
novo, dor por dor, som por som, cor por cor.

Operamos, por outro lado, traduções luciferinas, mefistofáusticas (no sentido


haroldiano), transgredindo os limites sígnicos e a relação aparente entre forma e con-
teúdo, na recusa à tirania de um logos pré-ordenado. Assim, a tradução torna-se uma
empresa satânica, desde que:
no limite de toda tradução que se propõe como operação radical de transcriação,
faísca, deslumbra, qual instante volátil de culminação usurpadora, aquela miragem de
converter, por um átimo que seja, o original na tradução de sua tradução (Santaella,
2005, p. 228).

Pretendendo valer como os próprios originais, a didática da diferença é um jogo


livre e rigoroso, eminentemente crítico-vivificador, que revolve as entranhas das ma-
térias, para trazê-las novamente à luz: “tradução é crítica, como viu Pound melhor que
ninguém. Uma das melhores formas de crítica. Ou pelo menos a única verdadeiramente
criativa, quando ela – a tradução – é criativa” (Campos, 1978, p. 7). Talvez, ao traduzir,
o que, primacialmente, estejamos fazendo seja vivenciar os nossos próprios problemas
de criação, como sugere Valéry (1956, p. 4): “qualquer tipo de escritura que necessita
de certo tempo de reflexão é tradução”.

O logocentrismo e as relações
Desde uma imagem logocêntrica da tradução (Arrojo, 1986; 1992; 1993; Derrida,
2002), é possível encontrar correlações entre as condições subjetivas, sociais e

64
profissionais dos tradutores e dos educadores, quais sejam: costumam ter a sua prática
tratada como invisível e raramente reconhecida; nunca conseguem fazer o mesmo ou ter
a mesma importância do que os autores dos originais; os resultados de seus trabalhos
são considerados inferiores, desde que sempre subsidiários de uma ciência, arte ou
filosofia; tanto uns como outros não serão conservados, pela história, como iguais aos
escritores, filósofos ou cientistas; ambos são vítimas de preconceitos, insuficiente-
mente remunerados e sobrecarregados de trabalho.
Seja do educador seja do tradutor, a tradição logocêntrica espera uma eficiência
sobre-humana ou um ato de magia, não muito definido, que neutralize as diferenças
linguísticas, culturais e históricas; há, para ambos, uma imagem moral, pressuposta, que
comporta a idealização dos originais e lhes atribui a capacidade de mantê-los inalteráveis,
apesar das constitutivas e inevitáveis diferenças; tanto na tradução como na educação,
vigora uma crença de que possam existir: O Texto, O Sentido, O Signo, A Palavra, A
Ideia, A Língua, O Problema, A Figura – enquanto conhecimentos e valores legítimos
e verdadeiros; os quais devem, tão-somente, ser transmitidos (Mounin, 1975; Steiner,
1975; Gentzler, 2009).
Em ambos os campos, ora circula um mito de que os saberes, como textos ou
discursos, possam ser anteriores e independentes das leituras e escrituras, que deles são
feitas; ora que possa existir um único original, presente e estável, unanimemente aceito,
depositário de significados conservados e imune às interpretações e valorações que
proliferam e o agitam, a partir de seu contato com as escrileituras que dele são praticadas,
sempre datadas e marcadas por um contexto, perspectiva ou ponto de vista.
Esse consenso dogmático acredita, ainda, que, tanto ao educar como ao traduzir,
devemos nunca trair os originais, desde que nos inclui em um binômio de teoria e prática,
cuja supremacia do primeiro termo exige a supressão do segundo subordinado; de
maneira que qualquer prática será sempre tomada como insatisfatória. Estabelecem-
se, assim, relações sociais e culturais, com a educação e o educador e com a tradução
e o tradutor, que nascem e se alimentam de expectativas idealizadas e das frustrações
concomitantes: as versões originais sendo consideradas plenas de essência e funcionando
como normas desejáveis e adequadas; enquanto as tarefas do educador e do tradutor
ficam, de antemão, fadadas à ineficiência. Nessa confluência entre o tradutor e o
educador, são-nos atribuídos os papéis de meros transportadores neutros ou de filtros
inócuos de significados, temas, conteúdos, os quais seriam preservados, em qualquer
tempo, espaço, língua ou cultura.
Talvez, por isso, exista, da nossa parte, uma frágil sensibilidade, em relação à própria
função autoral, interpretativa e valorativa. Como tradutores inevitáveis das funções
científicas, dos conceitos filosóficos e dos perceptos artísticos originais, sabemos que

65
se não os traduzíssemos, eles se transformariam em letras mortas. Um efeito disso é
que, ao abdicar das nossas interferências criadoras, em alguma medida, renunciamos
aos direitos autorais (em todos os sentidos), ingressando, muitas vezes, em modos de
profissionalização não dignos do seu real valor.
O senso comum logocêntrico também estabelece que os educadores e os tradu-
tores não necessitam de grandes habilidades ou de aprendizados específicos, visto que
qualquer um pode ser tradutor, bastando, no caso, ter algum conhecimento das línguas
envolvidas; ou que todos podem ser educadores, bastando conhecer as matérias a serem
ensinadas. Evidentemente, em ambas as profissões, a dimensão da pesquisa tende a ficar
relegada ao segundo plano, porque tanto o ato educativo quanto o tradutório são con-
siderados e tratados como aplicações, ilustrações ou simples transmissões, destinando-
se, de saída, à incipiência e à precariedade esperadas, o que leva à repetição do ciclo.
Se modificarmos essa imagem dogmática do pensamento acerca da educação-
tradução, atentando para a sua complexidade e delicadeza, e resgatando o seu valor,
autoralmente criador, reencontraremos a nossa devida importância civilizatória e
cultural, bem como as responsabilidades por ela implicadas.

O traduzir e o trovar

Traduzir & Trovar são dois aspectos da mesma realidade. Trovar quer dizer achar,
quer dizer inventar. Traduzir é reinventar. Sua meta é criação. Não de maneira exaus-
tiva: em percurso exemplificativo, pontilhista, forçosamente lacunar, mas nunca
indiferente. Há sempre uma escolha crítica, embora apenas uma restrita faixa do campo
do possível seja aqui abordada. [...] canteiro de trabalho [...] refaz-se na dimensão
nova da língua do tradutor. Uma didática direta (Campos, A; Campos, H 1968, p. 3).

Ao lado de Cícero, São Jerônimo, Lutero, Goethe, Schlegel, Arnold, Schleiermacher,


Humboldt, Dryden, Shopenhauer, Richard, Jonson, Croce, Montaigne, Rochefort,
Du Bellay, Chapman, Amyot, Pope, Hölderlin, Benjamin, Baudelaire, Poe, Mallarmé,
Valéry, Ortega Y Gasset, Borges, Pound, Mário de Andrade, Cortázar, Leminski,
Millôr, entre outros, a nossa tarefa, como educadores-tradutores, é singular: consiste
em encontrar nas línguas, curricular e didática, para as quais traduzimos, os ecos dos
originais, fazendo-os valer como tais.
Como uma força motriz de novos estilos – na área de estudos, formação e pesquisa
educacionais –, a tradução da diferença constitui um momento chave na continuidade
e descontinuidade da vida das obras e dos autores, das estruturas e dos movimentos
do mundo. Amplia os repertórios curriculares, ao reler e reescrever, transladar e

66
reexperimentar os acervos artísticos, filosóficos e científicos, ou aqueles que foram
marginalizados ou falsificados; os quais, graças a ela, seguem vivos e ativos, em
seus veios de criação. Faz com que estabeleçamos – com os alunos, entre nós e com os
saberes –, um tipo autoral de vice-dicção, com lances inventivos, que não deixam os
textos e discursos assumirem um aparato estático e definitivo; mas os obriga a per-
manecer em movimento labiríntico, abertos e cambiantes, carreando novos problemas
e enunciações.
É assim que a didática da tradução transcria os currículos, fazendo a diferença, como
uma crítica-clínica do pensar e do viver: fornece um roteiro fabulador de como educar-
traduzir, sob o signo da invenção; e diagramatiza o mapa do mundo, por meio da alegria
de ler e da liberdade vital de escrever. Vá que tudo isso porte ainda uma fulgurante
beleza...

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Artigo publicado em Pro-Posições, Universidade Estadual de Campinas, SP, v. 26, n. 1(76),


p. 105-122, jan./abril 2015, como integrante do Dossiê Didáticas da Diferença, organizado por
Alexandre Filordi de Carvalho.

70
ESCREVER E LER NA EJA:
OFICINAS BIOGRAFEMÁTICAS
DE TRADUÇÕES

Larisa da Veiga Vieira Bandeira


Sandra Mara Corazza

Porto de partida de uma pesquisa


O texto apresenta um recorte da pesquisa Oficinas Biografemáticas: um modo
de escrever e ler na EJA, que foi articulada ao projeto Escrileituras: um modo
de ler-escrever em meio à vida2 – Observatório da Educação (OBEDUC) este
aconteceu na proposição de oficinas biografemáticas, na infiltração e contaminação,
nos movimentos dentro, entre, e nos desdobramentos do Projeto Escrileituras.
As Oficinas Biografemáticas foram realizadas de forma sistemática, nos dois
semestres de 2013, no total de 60 horas/aula, com os alunos da Educação de Jovens
e Adultos, nas turmas de Ensino Médio e no segundo semestre também com a turma
EF 3-EJA, equivalente às 5ª e 6ª séries de Ensino Fundamental no Colégio de Aplicação
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Com esses alunos foram utilizados
textos, diários, cartas, fragmentos, além de notas autobiográficas de Anaïs Nin, Marina
Tsvetáeva, Lou AndreasSalomé, escritos entre 1870 e 1937, como propostas de leitura
e de escritura para a produção de novos sentidos. Reivindicando uma postura multi-

2
Edital 038/2010 – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), Instituto Nacional de
Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), sob a coordenação do Núcleo da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul (UFRGS).

71
valente do leitor estabelecida na coautoria entre quem lê e quem escreve simulta-
neamente, as Oficinas Biografemáticas operaram com a noção de Biografema, proposta
por Roland Barthes; que constituem uma estratégia de pesquisa e de produção para
pensar a escritura de vida aberta à criação de novas possibilidades de dizer e,
principalmente, de viver uma vida, acarretando num novo tratamento biográfico por
parte das disciplinas. A prática biografemática é uma postura de escritura e de leitura,
de seleção e de valorização dos signos da vida; a qual, ao invés de percorrer as grandes
linhas da historiografia, submete o leitor aos detalhes e aos devires. Para realizar essas
experimentações, as oficinas investiram em processos que problematizavam, indagavam
e transformavam os escritos em diversas formas, colocando a experimentação como
condição própria da aprendizagem. Os principais objetivos dessa prática consistiram em
trabalhar com a biografia sem limitar-se às histórias referenciadas, inventariando com
os alunos da Educação de Jovens e Adultos os traços dos textos dos autores trabalhados
e lançando-se à imprevisível produção de novos textos. Interessava no planejamento e
execução das oficinas a provocação de pequenos movimentos, fissuras, intensidades,
com a leveza necessária para o estabelecimento de outras relações textuais entre os
sujeitos envolvidos e a reverberação em suas vidas. Era necessário prever tempo e
espaço para os alunos produzirem escritas ficcionais, inventando conectores entre a
ficção e a realidade, o imaginário e as histórias biográficas, e para com os alunos de
EJA pensar para além dos códigos escritos, experimentando variações, transgressões
e aberturas para inéditas leituras e escrituras. Com um plano de trabalho organizado
em tempos, espaços e propostas específicas a cada encontro, as oficinas eram implicadas
por movimentos disparadores de pensamento, por meio da leitura e da escrita, que
buscaram transformar detalhes dos textos, sem significação prévia, em signos de escrita;
além de utilizar esses signos na produção de novos textos na potência da invenção de
sentidos.

Capitães, tripulação e bússolas


A realização da pesquisa requereu operações efetivas, seguindo um rumo de tra-
çados excêntricos de possibilidades, que precisava e devia ser colocado para que assim
houvesse um indireto, um desvio (Perrone-Moysés, 2012). Transitou conceitualmente
na e com a Filosofia da Diferença e deslocou-se nos rumos e desvios com Barthes
(1995, 2003, 2004, 2005, 2010), Corazza (2010, 2013), Perrone-Moysés (2012), Costa
(2010, 2011), Costa (2012), Feil (2010), Oliveira (2012), Dalarosa (2012). Para compor
o trabalho de pesquisa foram escolhidos textos de Lou Andreas-Salomé, Anaïs Nin e
Marina Tsvetáiieva, escritos entre 1870 e 1937, diários, cartas, fragmentos, além de

72
notas autobiográficas. A escolha dessas três autoras e as seis décadas em que esses
livros foram escritos, foram os recortes iniciais, as justaposições e as variações, que
derem espessura, língua e conexão aos afetos que pediram passagem. Os textos foram
tomados como a “lista aberta dos fogos da linguagem, esses fogos vivos, essas luzes
intermitentes, esses traços vagabundos dispostos no texto como as sementes que
substituem as noções comuns, as assunções fundamentais da antiga filosofia” (Barthes,
2010, p. 24). No caso de Marina Tsvetáieva, os textos escolhidos foram organizados,
selecionados e prefaciados por Todorov, alguns deles inéditos e resgatados de seus
manuscritos. Tsvetáieva referia-se ao anonimato da criação feminina, quando uma
mulher não escreve só por ela, ela o faz por todas as que se calaram e as que se calarão, e,
ainda assim, não são as mulheres, é uma mulher, sempre a mesma, é o grande anonimato,
“o imenso desconhecido, o imenso mal conhecido3”. (Tsvetáieva, 2008, p. 481). De
Anaïs Nin foi tomado o livro Fogo – de Um diário Amoroso – o Diário completo de Anaïs
Nin (1934-1937). Esses textos são fiéis à cronologia dos fatos, e à gramática da autora,
sendo que tal desejo fora expresso a Rupert Pole, seu amigo que se tornou seu executor
testamentário e que publicou o que era impublicável durante a vida de Anaïs Nin. Com
a sua morte nomeava-se então, o inominável, como indica Blanchot, (2011, p. 331):
Para que eu diga ‘Essa mulher’ é preciso que eu a evoque suprimindo sua carne, que a
torne ausente e a aniquile. A palavra me dá o ser, mas, ele me chegará privado de ser. A pa-
lavra é a ausência do ser, seu nada, o que resta quando ele se perde (Blanchot, 2011, p. 331).
O livro escolhido de Lou Andreas-Salomé foi Minha Vida, uma coletânea de obras
póstumas editadas por Ernst Pfeiffer. O primeiro título pensado por Lou Andréas-
Salomé para o livro era: Esboço de algumas lembranças de vida – exceto daquelas
que não se deixaram privar do direito de solidão. As autoras escolhidas e seus textos
indiscerníveis, impensáveis, “que em proximidade infernal, disparam o pensamento
que se metamorfoseia em diferentes níveis de argumentação e que funcionam como
máquina de guerra para combater os aparelhos que capturam o pensador educacional”.
(Corazza, 2002, p. 32). A pesquisa se fez extraindo consistência na dissipação dos textos
dessas mulheres, interrogou com os alunos de EJA as suas práticas de trabalho, exigindo
atenção aos indícios que deixaram, aos pormenores, alguns hábitos, alguns gostos de
escritura e criação contribuindo para derrubar o velho mito que continua a apresentar
a linguagem como o instrumento de um pensamento, de uma interioridade, de uma
paixão, ou mais, e a escritura, por conseguinte, como uma simples prática instrumental.
(Barthes, 1995, p. 199). O empreendimento de pesquisa exigiu a articulação do “oficinar”
e do “biografematizar” oficinar tomado aqui no infinitivo do traduzir, no infinitivo

3
Trocadilho entre inconnu (“desconhecido”) e méconnu (desconhecido, mal conhecido, mal apreciado). (N. de T.)

73
do inventar. De muitas e distintivas formas propostas pelos que antes se ocuparam com
os biografemas, foi necessário “lidar com a biografia sem se limitar à história referen-
ciada” (Feil, 2010, p. 82), e nas oficinas, as experimentações eram propostas no intuito
de inventariar com os alunos “os traços biografemáticos e com eles e sem garantias,
lançar-se à imprevisível produção de biografemas.” E, “enquanto prática de pesquisa
(tentou), imitar e simular a individuação rítmica da vida, na sua implicação com a
potencialidade de criação e fabulação de vidas novas” (Oliveira, 2010, p. 20; 52). “Na
tentativa de sustentar alguma forma provisória ao condenado a desaparecer, ao prestes
a ser fuzilado pelos acontecimentos ditos importantes”. (Costa, 2011, p. 15).

Possíveis mapas para um percurso


Em um mapa que se faz na medida em que se percorre seus possíveis caminhos,
a pesquisa se aventurou enquanto método biografemático na leitura e escrita de textos
já lidos, com Corazza (2010) apreciou os diálogos descontínuos, desvinculando-
se dos pensamentos rígidos, ousando indagar pelas forças e pela vontade de potência
que atribuíam sentidos a uma vida. Como um procedimento de pesquisa que servia
aos interessados em Vida e Obra (Corazza, 2010), e que não era determinado a priori
e manteve atento aos riscos da memória, e aos da inércia nos vínculos estabelecidos
entre estas, e como método tratou de cuidar especialmente das armadilhas fáceis que
surgiram por meio de junções e arranjos que procuravam suas causas e efeitos. “Como
procedimento de reinvenção de um autor, os alunos ocupavam-se da biografia como
material de criação” (Feil, 2010, p. 82). O método consistia em tomar do texto o objeto
desejável, colocando o autor, o texto e o leitor em constante variação inscrevendo-se
na proliferação de existências e de mundos, “implicando na pesquisa biografemática, a
potencialidade de criação, de fabulação de novas vidas”. (Oliveira, 2010, p. 52). O plano,
enquanto modo de intervenção consistiu em desafiar a construção criativa de unidades
mínimas de biografias, que convidassem os participantes das oficinas, a comporem “um
outro texto que é, ao mesmo tempo, do autor amado e dele mesmo – leitor” (Perrone-
Moisés, 1983, p. 15), e experimentar com eles, o prazer do texto que se realizava de
maneira mais profunda (e é então que se podia dizer que havia texto): quando o texto
“literário” (o livro) transmigrava para dentro de nossa vida, quando outra escritura
(a escritura do Outro) chegava a escrever fragmentos da nossa própria cotidianidade,
enfim, quando se produzia uma coexistência (Barthes, 2005).
Consistia em viver com um autor, o que não significava necessariamente, que se
cumprisse em nossa vida o programa traçado nos livros desse autor; tratava-se de fazer
passar para a nossa cotidianidade fragmentos do texto admirado (admirado justamente

74
porque se difundia bem); tratava-se de falar esse texto (Barthes, 2005) não de o agir,
deixando-lhe a distância de uma citação, a força de irrupção de uma palavra bem
cunhada, de uma verdade de linguagem. Para realizar tal experimentação foi “preciso
criar, como meio de imanência, uma pura contingência infernal, oposta à transcendência
da bondade absoluta e do amor humanista, que não implica nenhum interesse prévio,
necessidade, origem, história ou natureza da Educação, mesmo que malignos” (Corazza,
2002, p. 33). No conjunto de traços distintivos das oficinas Biografemáticas, a pesquisa
ousou uma experiência do pensamento que se fez no território da Educação e investiu
em processos que problematizavam, indagavam, transformando os escritos em diversas
formas, colocando a experimentação como condição própria da aprendizagem.
Como prática inventada, como uma metodologia produtora de sentidos, “as ofi-
cinas constituem um campo artistador de variações múltiplas” (Corazza, 2011, p. 53),
se tratou de oficinar, intervir investigativamente, encenar em cenários de autoria e leitura
com os alunos de EJA. O oficinar, como modo de pesquisa tem as suas regras de trabalho
alocadas na experimentação, em roteiros imaginários, em percursos escritos em mapas
provisórios, e como tal, necessita de constante registro e análise de suas relações de
aprendizagem e de suas dinâmicas. Seus fluxos e movimentos podem ser instantâneos,
efêmeros, solúveis em tudo que há. Como condição para o empreendimento foi im-
prescindível o conhecimento e anuência da instituição onde as oficinas aconteceram,
bem como o acompanhamento e o retorno desta sobre os ecos das oficinas no desem-
penho discente. Nem sempre as oficinas se misturaram nas práticas da escola, algumas
vezes ficaram confinadas aos tempos e às salas nas quais aconteceram, por isso, seu
caráter solúvel; não se misturaram, mas dissolveram-se, sem ocupar ou estagnar-se
nas linhas hegemônicas das matérias e disciplinas. Não pretendiam fazer ruídos para
atrapalhar, diminuir ou interromper os barulhos da escola, mas ecoavam nos corredores,
juntaram-se aos brados e dissonâncias, aos pequenos murmúrios. As oficinas eram
separadas das aulas “regulares”, das avaliações, mas não eram incompatíveis, ficavam
dependentes dos horários e calendários escolares, não se atrelavam aos planejamentos
das disciplinas, mas possuíam organização própria e variável; em seu empirismo de
pesquisa forneciam possibilidade do sentido como produção, da criação de conceitos
e os tratava como objetos de encontros, como um aqui-e-agora sempre inesgotáveis.
(Corazza, 2004). Nas práticas do oficinar (Corazza, 2013) inventavam-se em modali-
dades de didática, formulações didáticas, desenvolviam-se didáticas a partir de um vídeo,
de um texto, de uma poesia. Em atos de criação pedagógica, que nascem e vivem em
diversas obras de diferentes línguas (Barthes, 2006), oficineiros e alunos faziam do saber
uma festa. O movimento das oficinas era o do trabalho transcriador; por meio do qual,
os elementos didáticos são transvertidos. (Corazza, 2013).

75
Quando chegamos aos portos das línguas estrangeiras
O uso dos textos poéticos foram os preferidos pelos grupos de alunos e resul-
taram na aproximação com os originais escritos em russo cirílico que foram reunidos
no livro Depois da Rússia 1922-1925 de Marina Tsvetáieva e traduzidos por Nina e
Felipe Guerra. Na nota de tradução, os leitores são avisados de que o texto perde ao ser
traduzido do russo para o português: “o ritmo, aliteração, os neologismos” e “os sons de
uma língua, que carregam tanto sentido, e que são praticamente intraduzíveis, sem se cair
no melhor dos casos, numa outra poesia, pouco fiel e sempre pior” (Tsvetáieva, 2001,
p. 12). Como prática de desdobramento das Oficinas biografemáticas a tradução foi
tomada como um dos conceitos- chave da pesquisa desenvolvida, a qual auxilia na tarefa
e na aposta que as Oficinas fizeram em uma educação do acontecimento. A escolha do
texto que será trabalhado é sempre reveladora, e é também um dos princípios da prática
tradutória, que coloca em evidência a configuração de uma tradição ativa, uma operação
de crítica ao vivo, que promove frequentemente a ruptura, a quebra, à descontinuidade.
Os textos escolhidos devem exibir imediatamente os materiais a que se referem e os
padrões criativos que têm em mira, para que se tornem objetos de análise e abordagem
metódica, que se complementam com a intuição sensível e que coloque em ação, os
leitores na criação de outros textos. Na tradução, a combinação de elementos do texto
de partida, com elementos próprios do contexto em que se inserem, modificam-se no
processo de plagiotropia. (Tápia, 2013). Para Campos (1967; 2006), é necessário estar
atento, e, em constante influência vitalizadora com a tradição (sem esquecer o caráter de
ruptura da tradição), àquelas obras que respondam em movimento, em conexão, como
num ideograma, ou constelação. A transcriação da poesia foi o dispositivo transculturador
preferencial dos irmãos Campos, atividade tradutora provida de projeto crítico, para eles,
a tradução de um texto criativo será sempre recriação ou criação paralela, autônoma,
porém recíproca, quanto mais “inçado de dificuldades, mais recriável, mais sedutor,
enquanto possibilidade aberta de recriação. (Campos, 2006, p. 35)”. A transcriação é
aqui tomada para acionar as engendrações que decorreram da leitura dos textos das
oficinas. Um traçado para a localização temporal da reflexão teórica sobre a tradução da
obra de arte verbal, Dichtung4 é feita em Campos (2013), e auxilia no estabelecimento
das conexões da teoria derivada de uma prática que foi se ampliando ao longo do tempo,
e, no horizonte que propõe, o qual ocupamos como via da Didática-Artista no Projeto
Escrileituras, e nesse trabalho de pesquisa. Três momentos são definidores e fundantes
da prática radical da tradução poética, que era levada a efeito pelos irmãos Campos e

4
Expressão alemã para poesia ou prosa de igual complexidade no plano de expressão.

76
Décio Pignatari. Em 1962, em um primeiro ensaio, Haroldo coloca em relevo alguns
princípios norteadores da práxis tradutória, a recriação dos textos caracterizados como
obras de arte é decorrente da alegada impossibilidade de tradução dos mesmos. A
recriação é regida pelo critério da isomorfia, mais tarde, prefere falar em para-morfia
(1967), que se voltava para a iconicidade do signo estético e situava-se no avesso da
tradução literal. Em 1975, Haroldo passa a considerar a tradução simultaneamente como
Transcriação e Transculturação visto que além do texto, toda a série cultural que subjaz
a este, se transtextualizam no “imbricar-se subitâneo de tempos e espaços literários
diversos”. (Campos, 2013, p. 209). A construção desses conceitos no pensamento de
Haroldo de Campos, aqui brevemente expostos, traz densidade e visibilidade, para o
desafio pedagógico que se instala e que aqui nos interessa. Na tradução, todos os percursos
que derivam do original, pressupõem uma possibilidade teórica e metodológica, na qual
a “cópia do real”, a transmissão, a similaridade, são substituídos pela provisoriedade,
pela vivissecção implacável, pela remontagem e desmontagem da máquina de criação.
Como escrileitor, transcriador, produtor de analogias, diferenças, correspondências,
semelhanças, com convicções transitórias, suspensas pelos liames temporais em que
o processo tradutório se dá, o didata-artista reconhece a tradução como estratégia de
renovação, de onde “nasça uma pedagogia, não morta e obsoleta, em pose de contrição
e defunção, mas fecunda e estimulante” (Campos, 2006, p. 44). E que essa Pedagogia
possibilite, que, com mais precisão, possamos nos aproximar da parte viva da tradição,
e coloque à disposição dos novos poetas, prosadores, escrileitores, alunos, todo um
repertório insuspeitado e obscurecido pelas técnicas e pelo ensino da literatura.
Ao lançar mão desse conceito de tradução no trabalho de pesquisa aqui proposto,
e na medida em que a tradução dos textos traduzidos de Marina Tsvetáieva, serviram-
se às experimentações das oficinas, impôs-se também a necessidade de tentar traduzir
e operacionalizar o próprio conceito de Traduzir. Marina Tsvetáieva escreveu prosa,
poesia, ensaios, críticas, resenhas, cartas, diários e foi também tradutora. Traduziu entre
outras obras, Cartas a um jovem poeta de Rilke, para o russo, um romance francês de
Anna de Noailles, traduziu Proust e os seus próprios versos para o francês. Os alunos
durante as oficinas deliciaram-se com os textos dela. Fagocitaram Marina, na leitura
atenta de sua escrita severa, e, em tentativas de aproximações e alternâncias da poesia e
das traduções como processo criador, nos atos de ler, escrever e pensar. Na elaboração
de outros textos a conexão de Marina Tsvetáieva com os Irmãos Campos instala-se na
repetição da leitura transtemporal dos textos nas oficinas, uma relação musical, a que se
refere Campos (1967, 2006), com seus versos e prosa, traduzindo, o passado de cultura
no presente da criação. O exercício sistemático de repetida leitura proposto no início e
no final das oficinas biografemáticas enfatizavam a sonoridade das palavras do texto,

77
na cadência das velocidades estabelecendo na entonação da voz um jogo de recortes
que criavam as rupturas, os encaixes, as sobreposições. A leitura em voz alta para o
grupo/com o grupo dava consistência ao que Tragtenberg (2005) descreve como projeto
fônico, que leva em conta a velocidade geral da leitura e as alterações de andamento, com
seus accelerandos e ritardandos, assim a sonoridade das palavras validavam a “dinâmica
do fôlego da leitura” e a dimensão sonora dos versos. Para Tragtenberg (2005) essa
era a “validade” da poética Haroldiana, e que busca na transcriação o equilíbrio das
sonoridades, as alternâncias de ritmos, entre os sons e silêncios. Na nota dos tradutores, na
Antologia da Poesia Russa Moderna, os irmãos Campos apresentam e explicam o porquê
de as duas versões do poema À Vida, de Marina Tsvetáieva constarem na Antologia;
rata-se de duas traduções que funcionam complementarmente com respeito à transmissão
da informação estética do texto original. As duas versões são resultados diversos, de
processos criadores distintos, obtidos a partir de uma mesma teoria do traduzir. A poesia
de Marina Tsvetáieva oferecia-se, prestava-se para as experimentações das oficinas em
sobriedade rara, e concisão áspera, que para Schnadeiderman (1968) é resultante das
batalhas que travava entre as angústias de seu tempo e a musicalidade de seus versos.
Assim a poesia de Marina cumpre seu papel fundante, para Haroldo de Campos (2006),
“à poesia está reservado o papel de ampliar e renovar a sensibilidade, papel que não
pode ser negligenciado em sua especificidade e que não se confunde (embora não a
exclua a priori) com o engajamento a nível temático”. (Campos, 2006, p. 282). Nas
batalhas que os alunos travaram com a leitura dos textos densos de Marina nas oficinas,
o grupo em um processo colaborativo e criativo, aproximou-se do projeto didático que
Campos (2006, 2013) chamou de Laboratório de Textos, e que se sobrepõe à imagem de
oficina, na qual se põe em prática, e se testam as fórmulas e os conceitos. É onde através
da tradução, de forma privilegiada de leitura crítica, seriam conduzidos outros poetas,
amadores e estudantes aos mecanismos e engrenagens dos textos artísticos. Na tradução
do eu no outro, na integração/dissolução do sujeito no objeto (Leminski, 2013), no que
faz o gostar tanto de um texto, um livro, as oficinas inventavam-se em Laboratórios de
Textos. Haroldo de Campos (2006) propõe que o problema da tradução criativa só se
resolve em casos ideais, em um trabalho de equipe, forma que costumava trabalhar com
seu irmão Augusto de Campos, entre outros, e que tal trabalho exige: a) cooperação fértil,
b) uma ideia correta da tradução, c) uma dedicação amorosa e pertinaz. Nos laboratórios
de textos, o labor de tradução competente e válida como arte, seria dependente do
aporte complementar e integrado do linguista e do artista. O produto desse labor seria
inventivo, fiel apenas ao espírito do original transladado, e ao próprio signo estético.
Ficava bastante claro, que enfrentar os textos da oficina era um trabalho de equipe, de
colaboração necessária para poder dispor de seu esquema sonoro, da arquitetura de

78
uma estrutura de leitura própria da prosa e poesia de Marina, ao qual não era possível
desviar, desmontar e remontar, se não nos embrenhássemos no emaranhado de sua
estranha língua, nas traduções5 que tínhamos disponíveis. E dessas traduções, partir para
um outro texto, fiel e atento à sonoridade sincopada, aos ritmos inventivos, aos fios
transtemporais que Marina lançava para o grupo, e que se voltavam sobre si mesma, em
seu aspecto sensível, na configuração que esses disponibilizavam para novas relações
e conexões. Contrariando as expectativas da própria Marina Tsvetáieva que escrevia
ouvindo somente a voz da própria consciência, sem se preocupar com a expectativa de
seus leitores, ou com as pressões dos meios literários (Todoróv, 2008), e que em 1930,
começava a duvidar que seus textos conseguissem um dia encontrar leitores: “e parece
ser esta a verdade, toda – a verdade: minha pena só serviu mesmo às minhas visões”
(Tsvetáieva, 2008, p. 414), seus textos que agora encontravam e desafiavam leitores e
outras visões, servindo a nada, além da própria poesia, Todoróv, na escuta que ela fez
de seu mundo e descobriu as frases que permitiram aos outros, aos seus leitores do dia e
de sempre, nomear suas próprias experiências. A ampliação de repertório dos alunos que
participavam das oficinas ia além dos usos do dicionário, expandia-se na recuperação do
que havia de vivo e ativo no passado, (Campos, 1977), na tarefa da poesia sincrônica6,
nos veios de criação discerníveis, na exuberância dos textos de Marina do acervo que
era disponível.

Uma rota para prosseguir e desviar


Os poemas e textos escritos nas oficinas, decorrentes das leituras minuciosas
e repetidas, eram como prática de escrita, desdobramentos dos poemas de Marina
Tsvetáieva e dos textos de Anaïs Nin e Lou Andreas-Salomé que em suas traduções para
o português, já eram outros. Um poema e suas múltiplas e sempre inexatas traduções,
como exercício do impossível, pois uma língua em outra, sempre era intraduzível. Pensar
assim a escrita como exercício de criação que toma essa língua para criar uma outra
língua. Foi possível reportar-se com os participantes das oficinas a um uso próprio,
singular das palavras, de uma língua outra, com a qual, a escrita seria uma festa iniciada
antes de se efetuar. Talvez uma festa já iniciada quando, ainda na leitura dos textos,
nos fragmentos, nas frases e palavras que sublinhamos, copiamos, tentamos traduzir e

5
As traduções que dispúnhamos para as oficinas dos textos de Tsvetáieva, eram de Aurora Fornoni Bernardini (2008),
Nina Guerra e Felipe Guerra (2010), Manuel Dias (1995).
6
Refere-se Haroldo de Campos (1977) em manipulação livre da dicotomia saussuriana, a função da poética sincrônica,
tem “um caráter eminentemente crítico e retificador sobre as coisas julgadas da poética histórica. Para o crítico de
visada sincrônica não interessa o horizonte abarcante e esteticamente indiferente da visão diacrônica. (Campos, 1977,
p. 207)”, mas ainda assim “é embebido em diacronia e embutido na tradição” (Campos, 1977, p. 222).

79
com o que sobra delas partimos para outra escrita. Uma festa iniciada no trabalho da
leitura, na curvatura do cristalino, no momento em que acomodo, para obter o nível de
significação que me convém e captar na massa do texto o que necessita para conhecer.
(Barthes, 2003).
Ao propor aproximações aos textos das três autoras, em oficinas biografemáticas,
suspendendo o conceito de biografema nos cruzamentos de textos femininos, biográficos,
dramáticos, tais textos, sujeitaram-se a diversas leituras, a diversas traduções, tantas
quantas eram os alunos que delas participavam. Nas oficinas eram produzidos textos, na
intersecção das leituras, nos interstícios das discussões, em uma dinâmica de fôlego, voz,
entonação e escrita. Escritas que através de distintas operações, tentavam o estranhamento
necessário, a descontextualização precisa, em relação ao texto que era trabalhado, e
no qual a prática de escrita/tradução era afetada pela condição de “traduzibilidade”.
Campos (2013) ratifica a concepção de “matriz aberta” do original, na abordagem da
teoria benjaminiana, em seu texto Contra a teoria da cópia (Campos, 2013, p. 102-104).
Para Campos, a condição de “traduzibilidade” na teoria benjaminiana, trata-se de uma
“traduzibilidade” a ser mensurada segundo o “modo de formar” do original, segundo
a densidade deste e não o seu significado no plano da comunicação. Entre o original
e a tradução, a fidelidade estará na “redoação da forma”, na liberdade entendida como
“emancipação”, no choque violento da língua, o que torna mais dificultosa a tarefa, pois
desloca-se da sua acepção tradicional, acomodada, estagnante. Pela via da Didática-
Artista, as oficinas que aqui foram desenvolvidas, buscaram a “redoação da forma” dos
textos, e na forma sempre outra em que aconteciam, em procedimentos que se pretendiam
fecundos e estimulantes, que fizesse jus a uma pedagogia, não obsoleta, mas, viva e
vivicadora. Nas Oficinas a tradução afirma-se como um ato político, (Corazza, 2013)
“que desfuncionaliza línguas instrumentais e aproxima distâncias” que em seus atos de
traduzir, opera como meio, que desestabiliza a linguagem educacional. Guardando os
elementos de partida, a tradução obtêm êxito como prática de desdobramento das oficinas,
nas quais os artífices que dela participam em minucioso trabalho, tornam seus textos
autônomos, como o texto que fora por ela colocado em movimento, em digna repercussão
e impacto. Confirma-se como estratégia de renovação na medida em que produzem
traduções para os originais que ali circulam, e nos conceitos suscitados na tradução,
criam relação com outros conceitos que exportam, introduzem, coadunam práticas
pedagógicas, que se distinguem na densidade de seus currículos. Possibilita enquanto
estratégia, (Corazza, 2013), atos de criação pedagógica que resultam em uma Didática e,
ao mesmo tempo, como o meio em que a própria Pedagogia funciona, ao atualizar-se em
Currículo, reverbera em diversos efeitos e afecções, resultantes de processos criadores
distintos, obtidos a partir de uma mesma teoria compartilhada do ler, escrever e traduzir.

80
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Artigo publicado no periódico Interfaces da Educação, Paranaíba, MS, v. 5, n. 13, 2014.

83
CENALÁRIOS DOS ANPEDIANOS
BIOGRAFEMÁTICOS

Carolina Comerlato Sperb


Sandra Mara Corazza
Karen Elisabete Rosa Nodari

Meios anpedianos imaginários-artísticos envolvidos na Educação. Bio é vida,


grafema é obra que fabrica esta própria escrita biografemática, outra escrita e, ainda
mais uma outra a partir daqui. Cenas traduzidas artistamente por meios biografe-
máticos. Cenário movido em atualidade. Daí cenalário (cena + cenário) como ação
figurativa-imaginativa. Com sufixo ‘ário’ de gregalidade, por qual se enche de cultura-
língua-vida infinita difusa-derivada de ser-agir-reagir, está aí variável de significados-
elementos-atos estéticos. Signos traduzidos por personagens conceituais e criados
por figuras estéticas (Deleuze; Guattari, 2010) e por cenalários que movem pensares
e reagem ainda outros pensares sobre, com e entre sujeitos-objetos-ações de invenção
biografemática, entre alguns Barthes, autores mesmos-anteriores-posteriores e pesqui-
sadores de diferença-filosofia em Educação.
Suas entradas conceituais-emprestadas tornam-se fragmentadores de fragmentos,
fragmentando-se em cena, e neste Texto, entram saídas conceituais, ao mesmo tempo,
tomam encenadas e a encenar sob pesquisas curriculares-didáticas na perspectiva
filosófica e artística. Tudo isto fluxa-recorta-cria linguagens e personagens conceituais;
que partem de tradição-tradução inventiva e biografematicamente criada por meio

84
de cenalário universitário entre professores e estudantes de um suposto curso parcial
Filosofia em licenciatura (e implicitamente bacharelado, referindo por próprios signos
deste artigo cientifico) e de cenalário eventual entre professores e estudantes de educação
básica e superior; que explora amabilidades às artes de se educar como literatura livre
(não sequenciada), poesia (ou prosa, ou poema) de expressão criativa (não dependente),
história viva (não morta), teatro imaginário (não instrumentalizado), dança corporal (não
treinada), canto gestual (não memorizada), etc.; que anima-frutifica vida à “tradução da
obra de arte verbal” (Campos, 2013, p. 207), à produção biografemática-artista (Barthes,
1987, Corazza, 2013); à escrileituras transcriadas (Corazza, et al, 2014) e que movem
processuais curriculares-didáticos dançantes-poéticas por meio de Educação e Arte.
O conceito da ação teatralizada-dramatizada de ler-escrever interior é uma prática
de significação, uma prática de se nomear-e-agir, uma prática biografemática. Escrever-
ler cenas também são próprias biografemas. Cenalários expostos e movediços por
procedimentos metodológicos de se escrever signos em ação e criar-agenciar relações
apaixonantes e apaixonados de ler-escrever breves, pontos, traços, rastros, planos, tra-
jetos, nunca em “extensão histórica de sua significação” (Barthes, 1987, p. 73), e sempre
em significação última, “onde o pensar é realmente produtivo, onde é criador, ali ele
é sempre também um reagir” (Adorno, 1995, p. 17) de novas significações ao artistar
próprias educações e ao educar próprias artes. Nisto, “não há circulação permanente
de significações” (Corazza, 2003, p. 3), pois então, sempre há de se circular livre e
criativamente por significações. E tornam-se extensos cenalários além desta extensão
intensiva.

D[essa] vez...
– Mas o que é ANPED? – Questionou-se Samie, estudante-coruja de palavras,
olhando o site divulgado de ANPED SUL 2016. Nesse espaço em ato, era de estilo
grego-e-moderno, de cores indefiníveis, e sentados na forma de U, era também de
pensamentos-tempos-virados filosóficos. Cenalário pulsado “à filosofia uma história e
também uma geografia agitadas, das quais cada momento, cada lugar, se conservam,
no tempo, e passam, fora do tempo” (Deleuze; Guattari, 2010, p. 16). Fora do Espaço-
Tempo Cristal (algo que uma pessoa fica com olhos fixados à luz imaginada, ao mundo
interior), sempre leitor, tradutor e criador. Dentro deste tempo presente, tendo “uma
sucessão de instantes não faz o tempo; ela também o desfaz; nele, ela somente marca
o ponto de nascimento, sempre abortado” (Deleuze, 2006, p. 76). Em cena, em ação,
os atores-estudantes-professores produzem e criam seus pontos de nascimento filo-
sófico-babélico, antes, de envelhecimento de História de Filosofia (de conceitos já

85
significados), ousando em suas próprias singularidades singulares de criação, explo-
dindo os eus [personagens de criação] e outros [conceitos-ferramentas-metodológicas]
em distintos e múltiplos modos de expressão, seja poética, linguística-e-filosófica,
literária, artística. E, agora, entram em ação:
– Bem, veja em outro lugar online, veja o ANPED Associação Nacional de Pós-
Graduação e Pesquisa em Educação. Entendo-te inocente dessa ignorância, não vale-
ria saber sigla sem conhecer seu conceito...isso me lembra das siglas Libras, ocorre
o mesmo, muitas vezes vimos Libras em vez de Língua de Sinais Brasileira, ou língua
brasileira de sinais, não é? – Disse Taylor, docente em ação.
– Pouco importa? Importa? Samie, vejamos a seção de inscrições, em que expõe
o nome de (ou da?) ANPED que é uma reunião marcada de pós-graduação entre
pesquisadores, estudantes e participantes ouvintes-surdos. – Invadiu Zilu, sinalizando,
mantendo atenção à colega.
– Mas, Zilu, Taylor, Samie, essa Associação funciona com deposito de valores,
mas o que realmente ela atua? Gastamos dinheiro de nosso suor e recebemos o que?
Reconhecimento cientifico? – Agitou mãos da Molly, com lembranças magoadas de
acontecimentos últimos na ANPED/2012 em Porto de Galinhas/PE, onde não atendia a
acessibilidade linguística (intérpretes de Libras) aos pesquisadores Surdos (sinalizantes
de Libras).
– Não sei como começar com algum Autor e qual Obra? Qual problema devo
selecionar? Apontar problematizações e apresentar argumentações? – Questionou ino-
cente e novamente, Samie.
– Como diria Bachelard (2008, p. 183), “o passado de cultura não conta... é preciso
estar presente... no êxtase da novidade da imagem”, também lembremos de ditos
deleuzianos e guattarianos (2010, p. 68), que “a história da filosofia apresenta tantos
planos muito distintos”. Ah, tem mais… “Cada um tem sua maneira sempre recomeçada
de relançar a transcendência; e também, mais profundamente, em sua maneira de fazer
a imanência”, já que sinalizo essas palavras transcendentais e propomos lançar-escre-
vendo nossos pensamentos e produções em plano imanentemente artístico...
– Certamente, professora! Como diria Corazza (2006, p. 27), em sua relação com o
devir, que remete ao passado e ao futuro simultaneamente”. O passado não está escrito.
Nem o Futuro. Tão somente o presente. Com criação assim, bem se imagina, bem se
vê. Mas ora, mais uma nova dor de cabeça: eventos em fogueira, não sei mais por onde
começar! – Respondeu, perdidamente, Zilu cansado do excesso de eventos promovidos
no Brasil.
De longe, Taylor os observa e se distrai fisicamente e manipula pensares de como
escrever um artigo relacionado entre Educação e Arte. Decide mexer no computador

86
e navegar pelo site do ANPED SUL, leu sinalizando: “O tema Educação, movimentos
sociais e políticas governamentais, e a inspiração da poesia de Paulo Leminski [...]”.
Parou de sinalizar, distraindo-se fisicamente e mantendo olhos mentais somente à sua
frase poética: “Não discuto com o destino, o que pintar, eu assino”. Percebeu a turma
silenciosa, visualizando expressões faciais de má vontade da Molly e do Zilu e, res-
pirou inspirando-se em signos gestuais:
– Este instante, presente, deste tempo, forma e transforma o passado como passado.
Abordamos, desde já, os presentes, inventando nosso Evento! Samie pode entrar como
leitora-aprendente, Molly como escritora-incluída, Zilu como criador-concentrado
em algo. Podemos traduzir e transcriar nossos “algos”, por exemplo, como eu tenho
de publicar, cumprindo uma das exigências universitárias de meu doutoramento, como
Zilu tem de produzir algo, quem sabe, depois escolhe um só evento, para começar...
– Evento filosófico?
– Ou seja, artístico!
Samie e Molly responderam complementando um ao outro, animados, e Taylor
continua agitando mãos tão femininas:
– O que e como movemos e politizamos social, governa e poeticamente as artes?
Vamos explorar criações artísticas, e no próximo encontro trazermos nossas criações
e compartilharmos expressões de se dar significação, ok? É claro, antes com signos
belamente conceituais de autores que nos inspiram como professores muito boa di-
dática de escritos, como os autores além-edipianos, bopianos, pensadores de diferen-
ças puras, tradutores-escrileitores... – Parou de falar-sinalizar ao ver suas cabeças de
estudantes-futuros professores navegadas nos mares nuvens. Viu Molly, que estava
no pensamento persistente de que o evento da ANPED fosse acessível com traduto-
res-e-intérpretes de Libras, olhou Samie, concentrada escrevendo no seu diário e logo,
recebeu uma resposta neutra expressada pelo rosto do Zilu.
– Vamos lá, entramos agora em ação, resolvendo tais coisas: divulgação, organi-
zação de temáticas, reservas locais, etc....

Dia marcado...
O evento aconteu na Praça Pública, no espaço arquiteto, com aquele grande pátio
de andar patinando em chão “liso”, enquanto uns descansam patins, buscam ajeitar um
círculo de se sentar, alguns traziam almofadinhas pequenas, outros colocavam seus
moletons, outros, relaxados, sentados à espera de que chegassem todos a inaugurar:
– Bem-vindos Educadores&Escritores: gostaram de um pouco de atividade cor-
poral, ou seja, física? Percebo alguns rostos mudos, uns surpresos, e outros, curiosos.

87
Isso é uma atividade interdisciplinar... Agora vem aí Taylor, transdisciplinar querida
– Suspirou um ar calorosamente gasoso, Tim em sinalização, que acabara também
de patinar.
– Bom dia a todos, agradeço ao Tim, agradeço à vocês presentes. Bem-vindos,
daí para cá, é uma oportunidade de expormos juntos problemas, ações, criações...
Não como “Professor” ou “Estudante”, muito menos “Ouvintes”. Aqui estamos como
educadores de vidarbos, conceito enriquecido e enriquecedor que Corazza (2013)
nos colabora. Vidas-e-obras, produzidas nesta produção e pela produção desejante
(Deleuze; Guattari, 2011). Também como escritores de pensamentos fragmentários
e fragmentadores, multipliquemos ainda, outros novos fragmentos neste lugar onde
atuamos como professor, ou estudante de educação básica e de educação superior.
Comecemos a sentar, por favor. – Acenou as mãos como um sinal gentil e alegremente
indicando um ato de se mover, e continua, Taylor em ação:
– Este evento tem por objetivo “Our mission is to enrich and empower Deaf
artists7” para movemos-nos, neste presente, como um encontro potente de persona-
gens sinalizadores por signos gestuais [e também desses signos palavrários]...
– Mas espera aí, reconheço esta frase, que parte do site inglês, na verdade, diz:
“Nossa missão é enriquecer e fortalecer artistas surdos para um amanhã?” – Perguntou
Daphne, professora da outra universidade, parcerias projetais coletivas, com expressão
enrugada de dúvida, olhando fixamente à Taylor. Esta lhe sorriu, gestualizando:
– Sim, isso é uma perspectiva de se diferir, não estamos aqui dialogando, isto é,
agora não? Além disso, hoje vamos inventariar outros signos que talvez batam um pouco
mais em nossas realidades... Bem, vejamos, nossa missão é dar riqueza e agir em potência
em meio aos signos, às imagens, e às artes para uns agora que fazemos neste instante?
– Interessante, deixa eu sinalizar, ou melhor, complementar com Taylor. Cito:
“o artista é o tradutor universal” (Paz, 2010, p. 205), e para Deleuze e Guattari: “o
esquizofrênico é o produtor universal” (2011, p. 18). Então, o educador, ou o escrileitor é
o escritor singular... O criador... De planos imanentes às ciências, às filosofias e às artes.
– Zilu, pensador-tradutor de conceitos de autores-amigos de obras anti edipianas.
– Criador de sistemas de signos, de conceitos não sistematizados. O civilizador como
corajoso. “A força do pensamento de não nadar a favor da própria corrente é a de resistir
contra o previamente pensado. O pensamento enfático exige coragem civil” (Adorno,
1995, p. 21). Daí “isto se evidencia, de modo grosseiro, nas máquinas cibernéticas”
(Adorno, 1995, p. 16). O pensar filosófico só começa quando teorias filosoficamente
científicas se deixam acrescentar e quandos mais se retiram além daquilo que se colocou

7
Trecho transcrito por meio do http://www.deafstudios.com/

88
nelas... Tudo isso são pensares filosóficos, se tornam passados e transcriados em
outros signos. – Tradutora-e-transcriadora, Molly, de escritos-ditos de Adorno (1995)
que continuava mexendo no livro, nas folhas, nas palavras, mas interrompida por
outro falante ousado:
– Abusemos de Fidelidade ao Texto “Original”, tornemos fiéis os contextos destes
espaços-tempos presente, à poesia criativa e às possibilidades combinatórias entre
os parâmetros sintáticos-pragmáticos-biografemáticos...entre elementos científicos,
filosóficos e artísticos (falando língua acadêmica de Deleuze e Guattari, 2010). Vejamos,
me permito para ser voluntariamente tradutor “mais amoroso do que propriamente
ediapiano (Barthes, 2005, p. 304). – Invade mãos grandes de Tim, mantendo um olhar
direcionado ao público, e continua um pouco mais ousado:
– Educadores somos todos. Escritores, também. Não somos somente professores
que educam. Nem somos somente estudantes que “aprendem a escrever”. Como é
possível estarmos fisicamente presentes, mas nossas mentes, em dimensões que se
diferem. Como? Estudante também é professor, professor também é estudante, pes-
quisador também é estudante, participante, também. Sobretudo, somos “felicidade de
signos”, conforme Barthes (2004, p. 222). Este escritor, para mim, é melhor professor
além de Corazza. Já que com ela, me encontro com Barthes, no discurso que é arranjar
e rearranjar sistemas de signos, aprendendo que os nossos sistemas de tradução nunca
chegam a “significados últimos, estáveis, fechados”. Então, isso é uma arte translinguística
em atualidade, desde sempre. Ou ainda, com Campos (2013), arte criativamente verbal.
– Valeu, Tim... Meu nome é Zilu, sou pesquisador “universitário”, mas como
principiante-escrileitor, traduzo escrileituras e escrileio-crio no word. Sem dúvida,
uma bela complementariedade filósofica em nosso encontro. Agimos-criamos por
singularidades escrileitoras. Agir como? Manipular o quê? Ficar de frente com a
prática de significação? “Entendo por sentido o conteúdo (o significado) de um sistema
significante, e por significação o processo sistemático que une um sentido e uma forma,
um significante e um significado” (Barthes, 2007, p. 66) e “a razão está em que o sentido
de uma obra (ou dum texto) não pode fazer-se sozinho; o autor nunca produz mais do que
presunções de sentido, formas, por assim dizer, e é o mundo que as preenche” (Barthes,
2007, p. 15-16). Criamos nós de sentidos como autores-escrileitores e torcemos por
mais nós, mas desta vez, de significações presentes. Traduzir é uma ação de manipular
significante e produzir significados. Isso é, uma significação que se traduz. Educação,
Filosofia e Arte, componentes transversais-curriculares-didáticas-escrileitores-trans-
criadores, desde o ato de criação (Deleuze, 1999). Releiamos o título deste encontro:
“Educadores and Escritores”, logo criamos novas significações: tradutores-mediadores
e escrileitores? Tudo isto significa, conceitualmente, ato de ler-escrever-traduzir por

89
meio de espectro, imagem reagida-e-criada... Escrileituras ou traduções, como con-
ceitos operatórios e diários... Sim?
– Obrigado por me permitir questionar, como é que o conceito de escrileituras
se define? – Questionou um participante surdo que se tornou ouvido atento de Zilu,
que lhe responde:
– Definição ou significação, como diria Barthes (2007)? Ou melhor, mediação de
novo signo, como o mesmo diria na página de 33: “é no próprio momento em que o
trabalho do escritor se torna seu próprio fim que ele reencontra um caráter mediador”?
Mediador é tradutor. Traduzimos os fins e transcriamos novos fins iniciais de criação,
como diriam vários autores da história da filosofia? Bem, enquanto você lê algo, através
de visão mental, onde você escreve leituras e reescreve outras escrileituras... Até agora,
é algo típico de transcriação escrileitora. Mais um conceito criativo-ativo-exposto de
Corazza (2013) por Campos (2013). “A literatura o representa como uma pergunta,
nunca, definitivamente, como uma resposta” (Barthes, 2007, p. 33).
– Então, como posso transformar por meio de didáticas curriculares do campo-
área de conhecimento em que leciono “na” mas, também, “a” língua brasileira de
sinais? – Resistiu, mais uma vez, aquele questionador-ouvidor.
– (Des)culpe minha ignorância, não entendo tal preposição e artigo definido. Po-
deria retornar novamente em uma nova linguagem?
– Libras é uma disciplina curricular em todos os âmbitos educacionais, conforme
legislações oficiais federais, como eu sou professora de Libras, isto é, um artigo de-
finido. E, enquanto estou na sala de aula, sinalizo nesta própria língua. Então retomo,
caro Zilu, como é criar, digo, planejar aulas escrileitoras?
Zilu pegou, uma outra vez, a obra barthesiana (2007), folheou dois papeilzinhos
colados e leu em voz alta, com um olhar atento aos interpretes presentes que estavam
mexendo corporalmente mãos e rosto, variando formas viscosas: – “A palavra não é nem
um instrumento, nem um veículo: é uma estrutura, e cada vez mais nos damos conta
disso; mas o escritor é o único, por definição, a perder sua própria estrutura e a do mundo
na estrutura da palavra” (Barthes, 2007, p. 33) e “o paradoxo é que a sociedade consome
com muito mais reserva uma palavra transitiva do que uma palavra intransitiva”(p. 36)...
Sejamos escrileitoras, muito menos de estruturas conceituais, muito mais de estru-
turas criativas, [olhando o relógio], agora é com Molly, que trata de arte transcultural,
transcriadora. Obrigado.
– Obrigada... o curioso é quando digo este termo, me sinto obrigada a fazer. Então,
prefiro redizer de outra forma: gratíssima por estes encontros. O que Zilu acabara de
responder a a... teu nome.... ã, E-M-M-E-R-T? Certo, Emmert, sua pergunta fez com
que eu criasse outra resposta questionada. Mas, resposta não finita. Tim apresentou

90
uma arte corporal, Zilu apresentou uma outra arte transfilosófica, então, dessa vez,
repensemos: como indicar-produzir-fazer maquinamente esses elementos escrileitores?
“Ao utilizar a didática-artista da tradução e o método cartográfico [biografemático],
nunca é cópia, mas transcriação” (Corazza, et al.,2014, p. 1029). Como diria deleu-
zianamente Corazza (2013, p. 17), “para artistar a educação” não funciona “sem ensaio”,
desse modo, “não há inspiração”. É isto que atribui uma significação de escrileitura
inspirada-criada durante ensaio mental e seguidamente, dura um ensaio físico-escrito-
sinalizado... Vejamos modelos corazzianos (et. al., 2014), que agenciaram a relação
fruída e a prática escrileitora entre pesquisa-ensino-extensão, entre espaços universi-
tários e escolares, rasgando, abusando “o papel de consumidores para o de produtores
críticos, que podem abrir e criar o seu próprio texto” (p. 1040). É para fazermos
papel de tradutor? Sim. Papel de educador? Sim. Papel de leitor-escritor? Sim. Montar
papeis mentais-gestuais em meio às nossas vidas leitoras e escritoras? Sim. Articulações
políticas governamentais? Sim. Todos pontos positivos nos tornam Escrileitores e
Educadores. O ensinar-aprender-escrileitor de Arte filosófica em seus diferentes com-
ponentes, assim como, a dança corporal, a dança filosófica, o teatro artístico, a música
artista, as artes gestuais, etc. Ah, “Artes Visuais”, termo tão comum na academia
fere os seres humanos, aqueles que nascem com cegueira e aprendem com a virtude
de tatilidade. Mas, ao mesmo tempo, tratando de gestualidade, que não tão somente
indica os aconteceres efetuais, indica, também, comunicação por meio de mãos-olhos-
cérebros mentais-visuais, mas para Surdocegos, como seria? Cérebros mentais-táteis...?
Estudantes que escrevem em português enquanto visualizam as mãos de profissionais
tradutores-intérpretes de Libras. Português sinalizado. Lendo as palavras através de
mãos. Ou de olhos? Não sei. – Disse Molly, em tom delicado.
– Boas observações, Molly. Isso é, construção, desconstrução e reconstrução de
conceitos, lembremos que filosofia é criar conceitos, filosofia-esquizo é criar conceitos
desejantes. Com Corazza (2006, p. 26), “Escrita-esquizo. À escrita-representacional
pergunta-se: – O que quer dizer? À escrita-artista: – Como funciona? Nos dois tipos de
perguntas, existem mundos diferentes”. Isso tudo se cria e criador de escrileituras que é,
sempre, um ato político, tradutor, mediador. – Disse Taylor, no instante em que vê que
era mais uma produção de discursos que se produzem por produção e reprodução de
conceitos, e decide continuar:
– “Não discuto com o destino, o que pintar eu assino”; “não discuto com o
destino, o que vier eu assino”. Em que pintar, em que ir são semelhantes? Sinônimos?
Paulo Lemmisky era um poeta de corpo-alma traduzido por outros olhos, isso é, por
outras traduções, outros conceitos. “Os conceitos, como veremos, têm necessidade de
personagens conceituais que contribuam para sua definição” (Deleuze; Guattari, 2010,

91
p. 8). Mas, o que definimos por “pintar” ou por “ir”? Ou então, “é o ato do conceito
que remete à potência do amigo, na unidade do criador e de seu duplo?” (Deleuze;
Guattari, 2010, p. 13). Ah, sim! Como fizeram nossos amigos de saberes saborosos,
digamos, é criar, ter ideia, ter um plano criativo. O que cai numa criação distinta,
criações transversais-interfaceadas com etnologia, literatura, filosofia, diferença, arte e
educação. Em etnologia, vemos que nada é finito. Em literatura, vemos a poesia. Em
filosofia, visualizamos uma ética vital? Em diferença traduzimos novas diferenciações?
Em arte, vemos um belo conceito de Criação: Criação cria os criadores e explode novas
criações. Em educação estamos neste instante: ato artístico de se educar. Trato, agora de
movimentos criativamente sociais-pensamentais-estratégicos. Com articulações políticas
governamentais, com novas artistas-artísticas com/sobre/entre escolas, universidades,
casas, ruas? Sim, obrigadíssima. “A própria Arte também não pressupõe senão o ser
humano na sua natureza espiritual e corporal, e nunca a atenção que esta dispensa às
suas obras” (Benjamin, 2008, p. 25).
Neste trecho encenado, o protagonismo-verbal da Taylor perdeu-se como mudo e
cristalizou em novo mundo desta verdade em meio aos signos de sujeitos, objetos e
ações. Fragmentado em nomes, coisas e teatros, e logo mais, em um longo fragmento
gramatical (substantivos, adjetivos e verbos). Retornou a si mesma, olhando o público
que parecia à espera de algum pio de se dar gesto.
– Então um gesto a ousar. Temos uma proposta desafiante. Nós sujeitos, pegamos
objetos, criamos sujeitos-objetos-ações mentais e depois recriamos por concretude a
todos nós, certo? Trata-se, também, de uma prática de praticarmos escrileituras, tra-
duções, transcriações. Sintam-se convidados, por favor, a se posicionarem e pegarem
algum objeto que está ali na caixa. Sintam convidados também a tirar dúvidas, produzir
ideias coletivas, me chamem, a propósito, me chamo Taylor. Vejamos mais uma vez:
Caixa de produções variadas que se conjugam com elementos cientificos-filosoficos.
Caixa cheia de artes. Mas, podemos tomar, também, a caixa de anotações que alguns
de vocês ficavam mexendo na caneta-manual. Vejamos, novamente, com Deleuze e
Guattari (2011) que artistamos sujeitos por meio de gozo. Gozo, como é? Gozar pa-
lavras, gestos, sinais, figuras por meio de criação. Pegamos objetos dessas caixas,
também, objetos mentais-vagas de faladores, como se fossem ciência e filosofia,
sistemas de criação em tempo presente. Vejamos, novamente, com ousadores de filosofia
(2010, p. 78), que nos potencializam com “um fora mais longínquo que todo mundo
exterior, porque ele é um dentro mais profundo que todo mundo interior: é a imanência,
“a intimidade como Fora”. Esses Fora-mentais criados que se dimensionam em fluxo-
flutuam em nossas mentes; seguidamente, artistam, já que de indicadas-rasgadas-
desenhadas formas, é a nossa questão.

92
20 minutos seguidos-corridos...
A multidão se mexia foguetemente em cenalários interiores, um dos publica-
dores tomara iniciativa de se apresentar em tom poético, mas musicalmente corporal:

Tomo por etnologia biografemática.


Libras é sigla de Língua de sinais brasileira?
Língua gestual brasileira é nome resumido de Libras?
Língua de sinais brasileira? Ó Glória a TV INES.
Língua de sinais regionais? O Glória ao Sinalário whatsappiano.
Língua de sinais biografemáticos? Ó Glória, gestualmente daqui
Línguas biografemáticas. Nossas próprias.

Suspirou um ar inspirado pelo chamado de Ryan, que esboçou um olhar fí-


sico, direcionado à multidão que continuava silenciosa, e, mais uma vez, sinaliza:
– Comigo, me literalizo Deaf Pride, Deaf Gain, Deaf power, Deafhood mas, me
formo biografemática na escrita americana? Porque se for na escrita em português, essa
estrutura visual se estraga com os eus de criação. Ora, Orgulho surdo? Ganho surdo?
Poder surdo? Ser Surdo (ou Surdalidade? Ou Surdismo?). Pois então, transformo
biografemas filósoficos (objeto de criar conceitos): ganho caótico. Orgulho infinito.
Poder singular. Estalar Conceitos Surdo-históricos e criá-los como barulhentos signais
por meio de visão mental e corporal. Ora, nestes presentes signos, a partir do momento
que me sinto [olhad@], tudo muda: ponho-me a “posar”, fabrico-me instantaneamente
posado, metamorfoseio-me biografematização desta escrita em voz leitora-exterior-
extensa.
Então, entra um outro participante escutador que estava em um ponto muito distante
e que caia na tradução manipulada de pensar: “Credo, esse tal desvio de sentidos de
língua, ousando na ênfase aos sujeitos com perda de audição e ganho de visão... e
Orgulho Negro?”. – Parou de brincar mentalmente com rachação inspirada ficando
com rosto surpreso, como se fosse traduzida-leitora por Samie:
– Certezas o vento leva. Só dúvidas continuam de pé, falando por Paulo Leminski.
Com ele, conosco, e consigo, fazemos perguntas não finitas de respostas e respostas
infinitas às perguntas. Lembremos de movimentos sociais que exigem um devir ao
tema ética: “Nada sobre nós, sem nós”. E, manifestam seus ditos gritantes: Orgulho
Gay! Orgulho Negro! Orgulho indígena! Orgulho feminino! Não são apenas “passeatas”,
“movimentos”, mas além disso, são ações diárias que visualizamos os mundos vivos.
Política, muito interessante, por exemplo: os estudantes da Escola se manifestam contra

93
submissão e pela liberdade de vestir bermudas, shortinhos, e mandando os “Homens”
a ensinarem-e-aprenderem como seres éticos de suas sexualidades e de seus desejos...
Sim?
– Grata por atenção e por minha permissão de falar. Não devemos viver “a na-
tureza como natureza, mas como processo de produção” Já que não há nem [humanidade]
nem natureza, mas unicamente um processo que os produz um no outro e acopla as
máquinas” (Deleuze; Guattari, 2011, p. 12). Há pouco sinalizei quase edipianamente.
Agora me torno anti edipiano. Você, apontastes Homens talvez, toda humanidade,
não? Pois então, a humanidade é criada por nossas máquinas de pensar-repensar-
despensar. Pensar algo, criar algo criado, mas não tão somente pensar, mas um reagir
humano ao que sentimos, vemos, tocamos. A máquina é uma forma diária de funcionar
pela conexão maquínica do desejo. Máquina acoplada-conectada ao desejo e cortá-lo
em fluxo. Obviamente, máquina nunca pára e se move desde sempre... Então, fluxos
expostos. Efeitos jogados por personagens, conceitos e ações, jorrando-se sob “passeio
do esquizofrênico: eis um modelo melhor do que o neurótico deitado no divã. Um pouco
de ar livre, uma relação com o fora”? (Deleuze; Guattari, 2011, p. 12). Isso não é um
consciente fora, é um inconsciente que se produz e é produtivo se for feito por passeio.
Passear o início (ou um ponto), o meio (ou mediato), e o imediato. O inconsciente
funciona como uma máquina-fábrica e não como um teatro que vem instrumentalizado,
celeste, muito menos de memorização. Funciona como manipulado pela produção de
consumo desejante isto é, gozar sujeitos-e-signos em gozação corporal-espiritual. Um
eu, ou um si criador é essencialmente imanente, ética, artística.... Educar+ação+artista,
educarista. Maquinamos por trem movimentada de elementos-componentes-traços-
riscos sociais-culturais-artísticas. Máquinas de saberes-forças de se artistar governando
e artistar-se governando, pela Arte.

Tempo-espaço encerrado
Educadores&Escritores, do “presente vivo” cujo “desejo do escrever” que “surja
sempre vivo” “extraordinariamente vivo”, sinalizando por Barthes (2005, p. 304-305).
Encerra-se novas finidades de criar, sempre intraduzivelmente em infinidade-infan-
tilidade-criatividade. “O pensar filosófico satisfatório é crítico, não só frente ao existente
e à sua moldagem coisal [e técnica] na consciência, mas também, na mesma medida,
frente a si mesmo” e “de outro modo, a experiência intelectual permanecerá [e permanece]
rapsódica” (Adorno, 1995, p. 23). Cada ator, cada falador, cada personagem, cada es-
crileitor, cada criador: entraram como aprendizes-educadores e saíram como educadores
artistas, além da Praça satisfeitos, satisfeitamente cumprindo trabalhos satisfatórios.

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Finalmente, encerra-se com conclusões parciais-transcriadoras de referências autorais-
fragmentadas: Ciências de palavras e sinais, sempre criadas e criadoras. Ciências de
motor transCriador por meio de curricularização nômade-e-filosófica. Educação,
claramente, pela câmara da Criação, explodindo em aventuras de signos-imagens-
espaços. Ensaios, aulas, seminários, encontros, reuniões, etc., vagamente infernados
por pensamentos de Tradição, forçosamente queimados por Tradução e expirados além
de Criação. Sublimação infernada a fervente. Engenhosidade de Arte e de Educação
engenhosamente criada. Educação e Arte e Educação e Arte, sempre anpedianamente
maquinadas. Substituir e acrescentar, desde sempre, “o que faz gaguejar a linguagem
da escola” (Corazza, 2003) pois “escrevo sempre diferente de mim” como “uma edu-
cadora-escritora” (Corazza, 2006, p. 23). O fechar desta janela-tela artistagemente
didáticartista em texto dramatizado. O abrir de janelas, sempre a abrir.
O texto, então, conclui: estalos e estalações gestuais (Libras) e escritos deste Texto
que agem e reagem (e vice versa) por meio de pensar. “A atração que sobre mim [e nós]
exercem certas fotos [biografemas, cenas, gestos] era aventura” (Barthes, 1984, p. 36).
Texto produtor daquele “que quer escrever” (Barthes, 1985, p. 32). Tais fotos, imagens,
teatros fabricados me [e nos] advém, tais outras não. As nossas vozes, os nossos gestos
e as nossas ações são produzidas e produtoras em meio à Educação (ação de se educar),
Filosofia (criação de conceitos) e Arte (deste Texto).

Referências
ADORNO, Theodor W. Palavras e sinais: modelos críticos 2. (Trad. Maria Helena Ruschel,
supervisão de Álvaro Valls). Petrópolis, RJ: Vozes, 1995.
BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. (Trad. Antonio de Pádua Danesi). São Paulo:
Martins Fontes, 2008.
BARTHES, Roland. A câmara clara: nota sobre a fotografia. (Trad. Júlio Castanon Guimarães).
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
BARTHES, Roland. A aventura semiológica. (Trad. Maria de Santa Cruz). Edições 70. Ltda:
Lisboa, Portugal, 1985.
BARTHES, Roland. O prazer do texto. (Trad. J. Guinsburg). Revisão: Alice Kyoko Miyashiro.
São Paulo: Editora Perspectiva, 1987.
BARTHES, Roland. O grão da voz: entrevistas. (Trad. Mario Laranjeira). Revisão de tradução
Ligia Fonseca Ferreira. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
BARTHES, Roland. A preparação do romance II: a obra como vontade. (Trad. Leyla Perrone-
Moisés). São Paulo: Martins Fontes, 2005

95
BARTHES, Roland. Crítica e verdade. (Trad. Leyla Perrone-Moisés). São Paulo: Perspectiva,
2007.
BENJAMIN, Walter. A tarefa do tradutor. In: CASTELLO BRANCO, Lucia (Org.). A tarefa
do tradutor, de Walter Benjamin: Quatro traduções para o português. Belo Horizonte: FALE/
UFMG, 2008. (Cadernos Viva Voz)
CAMPOS, Haroldo. Transcriação. Org. Marcelo Tápia, Thelma Médici Nóbrega. São Paulo:
Perspectiva, 2013.
CORAZZA, Sandra Mara. Artistagens: filosofia da diferença e educação. BH: Autêntica, 2006.
CORAZZA, Sandra Mara. Currículos nômades: múltiplos nomes em 51 fragmentos. In: VII
Seminário de Pesquisa em Educação da Região Sul: Universidade do Vale do Itajaí, SC.
Pesquisa em Educação e Inserção Social. 23 jun. 2008.
CORAZZA, Sandra Mara. O que se transcria em educação? Porto Alegre; UFRGS, 2013.
CORAZZA, Sandra. Palestra O que faz gaguejar a linguagem da escola. IV Seminário de
Linguagens: Mestiçagens culturais. Universidade Federal de Mato Grosso, UFMT, Instituto de
Linguagens. Cuiabá, 2003.
CORAZZA, Sandra Mara; RODRIGUES, Carla Gonçalves; HEUSER, Ester Maria Dreher
and MONTEIRO, Silas Borges. Escrileituras: um modo de ler-escrever em meio à vida. In:
Educação e Pesquisa, v.40, n.4. 2004.
DELEUZE, Gilles. Diferença e Repetição. (Trad. Luiz Orlandi e Roberto Machado). Rio de
Janeiro: Graal, 2006.
DELEUZE, Gilles. O ato de criação. (Trad. José Marcos Macedo). Edição brasileira: Folha de
São Paulo, 1999.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? (Trad. Bento Prado Jr. e Alberto
Alonso Muñoz). 3ª ed. Coleção Trans 34, 2010.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia 1. (Trad.
Luiz B. L. Orlandi). 2 ed. São Paulo: Ed. 34, 2011.
PAZ, Octavio. Tradução, literatura e literalidade. Belo Horizonte: FALE/UFMG, 2009.

Trabalho apresentado no Grupo de Estudos GT 19 Educação e Arte durante a XI ANPED


SUL – Reunião Científica Regional da ANPED: Educação, Movimentos Sociais e Políticas
Governamentais, realizada na Universidade Federal do Paraná, Curitiba de 24 a 27 de julho de
2016; publicado em Anais da XI ANPED Sul, Curitiba, PR: Setor de Educação da UFPR, 2016.

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ESPAÇO POÉTICO COMO
TRADUÇÃO DIDÁTICA: BACHELARD
E A IMAGEM DA CASA

Luiz Daniel Rodrigues Dinarte


Sandra Mara Corazza

Introdução
Quais são os cruzamentos entre Espaço Poético e a didática e quais aspectos
condicionam tal cruzamento? Esta não é uma pergunta que faz jus a respostas,
uma vez que, em sua móvel e nebulosa sintaxe, todos os elementos são inventados,
cruzados eles próprios com outros elementos, externos à construção sugerida. Como
uma pergunta inventada, flexível em sua composição porque abstraída de campos
multifacetados, deve ser lida a partir de pressupostos gerais de onde busca recolher
algumas linhas fecundas à investigação nos termos de uma didática. Não busca,
entretanto, a comodidade de imagens estáveis, não propondo um dobramento forçado
entre Espaços Poéticos estabelecidos e a didática como atribuição de significados
estáveis da e na Educação. Isso significa que não se trata d’A Poesia, A Literatura ou
O Poema como conduções seguras de uma prática educativa, onde a didática, certa do
seu papel de obter resultados através de atividades definidas a priori, elegeria artefatos
mais propensos a possibilidades de criação. Da mesma maneira, não evocamos uma
didática que não seja uma didática da diferença (Corazza, 2015a). Pois, para que se
faça possível e pensável um cruzamento dessa natureza, a imagem poética deve ser

97
entendida não como o estabelecido da imagem, mas como aquilo que “é uma emer-
gência da linguagem”, e que está “sempre um pouco acima da linguagem significante”
(Bachelard, 1979, p. 190). Por outro lado, uma didática da diferença se afirma como
a abertura de espaços de escrita e leitura, como “um movimento do pensamento, uma
direção tradutória dos atos curriculares – por si próprios, transcriadores de elementos
artísticos, filosóficos e científicos” (Corazza, 2015a, p. 108). A escrita do Espaço Poético
se configura, nesse emaranhado conceitual-criador, como uma das potências para que
pensemos uma didática da diferença, como imagem que irrompe à consciência cria-
dora, embora não se realize senão como misto entre pensamento e fazer didático.
Seguindo a mesma lógica de colocação e invenção da pergunta disparadora
acima, não há Espaço enquanto não se produzir Espaços; não há didática enquanto não
se atribuir um sentido e um movimento tradutórios aos atos curriculares. Tradução, para
Corazza (2013), corresponde a uma atividade para além do trânsito entre duas línguas,
entre dois sistemas linguísticos, mas se define na transposição, para uma língua didática,
de elementos polissêmicos, artísticos, imagéticos, sonoros, não tributária a uma busca
pelo original da língua, mas que requer criação de espaços tradutórios. Em termos de
espaço educacional, supomos, a escola, a sala de aula, o bairro, a sala de professores
(e mesmo o pátio), nenhum desses elementos constitui em si um problema de fabricação
de Espaços, ao menos não a rigor. A pergunta acima, portanto, não pode ser entendida
senão como, além de uma invenção de um campo problemático, uma variação
epistemológica que visa multiplicar os efeitos do Espaço Poético e da didática no
pensamento educacional. Um espaço de pensamento e uma didática não se reduzem um
ao outro, mas contornam um ao outro em linhas de ativação de potências educativas.
Nesse sentido, um misto pensamental-didático supõe um outro tipo de aproximação
investigativa, que, ao valorizar a diferença em detrimento à semelhança, requer uma
pragmática conceitual. Tal pragmática é aqui entendida a partir daquilo que Deleuze e
Guattari (1995) definem como uma proposta de colocar o pensamento e a linguagem em
variação, e, a partir da escrita, propor novos arranjos conceituais, artísticos e científicos,
numa crítica às formas instituídas de colocação de problemas.
Tal variação epistemológica não consiste, neste artigo, em uma invenção isolada,
não parte de uma decisão arbitrária sem o amparo de outros movimentos, anteriores,
no sentido de multiplicar os problemas relativos ao campo educacional. No âmbito de
uma didática da diferença como didática da tradução, os textos entram em relações de
simbiose, de complementaridade e de reescrita, não se inventa senão recorrendo-se a
outros textos, que se atualizam em um espaço de escrita de Vida. O que é aqui apresentado
consiste também em um movimento que leva adiante uma concepção tradutória da
pesquisa em Educação. Corazza (2015b, 2015a) propõe, nessa direção, um bloco de

98
pensamento, intitulado EIS AICE (Espaços, Imagens, Signos e Autor, Infantil, Currículo,
Educador), que “compõe duas unidades analíticas e operatórias de leitura e escritura: EIS,
que expressa as traduções efetuadas no currículo da diferença; e AICE, como expressão
das traduções didáticas da diferença” (2015b, p. 9). Como dobra teórico-prática, EIS
AICE enseja um movimento combinatório de suas partes, recusando a sistematização
e o acabamento em direção a finalidades curriculares ou conduções didáticas a priori.
Entretanto, um pensamento eisaiceano pode incitar inúmeros desdobramentos em
termos de pesquisa. Tanto o bloco pode funcionar em uma dinâmica interna, na recusa
à sistematicidade aliada ao tratamento da forma textual em que se apresenta, como, de
outro lado (mas não de maneira oposta), cada um de seus componentes pode ser discorrido
isoladamente (Corazza, 2015c). O giro conceitual adotado aqui é no sentido de eleger o
Espaço, como Espaço Poético, a fim de verificar sua potencialidade nas transposições
de uma didática da diferença. É no espaço de intimidade da casa que escolhemos nos
debruçar, inspirados em Bachelard e em suas análises no âmbito da poesia.
Exatamente por ser dado à uma exploração do texto como potência de criação, o
movimento disparado por EIS AICE leva adiante a tradução didática da poesia evocada
por Bachelard, assim como se descola do enquadre fenomenológico que se possa
creditar às análises deste filósofo. Mesmo diante das tendências teóricas inspiradas,
até certo ponto, na psicanálise junguiana, na fenomenologia da imaginação e na poesia
como produção de um maravilhamento consciente do poeta, tomamos a liberdade de
entrecruzar algumas linhas do pensamento do autor em favor da dinâmica tradutória
aqui proposta. Nisso, não há cuidado senão com a lógica imanente ao presente artigo,
sendo o nosso compromisso problematizar alguns dos matizes do pensamento bache-
lardiano nos termos de uma didática tradutória.

Bachelard e o espaço da intimidade: a casa


É oportuno demarcar a concepção de produção da imagem que se delineia no
pensamento de Bachelard ao longo de sua produção. A partir da ideia de tempo des-
contínuo promovida pelo historiador Gaston Roupnel, o filósofo credita à noção de ins-
tante, como coordenação tempo-espaço, a possibilidade de instituir uma síntese entre
experiência e devir, sendo a topoanálise um expoente metodológico de aproximação
ao acontecimento e irrompimento da imagem. Assim sendo, o espaço se torna o campo
fértil para que a palavra literária se torne potência de multiplicação de experiência, sendo
investida, portanto, de memória simbólica para além da continuidade social. Antes,
a palavra literária está em situação de descontinuidade em relação ao que apresenta
como significação, e as imagens que a poesia evoca estariam mais ligadas àquilo que

99
tem a capacidade de fragmentar a história linear e ao que expõe a nervura de uma
memória mais profunda, que se renova, exatamente, no instante da criação poética.
A casa é imagem do limiar de um resguardo, o íntimo que inicia, para a consci-
ência, um enfrentamento do cosmos, para além da fusão animalesca das sensações
indistintas. Consiste, nesses termos, em uma possibilidade de síntese entre devir e
criação estética. Em Bachelard encontramos este limiar como uma circunscrição, des-
contínua, mas não arbitrária – em termos de uma filosofia que põe em evidência a
poética do espaço, pesquisar, pensar, arrazoar: não há sublimação do ser sem o advento
desse irrompimento. O despertar da consciência se dá numa dialética da ingenuidade
do abrir de olhos frente ao descalabro do movimento, do susto, da violência do
mundo. Nesse sentido, a pretensão é, aqui, igualmente ingênua: a calmaria evocada
pela imagem da habitação é uma espécie de entrega ao movimento incessante, que
provoca o pensar a se multiplicar, e, multiplicando-se, tira proveito da descontinuidade
irrevogável que povoa a intelectualidade. O adentramento do pensar de Bachelard é aqui
investido de suas próprias sendas, no sentido de que não se pretende cotejar o ideário
bachelardiano, mas, ao contrário, apresentar algumas de suas próprias estratégias de
análise poética com o intuito de resgatar possibilidades de invenção de espaços, no
liame da pesquisa educacional. Esta invenção de espaços é que se perfaz num caminho
tradutório, na tomada do texto poético a partir do brilho emanado pela consciência
criadora.
Pode-se dizer que os textos noturnos de Bachelard são tradutórios, dotados de uma
transculturalidade das imagens simbólicas coletivas, o que o aproxima de uma psica-
nálise junguiana. Mais ainda, pode-se inferir que suas obras noturnas, voltadas para a
poética e para a imaginação, possuem uma subdivisão no que tange à apreensão dessas
imagens e sua formação inconsciente. De um lado teríamos as obras voltadas para as
imagens formadas a partir dos elementos da matéria (água, fogo, ar e terra) e, de outro,
uma fenomenologia da variação, onde o ponto de partida não se sustentaria apenas na
eventual empiricidade desses elementos, mas pelo arrebatamento do onirismo. Mais
que isso, tal fenomenologia não seria constitutiva das imagens, mas a demarcação de
uma realidade específica de onde as imagens irrompem não como objetos, mas como
consciência criadora, sendo a realidade vivida pelo poeta uma espécie de sonho des-
velado, afirmado como imagem que media o real e o onírico.
A imagem, para Bachelard, tanto na primeira fase de sua poética (inaugurada com
a obra A Psicanálise do Fogo), como na Poética do Espaço, é tomada como elemento
agregador de experiências estéticas, como filosofia interpretativa entre ciência e
poesia e como procedimento fantasístico do pensamento. Nesses termos, se assemelha
ao uso que os pré-socráticos fizeram dos elementos da natureza como representação

100
da unidade do ser. Não pretendemos recorrer aos pré-socráticos no sentido de alguma
autorização da tradição para validar a presente discussão, apenas fazemos o aponta-
mento de que tanto para Bachelard quanto para os pré-socráticos, há uma entrega, uma
rendição ao que se impõe como assombro, beirando o irracional, no que tange à imagem.
É por isso que o onírico ganha destaque em suas obras, dimensão que, a princípio,
deveria seguir uma espécie de fenomenologia do sonho sob a alavanca da interpre-
tação psicanalítica. Contudo, mesmo sem abandonar a psicanálise, há, em A Poética
do Espaço, um ponto cego no olhar sobre as imagens poéticas selecionadas e que
dão o testemunho dessa conversa entre devir e experiência real. Por isso ele afirma: “a
imagem poética existe sob o signo de um ser novo. Esse ser novo é o homem feliz”
(Bachelard, 1979, p. 192). A contemplação seria a prática de dilatação do objeto, fazendo-o,
de certa forma, unidade de um conjunto de experiências mais ou menos vago que denota,
todavia, a grandeza do ser. Esta seria a definição de Bachelard para o devaneio, noção
que não se resume a um escape em relação à consciência, mas consiste em uma positi-
vidade, ponto de clivagem entre inconsciente e a linguagem inaugurada pelo poema.
A casa, nesse sentido, não apareceria como imagem da casa empírica, histórica e
arquitetada como berço acabado e seguro das experiências de um sujeito, mas como
ambiência da matização e da correlação sujeito-objeto. Se, diferentemente do saber
científico do positivismo, criticado e enfrentado por Bachelard, a imagem poética
não possui consequências, e, da mesma forma, também não existem causas para as
mesmas, não enquanto explicações psicológicas e cronologicamente ordenadas dadas
à interpretação psicanalítica. “[É] uma linguagem jovem” (Bachelard, 1979, p. 185), diz
o autor em relação à imagem. A casa é a morada de uma alma, sendo esta necessaria-
mente um elemento, mais do que um projeto buscando harmonia entre componentes
textuais. Como uma anterioridade que funda qualquer atividade espiritual, a alma
inaugura a imagem, dando ao leitor de poemas uma prova de seu envolvimento mais
elevado com a linguagem e ao poeta a função de demiurgo, aquele que cria essas novas
realidades instituindo uma mediação, através da palavra, entre sonho e realidade. A
distinção entre alma e espírito não é, como ressalta Bachelard, uma sutileza nem um
preciosismo, mas a demarcação mesma de duas regiões da produção imagética que
dizem respeito à gradação da abertura fenomenológica entre o poema e o elemento
poético. Quando há harmonia da forma poética, quando a linguagem já atinge um plano
experiencial onde os elementos exigem, uns dos outros, lapidações da forma internas
às exigências da voz (e aí se possa entrever um eu sentimental, um eu poético, um eu
“lírico”), estamos no domínio do espírito; quando, ao contrário, descemos mais fundo na
constituição de cada elemento, chamando de imagem a cada foco de iluminação, estamos
numa região de emanação, logo, alma.

101
É a partir dessa duplicidade que Bachelard (1979) percebe a necessidade de
um método para circunscrever as ressonâncias sentimentais nos planos da vida e o
aprofundamento ontológico da repercussão. “Na ressonância, ouvimos o poema, na
repercussão, nós o falamos, porque é nosso”. (p. 187) A novidade psíquica do poema
como uma espécie de époche bachelardiana, significa a produção de matéria na con-
dução do real, na invenção do real. É esse o sentido da imagem poética: produzir no-
vidade, uma suspensão, numa colocação entre parênteses do elemento poético que
produz o real na apropriação deste pelo leitor. A repercussão é união entre leitor e
poeta que inventa mundos possíveis. Esta é uma característica da filosofia de Bachelard
também nas suas obras voltadas à epistemologia e que o distingue, notadamente, da
não menos importante époche husserliana. Assim como a poesia, também a ciência se
volta à pluralidade da postura investigativa. (Bachelard, 1953). Longe de querer expor
ou detalhar o papel da imaginação na poética e na epistemologia de Bachelard, apenas
indico que a complexidade de sua obra deixa transparecer esse encanto e mobilização do
sujeito em relação às imagens da natureza. E é nesse sentido que reconhecemos, nesta
interferência do autor em outros planos de pensamento filosófico, um procedimento
peculiar e potente no sentido de uma investigação no campo educacional, mais
especificamente em termos didáticos.
É importante destacar que, para o filósofo, ciência e poesia devem se somar na
luta contra a conceituação totalizadora (Pessanha, 1994), abrindo a imaginação para a
possibilidade de criação de novos mundos. É nesses termos que entendemos a potência
do pensamento bachelardiano, no sentido de fazer da investigação científica uma
afirmação do pensamento, do instante e do novo. Cabe aqui tomar a precaução de não
adentrar a extensa problemática da comunicação existente (ou impossível) entre sua
epistemologia e sua estética, mantendo nosso olhar nos seus escritos sobre a imaginação
poética e sobre quais procedimentos uma pesquisa do espaço poético pode supor e
ensejar.
Nessa pluralidade, nessa topologia heterogênea de pesquisa, o espaço é destacado
pelo filósofo não como uma experiência psicológica universalizante, mas como elemento
de simplicidade, em suma, “as imagens de um espaço feliz” (Bachelard, 1979, p. 196),
onde o olhar investigativo se guia pelos “espaços de posse, espaços proibidos a forças
adversas, espaços amados” (Bachelard, 1979, p. 196). É um espaço que não está à
disposição do olhar, do geômetra ou do arquiteto, mas, diferentemente, espaço vivido,
que não se ocupa, mas se descobre a topologia pela atratividade de seu louvor.
Para tanto, Bachelard percorre imagens da casa, designadas superficialmente como
instrumentos de análise (Bachelard, 1953), a fim de ligar a experiência subjetiva do
conforto às aparições desta em certos espaços chave da imaginação poética. Tal função

102
da imagem poética é apresentada na forma de uma adesão à habitação, superando a
descrição tanto subjetiva quanto objetiva, e daí faz aflorar os sentidos de felicidade,
segurança e imediaticidade.
Se, na a primeira fase da poética bachelardiana, os elementos da natureza tomam
a frente na construção de uma ontologia da imagem, a partir da Poética do Espaço há
um aprofundamento dessas preocupações relacionando a imagem e o êxtase de seu
recebimento por parte dos leitores de poesia. A leitura é um envolvimento, um resgate
das condições da emergência do novo. É nesse sentido que a segurança do oikos não
pode ser entendido apenas a partir de uma economia deficitária do eu em relação ao
não-eu. Não apenas de um mundo assustador, que desposa o ser de sua morada, que
se desenvolve a dialética da imagem da casa em Bachelard. Se por aí tendêssemos,
cairíamos na infindável carência do homem frente ao mundo, lógica a ser compensada,
com o consumo da novidade, no resgate da plenitude perdida e recalcada. Não é essa
a investida bachelardiana. No adentramento da imagem, a economia fundamental é de
plenitude, de segurança, envolvimento de um não-eu simpático ao conforto e à alegria.

Desdobramentos conceituais
Afim de demonstrar esse tom de simplicidade evocado na imagem da morada,
Bachelard (1979, p. 216) toma Baudelaire, quando este afirma que, num palácio “não
há nenhum lugarzinho para a intimidade”. O filósofo chama a atenção, entretanto,
que é preciso ultrapassar essa noção de simplicidade em direção à “primitividade do
refúgio” (Bachelard, 1979, p. 216). E, entre situações vividas e sonhadas, a topologia
da imaginação se rende às inversões entre sonhado e vivido. Nas imagens de Rilke,
Poe, Rimbaud, entre outros, Bachelard erra entre história e pré-história, lembrança e
lenda, velhice e juventude, sugerindo ser a imagem poética uma juventude tardia, como
a ponderação de Michelet (apud Bachelard, 1979): “Que pena! Precisamos avançar na
idade para conquistar a juventude, para livrá-la dos entraves, para viver segundo seu
impulso inicial”.
É preciso ponderar, entretanto, que a imagem poética “não é eco de um passado”
(Bachelard, 1979, p. 183). Nesse sentido há uma polêmica em relação à concepção
duracional do tempo segundo Bergson. Enquanto Bergson entende que é a intuição
do tempo puro que produzirá uma inversão do positivismo dominante em sua época,
Bachelard deposita na imaginação poética esse poder de crítica e re-qualificação
do pensamento filosófico como produtor de realidades novas. Ao interpor a imagem
poética como única via possível de maquinar um novo espírito científico, Bachelard
não chega a refutar totalmente a tese bergsoniana mas vê a necessidade de creditar

103
à poesia um lugar de destaque em sua metafísica, numa reorganização da represen-
tação conceitual vigente.
Tal interposição da imagem que irrompe de um eu no instante da criação, obriga
Bachelard a se deter no aparecimento dos espaços poéticos, daí sua fenomenologia
estar dividida entre o onirismo e a lembrança de tempos ocupados, em um jogo de luz
e sombra que deságua no desvario da solidão. A questão da temporalidade se liga aos
efeitos que o tempo puro (imaginado) provoca, descontinuamente, nos espaços de seu
surgimento. Tal é a comunicabilidade entre o sonho e o pensamento: espaços de in-
versão, a casa como centro de devaneio onde experiência estética e racional podem,
ao mesmo tempo, realizar-se em estado bruto.
Tanto é que a casa serve, na trama dos seus aparecimentos, como resistência, tanto
da animalidade como também da natureza das intempéries. Frio, tempestade, uivos dos
ventos e do bestiário que solapa e faz tremer, todos esses compõem uma nuvem ener-
gética do desafio à ameaça do fora, uma humanidade feita iluminação de janelas, como
olhos a encarar o horizonte da morte. Sugere-se que a casa é que produz esse centro
de resistência; a partir de Rilke e Bosco, poderíamos compactuar com essa leitura de
resistência e supor que qualquer tentativa de metonimização da envergadura ontológica
de tal imagem em uma escola, uma sala (uma existencialidade a partir de uma biblioteca
ou mesmo um banheiro), a praça ou os terraços mais contemporâneos, seria desastrosa.
Um retorno à casa não é uma conciliação com o filamento histórico-clínico-psicológico.
É o primeiro dobramento na exterioridade. “[A] casa nos ajuda a dizer: serei um habitante
do mundo, apesar do mundo” (Bachelard, 1979, p. 227). É um problema de energia
e contra-energia que se impõe. É a entrada no jogo, no seio daquilo a que chamamos
mundo.

Didáticas (im)possíveis, (im)pensáveis


O espaço, diante dessa perspectiva, para ser investigado, requereria essa investida
no mais primaz de sua projeção. Espaços escolares, por exemplo, seriam ainda muito
conformados, ainda muito passivos diante da inexorabilidade de forças cósmicas, que
tomam o mundo como feito – e feito para sujeitos prontos, que se supõem aprendentes,
escreventes, ensinantes, viventes. Mas o vivo não surge em um espaço pré-concebido. O
vivo é um enfrentamento em relação ao caos, uma rivalidade imposta por um universo
aterrador. Então, não seria necessário criar espaços de aprendizagem, de escrita, de
ensino, de vida?
Designa-se, neste momento, na pesquisa do espaço poético, esse necessário re-
torno ao confronto primeiro entre forças viventes. Não há lugar para negatividade no

104
sentido de descobrir, desocultar, ocupar ou desbravar um espaço. Mas pesquisa, aqui,
quer dizer a aproximação exatamente dessa luta entre forças que se impõem umas
sobre as outras. Assim como Corazza (2015b) desenvolve uma pesquisa em Educação
utilizando um método de configuração de partes de um bloco (EIS AICE) que funciona
como um “discurso epistemológico de cientificidade mediana” (p. 1), entende-se que
pesquisar significa colocar discursos, conceitos, ideias, experiências, em rotação e
combinação contínuas; as forças que compõe tais estratos se deslocam e se chocam,
compondo historicidades e socialidades sempre múltiplas. É possível traduzir o
movimento crítico-tradutório da autora como uma urgência da novidade científica, que
cria espaços da Educação mais do que os reivindica.
A didática da diferença, evocada no início deste artigo, seria a investida nesta (trans)
criação de elementos culturais que produzam efeitos epistemológicos e pedagógicos. O
Espaço Poético sendo aqui entendido como espaço de tradução de uma didática (e um
currículo) da diferença (Corazza, 2015d, notas de aula).
As possibilidades de materialização de uma didática da diferença vêm sendo
desenvolvidas através do entendimento do texto como corpo intensivo, produtor de
pontos de fuga que o ressignificam. Nesse sentido, a literatura como potencial de criação
de espaços de vida na educação não é tomada como objeto de análise, menos ainda de
contemplação. As estruturas referenciais da educação são postas em cena num tipo de
escrita da Vida Educacional, como tarefa crítica, seja através de uma biografemática
da educação (Costa, 2010; Oliveira, 2010), seja como corpo de escrita, como conjunto
linear produtor de existências-limite (Costa, 2012). A ênfase na tradução didática dos
textos literários como corpos moventes capazes de recriar uma ambiência reconciliada
com o prazer de escrever, de ensinar e de pesquisar em educação pode ser encarada como
mais uma inflexão dessa materialização; esta pode, por uma outra via, ser entendida
como desmaterialização, como processo erotizante necessário ao ressurgimento de uma
Vida educacional de contornos interessantes (Feil, 2009).
Entretanto, nesta via de projeção didática que assume a diferença como disparador
de sentidos, há um problema de ordem empírica. Do ponto de vista de um pensamento
da imanência, de teor deleuziano (mas também nietzschiano e, fundamentalmente,
espinosista), a produção de imagens seria inseparável de sua própria instância pensamental,
isto é, não haveria, em princípio, um momento reflexivo para ensejar/disparar/autorizar
uma didática da diferença. Didática, nesse caso, não seria mais do que um conjunto
de ideias autoprodutoras, constituidoras e constituintes de um espaço de vida. Como
sugere Adó (2013), a pesquisa educacional, a fim de aumentar as potências de existir,
lança-se numa coleção de relações intercambiáveis, e, nisso, a escrita “autoimplica-se
na produção de imagens sem semelhança” (p. 26).

105
Corazza (2015b) delineia este problema empírico em termos de uma dobra teórico-
prática, expressa em pesquisas atuais e precedentes, que se consubstanciam entre
planos de aula, teorias da tradução-transcriação, formulações curriculares e didáticas
contemporâneas entre outros aportes culturais que transitam no bloco de pensamento
intitulado EIS AICE. O drama didático é o espaço-tempo prenhe de possibilidades de
atualizações didáticas e curriculares e de conceitos relativos à educação, que captura as
forças dos acontecimentos educacionais, nos limites das formas tendendo ao informe
(Corazza, 2012). Nesse sentido, a empiria não se expressa como um dado ao qual o
educador/pesquisador deve lançar o olhar “reflexivo”, ou “crítico”, mas o (re)escrever,
sobre as encenações do drama da aula, é que dá a ver a força do acontecimento, da
aula como espaço-tempo especial (Oliveira, 2014).
Em suma, o campo problemático da aula é que mostra ao educador as possibi-
lidades tradutórias da didática. A articulação da ideia e da prática é uma vasta rede de
combinatórias e intersecções, onde cada descrição, cada tradução didática, cada in-
flexão espiritual se expressa como uma reinvenção do mundo. Nesse viés, o espaço,
antes criado do que ocupado, é sempre espaço de novidade, pensamento e linguagem,
indissolúveis.

Fantasia teórico-prática: para incitar a tradução


Tomemos a casa como um ponto de partida independentemente do sistema filosó-
fico ou critérios de experiência estética donde se pudesse vislumbrar seu aparecimento:
uma imagem momentaneamente fenomenológica, de um fundo fantasístico. Desco-
briríamos aí que tanto Bachelard como Bergson poderiam ser lidos a partir de uma base
comum, um espaço de resguardo. Mas sabe-se que, para Bachelard, tal imagem de fundo
seria repetida e reafirmada como um despontar da razão e da poesia numa multipli-
cidade descontínua de produtos psíquicos. De uma fenomenologia provisória, como
procedimento inventado, na esteira da intervenção teórico-prática proposta por Corazza
(2015c), este autor passaria, desde nosso entendimento, a uma fenomenologia designada,
ebulição de imagens que seriam responsáveis pela torção e reavivamento do pensar
científico. Nesta investigação poética a casa é elemento de uma psicologia descritiva,
imagem através da qual a alma do poeta repercute no instante-limite do leitor. Já em
Bergson, nossa vã fenomenologia de sustentação inicial precisaria retornar ao informe,
tocando a experiência imediata apenas como intuição, via de acesso ao tempo que recusa
tanto a inteligência como o instinto como ordenadores/deformadores do pensamento.
Este traçado fenomenológico que propomos como torção conceitual não pretende
aproximar dois sistemas filosóficos, mas busca, outrossim, captar de tais sistemas aquilo

106
que eles possuem de mais potente no sentido de superar a estagnação do pensamento.
Para provocar tal superação, para nós, ao menos momentaneamente, não interessa
o contínuo ou o descontinuo, mas as duas leituras, as duas concepções de tempo que,
apesar de estarem em vias de uma polêmica, são imagens de filosofias que subvertem a
tradição científica.
No campo educacional, este gesto de suspensão de oposições conceituais seria, no
nosso entender, um gesto de afirmação dos dois sistemas filosóficos em favor de uma
teoria-prática educacional por vir. Nada aqui é realizado fora do escopo operatório que
mobilizou o artigo desde as primeiras linhas, ou seja, não se pretende senão exortar a
imagem da casa ao encontro de uma didática da diferença como movimento tradutório.
Para além das incompossibilidades teóricas, para além das descrições de sintaxes
filosóficas coerentes em função de seus paradigmas e para além da defesa de um discurso
educacional específico, buscou-se, por meio deste artigo, inventar um problema didático;
e, a partir dos cruzamentos elaborados, verificar alguns efeitos correlatos. Se entendemos
uma didática da diferença em consonância com uma didática tradutória, mesmo nosso
território conceitual-filosófico pode e deve ser dado à tradução. Talvez tenha sido este o
novo espírito científico desejado e propalado por Bachelard, no qual os conceitos devem
se reinventar, e, reinventando-se, ganham novos sentidos. E ganham ainda mais sentido.

Referências
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(Doutorado em Educação). Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação,
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2013.
BACHELARD, Gaston. A Poética do Espaço. (Trad. Antônio da Costa Leal e Lídia do Valle
Santos Leal). Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
BACHELARD, Gaston. Le matérialisme rationnel. Paris: Les Presses universitaires de France,
3e édition, 1972. Collection: Nouvelle encyclopédie philosophique, 225 pages. 1re édition, 1953.
CORAZZA, Sandra Mara. Didática-artista da tradução: transcriações. Mutatis Mutandis:
Revista Latinoamericana de Traducción, 6(1), 2013, 185-200.
CORAZZA, Sandra Mara. Didática da tradução, transcriação do currículo: escrileituras da
diferença. Projeto de Pesquisa. Faculdade de Educação – UFRGS. Porto Alegre, 2015b.
CORAZZA, Sandra Mara. Didática da tradução, transcriação do currículo (uma escrileitura
da diferença). Pro-Posições, v. 26, n. 1 (76), p. 105-122 | jan./abr. 2015a.
CORAZZA, Sandra Mara. Ensaio sobre EIS AICE: proposição e estratégia para pesquisar em
educação. Porto Alegre, 2015c. (mimeo)

107
CORAZZA, Sandra Mara. Glossário de EIS AICE. Seminário Especial Escrileituras no
observatório: pesquisa, didática e currículo. Notas de aula. Junho de 2015. PPGEdu – UFRGS.
Porto Alegre, 2015d.
CORAZZA, Sandra Mara. Método Valéry-Deleuze: um drama na comédia intelectual da
educação. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 37, n. 3, p. 1009-1030, set./dez. 2012.
COSTA, Cristiano Bedin da. Corpo em obra: palimpsestos, arquitetônicas. Tese (Doutorado em
Educação). Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2012. 177f.
COSTA, Luciano Bedin da. Biografema como estratégia biográfica: escrever uma vida com
Nietzsche, Deleuze, Barthes e Henry Miller. Tese (Doutorado em Educação). Programa de Pós-
Graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
Porto Alegre, 2010. 180 p.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. V. 2. Rio de
Janeiro: Ed. 34, 1995.
FEIL, Gabriel Sausen. Procedimento Erótico: na formação, ensino, currículo. Tese (Doutorado
em Educação). Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2009.
OLIVEIRA, Marcos da Rocha. Biografemática do homo quotidianus: o senhor educador.
Dissertação (Mestrado em Educação). Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de
Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2010.
OLIVEIRA, Marcos da Rocha. Método de dramatização da aula: o que é a pedagogia, a
didática, o currículo? Tese (Doutorado em Educação). Programa de Pós-Graduação em
Educação, Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre,
2014. 153f.
PESSANHA, José Américo Motta. Introdução à coletânea póstuma de artigos de Gaston
Bachelard. In: Bachelard G., O Direito de Sonhar. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1994.
p. 5-31.

Artigo publicado na revista Educação & Formação, Universidade Estadual do Ceará, Fortaleza,
v. 1, n. 2, 2016.

108
Transcriação do currículo
Parte 2
CURRÍCULO E DIDÁTICA
DA TRADUÇÃO: VONTADE,
CRIAÇÃO E CRÍTICA

Sandra Mara Corazza

Introdução
Será preciso, pois, perdoar-me um estilo didático:
não busco senão assegurar-me a mim mesmo de certas coisas.
Ponge, 2000, p. 41.

Se, em meio à categoria profissional dos professores, interrogarmos o que nos


leva a educar e a prosseguir educando; qual é o motor político e a alegria subjetiva da
nossa profissão; qual é a força de trabalho que traz vitalidade às nossas existências;
estaremos posicionados em uma perspectiva constituída por problemáticas acerca da
especificidade da disposição e do impulso para educar; ou seja, no campo do conceito
nietzschiano de vontade de potência – Wille Zur Macht – (Nietzsche, 1945; 1986;
2008; Müller-Lauter, 1997; Marton, 2000; 2001).
Para conhecer a força criadora da nossa profissão – a vontade da potência de
educar –, a filosofia e a pesquisa da diferença indagam: por que, apesar de tantos e
tão duradouros revezes, os professores não deixam de se por em combate incessante;
ora pactuando, ora se opondo aos obstáculos de governo e de gestão, à precariedade
das condições financeiras, às incompreensões dos alunos e às intolerâncias das famílias?

111
Ou seja, apesar de tantas disposições em prol das formações de poder e da repe-
tição das mesmas ideias e percepções sobre a condição profissional dos professo-
res, indagamos por que a nossa vontade de potência – isto é, a força plástica de fazer,
produzir, efetuar, formar, criar educação – não pode nada mais a não ser aumentar?
Visto que, como afirma Marton (1997, p. 11), “[...] enquanto força eficiente, a vontade
de potência é força plástica, criadora. É o impulso de toda força efetivar-se e, com
isso, criar novas configurações em relação com as demais”.

Vontade de potência
Desde essa perspectiva, enfocamos o nosso fazer-pensar como um ato afirma-
tivo, constituído por fluxos contínuos e matéria-energia, cuja “relação da força com
a força chama-se vontade” (Deleuze, 1994, p. 22). Concebidas como intrinsecamente
artistadoras, as vidas dos professores são visualizadas como movimentação de vivên-
cias e de percursos, que se criam e criam, durante os próprios percorridos, expressando
a corporeidade do devir e a possibilidade de se potencializar, transformando-se.
Vivências e percursos que são impregnados de valores, em dois sentidos: “[...] valor
(significação) de cada elemento como termo de um conjunto e valor (qualidade estética)
de cada elemento e do conjunto, enquanto elemento de um conjunto maior” (Moisés,
1973, p. 95).
É essa vontade de potência que estimula os acontecimentos, as novidades e o pensar
no pensamento educacional, fazendo nossa profissão ser vivida como poesia e dotando-a
de uma disposição trágica: isto é, da capacidade que temos de nos decidir politicamente
pela responsabilidade vital de educar. Vontade que, agindo sobre outras vontades, con-
siste no querer interno, concernente a nosso ser e a nosso fazer (Deleuze, 1976); que é
concebida como força de expansão e de superação de nós mesmos; que se reinscreve em
feitos, enquanto energia de afirmação e de criação de mais vida (instinto, amor, paixão);
e como exercício experimental que, ao ser realizado, diz sim à própria vida como arte.
Diante da vontade, como invenção estética não descoberta da verdade, que cria
ficções – entre as quais, o professor, o currículo, a didática –, temos condições de pes-
quisa para formular problemas acerca da potência criadora, que nos torna distintos do
que somos; sobre as suas especificidades, que nos levam a produzir ideias não petri-
ficadas e novas redes de socialização; acerca da repercussão de valores arraigados e da
atualização de verdades; sobre a composição dos modos de subjetivação não massificados;
acerca do caráter diferencial de bens materiais e culturais ainda não assimilados.
Dito de outra maneira: ao insistir em pensar e pesquisar a docência, para além
dos descalabros e crueldades, que cercam a nossa profissão, adotamos o ponto de

112
vista de valorização da vida artistadora de um professor; impregnando-a de um
“[...] relevo artístico criado e produzido pela vida afirmada e pelo sofrimento surpre-
endido no empenho mesmo que o saúda e o transfigura” (Escobar, 2000, p. 65). A
pesquisa aponta na direção daquela força que, ao mesmo tempo em que produz o
surgimento da novidade educacional, configura o pensar-fazer docente naquilo que lhe
é constitutivo. Dessa maneira, a principal luta dos professores nada mais é do que uma
forma de busca pela vida; isto é, por sempre mais vida.
O trabalho dedica-se a fazer aparecer a vontade de potência de educar, no seu estado
máximo de visibilidade e de dizibilidade (Deleuze, 1991); ou seja, com rigor e precisão.
Para isso, tem necessidade de afiar a maneira de dizer e a forma de ver dos pesquisadores
acerca das extrações de arquivo (Deleuze, 2015a; Foucault, 2005); fazendo cada dado
operar em sua acepção mais forte, não apenas em direção à potência, cuja natureza
não pode deixar de aumentar; mas, especialmente, na descrição de como esse aumento
– ao modo de Nietzsche, lido por Klossowski (2000, p. 66) – nos leva a perscrutar a
vontade de potência; no sentido de “[...] uma intenção – uma tendência a, na direção de
–, logo, precisamente aquilo que, aliás, ele [Nietzsche] afirma ser apenas uma ficção da
linguagem”.
Mesmo que conheçamos o hiato existente entre a linguagem e o que ela não alcança,
entre o transpor e o intransponível, entre o traduzir e o intraduzível – ou seja, aquilo que
pertence à ordem do real propriamente dito (Rosset, 1998) –, pesquisamos a vontade dos
professores, como se disséssemos, pela primeira vez, as palavras que fazem aparecer
sua energia (no sentido físico); seu impulso (como sensação); sua tendência (como
eterno retorno); e sua disposição (como qualidade de concreção). Vontade da potência
de educar, que se ramifica e persiste, aquém e para além das dificuldades que a Educação
cria para si mesma; juntamente com as dificuldades que são produzidas, para ela, pelos
sistemas sociais, políticos, financeiros.

Ideia elevada
Considerando que os dados, obtidos por uma pesquisa da diferença, não são um
estado de fato, mas uma invenção – um ponto de bifurcação, um erro em movimento,
um trabalhar do trabalho que avalia e interpreta –, apelamos ao ainda não interpretado,
indiferente a sua espécie, como o seu medium específico; o qual, conforme Adorno
(1992, p. 208), “é a figura secreta de todos os que ainda não nasceram”.
Evitando os comentários e ideários, e deixando de lado a forma de anotação lírica,
bem como a afeição metafísica pelas definições, ao ensaiar alguns fatos acerca da von-
tade de potência de educar, designamos a concretude das problematizações, formuladas

113
pela força plástica das vidas dos professores, no locus do território educacional, onde
esta força se forja.
Isso porque propor algo deste teor, com um método ensaístico-factual, na relação
com as palavras e com as coisas da educação, parece valer a pena, desde que aceitemos
a necessidade de ter uma ideia elevada, seguindo Valéry (2003, p. 121), ao mencionar
uma afirmação do septuagenário Degas: “É preciso ter uma ideia elevada, não do que se
faz, mas do que se poderá fazer um dia; sem o quê não vale a pena trabalhar”.
Inclusive, devido a nossa própria experiência de educar, sabemos que nada está dado
e que quase tudo está para ser construído, no domínio educacional; não nos cabendo
repetir, mas enfrentar os obstáculos, sem compactuar com a precariedade da profissão e
com a sua posição social rebaixada – as quais, historicamente, o real vem reproduzindo,
nos outorgando e submetendo.
Talvez seja por aí que, como diz Adorno (2003, p. 157-158), possamos nos
movimentar em direção ao desejo (nunca realizado) de criar uma obra “em que apareça
mais potência ou perfeição do que encontramos em nós mesmos”; fazendo com que
este objetivo positivo retire “[...] indefinidamente de nós esse objeto que escapa e se
opõe a cada um de nossos instantes, de maneira que cada um de nossos progressos o
embeleza e o afasta”.
Enfatizando o processo de construção do devir de educar, ao invés de uma obra
pronta, lidamos não com forças reativas ou queixas ressentidas, nem com receptividade
subalterna ou inferioridade vindicativa, que enfraquecem a vontade dos professores de
teorizar e de escrever; de usar suas faculdades fabulatórias; de ter o máximo de atenção
cognitiva e sensibilidade afetiva pelas diversas autocriações de que nossas vidas estão
povoadas. Assim, em vez de liberar o acesso para algum complexo de inferioridade,
valorizamos, acima de tudo, “nossas faculdades de construção, de adição das durações
e de transformações pelo espírito” (Valéry, 2003, p. 121).
Certamente, é por meio da vontade do que poderemos ser um dia, que não nos
deixamos reduzir a meros aparatos receptores e transmissores; tampouco a emissores de
reflexos e instrumentos de condicionamentos; condições que nos levariam à dominação;
ao servilismo dos velhos problemas acompanhados das caducas soluções; e, mesmo, ao
consenso usual e corrente, que reduz as ações docentes a dar uma aula, um currículo,
um conteúdo ou uma matéria – matéria, aliás, que a nossa pesquisa compreende como
amorfa, não-formada, não-organizada, não-finalizada; logo, com receptividade para ser
afetada e espontaneidade de afetar (Deleuze, 1991; Deleuze; Guattari, 1995).
Resistimos, assim, contra as posições de segundidade (e, até, de terceiridade), que
nos foram imputadas, durante a história da Educação; esforçando-nos por nos tornar,
cada vez mais, mestres e autores de nós próprios; que não capitulam seja à facilidade,

114
à imbecilidade ou à resignação. Mesmo que uma vida de professor e suas docências,
como obras de arte, sejam difíceis de realizar, a pesquisa mostra que apenas a vontade de
potência de educar encarna e exerce pressão contra as condições que meramente existem
– porque essa vontade condensa a riqueza e a beleza de uma ideia elevada de educação.

Para criar
Adotando a proposição adorniana de viver para criar uma obra com mais potência
do que aquela que, no presente, encontramos em nós, a pesquisa evidencia que as
artistagens docentes recusam o jogo da falsa humanidade dos professores, em termos de
aprovação social à própria humilhação; consistem em uma posição que não nos deixa
ficar estúpidos; evitam que nos deixemos enganar ainda mais; não nos tornam cúmplices
ou meras testemunhas; e, tampouco, envergonhados pelo que somos e pelo que fazemos.
Isto para que – como Adorno (2003, p. 163) encontra na obra de Valéry – possamos
encarnar “[...] a resistência contra a pressão indizível exercida sobre o que é humano pelo
que meramente existe”; pois, é sempre “melhor perecer buscando o impossível”.
Sem pretender confundir argumentos ou formulações, e correndo o risco de a
pesquisa, aqui relatada, ser acusada de superestimar a arte – a par de ser interpretada
como uma escrileitura (escrita-leitura) hagiográfica de alguma vida abstrata de um
professor-artista desencarnado –, demonstramos que é o professor-tradutor o portador da
vontade de potência que transporta, transpõe e transfere criadoramente em currículo e em
didática; ao mesmo tempo em que condensa um sujeito social coletivo, intrinsecamente
dotado de vida afirmativa.
Através dessa vontade de espíritos livres, temos condições de nos orgulhar do fazer
e do desejar de professores, criando, com a nossa profissão, uma obra artística, que
se dispõe como um efeito de real (Barthes, 2004). Em meio à realidade que ainda não
existe, investimos esforços de pesquisa, fabricamos constância de ensino e de orien-
tação, ensaiamos experimentações de escrileituras, fazemos exercícios contínuos para
pensar – carregando conosco um baú, do qual ainda não conhecemos todos os tesouros.
Porque a pesquisa concebe o fazer-pensar dos professores como territórios atípicos,
não integráveis, em errância, desde sempre desterritorializados, problematizamos o acaso
singular e as diferenças nelas mesmas, transfigurando os espaços, as imagens e os signos
curriculares (EIS); bem como a ação didática, composta por autores, infantis, currículos
e os próprios educadores (AICE), enquanto trabalhos criadores (Corazza, 2013).
Impossibilitada de retirar as matérias do tempo e do pensar no pensamento e, muito
menos, de naturalizá-las ou mistificá-las, a pesquisa valoriza a força produtiva, inventiva
e descentralizadora da docência, que se imprime na intempestividade dos seus atos

115
tradutórios futuritivos; em suas lutas históricas contra os crimes; em sua resistência
contra os descasos educacionais e desastres sociais. Assim, o pensamento passa do
fatum (destino) dos professores para a sua precipitação em beleza (o amor fati); e trata a
vontade de potência de educar em aliança com a ficção, para expressar o viveiro de suas
questões e ações.
Para a pesquisa, um currículo tradutor e uma didática da tradução não são tão-
somente mais um pensamento sobre o currículo e a didática; mas a corporeidade concreta
da vontade dos professores e a sua ética desejante de viver com o caos e seus devires:
“Viver – isto significa, para nós, transformar continuamente em luz e flama tudo o que
somos, e também tudo o que nos atinge; não podemos agir de outro modo” (Nietzsche,
2001, p. 13). Vejamos como essa luz e flama se criam, se inventam, se produzem,
se representam, se expressam (Moisés, 2006), mediante os dados de uma pesquisa
ensaística-factual.

É já traduzir
Temos escrito sobre tradução, sem integrar o campo da tradução. Isso porque, como
professores, passamos um longo tempo acreditando que a tradução não nos dizia res-
peito; a não ser, no mínimo, como consumidores, glosadores, imitadores e transmissores
de seus resultados; ou, no máximo, como produtores de traduções de uma língua para
outra.
Foi preciso chegar a este século XXI e às refutações e contestações, possibilitadas
pelas derivas do pensamento denominado pós-estruturalista, pós-crítico, pós-moderno,
pós-utópico, pós-metafísico – ou de “[...] ‘um antes do ser’ (já que do ser não temos outro
conceito senão aquele que a metafísica nos legou)” (Pardo, 2006, p. 122) –, para assumir
que a nossa potência criadora, como professores, é traduzir, transcriando (apud Tápia;
Nóbrega, 2013).
Como toda palavra do mundo é já traduzir (Paz, 1981) e todo traduzir abre,
para as palavras e o mundo, novas possibilidades de existência, a pesquisa demostra
que a tarefa precípua dos professores é, no fundo, traduzir, inventivamente, a própria
vida, considerada um processo de criação (Villani, 1999). Em função de resultados,
argumentamos que tanto as ações didáticas como a produção de um currículo consistem
em atos tradutórios, que acontecem em tempos-espaços irredutíveis entre si; embora
as duas faixas de tradução, apesar de suas especificidades, se reencontrem em vários
momentos do processo educacional.
Como nenhuma verdade é evidente por si mesma e nenhum axioma é indiscutível,
para chegar a este ponto factual – com seus arquipélagos de figuras filosóficas, literárias e

116
educacionais, constelações de problemas e linhagens fictícias –, a pesquisa problematiza:
o que é um ato de criação curricular ou didática? Quando temos uma ideia de didática e
de currículo? Como ocorrem as suas gestações? Colecionamos dados para elaborá-los?
De que tipos de arquivo tais dados são extraídos? De que modo lemos e escrevemos
uma didática e um currículo? Um currículo e uma didática podem ser mais ou menos
criadores, ficcionais, imaginários, lógicos, reais? Quando os elaboramos, construímos
mundos possíveis? Quais os limites intelectuais, sociais e culturais das traduções
didáticas e curriculares?
Apesar dos malogros, disrupções e quebras especulativas, a pesquisa indica que
as correlações entre a tradução curricular e a didática ocorrem da seguinte maneira:
para constituir um currículo, nós, professores – se não delegarmos esta tarefa a outros,
como o estado, o governo, a universidade, a indústria do livro –, capturamos porções
das culturas; apreendemos saltos de sentidos das matérias e fazemos nós nas linhas
das disciplinas; estancamos fluxos da tradição; crivamos porções da ciência, da arte
e da filosofia (Deleuze; Guattari, 1992); escolhemos e inflexionamos autores, textos,
obras, conteúdos, formas, signos – mundanos, sensíveis, amorosos, artísticos (Deleuze,
1987) –; valorizamos subjetividades e ideias, técnicas e instrumentos, verdades e
certezas. Com o currículo traduzido, acabamos formando um logos; ou seja, atri-
buímos uma lógica ao conjunto assim configurado, expressa em um sistema, estrutura,
sequência, ordenação, princípios formativos, fundamentos inteligíveis.
Porém, a força plástica da docência não cessa aí; pois, ao prosseguirmos educando,
nem bem acabamos de traduzir, de modo curricular, deslocamos este resultado tradutório
para a cena da aula – que é sempre dramática, por se tratar, ali, da qualidade diferencial
do humano. Ao movimentar, agora, de maneira didática, as traduções curriculares,
anteriormente efetivadas, elas ficam dispostas no tempo da sua circulação, atualização
e recriação – que é o tempo aberto do contemporâneo, concebido como transmissão
e desapego; isto é, voltamos a traduzir as matérias integrantes do currículo, não mais
de maneira lógica, mas, dramaticamente; isto é, de modo humano, demasiado humano
(Nietzsche, 2000).
Por conseguinte, nas aulas, as traduções didáticas forçam o ciclo a recomeçar;
enquanto um novo logos curricular vai sendo processado; à medida que o currículo
existente será, paulatinamente, substituído pelos resultados das traduções didáticas; até
que esses sejam, novamente, capturados em um novo currículo; o qual será, mais uma
vez, movimentado em outras cenas didáticas. A partir dessas cenas e do logos curricular,
as novas traduções – da tradição e culturas, das disciplinas e valores, das verdades e
subjetividades – espalham-se outra vez no socius, e tudo reinicia. Esse ciclo demarca o
valor civilizatório das traduções realizadas pelos professores.

117
Ato interpretativo
Embora muitos tenham pretendido que acreditássemos e praticássemos nossa
profissão numa atitude impotente; embora, em nossa formação, nos tenham transmitido
uma mística da submissão; embora nos tenham subjetivado, como dependentes e
tributários de autores, livros, fontes; desde o pensamento da diferença, o ato de educar
jamais é considerado uma recepção passiva nem uma transmissão etérea; mas, justa-
mente, uma irrupção crítica do novo, no sentido de Derrida (1996, p. 2): “[...] a
responsabilidade do pensamento crítico consiste também em calcular uma justa
irrupção: devemos dizer aquilo que se acredita que não se deve dizer”.
A responsabilidade ética, que assumimos ao educar, não poderia não ser essa
irrupção, desde que exercemos a profissão em um espaço relacional humano, imbricado
com as heranças, com a bagagem, com os espectros das gerações, com a tradição – “A
tradição é uma coisa aberta. Não pode ser deixada à custódia sedentária de curadores
acadêmicos, sem o faro do fazer criativo” (Campos, 1968, p. 65). Espaço relacional,
formado pelos modos como acolhemos os elementos que nos são legados; como, ao
traduzi-los, os irradiamos, modificamos a sua importância, atribuímos sentidos, reti-
ramos significação, os desconstruímos e transformamos em novos signos e imagens.
Como um ato transcriador, educar não se reduz a transpor – de um lugar, de uma
fonte, de alguém a outro – um pensamento, um saber, um conteúdo, uma forma ou
uma matéria, como se fossem coisas. Educar consiste num processamento vital, que
reinterpreta – em termos de linguagem e silêncios, políticas e culturas, valores sociais e
fatos temporais – aquilo que é, por sua vez, produzido em áreas tão amplas, como aquelas
que Deleuze e Guattari (1992) denominaram as três Caóides ou filhas do Caos: a ciência,
a arte e a filosofia.
Por isso, educar implica interpretações – no sentido nietzschiano (Azeredo; Júnior,
2012) –, que sejam ativas e críticas; as quais multiplicam e diferenciam versões, ao
redor de operações inovadoras; afetam o conjunto dos sentidos aceitos e das culturas
majoritárias; remetem ao afirmar, ao produzir e ao criar.
Desde esse ponto de vista interpretativo – o qual, conforme Deleuze (2015b,
p. 206), não significa transmitir o que algum filósofo quis dizer, mas apresentar suas
“criações conceituais e traçar as linhas que vão de um conceito a outro”–, compreendemos
porque a perspectiva de uma educação tradutória aniquila toda noção de essência e
de fundamento; ressalvando que não existe lugar para a repetição ascética, seja dos
conteúdos, disciplinas ou matérias.
Educar consiste em traduzir não numa única direção, mas, ao menos, nas três
direções apontadas por Jakobson (2001), quais sejam: intralinguisticamente, quando

118
traduzimos no interior de uma mesma língua, segundo os sexos, idades, regiões, níveis
de ensino, competências sociais; intersemioticamente, quando recriamos a pintura, a
leitura, a escritura, e vertemos o corporal ao discurso ou vice-versa, mudando as matérias
de um meio ou suporte a outros; interlinguisticamente, de uma língua a outra, quando
consideramos que as artes, as filosofias e as ciências são produzidas por outras línguas,
que transcriamos (com nossos alunos), nas línguas do currículo e da didática.
O fazer e o pensar educacionais não significam nada, previamente, mas consistem
na potencialidade tradutória do que seja curricularizar e didatizar; por meio da qual
adquirem uma natureza construída de crítica e de criação. Porém, crítica e criação do
quê? Crítica do funcionamento perverso do mundo e das existências; do tipo e estilo de
trabalho, que faz sofrer e humilha; das fachadas identitárias, que domesticam os desejos;
do dogmatismo do pensamento em Educação; da ortodoxia universitária e escolar; da
moral hegemônica dos afectos; da repetição dos comentários, em busca da fidelidade
ao verdadeiro sentido de textos e autores; da erudição e das teorias não reavaliadas.

Paradoxos da tradução
Para a pesquisa, a existência de alguma coisa como o currículo tradutor, a didática
tradutora ou o professor tradutor não são evidentes. Para começar, não existem, como a
pedra, o sol ou o cão; logo, não podem ser objetos ou seres que derivem de uma certeza
sensível. Embora, tampouco, sejam coisas que possam ser induzidas, como o sistema
planetário, por exemplo, através dos efeitos provocados nas órbitas de outros corpos.
O professor, a didática e o currículo da tradução consistem em uma determinação
do pensamento, que incide sobre fenômenos singulares, como comportamentos e modos
de agir, sentir, pesquisar. São, por isso, determinações objetivas e factuais, que afetam
o próprio conhecedor dessa condição tradutória da educação, em sua subjetividade de
docente-pesquisador.
Considerando que isso não tem pouca importância na forma como valorizamos e
interpretamos o que fazemos e dizemos, como professores, sublinhamos que, embora
isso faça algum sentido, necessitamos verificar, se não alguns problemas, alguns
paradoxos do processo tradutório, junto a Haroldo de Campos (apud Tápia; Nóbrega,
2013), quando afirma (citando Albrecht Fabris), em seu texto seminal sobre a teoria da
tradução transcriadora: “O lugar da tradução seria, assim, ‘a discrepância entre o dito e
o não-dito’”.
Trata-se de um dos paradoxos da tradução, dividida entre ser criação e ser inter-
pretação; sendo que, em ambas as faixas, a tradução é vista como possibilidade de criar
variações em relação ao original. Quando essa atitude se extrema – pela dissonância

119
entre o dito pela matéria de partida e o dito pela matéria de chegada –, a tradução torna-
se uma aventura de risco; levando os professores a operarem com as matérias, das
quais se ocupam, também, na deficiência das suas sentenças e em sua não-linguagem.
Em decorrência, a nossa tarefa é a de antilusionistas, que desvendam os artifícios
da criação, como intérpretes da arte, da ciência e da filosofia. Assim como os atores,
aparecemos, diante dos personagens que nos cabem, à luz da teoria do paradoxo do
comediante de Diderot (2006), quais sejam: como aqueles que são outros (no caso,
tradutores), sendo nós mesmos (professores); condição que nos encaminha, também,
a criar duplos das matérias traduzidas, que são outras, mas têm de prosseguir sendo
as mesmas, sem perder a sua condição de algo criado; de modo a conservarem, como
enumera Ponge (apud Motta, 1997, p. 139), “[...] a resistência dos monumentos:
sarcófagos egípcios, colunas gregas, vasos etruscos, inscrições tumulares romanas,
cordas da lira”.
Dito de outra maneira: como intérpretes e críticos da herança humana, somos
atravessados pelo paradoxo de ser professores que são também tradutores, continuando
a ser professores; além de movimentar matérias que, ao ser atualizadas, são renovadas;
mas têm de continuar sendo matérias criadas por outros, em outros tempos, espaços,
problemáticas. Esses dilemas povoam o ato de criação daqueles que educam; pois, se,
por um lado, a tradução deve prosseguir sendo ligada à matéria-fonte e, assim, manter,
em algum grau, a sua equivalência de código ou de sentido; para que esta mesma matéria
seja revitalizada, a tradução tem de transcriá-la, porque não pode não fazê-lo.
Supostamente divididos entre a tradução criadora e a interpretação crítica, em meio
ao processo de dar vida nova àquilo que já foi criado, em áreas consideradas originais,
experimentamos variações transculturais, através de inflexões, apagamentos, seleções,
destaques, complexificações, facilitações, manutenção de estilo, reviradas de padrão. A
nossa tarefa tradutória consiste em um jogo paralelo, atento à linguística e à semântica;
modo de construção dos significados; correntes temáticas de cada área, disciplina, nível
de ensino; dinamismos espaços-temporais e estruturação global de cada criação.
Além de povoarem o domínio curricular e didático, que é trans-histórico, as matérias,
que resultam das traduções docentes, são sempre críticas; desde que expressam uma forma
de interpretação dos autores, textos, ideias, epistemés. Como professores-tradutores,
relemos e reescrevemos o existente, mediante uma atitude crítica, que exige compreensão
e superação das matérias originais, lendo e escrevendo entre linhas; atentando para
singularidades menos transparentes; decompondo-as de fora para recompô-las por
dentro – dentro que é coextensivo ao fora (o que pode ser chamado tempo).
Embora, de um alhures ponto de vista, as práticas tradutórias, que resultam na forma-
currículo e na forma-didática, sejam consideradas operações de segundo grau – e, logo,

120
hierarquizadas como inferiores, já que dependem que algo tenha sido previamente criado
para ser efetivado –, quando a pesquisa desloca essa inflexão de ângulo e conceitualiza
tais operações como interpretações críticas, traduzir passa a ser realizar a melhor leitura e
a melhor escritura possíveis de um plano de pensamento (filosofia), de composição (arte)
e de referência (ciência) (Deleuze; Guattari, 1992).
As traduções se tornam, então, operações transcriadoras, ao produzirem, nos
currículos e nas didáticas das aulas, algo novo e diferenciado, embora paralelo àquilo
que já foi criado: Bíblia, Divina Comédia (Dante), Enciclopédia Francesa, Madame
Bovary (Flaubert), Coup de Dés (Mallarmé), Cantos (Lautréamont), Ébauche d’un
serpent (Valéry), A filosofia da composição (Poe), Flores do mal (Baudelaire), Hamlet
(Shakespeare), Interpretação dos Sonhos (Freud), Ulysses (Joyce), Crime e castigo
(Dostoiévski), Um conto de Natal (Dickens), Teoria da Relatividade (Einstein), Modelo
Heliocêntrico, Epistemologia Genética (Piaget), Escola de Frankfurt, Existencialismo,
Princípio de Avogrado, Partido das Coisas (Ponge), linha (Mondrian), Las Meninas
(Velázquez), Los Caprichos (Goya), amarelo (Van Gogh), cinema (Hitchcock), luta de
classes (Marx), conceito de transcendental (Kant), Pli selon pli (Boulez), quatro opera-
ções, método cartesiano, massa atômica, vassoura da bruxa, substantivo e adjetivo, etc.

Vida à peça
Do mesmo modo que, na música, somos nós – professores-tradutores-intér-
pretes – que damos vida a cada peça ou tema, anteriormente escrito e executado, ao
recriar suas particularidades e problemáticas; dotá-los de outros conteúdos e formas;
dispô-los no currículo ou na cena didática – mesmo atentando para os padrões e códigos
da criação original. Daí decorre a necessidade de estudar e pesquisar cada currículo e
cada didática, que nos cabe atualizar, para verificar como e em que medida as leituras
e escrituras deles já feitas diferenciam-se entre si, para que não realizemos as mesmas
operações tradutórias.
A pesquisa demonstra que existem graus de maior ou menor inventividade ou
literalidade, dependendo do nível de relação de cada professor com a matéria que traduz;
isto é, como a considera (admira, respeita, ama) e com ela trabalha: de modo mais ou
menos intocável, sagrado ou canônico; lente de aumento, estatura intelectual, obsessão
política; sujeito a improvisações, submetido a necessidades; sentido fechado ou aberto;
remédio ou veneno.
São essas disposições desejantes e movimentos intensivos para com a matéria
traduzida que nos levam a dispor cada currículo e cada didática, enquanto mais ou
menos prontos ou produzidos inventivamente; direta ou indiretamente transpostos para

121
o que chamamos realidade da escola ou da Educação – realidade que, na verdade, é
também ela resultado de alguma tradução. Por isso, importa que não percamos de vista
que, ao educar, traduzindo, estamos utilizando um engenho interpretativo; o qual, ao
ser usado, impede que nós próprios não sejamos mais os mesmos que éramos, antes de
suas passagens e deslocamentos.
Ao atualizar as matérias curriculares, nos espaços-tempos didáticos, as forçamos a
permanecerem nelas próprias, como resultados de criações; mesmo que, inobstante, as
obriguemos a se integrarem a este século, turma, escola, vila, cidade, estado, país. Esses
movimentos tradutórios, que ocorrem em dobramento, levados a efeito pelos duplos (que
somos nós), encaminham a pesquisa a explicitar uma espécie de sistema genético de
construção de tal currículo ou de tal didática.
As principais operações são feitas para desconstruir o papel logocêntrico, modelar
e compacto das matérias-fonte a serem traduzidas, lutando contra os seus poderes de
sedução, de envolvimento e de autoridade; bem como no desmanche de nossa função
secundária e dependente como professores. Para tanto, precisamos conhecer cada
matéria, de maneira a acolher o incognoscível que a povoa; aliada a onde e para quem
ela é atualizada; de modo que seja possível permitir, às traduções, para equivalê-las às
originais, maior ou menor precisão, vaguidade, pontos obscuros, ou o acréscimo de uma
grande carga de matéria nova.
Quanto menos o trabalho docente for limitado a regras fixas e, quanto mais sensível
permanecer aos movimentos do informe (Valéry, 2003) – ainda não reconstruído por
operações racionais –, mais dispostos estaremos à invenção de novas formas. Cada
tradução rompe, em níveis diversos, as regras, mediante as quais foram criadas tais ou quais
matérias; de maneira que, durante o processo tradutório, quanto mais as interpretarmos
e criticarmos, desviando-as do projeto inicial, maior o risco de distanciamento e tanto
maior a possibilidade de criação diferencial de matérias.
Equivalência e paralelismo de um lado, substituição e criação de outro, essa é a
ambivalência da nossa experiência profissional. Jogo complexo de tensão e equilíbrio,
onde ninguém ganha, a não ser a renovação do mundo, a revitalização do processo
civilizatório e a reinvenção das existências (nossas e alheias). Jogo arriscado, formado de
transposições e de rupturas das elipses que nas matérias permanecem. Jogo realizado em
um tabuleiro, situado entre a letra morta de cada matéria (que carrega sentidos supostos)
e a sua letra inédita, conflituada e dotada de originalidade.
Com intensidades e graus diversos de literalidade e de criação, as operações tradutórias
assemelham-se a um jogo de dados, no qual, as regras vão sendo criadas e avaliadas, tal
qual Zaratustra: “Se algum dia na divina mesa da Terra, joguei dados com deuses, a tal
ponto que a Terra tremeu e fendeu-se e expeliu torrentes de fogo” (Nietzsche, 1986,

122
p. 235); assim, o nosso trabalho de educar é, sempre, um audacioso work in progress,
um work in process, como obra de arte, que pressupõe variações e desafios contínuos.

Riscos no limbo
Vivendo numa espécie de limbo, no qual “uma palavra é um abismo sem fim”
(Valéry, 1991, p. 63) –, corremos, como todos os tradutores, os perigos daqueles que
povoam um não-lugar; além de estabelecer, com as matérias de partida, uma não-relação
que, a um só tempo, toma e afasta, recolhe e trai, segura e solta, acopla e desencaixa.
É que, apenas oscilando entre o amor e o ódio aos sentidos pétreos de cada uma das
matérias que traduzimos, conseguimos extrair o mais admirável prazer da nossa profissão:
transcriar as matérias que já foram nominadas, classificadas, dotadas de um sentido
ou de uma forma.
Nesse espaço-tempo indecidível (Derrida, 2002), em meio a jogos relacionais e à
profusão de efeitos humanos, enfrentamos o risco de traduzir uma matéria, de um modo
tão afastado da original, que esta não carregue mais, em si mesma, a possibilidade de ser
identificada por seu próprio valor de criação; e, logo, que não apresente mais a condição
intrínseca (criadora) de ser revitalizada pelas traduções curriculares e didáticas.
Para minimizar essas ameaças e nos dotar de algumas precauções de prudência,
usamos, como critério do êxito tradutório de uma matéria, a sua maior ou menor
vitalidade; os seus contornos mais ou menos paralelos; a sua vulgarização ou erudição;
a sua utilidade para tornar contemporâneo o que, se não fossem as traduções, integraria
uma ordem tanatográfica.
Só o trabalho meticuloso dos atos curriculares e dos procedimentos didáticos, em
direção a uma avaliação genética de cada tradução feita, pode identificar a imanência
produtiva dos resultados, em termos de determinada perspectiva e sujeito interpretantes;
repertório controlável de palavras; grau de conotação e denotação; funcionalidade e
adaptação; universo semântico, linguagem rude e imagens grotescas; cortes bruscos e
esquemas rítmicos; asperezas, dificuldades e ubiquidades.
Assim sendo, não existe tradução definitiva; e, a cada vez em que uma for realizada,
precisamos cotejá-la, mediante critérios específicos, com as traduções que se superpõem
ou se complementam, verificando o seu nível de interesse e de importância, além de quão
notável se torna. A congenialidade possível entre a matéria-fonte e a sua tradução pode
ser mais ou menos nítida e consciente; burlesca e intocável; certeira e convencional;
acurada e ofuscada; fechada e estranhável; silogística e universal; múltipla e edênica;
exorcizada e colada ao original; luciferina e extravagante; dramática e mítica; inquietante
e plena de certezas.

123
Para escolher o tipo correlato de ênfase e de movimentos adequados a cada ato
tradutório, necessitamos, ainda, avaliar qual a finalidade daquela tradução: se mera in-
formação; radicalidade interpretativa; especificação da significação, forma e eficácia
linguística; indicação da tonalidade de conjunto, sem dispêndio das partes; alto grau
de legibilidade; nobreza, vulgaridade, facilitação e sofisticação; intermediação entre
dois ou mais códigos ou independência; funcionar em lugar do original ou intermediar
o acesso a ele.
Um desvio tradutório acentuado, por vezes, acaba não relacionando a tradução ao
conjunto original, que nos interessa atualizar; de maneira que esse conjunto pode ser
desmembrado e deixar de existir como tal, perdendo o impulso a significação funcional
de suas ideias. Por esse motivo, o modo de expressão e a forma de conteúdo (Deleuze,
1991) de uma matéria curricular ou didática traduzida necessitam ter as suas vozes
moduladas: para que aquilo que dizem não se anule nunca e não anulem a voz original.
A revitalização da tradição, por meio da tradução, é uma operação delicada e
incompleta e, não raramente, defeituosa. O nosso principal cuidado reside em tornar
objetiva a matéria de partida; sem deixar de relacioná-la com as outras matérias tra-
duzidas; e, muito menos, com o mundo social e cultural. Trata-se, novamente aqui, de
sustentar relações tensas, sem que ninguém possa nos alcançar uma chave-mestra ou um
metrônomo, que valha para todas as operações tradutórias. As micro e macrorrelações
entre as matérias de partida e as de chegada constituem a fatalidade da nossa profissão;
e, no mesmo instante, consistem na mais rica possibilidade para que deixemos nossa
marca e assinatura como autores.
Em verdade, o respeito (e mesmo a paixão) pela matéria original exige de nós
admiração e agressividade; aspereza e delicadeza; conhecimento das traduções anteriores
e escolha de um ponto da galáxia, no qual situar a tradução efetivada. Carece de valor
usar uma atitude espontaneísta ou uma armadura, diante da tradução das matérias; ao
contrário, necessitamos desenvolver uma sagesse (sabedoria) competente, que lance mão
de todos os recursos disponíveis, em cada modo contemporâneo de ser, viver e educar.
Em virtude da sua sonoridade, significância ou vitalidade, os efeitos (lexicais, imagéticos,
epistemológicos) das matérias traduzidas podem ser aquilatados pela leveza das suas
palavras, capacidade de não pesá-las, de não enrugá-las, nem de fazê-las murchar.

Feito nós
As variações experienciadas pelas diversas traduções curriculares e didáticas,
constituídas por associações entre as matérias originais e suas dobras, encaminham cada
uma para além do seu tempo de criação e para além do tempo de sua tradução. Nessas

124
ultrapassagens, mesmo que o seu valor original tenha diminuído ou sido perdido, du-
rante o transcorrer das traduções realizadas, a leitura e a escritura tradutórias constituem
um nível mais do que linguístico; isto é, um nível de interpretação crítica.
Em vista disso, nossas traduções são fiéis habitantes de limites, através de alusões
e inquirições diretas; traduções ácidas e pérfidas com os legados; constituição de um
corpus artificial, formado por jargões e sobrecodificações das matérias. Buscando
significações ocultas ou cientes de que nada há atrás da cortina (seja uma amorosa prisão,
seja um hipotético rival), os professores vivem à procura de um delicado aprumo entre
essas posições, fazendo-as se interpenetrarem.
Entendida como uma tekné de leitura e de escritura, o resultado de cada tradução
corresponde e não corresponde ao original, sendo configurada por: relações entre
linguagens, línguas, signos, imagens, meios verbais, não-verbais e mistos; segundos
e terceiros sentidos; antífrases e efeitos da matéria; biografemática e vidarbos (vidas-
obras); anagramas ocultos e pictografemas; prosa e poesia; fotografia e pintura; instalação
e escultura; performance e palco italiano.
Integram o nosso arsenal de escolhas e decisões os seguintes operadores: a contun-
dência da matéria original e seus truncamentos; opções poéticas, dúvidas filosóficas e
lições tiradas de diversos códigos; artifícios verbais, cenários de época e tempo supra-
histórico; leitura corrente e referências cifradas; plausibilidade da interpretação lin-
guístico-formal e valor estético do conjunto; imitação, roubo e audácia; desqualificação
e desdita de traduções anteriores; uso da ironia e advertências; reproblematização e
obliteração da natureza criadora; e assim por diante.
Para considerar os impactos das traduções curriculares e didáticas, podemos, ainda,
usar os seguintes indicadores: a matéria traduzida torna-se dramática, trágica? Realista,
idealizante? Concreta (particular), abstrata (genérica)? Materialista, espiritográfica?
Objetiva, subjetiva? Consciente, inconsciente? Clara, elíptica? Histórica, nostálgica?
Progressista, reacionária? Genealógica, mistificatória? Técnica-linguística, crítica-
interpretativa? Complementar, oposta à matéria de partida? Paralela à original, discussão
à parte? Mesma tonalidade e atmosfera? Variação substitutiva do original? Mélange,
mescla linguística? Riqueza criadora da matéria-fonte? Fala a língua de partida, língua
própria? Matéria-alvo carrega aquilo que a original significou no seu tempo-espaço,
acrescida de elementos contemporâneos?
Talvez possamos definir a nossa tarefa do seguinte modo: somos professores-
tradutores, nem com uma matéria (de partida) nem com outra (de chegada); entre uma
matéria (fonte) e outra (alvo); ora com uma matéria (original) ora com outra (traduzida).
Isso porque traduzir, educacionalmente, para a contemporaneidade, como interpre-
tação das matérias originais, também é realizar a crítica e a criação das formas de saber,

125
relações de poder e modos de subjetivação; os quais revelam a parte mais viva da
Terra. Feito nós.

Fiéis na diferença
Da interpretação e da crítica das matérias originais dependem não só a eficácia
(sempre relativa), mas a própria sobrevida dos autores, obras, textos, ideias, conteúdos,
temáticas, valores, leis, códigos, semióticas, culturas. Em função dessa responsabili-
dade, nós, professores, vivemos nos estranhando; isto é, sendo fiéis na diferença, ao
dizer o mesmo e outra coisa; buscar o mais articulável, longe da especificidade dos
vocábulos; habitar o território que fica entre a repetição e a criação; realizar movi-
mentos provisórios e retomá-los; desembaraçar enigmas e encadear problemas; com-
binar a pesquisa objetiva à vigilância subjetiva.
Muitas vezes, mostra-se extremamente difícil trazer, para o currículo e a didática,
alguma matéria que não apresenta mais importância aparente, é cambiante e mutável,
ou considerada ultrapassada. Mesmo que pareça utópica, a função da tradução supera o
simples efeito de comunicação e resposta; de modo a compreender cada matéria em sua
diferença pura e interpretá-la, naquilo que diz respeito a nós próprios, como herdeiros
de sua ciência, arte ou filosofia – matéria que permanece e insiste em nós; adquire valor
por si mesma; processa um diferente vitalismo, feito de rupturas, marginalidades e
proliferações.
Benjamin (apud Branco, 2008) afirma que a tarefa do tradutor é transmitir, de
modo impreciso, um conteúdo inessencial; de maneira que a tradução é uma forma – que
se faz desejar; torna-se diferencial ao se repetir; e, assim, sobrevive enquanto forma.
Destarte, para traduzir, em algumas situações, precisamos reduzir a racionalidade da
interpretação, a abstração da compreensibilidade, os arranjos linguísticos, semânticos
e ideológicos; em outras, precisamos inventar com mais vigor e determinação, nos
domínios artísticos, científicos ou filosóficos, para nos aproximar da matéria original.
Ocorre que toda tradução pretende-se extemporânea (fora, contra o tempo e a favor
de um tempo por vir), ao produzir uma linguagem que não é mais a original (em sua
relatividade histórica); nem, tampouco, a do cotidiano atual (nem linguagem passada nem
presente); mas uma pletora de sentidos, uma polivalência ou polissemia, como linguagem
da imaginação, que ocasiona mutações da visão e da percepção – ou, numa expressão
valéryana, linguagem feita de palavras que expressam o sentimento de universo.
Tanto em seu processo tradutório interior, como em seu modo de execução e
forma exterior de circulação, uma tradução docente é artificiosamente inventiva. Em
consequência, os seus resultados são despidos de peso histórico e vertidos como um

126
acontecimento, uma ideia, uma imagem, um corpo intemporal. Através dos seus pro-
dutores e participantes, algumas matérias ultrapassam barreiras de lugar, de código
linguístico, de sentido comunitário, de simbolismo cênico – deixando-se quedar pen-
duladas entre voz e pensamento, presença e ausência, vida e morte.
Assim, mais do que matérias, nossas metas tradutórias são formadas por trans-
criações de: cenas, topos, tropos, retórica; poder da linguagem, acúmulo lexical,
séries de associações, evocações concretas; núcleos simbólicos, metáforas associadas,
amálgamas de termos; inversões de locus, função de construção; saltos e ciclos, retornos
e paralelismos; repercussões de séculos passados, visões futurísticas; ideias e modos de
pensamento; automatismos, coisas e corpos; tempos descontínuos, interesses antitéti-
cos; repertório verbal e sintático; extensões imagéticas das palavras.
A tradução das matérias não é, portanto, sombra de alguma fonte ou cópia de
algum original; mas um dobramento ativo que, ao mesmo tempo, nega e afirma aquilo
do qual, supostamente, deriva: “Na verdade o que ocorre é que ela afirma a sua dúvida
hamletiana: ou é suicida, eliminando-se a si mesma quando elimina a vida do texto, ou
é assassina do texto original ao afirmar a própria vida” (Leite, 1995, p. 43). Caso se
apresente como uma tradução assassina, corre o risco de perder a identidade, tornando
a matéria descontínua; se for uma tradução suicida, também não afirmará nada que
interesse à continuidade criadora.
Essa oscilação pendular, característica da profissão de professor, leva nossas
traduções, por um lado, a expandirem as palavras e a revitalizar o mundo; mas, por
outro, pode fazê-las resvalar no vai-e-vem da exatidão ou da burocratização, que
melhor expressa uma violação ao caráter inventivo da docência. De todo modo, mesmo
iconoclasta ou predatória, não há como qualquer tradução ser fiel; já que o ato tradutório
sobressalta as respectivas línguas e as condições em que as matérias foram produzidas,
desmentindo sua pretensa natureza prosaica e convencional.
Por esse motivo, a pesquisa ressalta que as traduções preferidas dos professores são
sempre de teor poético, pois preservam algo do original, como um absoluto, no máximo,
estético. E, como diz Benjamin (apud Branco, 2008) se, entre duas línguas, os tradutores
intencionam uma terceira língua, ou língua pura, nossas traduções são profanadoras
produtivas das matérias; desde que a materialidade do currículo e da didática, assim
como a mecânica dos seus processos, implicam uma docência dotada de aura artística.

Trabalho intelectual
Seria óbvio salientar os problemas e as dificuldades da tradução, diante da arbi-
trariedade das línguas, em termos da transparência do original ou do caráter utópico

127
da postulação de adequação das traduções interlinguais (Barthes, 1989). Muito é escrito,
em prefácios, apresentações, introduções, pelos próprios tradutores; sendo que, nesses
espaços, eles costumam comentar a obra que traduziram; mostrar os seus pontos cegos,
que funcionaram como obstáculos; ou fazer a apresentação ou apologia das soluções
encontradas. Ao introduzir a sua tradução, para o português, do livro Metafilosofia
(prolegômenos) de Henri Lefebvre, Corbisier (1967, p. 1) afirma que o trabalho “[...]
de transpor de uma língua para outra, um texto escrito, apresenta dificuldades, como
problemas apresenta qualquer outro tipo de trabalho intelectual”.
Seguindo essa posição, a pesquisa situa as traduções feitas pelos professores como
um verdadeiro trabalho intelectual, constituído pelas seguintes atribulações e tormen-
tos: refúgio da semanticidade; neutralidade de formas; conteúdos significativos estáveis;
conveniência entre o representante e o representado; articulações consonantais das
palavras com o contexto; critérios externos de validade; harmonia imitativa; verificação
de imperfeição; equivalências simétricas; quadro de correspondências entre signifi-
cados e sons, letras e sequências silábicas; nomes que obedecem à lei das coisas.
No entanto, por mais desoladora que seja qualquer dificuldade de traduzir alguma
matéria, nenhuma pode ser tomada como insolúvel; de maneira que a responsabilidade
dos professores, acerca das soluções criadas, naquele momento e naquela situação,
encontra-se implicada no projeto ético de uma docência, entendida como tradutória.
Logo, não se trata de anunciar (nem de praticar) a inviabilidade de uma tradução; pois
é isto mesmo que, ao educar, estamos realizando: traduzir.
Ora, se traduções fossem impossíveis, como poderia alguém ler todos os textos e
estudar todas as matérias, em suas línguas e formas originais? O trabalho intelectual
dos professores envolve, por sua própria natureza, a traduzibilidade; sendo assim,
quando nos propomos a ensinar, aprender e pesquisar, não estamos diante de matérias
irredutíveis e inconversíveis umas às outras, nem de domínios totalmente heterogêneos,
tampouco de mundos culturais impenetráveis – os quais, se assim fossem, tenderiam a
desaparecer, por serem inapreensíveis.
Pelo contrário, ao educar, traduzindo, apostamos que as supostas impossibilidades e
traições de um tradutor-traidor (traddutore-tradditore no trocadilho italiano) devem-se,
antes, às imprecisões e obscuridades das matérias (ideias, sistemas, funções) originais; ou
às limitações dos próprios professores, cujas habilidades e convivências entre as matérias
de partida (filosóficas, artísticas e científicas) e as de chegada (curriculares e didáticas)
podem, ainda, não se encontrarem em suficiente e produtivo paralelismo.
Mesmo que Babel seja sinônimo de confusão, para além do universal desacerto entre
matérias e línguas, caso um professor não disponha de palavras ou de imagens equivalentes
para traduzir, pode ser acometido de uma síndrome de falta de autoria; também, devido,

128
por vezes, a um temor reverencial em relação à matéria de partida, “não ousando criar
ou fabricar as palavras de que precisaria para fazer seu trabalho” (Corbisier, 1967, p. 3).
Este é o problema nuclear para a nossa pesquisa: que os professores abdiquem da própria
potência de criação e abram mão de serem artistas das palavras e das matérias, em nome
da impossibilidade de traduzir.
De fato, não existiriam justificativas para esse temor ou inibição; visto que, tanto
os discursos, línguas, dicionários, regras, gramáticas, não são constituídos de uma vez
por todas, nem expressam uma verdade em si mesmos; mas consistem em organismos
vivos e abertos, que sofrem mudanças e abalos – precisamente, em função da atuali-
zação realizada pelas traduções didáticas e curriculares.
Enquanto complementos e suplementos das matérias-fonte – os quais permitem a
sua alquímica ressurgência –, ao serem movimentadas pela docência, algumas matérias
se transformam, desfiguram-se, mudam de significação, são expulsas, decompostas,
acrescentadas, minoradas, importadas, deslocadas, distorcidas; enquanto outras matérias
são fabricadas, rejuvenescem, se transfiguram e prosseguem materialmente vivas como
coisas e operantes como palavras.
Artistas competentes, ao mesmo tempo, temerosos e orgulhosos, não há porque
os professores hesitarem ou se acovardarem diante da peculiar posição de inventores
intelectuais; posição autoral, que exige que criemos sobre e com aquilo que já foi
criado, tais como: matérias-primas, máquinas e utensílios, ciência e tecnologia, ideias e
culturas, palavras e neologismos, sistemas e cosmovisões, formas de estudar e doutrinas,
crenças e militâncias, teorias e noções, maneiras de viver e participações, perspectivas
e ideais.
Desse modo, as traduções curriculares e didáticas enunciam uma exigência crí-
tica radical, irredutível a qualquer doutrina ou sistema, como pura explosão da von-
tade de potência do espírito docente, na acepção de Valéry (1996; 1997): “O espírito
é a possibilidade máxima – e o máximo da capacidade de incoerência” (Valéry, 2009,
p. 71).

Dignos e justos
Para mostrar-se digna e justa com a nossa profissão, a pesquisa não vê como não
evocar um fazer-pensar educacional, de modo extremamente criador e livre, a não ser
mediante essa imagem de professores-tradutores. Imagem, que implica não a repetição
das matérias, mas a direção de que nossas citações, explicações, procedimentos – pelo
fato mesmo de serem selecionados, operacionalizados, expressos – modificam e mobi-
lizam o sentido do mundo, que anteriormente não existia.

129
Por isso, quando traduzimos, não repetimos sentidos e expressões (mesmo fortes
e legitimados), que são atribuídos a algum autor ou texto por comentaristas – embora
esses integrem as matérias e, sob a sua autoridade e assinatura, guardem a medida de
algo criado. Mesmo que, ao traduzir, empreguemos uma linguagem formada por pa-
lavras e sentidos condutores da matéria de partida, nossa docência manter-se-á sempre
inocente e honesta; desde que, como um canto paralelo, os preservam e renovam.
A tradução didática e curricular é, assim, esse processo transcriador, impelido pela
vontade de potência dos professores, do qual participamos coletivamente; e, ainda, um
ato de coragem, realizado, por cada um, de maneira singular, individuada. No mesmo
fazer-pensar, somos produtores e participantes, que primam pela ausência; pois, ao
traduzir, em lugar de impor o que deve ser lido e compreendido nas matérias, evitamos
que essas se coagulem ou se esclerosem em sistemas, escolas, institucionalizações.
Dessa perspectiva tradutória, educar consiste em uma experiência-limite, seguindo
Blanchot (2007, p. 185), qual seja:

A experiência-limite é a resposta que encontra o homem quando decidiu se por


radicalmente em questão. Essa decisão que compromete todo ser exprime a
impossibilidade de jamais deter-se em qualquer consolação ou em qualquer verdade
que seja, nem nos interesses ou nos resultados da ação, nem nas certezas do saber e da
crença.

Em outras palavras, quando a pesquisa indica o ato de traduzir, como o ponto


primacial de nossa profissão, enquanto criadoramente artistadora, talvez possamos usar
esse entendimento como um trampolim, para viver a experiência-limite de atingir a vida
política e social, saídos da história de uma atribuída menoridade secundária (Foucault,
2005).
Assim, operar com um currículo e com uma didática da tradução serviria para
transformar o discurso dogmático da dependência dos professores, que limita o
desenvolvimento da teoria educacional sobre uma formação docente, autonomamente
criadora; bem como para permitir aportes e abordagens transdisciplinares, que romperiam
com o impasse de noções arcaicas e de termos estagnados.
A se confiar na experiência dessa pesquisa ensaística-factual, o trabalho intelectual
dos professores, pensado como um processo tradutório transcriador, oferece o seu
método de jogo de dados – antagônico aos modos reacionários de pensar a profissão, que
dominam as premissas acerca da imagem aviltada do professor. E, por último, sinaliza
que tanto esse trabalho como este texto, que dele fala, são, em si mesmos, experiências-
limites tradutórias da vontade de potência de educar – aqui, feitas em estilo didático.

130
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Artigo publicado, em português e inglês, pela revista Educação & Realidade (Online.
Impresso.), Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS),
Porto Alegre, v. 41, n. 4, out./dez. 2016.

133
A VONTADE DE POTÊNCIA DO
PROFESSOR-ARTISTADOR: CURRÍCULO
E DIDÁTICA DA TRADUÇÃO

Sandra Mara Corazza

Atividade criadora

Como, na área da Educação, pensar em termos dos processos de criação de cada um de


seus domínios? Como definir cada domínio por sua respectiva atividade criadora? Nesse
enfoque criacionista, o que o Currículo e a Didática criam? Quais as especificidades dos
seus atos de criação em processo? O que acontece quando temos uma ideia em Currículo,
em Didática? O Currículo e a Didática seriam engendrados pela criação pedagógica?
Em que consistem os meandros e limites de criação da Didática e do Currículo? O que
é criar didáticas e currículos? Como se dão as ações de ver, falar, escrever, interpretar
e traduzir de maneira curricular e didática? Como ocorrem a produção de informes
didáticos e a irrupção de novidades curriculares? Para criar em Didática e em Currículo,
em que medida necessitamos de outros processos, como os literários, cinematográficos,
musicais, plásticos, científicos, filosóficos? Quais as diferenças entre esses processos e
os didáticos e curriculares?
De onde surgem as formas didáticas e curriculares? Didática e Currículo carregam
capitais prévios de formas, tal como sugerido pela ideia de estrutura? Ou a forma

134
didática e curricular é sempre inédita, enquanto fenômeno de auto-organização da
matéria (Focillon, 2001)? A Didática e o Currículo abalam qualquer estrutura ou
forma preestabelecida, segundo a sua mobilidade vai se processando, incluindo, até
mesmo, o ponto de vista criador? Os planos, esboços, esquemas, definidos curricular e
didaticamente, devem ser esquecidos, em algum momento, para que sucedam rasuras,
desastres, silêncios, grau zero? Como a criação didática e curricular atribui valor e
sentido a elementos de perceptos e afectos, fabulados pela Arte; das funções, produ-
zidas pela Ciência; e dos conceitos, criados pela Filosofia (Deleuze; Guattari, 1992)?
Como operam com esses elementos, para torná-los didáticos e curriculares? De que
maneira os criadores contemporâneos de currículos e de didáticas processam esses
elementos e os integram ao mundo educacional? Ao educar, cada um de nós cria
currículos e didáticas? Quais? Como? Quando? Onde? Por quê?
Tomando tais questões como desafios, este texto localiza a Didática como resul-
tante dos atos de criação pedagógica; e, ao mesmo tempo, como o meio em que a
própria Pedagogia funciona, ao atualizar-se em Currículo: “a Didática, o que se cria
em Pedagogia, é um modo, um processo de atualização de uma ideia de natureza peda-
gógica que se expressa em currículos” (Oliveira, 2012, p. 27).
Pensa o Currículo e a Didática como inseparáveis de variadas traduções e definições
comunicáveis, embora provisórias e sujeitas a contínuas reformulações. Considera
os percursos, realizados na história do Currículo e da Didática (Candau, 1984; 2012;
Libâneo, 2012; Pimenta, 1997; 2011), como índices de processos singularmente criadores
de conhecimento, registro, memória, tratamento metodológico, relacional e dialógico.
Encontra alegria no babelismo didático de diferença e abertura, passagens e transposições,
pluralidade e multiplicidade de influências, textos e autores. Configura a Didática
e o Currículo como territórios transdisciplinares, translinguísticos, transemióticos,
transliterários, transartísticos, transculturais e transpensamentais; que nascem e vivem
em diversas obras de diferentes línguas (Aquino, 2011; 2007; 2009; Aquino; Corazza,
2009; Barthes, 2006).
Concebe, ainda, esses territórios indissociáveis de uma ética, de uma política e de
uma prática tradutórias, que realiza artistagens (Corazza, 2006; 2011; 2012a), desde
os seguintes apoios teóricos: a) filosofia da diferença, atinente à criação e ao pensar
(Deleuze, 2003; Deleuze; Guattari, 1992); b) teorias da tradução literária no Brasil, que a
tratam como processo criador, ao lado de Haroldo de Campos (1972; 1976) e Augusto de
Campos (1978; 1986); c) obra de Paul Valéry (1997; 1998; 2003), relativa a exercícios
do informe e método de criação; d) formulações didáticas e curriculares contempo-
râneas (ANPED, 2012; ENDIPE, 2012).

135
Pesquisa da poética
A pesquisa do processo criador em Educação nos leva à conceitualização distintiva
da Didática e do Currículo, por meio da tradução diferencial do pensamento artístico,
científico e filosófico (Corazza, 2014). Tradução, que compreende a tradição, como
obra aberta, a qual recebe este nome por resultar de escolhas e mediação, lembrança
e escrileitura de signos, imagens e espaços. Desse modo, o Currículo e a Didática são
considerados movimentos da prática do pensamento educacional, na direção tradutória
de atos transcriadores, que implicam menos transportar os sentidos de uma língua para
outra e mais recriar discursos e culturas; dotando-os da consistência de romper com
o estabelecido, ao empreenderem novos recomeços; e da capacidade de se apropriarem
do antigo ou estrangeiro, ao entrecruzá-los com a língua educacional e fazerem ressoar
suas próprias vozes.
Para essa concepção e ação tradutórias, tanto o Currículo como a Didática funcio-
nam como discursos afirmativos, desde que conduzem determinadas interpretações e
avaliações, não mais sendo conduzidos pelas existentes. Primeiramente, o currículo rea-
liza traduções das matérias originais, advindas da Arte, da Ciência e da Filosofia; para
então ser dramatizado, didaticamente, na cena atual da aula e tudo novamente recomeçar.
Esse Currículo – nômade, vagamundo, do acontecimento – e essa Didática – dramática,
artista, do informe – não expressam qualquer teoria da cópia, mas produção da diferença
no mesmo; por meio de operações que transferem algo do original para as línguas de
chegada, expandindo a própria linguagem.
Didática e Currículo que estão articulados a uma teoria criadora; e que, por isso, não
podem ser guiados por uma tradutologia ou ciência da tradução, mas por uma poética do
traduzir. Poética experimental, que produz efeitos pedagógicos e epistêmicos, contrários
ao cientificismo positivista; e que se operacionaliza, criticamente, como estratégia contra
os aparatos de Estado, a manutenção das vidas fascistas e as formações de poder, saber
e modos de subjetivação. Enredados em problemas filológicos, interculturais, literários
e poéticos, didáticas e currículos tradutórios levantam questões éticas e políticas acerca
das relações logocêntricas entre identidade e alteridade dos tradutores e dos educadores.

Transcursos e circuitos
Em transcursos e circuitos de tradução, a Didática e o Currículo da Tradução
movimentam os seus processos de pesquisa, criação e inovação. Acolhem e honram
os elementos científicos, filosóficos e artísticos – extraídos de obras já realizadas, que
diversos autores criaram, em outros planos, tempos, espaços –, como as suas efetivas

136
condições de possibilidade, necessárias para a própria execução; e, ao mesmo tempo,
como o seu privilegiado campo de experimentação, necessário para as próprias criações.
Com esses elementos, constituem campos artistadores de variações múltiplas e dis-
junções inclusivas; que compõem linhas de vida e devires reais, desterritorializações e
pontos de vista ativos.
Quando, em detrimento das normas formais, potencializam fluxos informes, que se
insinuam entre os blocos sensíveis e epistêmicos da Filosofia, da Arte e da Ciência,
esse Currículo e Didática fissuram as certezas e verdades herdadas. Eminentemente
heterogêneos, maquinam as suas composições contra a homogênese. Embora suscetí-
veis a sistemas de ações estáveis, consideram-se territórios em processo, distantes do
equilíbrio e do apaziguamento; e, mesmo quando estabilizam as suas ações, encontram
maneiras de bifurcar-se, para ingressar em novos regimes de instabilidade. Execu-
tam, assim, uma autopoiese, através de novas codificações, em campos de comutabili-
dade e diferencialidades, que circunscrevem as suas demarcações e o seu funcionamento.
A sua principal matéria (considerada amorfa) é a vida mesma, promovida por
encontros com formas de conteúdo e de expressão do mundo histórico, filosófico,
geográfico, científico, artístico e linguístico. Ao mesmo tempo em que se apropriam
dessas formas, desafiam as línguas que as produziram, liberando-as dos meios que as
articularam. Conservam, no entanto, traços dos elementos originais, transformando-os e
agenciando-os de maneiras inusitadas. O seu realismo não se reduz, assim, à mimese do
real; desde que buscam, aí, o outro misterioso da realidade, que possibilita a existência
curricular e didática criadoras.
Contrários ao idealismo e ao racionalismo, suscetíveis a imagens de pensamento e
a problemáticas culturais, a Didática e o Currículo da Tradução agitam-se num misto
de empirismo transcendental (Deleuze, 1988), que promove o múltiplo. Funcionando
como resistência às repetições do mesmo e luta contra a mediocridade da opinião,
mesclam e cruzam o que passou, o que nos afeta e os mundos possíveis por construir.
O seu método de criação possui orientação cartográfica (Deleuze; Guattari, 1997;
Corazza, 2010; Kastrup; Passos; ESscóssia, 2010), composto por velocidades e lentidões,
que transversalizam e cortam em diagonal functivos, conceitos, perceptos e afectos.
Para extrair acontecimentos desses elementos, que persistem em seus corpos, estados
de coisas e seres, executam traduções das línguas originais de partida para a língua de
chegada (língua-meta, língua-alvo), que cria uma língua didática ou curricular.
Rejeitando modelizações confinantes, que requerem regularidades, médias e métricas,
elegem o processual e a reversibilidade. Construindo dobras didáticas e curriculares – no
plano de imanência (da Filosofia), de composição (da Arte) e de referência (da Ciência) –,
capturam e liberam as forças vitais, que agem sob as formas. Trabalhando as potências que

137
essas formas carregam, substituem a relação forma-matéria pela relação força-material.
Associando obras, autores e tradutores, em devires de mutação das culturas, favorecem
culturas do dissenso. Reinventando significações, posições de indivíduos, comunidades
e grupos, criam novas linhas de saberes, sentires, fazeres. Realizando atos minoritários
de ruptura e consonâncias, instalam-se em regiões desconhecidas de problemas.
Revelando aspectos ocultos dos seres e circuitos inéditos de pensamento, transformam
momentos, lugares, incidentes e circunstâncias em móveis fecundos de experimentações.
Tal criacionismo movimenta-se através de procedimentos crítico-genealógicos
e exploratório-experimentais (Feil, 2011; Corazza, 2012b), que partem de clichês –
formas, sentidos, interpretações, indivíduos, identidades, conhecimentos. Identificam,
então, a imagem dogmática de pensamento, que lhes corresponde, em seus pressupostos
explícitos e implícitos de doxa e senso-comum (Heuser, 2010). Borram e raspam os
clichês, através de diagramas, ou conjuntos operatórios de traços pré-individuais,
involuntários, contingentes, não-representativos, não-ilustrativos, não-figurativos, não-
narrativos.
Nessas zonas de indiscernibilidade e indeterminação, a Didática e o Currículo
tradutórios seguem devires, ao produzirem formas deformadas, figuras desfiguradas,
paradoxos e não-sensos. Ao arrancar e isolar o material, o figural e o jogo de forças
(Deleuze, 2007), dos elementos científicos, artísticos e filosóficos, desfazem os efeitos
sobrecodificados e redistribuem suas potências informais. Ao propor e desenvolver
novas vivências relacionais de alunos e professores com os elementos originais, injetam-
lhes interesse e fazem circular sua vitalidade. Ao traduzi-los, curricular e didaticamente,
em cenários e dramas contemporâneos, tornam notáveis ideias já criadas e vivificam
a Educação; liberam forças indomesticadas dos participantes, onde quer que estejam
represadas; desestratificam camadas sedimentadas de saber, poder e subjetividade,
trabalhando para que reencontrem a sua virtualidade.

Processo de criação
Considerando que “a vida deve ser traduzida, como processo de criação” (Villani,
1999, p. 71), a tradução percorre a Didática e o Currículo, como um dispositivo
teórico-técnico, que os desencadeia e uma prática que os desdobra. Funcionando,
preferencialmente, sobre o plano empírico-transcendental de uma tradução-invenção,
que liga o tempo ordinário e a produção de novos elementos artísticos, científicos e
filosóficos, não seguem “linha reta, nem nas coisas, nem na linguagem”; mas assumem
“desvios femininos, animais, moleculares” (Deleuze, 1997, p. 12; Deleuze; Guattari,
1977).

138
A tradução é, assim, uma espécie de “des-tradução”; que não age como “teoria da
cópia ou do reflexo salivar”; e sim como “produção da di-ferença no mesmo” (Campos,
2008, p. 208); ou uma “operação contra a corrente” que, mais do que transferir elementos
para a língua curricular e didática, toma os originais distantes “como ponto de chegada”;
em direção ao qual expande a própria língua (Mandelbaum, 2005, p. 198).
Nas relações com os mundos da Arte, da Filosofia e da Ciência, esse tipo de tra-
dução gera outros modelos, ideias, gostos, vocabulários, sintaxes, estilos. Sendo mi-
mética e não-mimética, a um só tempo, funciona com a força motriz das mudanças,
assegurando uma sobrevida dos elementos originais, como um estágio do seu perviver,
para que durem mais tempo, de modo diverso. Capaz de anamorfoses, quando reescreve
e repensa os originais, torna-se capaz “de ser ela mesma e um outro” (Paz, 1981, p. 11).
Considerando que todas as línguas são diferenciais, pela via do trânsito entre o
original e sua tradução, requer diálogos entre as línguas, sob a condição que cada
uma torne-se dupla de si mesma. A tradução é, dessa maneira, um ato político, que
desfuncionaliza a instrumentalidade das línguas e aproxima distâncias, num processo de
transformação cultural. Em seus atos de traduzir, revela-se como dissidente das línguas
legitimadas, transtornando as palavras originais, para lhes devolver o poder de conceber
as outras, numa reconfiguração de si própria. Vertendo, refratando, mesclando e
reescrevendo saberes, desejos, sujeitos, valores, planos de pensamento e culturas, enceta
ações recíprocas entre as línguas traduzidas; desapropria pertencimentos, liberando
“referências a sangue, solo ou história coletiva”; e alimenta-se de diferentes línguas,
sem sofrer “de otite” (Matos, 2005, p. 144; p. 139; p. 132).
Em estado de heterofilia e de anacronismo explícito, essa tradução compartilha a
heterogeneidade, desfazendo e modificando as identidades sedentárias dos elementos
originais. Sob o fascínio das interinfluências trazidas pelas linguagens contemporâneas,
implica a invenção de um corpus crítico-seletivo, que liga “tradução poética, operação
metalinguística, paródia, carnavalização, intertextualidade, literatura comparada e rela-
ções entre diversos sistemas de signos” (Santaella, 2005, p. 222).
A novidade imprevisível das suas invenções exige que os professores não traduzam
tudo; mas privilegiem aqueles elementos que mudam, afetam ou revolucionam cada
uma das matérias que põem em circulação. Seguem, assim, Augusto de Campos (1978,
p. 7), que afirma: “nunca me propus traduzir tudo. Só aquilo que sinto. Só aquilo que
minto. Ou que minto que sinto, como diria, ainda uma vez, Pessoa em sua própria
persona”. Por isso, inflexionam aquilo que, dotado de “obscuridade ou dificuldade
intencional”, apresenta maiores desafios, pois mais recriáveis se mostram, “enquanto
possibilidade aberta à recriação”; ou mesmo aquilo que releva de um projeto “de
militância cultural” (Campos, 1992, p. 35; Milton, 1998, p. 206).

139
A tradução didática e curricular é, pois, “transcriação e transculturação”; desde
que textos e séries culturais “se transtextualizam no imbricar-se subitâneo de tempos
e espaços” diversos: “Transcodagem. Tropismo. Tradução” (Campos, 1976, p. 10-11).
Consiste numa questão de forma, mas também de alma, na ressonância do poema de
Augusto de Campos (1986, 2ª orelha):

re-criar é a meta/ de um tipo especial/de tradução:/ a tradução-arte// mas para chegar


à/re-criação/ é preciso identificar-se/ profundamente/ com o texto original/ e ao mesmo
tempo/ não barateá-lo/ enfrentar todas as suas/ dificuldades/ tentar reconstituir/ a
criação/ a partir de cada palavra/ som por som/ tom por tom// é uma questão de forma/
mas também/ é uma questão de alma

Procedimentos do presente
Nas ações de traduzir, cada elemento original é concebido e tratado como algo já
criado, mas “visto por alguém que só pode enfocá-lo pela ótica do tempo presente”
(Campos, 1972, p. 112). Logo, os procedimentos tradutórios não compreendem ou
referem-se a sistemas prontos de interpretação; mas desenvolvem experiências, que têm
relação com modos de desterritorialização do mundo vivível e do vivido.
Por pretender que os elementos artísticos, científicos e filosóficos, emersos dos
originais, valham em lugar dos mesmos, O professor-tradutor é um agente de fluxos da
invenção, reproduzindo “o original com sua marca distintiva” (Milton, 1998, p. 221).
Suas traduções transgridem as circunscrições sígnicas; rompem a relação aparente entre
forma e conteúdo; recusam-se a ficar atreladas à “tirania de um logos pré-ordenado”.
Subversoras, propõem-se, no limite, a ser operações radicais de transcriação, visando
converter, “por um átimo que seja, o original na tradução de sua tradução” (Santaella,
2005, p. 228).
Descobrindo, assim, em si próprio, um autor, que, traduzindo, talvez, encontre uma
solução possível para os seus próprios problemas de criação (Valéry, 1984; 1991; 1996;
2009), o professor-artistador envolve-se no arriscado ato de retraduzir, ao sabor das
mutações do original e de transpô-lo para o seu tempo e contra ele.
Esse gesto luciferino, mefistofélico, rompe o dogma da unidade entre línguas de
partida e línguas de destino; pois a tradução, em si mesma, manifesta que todas as
matérias são plurais. Ao liberar “a forma semiótica oculta no original, no mesmo gesto
em que se dessolidariza, aparentemente, de sua superfície comunicativa” (Campos, 2008,
p. 208; Benjamin, 2011), o professor conversa com a matéria que movimenta, promove
a catarse de formas desconhecidas e lhe conjura outros sentidos.

140
Alargando as fronteiras da linguagem educacional, “subverte-lhe os dogmas ao
influxo do texto estrangeiro” (Campos, 1976, p. 35), por meio de: bricolagens de saberes
e intuições; agenciamentos de acontecimentos; processos de singularização e forças de
experimentação; fabulação de finitos abertos ao infinito; crivos no caos circundante
(de-Fora) e extrações de Ideias; evocação e deslocamentos do estranho linguístico;
transformação de elementos familiares e forças distantes em “mundos possíveis”
(Deleuze, 1991; 1998). Desse modo, cada discurso, texto e autor originais, de que o
tradutor-professor se ocupa, passa por tantas transmutações, que acaba não sendo mais
matéria nem língua de ninguém.

Mais visceral
O professor domina a tradução quando coloca o “seu próprio ser dentro dela”.
Para tal, permite que a tradução seja mais subjetiva “do que imitação e mais visceral
do que paráfrase”, escolhendo reproduzir o significado do original e ficar abaixo do
nível estético do restante; ou, então, garantir um equivalente próximo. Uma das normas
básicas da tradução fica sendo “verter não inverter” (Campos, 1986, p. 17).
Além disso, importa-lhe também não se entregar a traduções facilitadas (pseudo-
traduções), feitas com termos preestabelecidos, que não possibilitam contato com
outros modos de pensamento e estilos de escrever-e-ler. Ainda, interessa-lhe não fingir
que os elementos de partida são escritos na mesma língua de chegada; pois essa con-
dição transmite uma “ilusão do natural” e a impressão que as línguas são transparentes
(Milton, 1998, p. 167).
O seu trabalho prévio às traduções é, primeiramente, crítico, no sentido poundiano
da palavra, isto é: “uma penetração intensa da mente do autor”; em seguida, o trabalho
torna-se técnico, ou seja: “projeção exata do conteúdo psíquico de alguém e, pois, das
coisas em que a mente desse alguém se nutriu”. Ao desmontar e remontar “a máquina
da criação” (Campos, 1992, p. 37; p. 43), em face do processo inventivo dos elementos
existentes – numa atitude de “crítica genética” (Gréssilon, 2007; Salles, 2008; Willemart
2009; Zular, 2002) –, indicando os procedimentos tradutórios que utiliza, o professor-
artistador homenageia a habilidade criadora que os autores tinham sobre os elementos
com os quais operaram.
A partir daí, aquilo que ensina, escreve, lê, fala, faz, sente – curricularizando e
didatizando tradutoriamente – compõe um elemento próprio, que segue tons e contornos
daquele (pretenso) original, que tinha diante de si. Para isso, o professor precisa manter,
em sua tarefa, uma relação de isomorfia ou de “paramorfia” – “do sufixo grego pará,
‘ao lado de’, como em paródia, ‘canto paralelo’” – entre os elementos originais e as

141
traduções. Para que, operatoriamente, as traduções didáticas e curriculares consistam
em “criação paralela, autônoma, porém recíproca” (Campos, 1992, p. 35), que evitam
“o problema das equivalências sem cair na ideia de tradução-cópia do original” (Oseki-
Dépré, 2005, p. 214).
Sendo críticas e técnicas, as traduções didáticas e curriculares consistem em um
tipo especial de leitura-escritura, que compreende não a simples descodificação e trans-
missão dos elementos originais, mas o mapeamento das condições, em que foi efetivada
a sua criação; o espaço-tempo que cada qual ocupa na língua e na cultura de origem, na
literatura da área, no conjunto da obra daquele autor específico; e assim por diante. Na
continuidade, o movimento é o do trabalho transcriador, por meio do qual os elementos
são transvertidos.
Por isso, tanto a Didática quanto o Currículo da Tradução são, eminentemente,
críticos-vivificadores, pois revolvem as entranhas dos elementos artísticos, científicos e
filosóficos, para trazê-los novamente à baila, em outros corpos linguísticos, pragmáticos,
intelectuais; desde que a sua tradução é “uma das melhores formas de crítica”; ou,
pelo menos, “a única verdadeiramente criativa, quando ela – a tradução – é criativa”
(Campos, 1978, p. 7).

Reversão do logocentrismo
Como professores, para pensar a especificidade daquilo que criamos, em Didática
e Currículo – por meio da tradução transcriadora, em termos de sua conceitualização e
procedimentos tradutórios –, necessitamos combater a imagem logocêntrica da tradução
(Arrojo, 1986; 1992; 1993; Derrida, 2002).
Imagem, que permite articular correlações entre as condições subjetivas, sociais e
profissionais dos tradutores e dos professores, quais sejam: a) ambos costumam ter a
sua prática tratada como invisível e raramente reconhecida; b) nunca conseguem fazer
o mesmo ou ter a mesma importância do que os autores dos originais; c) os resultados
de seus trabalhos são considerados inferiores, desde que sempre subsidiários de uma
ciência, arte ou filosofia; d) tanto uns como outros não serão conservados, pela história,
como iguais aos escritores, filósofos ou cientistas; e) ambos são vítimas de preconceitos,
insuficientemente remunerados e sobrecarregados de trabalho.
Seja do professor seja do tradutor, a tradição logocêntrica espera uma eficiência
sobre-humana ou um ato de magia, não muito definido, que neutralize as diferenças
linguísticas, culturais e históricas; dispõe, para ambos, uma imagem moral, pressuposta,
que comporta a idealização dos originais e lhes atribui a capacidade de mantê-los
inalteráveis, apesar das constitutivas e inevitáveis diferenças; tanto na tradução como

142
na docência, vigora uma crença de que possam existir: O Texto, O Sentido, O Signo, A
Palavra, A Ideia, A Língua, O Problema, A Figura – enquanto conhecimentos e valores
legítimos e verdadeiros; os quais devem, tão-somente, ser transmitidos (Mounin, 1975;
Steiner, 1975; Gentzler, 2009).
Nos dois campos, ora circula um mito de que os saberes, como textos ou dis-
cursos, possam ser anteriores e independentes das leituras e escrituras, que deles são
feitas; ora que possa existir um único original, presente e estável, unanimemente
aceito, depositário de significados conservados e imune às interpretações e valorações
que proliferam e o agitam, a partir de seu contato com as escrileituras, que são dele
praticadas; as quais, estão sempre datadas e marcadas por um contexto, perspectiva
ou ponto de vista.
Esse consenso dogmático acredita, ainda, que, tanto ao educar como ao traduzir,
devemos nunca trair os originais, desde que nos inclui em um binômio de teoria
e prática, cuja supremacia do primeiro termo exige a supressão do segundo subordi-
nado; de maneira que qualquer prática será tomada como insatisfatória. Estabelecem-
se, assim, relações sociais e culturais, com a educação e o professor e com a tradução
e o tradutor, que nascem e se alimentam de expectativas idealizadas e das frustrações
concomitantes: as versões originais sendo consideradas plenas de essência e funcionando
como normas desejáveis e adequadas; enquanto as tarefas do professor e do tradutor
ficam, de antemão, fadadas à ineficiência. Nessa confluência entre o tradutor e o
professor, são-nos atribuídos os papéis de meros transportadores neutros ou de filtros
inócuos de significados, temas, conteúdos, os quais seriam preservados, em qualquer
tempo, espaço, língua ou cultura.
Talvez, por isso, exista, da nossa parte, como professores-tradutores, uma frágil
sensibilidade, em relação a nossa própria função autoral, interpretativa e valorativa.
Como tradutores inevitáveis das funções científicas, dos conceitos filosóficos e dos
perceptos artísticos originais, sabemos que se não os traduzíssemos, criticamente,
eles se transformariam em letras mortas. Um efeito disso é que, ao abdicar das nossas
interferências criadoras, em alguma medida, renunciamos aos direitos autorais (em
todos os sentidos), ingressando, muitas vezes, em modos de profissionalização não
dignos do seu real valor.
O senso comum logocêntrico também estabelece que os professores e os tradutores
não necessitam de grandes habilidades ou de aprendizados específicos, visto que qualquer
um pode ser tradutor, bastando, no caso, ter algum conhecimento das línguas envolvidas;
ou que todos podem ser professores, bastando conhecer as matérias a serem ensinadas,
transmitidas ou dadas. Evidentemente, em ambas as profissões, a dimensão da pesquisa
tende a ficar relegada a segundo plano, porque tanto o ato educativo quanto o tradutório

143
são considerados e tratados como aplicações, ilustrações ou simples transmissões;
destinando-se, de saída, à incipiência e à precariedade esperadas, o que leva à repetição
do ciclo.

Autoria artistadora
Ora, se toda leitura (difícil) é uma tradução, como afirma Valéry (1956, p. 4):
“qualquer tipo de escritura que necessita de [um] certo tempo de reflexão é tradução”; e
“não há nenhuma diferença entre esse tipo de tradução e aquele que envolve transformar
um texto de uma língua para outra”; através do Currículo e da Didática da Tradução,
o velho é tornado novo, seguindo a máxima de Pound (2006): Make it New – isto é:
renovar, vitalizar, dar nova vida àquilo que passou.
Ao traduzir os elementos filosóficos, científicos ou artísticos, os professores-
artistadores os reconfiguram, inventivamente, num palimpsesto híbrido, que ultrapassa
qualquer limite disciplinar e cognitivo. Em suas operações programáticas, lidam com a
tradução, tanto no aspecto micro de procedimentos didáticos transcriadores; quanto no
aspecto macro, sistêmico, de seleção dos elementos a serem traduzidos para um currículo.
Guiados pelo valor da interlocução crítica com o alheio, animam-se na confluência
paramórfica entre os elementos artísticos, científicos e filosóficos e aqueles transcriados
como didáticos e curriculares. Consideram que são bem traduzidos aqueles elementos
que atribuem vida nova aos originais e deixam passar a sensação que eles ainda vivem.
Consideram traduções ruins aquelas que obstaculizam e matam a vitalidade dos elementos
originais para pensar, ler e escrever, outra vez.
Tanto em Currículo como em Didática, uma tradução será exitosa, se assumir a
função de um verdadeiro elemento científico, filosófico ou artístico. Assim, em vez de
mera representante ou substituta dos perceptos, afectos, conceitos e funções, a tradução
será eficaz se, após minuciosamente trabalhada, tornar-se autônoma como uma obra de
Arte, de Filosofia ou de Ciência.
Se modificarmos a imagem dogmática do pensamento acerca da docência-tradução,
atentando para a complexidade e delicadeza da nossa tarefa, resgatando o seu valor,
autoralmente criador, talvez reencontremos a devida importância civilizatória e cultural
de cada professor-artistador, bem como as responsabilidades por ela implicadas.
Isso acontecerá, se nossas traduções guardarem, com os elementos de partida,
relações de reimaginação, para além do literalismo rudimentar, da banalidade comum e
da facilidade explicativa. Então, as traduções curriculares e didáticas poderão tornar-se
mais importantes do que os originais e repercutir os seus impactos criadores, enquanto
estratégia de renovação dos sistemas educacionais e culturais contemporâneos.

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Trabalho Encomendado pelo Grupo de Estudos GT 19 Educação e Arte para apresentação


durante a realização da XI ANPED SUL – Reunião Científica Regional da ANPED: Educação,
Movimentos Sociais e Políticas Governamentais, realizada na Universidade Federal do Paraná,
Curitiba, de 24 a 27 de julho de 2016; publicado em Anais da XI ANPED Sul, Curitiba, PR: Setor
de Educação da UFPR, 2016.

148
DIDÁTICA DA TRADUÇÃO:
O PROFESSOR-ARTISTA E AS
TRANSCRIAÇÕES DO CURRÍCULO

Sandra Mara Corazza


Cristiano Bedin da Costa

Introdução

Como, em Didática e no Currículo, realizar artistagens transcriadoras a partir da


experimentação com elementos científicos, filosóficos, artísticos e literários? Nesse
enfoque criacionista, o que o Currículo e a Didática criam? Quais as especificidades dos
seus atos de criação em processo? Como a criação didática e a curricular atribuem valor e
sentido a elementos de perceptos e afectos, fabulados pela Arte; das funções, produzidas
pela Ciência; e dos conceitos, criados pela Filosofia (Deleuze; Guattari, 1992)? Como
operam esses elementos, para torná-los didáticos e curriculares? De que maneira os
criadores contemporâneos de currículos e de didáticas processam esses elementos e os
integram ao mundo educacional? Ao educar, cada um de nós cria currículos e didáticas?
Quais? Como? Quando? Onde? Por quê?
Tomando tais questões como desafios, este texto localiza a Didática como resultante
dos atos de criação pedagógica; e, ao mesmo tempo, como o meio em que a própria
Pedagogia funciona, ao atualizar-se em Currículo: “a didática, o que se cria em Pedagogia,
é um modo, um processo de atualização de uma ideia de natureza pedagógica que se
expressa em currículos” (Oliveira, 2012, p. 27).

149
Pensa o Currículo e a Didática como inseparáveis de variadas traduções e defi-
nições comunicáveis, embora provisórias e sujeitas a contínuas reformulações. Con-
sidera os percursos, realizados na história do Currículo e da Didática (Candau, 1984;
2012; Lopes, 2012; Libâneo, 2012; Macedo, 2014; Pimenta, 1997; 2011), como índices
de processos singularmente criadores de conhecimento, registro, memória, tratamento
metodológico, relacional e dialógico. Encontra alegria no babelismo didático de di-
ferença e abertura, passagens e transposições, pluralidade e multiplicidade de influências,
textos e autores. Configura a Didática e o Currículo como territórios transdisci-
plinares, translinguísticos, transemióticos, transliterários, transartísticos, transculturais
e transpensamentais; que nascem e vivem em diversas obras de diferentes línguas e
deslocam fronteiras (Aquino, 2011; 2007; 2009; Aquino; Corazza, 2009; Barthes, 2006).
Concebe, ainda, esses territórios indissociáveis de uma ética, de uma política e de
uma prática tradutórias, que realiza artistagens (Corazza, 2006; 2011; 2012), desde
os seguintes apoios teóricos: a) Filosofia da Diferença, atinente à criação e ao pensar
(Deleuze, 2003; Deleuze; Guattari, 1992); b) Teorias da Tradução literária e poética
no Brasil, que a tratam como processo criador, ao lado de Haroldo de Campos (1972;
1976) e Augusto de Campos (1978; 1986); c) formulações didáticas e curriculares
contemporâneas (ANPED, 2012; ENDIPE, 2012).
Entendendo que pensar é criar e criar é pensar de maneira impura, o Professor-Artista
configura sua prática em um espaço experimental de ensaios heurísticos, constituído
entre as disciplinas heterogêneas e composto de co-insistências de linguagens verbais e
não verbais, de cognições conceituais e sensíveis, de combinações de suportes diversos.
Trata-se de uma arte de passagens, cruzamentos e interferências, movimentos intensivos
a partir dos quais se torna possível a cartografia de espaços transdisciplinares, dentro dos
quais a Didática e o Currículo não se constituem a não ser enquanto exercícios polifônicos,
testemunhando a indissociabilidade entre o contágio, o pensamento e a transcriação.

Didática artista
É por meio de procedimento tradutórios que a Didática Artista movimenta os seus
processos de pesquisa, criação e inovação. Acolhe e honra os elementos científicos,
filosóficos e artísticos – extraídos de obras já realizadas, que diversos autores criaram,
em outros planos, tempos, espaços – como suas efetivas condições de possibilidade,
necessárias para a própria execução; e, ao mesmo tempo, como o privilegiado campo
de experimentação, necessário para as próprias criações. Com esses elementos, constitui
um campo artistador de variações múltiplas e disjunções inclusivas; que compõe linhas
de vida e devires reais, pontos de vista ativos e desterritorializações afirmativas.

150
Quando, em detrimento das normas formais, potencializa fluxos informes, que se
insinuam entre os blocos sensíveis e epistêmicos da Filosofia, da Arte e da Ciência,
essa Didática fissura as certezas e verdades herdadas. Eminentemente heterogênea,
maquina as suas composições contra a homogênese. Embora suscetível a sistemas de
ações estáveis, considera-se um território em processo, obra sempre aberta, distante
do equilíbrio e do apaziguamento; e, mesmo quando estabiliza as suas ações, encontra
maneiras de bifurcar-se, para ingressar em novos regimes de instabilidade. Executa uma
autopoiese, através de novas codificações didáticas, em campos de comutabilidade e
diferencialidades, que circunscrevem suas demarcações e funcionamentos.
Rejeitando modelizações confinantes, que requerem regularidades, médias e
métricas, elege o processual e a reversibilidade. Construindo dobras didáticas em planos
filosóficos, artísticos e científicos, associa obras, autores e tradutores, reinventando
significações, posições de indivíduos, comunidades e grupos, criando novas linhas de
saberes, sentires, fazeres.
Tal criacionismo didático movimenta-se através de procedimentos exploratório-
experimentais (Feil, 2011; Corazza, 2012) e comparativistas (Couto, 2002), dentro
dos quais o corpo-a-corpo entre práticas criativas não configura um lugar-poder
monofonicamente delimitado, mas sim espaços heurísticos e interferenciais de com-
plexidade irredutível. Singular topologia: criação como coinsistência relacional;
didática como investigação, translação e experimento artrológico. A essa “ciência das
repartições” (Barthes, 2007, p. 59), interessam as poéticas de passagem, o continuum
pictográfico do pensar polifônico, o currículo tomado como “um jogo viral de contágios
e contaminações, hibridações, redimensionado quer no seu polo estético quer no polo
cognitivo” (Couto, 2002, p. 20).
Nessas zonas de indiscernibilidade e indeterminação, a Didática Artista segue
devires, ao produzir formas deformadas, figuras desfiguradas, paradoxos e não-sensos.
Ao operar com o que há de vida nos elementos científicos, artísticos e filosóficos, desfaz
os efeitos sobrecodificados e redistribui suas potências informais. Ao propor e desen-
volver novas vivências relacionais de alunos e professores com os elementos originais,
injeta-lhes interesse e faz circular vitalidade. Ao traduzi-los didaticamente, em cenários
contemporâneos, torna notáveis ideias já criadas e vivifica currículos; rasura, traslada
e libera forças indomesticadas dos participantes, onde quer que estejam represadas;
desestratifica camadas sedimentadas de saber, poder e subjetividade, trabalhando para
que reencontrem a sua virtualidade.
Nessa perspectiva, tanto o currículo como a didática funcionam como discursos
culturais afirmativos, desde que produzem determinadas interpretações e avaliações,
não mais sendo conduzidos pelas existentes. Primeiramente, o currículo realiza

151
traduções das matérias originais, advindas da Arte, da Ciência e da Filosofia; para então
ser dramatizado, didaticamente, na cena atual da aula e tudo novamente recomeçar.
Esse currículo – nômade, comparativista – e essa didática – artista, do informe – não
expressam qualquer teoria da cópia, mas produção da diferença no mesmo; por meio
de operações que transferem algo do original para a língua de chegada (curricular ou
didática), sem, no entanto, sobrevalorizar nem desvalorizar, etnocentricamente, a própria
língua.

Tópica estética do pensamento


“Pensar é criar e criar é pensar” (Dias, 2006, p. 167); identidade absoluta e misteriosa
entre ambos, pensamento (seja onde for) como criação e criação (seja onde for) como
pensamento; cognitividade em ato na criação artística, literária, filosófica; sensibilidade
não empírica (vidências, criação de visões e percepções) em ato na pesquisa, no texto,
na prática pedagógica. Uma tópica estética do pensamento, “espaço de ensaio heurístico
[...] arrojado, experimental” (Couto, 2005, p. 146), constituído por uma lógica das
interferências, das criações, do interferencialismo relacional cujas razões a “grande
Razão falogocêntrica” (Couto, 2005, p. 147) desconhece. Um outro ponto de vista sobre
o filosófico. Um outro ponto de vista sobre o artístico. Um outro ponto de vista sobre o
educacional: a estética não é uma secção da pesquisa em educação, mas singularmente
é ou traduz a pesquisa em educação na sua totalidade, “o seu poder-ser criador” (Couto,
2000, p. 205).
Lembremo-nos de Deleuze e Guattari (1997): os conceitos da filosofia são exata-
mente como sons, cores ou imagens, intensidades que nos convêm ou não, que passam
ou então não passam, que ganham ou perdem velocidade em um momento ou outro.
Nenhum elogio a um sistema das belas-artes, mas sim a possibilidade de um uso
simultâneo das artes, da filosofia, da literatura, em uma multiplicidade determinável.
Um conceito filosófico é sempre um operador sensível, “que não faz pensar sem ao
mesmo tempo fazer ver, ou sentir, que não cria pensamento para lá das meras opiniões
sem criar perceptos ou vidências para lá das vulgares percepções” (Dias, 2006, p. 169).
Pintura como operador filosófico, filosofia como um jogo de sons e luzes pictórico-
musical. “A verdadeira filosofia tanto é música ou poesia como pintura; a verdadeira
pintura, tanto música quanto poesia; a verdadeira poesia ou música é tanto pintura como
certa sabedoria divina” (Bruno apud Bombassaro, 2008, p. 47).
Estética, então, não como uma disciplina, um saber sobre as obras, mas sim como
um modo de pensamento que se desdobra acerca das obras em suas lógicas conectivas,
tomando-as como testemunhos de uma questão referente ao sensível, à potência anônima

152
do pensamento. Estética, por fim, como o domínio “da intersecção de multiplicidades
dinâmicas entre a escrita, a música, a pintura [...] consideradas no esquema de um
constante trabalho de captura de formas e intensidades” (Couto, 2001, p. 472). Tópica
estética, ou o pensamento enquanto microtopografia de tráficos, contágios e proliferações.
Enquanto espaços artístico-tradutórios, a didática e o currículo configuram-se como
espaços-entre, puramente relacionais, “de consistência ou de co-insistência de linguagens
verbais e não-verbais, de cognições conceptuais e sensíveis, de combinações de suportes”
(Dias, 2006, p. 170), rede absolutamente dinâmica de analogias entre componentes
aparentemente disparatados. Para a Didática Artista, pela Tópica Estética que constitui,
não interessa o que se passa nessa ou naquela disciplina isoladamente, tampouco a lógica
interna e o percurso histórico de cada disciplina, mas sim o que se passa entre disciplinas
heterogêneas, suas “entre-expressões, a formação de geografias e ou cartografias
transdisciplinares” (Dias, 2006, p. 171). Ciência das passagens, portanto, estudo dos
cruzamentos e das interferências. Arte contrapontista, de correspondências poiéticas e
de bordas permeáveis. Pensamento impuro, polifônico, palimpséstico, ou simplesmente
a Didática e o Currículo como univocidade operacionalizada pelo pensamento-criação.

Manifesto transcriador mínimo


Não fundamentar, mas conectar e experimentar – Didática, talvez, como a deli-
mitação de um ponto preciso onde a educação ameaça o império da verdade e sua
entropia mortífera (Corazza, 2010); Ocupar, retomar, demorar-se, perguntar-se: quais
efeitos e quais ressonâncias em outros domínios? Que relações são maquinadas?
Quais ideias são fabricadas e quais contágios puderam ou poderão ser engenhados?
Não destacar, por espessas barreiras empíricas, o objeto. Ao contrário: torná-lo difuso,
inacabado, transitório, indistinto; Não perguntar sobre o que já se possui, mas sim
sobre aquilo que, a partir do que se tem, pode ser aí agregado, conectado, reinvestido;
Pragmaticamente, pensar com as obras, nas obras, em um isomorfismo topográfico; A
uma dimensão temporal, sobrepor sucessivas experimentações e delimitações espaciais
– combate inerente à Didática Artista, corpus em guerra: desbloquear-se do tempo, por
sucessivas operações heurísticas (nestas, não há evolução e diacronismo, os lugares do
antes e do depois; mas sim sincronicidade, experimentação inventiva sobrepondo-se à
lógica evolutiva); Sob possíveis contradições evidentes, fabricar impossíveis harmonias
ocultas; Raspar, portanto, cromatizar a cada vez, rasgar a cada retorno, um penelópico
labor; Sub-Pedagogia: arte da descolagem, polifonia, policromia do pensamento; Ir, dos
efeitos sobrecodificados do rosto (rugoso vestígio paleográfico), aos traços impessoais
do corpo; Ir da cara à máscara e desta ao “descaramento” (Couto, 2005, p. 7); Retirar

153
o Eu do rosto (Corazza, 2010), para então desencarná-lo: o autor como potência,
maquinaria abstrata do possível do pensamento com suas redes de possíveis: inventadas,
impensáveis, transcriadas (o que faz pensar faz ao mesmo tempo ver e sentir).
Por essa via, o telos didático: por contágios, um currículo potencialmente descarado;
Nenhum elogio ao gênio, nenhuma metafísica do artista: bricolagens com incontáveis
ligações e conexões; O comparativismo transcriador configura uma multiplicidade, uma
modalidade de invenção, transposição de uma forma à intensidade, da representação à
criação, de um registro histórico a um diagrama de forças: escavação do mesmo até o
limite (Bacon apud Sylvester, 2007), a pesquisa e a descida cada vez mais profunda até
uma zona de indiscernibilidade, até uma lógica sensível.
Tal como afirma Rancière (2000), compreender um pensamento não é chegar a
coincidir com o seu centro, mas, ao contrário, deportá-lo, conduzi-lo a uma trajetória
em que suas articulações se afrouxam e permitam um novo jogo, onde seja possível
desfigurá-lo para então pensá-lo de outro modo, sair da restrição de suas palavras para
anunciá-lo em outra língua, necessariamente estrangeira.

Processo de tradução
Considerando que “a vida deve ser traduzida, como processo de criação” (Villani,
1999, p. 71), a tradução percorre a Didática Artista como um dispositivo que a desencadeia
e uma prática que a desdobra. Sua natureza didática passa a ser constituída pela tradução
de perceptos, afectos, funções e conceitos; vertendo-os das línguas em que foram criados
e expressando-os na cultura, no meio e na língua da Didática. Nesse processo tradutório,
distingue entre descoberta e invenção; já que a descoberta “incide sobre o que já existe,
atualmente ou virtualmente; portanto, cedo ou tarde ela seguramente vem”; enquanto
“a invenção dá o ser ao que não era, podendo nunca ter vindo” (Deleuze, 1999, p. 9).
Ao funcionar preferencialmente sobre o plano de uma tradução-invenção, a Didática
Artista introduz novos modelos, ideias, gostos, vocabulários, sintaxes, estilos, nas
relações educacionais, curriculares e pedagógicas, com o mundo da Arte, da Filosofia
e da Ciência. Não agindo como “teoria da cópia ou do reflexo salivar”; e sim como
“produção da di-ferença no mesmo” (Campos, 2008, p. 208) ou uma “operação contra
a corrente” (Mandelbaum, 2005, p. 198), torna-se capaz, quando reescreve e repensa os
originais, “de ser ela mesma e um outro” (Paz, 1981, p. 11).
Em suas anamorfoses tradutórias, a Didática privilegia aqueles elementos que
mudam, afetam ou revolucionam cada uma das áreas com as quais trabalha. Por isso,
traduz aquilo que, dotado de “obscuridade ou dificuldade intencional”, apresenta maiores
desafios, pois mais recriáveis se mostram, “enquanto possibilidade aberta à recriação”;

154
ou mesmo aquilo que releva de um projeto “de militância cultural” (Campos, 1992,
p. 35; Milton, 1998, p. 206).
A tradução didática é, assim, “transcriação e transculturação”; já que textos e séries
culturais “se transtextualizam no imbricar-se subitâneo de tempos e espaços” diversos:
“Transcolagem. Tropismo. Tradução” (Campos, 1976, p. 10-11). Consiste numa questão
de forma, mas também de alma: lógica das interferências, inventividade em cruzamentos,
contágios e transformações. Trata-se de uma pragmática do ponto de vista, ou melhor,
de uma heurística comparati/Vista, da compreensividade da outridade e da coexistência
de possíveis que se escutam, tocam-se e afetam-se mutuamente em suas paisagens. Não
vivemos em um mundo, mas em múltiplos polípticos: “é possível contaminar, misturar,
experimentar, abrir... para melhor” (Couto, 2005, p. 150).

Didata-tradutor
Considerando que é da natureza da tradução ser infiel ao original, toda didática
criada não pode ser menos do que o resultado de uma artistagem, uma vez que o Professor
não se obriga a transmitir o conteúdo literal ou verdadeiro dos elementos originais
científicos, filosóficos, artísticos; não faz cópia, dublagem ou fingimento; não é um bufão,
escravo ou ladrão dos autores e obras que traduz; não busca a autenticidade textual; não
preserva a essência dos originais; não é um conselheiro, que goza de intimidade com
as obras; não trata o original como sagrado; não remove a tampa de um poço escuro;
não é filtro do autor ou chave do texto; não é fotógrafo, taxidermista ou anatomista;
não é filólogo, erudito ou paleólogo; não é tradutor-traidor nem descobridor de fontes.
Suas traduções, também, não têm o escopo de servir como simples auxiliares à
leitura dos originais. Ao contrário, o Didata-Tradutor é um escrileitor (escritor-e-leitor),
que transcria e transcultura os elementos científicos, filosóficos e artísticos, sem medo
do novo ou medo do antigo, defendendo “até a morte o novo por causa do antigo e até a
vida o antigo por causa do novo”; desde que “o antigo que foi novo é tão novo como o
mais novo” (Campos, 1978, p. 7), cabendo-lhe discernir entre eles.
Ora, se toda leitura (difícil) é uma tradução, como afirma Valéry (1956, p. 4) –
“qualquer tipo de escritura que necessita de [um] certo tempo de reflexão é tradução”,
não existindo “nenhuma diferença entre esse tipo de tradução e aquele que envolve
transformar um texto de uma língua para outra” –, através do Currículo e da Didática
da Tradução, o velho é tornado novo, seguindo a máxima de Pound (2006): Make it
New – isto é: renovar, vitalizar, dar nova vida àquilo que passou.
Ao traduzir os elementos filosóficos, científicos ou artísticos, o Didata-Tradutor os
reconfiguram, inventivamente, num palimpsesto híbrido, que ultrapassa qualquer limite

155
disciplinar e cognitivo, inclusive os próprios. Nessa operação, considera que são bem
traduzidos aqueles elementos que atribuem vida nova aos originais da Arte, da Ciência e
da Filosofia e deixam passar a sensação que eles ainda vivem. Por outro lado, considera
traduções ruins aquelas que matam a vitalidade para pensar, ler e escrever o elemento
traduzido, tornando-o desqualificado, fácil, trivial, comum.
Em didática, uma tradução será honestamente exitosa, se assumir a função
de um verdadeiro elemento científico, filosófico ou artístico. Assim, em vez de mera
representante ou substituta de perceptos, afectos, conceitos e funções, a tradução
será eficaz se for capaz de se tornar autônoma como uma obra de Arte, de Filosofia
ou de Ciência. Isso acontecerá, se guardar, com os elementos de partida, relações de
reimaginação, para além do literalismo rudimentar e da banalidade explicativa. Então,
as traduções do Professor-Artista poderão, por vezes, tornar-se mais importantes do que
os originais; desde que a língua didática mostre-se digna de repercutir os seus impactos,
enquanto estratégia de renovação dos sistemas educacionais e culturais contemporâneos.

Conclusão
Para uma Didática da Tradução, tudo é provisório, tudo pode mudar e muda. Professor
e currículo estão em aberto, transformam-se no momento em que são experimentados.
Em certo sentido, não há finais esperados, apenas o processo. “O que existe é um senso
de jornada, sem saber o que haverá na outra ponta” (Kentridge, 2013, p. 295). O passado,
o presente e o futuro convergem em uma presenticidade contínua, simultaneamente
acossada pelo arcaico e pelo vir a ser. É sempre em um aqui-e-agora incessantemente
redescoberto que se inscrevem as verdades da vida, da obra e da história. É nessa
materialidade do tempo esculpido, curvado, retardado, esticado, encorpado, que a aula
encontra o seu meio de existência.
Para o currículo, tal procedimento transcriador implica lidar não apenas com
premissas universais e verdadeiramente necessárias a caminhos prováveis, conjecturais,
mas com bricolagens, interpretações inventivas e argumentações policromáticas. Via
outra, portanto, de um exercício do comentário, dos textos que remetem para textos
que remetem para além; do argumento sobre a argumentação; da clausura própria da
justificação; da ideia justa: não fundamentar, mas conectar e experimentar, lá onde se
faz possível ameaçar “o império da verdade e sua entropia mortífera” (Corazza, 2010,
p. 151).
Em suma, a escuta de uma produção, não de um produto acabado; de uma afecção,
mais que de uma inteligibilidade. Surdez de toda educação condenada ao discurso do
mesmo e a seus afetos médios; surdez de toda disciplina condenada à fala, a seus sistemas

156
de interpretação e à obviedade do sentido. Em sua prática transcriadora, o Professor-
Artista entende, com Kentridge (2013, p. 309), que todos os apelos à certeza, “seja o
chauvinismo político seja o conhecimento objetivo, têm uma origem autoritária que
conta com a cegueira e a coerção – inimigas fundamentais do que é estar vivo no mundo
com os olhos abertos”.
Por sua perspectiva didático-tradutória, educar é também habitar, com os olhos
abertos, um meio onde a imagem se torna adúltera, onde as coisas progridem, os signos
proliferam e a transformação é sempre contraponto, afecção e abertura para outras
perspectivas, a novos e uma vez mais provisórios ângulos de vida e visão.

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158
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Texto apresentado no VII Colóquio Internacional de Políticas e Práticas Curriculares, realizado


na Universidade Federal da Paraíba, em João Pessoa, entre 12 a 14 de novembro de 2015 e
publicado no livro Políticas de currículo e formação: desafios contemporâneos, organizado
por Maria Zuleide da Costa Pereira, Ângela Cristina Xavier Albino e Veridiana Vania Dantas,
Editora UFPB, 2015.

159
ENTRE RAÍZES E RADÍCULAS. O QUE SE
PASSA NO CURRÍCULO ESCOLAR

Fabiane Olegário
Sandra Mara Corazza

Enfrentamento
Era assim, havia muito tempo, eu estava fatigado e não compreendia mais.
Caio Fernando Abreu

Importa ao texto capturar os fluxos que escoam entre o que se passa e o que se
passou no currículo escolar, a fim de suspender as formas instituídas, ou então fazer
calar, de modo provisório, as formatações dadas de antemão. Quem sabe, será prudente
guardar distância das certezas, das definições do currículo, daquilo que é dito sobre
competências e habilidades necessárias a uma boa escolarização. Não é de hoje, mas
é de quase sempre, que o que é ensinado na escola está estreitamente vinculado a um
determinado tempo e espaço, os quais quase sempre se referem a um conhecimento
válido e verdadeiro. Isso sinaliza que os saberes legitimados carregam uma história, ou
seja, são construídos pelas tramas sociais, políticas e econômicas num jogo complexo
de relações de poder.
Ora, ingênuo seria o texto apostar na ideia de que há dois campos distintos do
currículo – oposições carregam o fardo valorativo, e isso quer dizer que é quase óbvio o
que virá agora. Num dos campos, estariam os bons professores, e o outro seria ocupado
por professores não tão bons, que se confrontariam, disputando forças e formas para

160
melhor ensinar, o que, por sua vez, pode ser interpretado como quase uma obrigação
em alcançar resultados satisfatórios de aprendizagem dos alunos, dados a ver a partir
das avaliações externas. Tal pressuposto talvez possa nos servir como indicador de
que é urgente e emergente pensar o currículo na contramão das formas naturalizadas,
a fim de fazer emergir atitudes de estranhamento do familiar. Longe de apazigua-
mentos, fundamentos primeiros que procuram a origem da verdade – transcendente –
do currículo, o texto filia-se aos seres vivos da terra. A propósito, a “verdade é deste
mundo, ela é produzida nele graças a múltiplas coerções e nele produz efeitos
regulamentados de poder” (Foucault, 2012, p. 52). O texto, “em vez, pois, de perguntar
‘o que é?’, perguntar ‘o que faz que seja o que é?’ Buscar, antes, o impulso, o desejo
e o motivo que fazem com que as coisas tenham o sentido que têm do que sua essência,
sua origem, ou o seu fundamento último.” (Corazza; Tadeu, 2003, p. 49).
O texto propõe raspar as formas estratificadas do currículo, subverter os códigos
dominantes instituídos e inscritos na macropolítica, “distante de um sentido corrente ou
de um sistema estabelecido” (Corazza, 2008, p. 77). Na carona com Deleuze e Guattari
(2011), o entre não se refere a uma correlação localizável que vai de um ponto a outro, mas
trata-se de um movimento transversal. As raízes remetem ao pensamento arborescente,
“inspiram uma triste imagem do pensamento que não para de imitar o múltiplo a partir
de uma unidade superior de centro e ou de segmento” (Deleuze; Guattari, 2011, p. 35)
Para tal enfrentamento, o texto produz algumas cenas – radículas – inventariadas,
com o intuito de dar vazão aos elementos advindos da ciência, da arte e da filosofia.
Importa destacar que as cenas “passam a constituir um espaço de transgressão, em que
tudo o que é fixo se torna móvel, as verdades são abaladas e vêem-se desmanchadas
as dicotomias interior/exterior, sujeito/objeto/objeto, eu/mundo” (Corazza, 2006, p. 28),
isso tudo porque “enfrentam o desafio de explicar suas criações, sem apelar para uma
instância criadora, superior e extrínseca a ele e a seu fazer” (Corazza, 2013, p. 97). O
texto toma emprestado o que escreveu Michel Serres (1993) em Filosofia Mestiça:
“a invenção é o ato intelectual verdadeiro, a única ação inteligente”, visto que “só a
invenção prova que se pensa, seja qual for esta coisa” (p. 118-119). Trata-se de colocar
sapatilhas no currículo e fazê-lo dançar, inventar gestos, ensaiar os passos e repeti-
los – repeti-los até diferir.

É difícil falar disto8


Resistir às capturas e às armadilhas da tagarelice dos “experts educacionais, que se
colocam a serviço das entidades e das forças que são dominantes em nossa sociedade”

8
Frase de Deleuze no livro Conversações (2013, p. 141).

161
(Rodrigues, 2011, p. 124). São eles que prescrevem “o ‘kit’ de verdades” (Feldens,
2006, p. 91) segundo o qual se constitui como devem ser o currículo, a aula, o
ensino, a avaliação, a didática, e de lambuja demonstra quase que passo a passo como
preparar um currículo democrático, cidadão, capaz de enfrentar e “dar conta” das
mazelas da sociedade. Pois bem, basta perguntar aos “experts”, porque sabem o que
é ensinar e como ensinar; como dar uma boa aula; como trabalhar com o currículo;
como usar os métodos de ensino (Corazza, 2000). Rachar com o conjunto de deveres
que compõe o kit das expertises9 talvez nos remeta à necessidade de pôr em xeque a
recognição – “uma representação, sob a forma do Mesmo”, de práticas baseadas em
caminhos retos e seguros, pois apenas se reconhece e se representa algo já existente,
“porque essa imagem é natural, ela não pode ser plural” (Corazza, 2013, p. 176).
A representação, na filosofia deleuziana, “tem apenas um centro, uma perspectiva
única e fugidia e, portanto, [...] não mobiliza, nem move nada” (Deleuze, 1988, p. 106).
Nesse caso, uma das estratégias de combate seria potencializar o desconhecido
para que outras brechas sejam criadas e, sobretudo, fazer a diferença no próprio pensar,
minando o território de possibilidades e variações contínuas. Embaralhar os códigos.
Criar problemas que violentem o pensar. Pensamento, para Deleuze e Guattari (1997), “é
como um Vampiro, não tem imagem, nem para constituir modelo, nem para fazer cópia”
(p. 47). Desenhar mapas, e não decalcar. Fazer rizomas, e não plantar árvores. Traçar
a linha, nunca o ponto, pois, para Deleuze e Guattari (2011), “não existem pontos ou
posições num rizoma como se encontra numa estrutura, numa árvore, numa raiz. Existem
somente linhas” (p. 17). Explorar os meios por trajetos dinâmicos. Todavia, interessa
dizer: “eu aprendi, senhores. Ah, aprende-se o que é preciso que se aprenda; aprende-
se quando se quer uma saída; aprende-se a qualquer custo” (Kafka, 2011, p. 122). E os
experts, o que e para quem importa o que eles dizem?

Abandonar aquilo que congela


Para inventar os meios, encarnar possibilidades transgressoras, dramatizar a aula,
encenar o currículo. Visão míope borra a imagem do currículo compreendido como
aquisição de técnicas, transmissão de conteúdos, desenvolvimento de habilidades e
competências. “Uma saída, apenas uma saída”, grita o macaco de Kafka10. Descompassos.
Exercício da entrega que não preenche; ao contrário, perfura os estratos cristalizados.

9
Expertise seria “um tipo particular de autoridade social, caracteristicamente desenvolvida em torno de problemas,
exercendo certo olhar diagnóstico, fundada sobre uma reivindicação de verdade”. Aos experts, compete “eficácia
técnica”, uma vez que eles possuem a capacidade de reconhecer as “virtudes éticas humanas” (Rose, 2011, p. 123,
grifos do autor).
10
Trata-se do conto Um relatório para a Academia, de autoria de Franz Kafka, redigido em 1917.

162
Não é o tempo da falta em que se abriga o currículo, que escorre para nunca mais.
Mas é um tempo desejo de “realidade de um virtual” (Corazza, 2006, p. 103), e nada
lhe falta, porque interrompe o automatismo da contagem chrónos e faz pulsar fluxos
intensos prenhes de vida. Abandonar o que congela, o que seca, aquilo que não alegra
e vivifica o currículo, entretanto, exige a força de um lutador de sumô para esmagar
a imagem dogmática do pensamento que nos constrange a pensar de um determinado
modo (Deleuze, 1988).

Despudor
O que se quer é produzir certa ignorância acerca do que se sabe do currículo, sem
pudor, apenas com prudência necessária. Ensaios de um currículo que se atiram do
trampolim. Currículo que segura com as duas patas a pá para mover o mais íntimo do
ser. Rasgadura ínfima daquilo que até então se estendia de uma ponta a outra. Currículo-
ensaio, interrupção de um pensamento linear. Um pequeno sopro! Uma brisa que leva o
currículo a sair de casa, sem direção determinada, viaja nas bordas, atravessa labirintos
que nunca foram acessados. Mas como driblar o que está instituído e salvaguardado
como verdade no currículo? Como praticar um currículo que fale em nome próprio?
Aprender, assim como o ensaiar, não trata de repetir o mesmo, mas inventar o porvir.
Abrir as forças que atravessam o currículo, dar passagem ao inexistente, emprenhar
de possíveis e, por isso, passar “a estranhar todas as explicações totalizantes, não se
deixar prender dentro de nenhum limite, atemorizar todas as subjetividades construídas,
não ter mais olhos para a Verdade e ouvidos para o Sentido” (Corazza, 2002, p. 53).
Aprender como violência. Violento porque arromba o previsível. Violento porque
rouba o sossego. Sentir o cadarço afrouxar e certa leveza ao andarilhar, mas, ao mesmo
tempo, náuseas devido ao desassossego ao criar outras variações à vida, instaurando
“percursos para outras formas de existência, incidências sobre inéditas possibilidades
de viver” (Corazza, 2013, p. 164). Não significa dar as costas para a representação, mas
apostar na criação de currículos zombeteiros e desobedientes. Não se trata de linearidades
e muito menos de apreço às raízes; ao contrário, o currículo alia-se ao funcionamento
de um rizoma, o qual permite múltiplas entradas e inúmeras saídas.

Lista de intenções
Trair. Burlar. Roubar. Dar uma rasteira. Perturbar. Incomodar. Gargalhar. Dispensar.
Desenfeitar. Perder. Esquecer. Gaguejar. Dissimular. Fugir. Amar encruzilhadas. Não
saber. Rir. Embaralhar as cartas. Flertar com o oco das palavras. Esvaziá-las. Criar

163
outros tantos. Traduzir com e em bando. Criar uma frota bélica. Proliferar contágios e
contaminações. Pecar. Pulsar. Escorrer. Pulular. Riscar o certeiro. Calar as pragas. Lutar
contra o ressentimento e má consciência.

Desvios
Desviar é como um jogo de apostas. Desvios são descaminhos. Desviar é algo do
tipo delirar sem direção predeterminada. Desviar é criar o desencontrado. Desvia-se para
afastar o que tapa o olho. Desviar para descarregar o pesadume da vida. Desviar não
para ultrapassar o sinal, mas sobrevoar outros signos. Desviar daquilo que não se desvia.
Desviar trata-se da vontade de criar becos. Desviar é sarapintar o pensamento. Desviar
como fuga de um disco que toca sem parar a mesma canção. Desviar para morrer de
novo. Desvia-se como sinal de saúde. Mas o que os desvios têm a ver com as práticas
curriculares?

Imanências
O currículo inscrito no território das imanências implode a essência, o transcendente;
suspende o binarismo platônico que marca o inteligível, as ideias, a racionalidade,
contrapondo-se ao mundo sensível, às aparências, às cópias ícones, ao simulacro e à
ilusão. Cutuca o caráter valorativo e normativo das práticas pedagógicas postas pelos
experts. Esse mesmo currículo inquieta-se com a emergência da educação integral e com
a proveniência das práticas assistencialistas na educação escolarizada. Tomado pelos
nômades, o currículo passa a ser itinerante e também “pode ser chamado Currículo-Mar;
pois é fluência pura, nada representa, não fixa lugares, não disciplina, mas engendra-se
e percorre-se, faz fugir os sujeitos e os objetos” (Corazza, 2013, p. 30).

À espreita
O ar do quarto gelava-lhe os ombros. Ele se esticou cuidadoso por sob os lençóis.
James Joyce
Cachorro, pulga, carrapato, gato, piolho, cupim, escorpião, barata. O que a educação
precisa aprender com todos eles? Capturar os gestos de um estar à espreita, tal como
o carrapato deleuziano11, ou então como o inseto de Kafka12, ou quem sabe, ainda,
11
Deleuze, Gilles. O abecedário de Gilles Deleuze. Letra A: Animal
12
Kafka, Franz. A Metamorfose.

164
Dilermando, o cachorro de Clarice Lispector13. Trata-se de estar atento ao que se vê
e ao que se ouve. Postura de prestar atenção ao que circula e ao que se movimenta no
currículo, ou então àquilo que é interditado, que não é tão simples de ver.
Nesse caso, é preciso apurar órgãos e sentidos: colocar a fuça onde não se é chamado;
afiar as unhas para cravá-las no familiar; dentes pontiagudos e sujos que rasgam os
manuais, especialmente os que se encontram na prateleira da autoajuda; antenas que
possam captar “percepções e sensações ínfimas” (Rodrigues, 2013, p. 32); olho, só vale
quando vê além do que é familiar; estômago de elefante produz fomes que não cessam
de grunhir vitalidades, uma necessidade de devir animal14. “Que venham os devires!
[...] Devires que deslizam e escorregam. Devires que explicitam inquietações colocam
forças em relação, devires que ativam a vida. Devires animais” (Schuler, 2011, p. 150).

Currículo Gaia
Currículo Gaia não ganha o mundo, ele é mundo. Currículo Gaia nasce em terrenos
férteis, às vezes, desterritorializado, brota no fundo do mar, mistura-se aos peixes-
demônios, habita corais, dorme com as ostras, viaja na cauda de um golfinho fêmea.
Um currículo Gaia é um currículo vagabundo porque vaga pelos mundos, tem fome
de geografia, até porque dizem que um “currículo tem primeiramente, uma geografia”
(Corazza, p. 2013, 149). Um currículo Gaia está perto e longe ao mesmo tempo da
margem, sabe o quanto é necessário aproximar-se e afastar-se para não cair em armadilhas
majoritárias, estratificadas pela linha molar que não cessa de operar movimentos de
capturas de “qualquer outro modo de existência” (Corazza, 2013, p. 151).

Gaguejar
Não me agradava a ideia. Caminhei de um lado para o outro,
ficando cada vez mais inquieto à medida que passavam os minutos.
Henry Miller

Triturar palavras tagarelas, produzir silêncios prenhes de vida, murmúrios, soluços,


balbucios, gagueira. Trata-se de um currículo que se produz no espanto, com algo que
o choca e o tira dos trilhos, escapando da representação. Uma espécie de “gagueira
criadora”, escreverá Deleuze (1997, p. 126). Gagueja porque é forçado, picado, mordido,
13
Clarice, uma biografia, obra de Beijamin Moser.
14
Devir animal é um conceito cunhado por Gilles Deleuze e Félix Guattari (1997). Consoante aos filósofos, o “devir não
é atingir uma forma (identificação, imitação, Mimese), mas encontrar a zona de vizinhança, de indiscernibilidade ou
indiferenciação” (p. 11).

165
cutucado pelas forças intempestivas do caos. Para um nômade, talvez importe aprender,
antes de tudo, a gaguejar, pois “as palavras fazem silêncio” (Deleuze, 1997, p. 128) para
que possam atingir o seu limite. Gaguejando entre uivos, ladros, grunhidos, murmúrios,
balbucios, zurros e sibilos, encontra-se com o deserto. Um currículo gago opera em
velocidades, lentidões e ignorâncias.

Dicas para um currículo matéria


90. Não cite. Vampirize. 28. Não ornamente. Desmanche. 39. Não embeleze. Suje.
89. Não decore. Borre. 55. Não limpe. Manche. 145. Não floreie. Desflore. 18. Não
regule. Fabule [...] 10. Não discorra. Distorça. 66. Não discurse. Desconverse. 200.
Nem ordem, nem inversão. Diversão. 22. Não explique. Complique. 9. Não empilhe.
Cave. 69. Não empaste. Raspe. 33. Não enfileire. Descarrilhe. 88. Não siga o caminho.
Saia do trilho. 301. Não focalize. Disperse. 15. Não organize. Embaralhe. 78. Não dê
forma. Deforme. 35. Não funda. Confunda. 101. Não centralize. Distribua. 102. Pra
quê régua? Enfie nos dedos. 38. Pra quê compasso? Meta os pés (Tadeu, 2007, p. 312).

Considerações finais
Como pensar em um currículo que se permita sujar – criar – em vez de acumular
– ordenar, classificar, categorizar – conhecimentos, conteúdos e didática? Como
(des)curricularizar o que está instituído e salvaguardado como Currículo Verdade?
Quais as verdades deste tempo é preciso enfrentar para que se possam cartografar os
“percursos desconhecidos para traçar desvios e operar rupturas no já sabido, reconhecido
e legítimo” (Dalarosa, 2011, p. 19)? Como pensar a contrapelo do que está posto como
verdade? De que modo é possível criar movimentos disparadores que possam aumentar o
espaço liso da aula, da didática, do currículo? Que possibilidades que se tem ao suspender
o instinto de rebanho e “permitir uma vida em experimentação e que, portanto, é
produzida na potência da invenção de sentidos” (Dalarosa, 2011, p. 22)? Como imprimir
um currículo que fale em nome próprio? Trata-se de um campo de batalhas, “obstáculos
e limites, [que] promove ‘combates-contra’ (com o Outro) e ‘combate-entre’ (entre si)”
(Corazza, 2013, p. 166).

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Nacional de Didática e Prática de Ensino). Linguagens, espaços e tempos no ensino e aprender.
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CORAZZA, Sandra Mara. Os cantos de Fouror: escrileitura em filosofia-educação. Porto
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Artigo publicado em Espaço do Currículo (Online), Universidade Federal da Paraíba, temática


Políticas de Currículo e Formação Docente: tensões e desafios no cenário nacional, João Pessoa,
PB, v. 8, n. 3, set./dez. 2015.

168
tradução-dramatização
do currículo: imagens do
projeto escrileituras

Polyana Olini
Sandra Mara Corazza

Considerações Iniciais

A partir da ideia de que “debaixo de todo currículo há um drama” (Corazza, 2013,


p. 171), pesquisou-se o currículo do projeto Escrileituras: um modo de ler-escrever
em meio à vida, sob a perspectiva do Método de Dramatização, perguntando o que
querem as imagens que habitam o currículo engendrado nesse projeto, visando
encontrar as forças que expressam seu modo de ser, de sentir e de pensar em meio ao
drama educacional. Proposto por Deleuze (2006a) na conferência de 1967 intitulada
O método de dramatização, ao apresentar o movimento de dramatização, apontando
para a encenação tipológica que questiona o privilégio da pergunta “o que é?”, apoiado
na crítica e na experimentação das relações de forças, criando assim contraponto à
uma imagem dogmática do pensamento. Nesse contraponto o pensamento se ocupa da
experimentação com o que não está dado dentro do limite da razão e do bom senso.
Segundo Deleuze, faz-se necessário buscar pelo caráter dramático do aconteci-
mento. Essa busca por dramas, anseia pela atualização das Ideias, que estão recobertos
por uma imagem dogmática e moral de pensamento, para colocá-los em cena antes
que sejam transformados em representação. Sob o logos do conceito, encontre o drama
que o especifica em suas determinações espaço-temporais.

169
Dessa forma, o Método de Dramatização pode ser entendido como um método
trágico, ou um método de exploração teatral que mostra afinado à filosofia de Nietzsche
e às perguntas perspectivistas que este entreabre. Busca o sentido no que se diz e a
avaliação daquele que fala, por meio de uma ruptura com a questão “o que é” e a uti-
lização de questões dramáticas, genealógicas, perspectivistas. Isso implica um autêntico
movimento contra a inércia imutável da Imagem dogmática do pensamento, pois
compreende que não é possível determinar um tipo, nem fazer o mapa de uma região,
sem dissolver a imagem universal que bloqueia essas singularidades.
Mas, o que é uma imagem do pensamento? Para Deleuze (2006b), cada filósofo
cria uma filosofia que não se trata de cópia mental, representação subjetiva ou uma
concepção de mundo. Não é representante da coisa no intelecto, ou visão do objeto na
consciência; não pode ser deduzida da ideologia, nem do contexto social e econômico;
tampouco, pode ser confundida com a transparência das formas ou das ideias, nem
com o esclarecimento de proposições e teses; não é um dado psicológico, nem está no
cérebro do indivíduo – ao contrário, tanto o cérebro quanto o indivíduo são imagens entre
outras. Nessa perspectiva, Deleuze e Guattari propõem uma reinvenção da noologia,
isto é, uma reinvenção das ciências do pensamento; um estudo e uma genealogia das
imagens de pensamento, a partir da seguinte proposição: “haveria portanto uma imagem
do pensamento que recobriria todo o pensamento, que constituiria o objeto especial de
uma noologia” (1997, p. 43). Uma noo-imagem que é uma imagem do ser, um recorte
da matéria do ser.
Buscou-se evidenciar o caráter dramático do currículo do Projeto Escrileituras.
Para tanto, a dramatização foi compreendida e movimentada como um exercício de
tradução, ou seja, de criação e fabulação de novos signos e de novas imagens, fazendo
aparecer o drama que está recoberto por suas imagens dogmáticas e atuais de pensamento,
suas potências intensivas e virtuais. Com a teoria da tradução, ou da recriação e da
transcriação, de Haroldo de Campos (2013) – que confere ênfase ao caráter processual
do texto como escritura e instala procedimentos literários desestabilizadores de sentido,
rompendo a hierarquia entre tradução e criação –, a “Didática-artista da tradução”
(Corazza, 2013) tornou tais movimentos possíveis, visando provocar outros modos
de relação com a pesquisa em educação, a escrita, a leitura e a vida.
Dessa forma, a inflexão do Método de Dramatização para pesquisa curricular foi
desenvolvida em dois grandes movimentos, o crítico-genealógico e o experimental-
exploratório. Tais movimentos são possíveis através de criação e experimentação de
paradoxos próprios do Informe do currículo engendrado no Escrileituras. O Informe do
pensamento curricular não significa que ele não tenha formas, mas sim que suas formas
não passíveis de movimentos representacionais no pensamento das pesquisas.

170
O primeiro movimento é o crítico-genealógico, aquele que consiste em arrancar
o pensamento do domínio da doxa, determinando “quem” interpreta, “quem avalia”,
“o que quer” aquele que interpreta, “o que quer” aquele que avalia? Quando essas
perguntas são formuladas é promovida a ruptura com a tradição platônica, e se deseja
identificar um tipo, que se configura em determinada relação de força. As relações de
força não estão separadas de uma tipologia e uma topologia, uma vez que são extre-
mamente complexas e irredutíveis.
Daí o segundo movimento: experimental-exploratório, que expressa outra maneira
de aproximação do pesquisador com o biocurrículo. Esse movimento coexiste com o
primeiro e nele é possível identificar, definir e estudar – em movimentos derivados de
experimentação – a dinâmica ontológica, tipológica e topológica da diferença, presente
nas relações das forças vitais que o constituem.
São interconexões entre novas formas de pensar o currículo do Escrileituras e
os problemas postos com a filosofia da diferença. Uma operação de devolução do pen-
samento ao caráter vivente do currículo. Entende-se que com esta operação pode abrir-
se à interpretação pós-crítica para uma potência ativa do pensar e um sentimento mais
intenso da vida, realizando o acordo, desejado por Nietzsche, entre a vida e o pensamento.

Matérias e movimentos de pesquisa


De acordo com Deleuze e Guattari (1992), só é possível pensar a partir de nossos
próprios problemas; e o primeiro enfrentamento no processo da pesquisa residia na
necessidade de gerar uma abordagem para os elementos chamados de dados e análise
de dados. Quando entendidos classicamente, esses elementos são sustentados por
referenciais teóricos, ensinamentos e programas de coleta e de análise de dados que se
instauram na exclusividade do verdadeiro, do real, do original. O conceito de dados,
por exemplo, implicava um sistema bastante unificado, estável e hierárquico de con-
cepções e de experiências. Tais entendimentos estão enraizados em posicionamentos
epistemológicos que se esforçam para encontrar categorias estáveis, temas ou imagens
para descrever uma representação do mundo. Amplamente utilizados em diversas
posturas epistemológicas presentes nas pesquisas qualitativas em Educação, estes
meios de pesquisa acadêmica, em consequência de que funcionam por pressupostos de
aparato positivista, colidem com a inflexão pluralista, perspectivista e criacionista adotada
na pesquisa, além de colidir com o movimento teórico-metodológico desenvolvido no
Projeto Escrileituras. Todavia, essas questões contribuiriam com os encontros presentes
na pesquisa, como um desafio e um projeto crítico-experimental que busca por um
“empirismo superior ou transcendental” (Deleuze, 2006b).

171
A noologia permite que a pesquisa educacional crie imagens e pense por imagens.
Não mais representando, mas engendrando; não descobrindo as formas, mas procurando
singularidades; não contemplando, mas nos prolongando em fluxo turbilhonar de
currículo. As imagens são os seres vivos da pesquisa; enquanto os seus dinamismos
espaço-temporais são condições de possibilidades para a criação. Em função desta
perspectiva, a noção de plano de imanência funcionou como uma ferramenta para
composição dos procedimentos e para pensar a extração e a analítica dos fluxos e das
forças. Permitiu documentar e organizar as redes de movimentos formadas pela imagem
do pensamento do currículo do Projeto Escrileituras, isto é, o atravessamento de
acontecimentos, velocidades, afetos, sensações, multiplicidades e devires presente no
arquivo em questão nesta pesquisa.
A pesquisa lançou mão de investigar as imagens do pensamento do currículo do
Escrileituras. Para tanto, criou três planos imanentes e, sob tendência dramática,
opera os seus elementos de pesquisa em uma espécie de voo por dentro desses planos-
mundo; marcados, cada qual a seu modo, por um liame com o Método de Dramatização
e seus movimentos – movimento crítico-genealógico e movimento experimental-explo-
ratório. Dessa maneira, a construção e a apresentação dos elementos que ordenam e
desordenam esta pesquisa encontram-se de acordo com operação desses planos, quais
sejam: documental (PD), procedimental (PP), dramático-noológico (PDN). Constituindo
escritura anterior ao texto e, em certa medida, resultando de um plano geral de
composição, ou de imanência, propõe-se que esses planos iniciam um encontro com
imprevisibilidades, através de múltiplos ângulos de aproximação.
Nesses planos coexiste um arquivo, ao modo de um traço ou uma “experiência do
vivo em geral” (Derrida, 2012, p. 129). Isto é, os traços do vivido foram arquivados
em corpus de investigação de acordo com os chamados traços-arquivo e sua infinidade
de operações de triagem, de separação de documentos e deslocamentos. O traço-
porta é composto pelos textos Escrileituras: um modo de ler-escrever em meio à
vida Observatório da Educação/CAPES/INEP, e Notas para pensar as Oficinas de
Transcriação de Sandra Corazza (2010; 2011). Uma vez convocados como ponto de
partida e de passagem, estes textos oferecem a extração de regiões de composição, de
ser e de pensamento do Escrileituras. O traço-chave se utiliza de um dos roteiros de
leitura e de escritura, desenvolvidos durante o projeto, para levantamento e verificação
de resultados de pesquisa no OBEDUC. Do universo conceitual e empírico subjacente
àqueles instrumentos, o escolhido para colocar em evidência o caráter dramático do
currículo-escrileituras foi o proposto, como método – técnica, procedimento, operação
– de leitura, compreensão, análise e produção de um currículo, e denominado Chave
para Pesquisar um Currículo: Método de Dramatização. Na qualidade de técnica

172
criativa de tradução-dramatização de um currículo, a Chave de Escrileituras transforma
o Método de Dramatização em procedimento de pesquisa.
Em meio ao vitalismo de pesquisa e criação do Escrileituras, convidamos os pes-
quisadores do Projeto para participação direta nesta pesquisa, via produção deriva(da)
da Chave de escrileitura para Pesquisar um Currículo: Método de Dramatização.
O retorno desses participantes define o principal critério de seleção das Oficinas de
Transcriação movimentadas aqui. Das vinte e cinco Chaves de Escrileituras recebidas,
as dezesseis selecionadas foram as que abordaram a criação e a realização de Oficinas
de Transcriação desenvolvidas no decorrer do projeto.

O currículo do Projeto Escrileituras


no Programa Observatório da Educação

Ao reunir, a partir de concepção orientada pela filosofia da diferença, os planos


de pensamento filosófico, artístico e científico, o projeto Escrileituras: um modo
de ler-escrever em meio à vida se concretiza como processo de Pesquisa, Criação e
Inovação. Financiado pelo Programa Observatório da Educação (OBEDUC), parceria
entre Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES),
Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) e a
Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI)
do Ministério da Educação do Brasil (MEC), o Escrileituras, comportando quatro
núcleos, situados em instituições públicas de ensino superior: Universidade Federal
do Rio Grande do Sul (UFRGS) – universidade sede –, Universidade Federal de Mato
Grosso (UFMT), Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e Universidade do Oeste
do Paraná (UNIOESTE). O trabalho desenvolvido, nesses quatro núcleos, abrangeu
cursos de graduação e pós-graduação, bem como escolas de Educação Básica cadas-
tradas no projeto.
No Projeto Escrileituras, a referência à vida cotidiana, a situacionalidade histórica
na qual ela se desenvolve, as relações entre o saber e o poder permitem dar a ver um
currículo que não está preocupado com planos administrativos e com a fabricação e
homogeneização de sujeitos, mas sim com uma formação aberta aos fluxos e intensidades
do pensamento.
O Escrileituras atuou nos campos do ensino, da pesquisa e da extensão, por meio
da proposição e do desenvolvimento de Oficinas de Escrileituras. Também chamadas de
Oficinas de Transcriação (OsT) e ateliers de pesquisa; “as oficinas são espaços-tempos
prag-máticos e críticos de transcriação para processar a criação e a inovação, que passam,
necessariamente, pela escrita-e-leitura” (Corazza; Rodrigues; Heuser; Monteiro, 2014, p. 9).

173
A denominação do projeto veio da noção de “escrileituras”; palavra-valise que diz
da intersecção leitor-escritor-texto e da experiência sensual que leva o leitor ao desejo
de escrever (Corazza, 2008, p. 21-47). Em escrileituras a escrita-e-leitura justifica-se
pelo trabalho com escritas e leituras singulares e autorais.
Tomando o Projeto Escrileituras como plano, cria-se e experimenta-se uma pro-
blematização da educação que foi vivida nele, ao operar por meio da relação de trans-
bordamento recíproco entre escrita e leitura. Essa problematização desenvolve um
currículo que é entendido como produção de conhecimento, experiências e práticas –
com seus aspectos políticos, sociais, históricos e culturais –, em um processo que não
é neutro, pois implica os sentidos de ações e de efeitos.
A contribuição do Escrileituras para a discussão educacional, artística e filosófica
sobre a escrita-leitura é se concentrar em conectividade, movimento e mudança para
atravessar o pensamento curricular, os professores e as práticas educacionais que
idealizam e celebram a formação de escritores que se desenvolvem apenas em relação
com os testes e as normas nacionais. Além disso, o projeto forneceu um conjunto de
ferramentas conceituais e um quadro teórico e empírico com o potencial de permitir
aos pesquisadores e estudantes participantes a renovação didática e a recriação das
estruturas convencionais de escrita e de leitura, por meio de experimentações produ-
zidas em contínuo devir no contexto político, econômico e social da contemporaneidade.

Processos de tradução-dramatização no currículo


Ao entender o currículo do Projeto Escrileituras como “uma espécie de ‘ser
falante’”, a significação do que ele comunica, em determinada época e determinado local,
“está sempre suspensa a um alhures, que é, invariavelmente, uma cadeia incompleta de
significantes” (Corazza, 2001, p. 11). Portanto, são efeitos de derivação da linguagem as
vontades e os problemas formulados pelo currículo: O que quer? Que indivíduo deseja
formar? Para este fim, o Método de Dramatização inverte a perspectiva do platonismo,
atualizando uma nova imagem do pensamento curricular, na qual o ato de criação
pedagógica carrega a força virtual de uma didática que se atualiza em currículo (Oliveira,
2014). Permite um campo intensivo de indeterminações e de incertezas criativas que
promovem uma dramatização do conhecimento que coloca em cena, por meio do drama.
Para a filosofia clássica, o conceito em toda a sua pureza e rigor, transcende a
inscrição linguística. Sócrates, como o filósofo que, supostamente, não escreve, mas
fornece um modelo para toda a tradição filosófica. Nesse pensamento fundamentalmente
fonocêntrico ao problema da tradução é raramente concedido muito significado
filosófico. Para Derrida (2002), no entanto, uma vez que a filosofia não pode transcender

174
ou superar sua própria inscrição, a tradução é uma condição da própria filosofia; uma
sempre necessária e impossível, em rigor absoluto, por ser uma ação sempre singular
de priorizar um dos níveis da significação como transposição de significado. Nenhuma
elaboração teórica em geral, sobre o problema da tradução, irá diminuir o ato de forças
do tradutor em seu compromisso, obrigação, dívida, responsabilidade, restituição todos
eles elementos implícitos no ato de traduzir.
No texto A tarefa do tradutor, de Walter Benjamin, a tradução está em dívida com o
original, a partir do qual ele recebe sua própria tarefa. que não consiste na recepção, na
comunicação ou representação do original. Ele deve centrar seu interessa basicamente
sobre a forma, como evidencia qualquer tentativa de traduzir textos sagrados ou poéticos.
Dizendo de outra forma, a tarefa do tradutor é “fazer amadurecer a semente de uma
linguagem pura” (2008, p. 49). Contudo, o original também está em dívida com a tradução
para a sua própria sobrevivência. Tradução, então, parece lançar uma economia de dívida
incalculável, em que equilibrar as contas é tarefa impossível e incessante do tradutor.
Conforme Campos (2013, p. 5), a transcriação é uma operação de tradução radical
que não tenta reproduzir a forma do original, mas consiste em uma “recriação, ou criação
paralela, autônoma, porém recíproca”, uma leitura crítica da tradição. A transcriação
está, portanto, “no avesso da chamada tradução literal”. Sob efeito desta concepção de
tradução, é possível que o tradutor-transcriador se conecte a um texto, isto é, que olhe
para o texto de partida de formas nunca antes imaginadas, identificando “o desenho
geral da poética do original, redesenhando-a e disseminando-a no espaço de sua própria
língua” (Santaella, 2005, p. 230). Trata-se de uma organicidade do texto. A buscar a
semântica pela semântica. Mais que renunciar a uma língua e suas especificidades em
função da outra, busca-se, na transcriação, sempre soluções de transposições, manter no
texto sua informação estética, mesmo que por meio da traição, da infidelidade em sua
relação com o original.
Octavio Paz define um poeta-tradutor; de atividade paralela ao poeta, esse tradutor
é um desmontador dos elementos do texto original, recolocando em circulação os seus
signos na linguagem. Esse tradutor é compositor de um poema análogo ao original,
com uma importante diferença: “ao escrever, o poeta não sabe como será seu poema; ao
traduzir, o tradutor sabe que seu poema deverá reproduzir o poema que tem diante dos
olhos” (2009, p. 27). Somente sendo poeta-tradutor ou tradutor-poeta se poderá conciliar
estas duas operações paralelas, na busca do domínio da arte de fazer as escolhas mais
adequadas a cada situação, equilibrando, assim, literatura e literalidade, na tradução
poética.
Com base nessa perspectiva criadora, é possível colocar em evidência o caráter
dramático do currículo-escrileituras na criação empírica, paralelamente crítica e

175
experimental, que esta pesquisa define. É do movimento de busca pelo do drama,
que age na escrita como um todo e não como se fosse uma série de fragmentos das
diversas linhas lingüísticas inseridas na sua estrutura, a buscar, separadamente, o
sentido intrínseco da tradução e não pela razão, em espaços regularizados que uma
nova imagem do pensamento nasce e ganha uma nova perspectiva, uma perspectiva
que ajuda a afastar a imagem dogmática do pensamento.

Imagem currículo-escrileituras
Dramatizar os vidarbos curriculares presentes no Projeto Escrileituras, por meio
do tratamento do material selecionado e empregado, é também mostrar suas máscaras
e seus devires, submetendo a realidade à uma reformulação da ordem da composição.
Cada movimento analítico a partir dos planos e dos arquivos apresenta uma relação
mútua de escolhas previstas ou surpreendentes que produzem um arquivo novo.
Deslocamentos advindos, por sua vez, de um caminho de movimento contra
a identidade e a representação, que permite compor respostas – às perguntas que
derivam do Método de Dramatização – que gravitam forças puras e que evidenciam
um movimento incessante de máscaras atrás de máscaras. Quem é aquele que quer?
O currículo-escrileituras, movimentador das noções de criação, tradução, transcriação,
escrita, leitura, escrileitura, diferença, cartografia, etc. Quando quer? Em um tempo,
tão saltitante, molecular e eternamente movente que não é visível por um contorno
temporal apreensível. Essa brevidade preserva o currículo, numa temporalidade aiônica.
Como quer? Insistindo que o mundo não é somente algo externo ao pensamento e que
está simplesmente esperando para ser representado. Indicando entradas e saídas para
novas vidas, percursos para outras formas de existência, incidências sobre inéditas
possibilidades de viver. Quanto quer? Que aconteçam muitas variáveis de intensidade
e relações com as forças do Fora. Mas que aconteçam com as forças reativas apenas
em quantidade necessária para que cada relação molar se transforme em relações
moleculares e partículas submoleculares, em movimentos de vazamento.
A pesquisa pode produzir elementos pensamentais para pensar uma escolaridade
oriunda de uma imagem escolar heterogênea, de uma mudança epistemológica.
Ao operar com experiências de problematização o tipo currículo-escrileituras
é contrário às leis do assentamento curricular; menos preocupado com o “que quer o
dogmatismo de um currículo-Assentado “para se tornar potencializador de novas
experimentações de vida “com o que deseja um currículo-Vagamundo” (Corazza; Tadeu,
2003, p. 19). Realiza movimentos de transformação que são próprios de um pensamento
problemático e não de um pensamento resolvido, buscando conexões entre forças

176
efetivas, que agem sobre esse pensamento por meio de devires que se deslocam em
paisagens pedagógicas errantes.
Uma imagem que remete ao par matéria-forma compõe um modelo legal ou legalista,
opera individuações por sujeitos e objetos, forma bons cidadãos, bons saberes, bons
valores, fazendo com que tudo, no campo do currículo, fique firme, sólido, estável, a
partir do momento em que ela adquire exclusividade e se torna A Imagem.
A escola e suas segmentações disciplinares consistem em agenciamentos molares
– são registros regidos por estratos, e capturados por políticas majoritárias; espaço e
tempo, regras, normas, palavras de ordem – que repousam em agenciamentos mole-
culares. Dentre essas funcionalidades, construir uma nova imagem de pensamento
curricular implica buscar pelas linhas de vazamento do molar, isto é, linhas menores,
fluxos de vida que traduzem devires moleculares em currículos. O Projeto Escrileituras
busca por expor e multiplicar as linhas de fuga, em torno das quais afloram novos
devires e se revestem de formas novas de pensar a educação. Trata-se de proceder por
experimentação e criação possibilitando uma imagem infinitamente multifacetada da
educação – na qual se dissolve o entendimento das práticas pedagógicas como objeto,
e dos aprendizes como sujeito.
Assim, aproxima-se o currículo-escrileituras do rizoma de Deleuze e Guattari (1995,
p. 33). Um “sistema a-centrado não hierárquico e não significante” caracterizado como
“desmontável, conectável, reversível, modificável, com múltiplas entradas e saídas, com
suas linhas de fuga”. As forças efetivas que agem, rizomáticamente, sobre o currículo
engendrado no Projeto Escrileituras permitem investimentos nas indeterminações
afetivas que forçam o pensamento a pensar de outro modo. Essa perspectiva oferece
conexões rizomáticas que ultrapassam a concepção de indivíduo enfatizada nos pen-
samentos curriculares assentados na imagem de pensamento representativa.

Considerações finais
A pesquisa trata de uma recriação do texto original de um currículo, colocando
suas imagens de pensamento em cena, desde um modo possível de pesquisar, desalojado
de um contínuo de procedimentos pré-definidos, mas que compõem uma prática a
ser inventada, documentada, analisada e produtora de sentidos, afecções, conceitos,
relações e aprendizagens. Uma criação paralela, autônoma, mas recíproca de currículos
e simulacros. Brechas por onde a língua se distrai dos modelos representacionais e força
a palavra a fazer outros nexos, a dizer o que ela não poderia dizer.
Nessa perspectiva, para que possamos problematizar o que se cria em educação, a
“Didática-artista” da tradução sugere uma partida das formas, sentidos, interpretações,

177
indivíduos, identidades, conhecimentos para que seja possível traduzir didaticamente.
Coloca-se a criar, a fazer o novo seguindo “devires, ao produzir formas deformadas,
figuras desfiguradas, paradoxos e não-sensos” (Corazza, 2013, p. 207). Por meio desses
movimentos de deslocamento e transmutações didáticas, uma nova abordagem para o
problema da diferença nas relações educacionais é possível. Isso resulta em uma mu-
dança na própria imagem do pensamento.
As produções oriundas do procedimento Chave para Pesquisar um Currículo:
Método de Dramatização demonstram que as experimentações que compõem o cur-
rículo do Projeto Escrileituras – movimentadoras das noções de criação, tradução,
transcriação, escrita, leitura, escrileitura, diferença, cartografia – configuram uma
imagem de pensamento; um currículo-escrileituras que permite o surgimento de mul-
tiplicidades ou composições de matéria-pensamento que estão sempre em processo de
mudança, tornando o que fazemos com o currículo e o que o currículo faz de nós uma
transcriação de novas intensidades e fluxos.
É possível afirmar que o currículo do Projeto Escrileituras não opera como uma
ferramenta fabricada para funcionar como quer a imagem dogmática do pensamento,
isto é, buscando apenas meios de representação do mundo. Insiste que o mundo não
é somente algo externo ao pensamento e que está simplesmente esperando para ser
representado. Define-se como uma imagem curricular heterogênea, na qual não se separa
o pensamento da vida. Por outras palavras, o ato de pensar o mundo é indissociável do
próprio mundo e os conceitos do currículo do Escrileituras foram criados ou fabricados
em resposta a problemas reformulados.

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didática, o currículo? Porto Alegre. Tese (Doutorado em Educação). Programa de Pós-
Graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
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PAZ, Octavio. Tradução, literatura e literalidade. (Trad. Doralice Alves de Queiroz). Belo
Horizonte: FALE/UFMG, 2009. (Cadernos Viva Voz)

Texto apresentado no painel Didática da Diferença: escrileitura e transcriação curricular, no


XVIII ENDIPE – Encontro Nacional de Didática e Prática de Ensino, Didáticas e práticas de
ensino no contexto político contemporâneo: cenas da educação brasileira, realizado em Cuiabá,
MT, entre 23 a 28 de agosto de 2016; publicado em Anais do XVIII ENDIPE, Cuiabá, MT:
Ed. UFMT, 2017.

179
BASE NACIONAL COMUM
CURRICULAR: APONTAMENTOS
CRÍTICO-CLÍNICOS E UM TRAMPOLIM

Sandra Mara Corazza

Sintoma social e democracia

Este artigo realiza o esforço de constituir movimentos de análise crítica e de


interlocução clínica, no espaço-tempo da Base Nacional Comum Curricular (2015-
2016), tal como esta foi exposta em primeira versão destinada à consulta pública (http://
basenacionalcomum.mec.gov.br/). Movimentos críticos-clínicos que nos parecem
necessários para acompanhar os enigmáticos deslocamentos e rearranjos, pelos quais
passam o país, o mundo, o capital, o trabalho, as relações, a educação – e nós, pro-
fessores, no meio desses movimentos: atônitos, intrigados, preocupados e, muitas
vezes, perdidos.
Assim participando, damos prosseguimento ao trabalho em prol da democracia,
embora reconheçamos a dificuldade do seu exercício; a não assunção de sua possibi-
lidade plena; e a sua constante necessidade de melhorias. Almejamos a democracia,
pois sabemos que, somente por meio dela, conseguimos circular nos caminhos das
palavras recalcadas. Aquelas palavras que, como as ditaduras tão cruamente inscre-
veram em nossos corpos, estão vinculadas à violência e à dor – desde que, em outro
funcionamento, que não o democrático, não se fala o que dói e a violência silencia
(Rodriguez; Berlink, 1988).

180
Por isso, as palavras silenciadas manifestam-se como sintomas sociais, tais
como as forças secundárias de adaptação e regulação; o golpismo, o lucro, o poder e a
vaidade; a repressão policial e a proteção ao tráfico de drogas e de pessoas; as formas
inusitadas de controle social e subjetivo; os retrocessos nas conquistas sociais; o retorno
ao misticismo, culto ao natural e todos os neo-arcaísmos; alianças políticas espúrias e
corrupção privada do dinheiro público; a miséria, a morte e o horror – isto é, tudo aquilo
que diminui e avilta a vida.
Sintoma social, como um conceito, formulado no primeiro tomo do Capital, o
qual consiste, para Marx (2008), na manifestação de um estado patológico do socius,
que conduz a rupturas e suspensões no curso de um modo de produção. Tal como
uma necessidade, a princípio, lógica, do funcionamento do discurso capitalista, os
acontecimentos, interpretados como sintomas sociais, são metáforas de algo impossível
de ser dito, como causalidade não contingencial, efeito de estrutura ou de real. Também
Freud (1981a; b), nos textos O futuro de uma ilusão e em Mal-estar na civilização,
concebe o sintoma social como efeito de uma legalidade não apreensível diretamente,
sendo expressão de algo que fica além de um desajuste corrigível.
Embora não estejamos falando, aqui, de um terrorismo de Estado, como o mais
mortífero dos instrumentos que conhecemos, importa indagar se não estaremos vivendo,
hoje, no Brasil, em relação às palavras crítico-clínicas, um terror de tipo segmentarizado.
Por efeitos dos novos sintomas sociais, não estamos sofrendo de anomia, alienação,
desintegração, indefinições, não persistência, busca de facilidades, incapacidade de
estabelecer laços, insegurança em relação à sobrevivência, fascínio pela megamáquina
capitalística e planetária, nihilismo absoluto, cínico e egoísta?
Será que um dos sintomas sociais, próprio aos professores, na atualidade, não
consiste em delegar responsabilidades, que seriam específicas da práxis docente e da
pesquisa educacional, a algo, alguma instituição ou alguém, como: igrejas, templos,
pastores, comitês de ética, poder executivo, conselhos universitários, ministérios,
editoras, reitorias, direções, colegiados, chefias, secretarias, líderes carismáticos ou
de plantão?
Será que não reduzimos ou, mesmo, abandonamos o nosso compromisso ético com
a herança dos que nos antecederam, dos tempos que nos tocaram viver e trabalhar, e
com a resolução dos problemas educacionais? O que estamos fazendo, por exemplo,
pela indisciplina, desinteresse e violência nas escolas; pelos ativismos sindicais e
abstenções nas universidades; pelos saberes totalitários e raivas dogmáticas?
Não seria o caso de agora, outra vez, diante da Base Nacional Comum Curricular,
retomar, verter e reverter as lutas que somente a nós competem, nos campos do currículo
e da didática, para assegurar a cada professor o caráter autoral de sua profissão e

181
a liberdade criadora de suas palavras livres? Para isso, talvez, necessitemos, entre
outras reinvenções – como as das formas de luta e do exercício do poder institu-
cional –, de dispositivos favoráveis, que transformem as falhas da democracia, que
ajudamos a criar, em lugares de auto-interrogação e de problematizações.
Nessa direção, discutir, critica e clinicamente, a Base Nacional parece consistir
em um potente dispositivo democrático, pelo qual somos todos responsáveis, tanto
junto ao Ministério da Educação, como ao lado de colegas que, ao longo do tempo,
participaram da sua elaboração, pelo muito do seu trabalho e também do nosso (como
comunidade educacional), que ali se encontram investidos.

O contemporâneo da Base
Para evitar a repetição, não elencarei pontos críticos sobre a Base, já discutidos
pela ANPED (Associação Nacional de Pós-Graduação em Educação), pela ABRAPEC
(Associação Brasileira de Pesquisa em Ciências e pela ABdC (Associação Brasileira
de Currículo) (ANPED, 2015) – embora eles sejam inspiradores deste texto. Após,
seguirei uma orientação genealógica, no sentido de buscar dar o que pensar, filoso-
ficamente, sobre as palavras e os atos, por meio dos quais criamos essa entidade
quádrupla, denominada “Base Nacional Comum Curricular”. Concluirei pela indicação
de 16 problematizações à BNCC, que foram sendo pensadas e coletadas, junto a
alunos e colegas professores da Faculdade de Educação da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul e de diversas instituições de ensino.
Quando o então Ministro da Educação, Renato Janine Ribeiro (Base, 2015, p. 2),
lançou a Base, iniciou sua apresentação com a seguinte frase “A base é a base”. Como
pretendemos ir além do “é”, falamos da Base como de uma coisa-feita, bem nossa, que
tem a nossa cara – considerando, antes, que, em nosso entendimento, formular, organizar,
estruturar, modelar, montar uma política pública, seja curricular ou de algum outro tipo,
parece ser uma das ações mais difíceis do mundo. Neste sentido, a primeira versão da
Base (única disponível) é já um resultado de um tipo de tarefa sobre-humana, feita no
registro do binômio O-Estado-tem-o-dever-de-educar e O-cidadão-tem-o-direito-à-
educação.
Em segundo lugar, sublinhamos o caráter contemporâneo do texto da Base, o seu
enclave explícito e assumido neste século XXI; de modo que se trata de um documento
curricular, que não poderia ter sido escrito, nem estar aqui, solto no país, oferecendo-se
a nossas organizações, leituras, discussões e debates, no século passado, nem mesmo
em seu final. Logo, consiste em um texto tributário, em seu pensamento e linguagem,
de difíceis lutas e conquistas políticas, além de acirradas disputas intelectuais, feitas

182
especialmente na segunda metade do século XX e consolidadas na práxis educacional da
virada do século. Em função disso, a Base Curricular apresenta-se como híbrida, mestiça,
ao mesmo tempo, conservando a tradição e a atualizando, dando atenção e abrindo espaço
para o que tratávamos, então, como culturas minoritárias e vozes caladas do currículo.
Dessa maneira, é uma Base responsável, ética e politicamente, como se apresenta,
desde o Plano Nacional de Educação (Meta 7, 2014), pela “universalização com
equidade”, pelo “respeito à diversidade” e pela “gestão democrática (da política pública
e das instituições de ensino)”. Estabelece-se, assim, um documento, que fala o tempo
inteiro em “etnia, origem, idade, gênero, condição física ou social, convicções ou
credos” (Base, 2015, p. 7).
Parece-nos, também, como leitores, que, se comparada aos Parâmetros e às Dire-
trizes, a Base consiste em texto curricular mais ubíquo, mais leve, mais alegre; e, por
isto, mais disposto a criar, junto às suas linhas duras, linhas mais flexíveis, moleculares
e, até mesmo, linhas de fuga. Por isso, acho que podemos considerá-lo um texto mais
corajoso do que os anteriores, que se dispunham, foram tomados ou interpretados, como
Currículos Nacionais – se forçarmos a equivalência: o programa da Ratio Studiorum
dos Jesuítas de 1599; o texto curricular do início da República até os anos 60; os
textos dos anos 80, sob a influência da Educação Popular ou da Pedagogia Crítico-
Social dos Conteúdos; e assim por diante.

A Base é coisa-feita
De qualquer modo, a Base é gerada, diretamente, no mínimo, por cinco documentos,
quais sejam: Constituição Federal (1988); Lei de Diretrizes e Bases da Educação (1996);
Diretrizes Nacionais; Parâmetros Curriculares; Plano Nacional de Educação (2014).
Assim, as palavras que advêm desses documentos dispõem a sua própria criação, inclusive,
como estratégica, em prol de cumprir metas educacionais, levando a educação a integrar
e a funcionar de acordo com as metas que ela mesma define – e palavras importam
porque são modos de pensar, sentir, avaliar, subjetivar os outros e a nós mesmos.
Caudatária desses textos, o construto Base é usado para referir aquilo que consi-
deramos currículo escolar; de maneira que, nas escolas, seja garantida a igualdade de
acesso e legitimada a unidade e a qualidade da ação pedagógica, em meio à diversi-
dade. Logo, os conceitos diversidade e nacional são introduzidos como elementos
de um compossível, que articula os currículos de educação infantil, ensino fundamental
e ensino médio a uma base nacional comum; mas que deve ser complementada, em
cada sistema de ensino e escolas, por uma parte que atenda à diversidade; isto é, que
seja diversificada, de acordo com características regionais e locais.

183
Assim não é previsto que o duplo, constituído por diversidade e por nacional,
seja separado em dois blocos distintos, mas que seja, efetivamente, complementar
um ao outro. A junção entre a Base e a parte diversificada é que oportunizaria a preten-
dida formação integral dos estudantes, nos diversos contextos e níveis de ensino.
Além disso, no léxico e no ideário do texto da Base, encontramos outras palavras,
expressões, formulações, ideias, espaços, imagens, signos, personagens, desejos,
estratégias, dispositivos, que compõem o seu cipoal teorético e práxico, tais como:
áreas de conhecimento; noções e conhecimentos essenciais sobre os fenômenos;
processos, sistemas e operações; conhecimento, valores e práticas sociais; exercício
de cidadania plena e conteúdos complementares; características regionais, culturais,
sociais e econômicas; contextualização e paradigma curricular; vida cidadã, ética, saúde
e sexualidade; vida familiar e social; meio ambiente, trabalho, ciência e tecnologia;
economia, cultura, cultura digital e linguagens; unidade nacional, habilidades essen-
ciais e conhecimentos básicos; conhecimentos contemporâneos; diálogo, planejamento
de aulas e trocas de experiências; avaliação dos alunos e identificação de defasagens;
colaboração com estados e municípios; consulta pública; crítica, sugestões, pessoas
físicas, escolas e instituições; rascunho da Base; primeira versão; Portal da Base Na-
cional Comum Curricular; e assim por diante.

QUAD: o quarteto da Base


Tomamos, agora, o bloco BNCC – Base Nacional Comum Curricular –, enquanto
composto como um quadrilátero, e apontamos, ali, alguns elementos, que nos parecem
habitar esse tablado conceitual-operatório.
1) Aqui, neste QUAD (que não é o Samuel Beckett, mas lembra), encontramos a
primeira ideia, que o puxa: a ideia de Base, que nos remete a alicerce, solo, fundamento
de alguma estrutura; o qual, epistemologicamente, indica aquilo sobre o qual repousa um
conjunto de conhecimentos; no caso, o de um Currículo (escrito com letra maiúscula)
que se apresenta, não de qualquer modo, nem com qualquer denominação, mas como
Nacional.
Poderíamos, ainda, tomar Base em outra relação, não muito distante dessa acima,
mas, talvez, um pouco menos fixada, menos pesada para sustentar ou carregar alguma
estrutura. Se a pensarmos etimologicamente, desde o grego Basís, significará andar,
andar com as partes mais baixas do corpo, andar com os pés. De todo modo, a Base,
advinda de Basís, mesmo que pudesse ser entendida como os pés de quem anda, ainda
assim carregaria peso, carregaria a estrutura ou levaria tudo aquilo que contém, isto
é, peso. (Podemos pensar, genealogicamente: como será que aconteceu esta decisão

184
de denominar tal documento de Base? Por que não lhe foi atribuído outro nome? Tal
como Fundamentos, Princípios ou, simplesmente, Currículo? Quem decidiu? Por que
o fez? Com que interesses teóricos, de senso comum ou de política pública?)
2) Em segundo lugar, nesse quarteto, nos deparamos com a operação conceitual
e política, que nomeia a Base como Nacional. Ou seja, que lhe atribui uma enorme
força agregatória, homogeneizadora, uniformizadora, indiferenciadora; e, a par disso,
que lhe atribui a imensa responsabilidade de indicar um grande conjunto, que vira uma
qualificação, enquanto derivada de uma entidade configurada, conformada, desenhada,
concebida, pensada e sentida como Nação – no caso, a brasileira.
3) Em terceiro, após a formulação da parelha Base Nacional, nos encontramos
com a denominação Comum (como um?). Comum que pode aparecer como trivial,
vulgar, normal, habitual, corriqueiro, costumeiro, insignificante, ordinário, batido,
serôdio, acanhado, caseiro, simples, corrente, usual; mas que também pode ser enten-
dido como consuetudinário, feito em sociedade ou em comunidade. De todo modo,
Comum não remete àquilo que é singular, a nenhuma excepcionalidade ou aconteci-
mento; mas àquilo que, para o pensamento, é já sentido comum, tornado bom senso,
virado consenso – e que é compartilhado por todos, por muitos, pela maioria, por
todo um povo, por todo um país.
4) Ora, a montagem do quadrado não estaria completa sem o Curricular. Eis que
um currículo, para nós, que pesquisamos com a filosofia da diferença, é pensado a
partir de um desmoronamento da interioridade do pensamento legitimado, por isso,
é sempre nômade, plural, informe. Dotado da potência diferencial intrínseca de agir,
pode surgir em qualquer ponto e traçar qualquer linha, irrompendo nas águas mansas da
sabedoria adquirida, de modo involuntário, incompreensível e inassimilável. Circulando
numa atmosfera de errâncias, um currículo tensiona planos homogêneos e medidas
avaliativas. Polimorfo e indisciplinado, não pretende tomar nenhum poder e espanta-
se com o servilismo dos currículos oficializados, que atendem às exigências de uma
ciência régia ou estatal.
Não entendendo como os currículos oficializados podem ser triunfantes e dura-
douros, um currículo irrita-se com os seus torpores, conhecimentos estáveis, valores
eternos, sujeitos idênticos e essências constantes. Por isso, abre-se para o novo e
consolida-o, mediante a construção de adjacências; então, desfaz-se e renuncia a si
mesmo, indo embora para outra parte. Mesmo que os seus fluxos sejam canalizados por
condutos e diques, precipita-se, torna a jorrar, transborda, flexibilizando as distinções
binárias, ternárias e sintéticas, afetando seus pontos heterogêneos, fazendo com que
se revezem, ramifiquem-se e se encadeiem, para se tornarem outra vez vetores de
transformação.

185
Vivendo às voltas com as forças do Fora, funciona como uma violência que se
abate sobre os saberes consolidados, como um estranhamento recíproco entre o pen-
samento racional e a realidade da vida. Inconstante, versátil, é um currículo que anda
de terra em terra e corre mundo, alternando seus pontos, traçando e apagando trajetos,
à medida que vão sendo feitos. Por ser amoroso com tudo aquilo que inventa, conjura
as cruéis forças econômicas e políticas; as insuportáveis humilhações humanas e os
centros de poder, desenrolando seus segmentos e figuras imóveis, e dispersando-os;
de modo que voltem a bailar (Corazza, 2008).
Ora, como se vê, o quarteto que nos ocupa, formado por Base, por Nacional, por
Comum e por Curricular, não é sem eira nem beira, isto é, não é ingênuo, impro-
fícuo e sem consequências epistemológicas, sociais, políticas, subjetivas. Com ele,
e a partir dele, trilhamos um solo minado e comprometido por esses mesmos ali-
cerces. E não se trata tão-somente de um modo de falar, de nominar, de denominar
um currículo ou suas bases, como se a preocupação fosse apenas de ordem linguística.
Trata-se de como este bloco, este quadrado, este quadrilátero, assim constituído, nessa
ordem, com essas palavras, gerando tal sigla, nos põe a girar em torno desses eixos,
criando uma determinada realidade educacional e não outra e produzindo certos efeitos
de um real curricular e não outros. (Pensamos, aqui, o que aconteceria se existisse,
naturalmente, algo cuja substância fosse curricular; que tivesse uma existência
comum; cuja essência fosse nacional; e cujo modo de funcionamento fosse o de uma
base.)

As figuras da Base
No tablado do BCNN (BASE, 2015), movimentam-se as seguintes figuras:
1) Quatro (4) Áreas de Conhecimentos, quais sejam: Linguagens, Matemática,
Ciências da Natureza e Ciências Humanas;
2) Cada Área alberga Componentes Curriculares, que variam em sua quantidade
e tipo: a) Linguagens tem 4 Componentes – Língua Portuguesa, Língua Estrangeira
Moderna, Arte, Educação Física; b) Matemática – de modo não surpreendente, a Ma-
temática só alberga a si própria; c) Ciências da Natureza tem 4 – Ciências, Biolo-
gia, Física, Química; d) Ciências Humanas tem 5 Componentes – História, Geografia,
Ensino Religioso, Filosofia e Sociologia.
3) Por sua vez, cada Componente está distribuído em cada uma das Etapas da
Educação Básica, ora nos 9 anos do Ensino Fundamental, categorizados em Anos
Iniciais e Anos Finais, ora nos 3 anos do Ensino Médio; ou em um só dos níveis, que
lhe corresponde.

186
4) Cada Etapa está constituída por meio de Objetivos de Aprendizagem (são 21.973
objetivos!), uns mais específicos do que outros, outros, mais gerais; uns mais práticos,
outros mais filosóficos; e assim por diante.
5) A Integração entre os Componentes Curriculares de uma mesma Área do
Conhecimento e entre as diferentes Áreas é prevista pelos 5 Temas Integradores, os
quais “perpassam objetivos de aprendizagem de diversos componentes curriculares,
nas diferentes etapas da educação básica” (BASE, 2015, p. 16), quais sejam: a) Con-
sumo e Educação Financeira; b) Ética, Direitos Humanos e Cidadania; c) Sustentabi-
lidade; d) Tecnologias Digitais; e) Culturas Africanas e Indígenas.
6) Há, ainda “12 Direitos de Aprendizagem e Desenvolvimento”, que são figuras
dançarinas.

Artifício fabulatório
Ao ler a Base, podemos pensá-la, também, como algo criado por nós, desde o
entendimento de Nietzsche (2001), expresso num artifício fabulatório, presente no
texto da juventude (1873), intitulado Verdade e Mentira no Sentido Extramoral.
Neste texto inaugural de crítica à filosofia moderna e ao desenvolvimento de temas,
ligados à teoria do conhecimento, o que está em questão é, justamente, a verdade, en-
volvendo, ao mesmo tempo, a ciência e a arte.
Prenunciando a análise genealógica dos seus anos de maturidade, Nietzsche toma
pathos da verdade como ponto de partida, para definir o que é o conhecimento hu-
mano, produzido a respeito do mundo. O texto inicia assim:

No desvio de algum rincão do universo inundado pelo fogo de inumeráveis sistemas


solares, houve uma vez um planeta no qual os animais inteligentes inventaram o
conhecimento. Este foi o minuto mais soberbo e mais mentiroso da história universal,
mas foi apenas um minuto. Depois de alguns suspiros da natureza, o planeta congelou-
se e os animais inteligentes tiveram de morrer.

Ou seja, a fábula aponta para o aspecto de exceção, frágil e fugidio, vão e arbitrário,
que constitui o intelecto humano no seio da natureza. Eternidades passaram sem que
esse intelecto existisse; de maneira que, se ele desaparecesse novamente, nada teria
acontecido; visto não haver, para tal intelecto, qualquer missão que ultrapasse o quadro
de uma vida humana. Ao contrário, sendo humano e finito, o intelecto só é tratado com
tanta paixão por seu possuidor e criador, como se fosse o único eixo em torno do qual o
mundo gira. Se pudéssemos entender a mosca, afirma Nietzsche, perceberíamos que ela
voa no ar, animada por essa mesma paixão, sentindo que o seu voar é o centro do mundo.

187
Nada há de tão desprezível e insignificante na natureza, que não transborde como
um odre, ao menor sopro da força do conhecer; e assim como todo carregador quer
também ter o seu admirador, o humano arrogante imagina ter os olhos do universo
focalizados, como um telescópio, sobre suas obras e pensamentos. Por isso, Nietzsche
admira-se que o intelecto seja responsável por esta situação; justo o intelecto, cuja
incumbência é apenas servir como auxiliar dos seres mais desfavorecidos, vulneráveis
e efêmeros, que somos nós, a fim que nos mantenhamos vivos, juntos e relativamente
seguros.
Dessa maneira, o orgulho, que acompanha a avaliação, ligada ao conhecimento e
à percepção, constitui uma espécie de névoa, que cega o nosso olhar e nossos sentidos,
lançando uma ilusão sobre o valor da existência. Prisioneiros de uma consciência
soberba e enganadora, atiramos fora a chave daquilo que nós mesmos criamos, com
o qual nos protegemos e ao qual nos submetemos, como se fosse a melhor coisa do
mundo: eterna, imutável e além da física.
Desde essa perspectiva nietzschiana, podemos agora indagar: qual seria a origem
da nossa crença na verdade da Base? Ora, se o intelecto humano é um órgão dissimu-
lador, humano e finito, que forja imagens luminosas – que lançam um véu sobre o fundo
trágico das existências e o abismo inexpugnável do mundo –, o pathos da verdade da
Base seria, nada mais nada menos, do que um determinado estado de ânimo; qual seja,
aquele produzido pela situação de desvalia, característica da nossa condição humana:
ilusória e dotada de um horizonte limitado.
De modo que estaríamos, assim, diante da relatividade do conhecimento e da
necessidade de nos precaver, em relação a este pathos, para não nos afastar do mundo
real e do tempo presente. Sendo a verdade e a mentira ditadas pelo critério de utilidade,
ligado à paz e à conservação do humano, não podemos esquecer que, em primeiro lugar,
a verdade da Base Nacional seria tão somente a verdade legitimada, expressa através de
palavras consideradas comuns (como uns).
Do mesmo modo que outros espaços e gestos, palavras e imagens, signos e dis-
cursos, manifestariam importantes experiências individuais, singulares, próprias a
grupos, comunidades e culturas, que complementariam a Base; mas que, dela, estão
ausentes. Precisaríamos ter, ainda, prudência, em relação a conceitos, noções e pala-
vras – que são os meios abstratos através dos quais o intelecto humano pretende
dizer a verdade das coisas –, visto que são, sempre, metáforas construídas, a partir da
identificação do não-idêntico, da igualação do não-igual e da indiferenciação do que é,
por natureza, em si mesmo, desde sempre diferença.
Logo, diante da armação humana, do artifício fabulatório, que chamamos Base
Nacional Comum Curricular, seríamos, ao mesmo tempo, gênios da sua arquitetura,

188
desde que forjada por nosso intelecto, que portamos, com orgulho e obstinação; e,
também, seríamos mestres da dissimulação; pois, para fabricá-la, tivemos, como
tarefa, metaforizar o mundo; tratando não apenas de capturar as suas pesadas estra-
tificações; mas, sobretudo, de aparelhar a própria Base – para que, por meio dela,
possamos durar, nem que seja, um minuto a mais, sobre a superfície da Terra.
Ou, a Base funcionará como uma “garantia da Verdade”, tal como escreveu Althusser
(1988, p. 165): “A Verdade só está ali para garantir, em última instância, a ordem
estabelecida das coisas e das relações morais e políticas entre os homens”.

Problemáticas e questionamentos
Como não há outro jeito de permanecer vivos e ativos, e como a Base já tem a
sua concretude existencial de coisa-feita, atuando, aqui-e-agora, de alguma maneira,
resta-nos ver aquilo que ela produz e aquilo que, com ela, conseguimos fazer, pensar
e desejar. Nessa direção, apontamos alguns questionamentos e problemáticas acerca
de sua construção textual e material, que foram sendo coletados, bem como que foram
sendo pensados, durante o estudo e a preparação desse artigo e de outras intervenções
(Corazza, 2015; 2016a; 2016b).
1) Currículo. Em 24 de maio de 1996, durante o segundo ano do primeiro mandato do
presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), os professores da FACED (1996)
expressaram a sua posição sobre os Parâmetros Curriculares Nacionais (após várias
reuniões e muitas discussões). Estabelecidas as devidas diferenças político-partidárias,
econômicas, sociais, subjetivas e culturais, que produzimos, nesses vinte anos, acredito
que alguns argumentos, dentre os sete centrais, mantém a sua atualidade; e que, por isso,
ainda nos dão matéria para avaliar a Base.
Considerando que a Base tende a funcionar como um verdadeiro Currículo Na-
cional, vale indagar (como fizemos com os PCNs) se faz sentido a ideia de ter um
currículo deste teor e abrangência; e, ainda, se dele necessitamos e o desejamos.
Diante do complexo de fatores econômicos e sociais, responsáveis pela desigualdade
e pelo fracasso escolar, criar um diagnóstico ou uma solução (um remédio), como um
Currículo Nacional, não seria minimizar fatores relevantes, como: a espúria remuneração
do magistério, escolas mal equipadas, prédios deteriorados, má qualidade do material
didático, deficitária formação dos professores, etc.?
2) Nacional. Em um mundo dividido e hierarquizado por classe, gênero, etnia,
religiosidade, problematizamos a própria concepção de “nacional”, desde que, deste
modo, essencializamos o que é sujeito a múltiplas interpretações. Como, num país de
dimensões transculturais, como o Brasil, podemos nos autorizar a falar em “identidade

189
cultural nacional”; e, desde aí, estabelecer um “padrão curricular comum” (PCNs);
criando, agora, uma “Base Nacional Comum”? Nesse jogo básico da Base, como
manter as relações entre unidade e singularidade; uniformização e multiplicidade;
hegemonização e pluralidade; diversidade e diferenças; inclusão e atendimento às
diferenças?
3) Estatal. Ainda junto ao Dossiê de 1996, é possível pensar que, devido ao tipo de
texto estatal, formulado e distribuído por um órgão governamental, como o Ministério
da Educação – com poder de imposição, sanções, recompensas, concessão ou negação
de recursos, financiamentos, etc.–; aliado às condições deficitárias e cronologica-
mente escassas, em que este texto vem sendo posto em circulação, se o “espírito” da
Base pode ser, de fato, considerado flexível.
Ou seja, parece difícil que um texto curricular, investido de tal envergadura de
Estado e com tais minúcias – embora resultado de muito trabalho, por parte de repre-
sentativos colegas das várias áreas –, seja percebido, sentido e avaliado, pelos profes-
sores das escolas, como não-obrigatório.
É evidente que esse tipo de percepção, normativa e prescritiva, dificulta a dedi-
cação necessária a um amplo debate coletivo, por parte da comunidade educacional, na
direção de acrescentar currículos locais aos princípios gerais da Base. Isso a dotaria, de
saída, de um alto teor de autoridade, certezas e verdades; em vez do desejado e referido
caráter flexível e sujeito a modificações, adaptações e acréscimos, que a discussão
pudesse sugerir, seja em seu núcleo comum ou componentes curriculares.
4) Direitos. Consideramos também problemático que o estabelecimento de uma Base
Nacional possa ser, em alguma medida, responsável por garantir o “direito à educação”,
os “doze direitos de aprendizagem” (Base, 2015, p. 15), ou o “desenvolvimento
integral” do aluno (Base, 2015, p. 11). Isso se, paralelamente à discussão, melhoria e
implementação da Base – que é, sem dúvida, vinculada a relações de poder, interesse,
regulação e dominação –, não forem melhorados outros fatores, diretamente ligados
à qualidade e distribuição justa da educação, como: valorização financeira e social
do magistério; distribuição prioritária de recursos; efetiva inclusão, acompanhada da
educação necessária aos diversos grupos; adoção de políticas econômicas e sociais; e
assim por diante.
5) Trampolim? Mesmo que seja afirmado pelo MEC que a Base não é um Currí-
culo Nacional – mas um referencial para a produção de currículos, como um docu-
mento de gestão pública, que fará a gestão dos currículos nas Redes –, pensamos como
a Base será significada e usada por nós, educadores? A favor das conquistas que fizemos
em todos esses anos? Para o seu retrocesso, raiva atávica ao novo, ou retorno fascista aos
neo-arcaísmos? De modo a penalizar ainda mais os já penalizados? Como um trampolim,

190
para saltarmos sobre os interesses hegemônicos? Funcionará para que possamos nos
reapropriar das duas maiores responsabilidades éticas de nossa profissão: curricula-
rizar e didatizar, criadoramente? Ou deixaremos que sempre outros – por mais com-
petentes e preparados que sejam – façam o que seria unicamente da alçada de nossa
especificidade profissional?
6) Consulta. Pensamos se houve tempo suficiente para realizar um diagnóstico
curricular, por parte da Secretaria de Educação Básica, considerando que: a primeira
consulta (restrita) foi iniciada em agosto em agosto de 2014; depois, a segunda etapa da
consulta (pública) no site (http://basenacionalcomum.mec.gov.br/) começou dia 26 de
setembro de 2015 e foi encerrada em 15 de dezembro do mesmo ano; para, então, reabrir
até 15 de março de 2016, já contendo um documento que apropriava os 10.379.882
contribuições, intitulado “Encaminhamentos para revisão do documento preliminar da
BNCC: proposições a partir dos dados da consulta pública”.
Além de escasso o tempo de consulta, o tipo de consulta que foi aberta também
parece problemático, diante da necessidade de discussão coletiva, de participação ampla,
que envolva todos os setores e grupos interessados na educação, secretarias, movimentos,
associações, sindicatos, em 27 estados da federação.
Ainda mais: o documento original possui 300 páginas e tanto o acesso quanto
a navegação pelo site da Base apresentam-se como difíceis e pesados. Ou seja, es-
tamos diante da necessidade de mobilização da sociedade civil, em pouquíssimo
tempo – vejam-se algumas iniciativas de organização, como a da Secretaria de Edu-
cação de Santa Catarina –, enquanto a denominada (pelo MEC) “consulta pública”, em
verdade, apresenta-se mais como uma (simples, básica) enquete de opinião.
Enquete que precisa ser feita acerca de maciços blocos de Objetivos, disposta sob
a forma de escolha simples, a qual contém as seguintes alternativas: 1) Concordo
fortemente; 2) Concordo; 3) Sem opinião (trata-se, de fato, de uma questão de
“opinião”?); 4) Discordo; 5) Discordo fortemente. Cada participante deve responder,
obrigatoriamente, a uma alternativa, sem o que não poderá prosseguir. Os critérios
disponibilizados são os seguintes: 1) “a linguagem é clara e permite discussão pública”;
2) “as ideias são pertinentes e relevantes para a área ou componente curricular” (qual
“linguagem”? quais “ideias”, que aparecem após a aplicação dos Filtros?)
Outra questão disse respeito a quem fez e com qual metodologia foram apropriadas
essas avaliações, a partir de 15 de dezembro de 2015? Ou seja, acredito que, se queremos
um Currículo Comum de Direitos e Deveres de Aprendizagem, temos que ter tempo,
garantias de mobilização, muita discussão e espaço para negociações e embates; de modo
que tanto o processo como o seu resultado sejam, de fato, comuns e nacionais. (Se isso
for possível e se for o que nos interessa.)

191
7) Disciplina. Da forma como está constituída, parece que a Base incrementa o
trabalho didático e curricular elevadamente disciplinarizado, formulado em partes,
por especialistas, por etapas (a maioria) – exceção aos Componentes Curriculares
Artes e Educação Física (por ciclos). Como ficam as articulações entre as dimensões,
campos de experiência, componentes, anos? Entre as Áreas? Onde ficam os espaços
de manobra para a antiga interdisciplinaridade? E, mais do que ela, para criarmos
as contemporâneas transdisciplinaridade, transemiótica, translinguística, transcultura-
lidade?
8) Autonomia. A sensação de leitura da Base leva-nos a pensar se as Diretrizes,
por exemplo, não teriam forjado uma situação de maior protagonismo e autoria para
os professores. Se a Base, do modo como está expressa e organizada, não levaria os
professores, mais uma vez, à posição passiva de consumidores de um currículo feito por
outros, em outro tempo e lugar. Em função desse caráter externo, indagamos se a Base
pode se tornar, mais uma vez, um dispositivo de poder-saber-subjetivação, utilizado para
a culpabilização dos professores; especialmente, diante dos seus correlatos, que são as
diferentes formas de meritocracia e as avaliações nacionais, como a Prova Brasil e o
ENEM.
9) Desequilíbrio. Existiriam dois campos, dois estratos, no mínimo, que seriam
constitutivos da Base que está por vir: um mais forte e organizado, formado pelo
Legislativo, pelo MEC e pelos Conselhos Nacional e Estaduais de Educação; o outro
mais fraco, formado pelas escolas e pelos professores. Talvez, necessitemos minimizar o
desequilíbrio entre as forças e as capacidades organizacionais de cada um desses campos
e seus correlatos graus de poder e articulação.
10) Blocos. Mesmo que não seja assumida a distinção entre “conteúdos mínimos” e
(a fantasmagórica) “parte diversificada”; e que seja referido pelo MEC que não existem
dois blocos distintos, mas complementares; pensamos se não estamos, novamente, diante
do nosso velho conhecido duplo. De um lado, como mínimos, viriam as disciplinas
nobres, as que valem no ENEM, as autorizadas; e, de outro, viria o resto, o que sobra,
o que é perfumaria, o que só se acrescenta de favor, como os “temas transversais”,
ou “temas integradores”, como aquela parte menor – a qual, no caso, corresponderia,
justamente, aos currículos locais, grupais, comunitários, regionais.
11) Objetivos. Diante da forma textual da Base, descrita em seus Componentes
Curriculares, por meio de “Objetivos de Aprendizagem”, consideramos perigosa
a possibilidade de, daí, resultar uma espécie de “Taxionomia de Objetivos de
Aprendizagem”; uma “Taxionomia de Competências e Habilidades”, nas esferas
cognitiva, afetiva, psicomotora; ou uma “Taxionomia dos ‘Direitos de Aprendizagem’ e
de ‘Desenvolvimento’” (Base, 2015, p. 10).

192
12) Escolas. Chamamos atenção para os impactos possíveis na escola pública e
na escola privada – os quais precisam gerar mecanismos de pesquisas, situados para
além das burocracias intelectuais e acadêmicas.
13) Privados. Nessa direção, não há como desvincular a Base da política social e
educacional mais ampla. Junto ao Dossiê, segue atual atentarmos para os “interesses
dos grupos econômicos e empresariais”, “que garantam os interesses do capital nacional
e internacional”. Ficarmos de olho na distribuição de recursos “a setores específicos
dos grupos dominantes: usineiros, grandes proprietários rurais, banqueiros, etc.”; e
avaliar por que a Base interessa ao grande capital, empenhada em submeter a educação
a “mecanismos de mercado e à privatização” (FACED, 1996, p. 240).
Como mostra a colega da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Elizabeth Macedo
(2014), em importante artigo, necessitamos verificar a interferência e os interesses de
agentes sociais privados, em nossas políticas públicas de educação, visando um maior
controle sobre os currículos, como um dobramento contemporâneo de governabilidade.
Controle tais como o artigo identifica em instituições financeiras, empresas e fundações,
ligadas a conglomerados, como: Itaú [Unibanco], Bradesco, Santander, Gerdau, Natura,
Volkswagen, Fundação Victor Civita, Roberto Marinho, Fundação Lemann, CENPEC,
Todos pela Educação, Amigos da Escola, entre outros.
14) Alternativos. Sinalizamos, diante da Base, considerada um Currículo Nacional,
para o perigo de uma possível colonização e enfraquecimento das concepções mais
criadoras e locais de currículo. Nessa direção, lembro um artigo de minha autoria
(Corazza, 2001), datado de quinze anos atrás, publicado na Revista Brasileira de
Educação, e denominado Currículos alternativos/oficiais: o(s) risco(s) do hibridismo
(Reunião Anual da ANPED, 2000), em que pesquisei similaridades discursivas entre os
PCNs do Ministério da Educação do Brasil, tidos como currículo oficial, e o Movimento
Constituinte Escolar do governo petista do Rio Grande do Sul, proposto como um
currículo alternativo, progressista, de esquerda.
Refletia sobre o que vinha acontecendo com nossos currículos alternativos críticos,
que estavam propondo o mesmo discurso curricular que o Governo Federal. Argumentava
que, em função desse hibridismo, precisávamos, outra vez, desfazer o risco de ligação,
produzir e praticar currículos que ainda não existiam, para inventar mais uma vez a
diferença. (Parece que precisaremos fazer isto, desta vez, e sempre.)
15) Verificação. Penso que, em encontros e reuniões que atravessem as disciplinas
e o Ensino-De-Algum-Componente-Curricular, precisamos mapear, numa espécie de
cartografia: 1º) se o processo de elaboração da Base (que surge fragmentada, muitas
vezes) contemplou todas as múltiplas e diversas vozes que têm algo a dizer sobre currí-
culo no pensamento educacional contemporâneo (professores de anos iniciais, sindi-
catos de trabalhadores, movimentos sociais, associações acadêmico-científicas, etc.);

193
2º) se não privilegiou um número muito reduzido de especialistas, consultores e
perspectivas; 3º) se discordâncias e diversidades movimentam, saudavelmente, o texto
da Base, como todo currículo que se preze; 4º) se sabemos responder, em uma frase, qual
perspectiva ou eixo ordenador é o da Base; ou se ela é uma colcha de retalhos, mesmo
atual; 5º) que tipo de sujeito a Base deseja; 6º) quais verdades, valores e crenças ela
divulga; 7º) quais relações de poder e formas de saber são as suas preferidas; 8º) de que
tipo é e como se configura não só a Formação, mas a Docência em ato dos professores.
16) Questões pipocas. Por último, formulo, rapidamente, algumas questões pipocas.
a) Por que a “Matemática” ficou reinando sozinha, como uma das quatro Áreas de
Conhecimento? E, diferentemente da área “Linguagens”, por que ela é dita no singular?
Afinal, há somente um tipo de Matemática? E a Etnomatemática, que nasceu no Brasil,
em suas diversas versões, não caberia aí?
b) Por que a denominação “Cultura” está escrita, durante a maior parte do texto da
Base, no singular? Não existe já consenso que temos “culturas” no plural, de vários tipos,
como a juvenil, a negra, a indígena, etc.?
c) Entra século e sai século e ainda estamos presos ao Etapismo, a uma cronologia
etapista da vida humana e educacional. Consideramos, de fato, que a idade cronológica
dos alunos e as etapas de ensino expressam as reais subjetividades emergentes e
esgarçadas, os sujeitos desfigurados e os tipos sociais transitórios, em seus anseios
e interesses? Temos certeza que a Educação Infantil (da Infância deste século), por
exemplo, corresponde ou deve continuar correspondendo, mesmo, aos 4 e 5 anos?
(E assim por diante: Ensino Fundamental, 6-14; Ensino Médio, 15-17?)
d) Por que os “Objetivos” são somente “de Aprendizagem” (Base, 2015, p. 15)?
Por que a Base não formula “Objetivos de Ensino”? Os campos de Didática e Formação
de Professores já não têm acúmulo suficiente para proceder a este dobramento, que
enfoque o que os professores fazem, criadoramente, quando ensinam?
e) Por que os “Direitos” são, apenas, “de Aprendizagem e de Desenvolvimento”?
Por que não existem “Direitos de Ensino” ou “Direitos de Docência”? Como por exemplo,
o Direito à Tradução e à Transcriação?
f) E não parece estranho que, após tantos séculos, ainda situemos a “Aprendizagem”
do lado jurídico do “Direito”? E não ao lado da aventura, do enigma, do acontecimento,
do prazer ou da beleza?

Fora das ilusões


Para concluir, proponho pensar e sentir a Base Nacional Comum Curricular, como
abertura democrática para a formulação de novos problemas antes do que soluções.

194
Como um currículo, que estimule processos de singularização e incorpore zonas de
indeterminação; ultrapasse o pathos da verdade, para incluir o acaso e criar inovadores
movimentos; diminua o sintoma social das palavras calcadas, sequestre a posição
sacrificial dos professores e os disponham em um permanente devir-revolucionário.
Currículo, para além de básico, que leve os professores a falarem, novamente,
dos currículos que lhes competem, para se tornarem, outra vez, autores deles, desde o
dia-a-dia da sua docência. Currículo que, portanto, caia fora das ilusões de transcen-
dência, seja de ordem nacional, comum, humana, de direito, de base.
Que possamos, desde esse currículo que emergirá da BNCC, voltar a saudar o
desejo de educar e nos rejubilar com a vontade de potência dos professores de produzir
vida que gera mais vida. Desejo e vontade, que são os únicos elementos da composição
curricular e didática, que transcriam as culturas e o processo civilizatório, diferenciando
os seus mapas, numa crítica-clínica da saúde de pensar, escrever e ler, educar e viver
(Corazza, 2013).

Referências
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Rosa Freire d’Aguiar). São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
ANPED (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação), 2015. Disponível
em: http://www.anped.org.br/news/base-nacional-comum-curriculo-para-a-educacao-basica-
em-disputa.
BASE NACIONAL COMUM CURRICULAR. Brasília, Ministério da Educação, 2015.
Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/
CORAZZA, Sandra Mara. Base Nacional Comum Curricular: um trampolim, Porto Alegre:
Zero Hora, 2016a. Disponível em: http://zh.clicrbs.com.br/rs/opiniao/noticia/2016/01/sandra-
mara-corazza-base-nacional-comum-curricular-um-trampolim-4947565.html
CORAZZA, Sandra Mara. Currículos alternativos/oficiais: o(s) risco(s) do hibridismo. In:
Revista Brasileira de Educação. N. 17, Maio/Jun/Jul/Ago 2001, p. 100-154.
CORAZZA, Sandra Mara. Currículos nômades: múltiplos nomes em 51 fragmentos. Universidade
do Vale do Itajaí, SC. VII Seminário de Pesquisa em Educação da Região Sul: Pesquisa em
Educação e Inserção Social. 23 jun. 2008. Disponível em: http://www.portalanpedsul.com.br/
admin/uploads/2008/Curriculo_e_Saberes/Mesa_Tematica/12_05_23_Eixo2_mt_sandra.pdf
CORAZZA, Sandra Mara. O que se transcria em educação? Porto Alegre: UFRGS; Doisa, 2013.
CORAZZA, Sandra Mara. Prazo para opinar sobre Base Nacional Curricular encerra em
março. Porto Alegre, ADVERSO/ADUFRGS, 2016b, http://www.adufrgs.org.br/adverso/
edicao-no-217novembrodezembro-2015/

195
FACULDADE DE EDUCAÇÃO DA UFRGS. Dossiê Parâmetros Curriculares Nacionais. In:
Educação & Realidade – Currículo e Política de Identidade. Porto Alegre, v. 21, n. 1, jan./jun.
1996, p. 229-241.
FREUD, Sigmund. El malestar em la cultura. In: FREUD, Sigmund. Obras completas de
Sigmund Freud. Tomo III. Traduccion Luis Lopez-Ballesteros y de Torres. Madrid: Biblioteca
Nueva, 1981a, p. 3017-3071.
FREUD, Sigmund. El porvenir de uma ilusion. In: FREUD, Sigmund. Obras completas de
Sigmund Freud. Tomo III. (Traduccion Luis Lopez-Ballesteros y de Torres). Madrid: Biblioteca
Nueva, 1981b, p. 2961-2992.
MACEDO, Elizabeth. Base Nacional Curricular Comum: novas formas de sociabilidade
produzindo sentidos para educação. In: Revista e-Curriculum. São Paulo, v. 12, n. 3, out./dez.
2014, p. 1530-1550 (http://revistas.pucsp.br/index.php/curriculum).
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Verdade e mentira no sentido extra-moral. (Trad. Noéli
Correia de Melo Sobrinho). In: Comum. Rio de Janeiro, V.6, n. 17, jul./dez. 2001, p. 5-23.
RODRIGUEZ, Sergio Aldo; BERLINCK, Manoel Tosta (Orgs.). A psicanálise de sintomas
sociais. Tradução Claudia Berliner e Maira Firer Tanis. São Paulo: Escuta, 1988.

Texto apresentado, em sua primeira versão, na Reunião Técnica sobre Política Curricular do
MEC, em Simpósio, realizado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em 28 de
outubro de 2015; publicado, com reformulações, na Revista Educação PUCRS, Edição Extra,
2016.

196
ARQUIVOS EIS AICE
PARTE 3
CURRÍCULO E DIDÁTICA DA TRADUÇÃO:
ESCRILEITURAS DA DOCÊNCIA

Sandra Mara Corazza


Ester Maria Dreher Heuser
Carla Gonçalves Rodrigues

Movimentos

Cada uma das quatro universidades constituiu um Núcleo do Projeto Escrileituras,


o qual ficou articulado a institutos e centros federais, escolas e secretarias de
educação, movimentos sociais e civis, municipais e estaduais, outras instituições
de ensino superior e órgãos públicos. Em cada Núcleo, estiveram envolvidos
professores, técnicos educacionais e estudantes das universidades, tanto em nível de
Graduação quanto de Pós-Graduação latu e stricto sensu, com a duração de quatro
anos e meio (2011-2015).
O Projeto movimentou-se com cinco modalidades de bolsas, comportando uma
média de 48 bolsistas ao ano, distribuídos como 18 professores da Educação Básica;
18 estudantes de Graduação; 09 mestrandos; 03 doutorandos e 03 coordenadores
de Núcleos; além desses bolsistas, diversos professores e estudantes trabalharam nas
atividades do Projeto como Pesquisadores Participantes, enquanto interessados na
formação propiciada por seminários e eventos, cursos e ações de extensão que eram
oferecidos simultaneamente.
O meio das Oficinas de Escrileituras (ou de Transcriação) foi o espaço-tempo
privilegiado para as experimentações com leituras e escrituras, advindas das mais

199
diversas fontes literárias, científicas e artísticas, tanto na Educação Básica, na Educação
de Jovens e Adultos (EJA) como no Ensino Superior. Como procedimento curricular e
didático, essas oficinas dispunham-se como pragmáticas e críticas, transcriando a leitura
e a escrita para processar a pesquisa, a criação e a inovação. Funcionando em zonas
de indiscernibilidade e indeterminação, seguiam devires e fluxos, produzindo formas
deformadas, figuras desfiguradas, paradoxos e não-sensos. Arrancavam o figural e
isolavam as matérias para desfazer jogos de forças e efeitos sobrecodificados, através
da distribuição de forças informais. Organizando vivências sensíveis e relacionais, as
Oficinas produziam sensações ou ações diretas, em cenários contemporâneos, fazendo
escorrer critérios de vitalidade e interesse, tornando notáveis ideias e tradições já
criadas, liberando forças vitais dos participantes, onde quer que estivessem represadas.
Trabalhávamos, assim, para que as forças da escrileitura reencontrassem a própria
virtualidade, por meio da desestratificação das camadas sedimentadas de saber, poder e
subjetividade (Corazza; Rodrigues; Heuser; Monteiro, 2014).
Oferecemos, no total, cento e vinte e três (123) Oficinas de Escrileituras, que
atenderam em torno de 166.406 estudantes e professores de escolas públicas e uni-
versidades, conforme o relatório final que apresentamos à CAPES em agosto de 2015.
Em termos de pesquisas sistematizadas, produzimos diversas dissertações de Mestrado
e teses de Doutorado, em quatro programas de pós-graduação; estágios pós-doutorais
em outros programas e universidades; publicações de artigos em periódicos Qualis/
CAPES; apresentações e publicações de trabalhos em eventos nacionais e internacionais;
e assim por diante.
Destacamos a criação, organização e avaliação da Coleção Escrileituras, com Comi-
tê Editorial nacional e internacional, nos quais foram tornadas públicas as experimen-
tações de pensamento-pesquisa, ao longo do processo de desenvolvimento do Projeto.
Expressão por excelência dos participantes do Projeto, a Coleção é integrada por nove
Cadernos de Notas já publicados (Heuser, 2011, Caderno 1; Monteiro, 2011, Caderno
2; Corazza, 2012, Caderno 3; Dalarosa, 2012, Caderno 4; Rodrigues, 2013, Caderno 5;
Schuler; Matos; Corazza, 2014, Caderno 6; Corazza; Oliveira; Adó, 2015, Caderno 7;
Heuser, 2016, Caderno 8; Corazza; Adó; Olini, 2016, Caderno 9); além de um Caderno
de Notas 10 (Rodrigues; Monteiro, 2017), atualmente, em preparação, como desdobra-
mento da fase de formação continuada e permanente derivada do Projeto Escrileituras.

Faixas
A cena da educação contemporânea, em que desenvolvemos o Projeto foi composta
em duas faixas políticas: uma macropolítica, como planificadora da educação nacional,

200
que demanda cidadãos brasileiros alfabetizados dotados de raciocínio lógico-mate-
mático; e a outra micropolítica das Oficinas de Transcriação, que lidou com fluxos e
partículas de leituras, escritas e vidas, os quais escapam dos gráficos e índices da grande
política estatal.
Nunca nos pareceu equivocado afirmar que o Ministério da Educação necessita
dessas microações, propostas pelas instituições educacionais; enquanto, nós, pesquisa-
dores e professores de diversos níveis, precisamos das macroações de Estado. Essa
condição de necessidade mútua deve-se, por certo, ao fato de que “a política nunca
pode manipular seus conjuntos molares sem passar por essas microinjeções, essas
infiltrações que a favorecem ou que lhe criam obstáculo”; e que, mesmo, “quanto
maiores os conjuntos, mais se produz uma molecularização das instâncias que eles
põem em jogo” (Deleuze; Guattari, 1996, p. 78).
Trata-se, pois, de uma coexistência política no nível macro do Estado e no micro
do Projeto; faixas essas que pressupõem um ao outro, que passam um pelo outro com
suas linhas molares e moleculares; as quais, simultaneamente “não param de interferir,
de reagir uma sobre a outra e de introduzir cada uma na outra uma corrente de malea-
bilidade ou mesmo um ponto de rigidez” (Deleuze; Guattari, 1996, p. 69).
Sendo efetivado, concretamente, por meio de uma política contida na outra porque
“toda política é ao mesmo tempo macropolítica e micropolítica” (Deleuze; Guattari,
1996, p. 90), o Projeto Escrileituras atentou aos processos de alfabetização de crianças,
jovens e adultos, em suas diferentes etapas de aprendizagem; com vistas a contribuir
para a formação de recursos humanos em educação, através de experimentações com
a pesquisa educacional, a formação de professores e o exercício da docência, tanto na
rede pública de ensino como nos cursos de formação pedagógica das licenciaturas.
Além disso, buscou alternativas para a compreensão e a superação dos índices
apontados pelo INEP, especialmente no que se refere às dificuldades de aquisição
e utilização da linguagem nas escolas, expressas pela maioria dos estudantes da Edu-
cação Básica, por meio da Prova Brasil. Considerávamos que essas dificuldades
encontram-se ligadas ao próprio uso e produção da linguagem, relacionados ao conjunto
formado por conteúdos escolares e operações mentais, que envolvem leitura, escrita
e interpretação; variações contínuas de temas e imagens; singularizações de leitura e
raridades de escritura; processos de pensamento, formas de conteúdos e de expressão;
relações espaciais, temporais e históricas; sensibilidade para as artes como modos de
criação; habilidades e competências de formular e desenvolver problemas, em ciências
humanas, sociais, exatas.
As estratégias que adotamos para responder à demanda de macropolíticas pú-
blicas foram criadas como micropolíticas cuidadosas e sensíveis às diferenças, nas

201
quais sempre adotamos precauções de prudência para não assimilar os outros a nós
mesmos, mas aproximar distâncias e transpor culturas estrangeiras umas às outras
para, assim, fomentar o heterogêneo e afirmar a educação como atividade criadora.
Afirmação orientada pela radicalidade do pensamento da diferença, o qual possi-
bilitou aos pesquisadores participantes experimentar e formular novos problemas,
sugerir novos conceitos e noções, ideias e procedimentos inovadores, tanto para si
próprios quanto para as crianças, jovens e adultos. Como comunidade do Projeto
compartilhamos espaços e tempos, na pesquisa, no ensino, na orientação, na extensão,
com a marca da heterogeneidade e da diferencialidade; experimentações que produ-
ziram outras relações com o mundo, com os estudantes e conosco próprios, capazes
de disparar novas formas, gostos, vocabulários, sintaxes, estilos, que influenciaram
diretamente os atos de ler, escrever e pensar, assim como fazer, pensar e teorizar o
currículo, a didática e o educador. Modos que implicaram a invenção de um corpus
crítico-seletivo a respeito da docência e da formação docente, que liga criteriosa-
mente os conceitos de tradução poética, intertextualidade e relações entre diversos
sistemas de signos, advindos das três caóides: artes, filosofia e ciências (Deleuze e
Guattari, 2010).

Método
O Projeto recebeu a denominação central de Escrileituras (escrita-e-leitura), de-
vido, inicialmente, a uma experimentação de escrita, realizada em meados de abril de
2007, no “Manifesto (della scrilettura cannibale)” (Corazza, 2008). Ponto de partida
inaugural, esse conceito, de inspiração barthesiana (Barthes, 2006), emergiu, ganhou
visibilidade, tornou-se público, evidenciando, desde então, alguns usos conceituais in-
ternos à filosofia da diferença, da qual o Projeto acabou fazendo parte; bem como suas
descontinuidades, agenciamentos com outros conceitos, afectos e perceptos, advindos
da literatura brasileira, francesa, inglesa, americana e de políticas – molares e molecu-
lares – que permitiram que o criássemos e que fosse aprovado (Heuser, 2016).
Dessa maneira, Escrileituras terminou por ser utilizado como um signo, de cujos
encontros surgia o desejo de promover leituras e escritas singulares, produzidas pelos
escritores-leitores ou leitores-escritores. Uma escrita-leitura, portanto, que é sempre de
uma ordem autoral e que não é possível imitar, já que não funciona como modelo de leitura
ou método de escrita. Produzidas nas pesquisas e nas oficinas, essas escrileituras eram
avaliadas por sua capacidade de traduzir acontecimentos; produzir efeitos artistadores;
transformar forças em novas maneiras de sentir e de ser; engendrar diferentes práticas
de educar e revolucionárias formas de existir.

202
Inicialmente matérias da arte, da filosofia e da ciência ofereceram-se dispersas às
mãos artesãs e aos pensares que as reuniam; mãos e pensares que experimentavam
a atenção inquieta e flutuante no encontro de forças que aumentavam a sua potência
de existir ao atravessarem a leitura e a escrita. Aos poucos ou mais rapidamente, o
agrupamento das linhas vivas de tais matérias compunha um plano, gerado pelas
possibilidades de estabelecer arranjos e que, por contágio, articulavam-se umas às
outras. Aquelas matérias dotadas de maior capacidade para alterar o estado de repouso
ou de movimento uniforme do pensar no pensamento iam oferecendo diversos graus
de coerência, firmeza, compacidade, densidade ao currículo e à didática constituídos,
através de sua tradução em escrileituras.
Desde aí, movimentavam-se outra concepção teórica, outra experiência prática e
outro método de criação docentes. Os professores-pesquisadores tinham de suportar a
instabilidade da certeza, conformada na transmissão de conhecimentos, na utilização de
técnicas de ensinar, nos preceitos científicos que buscam determinar a atividade educa-
tiva para torná-la mais eficiente.
Ficando o método de criação entre a teoria e a prática docentes, o Projeto tinha-o
como Método do Informe, ou Método Valéry-Deleuze (Corazza, 2013), que associa
a vivência dos limites formais e a criação artistadora. Agregando forças dos textos,
imagens, musicalidades, gestos, que se transformavam em vida potente entre fluxos
de pensamentos, os professores operavam uma “lógica do sentido” (Deleuze, 1998),
como efeito ou resultado de lugares de uma topologia não representacional; lógica feita
por determinações de relações diferenciais e repartições de pontos singulares que lhes
correspondem; que vazam significados que insistem em fixar modos de ver, dizer e
existir; e que rompem com a separação entre sujeito e objeto como marca prévia para o
processo de aprender.
Consistindo em um método de criação perspectivista, deriva de inflexões que
estabeleciam um ponto de vista, como foco ou posição. Essa atitude conformava uma
radical liberdade, na constituição daquilo que o Projeto considerava objetivo, por
processar a escolha de um ponto original, escolhido pelos pesquisadores-professores,
concebidos como seus artistas-sujeitos. Ainda que eles se instalassem na variação do
ponto de vista da diferença, este não variava de acordo com cada participante, mas era
condição para que cada um deles apreendesse algo peculiar.
Dito de outro modo, diante da variedade dos pontos de vista das diversas áreas e
campos do Projeto – matemática, história, geografia, informática, artes visuais, litera-
tura, química, ciências da saúde, línguas, física, poética, filosofia, etc. –, o ponto de
vista do método ocorria sobre uma variação e esta não existia sem aquele ponto
diferencial. O movimento de perspectivar compôs a vida mesma do Escrileituras, a qual

203
possui regras exclusivas, que o faziam abrir-se sobre outros pontos, na medida em que
convergiam ou se bifurcavam como divergência afirmativa. Assim, as subjetividades
participantes do Projeto articulavam objetividades nas Oficinas, mesmo que a liberdade
e a arbitrariedade, que as compunham, não deixassem de conter regras objetivas e
verificáveis.

Docência
Da perspectiva da diferença, o professor-escrileitor não se obrigava a transmitir o
conteúdo literal ou verdadeiro dos elementos originais, nem fazia cópia ou dublagem;
não era considerado um bufão, escravo ou ladrão dos autores e obras; não buscava a
autenticidade textual; não preservava a essência dos originais; não gozava de intimidade
com as obras; não tratava o original como sagrado; não removia a tampa de um poço
escuro; não era filtro do autor ou chave do texto; não era fotógrafo, taxidermista ou
anatomista; não era filólogo, erudito, paleólogo, hermeneuta; não era o traduttore-
traditore (tradutor-traidor) do trocadilho italiano, nem o sourcier-sorcier (descobridor
de fontes e mágico) dos franceses; não era autor-camaleão ou trad-revisor; não tirava a
casca que reveste uma fruta original; não fazia treinamento na selva; nem protagonizava
uma ressurreição.
Esse professor era um tradutor. Suas traduções, no entanto, não tinham o escopo de
servir como simples auxiliares à leitura dos originais ou de simplesmente transmiti-los;
logo, esse professor não era uma correia de transmissão, nenhum ministrante, nem aquele
que “dava” aula, conteúdos, cursos. Ao contrário, como um intérprete criativo, fazia-se
um transcriador das matérias originais advindas das artes, das ciências e da filosofia.
Transformava essas matérias em meio a um universalismo polimorfo e cosmopolita, de
tipo transverso a governos, economias e mercados.
Na medida em que transcriava as matérias que recebera de herança, o professor-
trancriador instalava a diferença como condição de nosso viver no mundo, sem medo
do novo e sendo digno do antigo. Situado entre o passado e o presente, na medida
em que nas ações de traduzir tratava cada elemento original como algo já criado, mas
“visto por alguém que só pode enfocá-lo pela ótica do tempo presente” (Campos, 1972,
p. 112), o Projeto Escrileituras atribuiu à docência e aos docentes a sua devida im-
portância civilizatória e cultural, bem como as responsabilidades éticas por ela impli-
cadas.
A teoria da tradução transcriadora atribui valor autoral e criador aos professores,
deles fazendo, irremediavelmente, pesquisadores. Assim, o Projeto adotou o conceito
de transcriação, para o qual, a “tradução de textos criativos será sempre recriação, ou

204
criação paralela, autônoma, porém recíproca”; de maneira que, “quanto mais inçado de
dificuldades esse texto, mais recriável, mais sedutor enquanto possibilidade aberta de
recriação” (Campos, 2013a, p. 5).
Em suma, para esse tipo de tradutor o estimulante era aquilo que é difícil; logo, as
suas traduções não se ocupavam em traduzir apenas o significado, o parâmetro semântico
que é o conteúdo, como faz a chamada tradução literal presa ao dogma tradutório da
fidelidade justalinear que, ao traduzir, alterna linha a linha o texto da língua de partida
com o da língua de chegada – prática que subsidia a concepção de tradução palavra-
por-palavra e que vem sendo colocada em xeque desde Cícero.
Para os docentes transcriadores do Escrileituras, o conteúdo era “a baliza demar-
catória do lugar da empresa recriadora”, na medida em que ele não é esvaziado, mas,
ao contrário, um “horizonte móvel” (Campos, 2013b, p. 86). Mas isso não era, ainda,
o suficiente, desde que a fisicalidade, a materialidade do signo estético, também era
considerada nas traduções. Assim, além do significado, também “o tom do que é dito”
é matéria de re-criação (Campos, 2013a, p. 8), de modo que as propriedades sonoras e a
imagética visual fossem preocupações dessa tradução criadora: “uma teoria da tradução
e toda uma reivindicação pela categoria estética da tradução como criação” (Campos,
2013a, p. 5). Daí nossa insatisfação e recusa da noção de que a tradução é algo natural,
ligada a uma suposta fidelidade e literalidade, capazes de exprimir uma neutralidade
do tradutor (Campos, 2013b, p. 79).
Essa concepção tradutória trazia, ainda, em si, uma motivação pedagógica, herdada
de Ezra Pound, que se preocupava com os jovens poetas e amantes da poesia, a qual
dedicava-se “a dar nova vida ao passado literário válido via tradução” (make it new).
Além de diversificar as possibilidades didáticas e curriculares, a formação docente aí
implicada supõe um variado repertório cultural, geralmente desconsiderado pela rotina
acadêmica e o ensino da literatura, o qual ela vivifica. Da perspectiva transcriadora, o que
move o professor-tradutor parecem ser a configuração de uma tradição ativa, revelada
na escolha dos textos que traduz; um exercício de intelecção; e, por meio dele, uma
operação de crítica ao vivo. Desse movimento é que pode nascer uma “pedagogia, não
morta e obsoleta, em pose de contrição, mas fecunda e estimulante, em ação” (Campos,
2013a, p. 14).
O Projeto Escrileituras nunca considerou possível pensar e propor o ensino e a
aprendizagem do patrimônio intelectual herdado, de forma estanque, desde que nenhum
trabalho teórico e prático podem ser válidos como pedagogia ativa se não tomarem
esse patrimônio como uma obra aberta, tanto em termos de suas matérias, padrões
criativos, “âmago do texto, sem seus mecanismos e engrenagens mais íntimos” (Campos,
2013a, p. 17).

205
Ou seja, o professor-transcriador dava a ver como funcionavam os textos, em
seus detalhes maquínicos, na medida em que os tomava como coisa feita, inventada,
produção humana. Logo, não se movia em sistemas prontos de interpretação, atrelados
à tirania de um logos pré-ordenado; mas desenvolvia experimentações, que descons-
truíam o existente, transgrediam as circunscrições sígnicas, rompiam a relação apa-
rente entre teoria e prática. Subversoras por excelência, suas operações radicais de
transcriação visavam converter, mesmo que temporariamente, o original na tradução
de sua tradução.
Por conseguinte, como agentes de fluxos de invenção, os professores reproduziam
os originais com suas marcas distintivas, pretendendo que os elementos didáticos
e curriculares, emersos dos originais, valessem em lugar dos mesmos, para que
funcionassem, dando, de novo, o que pensar, o que avaliar e o que sentir. Ou seja, embora
traduzissem ideias pretensamente prontas, o faziam sob o signo da invenção, que rasura
e oblitera qualquer origem. Logo, todos sabiam que, em cada professor do Escrilei-
turas, habitava um autor, constituído por lances inventivos, que tumultuava a lingua-
gem da educação, escavava outra língua nas matérias originais, levando-as a sofrer,
por sua vez, reviravoltas; além de forçá-las ao limite.

Recriação
Por isso, os procedimentos tradutórios do Projeto implicavam mais do que trans-
portar ou transladar os sentidos de uma língua para outra, já que os elementos vertidos
eram sempre recriados. Rompendo com o traçado reto da tradição, cada tradutor-autor
apropriava-se das matérias originais, tornando-as suas e, nelas, fazia ecoar a própria
voz, de modo a não conseguir mais separá-la das vozes precursoras. Assim, para que
as línguas de chegada curriculares e didáticas capturassem forças, repertórios, perspec-
tivas e sentidos das línguas de partida, o maior compromisso de um professor era agir
como um atualizado e competente escrileitor dos elementos transcriados nas Oficinas.
A fim de realizar tal apropriação transcriadora, a formação docente que acontecia
concomitantemente, durante todo o desenvolvimento do Projeto, desenvolvia: a) nível
curricular, para selecionar os mais importantes elementos filosóficos, artísticos e
científicos do seu tempo e espaço; b) irreverência temática, para privilegiar elementos,
obras e autores emergentes, marginalizados ou anômalos, que introduzem temas
heterodoxos e novos problemas; c) manejo da linguagem educacional como instrumento
de experimentação dos vários elementos das línguas; d) trabalhos de estruturação e de
ajuste, feitos como um artesanato (Milton, 1998). Mas, sobretudo, atentávamos para a
condição que as traduções mantivessem uma relação de “paramorfia” – “do sufixo grego

206
pará, ‘ao lado de’, como em paródia, ‘canto paralelo’” entre os elementos originais e as
traduções; para que, operatoriamente, consistissem em uma “criação paralela, autônoma,
porém recíproca” (Campos, 1992, p. 35).
Considerávamos que o professor dominava a tradução da matéria escolhida
quando colocava o “seu próprio ser dentro dela”. Para tal, era necessário permitir que
uma tradução fosse mais subjetiva “do que imitação e mais visceral do que paráfrase”,
escolhendo reproduzir o significado do original e ficar abaixo do nível estético do
restante; ou, então, garantir um equivalente próximo.
Uma das normas básicas da tradução do Escrileituras ficava sendo “verter
não inverter” (Campos, 1986, p. 17); enquanto o trabalho prévio às traduções era,
primeiramente, crítico, no sentido poundiano da palavra crítica, isto é: “uma penetração
intensa da mente do autor”; em seguida, o trabalho tornava-se mais técnico, ou seja:
“projeção exata do conteúdo psíquico de alguém e, pois, das coisas em que a mente
desse alguém se nutriu” ao desmontar e remontar “a máquina da criação” (Campos,
1992, p. 37).
Sendo crítica e técnica, as traduções do Projeto eram uma espécie de “forma
privilegiada de leitura” (Campos, 1972, p. 115), resultantes de “uma leitura afiada,
detalhada, quase musical” (Mandelbaum, 2005, p. 198). Leitura que compreendia não
a simples descodificação do elemento original; mas, o mapeamento das condições, em
que aquele elemento foi criado, em termos do espaço-tempo que ocupava na língua e na
cultura de origem, na literatura da área e no conjunto da obra do autor. Na continuidade,
o movimento era o do trabalho docente transcriador, por meio do qual os elementos
curriculares e didáticos eram transvertidos.

Diferencial
O processo criador, impulsionado pelo Projeto Escrileituras, nos leva a uma
conceitualização distintiva da didática e do currículo, por meio da tradução diferencial
do pensamento artístico, científico e filosófico. Tradução da tradição (considerada
obra aberta), a qual recebe este nome por resultar de escolhas e mediação, lembrança e
escrileitura de signos, imagens e espaços. Currículo e didática são, então, considerados
movimentos da prática do pensamento educacional, na direção tradutória de atos
transcriadores, que implicam menos transportar ou transpor os sentidos de uma língua
para outra e mais verter ou recriar discursos e culturas; dotando-os da consistência de
romper com o estabelecido, ao empreender novos recomeços; e da capacidade de se
apropriarem do antigo ou estrangeiro, ao entrecruzá-los com as línguas curriculares e
didáticas, fazendo ressoar suas próprias vozes.

207
Esse Currículo do Escrileituras – nômade, vagamundo, do acontecimento – e essa
Didática do Escrileituras – dramática, artista, do informe – não expressam qualquer
teoria da cópia, mas produção da diferença, por meio de operações que transferem
algo do original para as línguas didática e curricular de chegada, expandindo a lin-
guagem educacional. Didática e currículo que estão articulados a uma teoria criadora
e que, por isso, não são guiados por uma tradutologia ou ciência da tradução, mas por
uma poética do traduzir.
Poética experimental, que produz efeitos pedagógicos e epistêmicos, contrários
ao cientificismo estruturalista, de vocação positivista; e que se operacionaliza como
estratégia contra a manutenção dos dogmatismos, sendo inseparável de uma trans-
formação das relações interculturais, propiciadora de encontros e de intercâmbios
linguísticos. Enredadas em problemas filológicos, literários e poéticos, as traduções
são feitas com textos, não exclusivamente com línguas, e levantam questões éticas e
políticas acerca da subjetividade do tradutor e das relações entre identidade e alteri-
dade.
Para essa concepção e ação tradutórias, por meio da autoria ficcionalmente cria-
dora, tanto o currículo como a didática funcionam como discursos culturais afirma-
tivos, desde que conduzem determinadas interpretações e avaliações, não mais sendo
conduzidos pelas existentes. Primeiramente, o currículo realiza traduções das matérias
originais, advindas da arte, da ciência e da filosofia; para então ser dramatizado, dida-
ticamente, na cena atual da aula ou da Oficina, sua zona prática e proximal de criação
em processo; e tudo novamente recomeçar.
Nesses dois domínios – didática e currículo da tradução transcriadora –, residiram a
especificidade prazerosa e a potência criadora do trabalho dos pesquisadores-professores
do Escrileituras. Traduzindo, inventivamente, eles eram transversalizados pelas potências
didáticas de Autor, Infantil, Currículo e Educador (AICE) e pelas forças curriculares de
Espaços, Imagens e Signos (EIS) (Corazza, 2014).
A tradução percorria o trabalho dos escrileitores, como um dispositivo, cuja natureza
era constituída pela transcriação de perceptos e afectos (fabulados pela arte), de funções
(produzidos pela ciência) e de conceitos (criados pela filosofia). Com um currículo e
uma didática tradutórias, o Escrileituras apontava para a constituição do informe, num
não-lugar e numa não-relação, por meio dos atos de ver, falar, interpretar e escrever; de
pensar do lado de Fora; e, logo, daquilo que acontece quando alguém diz: “Tive uma
ideia”, em didática e em currículo.
Pela via da traduzibilidade curricular e didática, os textos e as séries culturais se
transtextualizavam e transculturavam, no imbricamento dos dinamismos espaços-
temporais dos participantes. Obras já realizadas, circuitos e transcursos tradutórios foram

208
as efetivas condições de possibilidade do Projeto, necessárias para a própria execução
e, ao mesmo tempo, o seu privilegiado campo de experimentação, necessário para as
próprias criações.
Com esses elementos, os escrileitores compuseram linhas de vida e devires reais,
promoveram fugas ativas e desterritorializações afirmativas, atribuindo primado à
fluidez criadora em detrimento das normas formais. Executaram uma espécie de
autopoiese da ciência, da arte e da filosofia, em campos de comutabilidade e dife-
rencialidades, que circunscreviam o funcionamento e os limites das suas traduções.
Valorizando a multiplicidade, o Projeto Escrileituras mesclou o que passou, o que nos
afeta e os mundos possíveis por construir. Transpondo uma cultura na outra, mediante
um continuum de transformações, suas traduções basearam-se na nomeação criadora,
que diferenciam os mapas da cultura e da civilização, numa crítica-clínica do pensar,
do escrever e ler, do educar e viver (Corazza, 2012).

Manifesto
Por esses motivos, expressos acima, neste trabalho, os coordenadores institucio-
nais, pesquisadores-participantes e bolsistas de Educação Básica, Iniciação Científica,
Mestrado e Doutorado da UFRGS, UFMT, UFPel e UNIOESTE, integrantes, entre 2011
e 2015, do projeto Escrileituras: um modo de ler-escrever em meio à vida manifestam-
se em prol da necessidade de dar continuidade ao Programa Observatório da Educação,
apoiado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior (CAPES),
em parceria com o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Anísio Teixeira (INEP) e
a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI)
do Ministério de Educação do Brasil (MEC).
Consideramos que o mesmo Programa oferece, ainda, os seguintes motivos que
justificam a sua continuidade: 1) Pela qualificação das ações comuns à Universidade
e à Educação Básica, em sua diversidade de materiais e multiplicidade de bolsistas e
pesquisadores. 2) Pelas interconexões universitárias entre Pesquisa, Ensino e Extensão,
em novos momentos, lugares, circunstâncias e relações. 3) Pelo enlaçamento entre pes-
quisa educacional, formação de professores, exercício escolar e pensamento da docên-
cia. 4) Pela atribuição igualitária de dignidade ao grupo de professores-pesquisadores
bolsistas. 5) Pela construção de alternativas e circuitos inéditos, para compreender e
ultrapassar as dificuldades de aquisição e utilização da leitura e da escritura. 6) Pela rede
plural de tematizações, áreas de conhecimento, instituições públicas, estados e municípios
brasileiros. 7) Pela valorização da multiplicidade e da diferença, como resistência ao
intolerável, à mediocridade, à injustiça e à crueldade. 8) Pela ampliação de oportunidades

209
que põem em questão os limites, as certezas, os dogmatismos e as verdades herdadas.
9) Pela inclusão do estrangeiro, do alheio, do estranho no pensamento educacional,
para transformar sistemas, relações e encontros linguísticos, imagéticos e interculturais.
10) Pelo povo por vir e mundos possíveis a construir. 11) Pelo pensamento da dife-
rença em Educação e suas micropolíticas de interpretação e avaliação, que lidam com
fluxos e partículas de leituras, novas linhas de escrituras e de vidas, impregnando os
gráficos e índices da política nacional e internacional. 12) Pela ética, política e poética
tradutórias, que releem, reescrevem e repensam os elementos originais da Arte, da
Ciência e da Filosofia. 13) Pelos espaços-tempos críticos e dramáticos, operatórios e
diferenciais de um Currículo da Diferença e de uma Didática-Artista da Tradução, que
expandem a própria linguagem educacional. 14) Pelos modos plurais de intervenção
investigativa, nas formas de ensinar e aprender, modalidades de planejar e de
desenvolver aulas e Oficinas de Transcriação. 15) Pela transdisciplinaridade e suas
galáxias de sentidos, tramas de códigos e processos difusos de mediação entre currículo
e didática. 16) Pela aportagem e exercícios de problematizações acerca do vivido e de
diferentes processos de singularização. 17) Por nos manter à espreita de tudo aquilo
que põe a pensar; isto é, dos signos, repertórios e novas problemáticas, emitidos pelo
fora do pensamento. 18) Pelos textos transcriadores, dotados de força polissêmica,
que nos fazem passar do prazer de ler ao desejo de escrever e vice-versa. 19) Pelo
informe dos textos escrevíveis de múltiplos modos e traduzíveis em diversas línguas.
20) Pelas leituras fertilizadoras e escrituras agitadoras de ideias, que criam posturas
multivalentes de co-autoria entre leitor e escritor. 21) Pelas anamorfoses tradutórias
dos atos de criação didática, formulação curricular e formação de professores-pesquisa-
dores, que transtextualizam e transculturam outros textos, gerando outras perspectivas.
22) Pelo tratamento rizomático da tradição ou da herança, como obra aberta e condição
de possibilidade das nossas traduções didáticas e curriculares. 23) Pela relevância das
funções epistêmicas, sociais, culturais, comunitárias, grupais e políticas dos professores-
pesquisadores, diante do processo civilizatório e cultural e da crítica-clínica do ensinar-
aprender-pesquisar. 24) Pela especificidade produtiva, circuitos inéditos de pensamento,
inflexão criadora, roteiro fabulador e efeitos artistadores dos movimentos do Programa
Observatório da Educação (OBEDUC), em todas as vidas e obras por ele envolvidas.
25) Pelo poder de conexão entre forças produtoras de novos modos de ler-escrever em
meio à vida que o Programa Observatório da Educação (OBEDUC) mostrou-se capaz
de efetivar em variados pontos do território, a favor da invenção em educação (Corazza;
Heuser; Rodrigues; Monteiro, 2015).

210
Referências
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CAMPOS, Augusto de. Verso, reverso, controverso. São Paulo: Perspectiva, 1978.
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CAMPOS, Haroldo de. Metalinguagem e outras metas. São Paulo: Perspectiva, 1992.
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CORAZZA, Sandra Mara. Didática da tradução, transcriação do currículo (uma escrileitura da
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(Coleção Escrileituras)
VALÉRY, Paul. Degas, dança, desenho. (Trad. Cristina Murachco e Célia Euvaldo). São
Paulo: Cosak & Naify, 2003.
VALÉRY, Paul. Introdução ao método de Leonardo da Vinci. (Trad. Geraldo Gérson de
Souza). São Paulo: Ed. 34, 1998.
VALÉRY, Paul. Monsieur Teste. (Trad. Cristina Murachco). São Paulo: Ática, 1997.

Texto apresentado no XVIII ENDIPE – Encontro Nacional de Didática e Prática de Ensino,


Didáticas e práticas de ensino no contexto político contemporâneo: cenas da educação
brasileira, realizado em Cuiabá, MT, entre 23 a 28 de agosto de 2016; publicado em Anais
do XVIII ENDIPE, Cuiabá, MT: Ed. UFMT, 2017.

212
ESCRILEITURA, CRIAÇÃO E
MULTIPLICIDADE DO CONCEITO
DE POTÊNCIA HUMANA

Ana Felícia Guedes Trindade


Sandra Mara Corazza

Já somos o esquecimento que seremos,


a poeira elementar que nos ignora
e que foi o ruivo Adão e que é agora
todos os homens e que não veremos.
Já somos na tumba as duas datas,
Do princípio e do término, o esquife,
A obscura corrupção e a mortalha,
Os ritos da morte e as elegias.
Não sou o insensato que se ferra
Ao mágico sonido do teu nome.
Penso com esperança naquele homem
Que não saberá que fui sobre a Terra.
Embaixo do indiferente azul do céu
Esta meditação é um consolo.

Aqui. Hoje.
Jorge Luis Borges

213
Diante da vastidão do mundo, do inóspito ao acolhedor, da suavidade dos prados
aos abismos temerosos, da velocidade da luz aos intensos instantes que nos tomam,
da propagação da aceleração da vida à defesa por um mundo mais lento, das barbáries
ditas civilizatórias às singelezas dos povos da floresta, dos tempos quase eternos das
estrelas aos efêmeros tempos empobrecidos das metrópoles, das entranhas humanas
aos absurdos presenciados destes tempos tão duros, esta meditação, sim, é um consolo,
mesmo debaixo duma abóbada celeste indiferente. Pensar a Potência Humana Criadora
diante do que já seremos de esquecimentos, do que já somos todo dia, do que já produ-
zimos de história ao que produzimos de memórias, como quem tece teia e a destece, a
refazer a lembrança do vivido feitio, em infinitas circularidades: assim vamos, assim
estamos, assim temos caminhado.
Pensar a Potência Humana em condições humanas ainda tão ofendidas para milhões
de pessoas quase parece uma insanidade e uma insistência intrigante. Porém, quando
já nos sentimos tão impotentes, deveras, em cursos da vida política tão perversamente
assediada, é vitalmente anárquico para nossa própria sobrevivência, é coagulante
em nossos sangues derramados, é tenaz e é exótico nas vidas que tentamos produzir
sentidos, e é balsâmico, na própria desordenação e turbulência de nossa inquietude,
pensar em Potência Humana – essa dos loucos, dos atrevidos, dos caoticamente in-
conformados. Põe-nos a pensar quanto tem de vida viva nestes mundos quase surreais
que temos tecido enquanto humanidades que dizemos ser.
Querer pensar a vontade de potência, desejar pensar a criação e a nutrição da po-
tência e a fome da expansão da potência e os vãos donde ela brota e donde se dobra,
permitiu-nos pensar alguns dos fios que tramam-se um pouco antes de tudo isso. Talvez
fiozinhos tênues e invisíveis nos muitos turbilhões das ideias já paridas e sacramentadas
mas que, com eles, fosse mais ou menos possível alinhavar algumas reflexões sobre a
potência humana criadora desde alguns pensamentos filosóficos que percorreram um
outro fio sempre emaranhado e em processo permanente de compreensão e interpretação:
o fio da história humana.
O desejo começou a se gerar, a vontade começou a ser gestada: de nos reunirmos
com algumas pessoas que demonstraram importar-se em refletir sobre essa energia viva,
a potência que nos habita, que habita a cada organismo vivo, aos humanos deste mundo,
por isso nos diz tanto, nos diz respeito, nos toca fundo. Nasceu uma roda de pessoas
desejantes de estudar uma centelha deste fogaréu que habita a cada uma. E será desta
roda que vamos tentar contar, feita de cinco noites, feita de uma maioria de estudantes de
curso de formação inicial de professores, em plena greve de seus professores, nas noites
mais frias do inverno deste ano politicamente tão sombrio de 2016, em vários espaços
da Faced/UFRGS.

214
A vontade de produzir uma roda experimental com estudantes de curso de for-
mação inicial de professores nasceu de uma experiência pedagógica lasciva e permeável,
movida por uma fé intensa de pensar possível produzir outras tessituras cotidianas em
educação, especialmente em um curso que chama-se “normal”, e que nos seus dias
andados faz jus ao nome, ao se “normalizar” e “normatizar” por demais, a ponto de
colocar-se de modo quase que totalmente anestesiado frente às demandas fortes do
mundo, das realidades dos estudantes, das crianças, das escolas, do país, da vida. Pensar
com estas estudantes suas próprias potências criadoras, a partir de referenciais teóricos
que, mesmo de escolas científicas distintas, produzem diálogos e aproximações, foi
nossa vontade alargada, que também passou pelo desejo de desconcertar certos olhares
sobre suas próprias potências, as de si, e as referentes àquelas que serão e estarão
mais próximas dessas suas professoralidades – as das crianças e jovens, os quais expe-
rimentam, nas escolas em que vivem, pouquíssimas e raras experiências de expansão
de suas forças criadoras. Um gesto de reflexão possível nos tomou de pensar os modos
de produzir outras reflexões sobre os próprios mundos que essas estudantes habitam
e que neles produzem e se produzem, exercitam suas vidas ou suas mortes, seus
impulsos mais potentes ou fragilizados. Partimos para a invenção do curso, sua produção,
demos início aos processos de tramitações burocráticas e, por leituras sensíveis dos
departamentos envolvidos, em poucos dias, nosso projeto foi aprovado como ação
de extensão pelo DEC/FACED, e em horas tínhamos um grupo de de trinta pessoas
desejantes de estudar, em pouco mais de uma semana iniciamos a experiência que
desdobraria-se em tantas outras vontades de potência. Tivemos cinco acompanhamentos
além das 23 estudantes do curso normal – cinco professoras de Educação Infantil e Anos
Iniciais de escolas públicas e dois estudantes da Graduação/Pós-Graduação UFRGS
(Arte/Psicologia).
Por desejo de aproveitamento do período de greve na escola pública para pensarmos
um tema como a potência que evoca tantos outros, a exemplo, a produção da potência,
a perda da potência, as relações dos poderes com a potência, a vontade de poder, o que
fragiliza a potência e por desejo de aproveitar os manifestos de forte vontade de estudar
esta temática com um grupo de estudantes que virão a ser professoras (pertencerão a uma
categoria já quase esgotada em suas forças de lutar contra os desmontes da escola pública
brasileira), com o desejo de viver uma experiência assim pelo Escrileituras (projeto de
nossa linha de pesquisa) a proposta do curso de extensão aconteceu em caráter urgente,
dentro das possibilidades dos aceites institucionais, organizando-se em encontros
noturnos, durante cinco dias nos espaços da Faculdade de Educação.
Um pouco do caldo vivencial deste acontecimento será compartilhado, de maneira
muito sintetizada, sabemos, dadas as intensidades que atravessaram o campo real, da
experiência em si, e que são impossíveis de serem contadas tais como se deram, haja

215
vista que a vida, em seu acontecimento, só pode ser vivida, e que toda a contação é,
de alguma maneira, fictícia, pois já o tempo foi absorvido e metamorfoseado em
memórias que diluíram-se em outros imaginários e condensaram-se por outras sensa-
ções, lembranças, afetações, desconstruindo a suposta integralidade do que foi vivido.
Tentaremos procurar os vãos por onde escorrem as afetações e onde escondem-se,
por ventura, a força e a intensidade da experiência em si, se possível, o que nos parece
ser mais orgânica e substanciosa do que uma contação periódica linear.
O presente trabalho esteve inserido no projeto Didática da Tradução, transcriação
do currículo: Escrileituras da Diferença, coordenado pela professora Sandra Mara
Corazza – no Programa de Pós-Graduação em Educação/UFRGS, o qual parte da
perspectiva das Filosofias da Diferença e Educação. Considerando que um dos feixes
de compreensão do universo em Filosofias da Diferença passa pelo conhecimento con-
ceitual de Potência Humana Criadora, pensamos um curso denominado Escrileituras
e Criação: a multiplicidade do conceito de potência criadora, com o propósito de
construir uma iniciação teórica neste universo de comunidade em formação docente. O
currículo do curso estendeu-se pelo percurso teórico do conceito de Potência Humana
desde a matriz realista em Potência e Ato de Aristóteles, atravessando o Élan Vital
e a Evolução Criadora em Bergson, pousando na Bioantropoética em Morin, com
recortes em Pedagogias Poiéticas, em Guedes Trindade, perpassando na Autopoiese
em Maturana, tecendo com a Vontade de Potência em Nietzsche, com o pensamento
de Potência Criadora da Existência em Deleuze, Guattari, Derrida, e todos, de algum
modo, convergindo ao pensamento orientador do projeto Escrileituras: um modo de ler
e escrever em meio à vida, referenciado por Corazza.
Havia uma tentativa desejante de produzir algumas vertigens com este tema, com
os sentidos desses conceitos interrelacionados em cada um destes autores, pelas suas
respectivas escolas filosóficas, abraçando, entre outros, uma produção frutífera dos
múltiplos conceitos convergentes de potência, e que permitissem, assim, uma com-
preensão expandida, transbordamentos, (des)territorializações, diferenciações, apro-
ximações e produções de relações nos temas que, inevitavelmente, tocariam-se e
entrelaçariam-se em meio às conversações – como uma multiplicidade de pensamentos
acerca do conceitual de potência humana criadora pelas sendas do beleza do que traz
essa escritura:
Privilegiar a multiplicidade em vez da diversidade. Fazer proliferar o sinal de
multiplicação. A diversidade é estática, é um estado, é estéril. A multiplicidade é ativa,
é um fluxo, é produtiva. A multiplicidade é uma máquina de produzir diferenças –
diferenças que são irredutíveis à identidade. A diversidade limita-se ao existente. A
multiplicidade estende e multiplica, prolifera, dissemina. A diversidade é um dado – da
natureza ou da cultura. A multiplicidade é um movimento. A diversidade reafirma o

216
idêntico. A multiplicidade estimula a diferença que se recusa a se fundir com o idêntico.
(Corazza; Tadeu, 2003, p. 13)

Acompanhar o conceito, ao longo de seus percursos, junto a linguagens e sentidos


filosóficos para dizer não a quaisquer reducionismos na tentativa de algo desvendar
em outros universos que se fazem também em linhas interdependentes, e que cruzam-
se, e que configuram-se ou desconfiguram-se, e que existem com mais fugacidade ou
mais permanências, e que constituem linhas contínuas ou descontínuas, que fazem-se
por tramas ou destramam-se, e pensar a multiplicidade do conceito de Potência e tê-
la em movimentos reflexivos rizomáticos, conferindo uma subjetivação mais luminosa
às próprias conjecturas, invenções e transcriações que se deseja produzir, em estudos
iniciáticos como este, em Filosofias da Diferença, exigiu a criação de um fôlego que
parecia haver em abundância, mas que na intensidade do que foi vivido, precisou ser
recriado e fortalecido diariamente.
Realizar revisões bibliográficas, vivificadas por discussões e problematizações com
um grupo de trinta pessoas problematizadoras, construir sínteses criativamente reflexivas
e coletivas, que pudessem colaborar na compreensão vital da multiplicidade do conceito,
operar melhor com todos os elementos de fundo e de entornos que produzem as potências
criadoras da existência nas dimensões teórico-práticas no universo da Educação,
pareceram-nos intencionalidades vitais para o composê de nosso curso de 20h, tramadas
com as intenções de expandir as reflexões produzidas como potenciais devires em forças
a multiplicarem-se em comunidades aprendentes outras, e isto exigiu-nos uma arrojada
reorganização de nossas próprias potências criadoras.
Há uma beleza e um riso, sóbrios, de quem sabe, quase secretamente, que para
movimentar outras forças, há que ter forças, e na dúvida da existência delas ou na sua
escassez, há que produzi-las, surgidas dos lugares mais estranhos até a nós mesmos, nos
desembaralhos das energias, perdendo ou não as estribeiras conosco mesmos, revolvendo-
nos, desnorteando-nos, esguedelhando-nos, levantando poeira, destemperando-nos,
fazendo escarcéu, emaranhando-nos, desalinhando-nos, mas encontrando as forças
necessárias para enfrentar essas outras, que vêm, e nunca sabemos como e donde
exatamente. Entre o risco e a criação, belezas se fazem.

Ondulações metodológicas
Duma prevista e híbrida organização ao percurso real desta trama complexa que
foi se fazendo, tentamos viver três propostas vivas de provocação ao acontecimento do
curso. Pensamos-as como três ondulações metodológicas que pudessem estar dialogando
com o Projeto Escrileituras, respeitando sua gênese transcriadora e reconhecendo sua

217
existência orientadora como o projeto matríztico de quaisquer desdobramentos que
faríamos nestas vivências. Essas ondulações originaram as Conversações, enquanto
traduções, estudos sobre os conceitos, leituras de textos, problematizações, exposições,
circularidades dialógicas; as Experimentações, enquanto atividades desafiadoras de
observações, coletas de depoimentos, pesquisas, problematizações e desconstruções
de contraposições e clichês, escutas sensíveis, rodas de dizer sua palavra, jogos de
contrastes; as Criações, enquanto produções de inventários, novas rodadas conceituais,
escritas das novas compreensões, artistagens sobre os conceitos produzidos, produções
dos cadernos de artífices.
Foram ensinâncias, aprendências, brincâncias (Guedes Trindade, 2015) em campos
abertos e híbridos e em estados de construção provisória e desconstrução permanente.
Foram esses os artefatos imateriais mais vivos do curso, e que orientaram os movimentos
dos saberes-não-saberes nos tempos e espaços possíveis, muito pelas bordas nômades
de proposições pedagógicas mais libertárias e criativas, o que produziu vazão destes
saberes-não-saberes de maneira muito libertadora, abrindo vãos para, com eles e neles,
pensarmos possibilidades e devires.

Referências e ventanias
O constructo móvel de autores e autoras como referências teóricas que tramariam
conosco foi compartilhado no primeiro encontro. Combinamos que as tramas entre os
mesmos aconteceriam como movimentos e ondulações abertas, e à medida que iríamos
avançando nos conceitos e suas complexidades, nas conversações e problematizações,
novos esboços das vivências poderiam ser sempre recriados. Apresentamos uma
organização circular para fins de acompanhamentos, orientação e recriação, e alinhamos
que estaríamos tempo inteiro produzindo artistagens e novos redesenhos a partir dos
instantes, dos surgimentos, das problematizações que apareceriam, frutos dos desejos e
movimentos do coletivo.
O debuxo circular, abaixo colocado, tenta mostrar pequeno registro do intenso
processo que vivemos em cinco noites de rodas de estudos. Imaginemos este círculo
em movimentos iniciáticos em plena harmonização com um vento que sopra numa
direção, e que, à medida que o tempo reflexivo, telúrico e aprendiz entende e toma suas
próprias urgências e novas circunstâncias se colocam, os círculos vão, contrariados aos
domínios de um único vento, produzir seus próprios movimentos, autonomamente,
gerando múltiplas energias e forças, potentes pois, desobrigando-se a girarem para uma
única direção e acompanhar o único vento, aquele primeiro orientador. Como a produzir
ventanias de/em várias direções, tipo um cata-vento em seis camadas, cada uma girando
na velocidade que pode, na direção que cria, na invencionática que inspira, produzindo

218
seus próprios ares em movimentos, seus sopros, seus pneumas. E nessa imagética caótica
que imaginamos, por um eixo que permite os movimentos, os círculos conversam-
desconversam, aproximam-se, entreolham-se, distanciam-se, convergem, divergem,
convivem, aproximam-se, sobrepõem-se, diferem, igualam, vagam, acirram, disparam,
aquietam-se.
Nosso eixo foi o Escrileituras em si mesmo, encarnado como movimento, velo-
cidade, giro, deslocamento, caos, criação. Meio assim. Ora na contramão da direção
de um curso de um vento, nas forças criadas, por isso, criadoras, assim esteve contra-
vento, catando os muitos ventos, faltando vento, parando o cata-vento, vindo o vento de
novo-novo, cata-ventos movendo-se, devagar, enlouquecendo. Do barulho, da loucura,
dos vãos, dos entre-espaços, dos intervalos, diluído pelas ventanas, na liquidez dos
tempos, da vida, na fluidez, na leveza do aceite de ventar, de seguir ventos, ventarola,
na consternação do lúdico que há neste devir. Cata-vento-louco, desvairado, planos-
entre-cortados, ventar, vagar, velocidade, ares onde falta ar, ventanias, ventanas por
onde passam ventos, viração. Nosso curso movimentou-se não seguindo um vento
apenas na direção inicial clichezada como “curso”, mas aspirou ventanias. Como um
curso em curso, não segurou todos os ventos, mas ventou com todos os que caoticamente
ventaram, nos enroscos, no turbilhão das velocidades atingidas (nem sempre), chegadas
(ou nem sempre), compreendidas (nem sempre), e que estiveram, movendo moinhos,
ardendo em febre, acordando sonâmbulos, constrangendo as preguiças, inquietando as
soluções, puxando o tapete das respostas prontas, des-com-fiando as receitas de tramas,
tramando multiplicidades e irregularidades humanas, na riqueza e assombro do que isso
significa.

Cata-ventos enlouquecidos – muitos


num só (suposto) – desenho curricular
do curso/2016

219
Daphné – a potência de um signo
Daquelas alegrias culturais que acontecem quando nos dispomos a encontrá-las,
surgiu, em nossas pesquisas a Daphné, de Armelle Blary. Daphné é uma das suas obras
da coleção Os Corpos. A artista constrói vários corpos suspensos por fios praticamente
invisíveis, num ciclo metamorfósico. São corpos monstruosos, multiformes e desejantes
de estranhar suas próprias estranhezas, em confrontos permanentes com o sobrenatural
e o improvável, decapitados, artistados, duais, assim como Daphné, um dos corpos, que
nos parece evocar mutações mitológicas e que foi a nossa escolhida para a mística arteira
da nossa experiência.
Daphné, criatura da mitologia grega, rejeita o amor de Apolo, e sentindo-se
perseguida, foge para uma floresta e, em desesperada escolha, pede a seu pai, o rio-
deus, para a terra a envolver. Então, Daphné começa a viver uma metamorfose estranha
e misteriosa: seus cabelos transformam-se em folhas, membros em galhos, corpo em
casca, os pés cravam-se como raízes. Apolo, inconformado, chora a transformação,
fortalece-a como o louro, evocando, mais tarde, os coroamentos gregos com corolários
de folhas de louro, na intenção de eternização de seu amor. Daphné também passa a ser
uma força que se rebela e não se submete, que metamorfoseia, que resiste, que liberta-
se pela necessária transformação sofrida por um desejo seu, raiz mutante, ramificada
incorpora a metamorfose como reorganização, como potência.
Armelle Blary trabalha em Daphné com uma ideia viva de matéria, com identidade
flutuante, como em permanente movimento, com uma plástica visual organicizada pelo
cinza reflexivo, contornada por costuras de brotos e radículas de vermelho ávido, a
colocá-la em movimentos circulantes, nos ares, sem chão, sem pouso, amparada por um
fio quase invisível. Assim é a Daphné de Blary.
Foi com Daphné que decidimos inventar o material visual que seria construído para
o chamamento do curso e mais, caminhar com Daphné pelo curso inteiro, como uma
potência em signo. A sua história provinda da Filosofia e Mitologia Gregas, contada
na roda, encantou e inspirou o grupo, assim como as produções contemporâneas de
Armelle Blary, atuando estes signos como poéticas de nossos estudos e conceituais que
desejávamos construir. A potência do signo, por Daphné, permaneceu como presença
mística, como memória de resistência e metamorfose em curso inteiro de nossas
convivências. A estudante do Instituto de Artes da UFRGS movimentou o coletivo na
produção diária da Daphné: cada dia, no início dos encontros, alguém continuava a
sua produção, trazendo galhos de árvores, arames, tecidos, produzindo as modelagens
artisteiras, numa temperança artista-artífice de observar mesmo, mais demoradamente,
o quanto estas místicas e poiéticas coletivas produzem-se como exercícios de enga-

220
jamentos, como força de signos atuantes em um grupo, como fortalecimento de ideias
e lutas. Assim, Daphné esteve no meio da roda sempre com os autores que estudamos,
andarilhando pelos múltiplos espaços e carregada pelo coletivo que a criou.

Daphné, Armelle Blary

De quem esteve no rio e nas rodas de brincâncias, aprendências e


ensinâncias

Assim como pensar os ventos, é quase como pensar um rio com todos seus vivos de
dentro, invisíveis a quem olha de fora, e suas águas, vivas de um dentro-fora, visíveis a
quem olha de fora, inquieto com o que não vê lá de dentro, quando se pensa um curso, e
depois vive este curso se fazendo. Desde os esforços para criar um composê curricular
que acolhesse os desejos das pessoas que participariam do curso, desde pensar a potência
dos signos todos que acompanhariam estes movimentos, quanto pensar os conhecimentos
que passariam, sim, pelas compreensões e aprendências significativas, tudo foi muito

221
forte e exigiu muita entrega e disposição para um viver intenso, meio como nadar
com nossas forças nas forças das águas com suas forças coletivas de rio, contra-corren-
tezas, nas rebeldias e nas oposições dos corpos contramarés, porque não nos conformamos
com pouco, com o dado, com o tranquilo nado a favor e no fluxo das correntezas.
Pensamos um conjunto de autores e autoras que, de muitos modos, estudaram,
aprofundaram e avançaram sobre as pesquisas em Potência Humana Criadora. Cada um,
cada uma em seu tempo histórico, em seu tempo de vida viva, em seu tempo antropológico
vivendo as tensões de sua espécie, em seu tempo social vivendo as contradições das
sociedades, que foram seus tempos reflexivos, que foram suas circunstâncias e seus
manifestos autorais.
Pensar como tramar essas referências autorais, de maneira suscintamente respeitosa,
articuladas a esses tempos, e ainda aos caldos da ciência, da arte e da filosofia, com
o coletivo, de maneira profunda, responsável, sustentável, alegre e convivial, que
pudesse estar construindo, de fato, conhecimentos de importâncias para a vida de cada
um, que pudessem se desdobrar em outros, produzir inquietações, desmontar velhas e
viciadas formulações e provocar desejos de pensar a potência da criação, demandou
muita organização e combinação com os tempos e com as extrações do que tinha sido
produzido a cada noite, para fazer aproveitamentos profícuos na próxima. Encontrar
as linhas epistêmicas que orientaram tais pensamentos científicos, acompanhá-las em
suas intenções epistemológicas e desvendar seus percursos criativos, para poder fazer,
poder dizer, poder contar, poder argumentar, poder elaborar, ali, diante dum curso de
águas reflexivas oriundas de muitos lugares, margeando pensamentos muito diferentes,
foi de alta complexidade, assim como os fundos vistos, os pro-fundos tateados, os
afundamentos vividos, correntes de águas-força que vieram por baixo, quando pedimos
as boias – meio assim este movimento com as ideias e estudos autorais se fez.
Essas leituras e interpretações, nossas próprias de quem aceita viver a vida nas
suas tensões, surgem de um lugar possível, cheio de luz e de força que nos habita, que
mantém os nossos viços, porque acreditamos, até as raízes de nossas lutas e ideias, e
creditamos a elas, por juízo, destino ou sorte, nossas vidas inteiras – falamos, então, duma
didática transcriadora (Corazza, 2015), duma didática que se faz ao fazer, que aparece
no surgimento, que se faz no tempo da duração, no tempo da pensação, e que assim
nunca deu pé, ficou na duração das flutuações, esperneando, braceando, movimentando
corpo inteiro, mantendo-se num espaço de luta viva, de resistência, de reflexão que se
faz e que se fez ali, no junto, no con-versar, na tensão da própria roda, nos redemoinhos
de águas nada calmas.
Aristóteles veio dum rio caudaloso e nervoso. Abrimos nossas comportas, e suas
águas, em potência, conversaram conosco. Tramou conversações, trazendo suas defesas

222
sobre Potência-Ato, frutas maduras dum antigo-contemporâneo possível. E nas tra-
duções do que ele mesmo queria pensar, quis investigar o ser enquanto ser, enquanto
animal político protagonista de produção de forças. Veio discutir conosco as relações
entre potência e ato, enquanto elementos vivos – dum tudo que contém em si a potência,
e por isso ela está sendo o ato e a atualização do que é, da ideia da coisa realizando-se,
e a conversação de que todas as coisas possuem potência, e de que o ato é esta potência
sendo.
Em Aristóteles, foi possível pensarmos as dobras deste estudo como os acessos à
potência e ao ato, as tramas entre as multiplicidades e as unicidades, as sensações e os
sentidos presentes necessariamente nestes dois movimentos, a metafísica, as relações do
que está para além da metafísica, o ato e potência presentes em todas as coisas existentes,
os corpos e as matérias, os acidentes, as essências, as razões das coisas, as causas, a
necessidade de que há algo em ato para que a potência venha a ser, o ato como o objetivo
da potência – tramas essas que geraram articulações polêmicas do coletivo com suas
próprias vidas, inquietando-o tanto que, em dias seguintes, estas questões retornavam,
em meio a outros autores e outras ideias, fazendo as ligas, cortando o vento direcionador
e inventando outras circularidades e ventanias para aquele cata-vento desvairado em
circularidades muitas, que referimo-nos há pouco.

Cadernos de artífices
Enquanto fiávamos as compreensões conceituais aristotélicas potência-ato, retor-
nando ainda, por vezes, rapidamente, em Heráclito em suas impermanências impres-
cindíveis e que se colocou como passageiro necessário, colaborando na compreensão
dos movimentos dos atos, fomos, durante os tempos em curso, produzindo os cadernos
de artífices, enquanto artefato de artistagem poiética produzida. Organizando-se como
espaços de narrativas e desenhos e redesenhos de tudo o que estávamos experimentando
juntos, os cadernos de artífices colhiam nossas conversações, leituras, estudos e escritas
do vivido, que foram sendo atravessadas, tempo inteiro, pelas manualidades de sua
produção, pelas recolhas dos gestos, pelos colecionamentos dos momentos vividos ou
a estar a viver.
Pensar o artífice como aquele que se detém em aprender a fazer e a fazer bem feito
e percorrer referências em Richard Sennet (2009) quando procura compreender os
processos criadores entre ideia e matéria, Filipe Ghidetti (2013) quando estuda o próprio
Sennet em muitas ideias defendidas, e nesta, em especial em que Sennet alerta: “É preciso
ir além do ser coisa [...]. É preciso se colocar de maneira antecipada, um passo à frente
da matéria” (p. 196, 2000), propondo, segundo Ghidetti, o ofício da experiência, ou seja,

223
a experiência como ofício, e quando ambos lembram de Hannah Arendt ao aprofundar a
distinção entre Animal Laborens e Homo Faber, desdobrando as ideias que encontram-se
em torno do trabalho como fim em si mesmo ou como labor ou como feitio, enquanto
alegria de fazer e saber fazer.
Em meio a estas produções e pensamentações, além dos cadernos de artífices, nossa
Daphné tamanho G, de panos, de arames, de folhas, de pedaços de madeiras, ia surgindo
pelo coletivo, em especial pela artistadora da Ecoa Ecoa Coletivo/Mais Mátria e estudante
do Instituto de Artes/UFRGS, que organizou-se, como explicamos, como uma das
provocações poiéticas nesta construção e, diga-se de passagem, este trabalho fortaleceu
muito o grupo enquanto coletivo de trabalho. Em meio a esses movimentos, fomos nos
encontrar com Bergson, já bastante sensibilizados pelas experiências que iniciávamos a
produzir. E pelas suas ideias em Potência, chegamos ao Élan Vital (Bergson,1964), que
representa a síntese dos seus estudos em impulso vital, silêncio vital, força vital – energia
viva.
Quando apresentamos o método filosófico de Bergson, a Intuição, foi muito
necessário que conseguíssemos fazer o grupo avançar daquilo que, em senso comum,
concebia-se sobre intuição. Partimos de suas compreensões, para produzirmos uma
evolução expandida sobre esta intuição bergsoniana que passa pela apreensão do devir
contínuo, de modo fluído e orgânico, e que enreda-se e trama junto com a memória, com
o impulso e com a duração. Duração enquanto os múltiplos fluxos que se desenvolvem
pela existência, que abre infinitas possibilidades, e que se aninha na vigília de um fluxo
que dizemos, é o senhor do universo – o tempo. Pensar Bergson, imprescindível neste
sentido, quando ele esclarece essa duração, e problematizar que a duração não é um
instante e outro instante e que um substitui o outro, “se assim fosse, jamais haveria
presente, não haveria prolongamento do passado no atual, não haveria evolução, nem
duração concreta. A duração é o progresso contínuo do passado que rói o futuro e que
incha avançando” (Bergson, 1964, p. 44). Estudar com o grupo que “a duração real é
aquela que morde as coisas e deixa nela a marca dos dentes [...] e que “nós não pen-
samos o tempo real. Mas o vivemos, porque a vida transborda da inteligência”
(Bergson,1964, p. 78), e que nossos esforços com as nossas inteligências só movem-
se nos intervalos entre as repetições, desconstruiu partes importantes das concepções e
relações estabelecidas do coletivo entre intuição-duração-inteligência-tempo-potência.
Pensar inteligência e intuição como memórias integradoras e como processos de
vida não tem sido uma problematização na escola tradicional, que nega os processos
criadores autônomos. E daí, de um curso de formação de professores que, em seus
cotidianos, em alguma proporção, não reconhece a imprescindibilidade de pensar a vida
como força, nega-se a trabalhar estas questões primeiras por talvez não dar conta de toda

224
a complexidade que está no âmago de pensar a vida na sua fantástica possibilidade de
criação, um passo, então, e estaremos com estas estudantes como professoras formadas,
atuando em classes de crianças e jovens, mal discutindo o que move a vida.
Escolher trabalhar com formação de professores, numa linhagem de transformação
de ideias e de metamorfose de cotidianos pedagógicos, de plantar incansavelmente as
dúvidas e as inquietações, de semear as desconfianças com o pronto, com os mandos,
com os ditos, com as receitas, com as retóricas e com os manuais, de cultivar a diferença,
o inusitado, o irreverente, a indisciplina, é uma vida, leva uma vida, porque é uma escolha
pela diferença. Termos estado com este grupo e com Bergson, falando, conversando,
lendo, pesquisando sobre estes processos de dentro, e mais, termos pensado a potência
e a criação juntas, a potência que consiste na criação (e que, para Bergson daí surge
o Élan Vital – esta energia viva, presente em todo o organismo vivo, como o que
impulsiona o fervor, o ardor de se manter vivo de maneira viva, fecunda, superando a
imprevisibilidade da existência) foi uma tentativa muito produtiva de colaborar nestes
processos e escolha da diferença, assim como modos também muito vivos de propor e
experimentar possibilidades. Pensamos os tempos imediatos, os tempos reais ocultos,
os tempos das experiências vividas, as continuidades, as memórias, as criações, os
tempos particulares, os tempos telúricos, os tempos sociais e os tempos históricos, o
élan que move o desenvolvimento e a evolução criadora, as tendências vitais para as
diferenças e multiplicidades, as percepções e pensamentos que só existem a partir das
intuições, a existência que prevê duração. Vindo dos estudos do Élan Vital para pensar a
Autopoiese, em Maturana e Varela (2001), sob os estilhaços ainda faiscantes dos estudos
bergsonianos, produziu conexões ainda mais inquietas no grupo, embora percebíamos
que havia uma maturação se fazendo em torno do processo cultural que estava posto – de
estudar, de pesquisar, de ler, enquanto acesso, enquanto prazer.
O curso fluiu, nestes movimentos e já caminhávamos para a intensidade de um
terceiro encontro, em que também todos estavam sendo convidados para pesquisar e
aprofundar as temáticas e as circularidades cognoscentes que se expandiam. Abrimos
conversações bem comprometidas e consistentes acerca do que estávamos tratando,
criando linhas de fugas, abrindo os vãos imprescindíveis a quem estivesse curioso e
precisasse alimentar suas outras e muitas curiosidades epistemológicas com as próprias
pernas. Assim, andamos e andarilhamos e foi um bem essas ondulações metodológicas
que se alinharam aos movimentos mais naturais do grupo.
Fomos adentrando nos estudos em Autopoiese, convidando Maturana e Varela para
a roda, depurando um pouco as conversas, produzindo novas e distintas impressões,
movimentando as ideias, esclarecendo ou não as dúvidas, provocando as reflexões sobre
os sistemas dos seres vivos e do quanto e de como produzem continuamente a si mesmos

225
desde a recomposição de seus componentes desgastados às criações de novas aberturas
estruturais que se abrem para contínuos fluxos nutridores, numa dança infinita com as
construções, desconstruções, reconstruções, invenções. Pensando junto. Avançando
junto com o grupo, entrelaçando as ideias sobre estruturas e processos dissipativos,
movimentos de ordenação e desordenação, interações, auto-organizações, articulações,
interdependências, que produzem os sistemas autopoiéticos que podem criar e nutrir a
própria teia da vida.
Conseguimos entrelaçar e aproximar as palavras-mundos Potência-Ato-Élan Vital-
Autopoiese nas conversações, colaborando nas conexões existentes entre estes con-
ceitos, do quanto estão entretecidos, do quanto tudo isso vive em nós. E assim fomos
avançando, conseguindo compreender os processos com mais nitidez e de maneira mais
complexa, inquietando o grupo para também pensar os seus processos, de suas histórias
pessoais, da Educação como processos transcriadores, da vida como um movimento
de invenção, de maneira mais problematizadora, menos redutora.
Adentramos pelo Pensamento Complexo, apresentando Edgar Morin, como fizemos
com todos os autores, pensando a realidade dinâmica multidimensional, os movimentos
contínuos e descontínuos, estáveis e instáveis, nossas andarilhagens o tempo inteiro pelos
acasos, pelos indeterminismos, pelas incertezas e provisoriedades, tecendo as tramas
históricas dos sujeitos que somos e nos fazemos e nos refazemos, pensando os esforços
humanos para realizar as criações e modos de existências, o que resultam das lutas e
processos vividos. Refletimos sobre o que produz a Bioantropoética (Morin, 2005), o
que são estas forças em potência criadora da existência humana, feitas das centenas de
interlocuções que produzimos diariamente, das frestas de luz e das sombras projetadas,
das conexões, das tensões, dos processos de autoética, socioética, antropoética que todos
vivemos, de algum modo, de maneira articulada ou desarticulada. Refletimos sobre a
assunção e a tomada de consciência da nossa responsabilidade pela vida e diante da vida
expressa-se por forças vitais, produzidas pela biologia cultural, pela condição da espécie
em si, pelos esforços de sobrevivência, pelos esforços de vivências significativas, pela
fome de viver e de bem-viver, pela vontade de potência de viver a ética e a poética da
existência e tantas outras energias vivas que nem sabemos, que nem ousamos pensar,
que nem nos chegam, mas que existem.
Pensamos, pela proposição de uma Educação Bioantropoética (Guedes Trindade,
2015), modos de desinventar o dado, o clichê, o que já existe, de criar outros modos
de pensar, aprender, fazer, ser, dizer, amar, sentir, falar, trabalhar, ler, escrever, narrar
novos, criativos, próprios, autônomos e livres jeitos de viver nossas vidas, criando outros
universos, outros mundos – diferentes. Pensamos vãos, para modificarmos as vidas
cotidianas, os instantes, as durações, os tempos, as convivências. Escrevendo a vida,

226
lendo a vida, bordando a vida daquilo que o sentido, a vontade, o desejo, a potência, a
tensão, a alegria, a dor da intensidade propõem. Pensando práticas de viver, práticas de
conviver, em que se viva pela experiência, em que sejam pensadas a ética e a estética
da vida conosco mesmos, com as pessoas, com as crianças, com as juventudes, com
todos os que conosco convivem – práticas orgânicas, vibrantes, cantantes, gritantes,
experimentais, que transformem a vida no seu presente, no aqui agora. Nesse sentido,
trouxemos pequenas texturas e iluminuras com escritas de Guedes Trindade (2015),
em suas proposições de viver a vida enquanto experimentação potente, poiética pois,
a produzir práticas poiéticas, pedagogias poiéticas possíveis de serem vividas, porque
criadas, em quaisquer tempos e espaços, absolutamente em quaisquer espaços-tempos
onde multipliquem-se as liberdades, as evoluções criadoras, as autonomias, os processos
autopoiéticos, “as alfabetizações de mundos” (Guedes Trindade, 2015).
Com tessituras de importâncias, tramando fomos, caminhando para o quarto e
quinto dias de curso, quando sentimos o quanto o coletivo já estava sensibilizado, melhor
dizendo, transtornados pelas turbulências que as conversações, que as ideias, que os
estudos, que as leituras, que as problematizações, que os desafios, que as perguntações
nele havia produzido e continuava produzindo. Alguns vieram nos dizer, das tensões,
do quanto estavam repensando suas vidas, olhando mais com que intensidades estavam
vivendo seus amores, produzindo seus convívios, realizando seus fazeres cotidianos,
vivendo seus trabalhos. Alguns até escreveram e nos entregaram escritos destes
sentimentos. Alguns, em plena roda, faiscavam seus olhos de tensões geradas pelas
produções dos nexos que faziam ali, com suas vidas de lá. Atravessados por tantas
perguntações e inquietações, compreendendo nossos propósitos e despropósitos, e
mantendo-se em presenças e participações vigorosas, já com argumentações e esta-
belecimentos de relações entre os estudos conceituais de maneira bem mais desconcer-
tada, avançávamos – estremecidos.
Percebemos que um dos tempos de importância havia chegado: trouxemos, então,
o amedrontador e assustador dos principiantes, o Nietzsche, para habitar a roda. Não
tem como trazê-lo leve, nem tentaríamos isso. Seria uma traição à Nietzsche, a quem
tanto devemos. Não existe leveza e descompromisso em Nietzsche. Começamos, a
partir da conhecida questão “o que é viver senão uma potência de acontecer?”, tão logo
perguntamos a todos “o que seria viver?”. Diante das mais variadas respostas, fomos
trazendo ideias nietzschenianas sobre a apropriação da vontade para criar, a capacidade
que a vontade tem de se efetivar como potência, a vontade de potência e as mortes
que se dão nas relações e lutas, sobre a multiplicidade, as realidades, as lutas constantes
no/do mundo, a criação de suas próprias condições de potência Fomos tecendo junto
com Nietzsche, e envolvendo Deleuze, também Guattari, também Derrida, também

227
Foucault, fazendo curtas, porém sólidas tramas, de maneira a produzir algumas
introduções e algumas traduções destas ideias, nesta comunidade aprendente, que teve,
então, como sua primeira vez, a convivência com estes autores.
Ficamos um tempo bem produtivo, conversando sobre a vinculação do pensamento
de potência ao ato de criação (Deleuze, 1988; 2006; Deleuze; Guattari 1992), que nos põe
a pensar a própria vida como arte produzindo-se. Pensamos as novas forças que forçam
a pensar, o pensamento a serviço da vida em sua potência criadora, o quanto militar é
agir, o quanto o poder se alimenta da impotência, o quanto a composição das forças
diminui os poderes, o eterno “dizer sim ao devir”, do ocupar os espaços inventando os
espaços, do expandir a potência, cultivando a potência, os impulsos de mais, os impulsos
de menos, do ser contra o não ser, da ética como potência e da moral como escravidão, as
negações que se originam da fraqueza, das relações da vida com a vontade, da existência
da vontade só onde há vida.
Fomos conseguindo, em meio aos fios, às tramas, às malhas sendo feitas, conversar,
pelas referências que escolhemos, pelos textos e texturas organizadamente pensados e
viabilizados, e a pensar, de maneira muito intensa, o que muito primamos: a transcriação
da vida, a didática tradutora e transcriadora, a escrileitura de novos modos de existência,
de pensar, viver, lutar, ler, escrever, dizer o mundo, viver o mundo, fazer no mundo.
Desse lugar, nossa escolha foi por estudar Corazza, trazendo-a para a roda, de maneira
muito próxima, pois caminha forte, densa e diariamente entre nós como um arquivo vivo,
um manifesto vivo de resistência e de luta viva por uma vida da diferença. Caminha
ela, conosco, na Educação e Filosofias da Diferença, produzindo uma vida da diferença,
essa cheia de tensões, tesões, torções, intenções que sempre está a artistar, debuxando,
esboçando, desenhando, rascunhando, pintando, rasgando, borrando, recortando,
colando, bordando, costurando, alinhavando, descosturando, duvidando, questionando.
Com ela, fomos abrindo a nossa roda, e na ponta dos pés fomos tentar avistar o EIS
AICE, iniciaticamente, pelas ideias de espaço, de imagem, de signo, de autor, de infantil,
de currículo, de escola, de tradução, de didática tradutória, de didática transcriadora, de
currículo transcriador, de potência transcriadora, de didáticArtista.
Com Corazza, fomos reflexionando desde sobre nossas maneiras de viver, nossos
modos de existir, de pensar, nossos modos de fazer, de ser, de inventar, de escrever,
de ler, de escreler. Fomos ousando artistar os conceitos de Potência Humana Criadora
inspirados nas artistagens de Corazza, em seus estudos profundos e enigmáticos sobre
a formação do professor-pesquisador e a criação pedagógica (Corazza, 2013), quando
incita o existir enquanto professor-pesquisador que “reinterroga o sistema de pensamento
moderno e suspeita de suas verdades”, das fragilidades de uma docência sem pesquisa,
das neutralidades iluminadas e das suspeitas absolutas e dos desafios da diferença

228
pura (Corazza, 2005), sobre DidáticArtista (Corazza, 2014), encharcada de dobras, de
transcriações, de ousadias e coragens. Lemos as 50 teses sobre Escrileituras (Corazza,
2016) e do quanto existe de pensamento revolucionário em cada uma delas, pelas defesas
e lutas ardentes por construir um pensamento da diferença em Educação (Corazza; Tadeu,
2003), da potência criadora e do docente da diferença (Corazza, 2013). Tão viva, tão
perto, tão junto, tão na roda esteve Corazza conosco, tanto assim, que o coletivo desejou
continuar lendo seus textos, seus livros, seu pensamento escrito digno deste tempo que
vivemos.
Compreenderam Corazza e suas ideias desmontadoras, desconcertantes, descons-
truidoras , acometidamente criadoras e enfeitiçadoras sobre a aventura de viver as
artistagens na vida, na escola como arte, ciência, feitiço, invenção, caosmos, na
educação como composês multiplicadamente diferentes, como produção de sentidos,
de vida pedagógica que jorra e que se reinventa a todo instante, duma loucura inédita
e possível de viver a vida como arte, a didática transcriadora artista pelos campos da
vida escolarizada como exercício da própria vida, pelas desescolarizações como anarquia
das potências em campos abertos – mundos, pela academia como a vida-pesquisa em
brotação, em gestação permanente, da vida em si de cada um mesmo, como diferença,
como metamorfose e de se estar cutucando a vida, tensionando a vida da vida, se fa-
zendo com “as conexões e as superfícies de contato, as dobras e as flexões, os poros e as
fendas, os fluxos e as trocas” (Corazza; Tadeu, 2003) como existência de feitio próprio,
que tem a força da liberdade, do ofício diário de se recriar.
Uma das professoras participantes do curso, por último, assim escreveu em seu
caderno de artífice:

Estudar a Potência em seus muitos pensadores e suas teses enlouquece qualquer


vivente. É puxar o fio duma meada infinita. É debruçar cabeça sobre os braços,
liberar o pensamento ciente da cria-ação. Possível. Somos parte de um grande mundo
infinito, sem receitas, numa eterna tentativa de compreensão desAbsoluta total. Somos
insaciáveis, atravessaremos vidas e vidas na busca pela justificativa daquilo que nos
inquieta. Isso é potência. (Paula Acacia de Oliveira — última escrita no caderno de
artífice, Curso Escrileituras e Criação, 2016)

Dessa inspiração forte e vigorosa que causa Corazza, seguimos, entretecendo,


novamente, em nossas ideias rizomáticas e com as dos autores da trama do curso. Como
num jogo de cartas que embaralham-se, muitas das nossas encontraram-se em signos
díspares, juntaram-se em signos pares sem serem iguais, buscando avidamente os coringas
e tendo cada um como quase um — assim estivemos, conjecturando mirabolâncias
estéticas leves e tensas ondulando tempo inteiro, que causaram contentamento e

229
desconforto concomitantemente, em meio às aprendências, ensinâncias e brincâncias
que em rodas aconteceram, pelo amor político ao saber e pela compreensão de que a
vida está.
O frio do inverno rigoroso não obscureceu as estrelas. As noites fizeram-se estre-
ladas nos cinco enlaces de estudos, não só na abóbada que nos cobria, mas nos céus
que produzimos pela potência de cada um (estrela), que se encontrou com outros uns
(mais estrelas) e que formaram um coletivo (constelação). Em latências. Em faiscações.
Em brilho solitário e solidário. Em amadurecimento e em verdejamento. Em curiosidade
e em escapismos. Em sororidade e relutâncias. Em fianças, desconfianças e confianças
teóricas e práticas. Num entre aprendências, brincâncias, ensinâncias, brincâncias, como
num jogo, em águas sem dar pé, diante de ventanias quase arrancando as raízes de nossas
arvorecências. Entre. Inter, Trans. Com. Assim vivemos a tensão de aprender, ensinar,
brincar, jogar, falar, expressar, negar, afirmar, ler, ousar, inventar, artistar, sentir, refletir,
escrever, pensar.
Das bonitezas que ficaram, as muitas memórias significativas de um grupo con-
versando e reflexionando sobre forças e potências, pensando sobre as suas próprias. Da
promessa que ficou, inventar um outro curso nessa linhagem, com mais tempo, com
o dobro de tempo, para ter tempo de digerir, de pensar com mais vagar. Do desafio
que surgiu, a proposição de uma estudante feminista anarquista, em repensar o número
de autores homens que estiveram em nossos estudos e de abrir espaços para mais
femininos pensantes ao longo da história da filosofia, da arte e da ciência, equilibrando
as presenças de gênero no composê curricular do próximo curso. Do nosso fôlego,
pensar mais pessoas arrojadas e tomadas por poiesis, como nós, para compartirmos um
estudo-curso na próxima vez, nessa e em outras proporções de intensidades de natureza
política reflexiva dentro-fora.
Saímos melhores dessas aprendências e ensinâncias pela experiência que ousamos
viver. Saímos maiores. Saímos mais potentes. Mais corajosos, temendo menos a nós
mesmos.
Se fosse essa, uma contação ao vivo, precisaria de uma fogueira ardendo no meio de
uma roda, que ficasse queimando ar e lenha quase uma noite inteira. Como foi uma contação
em textualidade escrita de acesso, tempo inteiro, aos arquivos vivos, precisamos dessas
vinte e três páginas para deixar escorrer mínimas poiéticas do que pode uma experiência
em Filosofias da Diferença, vivida com ardor, sofreguidão, distensões, vibração, fluxos,
velocidades e vagares, arte, estranheza, desabamento, conjunção, choque, rastejos. Muita
ciência, palavração, desparafusamentos, fiações, fibromialgias, mergulho, filosofia,
deslocamentos, composições, inundação, decomposições, transfiguração. Bastante de
flutuações, cambiâncias, desconjuntamentos e emborcações, exílios, desnudamentos,

230
vagações, moções, passagens, navegações e expedições, nomadismo. Intensidades,
transmigrações, transgressões, transbordamentos, meio assim, como os ventos, meio
assim como os rios caudalosos, como as correntezas impiedosas, como os abismos, como
os seios da terra. Ainda: como o coração da terra – em fogo. Ainda: como uma carta
do céu – incógnita. Para arder ao ler. Para ao ler, tentar decifrar ardendo. Infinitudes
indecifráveis.

Referências
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ARISTÓTELES. Metafísica. (Trad. Edson Bini) São Paulo: Edipro, 2012.
AGAMBEN, Giorgio. A potência do pensamento. Lisboa: Relógio D’água, 2013.
BERGSON, Henri. A evolução criadora. Rio de Janeiro: Edit. Delta, 1964.
BORGES, Jorge Luis. Aqui. Hoje. Poesia-Tradução Charles Kiefer. http://www.releituras.com/
jlborges_labirinto.asp.
BLARY, Armelle. Os Corpos. Disponível em: <https://armelleblary.com/>
CORAZZA, Sandra Mara. Os cantos de fouror: escrileitura em filosofia-educação. Porto
Alegre: Sulina, 2008. (Coleção Cartografias)
CORAZZA, Sandra Mara. Projeto Escrileituras: um modo de ler-escrever em meio à vida.
Projeto de Pesquisa/Plano de Trabalho. Porto Alegre: CAPES/OBEDUC, 2010. (Texto Digitado)
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Janeiro: Graal, 1988; 2006b.
DELEUZE, Gilles; GUATARRI, Félix. O que é a filosofia? (Trad. Bento Prado Júnior; Alberto
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DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo: uma impressão freudiana. (Trad. Claudia de Moraes
Rego) Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.
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GHIDETTI, Filipe Ferreira. O Artífice. Horizontes antropológicos. v.19 Porto Alegre July/
Dec.2013
GUEDES TRINDADE, Ana Felícia. Pedagogia Poiética para a Potência Humana – o
reconhecimento, a nutrição e a expansão da potência humana das comunidades aprendentes, em

231
processos colaborativos poiéticos de reorientação curricular pedagógica-cultural e as tecituras
transdisciplinares das alfabetizações de mundos em rodas de conversações. Tese de Doutorado.
Biblioteca/repositório digital PUCRS, 2015.
GUEDES TRINDADE, Ana Felícia. Educação Bioantropoética – práticas pedagógicas
que pensam a ética da vida e a potência dos processos de convivências humanas – 1ª Edição.
Curitiba: Appris, 2015.
MATURANA, Humberto Romesín; VARELA, Francisco J. A árvore do conhecimento as
bases biológicas do entendimento humano. São Paulo: Palas Athena, 2001.
MATURANA, Humberto Romesín; YÁÑEZ, Ximena Dávila. Habitar Humano: em seis
ensaios de biologia-cultural. São Paulo, Palas Athenas, 2009.
MATURANA, Humberto Romesín; VERDEN-ZOLLER, Gerda. Amar e Brincar, Fundamentos
esquecidos do humano. São Paulo, Edit. Palas Athena, 2006.
MORIN, Edgar. O Método 1: A natureza da natureza. Porto Alegre: Sulina, 2008.
MORIN, Edgar. O Método 2: A Vida da Vida. Porto Alegre: Sulina, 2005.
MORIN, Edgar. O Método 3: O Conhecimento do Conhecimento. Porto Alegre: Sulina, 2008.
MORIN, Edgar. Introdução ao Pensamento Complexo. Editora Sulina, 2007.
SENNETT, Richard. O artífice. 2. ed. Rio de Janeiro: Record, 2009. 364 p.

Trabalho apresentado no Salão de Iniciação Científica, da Universidade Federal do Rio Grande


do Sul, Porto Alegre, RS, de 12 a 16 de setembro de 2016, como resultado parcial do projeto
de Iniciação Científica, na Linha de Pesquisa Filosofias da Diferença e Educação do PPGEdu/
UFRGS. Buscas em Repositório Digital UFRGS, sob o título original Escrileituras e criação: a
multiplicidade do conceito de potência criadora.

232
PESQUISAR: UMA ATITUDE
DIDÁTICO-TRADUTÓRIA
DE ESCRILER A VIDA

Róger Albernaz de Araujo


Sandra Mara Corazza

Ponto de entrada

De algum modo, as questões concernentes aos modos de se fazer pesquisa


suscitam discussões várias, algumas acaloradas, inclusive. O que se coloca, talvez,
como uma premissa, que beira o consenso, é que uma pesquisa, acaba por articular
um certo modo, um certo método, que acaba por materializar-se pela forma de
um discurso metodológico. E, esse certo não se tem colocado à toa, ele delimita
e congrega, também, um certo regime de verdade, a partir do qual os acontecimentos
são interpretados, classificados e selecionados, como forma de serem valorados. Ou
seja, toda a pesquisa assume uma determinada posição, produzindo uma determinada
coordenada, que implica a pesquisa em uma determinada perspectiva. E, assim, as
ações se têm cercadas e perpassadas por vários imperativos, que delimitam, congregam,
coordenam, e também, cercam e perpassam um limite cognitivo acerca do ato de
pesquisar. Ações que atendem a determinadas perspectivas de relação, e que não exercem
um a posição de neutralidade mas, ao contrário, incitam um modo certo, que determina
um certo modo, que passa a funcionar como modelo; ou seja, aquilo que se precipita
enquanto certo e, por pressupor esse caráter de verdade, assume a posição de verdadeiro,
qual determina, delimita e concebe aquilo que se deve na relação com aquilo que se pode.

233
Esse estudo deseja transcender a discussão que erige um conflito entre duas partes
antagônicas; transcender aquilo que define-se na aplicação direta de um raciocínio
dualista que afirma ou nega uma parte; aquilo que assume uma posição em detrimento
de outra; deseja-se poder conceber a possibilidade de se produzir um entreato que se
afirme pelo movimento de produção e não pelos valores que delimitam de antemão o
sentido e a direção do movimento. Ou seja, deseja-se ir além das posições visíveis, que
representam o vetor do movimento de uma criação da pesquisa para poder, quiçá, inventar
posições outras, talvez frágeis e incapazes de se pronunciar publicamente; posições que
a partir de seus breves e tímidos sussurros possam corroer algumas margens do regime
estabelecido; talvez, não se faça necessário gritar, e sim, marcar, na potência do silêncio,
uma posição de que ainda se tem o que dizer. Nesse sentido, o corpus empírico desse
estudo compõe-se por um conjunto de pesquisas em nível de mestrado, as quais tem sua
orientação a partir de Programas de Procedimentos de Pesquisa, cada uma funcionando
em um meio diferente, articulando e tensionando diferentes saberes e diferentes poderes.
Ou seja, esse estudo procura dar contornos a um método maquinatório que auxilie e
potencialize a produção de pesquisas articuladas ao território do pensamento da diferença.

Pensamento de partida
Pensando a pesquisa como um espaço-tempo de formação, de uma possibilidade
para novas interlocuções, de oxigenação de perspectivas e de ampliação de relações de
pensamento, pode-se problematizar o modo como acontecem os percursos que compõem
o corpo da pesquisa e, por efeito, os modos acionados na produção desse corpo de
pesquisa. De um modo simplista, pode-se dizer que, via de regra, quem começa a pesquisar
desloca-se intuitivamente pelo território da pesquisa, devidamente acompanhado de um
roteiro que orienta o caminho. E, quando o pesquisador se vê tensionado, principalmente
na relação com um grupo de primeiros orientados, faz-se premente modos que, além de
como orientar, requerem a necessidade explícita da necessidade de um método, de um
modo de como fazer a pesquisa. E, ainda, quando alguém necessita pesquisar, seja em
nível de iniciação científica, seja em nível stricto sensu, torna-se recorrente a questão do
método, inclusive de modo mais visível, a imposição de uma determinada metodologia.
Em um processo que se vale da absorção do vivido, das experiências, das relações,
de um modo um tanto experimental-exploratório o pesquisador arrisca aqui, resiste ali,
cumprindo um percurso solitário em termos de sua formação enquanto pesquisador.
Então, acontece a necessidade, de fazer ou de orientar uma pesquisa, ponto em que a
necessidade do método se amplia e se torna o ápice do desejo de pesquisa. Acontece
assim o contorno de uma problemática: o que funciona como modo possível no percurso

234
da feitura de uma pesquisa? E, com isso, emerge o conceito de máquina (Deleuze, 2011),
que impõem a participação de Deleuze e de Guattari na composição do processo de
pesquisa, na condição de intercessores (Deleuze, 2010) que potencializam a busca de
modos possíveis de fazer pesquisa na relação com o pensamento da diferença. De algum
modo, esse primeiro movimento inclui no percurso de pesquisa a figura do desejo,
como elemento que inaugura a composição da necessidade que potencializa o ato de
pesquisar. Ou seja, aquilo que se nomeia e se delimita, enquanto um pensamento que
confere a possibilidade de um início, de uma partida do processo de pesquisa, encontra-
se preenchido, de antemão, por um compósito de desejos.

Desejo
O desejo (Deleuze; Guattari, 2011) acontece, enquanto elemento que inaugura
o processo de pesquisa, e tem como efeito, por um lado, o percurso percorrido pelos
pesquisadores e, por outro, o território da temática de pesquisa que se compõe. Um
encontro que acontece em um determinado tempo e em um determinado espaço, e
pressupõe que pesquisadores e pesquisas são compostos em um processo de datamento,
que agencia a ambos e inaugura uma possibilidade de relação, na qual o território da
pesquisa produz-se entre um e outro, por meio da articulação do corpo-pesquisa e do
corpo-pesquisador, numa contínua política maquínica de relações e na tessitura de um
território de pesquisa. Um modo de pesquisar se coloca em movimento para transformar
em ato o desejo de articular um método que não sucumba a uma metodologia. Desejo
explícito da criação de um percurso de pesquisa, que possa descobrir seu trajeto a cada
movimento. Talvez, uma possibilidade de jogar o jogo que se cria; e um ato de diluir
a necessidade de ter que chegar a um fim estabelecido a priori, e de relegar o início
previamente traçado, como potencialização da necessidade de ir além, de produzir
encontros, de criar um caminho. Ou seja, a todo o conjunto de procedimentos que se
possa maquinar, que se possa inventar, precede um campo de desejo, que preenche um
possível plano (Deleuze; Guattari, 2010a) de criação com intensidades concernentes a
um pensamento de partida; produz-se a estética de uma política do desejo.

Imagem dogmática do pensamento


As questões metodológicas fazem parte do contexto da pesquisa acadêmica,
funcionando como condição de possibilidade, não somente de auxiliar o pesquisador,
como também de conduzir a própria pesquisa, o que proporciona que os esforços
produzidos assumam um modo determinado de organização. Por essa perspectiva,

235
ocorre a busca por uma garantia do sentido de rigor e de academicidade dos estudos
realizados, o que possibilita que vários pesquisadores usufruam de um mesmo modelo
de pesquisa, como forma de que possam garantir a aquisição dos resultados desejados.
Tem-se um modelo disposto em uma série de etapas, as quais indicam ao pesquisador
qual caminho deve ser tomado, quais inferências e interferências devem ser movimen-
tadas. De algum modo, o método funciona como o modo de pensamento da pesquisa,
indicando a base do saber e o contexto das relações de poder, que se inscrevem no escopo
da pesquisa e do pesquisador. Ou seja, por esta perspectiva, a escolha metodológica
caracteriza e explicita a estética do ideal da pesquisa e do pesquisador, o que define, não
somente, uma referência teórica, mas também, um conjunto de valores e de posições;
relações que vem a compor o regime de verdade da pesquisa e do pesquisador.
De algum modo, essa perspectiva de apreensão das questões referentes ao método,
acaba por determinar um ambiente, no qual o regime de verdade se tem determinado pela
escolha formal de utilização de um processo metodológico, explicitado como elemento
norteador do percurso do pesquisador e da pesquisa, bem como de elemento avaliador
das realizações da pesquisa e do pesquisador. A metodologia, nesse contexto, exerce a
função do dispositivo acadêmico que outorga a garantia de rigor, de exatidão, de verdade,
valores requeridos pela pesquisa científica de caráter empírico, principalmente àquelas
oriundas das ciências exatas. Por efeito, essa premissa, produz uma distinção explícita
de valor, que atribui uma menor valia a pesquisas que se orientam por métodos menos
fixos e ortodoxos, quando não, a classificação dessas pesquisas mais “frouxas” como
desviantes, deslocadas, marginais, inapropriadas. Ou seja, a metodologia tem a função,
em termos de contexto acadêmico, de selecionar, de classificar e de validar, não só a boa
e a má pesquisa, mas o que é e o que não é pesquisa.

Problema ou campo problemático


Problematiza-se o que se pode reverter da estética da pesquisa acadêmica con-
temporânea, em face do desejo de poder vir a compor um percurso de discussão desta
temática, que não parta de questões a priori mas, preencha os espaços na medida em
que as discussões se produzam, para que se possa expressar a problemática que se puder
encontrar. Para tanto, faz-se necessário abandonar a noção de uma possível neutralidade
na relação da pesquisa e do pesquisador com o território (Deleuze; Guattari, 1995, 1196,
1997, 1997a) pesquisado. Nesse caso, o primeiro passo no desejo dessa escrita, tem-se
na expressão de que assumir uma posição de pesquisa é algo inevitável, o que implica
que a pesquisa e o pesquisador produzirão, inevitavelmente uma expressão de verdade,
a qual estará sustentada, e se sustentará por um determinado “Plano de Referência”.

236
Aqui, um Plano de Referência excede o conceito do plano de referência produzido pela
ciência, conforme expõe Deleuze e Guattari (2010a), e envolve o desenho de um
determinado território com o qual se deseja relação, compondo o que esse território
é diante das “relações de saber e de poder” (Foucault, 1979, 2013) que o constituem.
A todo Plano de Referência corresponde um Plano de Criação, ambos funcionando de
modo duplamente articulado (Deleuze; Guattari, 2011).

A função, na ciência, determina um estado de coisas, uma coisa ou um corpo que


atualizam o virtual sobre um plano de referência e num sistema de coordenadas; o
conceito na filosofia, exprime um acontecimento que dá ao virtual uma consistência
sobre um plano de imanência e numa forma ordenada. (Deleuze; Guattari, 2010a,
p. 158)

Neste caso, ocupa-se uma posição que pretende declinar à necessidade de respostas
a questões previamente determinadas, decorrentes, muitas vezes, como efeito de dis-
cussões coletivas. Aqui, faz-se a escolha de poder compor um método que envolva um
conjunto de procedimentos, pelos quais o pesquisador e a pesquisa orientam seu trajeto.
Deste modo, não se indica aonde pesquisador e pesquisa devem ir, muito menos de
que modo, mas aguça-se o desejo de que se coloquem e se percebam em movimento
de pesquisa, o mais breve possível. Colocar-se em movimento, como condição de
possibilidade do esgotamento de um desejo de pesquisa, que transborde pelo que lhe
sobra em potência, ao ponto de cortar o fluxo que lhe movimenta pela produção da
marca, que inaugura o ponto de entrada do ato de pesquisar. Ponto de entrada que dá a
ver os primeiros movimentos que o pesquisador e a pesquisa realizam ao longo deste
espaço-tempo de relação com uma determinada temática. Procedimento que passa, então,
a compor uma problemática, pela qual se torna possível produzir os encontros com os
prováveis achados da pesquisa, inclusive aqueles que se compõem pela afirmação de
encontros inusitados.

[...] um problema em ciência ou em filosofia, não consiste em responder a uma questão,


mas em adaptar, coadaptar, com um “gosto” superior, como faculdade problemática,
os elementos correspondentes em curso de determinação (por exemplo, para a ciência,
escolher boas variáveis independentes, instalar o observador parcial eficaz sobre um
tal percurso, construir as melhores coordenadas de uma equação ou de uma função).
Esta analogia impõe duas tarefas ainda. Como conceber as passagens práticas entre as
duas espécies de problemas? Mas sobretudo, teoricamente, as instâncias de oposição
impedem qualquer uniformização, e mesmo qualquer redução de conceitos aos
functivos ou o inverso? E, se toda redução é impossível, como pensa um conjunto de
relações positivas entre as duas? (Deleuze; Guattari, 2010a, p. 158-159)

237
De algum modo, a escolha do modo de pesquisar está sujeito ao desejo da pes-
quisa e do pesquisador, o que acaba por produzir a posição que estes sujeitos assumem
ante à necessidade da escolha do método de pesquisa. Talvez, o que se encontre, em
uma primeira análise, como questão, seja a necessidade da escolha do método que a
pesquisa irá utilizar, o que compõe, já de antemão, uma inevitável problemática. Ou
seja, escolher o modo como se deseja proceder com as atividades inerentes ao ato de
pesquisar, também se compõe como uma problemática de pesquisa que necessita cumprir
um espaço-tempo próprio de problematização.
Pela perspectiva da lógica dominante de pesquisa, o método funciona como um
orientador de caminho, indicando as vias necessárias para que um determinado resultado
possa ser alcançado, qual seja a resposta a uma determinada questão, posta como origem
do movimento de pesquisa.
Pela perspectiva que se deseja compor, o método funciona como orientador de um
percurso, indicando por onde a pesquisa e o pesquisador passam, enquanto constituem-se
pela implicação de intercessores inseparáveis. Pesquisador e pesquisa, por um processo
de dupla articulação, produzem um modo de funcionamento, que possibilita a criação
de uma potência de deslocamentos (Deleuze; Guattari, 1997). Trajetos que são criados
e trajetos que são encontrados. Composição de um percurso que se inscreve no corpo
da pesquisa e no corpo do pesquisador. Relação que obtém um corpo de funcionamento
da pesquisa e do pesquisador, pelo agenciamento (Deleuze; Guattari, 1995, 1996, 1997,
1997a) simultâneo, múltiplo e contínuo de um corpo-pesquisa e de um corpo-pesquisador,
o que os torna indiscerníveis entre si, precisamente, pela potência de funcionamento
produzida entre ambos.
O que ocorre, e produz a diferenciação entre as duas perspectivas de pesquisa em
questão, constitui também uma perspectiva, um modo de relação com o ato de pesquisar.
Ou seja, a escolha do modo como se produz a relação com a pesquisa: por uma orien-
tação à obtenção de um resultado na aplicação de um determinado método ou pela
composição de uma problemática na criação de um programa de procedimentos. De um
modo e de outro, a escolha da metodologia que será adotada pela pesquisa, já se constitui
enquanto movimentação de um método, visto que indica o modo como se deseja produzir
o olhar da pesquisa e do pesquisador. Uma escolha de qual porta se deseja abrir. Neste
caso, poder-se-ia inferir que a questão metodológica compõe um corpo de desejo, que
permeia o percurso da pesquisa fornecendo o ritmo de cada movimento, antes mesmo
do primeiro movimento visível e dizível.

Método de invenção: maquinação


Um primeiro exercício de formalização da teoria de uma prática de pesquisa, suscita
uma teoria do funcionamento da pesquisa, e o conceito de máquina (Deleuze; Guattari,

238
1997a, 2011) então funciona, factualmente, como elemento que se apropria do conceito
de funcionamento da pesquisa: o que funciona no percurso de pesquisar?
A noção de funcionamento toma corpo e assume uma posição com força suficiente
para desafiar a pesquisa a transcender o caráter binário (Deleuze; Guattari, 1995) das
relações, que percebem e formalizam o que é pesquisa, e por efeito o que não é pes-
quisa. Faz-se necessário, então, uma nova leitura acerca da realidade da pesquisa,
que pode ser provocada pelo acréscimo de uma atenuante à negação daquilo que é,
considerando que o que não é, ainda não é. Por essa perspectiva, aquilo que ainda não
é, ainda pode vir a ser, assumindo o caráter de potência, de virtude. Ora, isso modifica
completamente a natureza das relações, pois dilui o caráter binário do isso ou aquilo,
resistindo a lógica excludente do zero (0) ou do um (1) do sistema booleano. Da função
binária que produz um ponto, a partir de duas coordenadas, transcende-se na direção
um infinito de possibilidades, que produz uma linha.
Enquanto a lógica binária postula que a realidade (R), (“é” ou “não é”), o que
pode ser representado por (“1” ou “0”), no que a função (R) = {1,0}, ou seja, um ponto,
ou isso ou aquilo; de um outro modo, a lógica que aposta na potência postula que a
realidade (R), (“é” e “AINDA não é”), o que pode ser representado por (“1” e “∞”),
no que a função de (R) = {1, ∞}, ou seja, uma linha, e isso e o ainda possível. Por essa
premissa tem-se uma transcendência do que é e daquilo que não é, pela potência de uma
possibilidade de um vir a ser, ou seja, a noção de nulo, de nada, torna-se a possibilidade
infinita de um porvir, assim como a noção de todo, de tudo, torna-se tão somente o
intervalo aberto de um possível.
Nesse sentido, em termos de pesquisa, percebe-se uma relação inevitável entre
um território de pesquisa que se coloca como a realidade com a qual a pesquisa deseja
entrar em relação, e todos os efeitos que se pode produzir a partir disso; o que implica
uma necessidade de composição de uma máquina (Deleuze; Guattari, 1997ª, 2011) de
pesquisa, que funcione como possibilidade da produção de algo que ainda não se tem,
que ainda não é, mas que pode vir a ser. Isso reifica o conceito de potência como ponto
de partida do ato de pesquisar: o que potencializa uma pesquisa?
Como desdobramento disso, pode-se ter em uma pesquisa a relação entre um
Plano de Referência e uma Plano de Criação, aonde o Plano de Referência provém o
desenho de determinada realidade acerca do que produz a estética de um território de
pesquisa (aquilo que é) e um Plano de Criação que provém potência do que pode vir a ser
(aquilo que ainda não é). Tem-se, então uma relação de dupla articulação que tensiona,
maquinicamente ambos os planos, ou seja, tensiona em termos de funcionamento um
Plano de Referência e um Plano de Criação. Mas como isso funciona? Como isso pode
vir a funcionar?

239
Nesse estudo, escolhe-se compor uma tríade conceitual, que produz uma má-
quina de pesquisa que funciona em três movimentos, que não são sucessivos de uma
evolução, mas três aspectos numa só e mesma coisa: uma estratégia de composição ao
ritmo de um ritornelo (Deleuze; Guattari, 1997). Primeiro Movimento: um Plano de
Referência necessita de uma abordagem genealógica, que possa prover um desenho
do território de relação com a pesquisa, não como forma de nomear que é isso ou
aquilo, mas como isso e aquilo tornaram-se o que são; ou seja, não se deseja saber o
que é, mas perceber como e por que se tornou o que é? Com isso, pode-se mapear
coordenadas, percorrer fluxos, perceber deslocamentos, ou seja, produzir um plano
geográfico que funciona como território por onde a pesquisa necessita deslocar-se.
Segundo Movimento: um Plano de Criação, que estende-se revolvendo um conjunto
de intensidades, que acontecem enquanto potências de criação – perceptos, conceptos,
afectos – com as quais se pode compor a imanência (Deleuze; Guattari, 1995)
compositiva de uma diferença, de uma criação, de uma invenção. Terceiro Movimento:
uma Linha de Recursividade, que traduz a necessidade de se poder retornar ao território
para um novo espaço-tempo de relação, em um funcionamento maquínico que se
desloca por entre “fluxos e cortes” (Deleuze; Guattari, 2011). A linha de recursividade
torna possível que se estabeleça a relação de tensionamento entre os planos, além
de garantir a comunicabilidade entre eles. É a linha de recursividade que permite o
deslocamento dos procedimentos de pesquisa de um plano ao outro. Ou seja, pela
linha de recursividade torna-se possível a efetivação dos processos de diferenciação
(Deleuze, 2006) entre os planos, visto que o que retorna é a diferença (Deleuze, 2001,
2006), e a diferença retorna pelo plano de recursividade. Desse modo, a relação entre
os programas de procedimentos de pesquisa produz a possibilidade da criação de uma
zona de resistência entre os planos, aonde as relações de força (Deleuze, 2001) afirmam
uma estética possível da pesquisa.

O ato de resistência possui duas faces. Ele é humano e é também um ato de arte.
Somente o ato de resistência resiste à morte, seja sob a forma de uma obra de arte,
seja sob a forma de uma luta entre os homens. (Deleuze, 1999, p. 14)

O que se deseja aqui, produz-se pela ocupação de uma posição de pesquisa; diz
respeito a escolha de uma perspectiva de pesquisa. Nesse caso, deseja-se investir na
possibilidade de um método que acontece por um movimento que acolhe conjuntos de
procedimentos, os quais podem relacionar-se com outros conjuntos de procedimentos,
na composição de programas de procedimentos, que em funcionamento produzem um
sistema aberto.

240
Um método que só pode nomear-se como tal, pelos modos de funcionamento que
consegue articular a cada série de procedimentos que o compõe, sem uma imposição
de prevalência, de continuidade e de validação prévia. Uma aposta no ato de colocar-se
em percurso de pesquisa, afirmando os procedimentos que acontecem na busca pelos
intercessores possíveis no ato de pesquisar. Assim, um conjunto de procedimentos
de pesquisa pode criar um programa de pesquisa, cujo funcionamento produz uma
determinada ação, que por sua vez, passa a fazer parte de uma composição com outras
ações que se encontram em funcionamento, ou podem vir a entrar em funcionamento;
por esse encontro (Deleuze, 2002) compõe-se a imanência de um Plano de Pesquisa que
acontece.
Um procedimento compõe a possibilidade de uma ação, de um ato, efeito de uma
condição de possibilidade de relações, que se efetivam em um composto afirmativo, que
diante de um corpo de potências encontrado, atualiza uma determinada realidade. Um
procedimento que funciona como corte de um determinado fluxo de potência, aonde o
ato do pesquisador e da pesquisa, produz a possibilidade de novos trajetos no percurso
da pesquisa. Um procedimento, necessariamente não compõe o acréscimo de algo a uma
realidade dada, podendo, inclusive, funcionar como um elemento supressor, desviante
e deformante de uma realidade. Isso toma efeito pela composição da qualidade das
forças que entram em relação para produzir a estética de cada procedimento, em uma
determinada instância de funcionamento.
Um procedimento não funciona como a unidade fundante de um programa de
procedimentos, do mesmo modo que um programa não detém procedimentos; ambas
as abordagens estabeleceriam uma relação hierarquizada de atos específicos, os quais,
devidamente combinados, cumpririam uma função esperada. As relações entre programas
e procedimentos fogem à relação sujeito e objeto, pela afirmação do desejo de uma
produção maquínica, ou seja, programas e procedimentos funcionam como “máquinas
desejantes” (Deleuze; Guattari, 2011), em um sistema contínuo, múltiplo e simultâneo
de “produção de produção” (Deleuze; Guattari, 2011).

O acoplamento da síntese conectiva, objeto parcial-fluxo, tem, portanto, uma outra


forma também: produto-produzir. O produzir está sempre inserido no produto, razão
pela qual a produção desejante é produção de produção, assim como toda máquina
é máquina de máquina. (Deleuze; Guattari, 2011, p. 17)

Um procedimento produz instâncias de funcionamento que, acopladas a outras


instâncias de funcionamento, produzem um programa que, por sua ordem, também
produz um funcionamento, podendo um procedimento, inclusive, emergir como efeito

241
da efetivação da relação de múltiplos programas; isso, produz uma outra instância de
funcionamento que, por sua vez pode compor com outros procedimentos e com outros
programas.
A distinção entre um procedimento e um programa pode ser aproximada pela tipo-
logia da composição de forças (Deleuze, 2001) que se alternam ao longo do percurso
de pesquisa. Procedimentos produzem programas e programas podem produzir
procedimentos, o que aufere à maquinação do método o atributo de poder dobrar-se
sobre o espaço-tempo que lhe compõe, ainda em linha de composição, funcionando ao
ritmo das alternâncias que puder produzir. Nesse caso, o conceito da maquinação do
método produz-se a partir do agenciamento do conceito de máquina (Deleuze; Guattari,
2011), que torna imanente a composição de um desejo de produção de vida; um desejo
que transcende as questões da falta neurótica e aposta em um movimento de afirmação
daquilo que sobra em potência de vida. Uma maquinação que se apropria do percurso
metodológico possível pela afirmação do ato de pesquisar, efeito da composição de uma
política de relações, pela qual o pesquisador, a pesquisa, os intercessores e o próprio
percurso encontram-se em um espaço-tempo de invenção que acontece. Um desloca-
mento que prefere não resolver problemas e, sim, produzir problemáticas, em um
continuum em que a cada entrada e a cada saída possível, acontece uma instância de
composição da tessitura da pesquisa.
Assim, tem-se uma pesquisa, que se cria por entre ritmos e meios possíveis, por uma
política que deseja exprimir uma necessidade de inventar-se em ato. E, isso, implica
e envolve o pesquisar com a pesquisa, pelo ato de pesquisar. O desejo impõe o ato da
invenção de procedimentos, e a pesquisa torna-se uma possibilidade, que a partir da
articulação com seus intercessores pode vir a acontecer.
O desejo de invenção da pesquisa transcende em ato, e investe na aposta de uma
composição de planos que funcionam pelo agenciamento de procedimentos, os quais
podem atravessar um determinado território instituído, abrir brechas e trazer à superfície
a estética da atualização de uma área de pesquisa com quem se intenciona relação.
Isso abre uma possibilidade, também, para a invenção de procedimentos que possam
investir no desejo de transformação daquilo que está instituído, como forma de inferir
naquilo que é, pela possibilidade da conquista de um vir a ser, que afirme um processo
de diferenciação.
A continuidade de colocar-se em jogo a cada instância de relação tem-se pelo retorno
possível a qualquer ponto de funcionamento da relação de maquinação do método,
pela criação de uma linha de recursividade, que pode cortar o plano de procedimentos,
produzindo suas marcas, desfiando procedimentos, aniquilando programas, instituindo
e destituindo intercessores. A simultaneidade provém à relação de maquinação a

242
propriedade de lidar com a condição de precariedade de apreensão de tudo que ocorre
em um determinado tempo e, por efeito, o caráter de parcialidade inerente a cada
enunciação de uma verdade. A multiplicidade invade a estabilidade do eu, detentor
de posição definida e de discurso único, e traz à superfície todo um conjunto de vozes
que já ocupam esse espaço-tempo de preenchimento do ser.
Encontra-se, então um Programa de Procedimentos de Pesquisa (PPP), uma relação
entre máquina e método, que deseja funcionar pelo acoplamento e pela conexão entre
planos. Neste caso, dois planos: um de referência e um de criação; ambos abertos a
atravessamentos intempestivos pela composição de uma linha de recursividade, que insiste
em romper a linearidade em qualquer ponto e a qualquer tempo. Planos conectados em
uma relação de simultaneidade, de multiplicidade e de continuidade de funcionamento.
Planos que se ocupam e ocupam o caos (Guattari, 1992). Composição maquínica de um
modo de relação que, pela escolha de uma tipologia de acoplamento, dispõe à pesquisa,
como possibilidade rítmica de deslocamentos e de velocidades; modo de acoplamento
que pode colocar a pesquisa e o pesquisador em movimento contínuo de invenção das
palavras e das coisas, em múltiplas dimensões e em simultâneos encontros. Continuidade
de relações em um continuum de acontecimentos, os quais dobram os espaços-tempos,
uns por sobre os outros, trazendo à superfície o tom e o sabor do desejo da possibilidade
de uma diferença.
Por esta estratégia de criação da pesquisa, não são traçados caminhos, a partir de
um ideal que se estabelece enquanto origem, e sim, um percurso que acontece, no e pelo
desejo do primeiro passo de um trajeto, em que a cada encontro torna-se possível afirmar
um novo percurso. Trajetos traçados ao longo e por entre um território posto, instituído
e preenchido por toda uma geografia, já, minuciosamente significada e valorada. Mas,
ora, não se pode estabelecer um trajeto de pesquisa sem que haja um território; esse,
pelo qual, precisamente a pesquisa necessita passar. Ou seja, colocar-se em percurso de
pesquisa, inevitavelmente implica e envolve uma relação com um Plano de Referência,
que estabelece os modos de composição de um território e, por efeito, a possibilidade do
encontro com seus fluxos e com seus cortes. Pelo Plano de Referência pode-se conhecer
a geografia estética de um território, mapear seus pontos de “desterritorialização e de
reterritorialização” (Deleuze; Guattari, 1995, 1996, 1997, 1997a) e, assim, quem sabe,
arriscar alguma iniciativa de invenção.
O que se deseja tornar possível, aqui adquire potência na necessidade de se poder
desenhar o funcionamento de uma máquina-método de pesquisa que, pelo acoplamento,
duplamente articulado, a uma máquina-referência e a uma máquina-criação, ambas
tecendo suas linhas por entre os encontros possíveis de um Plano de Referência e de
um Plano de Criação, possa vir a produzir fissuras no território produzido; marcas de

243
diferenciação que desterritorializam e reterritorializam múltipla e sucessivamente, o
território que envolve as relações; isso, ainda em meio aos atravessamentos intempestivos
das linhas de recursividade.
A relação de maquinação de um método propõe uma atitude de invenção, que
mistura a pesquisa e o pesquisador, em procedimentos que vivificam o ato de pesquisar,
o que faz do retorno uma nova possibilidade de olhar, que esquece o caminho bem
definido, àquele que explica e que indica todo um trajeto a ser percorrido. Aposta-se
em procedimentos que, pela experimentação do preenchimento de um percurso pelos
encontros possíveis, reverta a lógica produtivista da pesquisa em série. Assim, a pesquisa
ocupa-se de envolver e implicar o que acontece na experimentação da pesquisa e do
pesquisador, mesmo que não haja o entendimento de aonde ir, mesmo que não haja uma
definição de aonde chegar, e mesmo que não haja nem sequer a garantia de uma chegada.
Afinal, a maquinação de um método de pesquisa deseja acionar um acontecimento; e isso
não define uma resposta, e sim, desenha uma problemática; desenha uma pesquisa, que
deseja-se artesã do seu olhar e da sua voz, valendo-se de toques sutis, de um roer tímido e
suave que, de algum modo, possa vir a desfiar as amarras que prendem as subjetividades
em meio aos processos de subjetivação hegemônicos e repetitivos.
Investe-se em uma pesquisa que possa vir a ser uma artesã que tece suas linhas com
os conceptos, os afectos e os perceptos possíveis a cada encontro, em um preenchimento
de planos que podem efetivar-se em conceitos, em afecções e em percepções. E, que
haja um contínuo enredamento da tessitura para mais um lance, para mais um retorno
na busca à diferença. Deste modo, a pesquisa acontece, com a possibilidade de poder
retornar e pensar novamente, de sentir novamente, não como forma de atualizar uma
forma; mas como um modo de modificar outro modo, inclusive ele mesmo; um vir a ser
recorrentemente possível a cada momento; variáveis em uma variação contínua em uma
alternância de estados, em que a cada rabisco pode traçar a diferença que puder inventar.
Investimento em um olhar de cuidado com a pesquisa e com o pesquisador, no sentido
de aproximar como estes se tornam o que são a cada instância da relação; e como e por
que uma diferença acontece.
Os procedimentos de pesquisa funcionam como os fios que tecem a trama que
deseja produzir o corpo da pesquisa; podem ser criados, apropriados de outros domínios,
traduzidos (Deleuze; Guattari, 1995; Corazza, 2013), transduzidos (Deleuze; Guattari,
1995), transcriados (Campos, 2013) e, inclusive, transvalorados (Deleuze, 2001).
Procedimentos criados pela relação entre intercessores, os quais, em seus trajetos pelo
percurso da pesquisa podem prover composições com intensidades afirmativas de uma
diferença, e, por efeito, produzir um novo procedimento. Procedimentos apropriados na
medida em que os movimentos de criação, também, podem funcionar como máquinas

244
de captura de procedimentos que sustentam um plano de referência hegemônico em
um determinado território, subvertendo-os, como forma de produzir uma linha de
diferenciação, que possa vir a provocar um movimento de desterritorialização e de
reterritorialização deste território. Procedimentos traduzidos, no sentido de que as
máquinas de criação necessitam imiscuir-se por entre os procedimentos referenciais,
como forma de mapear seus modos de constituição e de significação, para aí, inferir um
modo de resistência. Procedimentos transduzidos por processos tradutórios sucessivos
e contínuos, os quais acabam por produzir uma outra natureza de procedimentos,
transvalorados em si.
Os procedimentos são a possibilidade de ultrapassar o confinamento do pensamento
sujeito a uma crítica metafísica. Os procedimentos não derivam da relação de maquinação
do método, e, sim, são imanentes à maquinação dessas relações. Deste modo, pode-se
usufruir de procedimentos cartográficos (Deleuze; Guattari, 1995, 1996, 1997, 1997a), de
procedimentos biografemáticos (Da Costa, 2011, 2012), de procedimentos de narrativa
de si e do entorno (De Araujo, 2015), conforme a necessidade que emane do processo
de criação. Ou seja, a maquinação do método pode compor com métodos pré-existentes,
pode configurá-los, significá-los, conquanto que isso implique e envolva um ato de
invenção, uma possibilidade de criação. Deste modo, a maquinação do método exerce
uma atitude de experimentação de uma invenção coletiva, de uma política de invenção.
Esse funcionamento pode declinar das leis que dizem e garantem o que a pesquisa deve ser
e investir nas relações que compõem a experiência de se poder pesquisar. Uma estratégia
que aposta no devir (Deleuze; Guattari, 1995, 1995a, 1996, 1997, 1997a; Deleuze, 1998),
na possibilidade de uma obra aberta, no rompimento com o discurso do rigor empírico,
pela simples condição de possibilidade de afirmar a jurisprudência de poder deslocar-
se das relações de direito às relações políticas, deslocar-se das relações de controle às
relações da experiência inventiva. Isso torna possível que se criem intercessores para
a pesquisa, enquanto se produzem os trajetos que compõem o ato de pesquisar. São os
intercessores que acionam os procedimentos, que se valem deles em seus deslocamentos,
que criam o ritmo da criação. Pesquisar passa a funcionar como uma tentativa sempre
possível de se colocar em uma posição de experimentar o encontro com a invenção de
algo. Assim, a relação de maquinação do método torna-se o corpo de resistência de uma
pesquisa, que se cria e se recria continuamente, em uma composição que funciona por
um processo de povoamento; e, não se bem sabe o povo que se irá encontrar, de onde
virão as interferências, que desvios se irão provocar. Isso coloca o ato de pesquisar em
devir, e a pesquisa em um contínuo “por vir” (Blanchot, 2005).
Que cada um opere a maquinação de método que lhe aprouver; que possa configurá-
la na relação com os seus desejos, com a sua necessidade, com o ritmo e a política

245
possíveis. Afinal, um método que investe em uma maquinação inventiva possui apenas
uma propriedade inegociável, qual seja, a do desejo de funcionar. Então, como provoca
Deleuze (2010), mexa-se e produza a sua maquinação!

O importante nunca foi acompanhar o movimento do vizinho, mas fazer seu próprio
movimento. Se ninguém começa, ninguém se mexe. As interferências também não são
trocas: tudo acontece por dom ou captura. (Deleuze, 2010, p. 160)

Existe toda uma problemática da expressão da pesquisa que não pode ser relegada
a uma função secundária. Pesquisar, pela perspectiva da maquinação de um método,
com seus programas e seus procedimentos de pesquisa, articulados e manuseados
pelos intercessores possíveis, implica um movimento de fabulação. Fabulação de uma
expressão de verdade em uma determinada data, em um determinado ritmo, de tal modo
que a pesquisa possa expressar sua problemática, resistindo as questões diretas e o que
essas querem encobrir.

Essa ideia de que a verdade não é algo preexistente, a ser descoberto, mas que deve
ser criada em cada domínio, é evidente nas ciências, por exemplo. Até na física, não
há verdade que não suponha algum sistema simbólico, mesmo que sejam só coorde-
nadas. Não existe verdade que não “falseie” ideias preestabelecidas. Dizer “a verdade
é uma criação” implica que a produção da verdade passa por uma série de operações
que consistem em trabalhar uma matéria, uma série de falsificações no sentido literal.
[...] Essas potências do falso é que vão produzir o verdadeiro, é isso os intercessores...
(Deleuze, 2010, p. 161)

A maquinação de um método não pertence ao aparelho acadêmico, não se opõe ao


controle que é inerente à academia; funciona de modo subjacente, em um espaço-tempo
externo e marginal às relações de saber-poder instituídas; deseja subverter o desejo do
método de controlar a pesquisa, pelo investimento em um cuidado de pesquisar que
deseja afirmar um devir; entrar e reentrar a qualquer tempo, em qualquer espaço, cada
movimento funcionando como a possibilidade de um traço inventivo no ato de criação
da pesquisa e do pesquisador.

Reversão da imagem dogmática do pensamento


O que a maquinação de um método nesse caso produz acontece pelo encontro com
o conceito de tradução (Derrida 1998; Corazza, 2013) e com o Projeto Escrileituras
(Corazza, 2013). Quando e aonde a pesquisa tem-se atravessada por novos intercessores,

246
e aquilo que era a pesquisa se tem desafiado naquilo que a pesquisa pode vir a ser, a
partir de conjunto de novas relações, ou seja, desafia-se o Plano de Referência da própria
pesquisa, que cumpriu seu percurso até aqui. Assim, provoca-se o tensionamento de um
Plano de Criação que se compõe pela imanência de novos intercessores, e mais uma vez
o código da pesquisa se abre para possibilidade de uma nova escrita.
O conceito de tradução (Derrida 1998; Corazza, 2013) modifica a composição da
maquinação do método e produz a ressonância de uma potência de outras maquinações.
Maquinações enquanto instâncias possíveis de uma intercessão inventiva de diferença.
E, por essa tradução, produz-se um método maquinatório, que se compõe e se dispõe, a
partir de uma didática tradutória. O que era de um modo, coloca-se disponível a tornar-se
de outro, o que modifica as perspectivas de relação e, por efeito, a ordem e a natureza dos
deslocamentos. Maquinam-se procedimentos. Acontece a maquinação de um programa
de procedimentos de pesquisa (PPP), um código escrileitor, um desejo de funcionamento.
Mas como fazer isso funcionar? Não se sabe bem como, mas deseja-se que seja em um
programa de código aberto, reversível, reconfigurável, algo que abrace a composição de
uma “máquina abstrata” (Deleuze; Guattari, 1997a).
E, por entre o desejo de composição de um método maquinatório de pesquisa, encontra-
se o Projeto Escrileituras, que produz uma dobradura do pensamento da pesquisa, e
a possibilidade de retornar sobre o Plano de Referência com outro olhar, com novas
perspectivas, e sob o signo de novas provocações. Essa relação diferencia a pesquisa dela
própria, inclusive em nível de funcionamento, o que provoca um deslocamento tanto de
conteúdo, quanto de expressão.
E, no meio do caminho havia um roteiro! O Escrileituras possuía um roteiro com
sustentação teórica em “diferença e repetição” (Deleuze, 2006). Um roteiro funcionando
por cinco procedimentos; um roteiro que não era bem um roteiro, mas um intercessor
que excitava possibilidades de escrileituras. Um roteiro sem rota definida, do tipo que
não impõe um programa de viagem, mas instiga a aventura de um andarilho, que pode
deslocar-se em meio a descoberta do seu percurso. Seria um Programa de Procedimentos
de Escrileituras? Talvez, mas, para além do que isso poderia ser, problematizou-se que
se isso possuía a potência de transcriar-se em um intercessor, que, atualizado, poderia vir
a funcionar como um Programa de Procedimentos de Pesquisa (PPP). Em uma tradução
livre e aberta, por que não? Por essa trajetória se poderia obter uma nova instância de
preenchimento do Plano de Referência da máquina de Pesquisa, a partir da tradução do
Programa de Procedimentos de Escrileituras, e pela transcriação de um Programa de
Procedimentos de Pesquisa.
De algum modo, a relação com o Roteiro de Escrileituras, possibilitou perceber a
pesquisa como um território aberto a um processo de traduzibilidades, configuráveis a

247
partir de um programa de procedimentos; e, que esses procedimentos poderiam compor
um método maquinatório, pelo qual a pesquisa poderia deslocar-se no tensionamento com
um Plano de Referência, pela necessidade da produção de um Plano de Criação. Nesse
sentido, esse Roteiro transcriou-se enquanto Programa de Procedimento de Pesquisa
(PPP), funcionando como intercessor de três pesquisas em nível de mestrado, ocupando
a posição de potencializador e marcador desses deslocamentos. Um mapa movediço
que, ao mesmo tempo que demarca coordenadas, incita novos percursos. Um intercessor
rítmico-estratégico que lê a pesquisa, escrevendo; um mapa escrileitor da pesquisa.
Todavia, ainda restavam algumas questões: mas, como se chega a um pensamento
de partida? Ele é produzido, ou necessita ser encontrado? Por onde se entra na pesquisa?
Talvez, pelo desejo. Nesse ponto, olha-se para o percurso percorrido e percebe-se que
a posição de pesquisa modificou-se; modificou-se também a posição do pesquisador.
O programa de procedimentos de pesquisa (PPP), transcriado enquanto tradução do
Roteiro de Escrileituras, vivifica-se em um modo de pesquisar que propõe uma estratégia
em cinco (5) procedimentos: 1. Pensamento de partida (PP); 2. Imagem Dogmática do
Pensamento (IDP); 3. Método de Invenção: Problema ou Campo Problemático (MI/P); 4.
Reversão da Imagem Dogmática do Pensamento (R[IDP]); 5. Plano de Imanência / No-
va Imagem do Pensamento (PI/NIP). Mas, essa equação, esse funcionamento só se
torna possível pelo desejo. Então, o desejo é o procedimento de marco zero; o pré-
procedimento que inaugura o campo de pesquisa, ainda sem organicidade, ainda sem
formalidade, mas vívido de intensidades inventivas. Ou seja, tem-se: 0. Desejo (D).

Plano de imanência ou nova imagem do pensamento


Algo acontece na pesquisa, e acontece pelo próprio deslocamento da pesquisa.
Acontece um Programa de Procedimentos de Pesquisa, um bólido inventivo que incita
e excita a pesquisa a um deslocamento. Tem-se uma linha tracejada, sedenta de ser
trilhada, perpassada, rasurada. Tem-se uma estratégia de pesquisa, pela qual torna-se
possível colocar em funcionamento um método maquinatório na composição de uma
pesquisa. Aqui, no caso, far-se-á referência a uma (1) pesquisa, iniciada em março
de 2015, mas que passa a adotar o Programa de Procedimentos de Pesquisa a partir
de outubro de 2015. Desde então, essa pesquisa vêm dobrando-se sobre si, em um
movimento recursivo contínuo de tensionamento entre as referências do que a pesquisa
se torna, e as possibilidades de criação que potencializam novos processos de invenção,
novas diferenciações. Assim, o Programa de Procedimentos de Pesquisa (PPP) torna-
se a imagem de um mapa em seu último deslocamento que, porém, não é derradeiro,
porquanto ainda se coloca aberto a outros processos de diferenciação. Ou seja, o PPP

248
fornece visibilidade da estética atual da pesquisa; fornece a posição que a pesquisa
ocupa em um determinado espaço-tempo de um vetor de deslocamento, que mapeia o
percurso pesquisado. O PPP produz instâncias cartográficas, que desenham um contorno
acerca do processo de produção do Plano de Imanência da pesquisa, pelo efeito do
funcionamento do método maquinatório. Cada instância, ou seja, cada posição do PPP,
marca uma determinada posição da pesquisa; não é a pesquisa, não representa a pesquisa,
mas dá a ver a pesquisa na produção de seus deslocamentos. Um PPP se compõem em um
plano folhado, com dimensões sucessivas e sobrepostas de programas, que não indicam,
não desenvolvem, não explicam a pesquisa, mas, conectam, envolvem e implicam a
pesquisa em uma necessidade incontida de deslocamento, de funcionamento. O PPP
vivifica um Plano de Procedimentos, que se acopla ao Plano de Referência e ao Plano
de Criação, na produção da dimensionalidade de um Plano de Pesquisa. Pelo Plano de
Procedimentos as linhas de recursividade podem retornar, em um deslocamento de corte,
que inscreve as diferenças produzidas pelo Plano de Criação, como potência de uma
diferenciação possível do Plano de Referência, processo recursivo e imanente que produz
uma nova imagem de pensamento, uma nova imagem da pesquisa.
Como forma de tornar um pouco mais palpável um Plano de Pesquisa produzido
a partir do método maquinatório, considera-se o PPP de uma das pesquisas indicadas
anteriormente, salientando que a posição indicada tem seu datamento de início em 10 de
agosto de 2016, com datamento de conclusão estimado para 14 de dezembro de 2016.
0. Desejo de Pesquisa (D): Inquietação, curiosidade. Vontade de mergulhar em
algo totalmente novo, vontade de quebrar preconceitos e crenças pessoais.
Gerar nossos significados para velhos hábitos. Olhar a diferença como ponto de
relação. Cada um é o que faz de si: cego, vidente, hétero, homo, preto, branco,
amarelo, esquizo, neurótico, homem, máquina, bicho, o limpo, o sujo, o belo,
o feio. Deseja-se provar nada a ninguém, somente experimentar a diferenciação
que se puder produzir.
O Desejo de Pesquisa produz a potência necessária para que o pesquisador e a pes-
quisa possam produzir uma relação. De algum modo, produz o primeiro lance de dados,
nesse ponto feito no escuro, à revelia do possível; um lance que afirma o desejável, além
de trazer a superfície o contorno das qualidades de força que o jogador deseja colocar
em jogo.
1. Pensamento de Partida (PP): Compreender de um outro modo o universo dos
cegos, suas maneiras de perceber o mundo, suas subjetividades e suas vivências.
Saber como a cegueira conduz suas vidas. A cegueira existe somente para
aqueles que não veem? Olhar para a cegueira de outro lugar, pela vontade de
gerar uma nova perspectiva para o conceito de cegueira, assim como também,

249
uma vontade de modificar meus modos de dizer e pensar acerca dos cegos e da
cegueira, como forma de tentar quebrar com os meus próprios pré-conceitos.
O Pensamento de Partida funciona como uma primeira rodada do jogo, quando
os dados ainda fazem parte de um campo nebuloso, mas, um campo potencialmente
vigoroso, que instiga o pesquisador a uma primeira aposta; um primeiro deslocamento
que marca uma perspectiva de relação com o jogo, que materializa um desejo e afirma
uma posição de jogabilidade.
2. Imagem Dogmática do Pensamento (IDP): O processo da cegueira existe,
porém o que é dito e transmitido sobre ela é fabricado. O cego é produzido
pelos discursos. Discursos estes que estão presentes nos mais diferentes meios de
comunicação: internet, livros, revistas, jornais, televisão e etc. É importante
pensarmos que é a partir destas informações que as pessoas irão formar suas
opiniões, pensamentos e juízos sobre a cegueira. É comum ouvirmos opiniões
que julgam as pessoas cegas como menos capazes, dependentes, anormais,
coitadas. O cego é comumente visto sob a ótica da pena, como vítima de sua
própria condição, que torna impossível para o cego possuir uma vida como a de
qualquer outra pessoa.
A Imagem Dogmática do Pensamento rasga a cena do jogo; dispõe sobre as peças
que já se encontram de antemão sobre o tabuleiro; expõe os dados viciados, as rodadas
marcadas. Nessa dimensão do jogo tornam a superfície os elementos recorrentes, os
pensamentos dominantes, as apostas esperadas, o que o jogo e o jogador esperam que
aconteça, diante de um quadro de regras que já está definido, a ponto de eleger vencedores
e derrotados.
3. Método de Invenção / Problema ou Campo Problemático: Porque é tão impor-
tante rotular? Será tão necessário distanciar os cegos dos que veem? A ceguei-
ra, sendo um processo, uma forma de percepção, pode estar presente na vida
de todos os indivíduos. Existem aqueles que perdem o sentido da visão e são
sujeitos cegos, porém, existem aqueles que podem ver, mas que por estarem tão
habituados a isto, não enxergam mais; isso, também não se torna um tipo de
cegueira? Como método de invenção, para poder pensar a cegueira enquanto
processo, serão criadas cenas dramáticas de uma cegueira inventada; cenas que
pretendem criar imagens de algumas das diferentes formas de cegueiras existentes.
O Método de Invenção adentra o território do jogo com o desejo de maquinar novos
deslocamentos, outras regras, novos valores, diferentes perspectivas de relação com o
jogo e com o jogador. Nessa dimensão o potencial de invenção toma corpo, enquanto
método maquinatório, que tensiona o possível, que desafia o que a Imagem Dogmática
do Pensamento definida como sendo a realidade, não só do institucionalizado, mas,

250
também do pensamento institucionalizador. Essa é a rodada em que o jogador aposta
no jogo e em sua jogada; é quando o número do dado importa menos que a possibili-
dade de ter um número a afirmar; isso, muda a perspectiva do jogo, e do jogador, que
declina da posição de vencedor de um jogo dado, pela possibilidade de tornar-se perdedor
em um jogo por vir; uma aposta na aventura, no desconhecido, no racionalmente
improvável e no potencialmente impossível.
4. Reversão da IDP (R[IDP]): Faz-se necessário violentar o pensamento, desa-
comodar os preceitos, como estratégia de encontrar uma nova forma de per-
ceber a cegueira. Perceber que a cegueira compõe um modo de vida repleto de
potências. Não há porque sentir pena dos cegos; visto que esses podem, a
sua maneira, construir um mundo próprio e singular, resistindo aos sentimentos
de incapacidade e de inadequação impostos, via de regra, pelo senso comum
vidente. Perceber que o problema da cegueira e, por efeito o desejo de curá-la,
não reverbera do cego e, menos ainda do processo da cegueira, mas, sim, do vidente.
A Reversão da Imagem Dogmática do Pensamento (R[IDP]) não pretende a troca
de uma posição por outra. Não deseja a alteração de uma regra por outra; não deseja
um determinado número do dado em detrimento de outro; muito menos um outro
jogo, outras regras, um novo ganhador. A (R[IDP]) deseja poder resistir à jogada
inevitável, à probabilidade inquestionável, à jogada impossível. A (R[IDP]) torna
possível tensionar o número dado, não na busca de um próximo número desejável,
mas, sim, pela possibilidade de uma próxima jogada.
5. Plano de Imanência ou Nova Imagem do Pensamento (PI/NIP): Pela articulação
desses procedimentos torna-se possível afirmar que se pode gerar uma nova
forma de pensar a cegueira. As coisas, aos poucos, a cada nova investida, deixam
de ser como eram antes e, então, pode-se criar uma nova imagem do pensamento,
uma nova perspectiva de problematização; outra visão sobre o processo da
cegueira que declina da visão e aposta na potência das relações; alguns dogmas
podem ser quebrados e, quem sabe, novas questões podem emergir e produzir
uma nova cena da pesquisa e da cegueira.
O Plano de Imanência ou Nova Imagem do Pensamento traz a superfície uma nova
perspectiva de posição do jogo e do jogador; reconfigura o jogo e o jogador, no mesmo
jogo, contudo com a possibilidade de outros deslocamentos, de outras peças, de outras
interpretações das regras; um mesmo jogo, mas que se arrisca diferir de si. Aqui, o jogo
e o jogador fogem de si e do entorno que nomeia o jogo e o jogador. Nessa dimensão não
interessa quem joga, quem ganha, quem perde, qual a regra, qual o número, mas interessa
a jogada; a possibilidade da jogada, seu contorno, suas relações; interessa é o que o jogo
retorne, que o jogo aconteça.

251
Ponto de Saída
Como movimento de saída, pode-se dizer que esse texto, de algum modo fun-
ciona como o mapa de um percurso de escrita da pesquisa, que produziu uma linha,
um vetor de posições ocupadas pela pesquisa ao longo de um determinado espaço-
tempo de relação, que precariamente dá conta de por onde a pesquisa passou, mas,
mais que isso, abre a perspectiva de perceber por onde a pesquisa pode vir a passar,
do que, ainda a pesquisa pode potencializar, do que a pesquisa, ainda pode traduzir
e transcriar. Não por uma ideia de organização, esse texto compõe-se pelo mesmo
Programa de Procedimentos de Pesquisa que persegue, talvez em um outro processo
transcriativo, que inventa um Programa de Procedimentos de Escrita da Pesquisa
(PPEP). E, isso torna-se possível, acontece, pela produção das inúmeras Linhas de
Recursividade emaranhadas por essa escrita, por entre idas e vindas, por entre voltas
e revoltas. Emerge, assim, essa estética textual, efeito de um método maquinatório que
tensionou um Plano de Referência e um Plano de Criação, inclusive no território da
escrita. Um Plano de Imanência que acontece, potencializando esse Plano de Escrita,
mas também de Leitura. Talvez, um Plano de Escrileituras. Fabulou-se uma clínica-
maquinatória, enquanto um modo de resistência àquilo que se coloca como dado;
inventando-se, assim, uma posição de saúde. Posição que torna possível transcriar um
espaço-tempo de diferença, dotado de um pouco de cor em meio aos repetidos tons
de cinza, que preenchem o hábito, seja na composição da pesquisa, seja nas cenas coti-
dianas da vida.

Referências
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Fontes, 2005, 385p.
CAMPOS, Haroldo de. Haroldo de Campos: Transcriação. Organização Marcelo Tápia e
Thelma Médici Nóbrega. São Paulo: Perspectiva, 2013.
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2013, 228 p.
DA COSTA, C. B. Pesquisa Biografemática como ato de Criação de Uma vida estrangeira em
educação. In: Revista do Difere, v. 1, n. 1, jun. 2011.
DA COSTA, Cristiano Bedin da. Corpo em obra: palimpsestos, arquitetônicas. Tese
(Doutorado em Educação). Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação,
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2012.

252
DE ARAUJO, Róger Albernaz. ENUNCIAÇÃO DE SI: ficções possíveis. In: CUNHA, Ana
Paula de Araújo; ROSTAS, Márcia Helena Sauaia Guimarães; FREITAS, Luciane Albernaz de
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DELEUZE, Gilles. Espinosa: filosofia prática. (Trad. Daniel Lins e Fabien Pascal Lins). São
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DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 1998.
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DELEUZE, Gilles. Proust e os signos. (Trad. Antonio Piquet e Roberto Machado). 2ª Edição;
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Aurélio Guerra Neto e Celia Pinto Costa). São Paulo: Ed. 34, 1995. (Coleção TRANS)
DELEUZE, Gilles; GUATARRI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. V. 2. (Trad.
Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão). São Paulo: Ed. 34, 1995a. (Coleção TRANS)
DELEUZE, Gilles; GUATARRI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. V. 3. (Trad.
Aurélio Guerra Neto, Ana Lúcia de Oliveira, Lúcia Cláudia Leão e Suely Rolnik). São Paulo:
Ed. 34, 1996. (Coleção TRANS)
DELEUZE, Gilles; GUATARRI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. v. 4. (Trad.
Suely Rolnik). São Paulo: Ed. 34, 1997. (Coleção TRANS)
DELEUZE, Gilles; GUATARRI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. v. 5. (Trad.
Peter Pál Pelbart e Janice Caiafa). São Paulo: Ed. 34, 1997a. (Coleção TRANS)
DELEUZE, Gilles; GUATARRI, Félix. O que é filosofia? (Trad. Bento Prado Jr. e Alberto
Alonso Munõz). 3ª. Edição; Rio de Janeiro: Editora 34, 2010a.
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da diferença. (Trad. Érica Lima). Campinas, SP: UNICAMP, FAPESP, 1998, p. 19-25.

253
FOUCAULT, M. A Arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2013.
FOUCAULT, M. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979.
GUATTARI, Félix. Caosmose: Um novo Paradigma Estético. (Trad. Ana Lúcia de Oliveira e
Lúcia Cláudia Leão) Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.

Texto apresentado e discutido durante o II Simpósio de Pós-Doutorandos da Faculdade de


Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, RS, de 03 e 04 de
novembro de 2016; organizado e coordenado pela Comissão de Pesquisa da mesma faculdade.

254
UM PERCORRIDO TRADUTÓRIO
DE PESQUISA: ESPIRITOGRAFIAS
VALÉRYANAS COM EIS AICE

Maria Idalina Krause de Campos


Sandra Mara Corazza

Paul Valéry: rastros de um pensamento vivo

[...] na verdade, não existe teoria que não seja um fragmento, cuidadosamente
preparado, de alguma autobiografia. (Valéry, 2011, p. 212)
Charles Baudelaire (1993, p. 13) pondera que se “encontra o homem na obra. Os
personagens e os incidentes são a moldura e o planejamento de suas lembranças”. Paul
Valéry, em toda sua trajetória de vida, pesquisou, estudou, escreveu sobre conteúdos das
mais diversas áreas do saber e que são repletos de nuances e de viva poesia. É em suas
obras que o encontramos e passamos a vislumbrar o seu espírito criador.
Encontrar com a vida e a obra de Valéry é o que tem me tomado como pesquisadora
nos últimos anos, o que me propicia um prazer conectivo de relacionar seus escritos com
o fazer educação. Essa conexão que ocorre por contágio, diz também de uma sede e de
um desejo vivo de transmutação de uma variedade de conhecimentos em novos saberes
e que são fonte constante também nas produções do pensador.
Desse modo, a pesquisa investiga o pensamento do escritor francês Paul Valéry – um
autor pouco ou nada lido no campo da Educação –, como matéria da qual se apropria

255
para compor uma tese em educação. Pelo fato do autor possuir uma obra vasta,
profundamente original e que apesar de fragmentária, possui uma intensidade textual
única e merece ser analisado, tanto por seu feito de poeta-pensador, como também um
crítico da cultura.
Valéry possui uma forma peculiar de lidar com o espírito, tendo sido traduzido por
escritores e também por poetas em vários idiomas: Augusto de Campos (português);
Jorge Guillén (espanhol); Rainer Rilke (alemão). No entanto, apesar de possuir um
reconhecimento internacional pelo conjunto de suas obras é ainda pouco explorado
no Brasil; especialmente no que tange ao uso teórico e prático do seu pensamento no
processo educativo.
Por esse motivo, consideramos importante examinar sua vida bem como seus
escritos de formas variadas, diálogo, prosa, poesia, ensaio, carta, discurso, aula – e que
contemplam áreas tais como filosofia, matemática, música, poesia, teatro, além de análises
críticas culturais e da sociedade. Onde é possível verificar e contemplar, efetivamente,
uma multiplicidade de temas, que guardam como pano de fundo o funcionamento do
espírito humano. Sendo por esta razão, tomado como mote de pesquisa. Trata-se, portanto
de escrever uma tese em educação sobre Valéry com Valéry, por via de um movimento
espiritográfico que transita entre vida e obra.
Tal pesquisa privilegia o fazer, como exercício que potencializa o espírito, tor-
nando-o capaz de capturar as forças textuais produzidas pelo autor; e que são tradu-
zidas na malha intelectiva com o objetivo de criar um novo texto, o que serve como
aporte funcional para uma prática de ensino.
E nesta prática, observamos que o escritor possui um pensamento vivo e pode ser
lido como um educador por sua dinâmica textual sempre em transição. O que nos inte-
ressa sobremaneira, visto que consideramos que na formação de um espírito educador
em seu devir constante necessita atualizar-se.
Cabe enfatizar que neste lugar chamado de cotidiano educacional o que se traduz
além de textos é a própria vida, como potência ou movimento de criação, almejando
que a existência possa ser concebida como arte. Pois concordamos com a passagem de
Valéry (1977, p. 217) expressa em seus Cahiers: “a arte não é nada mais do que um
pedagogo, porém mais importante – pois, ela pode me ensinar a dispor do meu espírito
para além de suas aplicações práticas”. Trata-se então de um escrever vivendo, espreitar
a realidade e sobre ela levantar novos problemas, que promovem no espírito dobras
sobre si mesmo, num fazer poético-criador em elaboração constante, ou seja, um
modo de existir intensivo de arte-vida que toma o vivível como matéria para assim
transmutá-la.

256
O viver com
Eu sigo uma serpente que me morde o ser.
Valéry apud Campos, 1987.

O viver com Valéry levou-me a uma cruzada de leituras desordenadas a princípio,


mas que davam condições fecundas, pois trazia, em si, o germe de uma promessa, a
de ordenar da melhor maneira possível os detalhes dos fatos de sua vida, bem como o
processo de produção de suas obras. Como nos diz Borges em O livro de Areia (1975),
os fatos “são meros pontos de partida para a invenção e o raciocínio”. Assim iniciou-se
a pesquisa, num de-cifrar trabalhoso de fatos – um ponto de partida – de um persona-
gem único e de instigante pensamento.
Uma vida e uma obra que se colocam em causa, mais pelo que se ignora dela, do
que dela propriamente se sabe. Esforçando-me nesta tarefa, – como o próprio Valéry
(2011), – sem nunca esquecer: que cada um é a medida das coisas. Encontrei por
certo, com o inesperado dos fatos, que são condição e parte do processo de busca, de
quem pesquisa, sobre as próprias vicissitudes humanas; daquilo tudo que é possível
perceber e nos toca sobremaneira à existência.
Sendo assim, foi necessário acompanhar deste o princípio, a trajetória existencial de
Paul Valéry, percorrendo uma estrada ofertada pela linguagem, para podermos extrair,
desta criatura de pensamento “um simples plural de encantos” (Barthes, 2005) e assim
passar a escrever sobre ele, com ele.
Na prática o que se configura é um desejo que ronda “como uma mina a céu aberto”
(Barthes, 2013, p. 12) e que propicia criar uma fantasia de exploração; e por intermédio
dela, construir um ritmo próprio de ação exploratória, um como, para viver junto,
saboreando cotidianamente “bocados de saber = pesquisa”. Estes bocados são tomados
vorazmente como num bote de serpente que espreita, e que faz parte – por analogia – do
processo intenso de um professor-pesquisador. Uma tarefa infinda, incerta e labiríntica,
porém prazerosa e provocante.
Deste modo, tomei para mim como regra e disciplina, o querer transmutar saberes com
Valéry via pesquisa. E por meio desta exploração, dei vida a pensamentos serpenteados,
uma hierofania profanada, a arrancar velhas peles secas, para ir beber na fonte como
um réptil, arrastando o corpo anelado que desliza sobre folhas; para que assim surgisse
deste organismo visceral e transmutado, uma escrita úmida, oriunda da língua de uma
serpente encarnada, posta em recirculação a seguir os rastros deixados pelo pensador.

257
E ao seguir estes rastros, passar assim a coexistir com ele recebendo, através da
leitura de seus textos, um tipo de ordem fantasística (Barthes, 2005), buscando capturar
os pormenores, micro aparições de escrita, que aos poucos transmigram prazerosamente
para nossa vida e para o nosso cotidiano. Iniciando-se deste modo, uma operação de
teatralizar, ilimitar a linguagem, fundando uma nova língua de estilo – que se diz e se
expressa valéryanamente. Numa política prazerosa e estimulante de escrita, sempre
recomeçada, movente, por intermédio de ações não cristalizadas do espírito. Uma vez
que seus procedimentos vão além da satisfação dos instintos e do indispensável ao
próprio espírito. O que conduz também a uma reflexão sobre as funções do intelecto de
tal criatura de pensamento, buscando os meios nos quais se produzem seguido de ações
precisas para pesquisá-los.
Para tanto é imperativo fazer um apanhado minucioso, uma junção de diversos
fatos de teor autobiográfico, que servem como balizas importantes, para compreender
a topografia e a trajetória da vidarbo de Valéry. E que deste modo me abasteceram de
dados, como um recurso possível (raciocínio e invenção) para a produção da escrita
espiritográfica almejada.
Neste processo dá-se vida a uma grafia mani-festa, de um espírito serpente, dado aos
movimentos curvos do pensar e que são expressos em palavras; num fazer operativo de
reelaboração do que é visto. Tais percepções compõem novas ideias que são impressas
espiritograficamente; num misto de sedução e de múltiplos enigmas. Condição de
existência dos que escrevem, dos que necessitam se impregnar ou embeber-se das
surpresas, dos encontros que propiciam novos saberes e fazeres, pois, “não pode haver
um modo novo de ver sem um modo novo de pensar” (Valéry, 2003, p. 33).
E um novo pensar é necessário, pois “o entendimento é o próprio espírito”, (Deleuze,
2012, p. 114) que precisa ser constantemente ativado, apelando para si mesmo, na medida
em que se experimenta empiricamente, por entre ações, reações e acasos do existir. E
assim manifesta o que lhe afeta, um delírio fantasista que contempla uma variedade de
percepções, possibilitando ir além do dado, afirmando uma existência subjetiva na qual
no fundo devém o que chamamos de uma natureza humana.

Penso, logo vario15


O texto aqui apresentado, portanto, – tendo como epígrafe: penso, logo vario – é
um percorrido de pesquisa que busca analisar um fazer tradutório em educação, focado
no pensador Paul Valéry. Um percurso detalhado, feito por um pensar em variação

15
Epígrafe criada por Maria Idalina Krause de Campos, enquanto elaborava este texto.

258
que atravessa três projetos: Dramatização do infantil na comédia intelectual do
currículo: método Valéry-Deleuze (2011-2015); Escrileituras: um modo de ler-escre-
ver em meio à vida (2011-2015); e Didática da tradução, transcriações do currículo:
escrileituras da diferença (2015-2019). Sendo que este último projeto almeja
complementar, correlacionar e consolidar a formação de professores-pesquisadores,
através da observação e análise dos resultados e impactos das produções oriundas
das três pesquisas, investigando um currículo e uma didática da diferença.
Os projetos referidos são desenvolvidos pela pesquisadora e professora doutora
Sandra Mara Corazza e seus orientandos de iniciação científica, mestrado e doutorado,
na Linha de Pesquisa 09 Filosofias da Diferença em Educação, integrante do Pro-
grama de Pós-Graduação em Educação (PPGEdu) da Faculdade de Educação (FACED)
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Tais projetos visam criar
e fortalecer as pesquisas para Educação com a ampliação e a consolidação de sua
qualidade.
O Método de pesquisa utilizado no projeto – Valéry-Deleuze – é o do informe e
apontava desde o início para uma pesquisa construcionista, propiciando ao espírito
planejar e construir a sua própria realidade no campo ambiental da linguagem, com Paul
Valéry e sua Comédia Intelectual e Gilles Deleuze com seu Método de Dramatização.
Esta empiria de linguagem passa então a utilizar-se através dos conceitos de Valéry
(informe, percepção, criação, comédia) e de Deleuze (sentido, conceito, aprender,
dramatizar) recorrendo também a Roland Barthes e sua biografemática (Corazza, 2015).
Tal empiria tem na percepção e na criação dois recursos praticáveis, para movi-
mentos experimentais informes, que visam falar e escrever sobre Autor, Infância,
Currículo e Educador – unidades analíticas referidas como AICE (Didática). E colocam
em movimento experimental também o Currículo este, composto por: Espaços, Imagens
e Signos (EIS), por via de um nomadismo intelectual que se experimenta em uma
práxis no próprio território da educação.
E é por isso mesmo, que neste laborioso território da Filosofia da Diferença, não
concebe a docência sem o movimento empírico da pesquisa. Elas andam juntas como
força potencial do próprio devir e do fazer docente. Como salienta Corazza, o “ensinar
(fazendo pesquisa) e pesquisar (ensinando) consistem, dessa maneira, em criar soluções
e, ao mesmo tempo, enigmas” (2013, p. 94).
E deste modo, AICE (Didática) e EIS (Currículo) tomam para si uma poética de
pesquisa, num processo de releitura e de reescrita do vivível no campo educacional.
E que produz um currículo e uma didática da diferença na medida em que cria novas
epistemologias educacionais, possibilitando “pensar uma didática e um currículo
tradutórios” (Corazza, 2014, p. 5).

259
Portanto, estes três projetos de pesquisa privilegiam o eu-empírico, que através de sua
self-variance (autovariação do espírito), explora as potências da linguagem, colocando
em movimento processos tradutórios e biografemáticos, que servem como vias para a
autoformação do professor-pesquisador; de modo a realizar uma educação que busca a
criação ao disseminar as aventuras do pensamento. Pois o referido método do informe
age através de capturas das forças dos textos, das imagens, das musicalidades, das
vozes e dos conhecimentos, isto é, de tudo que devém em vida potente e que possa ser
adequado às práticas de ensino. Pois, o Fazer da escrita compositiva pressupõe percorrer
um caminho, num “refazer através do pensamento” (Valéry, 2011, p. 104).
Deste modo o fluxo de pensamento aventureiro ocorre na medida em que escrita
opera com a leitura – escrileitura – e é considerada uma operação ativa de consciência
que possibilita alargar o uso das faculdades intelectivas de um espírito que se arrisca
entre o ler e o escrever. Visto que o escrever é processo de devir, “sempre inacabado
[...] de passagem de vida que atravessa o vivível e o vivido” (Deleuze, 1977, p. 11).
E por este viés, a malha intelectiva atua e opera com o referido método, em tramas
imaginativas com a filosofia, com a literatura e com a educação da diferença. Pois,
É a imaginação que atravessa os domínios [psicológico, orgânico, químico],
as ordens e os níveis, abatendo as divisórias, co-extensiva ao mundo, guiando nosso
corpo e inspirando nossa alma, apreendendo a unidade da natureza e do espírito,
consciência larvar, indo sem parar da ciência ao sonho e inversamente (Deleuze, 1988,
p. 352-353).
Tal espírito ao levantar questões, desafia-se concomitantemente a por em ação
funcional Corpo-Espírito-Mundo, via uma empiria de pensamentos serpenteados – que
não opera em linha reta – ativados pela manipulação e transmutação dos textos. Gera-
se assim uma nova potência de escrita; capaz de construir uma lógica imaginativa
permissiva para um fazer literário diverso e potente, ou seja, uma Ofis-Sofia. Abre-se
assim, com a literatura, um espaço superlativo de resistência e de desejo, que promove
através das escrileituras informes de cunho valéryano, o uso do conhecimento como
invenção; por meio de procedimentos tradutórios, para fazer vicejar possíveis ações
criadoras na educação.
Em suma, busca-se “o prazer do texto” (Barthes, 2006, p. 9), pois, “não é a ‘pessoa’
do outro que me é necessária, é o espaço: a possibilidade de uma dialética do desejo,
de uma imprevisão do desfrute: que os dados não estejam lançados, que haja jogo”.
Tal desfrute funciona como uma abertura, que possibilite ao espírito que lê e escreve
construir sua própria realidade na medida em que adentra o território da linguagem.
Promovendo um exercício empírico do espírito e um pensar exploratório variante, que
não possui regras fixas e rígidas, o que mataria o prazer do inusitado.

260
Sendo assim, sua variação espiritual busca a soberania de consciência, pois levanta
problemas que questionam o dado [o que já conhecemos], por ter ciência de que nada
está definitivamente formado, mas, em constante mutação. Onde o disparador é a
escrileitura, que é vista como um jogo excitante e que ao seu redor por via dos textos
colocados em cena, convoca o espírito a pensar e a questionar: O que somos? O que
sabemos? O que ignoramos? Para assim “atravessar a ortodoxia dos textos” (Corazza,
2014) e com eles passar a criar de modo próprio, uma escrita indomesticada, crítica e
vivificadora.
Nessa perspectiva, de fazer tradutório em educação, buscamos através do movimento
de escrileituras, exercitar conscientemente os pensamentos; que possibilitam ao espírito
transitar por diversas áreas de saber; levantando problemas, num exercício do intelecto
capaz de propiciar novas descobertas. Assim, os efeitos obtidos neste percorrido de
pesquisa até o momento, possibilitaram a criação de uma tese intitulada: A Educação da
Diferença com Paul Valéry: Método Espiritográfico (Campos, 2015), com proposta já
qualificada em 2015 e com defesa final prevista para 2017.

Serpensamento
O poeta-pensador emerge como alguém que só faz
quando não consegue deixar de fazer.
Campos, 1984, p. 68.
Posso então dizer que, Paul Valéry utiliza-se da palavra francesa esprit para aludir
ao Eu; embora haja, em seu pensamento, a distinção entre dois tipos de espírito: Moi que
seria o Eu empírico (self-variance) e Moi que seria o Eu puro (Idolle de l’Intelect), a ser
cultuado e buscado. Este último conceito de Eu puro necessita ser entendido com uma
significação peculiar, qual seja: o Eu como consciência de si, intelecto, inteligência. É
tarefa do espírito, aumentar os graus de sua racionalidade por via de uma consciência
e uma atenção na atividade intelectual, pois “a obra do espírito só existe como ato”
(Valéry, 2011, p. 201). Esta ação vale-se de uma heurística, “palavra moderna originada
do verbo grego euriokw: pesquisa ou arte de pesquisa” (Abbagnano, 1998, p. 499).
Deste modo o Eu é visto como um sujeito que não se assujeita, mas aspira e realiza
a criação, sem divindade reguladora, sem idealismo (Eu absoluto do Idealismo Alemão)
e distante da metafísica da alma imortal (Eu substancial do racionalismo de Descartes).
Portanto, o Eu puro valéryano não guarda uma moralidade, consistindo na invariabilidade,
naquilo que não muda no espírito. O espírito como um signo de pura possibilidade, de
uma virtualidade. Que se configura em um estado de espírito ao qual o Eu empírico

261
aspira e tende. O Eu, ao passar por uma ascese, encontra-se purificado de paixões, de
outros ídolos e idolatrias – liberto assim, para agir e pensar.
Espírito que é também um serpensamento e arrisca novos olhares diante da reali-
dade do mundo espetacular: “Uma forma de pensar circuloviciosa, um serpensamento,
a que não estão alheios os universos tautológicos de Mallarmé e de Joyce, do lance de
dados ao riocorrente, que retorna a si mesmo por um cômodo Vicus de recirculação...
PEN(T)SER.” (Campos, 1984 p. 23). Um espírito que quer dizer-se, e explora para tanto,
as potências da linguagem dentro de um processo de culto ao intelecto. Nesta recirculação
é possível observar também o funcionamento do espírito humano, bem como sua ação
fecunda de pensar, verificando o que estes pensamentos implicam.
Essas operações das faculdades intelectivas, repletas de afecções, permitem e
compõem o método do informe, como um mecanismo que exige um tipo de construção,
no qual o extra-ordinário é característica vital do processo. Este mecanismo é aberto, não
doutrinário permite ao espírito agir com maior liberdade; para assim fazer uma pesquisa
gaia (alegre) e prazerosa nos meandros da educação contemporânea.
Educação que passa pela linguagem e que diante do século XXI, com ventos
trazidos do novo milênio e de um mundo globalizado, a questão que se impõe é o
desafio de um ensinar na Diferença. Visto que, há toda uma gama diversa de visões e de
mudanças sociais, dos espaços, das relações e da própria identidade. Não havendo mais
uma identidade universal e verdadeira, a ser copiada. Então a educação trabalha com
as diferenças, com o desafio e com a responsabilidade ética de um educar na própria
diferença. Buscando dar adeus às metanarrativas, de ambição universal insistentes no
campo da educação e na sociedade.
Em todo este processo, são promovidos encontros imanentes, que fornecem
coordenadas para o pensamento crítico, que é experimentado num empirismo trans-
cendental no qual “a Ideia não é o elemento do saber, mas de um ‘aprender’ infinito”
(Deleuze, 2006, p. 310). Nesse tipo de empirismo, o que vale é o valor agregado ao
espírito, das forças que o pensamento se apossa. Forças que são capazes de produzir
novas imagens que atualizam o pensar, pela vontade de explorar. Valendo-se de
textos literários, os espíritos escrileitores, em movimentos de self-variance, passam a
acompanhar essas danças dramáticas e cômicas em meio à vida in-formada.
E neste percurso de estudo foi possível notar que o espírito ocupa três lugares
funcionais, em seu laboratório próprio, qual seja: EEE – o de Estudante (espírito em
curso tradutório de escrita); o de Escritor (espírito autor, tradutor e transcriador); e o de
Educador (espírito em exercício de tradução no exercício do magistério).
É esse atravessamento entre lugares que movimenta EIS (Currículo) e AICE
(Didática), os quais, pela via da tradução, são reimaginados. Vislumbramos de acordo

262
com Corazza ( 2013, p. 219) um fazer tradutório “para além do literalismo rudimentar
e da banalidade explicativa”, que dá nova vida ao educador-artista e cujas traduções
“poderão, por vezes, tornar-se mais importantes que os originais”, pois se configuram como
uma “estratégia de renovação dos sistemas educacionais e culturais contemporâneos”.

Escrileituras tradutórias
Escrever é traduzir, conforme afirma Valéry, na época em que traduzia as Bucólicas
de Virgílio (1944), destacado no livro de Haroldo de Campos (2013) Transcriação:

Escrever o que quer que seja, desde o momento em que o ato de escrever exige reflexão,
e não é uma inscrição maquinal e sem detenças de uma palavra interior toda espontânea,
é um trabalho de tradução exatamente comparável àquele que opera a transmutação de
um texto de uma língua em outra. (Valéry apud Campos, 2013, p. 61-62)

Obviamente, nesta estratégia que busca vitalizar tanto a didática como o currículo
tradutório, pressupõe-se uma concepção de um fazer mutante de escrita. Ação esta
avessa ao sedentarismo intelectual, porém, vista como um ato físico corporal, posto em
movimento, através de estudos e pesquisas, abrindo possibilidades para que o espírito
trabalhe e medite sobre a produção de uma obra, – de um espírito criador – numa
atitude interrogativa e que questiona como Valéry (2011, p. 200): O que a obra produz
em nós?
O que, fará com que o escrileitor que espiritografa assemelhe-se a um Robinson
Crusoé, personagem da obra de Daniel Defoe, o qual Valéry alude para considerar seu
próprio espírito como: “um miserável Robinson numa ilha de espírito e carne, rodeado
por todas as partes de ignorância, a fabricar generosamente seus utensílios e sua arte”
(Valéry apud Pimentel, 2008). E o que levará a questionamentos, que tenderão a
descobrir aberturas e é ali que se treina honestamente o espírito corsário e aventureiro,
para deste modo planejar a navegação em águas plurais, repleta de vestígios enigmáticos,
que fazem soar vozes, que emergem de um oceano de conhecimentos outros a serem
explorados. Para buscar configurar estados intelectivos raros, que incitam o Eu-empírico
e o autorizam a largar o cais sem garantias, para assim escrever sobre efeito de determi-
nada obra. Espírito este que devora textos como diz Miller (1974, p. 83), – o livro, que
é “[...] mastigado vivo, digerido e incorporado ao organismo como carne e sangue que,
por sua vez, criam novo espírito e remodelam o mundo”.
Tudo se passa, como uma navegação de escrita, um desafio ao intelecto, no uso
contínuo das condições-limite do pensar; uma jornada que não pode ser estabelecida

263
previamente, senão no próprio navegar que se dá entre: paixões, saberes e fazeres de
pesquisa. Para assim, tentar trazer à tona, à superfície do vivível, o ainda não visto e que
está a ser descoberto na obra na qual nos detemos. Para que possa surgir um novo sopro
mareado, que percorre a pele, capaz de seduzir e sibilar como uma pulsante serpente do
pensar.
Vale lembrar, que ainda no Projeto Escrileituras, tal questão tradutória já havia
sido posta em jogo, como um espaço empírico que foi ocupado pelas Oficinas de
Transcriação. Nesta ocasião, ministrei a Oficina espitográfica de co-criação dialógica,
propondo aos participantes, explorar a forma de escrita “diálogo”. Num exercício de
pensamento, conjunto com os textos de Valéry e outros escritos filosóficos e literários
que tratavam do tema.
Desta ação empírica, – também tradutória – foi possível obter um aporte teórico
e prático para composição da dissertação de mestrado: Alfabeto espiritográfico:
escrileituras em educação (Campos, 2013). E a partir dela a palavra espiritografia
começa a tomar força, nas pesquisas. Por um viés no qual o espírito entendido desde a
perspectiva valéryana, – através dos movimentos de escrileituras da pesquisa –, com o
artifício da literatura, movimenta uma malha intelectiva que possibilita a construção de
tipos de espiritografias.
Neste fazer epiritográfico, vamos ao mundo de um espírito e com ele escrevemos,
a partir de um estudo de vida e de obra ou de uma Vidarbo. Trata-se do interesse “por
Vida (Biografia) e por Obra (Bibliografia). Só que, em vez de Vida e Obra tomadas em
separado, ou uma derivada e mesmo causa da outra, trata de Vidarbo” (Corazza, 2010),
tomada conjuntamente.
Pensamos assim, que a Filosofia da Diferença pode servir-se das pesquisas sobre
vida e obra do poeta-pensador Paul Valéry, como um disparador de escrita, que busca
um novo modo de ver e de pensar o pensamento, no qual a linguagem, a verdade, a
consciência de si são inseparáveis e inter-relacionadas. Pensar que possibilita o alar-
gamento das fronteiras da linguagem educacional, e tenta romper concepções filosó-
ficas e científicas consideradas verdadeiras e incontestáveis.
Inter-relação, em que o espírito Estudante-Escritor-Educador (EEE) está sempre
se autoproduzindo, por via de uma self-variance (autovariação de si), num processo
contínuo de geração de sentidos imanentes, singulares e particulares; os quais reivindicam
novas possibilidades de invenção, de emissão de signos que se inscrevem para escriturar
sentidos, oriundos das sensações; em um exercício de pensamento constante, cujos
procedimentos implicam necessariamente o campo do vivido.
Pesquisamos, nesse processo variante, o ambiente humano, a vida, com seus dramas
e comédias no campo educacional; ou, ainda uma dracomédia humana, repleta de

264
potenciais vicissitudes, que servem como disparadores para uma invenção produtora
de escrita, texto-manifesto, exposto por via da linguagem e suas convenções.
Trata-se em realidade de uma grande clínica-vida de CEM (Corpo-Espírito-Mundo)
e que busca nova saúde pela via da criação, num eterno retorno espiritual, sempre outro,
aberto ao pensamento errante. Uma práxis de pesquisa, como ação de fazer uma educação
do espírito na Diferença, para colocar Valéry em conexão, em transbordamentos. E por
estes meios cambiantes relacionais, – de pensamentos serpenteados, – almeja remodelar
a visão ética do mundo e ir um pouco mais adiante dos que nos impõe o senso-comum e
a doxa obstaculizante, que pouco ou nada transmuta.
Essas perspectivas poéticas sobre escrita, leitura, currículo e didática propiciam,
ainda, no espaço da aula/oficina tornar emergentes os procedimentos interpretativos
das matérias curriculares. Pois, tais ações funcionam como meio de invenção, recriando
assim culturas e discursos, através de exercícios rigorosos, cômicos e dramáticos do
pensamento. Por intermédio de uma escrita tradutória, que subentende um fazer: “de
ataque e proteção; de vontade e decisão; de premeditação e retidão, feitas deliberadamente
para obter os resultados desejados” (Corazza, 2010, p. 5). Sendo assim, ocupa-se um
lugar, um espaço de ficção, em que a aula é planejada para que, de algum modo, funcione,
como um laboratório coletivo em que se examina e promove-se a educação do espírito.

Espiritografias com EIS AICE


A partir do desenvolvimento de algumas Oficinas de Transcriação, durante o
Projeto Escrileituras, continuamos estudando e pesquisando o pensamento de Valéry,
na direção de construir tipos de espiritografias, como uma prática que promove novos
movimentos que tomam as unidades analíticas de EIS AICE. Onde buscamos combinar
e correlacionar EIS com AICE (Espaços, Imagens e Signos a Autor, Infantil, Currículo,
Educador) e, nesse processo combinatório e correlacional, operacionalizar escrileituras
tradutórias, que se articulassem com a práxis do ensinar, escrever, orientar, pesquisar,
colocando esses verbos em foco por meio de um fazer espiritográfico. Tal procedimento
exploratório-experimental de pesquisa tem como intuito, criar meios para a produção
de ações de pensamento na pesquisa.
Através de um Método do Informe, utilizando o conhecimento como invenção, que
por via de transbordamentos de pesquisa, esses elementos possibilitaram criar um novo
método chamado espiritográfico – defendido na tese: A Educação da Diferença com
Paul Valéry: Método Espiritográfico (Campos, 2015) –, pelo qual foi possível a criação
de alguns tipos de espiritografias tradutórias, como: Plagiotrópica, Imagética, Mise en
Scène, Desviante, Extra-Ordinária, Jogada, Aula-Empírica.

265
Sendo assim, detalharemos um dos tipos de espiritografia, a Espiritografia
Plagiotrópica. Lembrando o que salienta o próprio Valéry (2011, p. 110), “eu sei apenas
o que sei fazer”, expomos então, os movimentos empíricos de escrita feitos para criar
essa espiritografia, através de movimentos de EIS AICE (Corazza, 2015), apresentados a
seguir, por meio de um resumo do seu Glossário:

EIS AICE

Espaços – que se habitam e Autor-Tradutor – escreve, lê,


produzem condições para novamente interpreta, aprende, compõe, apenas
serem habitados ao esvaziar-se na para desencadear devires.
constituição de novas margens que, a
sua vez, lhes doam novas instâncias Infantil – como força ativa e vontade
habitáveis. de potência afirmativa.

Imagens – ausentes que Currículo – cria a alegria afirmativa


presentificam presenças e Imagens de educar.
presentes que presentificam
ausências. Educador – exercita se interrogar
se tudo o que disse, até então, é tudo
Signos – são dotados das forças o que pode dizer; se tudo o que viu,
dos encontros, que podem exercer até agora, é, de fato, tudo o que pode
uma violência sobre o pensamento; ver; se tudo o que pensa é tudo o que
violência que implica na criação do pode pensar; se tudo o que sente é
pensar no próprio pensamento. tudo o que pode sentir; se tudo o que
traduziu é tudo que pode traduzir.

O texto inspirador para a produção dessa espiritografia é o livro de Gonçalo Tavares


(2011), intitulado O senhor Valéry e a lógica, tomado como um disparador, como um
meio potente para a produção de escrita. Esse meio textual produz um outro, para falar e
escrever sobre a Vidarbo (vida-obra) de Paul Valéry, criando-se assim um personagem:
O Monsieur Valéry.
Esse texto é produzido, por intermédio de escrileituras, que contemplam o ainda
não visto ou ainda não atribuído de valor para a criação do personagem, na medida em
que pesquisamos sobre a vida e a obra de Valéry; de modo a escrever sobre este

266
personagem peculiarmente. Personagem que guarda certa semelhança com Monsieur
Teste, pois “há, na sua linguagem, não sei que poder de fazer ver e entender o que
temos de mais oculto... E, contudo, suas palavras são humanas, nada além de humanas”
(Valéry, 1997).
Tal composição ocorre por intermédio de um olhar outro, que não o de Tavares, mas
do olhar do espírito escrileitor, que pesquisa vida e obra de outro espírito, no caso Valéry,
desejamos compor uma espiritografia com e sobre este personagem do pensamento.
O que pressupõe, ir ao mundo deste espírito do qual se escreve, observando como se
dá o seu pensar. Desta maneira foram produzidos quatro minicontos que seguem abaixo:
O Atum, O Ostinato, O Sonho e Sem Destino (Campos, 2015).

O Atum
MONSIEUR VALÉRY era pequenino, mas adorava nadar.
Ele explicava:
Sou igual a um atum, só que em tamanho menor.
Mas isto constitui para ele um problema.
Mais tarde, o monsieur Valéry pôs-se a pensar que os pescadores podiam confundi-
lo com um atum e pescá-lo. Sabia, por suas leituras, ser o Atum o mais antigo deus
criador do mundo Mediterrâneo e observou, em seu livro, a grande Serpente Atum, pai
de Enéade e Heliópolis. E tal pensamento o animou um pouco.
Dias depois, saiu para passear a beira-mar e desenhou serpentes na areia. E pensava
sobre a evolução das espécies e murmurava: “se o homem está situado ao final de um
longo esforço genético, também será preciso situar esta criatura fria, sem pata, sem
pelos, sem plumas, no início deste mesmo esforço”. E concluiu: Há algo de serpente no
homem, assim deve também haver em mim.
Monsieur Valéry costumava fazer cálculos enquanto caminhava e riscava atrás de
si com uma varinha uma linha e ia medindo. Caminhou, caminhou, de súbito olhou para
trás e viu a linha e pôs-se a imaginar a Serpente como uma linha viva. E pensava que a
linha é uma abstração encarnada, só enxergamos a sua parte próxima, manifesta. Mas
ele sabia que a linha seguia pelo invisível infinito, de um lado e de outro.

O Ostinato
MONSIEUR VALÉRY cresceu, assim como também cresceu sua curiosidade sobre
as serpentes, que seguia a rabiscar.
Monsieur Valéry ainda costumava nadar, porém agora com maior desenvoltura.
Jogava-se ao mar e nadava de costas, cachorrinho, borboleta...
Enquanto dava suas braçadas e mergulhos no mar sem fim, sentia-se acompanhado.

267
Então o monsieur Valéry pensava:
– Será Afrodite? Ou será Netuno?
E enquanto caminhava para casa após seus nados, volta e meia olhava para trás,
observando a linha pintalgada pelos pingos que escorriam de seu corpo.
Então Monsieur Valéry exclamava:
– Que bela geometria!
E logo se aborrecia.
Monsieur Valéry era um perfeccionista, e para se distrair durante o percurso de
volta para casa, ia compondo versos Ostinatos que o enterneciam e lhe traziam aromas
de um pensamento. Ele costumava declamá-los assim:
Fonte, minha fonte, água friamente presente,
Suave com os animais, com os humanos clemente,
Que tentados por si seguem ao fundo a morte,
Tudo te é sonho, Irmã impávida da Sorte!16

O Sonho
MONSIEUR VALÉRY costumava dormir cedo, pois dava grande importância
ao sono e aos sonhos. Aos amigos que lhe perguntava sobre os seus sonhos, ele expli-
cava:
– “Sonho, sonho, mas o sonho inteiro penetrado de simetrias, só ato e seqüência!...”.
Depois de explicar, então Monsieur Valéry foi dormir. Antes de pegar no sono,
costumava desenhar, e desenhou novamente uma serpente. E pensou:
– A serpente que desenho, no papel ou na terra, é uma Hierofania, um instante de
manifestação. E então, dormiu!
Monsieur Valéry era distraído. No dia seguinte, ao tentar levantar, assustou-se e
caiu no tapete ao lado de sua cama. Sentiu um cheiro de maresia no ar, mexeu-se e viu
que dele mesmo caíam escamas e havia certa dificuldade para respirar. Esbugalhou os
olhos enormes que se refletiam em um espelho do quarto. E abismado pensou:
– Atum!
E desmaiou.

Sem Destino
E os dois se colam como fossem cera
quente, que as formas perca e as cores borre:
nem um nem o outro já exibia o que era:17

16
Do poema Fragmentos de Narciso e outros poemas (Valéry, 2013, p. 61).
17
Trecho Canto XXV (61) de Dante Alighieri: A Divina Comédia – Inferno (Alighieri, 1998, p. 171), tradução nossa.

268
MONSIEUR VALÉRY acorda de súbito, verificando o que era neste exato instante e
o que havia sido no passado.
Monsieur Valéry então pensava, mareado:
– Se conseguir sobreviver, conhecerei um terceiro Eu.
E nessa altura, com um ar vago de atum, dava impulso com suas barbatanas em
direção à janela aberta. E exclamava:
– O passado tem um Monsieur Valéry, o presente sou Eu-Atum, e o futuro terá um
Outro Eu. Pelos meus cálculos, sou três Eus, no mínimo!
O Eu-Atum, com seus olhos de vidro translúcidos, calcula a força e o impulso exato
e necessário para saltar pela janela. O tapete do quarto está coberto de escamas de seu
presente-passado. E arrisca o salto!
– ... então ... – Cá estou, manifesto como a dinâmica do círculo-Uróboro, corrente
das horas serpenteadas de plumas, apenas sendo o que permanece, espírito da alma
primeira de todas as águas, as que correm debaixo ou na superfície da terra e as que
vêm de cima. Podem me chamar também de Ofis ou Draco, pois o destino, isso é que
desconheço o que seja. E voou como um dragão alado por sobre rios e mares em direção
ao Extremo Oriente.

Importa salientar que não há um plágio, porque não é cópia ou mera reprodução
textual, mas de uma plagiotropia, no sentido de Haroldo de Campos (1997, p. 249),
qual seja: uma “apropriação seletiva, não histórica, para utilidade imediata de um fazer
poético, situado na ‘agoridade’, o momento de ruptura em que determinado presente (o
nosso) se reinventa ao se reconhecer na eleição de um determinado passado”.
Em outras palavras, estabelecemos um diálogo entre os espíritos de Valéry, de
Tavares e de um escrileitor que quer compor uma espiritografia. O espírito que escreve,
lê, repensa e mastiga o que chega dos textos de Tavares e de Valéry. Essa relação
estabelecida entre os espíritos que lêem e escrevem adquire potência pelas afecções de
forças, oriundas da ação de leitura-escrita e gera novas relações com os textos, que são,
então, renovados e reinventados, pelo método espiritográfico.
O EIS AICE do Currículo e da Didática com suas unidades analíticas é posto,
como bloco, em movimento, através de um nomadismo intelectual, que opera como
conhecimento e como invenção, no território da educação de uma maneira espiritográfica
valéryana. Podemos descrever da seguinte maneira os movimentos tradutórios que
ocorrem nessas unidades analíticas de EIS AICE:
EIS
Espaços – são criados entre e com Tavares e Valéry, espaços de escrita, novas
margens que o espírito escrileitor passa a habitar.

269
Imagem – ausentes de Tavares e Valéry, que se presentificam na agoridade com
novas imagens de pensamentos criadas; “reinventa ao se reconhecer na eleição de um
determinado passado” (Campos, 1997, p. 249) e funciona como disparador, um rastro
de escrita.
Signos – encontro de forças, de um espírito que escreve em Self-variance, com
Valéry e com Tavares. E desta violência levantam-se problemas e com eles se cria,
pois criação pressupõe pensar no próprio pensamento e como eles se dão entre leitura e
escrita.

AICE
Autor-tradutor – ler e escrever na educação, como operação literária, valer-se da
literatura, que desencadeia movimentos de: pensar, interpretar, aprender, compor, devires
tradutório.
Infantil – do infante, da criança que descobre, pois tem a força ativa, ativada por
uma vontade de potência que quer afirmar-se com alegria.
Currículo – Alegria que transborda, pois se afirma novos meios de educar, que não
o “eu professo/tu escutas”, pois, na teimosia que nos impele a educar é necessário ir
além da mera reprodução de textos.
Educador – EEE (estudante, escritor, educador), três papéis intercambiáveis, propício
a interrogar-se, levantar questões, na busca de novos olhares, “vãos” sobre o ainda não
visto que possibilita novas composições de escrita.
Ao pensar sobre o processo de pesquisa, exposto no presente artigo, sinalizamos
a relevância do pensamento Paul Valéry e de sua apropriação efetiva no campo da
educação, por considerar que os seus procedimentos de escrita concedem ao espírito que
busca se educar agir com maior lucidez de pensamento; ou seja, cultivar o Eu-empírico
que lê e escreve importando-se mais com o meio de ocorrência textual do que com um
fim ou com uma meta.
Tratamos, em síntese, de um fazer conjunto com Paul Valéry, através dos seguintes
aportes: a) o Método do Informe, utilizado como processo experimental para falar, ler
e escrever sobre a educação com Valéry; b) através de uma Self-variance do espírito,
colocar-se em movimento funcional construcionista, onde autoeduca-se no entre-lugar
variante de EEE. c) a escrileitura conceitualizada como um campo aberto à formação e
ao fazer docente, que mescla linguagem e conhecimento.
A vidarbo de Valéry engendra, na didática e no currículo, uma vontade de expressão,
unida às sensações, experimentadas no vivível, em novos traçados compositivos de
escrita. Para pensar e operar uma didática (AICE) e um currículo (EIS), tradutórios, o
estudo também aponta que a pesquisa é mutante e aberta a novas interferências, visto

270
que o Método do Informe transmuta-se no próprio percurso investigativo em um Mé-
todo Espiritográfico. E pelo o que podemos observar acerca dos resultados e impactos
das produções oriundas das três pesquisas, anteriormente citadas, que pesquisam
e produzem um currículo e uma didática da diferença, eles vêm proporcionando en-
contros produtivos, que e ampliam e qualificam as pesquisas educacionais.

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Texto aceito para publicação em Caderno de Notas 10, integrante da Coleção Escrileituras,
organizado por Carla Gonçalves Rodrigues – UFPel e Silas Borges Monteiro – UFMT. (No
prelo, 2017)

273
PESQUISA EMPÍRICA-TRANSCENDENTAL
DA DIFERENÇA: ARQUIVO, ESCRILEITURA
E TRADUÇÃO DE DADOS

Sandra Mara Corazza

Como intérpretes e críticos da herança humana, somos atravessados pelo para-


doxo de ser pesquisadores que são também tradutores, continuando a ser professores;
além de movimentar matérias que, ao ser atualizadas, são renovadas; mas têm de
continuar sendo matérias criadas por outros, em outros tempos, espaços, problemáticas.
Esses dilemas povoam os atos de criação daqueles que educam; pois, se, por um
lado, a tradução deve prosseguir ligada à matéria-fonte e, assim manter, em algum
grau, a sua equivalência de código; para que esta matéria seja revitalizada, a tradução
tem de transcriá-la, porque não pode não fazê-lo.
Nessa instância paradoxal, como realizar uma pesquisa, desde a filosofia da
diferença, com uma embocadura de ordem empírica, sem tratá-la de maneira formal?
Como operar com matérias – tomando-as como dados, embora amorfos –, que
tenham sido produzidas, para então serem reunidas em um arquivo? E, a partir desse
arquivo – conceitualizado como suporte gerativo de pensamento, por meio da tradução
transcriadora de escritas-leituras (escrileituras) –, produzir autoconhecimento e sabedoria
de vida, sem quantificação paradigmática ou modelo totalitário de racionalidade?
Para começar, os dados deixam de ser a laicização feita pela ciência positivista da
doutrina religiosa da Graça; enquanto o arquivo escuta mais o avesso e espera o sentido

274
do que induz e armazena. Nesse empirismo renovado, não gnosiológico, mas transcen-
dental (no sentido deleuziano), pesquisar-educar é a experimentação de um trabalho
intelectual, traçado pelo diagrama de forças das escrileituras tradutórias e formalizado
em arquivos transdisciplinares, transculturais, translinguísticos, transemióticos, trans-
pensamentais.

Ler e escrever
Não é fácil ler nem escrever. Difícil é ler e escrever traduzindo o que outros dis-
seram, escreveram, gestualizaram, encenaram, e considerá-los dados (a partir daqui,
deixamos de grafar esta palavra em itálico) de uma pesquisa, que acabam condensados
naquilo que chamamos resultados; os quais costumam ser fornecidos por aqueles
mesmos dados, que resultam das leituras e escritas tradutórias que deles fizemos como
pesquisadores.
Em que medida a pesquisa nas Humanidades, em especial na área da Educação,
pode se fiar em um fluxo não representativo, não figurativo e não significativo? Haverá
aí uma marcha disruptiva, diferentemente daquela progressiva verificada nas Ciências
Exatas? Temos condições de mudar a chave representacional de nossas pesquisas para
vibrações, intensidades, sensações ou suplementações, em línguas das quais nunca
nos apropriaremos, por serem línguas não repressivas como formas, configurações
sociais ou regimes institucionais? Como lemos e escrevemos, traduzindo livros, textos,
depoimentos, relatórios, projetos, e lhes atribuímos verdades e certezas, confirmando-os,
como sendo os dados de uma pesquisa?
Consideramos que a noção de dado consiste em uma duradoura (e esperta) laici-
zação, feita pela ciência positivista, da doutrina religiosa da Graça; laicização de um
Dado-Graça, que seria colhido pelos sentidos, pela reta razão ou pelo bom senso.
Em nossas pesquisas, tampouco consideramos dado como uma construção, ao modo
kantiano; mas, ao lado de Bachelard (2008a), o consideramos como invenção, baseada
na imaginação criadora e sempre voltada para o futuro, para uma ideia elevada, para o
por vir, que está além do pensado, sentido e percebido (Corazza, 2016a).
O dado, assim concebido, resulta de uma herança e de uma dívida contraídas, pois
não é possível que ele apareça a não ser daí; e é flagrado porque integra um arquivo
(Aquino, 2016; Corazza, 2016b; Deleuze, 1991; 2013; Derrida, 2011; Foucault, 1972);
o qual é traduzido, pois não pode não sê-lo. Logo, o dado (substantivo) não pode ser
nem apreendido, nem compreendido, nem dado (verbo), se não for recriado, desvirtuado,
para ser transformado em ideias, no registro da ilusão de estarmos sendo fiéis àquilo
que foi dado pela realidade da pesquisa e por ela mesma construída como realidade.

275
Poderíamos, talvez, falar em uma espécie de Dadoísmo, no sentido que pensar é
jogar, do tipo: diga-me com quais dados trabalhas que poderemos conversar. Nesse
nosso jogo dadoísta, são as bordas da individuação e os planos de vida (no sentido
geométrico) que traçam um diagrama supersensível de forças, formalizado em um ar-
quivo transaudiovisual: arquivo que não é gnosiológico, mas tradutório, e que decorre
de uma aproximação-afastamento dos dados, que não se fixa, tal como a “distância
amativa” de Jankélévitch (apud Dosse, 2010, p. 17).
Preferimos, como se vê, tomar os dados como fluxos, ao modo de Deleuze (2006,
p. 18), em sua primeira aula (15/04/1980) do Curso sobre Leibniz:
O que está dado, em última instância, poderia sempre chamar-se um fluxo. Os fluxos
estão dados, enquanto a criação consiste em recortar, organizar, conectar fluxos; de
tal maneira que se desenhe ou se faça uma criação em torno de certas singularidades
deles extraídas.

Dados-fluxos que uma pesquisa da diferença deixaria, primeiramente, escorrer e,


sobre eles, iria retroagindo, rebatendo-os, para que ondas não a engulam ou construam
um mar de realidade sossegada. Dados de uma pesquisa da experimentação, que resultam
da consciência dos pesquisadores sobre o seu caráter inventivo e criador, obtido por
meio de um método como trabalho tradutório de pensamento e de escritas-leituras
(escrileituras) (Corazza, 2016b).
Em outras palavras, ler, escrever e traduzir, em uma pesquisa do acontecimento
(Tadeu; Corazza; Zordan, 2004), não seria mais perguntar quem disse ou que quis dizer,
qual a significação (oculta ou explícita) daquilo que foi dito ou daquele conceito; mas
seria um compósito de experimentações de pensar, escrever e ler. A questão é que aquele
que lê e traduz e aquilo que é lido e traduzido nada são até que, daí, uma nova matéria
seja composta, bloqueada, inflexionada, cortada, acrescentada; em suma, até que seja
posta em funcionamento uma máquina de escrileituras, dotada de funcionamento efetivo
para pensar o pensamento, que é sempre crítico e coletivo, feito em grupos e grupúsculos,
relações e existências. Máquina erosiva, portanto.
Agora, como ler esses dados? Por vezes, o pesquisador não entende nada ou então
aquilo – reunião, entrevista, diálogo, declaração, depoimento, manifesto, ensaio, prólogo,
anotações – não é para ser entendido; bem como um dado de pesquisa talvez não exista
para ser comunicado; mas, antes, para afetar subjetivamente durante o obrar transcriador
de leitura, escritura e tradução da pesquisa. O problema talvez seja este: que o sentido
do dado escape sempre, desde que não conseguimos conectar um som, uma palavra ou
uma imagem a seu significado, ficando, em seu lugar, o não-figurativo, o não-nomeado,
o não-lugar, o extra-ser (Deleuze, 1998).

276
Logo, cada vez que o pesquisador publica os resultados de suas pesquisas,
comprovados, empiricamente, pelos dados obtidos e analisados ou tratados; cada vez
que os solidifica, em relatórios, artigos, notas de aula, isso soa à falsidade. Por esse
motivo, o pesquisador volta a fluidificar esses dados outra vez; o que, todavia, não
lhe garante a verdade absoluta da sua pesquisa. No primeiro caso, quando publica os
resultados, o pesquisador estanca o movimento; no segundo, aparenta a sua estagnação;
desde que se mover, na pesquisa, não é saltar de uma à outra; mas, em cada movimento,
construir pontos fixos, para, justamente, poder saltar. A nossa questão, como
pesquisadores, é o que produzimos na multiplicidade de dados das nossas pesquisas
e como isso que produzimos funciona.
Quando se trata da produção de dados, estamos afirmando práticas de expe-
rimentação no terreno da produção tradutória de escrileituras. Escrileituras que são
sempre duplas, desde que traduzem uma matéria e seu funcionamento; ao mesmo
tempo em que experimentam o próprio método tradutório dessa matéria. De maneira
que o pesquisador indaga: o que acontece aqui? E esta é a única pergunta suportada
por qualquer funcionamento experimentador; pois, nela, não há lugar para alguma
realização prodigiosa ou salvamentos visionários, mas algo da ordem do acaso (o que
é um paradoxo) e das possibilidades. Funcionamento que, por ter uma natureza mais
virtual do que atual, age para além do pesquisador que experimenta, da própria ma-
téria que é trabalhada e dos dados que são colhidos.
Assim, perguntar o que acontece aqui? coloca para andar o vazio de uma
indeterminação, que será definida, classificada, valorada, descrita, sumariada, resenhada,
declarada, manifesta, somente após essa pergunta. A pesquisa efetiva, portanto, é
posterior à experimentação e é ela que registra, em nome dos dados do que aconteceu,
o seu sentido (Deleuze, 1998). Em escritas e leituras tradutórias, é o sentido desses
dados que se submete à experimentação, e não o contrário. Em decorrência, é preciso
cuidar para que não digamos e escrevamos sempre o mesmo sentido, em nossas diversas
pesquisas; isto é, que lutemos para fazer valer diversos tipos de sensibilidade, de modo
a captar vários dados, enquanto sentidos-acontecimentos.

Exercício de estilo
Ora, em qualquer pesquisa, a leitura é um dos pilares do denominado tratamento
empírico dos dados: ler algo, aprender a ler algo – que pode estar disposto como ano-
tação, registro de gestos, filme –, resultante de observações, entrevistas, estudos.
Como um pesquisador lê? Como aprende a ler o que concerne a sua pesquisa? Parado
na terra, ao pé do fogo, girando sem corpo no ar, pulando na água, fazendo piruetas

277
com as imagens, levantando a cabeça para as nuvens, revirando as ideias? Como o
pesquisador lê aquilo que passa a tomar como dado, em sua seriedade de dado, como
recebido de alguma fonte externa, como uma resposta da realidade; e que, por isso, lhe
outorga o direito de inclui-lo na cena dos saberes, via contagem, análise ou interpretação?
Parece-nos que aprender a ler aquilo que resulta de diversas ações de pesquisa,
pensadas como coleta de dados; e, então, dar a estes dados (coletados) o direito a
tratamento ou elaboração (de dados), por meio da escrita e da leitura, consiste em realizar
uma tradução desses mesmos dados, que nada mais é do que um exercício de estilo
(Deleuze, 2003); o qual, de fato, funciona “para submeter a língua a um processo de
variação contínua com vistas a transformar quem escreve e quem lê” (Tadeu; Corazza;
Zordan, 2004, p. 170).
Exercício de estilo, que encaminha o pesquisador lidar com equívocos, incompletudes
e enigmas, oferecendo-lhe uma saída: sua transformação em dados resultantes de
pesquisa. Saída que não se dá na direção de adequação, eliminação de pontos obscuros
ou decifração; mas que, ao contrário, os aproveita e trata como acontecimentos, que
constituem, justamente, o domínio informe (Corazza, 2013), por onde a pesquisa passa e
opera. Isto é, faz de tudo aquilo que é tomado como dado um texto ilegível, impossível de
ser lido, que não é para ser lido. Sendo assim, como é que o lemos e aprendemos a lê-lo?
Ocorre que somente existe leitura (criadora) quando há uma destinação, um apelo
a pensar, produzido com as matérias irradiadas pela obra. Todo pensamento é, dessa
maneira, leitura, escritura e tradução; pois, se há uma obra anterior, que nos é destinada,
nem por isso a sua leitura deixa de levar à ruptura e de fazê-la entrar em uma outra história.
História que será armada por meio da escritura e que desembocará na tradução de uma
nova obra. Como afirma Juranville (1987, p. 394): “Só podemos ler o destino produzindo
uma nova obra, inventando. [...] Na qual a verdade da obra original é apreendida, mas
necessariamente transformada em verdade parcial”.
Aquilo que a obra oferece às nossas leituras e escrituras, que são tradutórias e
transcriadoras, não é um significado consistente, um sentido determinado, um mundo
compreensível, mas uma abertura estilística que ultrapassa tudo isso e, inclusive, a
própria obra. Como diz Blanchot (apud Juranville, 1987, p. 395) sobre aquilo que aí se
estabelece:
entre o livro que ali está e a obra que nunca está ali de antemão, entre o livro, que é a
obra dissimulada, e a obra, que só pode afirmar-se na espessura presentificada dessa
dissimulação, uma ruptura violenta, a passagem do mundo onde tudo tem mais ou
menos um sentido, onde há obscuridade e clareza, a um espaço onde, falando com
propriedade, nada tem sentido ainda, mas para o qual tudo o que tem sentido remonta
como que em direção a sua origem.

278
Quando o pesquisador escreve e lê os dados (coletados) em sua pesquisa, trans-
forma a relação com a obra (dos outros e a sua própria) em uma relação de não
reciprocidade, de pura diferença, constitutiva. Relação reexperimentada a cada leitura e
escritura, em direção à ex-sistência dos originais, que estão sendo lidos e reescritos. De
modo que os dados, os autores e as obras, que ainda estão por ler e escrever, tomam parte
daqueles que já foram lidos e escritos, sendo-lhes irredutíveis; condição que ampara a sua
sobrevida e mantém acesa a nossa consistência de autores que realizam experimentações.
Por isso, o trabalho tradutório de escrita-leitura dos dados de uma pesquisa abre
passagem para mais além dos seus próprios limites. As fantasias (Barthes, 2005) autorais
de ler, escrever e traduzir são as molas propulsoras do ato de pensar do pesquisador,
que não reconstitui sentidos já atribuídos; nem se apega ao nome do autor ou da obra
(supostamente acabados); tampouco reflete a gravidade e o peso dos dados; mas des-
taca as aberturas, impessoais e violentas, para as suas ex-sistências. Tanto o autor e a
obra, como os dados, são sempre parciais e provisórios, no contexto de uma nova
pesquisa, que surge, quando escrevemos, traduzindo o que lemos; e quando lemos,
traduzindo outra vez aquilo que escrevemos. É assim, diz Juranville (1987, p. 399),
que “a invenção se propaga e toda teoria se reorganiza”.

Fantasia de novidade
Agora, como compreender que aquilo que é dito ou escrito, pelo pesquisador, não
diz ou não escreve o que é dito e escrito; enquanto aquilo que é dito ou escrito possa dizer
ou escrever outra coisa diferente? Afinal, ambicionamos uma competência de leitura,
afirma Bachelard (2008b, p. 4), desde que:
não passamos de um leitor, ledor. E passamos horas, dias, a ler em lenta leitura os
livros linha por linha, resistindo o mais que podemos à sedução das histórias (isto é, à
parte claramente consciente dos livros) para estarmos bem certos de habitar as imagens
novas, as imagens que renovam os arquétipos inconscientes.

Essa posição de resistência in-consciente de ledor implica-se na necessidade que os


dados sejam tomados como uma novidade em si mesmos, mediante o signo da potência
criadora da imaginação que lê; e, logo, incompreensíveis, de modo que necessitamos de
alguma fantasia para tentar compreendê-los. Porque a “leitura é um envolvimento, um
resgaste das condições da emergência do novo” (Dinarte; Corazza, 2016, p. 143), essa
fantasia remete ao seu diferencial de novidade; por meio do qual sejam efetivamente
considerados e acreditados como dados da pesquisa; isto é, como a nossa tentativa de
dar forma a eles, seja épica, trágica, dramática, cômica, filosófica, científica, artistadora.

279
Vemos, muitas vezes, como um impossível tornado possível, apresentando-se como
resultado de pesquisa, acaba por eliminar o silêncio, a intradutibilidade, o equívoco
contingencial dos dados; como se o pesquisador e a pesquisa decifrassem o enigma que
já neles estava contido. O paradoxal de uma pesquisa da diferença reside, precisamente,
em que, por ser puro trabalho do pensamento e de escrileituras sobre coisas, textos,
fenômenos, os seus resultados, após coleta, análise e tratamento ou elaboração dos dados,
nunca deixam de estar cobertos de equívocos, ambivalências e alteridade, em contraste
com a sua reprodução.
Por essa via de produção, cuja única saída é a própria entrada na pesquisa, outros
enigmas e problemas são dispostos, fisgando o pesquisador, em sua curiosidade e
coragem, sem, no entanto, dar-lhe qualquer garantia de arrimo. Ele não tem como escapar
da pesquisa, a não ser inventar, criar e experimentar alguma espécie de verdade, a partir
de traços mínimos, de fragmentos caóticos, de fiapos de realidade, que ele considera os
dados e resultados da sua pesquisa.
Se a leitura dos dados vividos ou vivenciados é impossível, no sentido de que esse
tipo de escrito não é para ser lido, o valor mesmo daquilo que o pesquisador lê e escreve é
inestimável, em termos das ressonâncias de suas traduções; cuja recorrência movimenta
os saberes, o mundo da pesquisa e a prática docente. Só que, como toda literatura, essas
traduções necessitam surpreender, ter o seu diferencial de novidade, desde que expressam
matérias que não serão imaginadas mais de uma vez. Nessa condição de singularidade
dos resultados, o pesquisador reanima uma realidade, por meio da criação de novos
dados, mediante um tipo de pesquisa, que não é mecânica, derivada ou secundária, mas
que transcria ao traduzir, como suplemento – significação substitutiva que se junta aos
originais e os transformam (Derrida, 2002).
Logo, tratados literária, teatral, poética ou pedagogicamente, são os tais dados
que acabam por fornecer ao pesquisador a experiência de criação de linguagem e de
pensamento, de desconstrução de várias línguas, textos, obras, lançando o seu espírito
em várias direções, agrupando elementos diversos, realizando sobreposições de sentidos.
Dessa forma, os dados – que não são dados, mas criados, inventados, produzidos – têm
uma vida autônoma, não sendo uma imaginação de segunda posição, advinda da reali-
dade registrada pela percepção.

Ocos e quedas
É inegável que, com tudo que lemos, escrevemos e traduzimos numa pesquisa,
realizamos movimentos de nominação, divisão, organização, classificação, ordenação.
Entretanto, os efeitos desses movimentos nos escorrem, são insuficientes, possuem

280
dificuldades intransponíveis, levando-nos a fracassar narrativamente. Por isso, ao
tomarmos algo como dado parece ser mais produtivo, desde a partida, senti-lo como
aquela matéria que deixa correr a vibração, gotejar a sensação e chover afecções.
Em função disso é que, como pesquisadores, temos de suportar ocos e quedas, pois
são eles que nos fazem prosseguir pesquisando. Se o pesquisador atende e responde a
todos os chamados – O que faço? O que quero? Quem eu sou? O que acontece em minha
profissão? –, em vez de um pesquisador, não será ele um pastor? Como diz Nietzsche
(1986), é necessário que o pesquisador tenha orelhas pequenas para não escutar aquilo
que encontra formas e sentidos cedo demais, mortos ou respondentes demais (Corazza,
2008).
Tem mais valor, numa pesquisa, indagar sobre a experiência de escrileituras
tradutórias dos dados e ir, assim, trabalhando para obter um método de criação da própria
pesquisa. Ao cortar as leituras e anexar delas algo ao nosso pensar, através da escritura,
seguimos até o próximo corte e anexação, feitos de variações na vontade e no ato de
pesquisar. Para traduzir os dados é preciso deles ser leitor; só que lê-los implica nos
ocupar, por muito tempo (às vezes, durante uma vida inteira), e em diferentes momentos,
de uma mesma matéria, mediante um compromisso com a sua escritura. Ler e escrever
acerca de uma matéria demanda conhecer suas várias traduções, em termos de conceitos,
tematizações, perspectivas e inflexões; mesmo que algumas dessas traduções e matérias
já tenham perdido o frescor de sua pertinência ou o seu caráter de novidade epistêmica,
atribuídos no momento em que foram criadas.

Sincronia e eficácia
A pesquisa do acontecimento é uma forma eficaz de recolocar o pesquisador em
um “agenciamento maquínico” e, ao mesmo tempo, em um “agenciamento coletivo de
enunciação”, no sentido de Deleuze e Guattari (1997, p. 219). Agenciamentos, que nos
colocam em um domínio de dados que são elididos, enquanto sujeitos aos efeitos de um
dito, de um feito, de um escrito. Dados que voltam a se articular no ato de produzir um
conhecimento tradutório, que rompe o campo (pretensamente estático) da linguagem e
de seu aparelho lógico ou de submissão a uma cientificidade dogmática. Dados que são
atravessados pelo sentido, criado por novas palavras e pela emergência de outros dizeres,
fazeres e escrituras, que podem, inclusive, desdizer e desfazer o já dito, o já feito, o já
escrito.
Dessa maneira, as contingências e os acidentes dos dados, produzidos pela linguagem
da pesquisa, fazem emergir outros dados, que permitem a ocorrência de um tipo de
sincronicidade, onde o pesquisador e a verdade da sua pesquisa são o produzido e o

281
próprio produtor. Sincronia que se transversaliza nos cruzamentos com uma diacronia,
onde o pesquisador surge como um sujeito-forma, que não suporta o impossível real; e
que, por isso, se põe, concreta e materialmente, a pesquisar.
A pesquisa, então, pode ser pensada como pré-ontológica, enquanto os batimentos
temporais e espaciais dos seus dados produzem uma ontologia. Aí, a empiria alia-se
ao transcendental, não no sentido ordinário, mas como Deleuze (1988, p. 378) entende
transcendental, ou seja: capaz de “apreender a intensidade, independentemente do extenso
ou antes da qualidade”, nos quais ela se desenvolve; tal como a “obra de arte abandona
o domínio da representação para tornar-se ‘experiência’, empirismo transcendental ou
ciência do sensível” (Deleuze, 1988, p. 107).
Transcendentalidade em ato de uma pesquisa, que trata dos dados reais do mundo
e das existências, de maneira tradutória, para que, do deserto das existências empíricas,
brotem ex-sistências paradoxais (Deleuze, 1998), sempre equívocas, que colocam
os pesquisadores e os seus grupos, bandos, coletivos, diante da verdade das próprias
pesquisas, pela ética transcriadora que elas veiculam.
A experimentação de escrileituras tradutórias é, assim, um apelo aos pesquisadores
para que a imposição de determinado real, na linguagem transcendental, trabalhe para
que um resultado apareça – inclusive, na sua formalização –, como efeito e produto de um
trabalho de pensamento, que opera no discurso, cortando-o para que as palavras tenham
a sua eficácia. Trata-se, aqui, de jogos de posição, disposição, composição, montagem,
interpretação, dramatização dos dados, que contam uma história de exercícios de escrita
e de leitura, formada sob e sobre outras histórias, feitas em bordas de conceitos, de
perceptos e de afectos (Deleuze; Guattari, 1992). Jogos que produzem, como resultados
de pesquisa, algo que não possui identidade com os dados empíricos, nem com as suas
vivências, mas que carregam a possibilidade de efetividade e concreção.

Empirismo transcendental
Pesquisar, de modo empírico-transcendental é, assim, uma questão de produção
maquínica, uma invasão dos signos, uma operação escandalosa de enunciados, um
conjunto absurdo de vibrações. Há, aqui, o fundamento de um empirismo superior
(como Deleuze o chama), mas também renovado, no sentido de Bachelard (2008a), para
o qual, a imaginação é o que fica subjacente à razão sonhada. Pesquisar, devaneando,
não é inovar os dados nem a sua coleta, mas exercitar variações de sentido, que podem
ser moleculares, justapostas, separadas por cadências. Variações que, muitas vezes,
conduzem o pesquisador a dizer o mesmo, mas não tanto; porque, inclusive, o próprio
sentido morde a sua língua.

282
Não sendo uma enteléquia transparente nem transcendente, mas a realização de
um conjunto de operações tradutórias, que precisamos conhecer e com elas trabalhar,
o ponto de partida dessa pesquisa é a experimentação não-repressiva com as matérias-
dados do arquivo. Arquivo que é conservador e revolucionário, formação histórica e
devir, tradição e tradução luciferina. E que, portanto, carrega a possibilidade de
experimentar o pensamento do impensável; isto é, o advento de uma alteridade radical
daquilo que nele está presente e que nos constitui, por ser, em alguma medida, produzido
historicamente e também recalcado.
Existe, nessa pesquisa, uma necessidade imperativa de traduzir as matérias-dados
do arquivo para evitar uma língua única, axiomas teóricos ou críticos dogmáticos e a
servidão aos textos ou ideias alheios. Traduzir implica ler, entender, discutir e reescrever
os dados como nossos, o que talvez seja a única maneira “de assumir a aventura da relação
entre línguas e situações. É só se colocando em face do intraduzível que o discurso
teórico pode encontrar-se diante daquilo que o questiona, de certa forma”; de maneira
que “é só ao traduzir que se tem alguma chance de ler” (Ferreira; Ottoni, 2006, p. 11).
Operar tradutoriamente com o par empírico-transcendental não abarca ódio à
concepção que a realidade não é analisável nem uma apologia da observação direta,
no sentido da ciência que afirma ser necessário “ver para compreender”, diz Bachelard
(2008a, p. 12), como “ideal dessa estranha pedagogia” dos “decretos ministeriais: pese,
meça, conte; desconfie do abstrato, da regra; dirija a mente dos jovens para o concreto,
para o fato”; e “azar se, assim, o pensamento vai do fenômeno mal observado à experiência
malfeita”. Ao contrário, pesquisar o sentido-acontecimento, é trazer à tona a destinação
das palavras e das ideias arquivadas com o ouvido interno (Derrida, 2005), recheado de
entrecruzamentos, expressões contraditórias, desvios abruptos, sintaxes aproximativas,
substituições paradoxais, segredos e mistérios.
Quando o pesquisador pensa nas relações entre leitura, escritura, tradução, des-
construção do arquivo e a vida, cai, de cheio, em um torvelinho intelectual, onde toda
estrutura é posta em variação. Ora, não há adequação entre verba e res; de modo que
os dados não se encontram a sua disposição, contidos em si mesmos, nem oferecidos
a sua grelha conceitual; assim como não toma a linguagem como um instrumento dócil
e transparente do mundo; tampouco considera-se um sujeito totalmente individuado,
mas uma entidade em constante movimento e crise.
O que ocorre se esse pesquisador empírico-transcendental substitui operações ou
conceitos do arquivo por outros? Se tabula – entabula, dispõe, prepara, entabua, estabelece,
firma, combina, principia, acerta, compõe, apalavra, avança, concorda, convenciona,
terça, negocia, liga, tabela, mapeia o que tem forma de tábua – os dados que coleta
do arquivo, mais ou menos estatística ou literariamente, positiva ou negativamente,

283
figurativa ou não-figurativamente? Como a pesquisa desconstrói o visível e o dizível
(Deleuze, 1991) do arquivo? Quando ocorre o punctum escrileitural que une objeto,
linguagem e o sujeito que pesquisa?
Ao ler e escrever os dados-matérias, realizando anexações não lineares, que blo-
queiam a recondução circular e paralela, embora autônoma, à origem, o pesquisador
traduz a sua dispersão e o seu diferimento, ferindo-os, performando-os e, neles, ins-
crevendo a sua marca. Ele realiza uma encenação de arquivo, implicando a dizibilidade
na visibilidade; fazendo operações de serialização enunciativa; cortando pequenas
unidades que atuam por meios diferenciais, como parágrafos, seções, capítulos, temas,
épocas, conceitos, momentos, gêneros, tipos; alinhando séries por vizinhança heteróclita;
em outra palavra, ele dobra os dados até que toquem o seu ponto de partida e ali se
rebatam para então recomeçarem a sua potência de criação, outra e outra vez. Como se
fosse uma conversa entre loucuras.

Arquivo-máquina
O arquivo desse tipo de pesquisa do acontecimento-sentido (Corazza, 2004) pode
ser entendido como uma máquina abstrata, no sentido de Deleuze e Guattari (1997;
2010), qual seja: nem real, nem fictício, mas problemático; que opera em agenciamentos
concretos, descodificando e desterritorializando estratos, abrindo-os para o molecular e
para o cósmico, em devires diferenciais. Quase-causal, esse arquivo-máquina ignora as
formas e as substâncias, excede toda mecânica, apreendendo os dados em sua diferença
de potencial e de intensidade, ligando-os em sua heterogeneidade e singularidade virtual,
para formar multiplicidades em um novo plano de consistência (Deleuze; Guattari, 1992)
que resulta da pesquisa.
Arquivo que define as multiplicidades das suas matérias-dados por linhas de fuga,
que são os limiares através dos quais o sistema material promove mudanças na própria
pesquisa, ao cortar divisas de desterritorialização; formular convites para novas conexões
e agenciamentos; ligar matérias informes (phylum) e funções não formadas (Corazza,
2013); determinar aquilo que pode ser feito e pensado, e também o que não pode, como
limite para a grade forma-substância, não no corrente estado de coisas, mas em estados
futuros.
Definido por suas capacidades virtuais, indicadas pelos traços dos dados, esse
arquivo é um diagrama funcional, que maquina transformações, afectos e devires de
vários agenciamentos que o habitam, para além da interação mútua entre eles. Como
um plano de expressão-conteúdo (Deleuze, 1991), o arquivo condensa as organizações
de conteúdo e de expressão de cada matéria trabalhada, cada uma contendo formas e

284
substâncias – conteúdo, entendido não somente como “a mão e as ferramentas, mas
uma máquina social técnica”, que preexiste às organizações e “constitui estados de
força ou formações de potência”; expressão, entendida não apenas como “a face e a
linguagem, nem as línguas, mas uma máquina coletiva semiótica que a elas preexiste e
constitui regimes de signos” (Deleuze; Guattari, 1995, p. 80).
Como um operador virtual em intensidade das matérias e de suas funções, o arquivo
possui uma semiótica material, constituída por artigos indefinidos, nomes próprios,
verbos no infinitivo, datas. Por exemplo, sujeito à atualização divergente, encarnado em
registros diferentes, o arquivo do projeto Escrileituras: um modo de ler-escrever em
meio à vida tomou como sua matéria informe a multiplicidade humana dos participantes,
ligada às suas funções não formadas, impondo-lhes o tipo de conduta derivada da filosofia
da diferença (Corazza; Rodrigues; Heuser; Monteiro, 2015).
Esse arquivo-máquina, além de abstrato, é singular e imanente, definindo, a cada
movimento de pesquisa, os padrões e limiares que ligam multiplicidades virtuais entre
si, possuindo uma capacidade emergente de variações contínuas dos dados. Assim, estes
dados podem ser descodificados e desterritorializados, codificados e territorializados,
sobrecodicados e reterritorializados, ao produzirem palavras de ordem na linguagem,
significações, subjetividades, axiomáticas e estratos. Desse modo, as três atividades
principais de um arquivo-máquina são a criação (produzindo vontade de potência de
mais vida), a estratificação e a captura (aquilo que a vida organiza contra si mesma e no
limite de si mesma): “Mecanosfera” (Deleuze; Guattari, 1997, p. 232).

Esfolamento em ziguezague
Em uma pesquisa empírica, tudo se passa como se o pesquisador examinasse
um arquivo, mantido em ordem perfeita, feito de fatos ordinários e contendo dados
armazenados em ordem cronológica, de acordo com dias da semana, meses do ano,
momentos de participação na escola, etc. Esses conjuntos, que se mostram, à primeira
vista, tão precisamente armados, tornam difícil o trabalho tradutório; pois, de fato, na
maioria das vezes, é o conjunto vivido na pesquisa que propicia o estabelecimento de laços
lógicos e de sentido, como efeitos de determinadas relações diferenciais e repartições dos
pontos singulares que lhes correspondem.
Agora, se, junto a Derrida (2001, p. 7), distinguirmos arquivo “daquilo a que
o reduzimos frequentemente, em especial a experiência da memória e o retorno à
origem, mas também o arcaico e o arqueológico, a lembrança ou a escavação, em
suma, a busca do tempo perdido”, vias sinuosas surgem, como resultado de um caráter
dinâmico, feito o ziguezague do cavalo sobre uma mesa de xadrez. Podemos, diante

285
desse tipo de arquivo, pensar em um processo de perlaboração – como Freud usa
Durcharbeiten –, efetivado por estratos que envolvem o conjunto vivido e formam
temas que evoluem no tempo cronológico, mas, seguindo outros dinamismos espaço-
temporais (Deleuze, 2006), dentro de outra lógica de produção e num tempo retro-
versivo, em posterioridade – aprés-coup, na expressão lacaniana para Nachträglich
(Laplanche; Pontalis, 2001).
Por isso, se não for rápido demais na atribuição de significações, o pesquisador
se deixa trabalhar por esses jogos experimentais, que lhe possibilitam reconstituir e,
inclusive, escrever e ler termos e lugares, resgatar outras leituras e escritas, no limite
mesmo daquilo por ele vivenciado; limite que lhe fornece outros índices para uma teoria
da leitura-escritura-tradução dos dados, deduzida das implicações em sua história como
pesquisador.
Agora, se o pesquisador for muito rapidamente em direção ao estabelecimento de
uma estrutura, seja por recorrência, seja por raridade, a eficácia dessa palavra pode
postular a própria morte do arquivo da pesquisa. Desde que a atribuição rápida demais de
sentido ou de estrutura funciona como uma maneira de blindar ou de evitar os enigmas e
de assentar a pesquisa num arrimo; posições que diferem do funcionamento de deixar-se
e de deixar a pesquisa ser trabalhada por eles e ir, assim, produzindo novos problemas;
além de, por vezes, encontrar positividade no fato de ficar à deriva.

Intolerável, quase-original, cópia e tradução


O pesquisador traduz porque a sua pesquisa (assim como a sua docência) seria
intolerável se não traduzisse. Intolerabilidade, no sentido daquilo que é prática e discurso
hegemônicos, considerados naturais, enquanto evidências, certezas, prospecções ou
obediências. Diagnosticar, em nossos discursos e práticas, aquilo que nos é intolerável,
como pesquisadores, abre vias para o desprendimento das tranquilas certezas e certeiras
verdades.
Como professores, podemos dizer com Aury (1975, p. 11) que enfrentamos:

esse monstruoso obstáculo de Babel, cujas pedras esparsas encontramos todos os


dias. Por vezes derrubamos algumas. Será forçoso continuar, e as máquinas não nos
serão de nenhuma valia; sim, tudo que realmente pode ser traduzir o será por elas. A
margem porém é mínima. A nós caberá todo o resto, as aproximações mais ou menos
bem sucedidas, os furores de fidelidade, os entusiasmos mal recompensados; a nós, o
impossível. O impossível é o desespero, mas é também a desforra do tradutor (Aury,
1975, p. 11).

286
Benjamin (2012, p. 14) fala, em Produtos da China, que a força de uma estrada no
campo difere, caso se ande por ela ou se a sobrevoe de aeroplano: “Assim é também a
força de um texto, uma se alguém o lê, outra se o transcreve”. Ou seja, para aquele que
vê a estrada de cima, esta integra a paisagem e segue as suas leis; já aquele que por ela
caminha experimenta suas voltas, clareiras, perspectivas, distâncias. Do mesmo modo,
Benjamin distingue o mero leitor (conduzido por um aeroplano), reduzido a uma leitura
consumista de sobrevoo, daquele leitor que transcreve o mesmo texto:

Assim unicamente o texto transcrito comanda a alma daquele que está ocupado com
ele, enquanto o mero leitor nunca fica conhecendo as novas perspectivas de seu interior,
tais como as abre o texto, essa estrada através da floresta virgem interior que sempre
volta a adensar-se: porque o leitor obedece ao movimento de seu eu no livre reino aéreo
do devaneio, enquanto o que transcreve o faz ser comandado.

Nessa direção é que Benjamin (2012, p. 14) afirma que a “arte chinesa de copiar
livros foi, portanto, a incomparável garantia de cultura literária, e a transcrição, uma
chave para os enigmas da China”. Desde essa lição, existiriam, para o pesquisador,
no mínimo, duas maneiras de ler-escrever um texto, quais sejam: aquele que lê como
alguém que lê por ler; e aquele que dele se apropria, transcriando-o. Este que transcria
é quem percebe as variações da paisagem, pois se entrega, desbloqueia, desmancha a
casca grossa, devaneia (Bachelard, 2008a), deixando que o seu desejo de escrever seja
descongelado.
De modo que o pesquisador (como o copista) pode ser uma espécie de escriba dos
textos científicos, artísticos e filosóficos (bem como da tradição, das culturas e das
heranças); aquele que só os lê, acreditando que estão aí, dados, prontos e fechados em si
mesmos como caramujos; assim como aquele que é intérprete usa um método processual
de tradução, que os transcreve e atualiza, em sua potência de provocar transcriações.
Transcriação como uma espécie de hiperfidelidade, que leva à transformação
criativa dos extratextos; qual seja, a modernização do contexto histórico, por meio da
incorporação de intertextos, que aproximam a tradução feita pela pesquisa ao presente da
criação. Passado e presente, literalidade e criatividade, nacional e estrangeiro mantém,
dessa maneira, uma relação vital, por meio da transcriação, que suspende e desloca a falsa
dicotomia entre fidelidade e criatividade. É o excesso de fidelidade à potência criadora
de tal ou qual obra que leva a pesquisa à transformação dos originais, numa atitude de
desmesura mimetizante.
O jogo da tradução faz sentido, mediante a paixão que o pesquisador tem pela matéria
com a qual trabalha; paixão que, como um vulcão, consome tudo, extermina tudo, mas

287
é também pré-requisito, vontade de potência para toda vitalidade da pesquisa. Sem
paixão pela matéria, sem lava fervendo, a pesquisa seria pedra ou gelo puro: Eu tenho
paixão pela matéria da minha pesquisa. Se não a temos, como pesquisadores (e como
docentes), somos como um vulcão morto, um cisco de poeira humana, a ser resumido
num epitáfio ou em três frases de um discurso fúnebre, do tipo: Fui pesquisador-professor
porque não soube fazer outra coisa. Fui professor-pesquisador infeliz. Contei os dias
para tudo acabar.

Sentido-acontecimento
O arquivo-máquina de uma pesquisa empírica-transcendental produz um sentido-
acontecimento, anterior e irredutível ao estabelecimento de códigos, linguagens e meios
(Deleuze, 1998). A esse efeito de arquivo, as escrileituras tradutórias e transcriadoras
atribuem uma lógica, distinta de proposições, significações, referências ou intenções
identificáveis.
É esse sentido-acontecimento que permite ao pesquisador construir uma multipli-
cidade de problemáticas e de vibrações originais. Sentido que é, ele mesmo, o
transcendental, o extra-ser, o impossível tornado possível pela pesquisa, a casa vazia, o
lugar do mistério, o objeto de adivinhação, o grau zero que pede passagem, o não-lugar
sempre fluido, que faz escorrer nossas pesquisas, leituras e escrituras em currículos e
didáticas.
Sentido que fica entre o dizível e o visível, entre o ler e o escrever, entre o currículo
e a didática, e do qual extraímos novos dados para traduzir, que não são os originais.
Desde esse sentido do arquivo, criamos um logos curricular; e, de modo paralelo, embora
autônomo, o dramatizamos didaticamente, na cena da aula; desconstruindo tanto as
matérias do próprio arquivo quanto o seu sentido.
Enquanto formação de potência e regime de signos, o arquivo de pesquisa atua
como um agente determinante e seletivo, para a constituição das línguas e das ferra-
mentas e, também, para os seus usos, comunicações e difusões. Já o sentido-aconteci-
mento faz emergir novos arquivos-máquinas, que pertencem plenamente ao original, mas
que, ao mesmo tempo, dele se desprendem e estendem suas pinças em direção a outros
arquivos.
O sentido-acontecimento, produzido pelo arquivo da pesquisa empírica-trans-
cendental, seria, dessa maneira, outra formação de um novo arquivo-máquina: aquele
que permanece envolvido num estrato anterior, que lhe corresponde parcialmente; e
aquele no qual desenvolve-se, por si mesmo, num plano desestratificado. Essa condição
permite que a pesquisa transcrie outros dados-matérias, a partir das traduções feitas,

288
produzindo a ilusão – derivada da sobrecodificação ou da tradutibilidade imanente
à própria linguagem – que transborda todos os estratos do arquivo, embora ainda siga
pertencendo a um determinado arquivo.

Quem?
Diante dessas problemáticas, resta perguntar: quem o pesquisador-professor pensa
que é? Ora, embora a resposta a esta questão seja composição de desejo para agenciar
outro artigo, com outros fluxos de imagens, sons, palavras, matérias, sensações, importa
aqui indicar que a nossa pesquisa argumenta que o arquivo-máquina do professor-
pesquisador é EIS AICE — arquivo que também o transcria, ao ler, escrever e traduzir,
curricular e didaticamente (Corazza, 2013; 2014; 2016a; Dinarte e Corazza, 2016; Adó;
Corazza; Campos, 2016).
Arquivo-máquina, virtual, potencial, revolucionário, experimentador e empirista,
que mexe no real dos dados, nas matérias do mundo, nas coisas da pesquisa e nos
significados das culturas, de forma transcendental, isto é, na imanência absoluta de um
Fora-de-Arquivo – superfície intensiva e aformal, posta em dobra no Aion. Fora-de-
Arquivo que está sempre em dívida com as traduções que fazemos, pois delas depende
para existir; enquanto dele dependemos para as nossas lutas por mais vida na vida.

Referências
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uerj.br/index.php/childhood/article/viewFile/23357/16713
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TADEU, Tomaz; CORAZZA, Sandra; ZORDAN, Paola. Linhas de escrita. Belo Horizonte:
Autêntica, 2004.

Texto escrito para Sessão Especial, integrante do VIII Colóquio Internacional de Filosofia e
Educação, realizado na Universidade Estadual do Rio de Janeiro, entre 03 e 07 de outubro
de 2016; publicado no livro do evento O ato de educar em uma língua ainda por ser escrita,
organizado por Walter Omar Kohan, Sammy William Lopes e Fabiana Fernandes Ribeiro,
editora NEFI, Rio de Janeiro, RJ, 2016.

291
GEMATRIA DE EIS AICE: ÀS VOLTAS
COM UM IDEOGRAMA

Fabiano Neu
Sandra Mara Corazza

Operando torções, o texto se apropria da Gematria – procedimento cabalístico


que visa o desdobramento dos sentidos de uma escritura por meio de uma ars
combinatoria que correlaciona letras e números –, como estratégia desviante para
pensar um ideograma que dê conta de esboçar o funcionamento de EIS AICE (Espaços,
Imagens, Signos e Autor, Infantil, Currículo, Educador), bloco conceitual de forças
heteróclitas, cujo conluio vem a se constituir como um ativador do “pensar no próprio
pensamento da pesquisa em educação” (Corazza, 2014, p. 5). Isso porque o movimento
herético acionado pela conjunção das unidades componentes de EIS AICE se furta à
axiomatização estabilizadora, útil à conservação de um pensamento rebaixado à boa
vontade de pensar, para sempre empenhada na captura e objetificação dos fluxos. De
modo que lidar com o compósito não é o mesmo que fazê-lo com os elementos em
separado, posto que uma vez acionado o movimento é preciso seguir sua indetermi-
nação e desembocar em um ato de criação, o que requer a leveza de uma sensibilidade
outra, diversa de um silogismo naturalizado.
EIS AICE afirma-se no paradoxo e na potência de empuxo que impele o pensamento
aos confins do não pensado. Longe de contribuir para um apaziguamento do intelecto
e atravessado por uma “lógica outra, distinta da sintética, da educação positivista, do
purismo científico, do espírito filosófico dogmático (Corazza, 2014, p. 13)”, EIS AICE

292
se porta como um enigma sem solução. A despeito disso, em vez de concorrer para a
inação de um nada de vontade, o enigma eisaiceano estimula um instinto de jogo sem a
ânsia de resultados e, por conseguinte, o investimento pertinaz em uma impossibilidade.
Não há resposta possível para o enigma, não obstante há uma disposição de todas as
forças para decifrá-lo. O intelecto – que de silogismo em silogismo tece a familiaridade
do mundo –, na decifração do bloco, enceta uma rotação canhota, antinatural e imbui-se
agora em burlar seu próprio funcionamento. Uma estratégia desviante do “veredito já
automatizado daquele intelecto vigilante que se põe a serviço da estupidez como cão-de-
guarda contra o espírito” (Adorno, 2003, p. 17). Artimanha que suspende a vigilância o
suficiente para forçar um pensamento obliquo, por vias improváveis, em “uma tomada
única, uma apreensão direta (senão, simples), imediata e, por isto, sensível (Corazza,
2014, p. 8-9)” e por assim dizer, corpórea. Momento aquele em que Barthes (2006,
p. 29) diz que o “corpo vai seguir suas próprias ideias, pois meu corpo não tem as
mesmas ideias que eu”.
Na presença impetuosa da Górgona, é “sempre na recusa da visão direta que
reside a força de Perseu” (Calvino, 1990, p. 17). Visão “direta”, aqui entendida como
“acostumada”, aquela que é primeira por estar naturalizada, carregada de clichês, o
contrário de apreensão direta, advinda da sua anulação. O desvio, o desfoco é operado
pelo escudo de Atena, tão polido que reflete como um espelho capaz de captar os
movimentos e intensidades sem associá-los a algo previamente significado. Captar, posto
que capturar, estratifica. Assim, as combinações cabalísticas da Gematria relacionadas ao
nome de EIS AICE fazem um trabalho de polimento de superfície onde não colam clichês
ou sentidos unívocos, e através do qual o movimento do campo de forças é vislumbrado
como o “borrão da floresta, no qual nada se enxerga de cada árvore, num desfalecimento
das coordenadas visuais, sonoras, linguísticas e cognitivas ordinárias” (Corazza, 2014,
p. 3). O informe eisaiceano é vislumbrado e traduzido em traços ideogramáticos posto
que não pode ser escrito, mas tão somente inscrito, sendo “abstrato e real, pura função e
matéria, o EIS AICE ideogrâmico se põe antes da história; ou seja, age, a cada vez que,
na pesquisa em educação, são constituídos pontos de criação ou de potencialidades”
(Corazza, 2014, p. 10-11). O ideograma é o traçado dos vestígios deixados pela
experimentação do giro de EIS AICE; não fala sobre, apenas mostra e se coloca como um
alerta de non plus ultra para o racionalismo e de incipit para o pensamento da diferença.

Uma cabala eisaiceana


Antes de tudo, o texto quer afirmar como potente o sentido de trama, maqui-
nação, trapaça atribuído pelo senso comum, de modo pejorativo, ao termo cabala.

293
A recepção18 não diz respeito a um dado racional comunicável, nem mesmo a uma
revelação obtida de uma instância superior divina (ainda que com isso possa se confundir)
mas implica ser afetado, coagido, “atravessado por algo que não mais se deixa organizar”
(Deleuze, 2003, p. 165). “O fato é que um pensamento ocorre apenas quando quer e não
quando ‘eu’ quero” (Nietzsche, 2005, p. 26), de modo que um pensamento ativo, em
condições de acontecer no momento presente, requer a destituição do “eu” (intelecto) da
função de pensar, pois “eu” no controle quer reduzir toda diferença à identidade, unificar
o múltiplo, estabilizar os fluxos, perpetuar formas e encontrar uma verdade absoluta no
âmbito da pequena consciência.
Em última instância, o que os sistemas cabalísticos fazem é criar procedimentos
que investem na multiplicidade de sentidos, artimanhas que exortam o “eu” a frouxar
o controle sobre o pensar, tornando maleáveis as linhas duras e criando condições
para uma experimentação do Fora. O caráter ardiloso é necessário, pois essa reversão
em que o pensamento, antes rebaixado a uma função do “eu”, é tomado por forças ativas,
não se dá de boa vontade, visto que o “eu” que pensa é resultado de um condicionamento
que se naturalizou. É preciso, através de procedimentos, ser levado a uma desorganiza-
ção e reconfiguração das forças. Artimanhas que aparentemente possuem determinada
finalidade, mas que servem para outra coisa e cujo efeito se faz sentir em outra esfera.
Com o risco sempre iminente de se tomar o ardil não como caixa de ferramentas, mas
como algo em si, objeto de um abstracionismo estéril, e de transformá-lo em objeto
de culto.
Portanto, o texto toma empréstimos de sistemas cabalísticos observando o modo de
expressão descolado do conteúdo religioso, de maneira similar a apontada em Walter
Benjamin por Jeanne-Marie Gagnebin (1982, p. 39-40):

Eu nunca pude pesquisar ou pensar senão num sentido, se me atrevo a dizê-lo, teo-
lógico – isto é, de acordo com a doutrina talmúdica dos quarenta e nove níveis de sentido
de cada passagem da Torá”. Essa afirmação sublinha a ligação de Benjamin, não aos
preceitos ou dogmas da religião judaica, mas a um modelo de leitura herdado da leitura
de textos sagrados. Na tradição teológica judaica, e especialmente na tradição mística
da Cabala, a interpretação não pretende delimitar um sentido unívoco e definitivo;
ao contrário, o respeito pela origem divina do texto impede uma cristalização e sua
redução a um significado único. O comentário, na Cabala, tem antes por objetivo
mostrar a profundidade ilimitada da Palavra Divina e preparar à sua leitura infinita,
simbolizada pelo número místico do sete ao quadrado (isto é, 49). Que Benjamin
reivindique esta tradição mística no contexto de uma análise materialista dos textos

18
Do hebraico Kabbalah: receber/tradição.

294
literários é absolutamente notável: significa que a crítica materialista não tem como
meta estabelecer a verdade definitiva sobre uma obra ou um autor (burguês decadente
ou proletário revolucionário!), mas tornar possível a descoberta de novas camadas
de sentido até então ignorados. Essa investigação descreve o movimento dos ensaios
críticos de Benjamim, dos quais Adorno pôde dizer com justiça que “tratam os textos
profanos como se fossem sagrados.

Assim, a árvore sefirótica da Cabala não é um depositário de fervor religioso, mas


um diagrama que serve de intermediário entre o incognoscível e o mundo conhecido.
Na impossibilidade de lidar diretamente, de forma racional, com Ein Sof, a divin-
dade suprema em seu mais alto grau, o cabalista enceta um jogo combinatório com as
dez forças criativas dos Sefirots, que são suas emanações visíveis. Em última instância,
o que o cabalista faz é movimentar o próprio pensamento e elevá-lo à sua máxima
potência.
EIS AICE é também um diagrama que põe em movimento o pensamento no âmbito
da Educação maior, canônica, tornada abstração pelo peso dos clichês. O texto se encar-
rega de sobrepor o jogo cabalístico ao jogo eisaiceano para extrair suas potencialidades
conceituais sem promover definições.

A Gematria
Juntamente com o Notariqon (letras de uma palavra que formam iniciais de uma
frase e iniciais de frase que formam palavras) e a Temurah (permuta de algumas letras
de uma palavra através de técnicas combinatórias), a Gematria forma os três métodos
fundamentais da Cabala e consiste na arte de atribuir valores numéricos às letras hebraicas
e assim determinar a mátria, matriz das palavras. Letras e números seriam expressões
distintas de um mesmo sentido. Palavras diferentes cujo resultado da soma dos valores
atribuídos a cada letra apresentem o mesmo peso numérico estariam conectadas por
este sentido comum. Os valores numéricos remetem aos dez Sefirots, as “emanações
numéricas da divindade” que em seus múltiplos níveis formam a “Árvore da Vida”,
o “Universo Arquetípico”, assim como o Adam Qadmon, o proto-homem (Autor). O
número de cada Sefira tem uma atribuição “divina”.
Estes procedimentos seriam utilizados para produzir tantas interpretações (ou
traduções) das “escrituras sagradas” quanto fosse possível a combinação entre letras,
palavras, frases e números, de acordo com cada técnica. Acredita-se que todos os livros
considerados sagrados foram escritos a partir do desdobramento das quatro consoantes
do tetragrama divino YHWH.

295
O rabino estuda o Torá de dia e o cabalista estuda o Torá de noite. Se no judaísmo
tradicional as escrituras são tomadas em sua literalidade, na Cabala é algo a ser decifrado,
desmontado e remontado de maneiras infindáveis para se chegar a “essência espiritual
que se comunica na língua, mas que não é a própria língua, mas algo que dela deve ser
diferenciado” (Benjamin, 2011, p. 51). Sendo essa “essência espiritual”, no âmbito do
texto, não algo em si, mas a própria atividade do pensamento posta em devir.
Os muitos desdobramentos da Cabala Judaica, dividem-se em uma infindável
gama de apropriações que os colocam em variação. O sistema de Gematria que o texto
se apropria para cálculo de EIS AICE é o da Qabalah Inglesa (em duas variações),
desenvolvida por Aleister Crowley para produzir interpretações, não dos livros bíblicos,
e sim, de seu Liber Al Vel Legis, o livro da lei de Thelema que lançaria as bases para um
novo Aeon. A soma das unidades numéricas resulta em em valor integral e um integral
reduzido.

Tabela para cálculo de valor integral


A soma total dos valores de EIS AICE de acordo com a tabela é 306. Todas
as palavras com o mesmo valor estariam ligadas a EIS AICE, como por exemplo,
“didática”.

A B C D E F G H I J
6 12 18 24 30 36 42 48 54 60
K L M N O P Q R S T
66 72 78 84 90 96 102 108 114 120
U V W X Y Z
126 132 138 144 150 156

E = 30 + I = 54 + S = 114 = 198
A = 6 + I = 54 + C = 18 + E = 30 = 108
EIS AICE = 198 + 108 = 306

D = 24 + I = 54 + D = 24 + A = 6 + T = 120 + I = 54 + C = 18 + A = 6
DIDÁTICA = 306

296
Tabela para cálculo de valor integral reduzido
O total de uma palavra somado até restar um único dígito (aqui o 9 não é aplicado
a nenhuma letra, pois seria o número da “Palavra Perdida”, da qual não se fala, nem se
atribui representação):

1 2 3 4 5 6 7 8 9
A B C D E - - F -
- - G - H - - - -
I - - - - - - - -
J K L M N - O P -
Q R S T - U - - -
- - - - - V - - -
- - - - - W - - -
- - - - X - - - -
Y - - - - - Z - -

EIS AICE
E=5+I=1+S=3=9
A=1+I=1+C=3+E=5=9
9 + 9 = 18 | 1 + 8 = 9

Nove
Nove é o valor mínimo no qual o nome de EIS AICE pode ser reduzido, e na árvore
cabalística dos Sefirots a nona esfera é Yesod, o fundamento, consistência, formação,
receptáculo de influências. O crivo que conecta o homem ao caos. Esfera da Lua, ligada
ao elemento água e ao feminino, “atribuem-se a Yesod todas as divindades de simbolismo
lunar: a própria Luna; Hécate, que rege a Maria Negra; a Diana, que governa os partos”
(Fortune, 1985, p. 39). Yesod reúne duas imagens antagônicas: o fundamento do universo
estabelecido na força, simbolizado por um homem nu, muito forte, Shaddai, o Senhor
da Grande Força e a fluidez, fluxo e refluxo regidos pela Lua. Um antagonismo aparente
que Israel Regardie (2015, p. 39) define como:

297
O interminável, imutável fluxo e refluxo das forças astrais que, em último termo,
garantem a estabilidade do mundo e proporcionam sua base. Yesod é este fundamento
estável, este fluxo e refluxo imutável de forças astrais, e o poder reprodutivo universal
da natureza. “Tudo voltará a seu fundamento de onde surgiu. Toda medula, semente
e energia se reúnem neste lugar. Daqui surgem todas as potencialidades que existem”
(Zohar)

Os quatro noves do Tarot (bastões = força, copas = felicidade, espadas = crueldade,


discos = ganho) são atribuídos a nona Sefira. No “Livro de Thoth”, Aleister Crowley
(2000) se detém para falar sobre a Força, da carta de bastões, e a antinomia de Yesod:

Mudança é estabilidade. A estabilidade é garantida pela mudança. Se alguma coisa


cessasse de mudar por uma fração de um segundo dividido, se desintegraria. É a intensa
energia dos elementos primordiais da natureza, que, se os chame de elétrons, átomos,
qualquer coisa que se queira, não faz diferença. A mudança garante a ordem da natureza
(p. 140).

Paradoxo. Mudança na estabilidade. Lema da Patafísica: EADEM MUTATA


RESSURGO.
Yesod corresponde ao svadhisthana chakra, o esplênico, da energia sexual.
“Kundalini está enrolada em Yesod” (Fortune, 1985, p. 35).
Nove é considerado um número circular, pois é o único que, multiplicado por outro, é
reduzido a ele mesmo (... 9x6=54, 5+4=9 | 9x7=63, 6+3=9 | 9x8=72, 7+2=9...). Também
é o único que somado a outro número é reduzido a este mesmo (9+1=10, 1+0=1 | 9+2=11,
1+1=2...). Fim da estrada. O último número. Guardião do portal. O crivo.
O nono círculo do Inferno, de Dante, é de gelo, e destinado aos traidores. Morada de
Caim, Judas e Lúcifer.
Eliphas Levi (1993) a partir do Nuctemeron, de Apolônio de Tiana, diz que o “nove
é o número da iniciação, porque, sendo composto de três vezes três, representa a ideia
divina e a filosofia absoluta dos números; é por isso que Apolônio diz que os mistérios
do número nove não devem ser revelados” (p. 447).

O esboçar de um ideograma
1
EIS AICE é 9, nove, Yesod. “Não se pode dizer muitas coisas a respeito de Yesod,
porque nela estão ocultas as chaves dos trabalhos mágicos. Devemos, por conseguinte,
nos contentar em elucidar o simbolismo numa forma um tanto quanto criptológica,

298
embora aquele que tenha ouvidos para ouvir esteja livre para utilizá-los” (Fortune, 1985,
p. 202).

Nove
Elaborado pelo autor.

2
EIS AICE é fundamento, casa, mas casa das máquinas da pesquisa em Educação.
“Yesod poderia ser corretamente descrita como a Esfera do mecanismo do universo. Se
comparássemos o reino da Terra a um grande navio, Yesod seria a casa das máquinas”
(Fortune, 1985, p. 196). É casa, mas casa-caracol, “pois a casa é nosso canto do mundo.
Ela é, como se diz frequentemente, nosso primeiro universo. É um verdadeiro cosmos”
(Bachelard, 1993, p. 200).

Casa-caracol
Adaptado de
Mathematical
Beauty, Pinterest19

19
https://br.pinterest.com/pin/165085142563410931/

299
3
“O terceiro elemento é o universo, o cosmos. Não é somente a casa aberta que se
comunica com a paisagem, por uma janela ou um espelho, mas a casa mais fechada está
aberta sobre um universo” (Deleuze; Guattari, 1992, p. 233).

Espiral Cósmica
Adaptado de
Observatorio.info20

4
Entre o porão e o sótão, uma escada em caracol. “Pode-se opôr a racionalidade do
telhado à irracionalidade do porão” (Bachelard, 1993, p. 208-209).

The Windig Stairs


Adaptado de Spiral
Shell

20
http://observatorio.info/2008/01/m51-remolino-cosmico-2/
21
http://spiralshell.net/

300
5
Da terra ao céu, uma rayuela. “O sonho estava composto como uma torre formada
por camadas sem fim, que se erguessem e se perdessem no infinito, ou descessem em
círculos, perdendo-se nas entranhas da terra. Quando me arrastou em suas ondas, a
espiral começou, e essa espiral era um labirinto. Não havia nem teto nem fundo, nem
paredes nem regresso. Contudo, havia temas que se repetiam com exatidão” (Nin apud
Cortázar, 1999, p. 481).

Rayuela
Adaptado de Patrimoine &
Education

6
Yesod é casa de Kundalini. A serpente enroscada desperta e ascende até Kether, a coroa.

Serpente Enroscada
Adaptado de Kundalini Yoga

22
http://www.ac-grenoble.fr/patrimoine-education/promenade/jeu/activite/regles/marelle.htm
23
http://www.kundaliniyoga.org/serpent.html

301
7
É fundamento e também abismamento, complicados. “De um ponto ao outro da
espiral, podemos traçar vetores que são como as cordas de um arco, de uma espira.
Não se trata mais da formação e da progressão das próprias oposições, segundo as
espiras, mas da passagem de um oposto ao outro, ou melhor, de um oposto através
do outro, segundo cordas: o salto no contrário. Não há apenas oposição entre terra e
água, entre um e múltiplo, há passagem de um através do outro, e aparecimento
súbito do outro a partir do um. [...] É ao mesmo tempo a passagem de um termo a
outro, de uma qualidade a outra, e o surgimento súbito da nova qualidade que nasce
da passagem cumprida. É ao mesmo tempo ‘compressão’ e ‘explosão’” (Deleuze, 1983,
p. 44).

24
Formação
Adaptado de QuickiWiki

8
“É a formação e não a forma que permanece misteriosa. Mas, a respeito do plano da
forma a tomar, que decisão vital na primeira escolha: saber se a concha se enrolará para
a esquerda ou para a direita. Quanto já se disse sobre esse turbilhão inicial! De fato, a
vida começa menos se lançando para a frente do que se voltando sobre si mesma. Um
élan vital que gira, que maravilha insidiosa, que fina imagem da vida! E quantos sonhos
poderíamos ter sobre uma concha canhota, uma concha que fugisse à rotação de sua
espécie!” (Bachelard, 1993, p. 26).

24
http://www.quickiwiki.com/de/Perlboote

302
25

Concha
Adaptado de Echecs & Maths

9
“O ideograma elimina as cortinas de fumaça do silogismo: permite um acesso direto
ao objeto. Duas ou mais palavras, dois ou mais blocos de ideias, postos em presença
simultânea, criticando-se reciprocamente, precipitam um jogo de relações com uma
intensidade e uma imediatidade que o discurso lógico não seria capaz sequer de evocar”
(Campos, 1993, p. 144).

Às voltas com EIS AICE


A exemplo do bom jogador que não trapaceia repetindo jogadas até chegar a um
resultado que o favoreça, o empreendimento cabalístico do texto faz do acaso uma

25
http://www.echecsetmaths.com/nautilus/verne2.htm

303
afirmação (Deleuze, 1976) e arrisca a olhar de través para EIS AICE pela via da Gematria
e relacionar a indeterminação do campo de forças à sua combinaçã fatal: o número nove
e, por conseguinte, à nona emanação da árvore sefirótica, Yesod, disparando o projeto de
um ideograma que dê conta de expressar o bloco sem afetar sua velocidade.
Yesod traz consigo o signo do fundamento enquanto limite exato entre estabilidade
e mudança, não como oposição, mas como passagem de um através do outro. Regulador
dos ciclos de composição e decomposição, coagula et solve, movimento perpétuo de
concentrar e dissolver. É o limiar entre o molar e o molecular, entre a lentidão da matéria
e a velocidade da energia, participando tanto de uma natureza quanto de outra, séries
que diferem entre si, mas que são indissociáveis. A dinâmica de Yesod é a de uma hélice
que gira com tal velocidade que acaba por criar uma estabilidade, mas que só afirma a
permanência do transitório, o ser do devir; “uma velocidade infinita de nascimento e de
esvanescimento” que ganha “”ao mesmo tempo consistência, dando uma consistência
própria ao virtual” (Deleuze; Guattari, 1992, p. 153).
EIS e AICE, unidades resultantes de uma operação monstruosa de transcriação, que
confere uma leveza italocalviniana no pensar da pesquisa em Educação, instaurando
uma “outra ótica, outra lógica, outros meios de conhecimento e controle” (Calvino,
1990, p. 19) ao limitar “a direção do trabalho educacional de ensinar, escrever, orientar,
pesquisar, a ocupar Espaços, fazer Irmagens e nos confrontar com Signos” sendo que
esses “Espaços, Imagens e Signos não remetem ao que é representado, mas àquilo que
nos põe diante da presença intensa, material e generativa de quatro conceitos, a saber:
Autor, Infantil, Currículo e Educador” (Corazza, 2014, p. 2), quando aliadas sob a égide
de Yesod em um bloco conceitual encetam um giro herético, de uma concha canhota,
inclinado à “formação para a crítica, contrária à estagnação do pensamento” (Corazza,
2014, p. 5). Como em um entrelaçamento quântico, a aliança entre EIS e AICE não os
une em um EISAICE, o que comprometeria o funcionamento do bloco, mas conserva um
espaço de distanciamento, EIS AICE, que permite às unidades um giro sobre si mesmas,
envolvendo-se mutuamente, em um movimento espelhado, aparentemente em oposição.
Nada ocorre em EIS sem que AICE seja afetado e vice-versa.
Como na dupla conformação de estabilidade e transitoriedade em Yesod, o currículo
e a didática são momentos diversos de um mesmo processo. Diferentes, porém
indissociáveis. O currículo está atualizado em AICE, unidade das traduções da didática
da diferença, assim como a didática está virtualmente instalada em EIS, unidade das
traduções do currículo.
As unidades de EIS e AICE tomadas em separado perfazem dois ideogramas, posto
que são formadas por traços menores (Espaços, Imagens, Signos e Autor, Infantil,
Currículo, Educador) que são seus hieróglifos.

304
A questão é que a cópula (talvez fosse melhor dizer a combinação) de dois hieróglifos
da série mais simples não deve ser considerada como uma soma deles e sim como
seu produto, isto é, como um valor de outra dimensão, de outro grau; cada um deles,
separadamente corresponde a um objeto, a um fato, mas sua combinação corresponde
a um conceito. Do amálgama de hieróglifos isolados saiu o ideograma (Campos, 2000,
p. 151).

Porém, na composição do bloco eisaiceano, em seu funcionamento de conjunto, as


unidades fazem a vez de traços hieroglíficos para compor um único ideograma que dê
conta de seu movimento. EIS e AICE são dois, enquanto EIS AICE é duplo. Em EIS
e AICE as unidades menores estão visíveis e giram mais lentamente, já em EIS AICE
elas são borrões imbricados no giro do bloco. Um ideograma que combine estabilidade
e velocidade, fundamento e abismamento, dois movimentos em um, “uma consistência,
sem perder o infinito no qual o pensamento mergulha (Deleuze; Guattari, 1992, p. 59),
uma concha e um tubilhonamento em espiral.

Referências
ADORNO, Theodor. O ensaio como forma. In: ADORNO, Theodor W. Notas de literatura I.
São Paulo: Duas Cidades, Ed. 34, 2003, p. 15-45.
BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: WMF Martins Fontes, 1993.
BARTHES, Roland. O prazer do texto. (Trad. J. Guinsburg). São Paulo: Perspectiva, 2006
BENJAMIN, Walter; GAGNEBIN, Jeanne-Marie. Escritos sobre mito e linguagem: (1915-
1921). Livraria Duas Cidades, 2011.
CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio. Editora Companhia das Letras, 1990.
CAMPOS, Haroldo de; CAMPOS, Augusto de. Ezra Pound: Poesia. São Paulo/Brasília:
Hucitec/Edunb, 1993.
CAMPOS, Haroldo de. Ideograma: lógica, poesia, linguagem. São Paulo: Edusp, 2000.
CORAZZA, Sandra Mara. Ensaio sobre EIS AICE: proposição e estratégia para pesquisar em
educação. Porto Alegre, 2014. Mimeografado.
CORTÁZAR, Julio. O jogo da amarelinha. Editora Record, 1999.
CROWLEY, Aleister. O Livro de Thoth. São Paulo: Madras, 2000.
CROWLEY, Aleister; REGARDIE, Israel. 777 and Other Qabalistic Writings of Aleister
Crowley. Weiser Books, 1986.
DELEUZE, Gilles. Cinema I: A Imagem-Movimento. São Paulo: Editora Brasiliense, 1983.
DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a filosofia. Rio de janeiro: Editora Rio, 1976.

305
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.
DELEUZE, Gilles. Proust e os Signos. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003.
FORTUNE, Dion. A Cabala Mística. São Paulo: Pensamento, 1985.
GAGNEBIN, Jeanne-Marie. Walter Benjamin: os cacos da história. São Paulo: Brasiliense, 1982.
LEVI, Eliphas. Dogma e Ritual da Alta Magia. São Paulo: Pensamento, 1993.
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Além do bem e do mal. São Paulo: Companhia das Letras,
2005.
REGARDIE, Israel. Um Jardim de Romãs. Disponível em: < hadnu.org/publicacoes/73-um-
jardim-de-romas.pdf>. Acesso em: 10 out. 2015.

Texto produzido no âmbito do Seminário Avançado Professor-tradutor de EIS AICE: currículo


e didática, desenvolvido em 2015/2 pela professora Sandra Mara Corazza em colaboração com
o professor Máximo Daniel Lamela Adó, no Programa de Pós-Graduação em Educação da
Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

306
Escrileituras da Diferença
Parte 4
ENSAIAR A ESCRILEITURARTISTA
NA UNIVERSIDADE

Ester Maria Dreher Heuser


Sandra Mara Corazza

Determinantes e interstícios

Em relação à escrita de uma pesquisa, nos cursos de mestrado e de doutorado, há


distinções na forma e no conteúdo? Há algo permitido na escrita de uma tese e vedado
na escrita de uma dissertação? Até que ponto a experimentação com a escrita e com o
trabalho do pensamento é consentida e encorajada em um e em outro nível dos cursos
de pós-graduação? E quando se trata do professor-pesquisador que orienta, escreve e
educa, qual será a sua relação com a escrita? Há, nesses diversos níveis, determinantes
ou interstícios para uma escrileiturartista na universidade?

Mingau quente
Sabemos que embora a dissertação seja o ponto culminante do curso de mestrado,
também consiste, para um pesquisador universitário, o início de sua vida profissional e
intelectual. Podemos dizer que é, aí, no mestrado, ao compor a sua dissertação, mediante
a orientação feita por alguém que já possui alguma experiência na pesquisa e na escrita-
leitura (escrileitura), que o mestrando exercita a sua condição de pesquisador. Para

309
Marques (2008), a dissertação tem o caráter de iniciação a um tema, sobre o qual ainda
não se tem posições definidas.
No mestrado, a pesquisa seria como comer um mingau quente: deve-se começar
pelas bordas. Para Marques (2008, p. 138), a abordagem do tema é feita “pelas bordas,
buscando delimitá-lo melhor em vistas à continuidade de um processo de pesquisa para
cujo domínio teórico e prático justamente se prepara o mestrando” para a continuidade
do curso de doutorado. Deste ponto de vista, a autonomia intelectual e a originalidade
constituem um ponto de chegada, um resultado a ser adiado durante a realização do
mestrado, sendo algo a ser adquirido somente no doutorado.
Já, segundo Kahlmeyr-Mertens (2007, p. 73), a dissertação é um trabalho mono-
gráfico aprofundado, na medida em que é a “tematização de um único tema delimi-
tado”, fundado em referenciais teóricos constituídos de literatura especializada, com
“concatenação lógica de modo ao discurso literalmente dissertar sobre o tema e o
problema escolhidos”. Ainda que o modo acadêmico de escrita, “que deve ser impessoal
e objetivo”, caracterizado por “apresentação, discussão e análise de ideias de maneira
clara e objetiva” (Kahlmeyr-Mertens et. al., 2007, p. 73), impere em nosso meio, não
significa que a forma de expressão de uma dissertação de mestrado, assim como a
de uma tese de doutorado, não tenha que ser motivo de preocupação por parte daquele
que escreve e daquele que orienta.

Natural e normal
Podemos divergir da concepção de que, de modo natural, no meio acadêmico, o
formato de uma dissertação seria sempre o mesmo, isto é, o dissertativo; de maneira
que tal condição não precisasse ser problematizada, pois importaria, exclusivamente,
o seu conteúdo. Contudo, nos é suficiente observar os textos de diversos filósofos para
perceber como existem diferentes formas de escrita dentre eles; e, até mesmo, em alguns
casos, uma surpreendente variação da expressão, no interior da própria obra de um
mesmo filósofo.
Acontece que o movimento de filosofar nunca se deixou tomar pelo monopólio
estilístico de alguma escola ou gênero; condição que, em alguma medida, pareceria ser
do gosto hegemônico universitário, com a ideia uni-forme de escrita (e leitura) de uma
pesquisa. Torres Filho (2005, p. 3), na apresentação da Coleção “Biblioteca Pólen” da
editora Iluminuras – a qual pretende semear grãos de antidogmatismo que impedem
o pensamento de enclausurar-se; e, assim, convidar os leitores à liberdade e à alegria
da reflexão –, lembra que, desde a Antigüidade, o filosofar “tem acontecido na forma
de fragmentos, poemas, diálogos, cartas, ensaios, confissões, meditações, paródias,

310
peripatéticos passeios, acompanhados de infindável comentário, sempre recomeçado”.
Tratar-se-ia, portanto, de um recomeço aberto, sem norma, sem natureza nem estilo
determinados.
Leminski (1997), em um de seus Ensaios e anseios crípticos, denominado Forma é
poder, critica a suposta “naturalidade na expressão” de um determinado tipo de escrita,
presente tanto na academia como no jornalismo. Segundo ele, ambos produziram um
discurso automatizado pelo triunfo da razão branca e burguesa, greco-latino-cristão e
positivista, a saber: o discurso impessoal, objetivo e natural. Discurso que é investido de
normalidade, porque é normal; o qual, por sua vez, provém de norma que é lei: formação
de poder.
O que faz a norma senão afirmar a estabilidade do mundo? “De um certo mundo,
suas relações e hierarquias”, responde Leminski (1997, p. 46). Desde que há norma,
entretanto, há quem se levante contra ela. Afinal, a norma só é criada para demarcar a
sua distinção frente ao anormal e impôr-se à ela. Assim como a norma é uma convenção,
o naturalizado modo acadêmico de escrever, claro, neutro e supostamente objetivo,
também o é.
Leminski (1997, p. 47) compreende que não há como escrever sem a intervenção da
subjetividade; ou seja, não há texto sem perspectiva. Ocorre, no entanto, que, no texto
pretensamente naturalista (o jornalístico e o acadêmico), “essa perspectiva é camuflada,
sob as aparências de uma objetividade, uma Universalidade que – supostamente – retrata
as coisas ‘tal como elas são’”.
Alguns leitores poderão dizer que essa argumentação não tem valor algum, pois está
apoiada em um poeta livre das grades acadêmicas e que esse perspectivismo de forma
e de conteúdo – especialmente de forma de expressão – não tem valor na universidade.
Diante dessa posição, argumentamos que, ainda que o poeta tenha muito a dizer e a
ensinar, para aqueles que escrevem na universidade, ele não é o único a afirmar uma
posição desconstrutora; já que, no interior da própria academia, há muitos que trilham
as mesmas sendas que Leminski.

Risco e divergência
Também na pesquisa da área de Humanas (Filosofia, Educação, Artes e Litera-
tura), há quem tome a pretensão ao discurso absoluto da objetividade e da clareza
como totalitária; assim como há, em todos esses campos de pesquisa, aqueles que se
revoltam contra tal pretensão. Verdadeiramente democrática é a obra aberta, aquela
que é desautomatizada, que engaja “ativamente, a consciência do leitor, no processo
de descoberta/criação de sentidos e significados, abrindo-se para sua inteligência,

311
recebendo-a como parceira e co-laboradora” (Leminski, 1997, p. 48). Temos, aqui,
em mente o filósofo, apreciador de literatura e músico Theodor Adorno – autor que
aprendeu a pensar com os ouvidos, que realizou e afirmou, na própria escrita, a inse-
parabilidade entre forma e conteúdo.
É comum, na academia, compreender que o ensaio é feito apenas por aqueles que
possuem maturidade acadêmica; isto porque, por meio dele, o pesquisador “toma posição
autoral sobre um tema de seu interesse, pautando-se em material de pesquisa, seja ele
teórico ou empírico” (Kahlmeyr-Mertens et. al., 2007, p. 74). Desse ponto de vista, um
ensaio teria um tom de ineditismo, o qual pode (ou deve) ser alcançado no doutorado.
Entretanto, a concepção de ensaio não é fixa, visto que, para Adorno (2003, p. 16;
p. 17), o ensaio “não admite que seu âmbito de competência lhe seja prescrito”, uma vez
que, insubordinadamente, ele evoca “liberdade de espírito” e ocupa “um lugar entre os
despropósitos”. Desse modo, a forma ensaística foge à norma e à normalidade, tornando-
se arriscada e divergente. Só que, ao contrário do que poderíamos imaginar, a forma
ensaística não é exclusiva para os experimentados e experientes escritores.

Esforços do ensaio
Em seu texto “O ensaio como forma”, Adorno ([1954] 2003, p. 16) encoraja os
jovens pesquisadores a se aproximarem dessa forma de escrita. Segundo o autor, os
esforços de um ensaio “espelham a disponibilidade de quem, como uma criança, não
tem vergonha de se entusiasmar com o que os outros já fizeram”. Ora, não é justamente
isso que ocorre com cada mestrando e doutorando que chega aos cursos de mestrado ou
de doutorado: entusiasmados e sem vergonha com as ideias de outros?
Em nota de rodapé, Adorno (2003, p. 16) apresenta a definição dada por Lukács
que contempla a consideração de ser produzido algo novo, mas, no entanto, relacionado
com o já formado:
O ensaio sempre fala de algo já formado ou, na melhor das hipóteses, de algo
que já tenha existido; é parte de sua essência que ele não destaque coisas novas a
partir de um nada vazio, mas se limite a ordenar de uma nova maneira as coisas que
em algum momento já foram vivas. E como ele apenas as ordena novamente, sem dar
forma a algo novo a partir do que não tem forma, encontra-se vinculado às coisas, tem de
sempre dizer a ‘verdade’ sobre elas, encontrar expressão para sua essência.
Tomamos essa caracterização adorniana de ensaio, na direção de demarcar uma
perspectiva alegre e inventiva em relação às heranças filosóficas, artísticas, literárias
e científicas que recebemos; visto que, nela, felicidade e jogo são essenciais à forma
ensaística, que é sempre aberta a novas interpretações conceituais.

312
Por meio do ensaio, pensamos ser possível inventar formas de expressão e de
pensamento acerca de um objeto inúmeras vezes pensado e expresso (Deleuze; Guattari,
1995). Isso porque o ensaio não busca uma verdade totalizante e final, tal como o método
científico pretendeu, desde Descartes; do mesmo modo como a vida também não se
determina por regras puramente lógicas e a verdade não é encontrada exclusivamente
nos modelos e conceitos unificadores e totalizantes fornecidos pelo método científico
(Adorno, 2003).
Adorno (2003, p. 25) afirma que foi somente o ensaio que levantou dúvida em
relação ao suposto “direito incondicional do método”, isto porque leva em conta
a consciência do não-idêntico entre o modo de exposição e a coisa, ainda que não a
expresse. Além disso, o ensaio, que tem caráter fragmentário, é avesso à universalização,
não se deixando reduzir a um princípio.

Ato de revolta
Dessa perspectiva, ensaiar é um ato de revolta. Para Adorno (2003, p. 25), o ensaio
se revolta “contra a doutrina, arraigada desde Platão, segundo a qual o mutável e o
efêmero não seriam dignos da filosofia; revolta-se contra essa antiga injustiça cometida
contra o transitório, pela qual este é novamente condenado no conceito”.
Como resultado de tal revolta, o ensaio dedica-se a acentuar “o parcial diante do
total”, sendo Montaigne (1980) o grande exemplo dessa postura frente à escrita e ao
pensamento. Ao retomar um fragmento de Lukács que elogia o grande ensaísta, em seus
Ensaios, Adorno (2003, p. 25) diz que Montaigne “abandona suas próprias e orgulhosas
esperanças, que tantas vezes o fizeram crer estar próximo de algo definitivo: afinal
ele nada tem a oferecer além de explicações de poemas dos outros ou, na melhor das
hipóteses, de suas próprias ideias”.
É preciso, pois, desembaraçar o pensamento da ideia tradicional de verdade, para,
então, “eternizar o transitório” e unificar, livremente, pelo pensamento, “o que se encontra
unido nos objetos de sua livre escolha”. Diversamente daqueles que ainda acreditam
na possibilidade de alcançar a verdade em si, o ensaio “não insiste caprichosamente
em alcançar algo para além das mediações – e estas mediações históricas, nas quais
está sedimentada a sociedade como um todo –, mas busca o teor de verdade como algo
histórico por si mesmo” (Adorno, 2003, p. 27).
A Montaigne (1980, p. 71) importa que tornemos nossos os saberes alheios e
que façamos algo com eles em nossas vidas, em favor delas: exatamente o que ele
exercita em seus Ensaios. “Que pensamos?” (dos saberes alheios); e o “que fazemos?”
com eles são as preocupações mais relevantes, para Montaigne; caso contrário, “um

313
papagaio poderia substituir-nos”, diz ele. Fazendo eco a Cícero, Montaigne afirma: “não
basta adquirir sabedoria, é preciso tirar proveito dela”; e realiza a seguinte analogia:
“Que adianta ter a barriga cheia de comida se não a digerimos? Se não a assimilamos,
se não nos fortalece e faz crescer! [...] Tanto nos apoiamos nos outros que acabamos
por perder as forças”.
No ensaio, portanto, entram em jogo as experiências individuais de escritas e de
leituras daquele que escreve; as quais, por sua vez, são mediadas pela experiência mais
abrangente da humanidade histórica – comumente registrada em textos que aguardam
a sua ressurreição “à luz do ritual de sucessivas leituras, traduções, interpretações”
(Leminski, 1997, p. 29). Trata-se, desse ponto de vista, também em uma dissertação
de mestrado – sem ter que esperar o doutorado chegar –, de pôr-se na escritura, não
a partir de um “achismo”, de uma coleção de opiniões soltas, mas de uma série de es-
colhas e de relações que cada pesquisador que, necessariamente, torna-se escritor
precisa fazer, para que o texto seja efetivamente seu e singular.
Os ensaístas poderão ser acusados de superficialidade? Talvez. Porém, o que importa
isso para aquele que experimenta e se arrisca? Estará ele preocupado com acusações
desse tipo? Concernirá o juízo de Deus àqueles que experimentam e inventam modos de
escrileituras e de existência (Deleuze, 1997)?
Sabemos, de antemão, que toda divergência implica riscos e acusações, pois, quem
disse que a profundidade seja preferível à superfície? Dependendo da perspectiva,
podemos tomar o superficial como algo que possui vasta dimensão; enquanto aquilo que
tem grande profundidade, como uma superfície fraca. Quem dirá que a primeira não é
mais interessante, instigante e potencializadora do que a segunda? Já o poeta e ensaísta
Valéry (apud Deleuze, 2003, p. 11) afirmou que “o mais profundo é a pele”, visto ser ela
que determina a fronteira entre o Eu e o Outrem, que se interpõe, separando, o interior
do exterior, o Eu de tudo aquilo que o constitui. Desse ponto de vista, haveria algo mais
profundo do que a superfície pele-fronteira?
Ainda assim, para os “profundos”26, apesar de o ensaio não se deixar “intimidar
pelo depravado pensamento profundo”, Adorno (2003, p. 26; p. 27) responde: também
o pensamento que produz um ensaio é profundo, isto porque ele se aprofunda em seu
objeto, “não pela profundidade com que é capaz de reduzi-lo a uma outra coisa”. Não há
uma “outra coisa”, nada mais lhe interessa senão as mediações históricas “nas quais está
sedimentada a sociedade como um todo”.
26
A esses respondemos com as palavras de Tournier: “um sentimento como o amor mede-se bem melhor – caso possa
ser medido – pela importância da sua superfície do que pelo seu grau de profundidade. Porque eu meço o meu amor
por uma mulher pelo fato de que amo igualmente as suas mãos, os seus olhos, a maneira como anda, a roupa que usa,
os seus objetos familiares, aqueles que a sua mão aflorou, as paisagens onde a vi evoluir, o mar onde se banhou... Tudo
isso é bem a superfície, parece-me! Enquanto um sentimento medíocre visa diretamente, em profundidade, o próprio
sexo e deixa tudo o mais numa penumbra indiferente” (Tournier, 1985, p. 61).

314
Na escrita e no pensamento
O pensamento que ensaia é aquele que se dedica ao seu objeto de estudo e se arrisca;
quiçá, chega a pensar e a fazer algo por meio da mediação do seu objeto, ultrapassando,
assim, o mais baixo nível do pensamento, a recognição (Deleuze, 1988). O pensamento que
ensaia a escrita, e nela se arrisca, compõe-se a si mesmo; na medida em que experimenta,
assume sua potência produtiva e se retira do cortejo da origem, pois considera que não há
um fim em si ou um dado primordial, uma origem primeiríssima na qual um pensamento
sério e genial chegaria. Afinal, atrás de uma máscara há sempre outra máscara; depois de
uma caverna outra caverna; textos geram novos textos; pois o que há são interpretações,
produções de sentido que cada um encontra nas mediações que estabelece.
Sentido é o que realmente tem relevância, essa “entidade mais misteriosa do universo”
que se determina entre a “consciência, a vivência, as coisas e os eventos” (Leminski, 1997,
p. 11). Que sentido haveria dedicar tanto tempo de uma vida de leitura e de escrita, que é
pesquisa e, em boa medida invenção de si, se não fosse para produzir sentido (Corazza;
Rodrigues; Heuser, Monteiro, 2014)? Tirando isso, não tem sentido viver e, menos ainda,
viver na academia. A questão é: quão aberta está a universidade para ensaiar a escrita
viva, arriscada e divergente? Algumas publicações universitárias (como este Dossiê),
algumas dissertações e teses orientadas em (poucas) linhas de pesquisa, estão abertas ao
risco, ocorrendo isso mais na Educação e nas Artes do que na Filosofia e na Literatura27,
para ficar no âmbito do que se convencionou chamar de Humanas. Como diz Bukowski
(2016, p. 228), algumas escritas da universidade “parecem estar pelo menos escapulindo
do século 19 enquanto se aproxima o século 21. Um indício adorável, de fato”.

Abandonar para escapulir


Para escapulir das malhas dos modos de pesquisar, ler e escrever, como se fosse em
séculos passados, e arriscar a escrita viva e divergente, parece imprescindível que sejam
abandonados alguns códigos familiares e passadiços da pesquisa em Humanas. Por isso,
damos a ver alguns dos abandonos que o campo de Pesquisa em Humanas, feita sob

27
Há alguns professores e orientadores, em alguns cursos de pós-graduação e de graduação, sensíveis à variação na
escrita, incentivadores da invenção de diferentes formas de expressão e de conteúdo, que modificam também a relação
com os seus objetos de estudo. Entre outros programas, existem diversas dissertações e teses produzidas pelo LAV
– Laboratório de Artes Visuais, da Universidade Federal de Santa Maria, responsável por este Dossiê; assim como
pesquisas desenvolvidas, em nível de mestrado e doutorado na Linha de Pesquisa 09 – Filosofias da diferença e
educação, componente do Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da UFRGS; além de
pesquisas ensaísticas produzidas no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UNIOESTE, Toledo. Destacamos,
ainda, múltiplas experiências de leitura e escritura desenvolvidas (2011-2014) pelo projeto interinstitucional
Escrileituras: um modo de ler-escrever em meio à vida (UFRGS, UFPel, UFMT e UNIOESTE), apoiado pelo
Observatório da Educação CAPES/INEP (Corazza; Rodrigues; Heuser; Monteiro, 2014).

315
inspiração da filosofia da diferença (que nos mobiliza, especialmente), fez e continua
fazendo em nome de um processo de variação contínua levado ao seu extremo; ao ponto
de suas forças transbordarem todas as codificações já feitas nesse campo e, às vezes,
por alguns, suas escritas serem consideradas incompreensíveis e suspeitas, justamente
por seu transbordamento e suas posições transgressoras.
Reconhecemos, é verdade, que as pesquisas feitas em Humanas – com inspiração
nietzschiana, deleuze-guattariana, barthesiana, foucaultiana, derridiana, entre outras – já
produziram textos escritos como pensares, quereres e estares, na condição de projetos,
desenvolvimentos ou resultados de pesquisas a partir disso que, agora, abandonaram.
Tais abandonos, contudo, se devem ao fato de terem perdido a graça, por não darem
mais gosto para os textos e nem mais forçarem o pensamento a encontrar-se com o seu
limite. Alguns desses abandonos podem ser encontrados a seguir.
1º) O empirismo na pesquisa, que valorizava a experiência no processo de
conhecimento; tomava os fatos como critério único, ao qual o pesquisador podia
legitimamente se ater; usava o método dedutivo para fazer o transcendente e a razão
desaparecerem nas sombras; acrescentava, em seguida, a consciência humana para
operar sobre esses fatos e atribuía-lhe a responsabilidade de esclarecer a essência da
realidade pesquisada e das suas formas – essência que fornecia o principal sustentáculo
à pesquisa e era considerada a causa dos fenômenos sensíveis investigados.
2º) O racionalismo, que submetia a forma de conhecimento fornecida pela pes-
quisa exclusivamente à razão, e dela derivava um acordo perfeito entre o racional
e a realidade; e que funcionava, por meio da evidência das demonstrações e da com-
provação das ações do campo das Humanas, considerando-as enquanto primordialmente
racionais, em seus princípios, condutas e finalidades; uma pesquisa que analisava,
científica ou logicamente, o que chamava de “dados” e privilegiava a capacidade crítica
do pesquisador de realizar suas análises por meio do raciocínio.
3º) Em terceiro lugar, os textos abandonaram o romantismo, composto por duas
faces: a) um romantismo que dotava a pesquisa de exageros afetivos, por destacar as
personalidades tanto do pesquisador como dos pesquisados, seus estados de espírito,
atitudes, sensibilidade, emoções e valores interiores; que propunha a elevação dos
sentimentos ou de ideais utópicos acima do pensamento; que reforçava uma visão de
mundo e de educação centrada nos indivíduos, nas subjetividades e no Eu; que enfa-
tizava a liberdade de expressão e de iniciativa, bem como as infinitas chances de auto-
realização do pesquisador-professor; que glorificava o particular, o íntimo, o cada-um-
é-um; e que propunha um professor-pesquisador divinizado, orgulhoso de sua força
individual e vitorioso, capaz de elevar-se sobre os educadores comuns e de afirmar suas
ambições e desejos, por meio da mobilidade social; b) por outro lado, um romantismo

316
voltado para a outra face do individualismo, cujos textos eram dotados de uma melan-
colia espessa, centrados no lado sombrio da existência ou do trabalho dos educadores
e no lado inútil ou previamente determinado dos destinos dos seus alunos, cujos gritos
confessavam seus sonhos gorados, projetos fracassados, medos e sofrimentos; que
traziam um eu oprimido, esmagado pela solidão e pela brutalidade de um mundo burguês,
interessado apenas na acumulação de capital. Este segundo tipo de textos românticos
desempenhou um papel central naquela pesquisa heróica, que travava combates contra
a ignorância e a ideologia, propunha suicídios de classe (média e alta) e conclamava
a aquisição de uma consciência libertadora, exclusivamente por amor à revolução, às
classes e aos saberes populares.
4º) Abandonaram, ainda, o realismo em pesquisa, com a sua autoridade de auto
proclamar-se veículo de crítica a instituições, em especial, mas também a ideias, a
textos, à hipócrita pedagogia burguesa, aos preconceitos, às explorações; com suas
exigências da observação rigorosa de objetos ou de personagens do dia-a-dia, da
constatação crua das coisas (como o cotidiano do professor, da sala de aula, da escola),
ou da adequação da pesquisa a referentes exteriores e a práticas escolares – já que eles e
elas sim, continham a verdade da educação. Uma pesquisa que, para reforçar a denúncia
social, tinha o cuidado de sempre escrever seus textos numa linguagem clara e direta,
mais coloquial; enquanto se radicalizava rumo a uma objetividade, supostamente sem
conteúdo ideológico e era, assim, conduzida ao naturalismo.
5º) Embora os textos possam dizer que abandonaram a pesquisa realista, com-
binando-a ou colocando-a ao lado da naturalista, havia entre essas pesquisas algumas
diferenças, tais como: a) enquanto a realista procurava dar uma visão global daquilo que
escrevia, atentando para a vida psicológica dos pesquisados, a pesquisa naturalista atinha-
se à vida biológica dos pesquisados, geralmente, para comprovar as teorias (de origem
darwinista) que equiparavam o homem, excluída a sua capacidade de raciocínio, a um
animal; b) a outra diferença dizia respeito ao espaço social e à classe enfocada, já que o
pesquisador realista se voltava preferencialmente para a descrição da educação burguesa,
e para os problemas que este modo de educar produziam no indivíduo e no corpo social,
o que justificava a sua preocupação com o psicológico articulado ao social; enquanto o
pesquisador naturalista, por sua vez, buscava no espaço coletivo (como em escolas ou
em espaços não-escolares), com ênfase às camadas pobres da população, a comprovação
de suas hipóteses. Unidas, as duas pesquisas privilegiaram cenas cotidianas dos grupos
sociais menos favorecidos, compuseram e usaram palavras carregadas para criar textos
pesados, tristes, impactantes.
6º) Os textos abandonaram também a pesquisa neo-realista e pós-modernista, que
resgatava o realismo e o naturalismo, sob fortes inspirações do marxismo, da linguística

317
estruturalista ou da psicanálise freudo-lacaniana; buscava a objetividade como modo
de dar credibilidade aos resultados das pesquisas; propunha-se a ser dotada de um
forte ativismo político; utilizava uma prosa revolucionária, que tomava posição clara
na luta de classes, em favor dos oprimidos, denunciava as desigualdades sociais e os
desmandos das elites; ou então se utilizava da liberdade linguística e de um determinado
intimismo psicanalítico, existencialista, ou ainda derivado da fenomenologia, no qual a
consciência, tanto do pesquisador quanto dos pesquisados, estava posta numa relação ao
mundo, que era definida pela intencionalidade, isto é, pelas significações dadas pelos
sujeitos às suas circunstâncias.

Posologia da diferença
Todos esses abandonos ocorreram por meio de um certo uso da filosofia da
diferença ao pesquisar e, correlatamente, escrever na área de Humanas. Aqui, foi
necessário inventar a seguinte espécie de posologia.
1. Não serão usados quaisquer procedimentos de leitura e de escrita integrantes da
história da filosofia greco-ocidental, sejam monográficos ou doxográficos; sejam os que
estabelecem uma dualidade entre causa repressora e desejo reprimido; ou que prevêem
uma relação entre representante deformador e representado deformado.
2. Não serão feitos resumos de posições doutrinais, recensão de obras particulares,
nem apresentação de autores, que dependam de configurações sensíveis e formas
categoriais, ou de substâncias qualificadas e posições hermenêuticas.
3. Não se fará qualquer quadro de honra de individualidades, por mais inventivas
e brilhantes que se as considere.
4. Não serão escritos nomes de filósofos, mas uma filosofia feita de matéria
informada e forças anônimas, partículas e diagramas, hecceidades e phylum, com os
quais os estratos de conteúdo e expressão são formados.
5. Os nomes dos filósofos serão índices, indicações de componentes, fios conectores
para penetrar na problemática que os ultrapassa, mas da qual eles souberam perceber as
possibilidades e também os limites.
6. Quando os nomes próprios forem citados é porque já se terão transformado
em assinaturas, isto é, em modos de um invariante constitutivo da problemática tratada.
7. Não se tratará de objetos, cronologia, temas, textos, livros.
8. Dirá respeito a uma problemática e à desmontagem e remontagem de seus
agenciamentos maquínicos de expressão.
9. Não se fará exposição em extensão, seguindo teses ou fases de algo chamado
obra.

318
10. Será mostrada a problemática, seu funcionamento e articulação, a sua sintaxe e
condições de existência.
11. Melhor dito: o próprio ato de filosofar será mais escrito, descrito, dado a
aparecer, como pura função e pura matéria, do que alguma filosofia.
12. Em nenhuma circunstância, se tratará de experiências profissionais ou de
reticências pessoais.
13. Não se lidará com espantos fingidos nem com questões já formuladas, venham
de análises contrárias ou identificadas com o pensamento trabalhado.
14. Não serão formulados problemas artificiais de coerência doutrinal, e ninguém se
auto atribuirá o mérito de resolvê-los.
15. Não existem contradições.
16. Bem como não serão aceitas posições samaritanas, já que ninguém precisa ser
salvo de coisa alguma.
17. Está expressamente proibido querer ser mais nietzschiano do que Nietzsche,
mais spinozista do que Spinoza, mais deleuziano do que Deleuze.
18. Nunca serão ajustadas contas com algum passado, seja emocional ou intelectual.
19. Não se fará qualquer crítica viciada ou aporética da filosofia, já que o próprio
sentido da operação crítica muda.
20. A crítica é primeira, como a própria filosofia.
21. Não se fará crítica representacional, que supõe um objeto e um sujeito em
relação de oposição e de exterioridade mútua.
22. Será exercitada a função transcendental da crítica, própria de um pensamento
positivado de modo radicalmente imanente.
23. Todos os procedimentos de leitura e de escrita serão, portanto, minoritários; isto
é, dotados da qualidade irredutível do impoder (Heuser, 2016) e ligados ao funcionamento
de uma máquina abstrata de expressão.
24. Por toda parte, haverá uma única e mesma paixão de ler e de escrever.
25. Mas não será a mesma paixão, já que as suas linhas abstratas traçam uma
variação contínua.
26. Variação contínua que, somente ela, constrói um real por vir, um novo de
realidade.

A favor e contra
A escrileiturartística em Filosofia-Educação posiciona-se contra e a favor de alguns
princípios, formas, modos de expressão e de conteúdo. Vejamos, a seguir, algumas
posições (para referências bibliográficas completas, consulte Corazza, 2008).

319
I – Contra... o princípio aristotélico da identidade (arte = imitação da natureza); as
sínteses ideais, hipostasiadas no Absoluto, no Universal e no Humano; o formalismo
nirvânico, a contemplação, as ideias fracas; a geleia geral, a gelatinosa figuração
representacional de temas e motivos; a eloquência balofa e roçagante, a sintaxe legitimada,
o verso como unidade rítmico-formal; o adjetivo o adjetivo o adjetivo; as epígrafes as
epígrafes as epígrafes; as aspas as aspas as aspas; a ABNT; a ideia que duas coisas
conjugadas produzem uma terceira (em vez de sugerir alguma relação entre ambas); o
pensar discursivo-especulativo e o desenvolvimento harmônico-linear de princípio-meio-
fim; o símbolo, o mito, as alusões, o que “há-por-trás?” (advindos da má consciência); a
função catártica da escritura e a aquisitiva da leitura; a ossificação dos gêneros e fórmulas
(literários, poéticos, acadêmicos); os patrimônios vegetativos e reacionários; o mundo
reversível, as ideias objetivadas, cadaverizadas, o stop do pensamento que é dinâmico. O
indivíduo vítima do sistema, fonte das injustiças clássicas, das injustiças românticas. E o
esquecimento das conquistas interiores; Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros.
Roteiros. Roteiros.
Contra... a imbecilidade corriqueira e a preguiça domingueira; o descanso remu-
nerado e a senectude dos autores-oficiais; as indigestões de sabedoria, à la Andrade,
provocadas pelos porres-mal-tomados dos eruditos-de-plantão (aplicados, esforçados,
participantes, engajados) e a sua omissão diante da mediocridade, da babaquice, da
burrice; aqueles que abdicam da crítica (em prol do apoio-a) e o seu conformismo face
à ignorância; os resultados (confortadores, consoladores, redentores) de Educadores e
Filósofos De-Carteirinha e sua mística (arcaica) de um Pecado-Original atribuído aos
Sem-Carteirinha; o sereno, sensato e sem-sabor bom-tom dos escritos-simplórios e a
peste metafórico-lirificante que os assola; a pseudo-arte de uma juventude senilizada, de
precoces candidatos a mestres-doutores, que da-missa-não-sabem-o-terço (até, talvez,
por falta de tempo) e acham que o mundo começou quando eles nasceram; a abastança
universal de Significação e de Imagens que só repetem o Mesmo; aquele-clima: “é sobre
o mar”? então, tem de usar símbolos marítimos, gaivotas, conchas, ondinas, búzios; as
regras (em vez do texto-criação) e sua esterilidade pequeno-burguesa; todos os paraísos
(doméstico, familiar, institucional, existencialista, político), criados pelas sublimações
antagônicas; as escleroses urbanas e o tédio especulativo ;o ufanismo dos estados
exóticos, mágicos, marginais, malditos; o teatro de tese, as oficinas técnico-literárias,
os romances de ideias, a poesia-militante, a escultura-heróica; a solidão medrosa e seus
depressivos ápices criativos; a morfinização nostálgica de jogos sem imprevistos e a
memória, como fonte de costumes; a ignorância real das coisas + falta de imaginação +
sentimento de autoridade ante a prole curiosa; o aviltamento, a inveja, a usura, a calúnia,
o assassinato.

320
Contra... a adesão acadêmica e sua correlata submissão (gozosa) a orientadores,
grupos (endinheirados), núcleos, centros, diretórios, comissões, câmaras, pró-reitorias,
áreas (reconhecidas), linhas (tradicionais e a distância), coordenadorias, conselhos (da-
hora); todos os importadores de consciência enlatada; convênios livrescos, editoriais e
derivadas incursões petrificantes, ao gosto-da-moda, do-que-vende, do-que-dá-prêmio;
pistas oníricas de subjetivismos inconsequentes, que substancializam objetos nos
limbos do inconsciente; o saudosismo individualista dos amantes da fixidez de soluções
convencionadas e a inutilidade de suas estéticas insalubres; a narratividade da lógica
racional e a dureza de suas estruturas; as asfixias tardo-românticas, o automatismo
psíquico, o irracionalismo surrealista, as elucubrações metafísicas e as desconversas im/
expressionistas; o tomar as palavras como veículos indiferentes e os olhares oblíquos,
dissimulados, de soslaio, a elas dirigidos; o realismo simplista das palavras-mortas e a
exploração de sua introspecção auto-debilitante; sistemas de signos (que se pretendem
estruturalmente perfeitos), sua descrição (fiel) das coisas, que veicula (sem deformações)
uma visão de mundo (científica, tecnológica, humanista); a melodia na música, a figura
na pintura e o discursivo conteudístico-sentimental na prosa do drama íntimo; a função
emotiva, na poesia romântica (do amolecimento ou do soluço): poesia do eu-lírico, de
teor biográfico-emocional, exortativa, suplicatória, encantatória, de sentimento pessoal;
os fósseis do binômio forma (fôrma)-conteúdo e seus ritmos tradicionais, retrocessos
pusilânimes, estéticas solipsistas; o ofuscamento da culturmorfologia (metamorfose
vetoriada, transformação qualitativa), em prol de um conforto artístico livre do pânico da
invenção; todos os álibis para todas as acomodações de todas as Estéticas de Retaguarda
e seus recuos acumpliciadores; meios-termos, meios-caminhos, meias-palavras, meias-
verdades, meios-textos, meias pesquisas, meias-vidas; a obra em reflexo (em vez de
em-progresso, em-processo), suas dicções paradas ou apenas nuances da própria dicção
(em detrimento da variação contínua); intenções sentenciosas (didáticas, proféticas,
evangelizadoras), sua pseudo-seriedade e engajamento autocomplacente; a utopia
wagneriana da Obra de Arte Total e o pendor romântico-parnaso-simbolista; o prosaico
processo analítico, especializado no uso do verbo ser, como cópula entre sujeitos
e estados fixos; a farmacopéia ideal do texto, com sua burla, tapeação e falsificação,
tão comuns que passam desapercebidas; a ornamentação fantasista (margaridas e
passarinhos) e as quantidades de palavras que não funcionam como material de leitura,
por não serem necessárias ao entendimento do assunto; os críticos: (a) que praticam a
dialética da maledicência; (b) não iluminam nem se deixam iluminar; (c) os desconfiados
e os ressentidos com a sua própria incompetência cósmica para entender ou criar alguma
coisa de novo; (d) vermina pestilente (Pound), que desviam a atenção dos melhores
para os de segunda categoria ou para os seus próprios escritos críticos.

321
Contra…; texto-bom-moço desinfecto, texto-ressentido, triste, texto-apóstolo,
confidente, texto-humilhação, texto-renúncia, texto decorativo, digerível pelos tolos,
de tônus místico-idealista, texto de expressão, intimista, de pirotécnicas subjetivas,
texto banho-maria, morno, rotineiro, comadre, texto-chá-entre-amigos, texto-prato-
feito, requentado, rançoso, texto-a-quilo, texto-retórico, cerebrino e sofisticado, texto-
meta-artístico, cópia, detalhe naturalista, morbidez romântica, texto-ultra-romântico
(hipostasiado na máquina, na criancinha, no cachorrinho), texto-figura-de-tapeçaria,
texto-bombástico, texto-sétimo-dia (serve para descansar), texto-finado, que arrasta
cadáveres e a melancolia de mortos-vivos, texto-cripta-funerária dos medalhões-
empertigados, manequins-pomposos, medrosos-inspirados.
Contra... teses-manifestos; a imbecilidade tacanha dos aspirantes-a-escritores que
nunca leem; a fetichização da ideia do novo, nesses tempos de pós-tudo; a realidade
social, vestida e opressora, cadastrada por Freud.
A escrileiturartística na Pesquisa em Humanas manifesta-se...
II – A favor… da realidade sem complexos, sem loucura, sem prostituições e sem
penitenciárias do matriarcado de Pindorama; do novo: (a) como processo de recuperação
viva e crítica do passaturo; (b) já que a apreensão do novo representa a continuidade
e a extensão da nossa experiência do que já foi feito, e nesse sentido quanto mais nós
compreendemos o passado, melhor nós entendemos o presente; de todas as heranças
(que dão-o-que-pensar) e a concomitante responsabilidade de assumi-las como coisa
viva e não como ritual mortuário, o que implica colher no ar uma tradição viva; da
ampliação dos nossos repertórios (visto que todo presente de criação propõe uma
leitura sincrônica do passado de cultura), para: (a) recuperar o que há de vivo e ativo no
passado; (b) saber discernir, na mole abafante de estereótipos que é um acervo artístico
visto de um enfoque simplesmente cumulativo; (c) os veios de criação, patentes ou
ocultos; (d) sobretudo estes, marginalizados por uma incompreensão historicizada; do
conhecimento do-que-foi-feito: a melhor maneira de nos prepararmos para entender
o-que-não-foi-feito e o-que-se-pode-fazer-de-novo; da crítica (com suporte de um
plano de pensamento) que contribui para melhorar aquilo que critica, como: (a) a crítica
via comparação e tradução; (b) a crítica de iluminação contra a crítica de maledicência;
da escrileitura inventiva de traduções-recriações (traduzir sob o signo da invenção;
tradução-criativa, recriação, transcriação) de textos criativos, que funcionam auto-
nomamente e reeditam os achados formais do original, nas quais: (a) o poeta que
traduz – ou melhor, transcria – um poema clássico leva, de saída, uma vantagem
considerável sobre o erudito não-poeta que translada o mesmo texto; (b) onde só ser
possível traduzir poesia através da transposição criativa; (c) reimaginar, preferível ao
conceito usual de traduzir; (d) traduzir é uma ginástica com a palavra: um trabalho

322
de perfeccionismo. Algo que nunca assume o aparato estático do definitivo, mas que
permanece em movimento, tentativa aberta e constante, trazendo sempre em gestação
novas soluções, pistas novas, que imantam o tradutor, obrigando-o a um retorno perió-
dico ao texto e seus labirintos; (f) a tradução se torna uma espécie de jogo livre e
rigoroso ao mesmo tempo, onde o que interessa não é a literalidade do texto, mas,
sobretudo, a fidelidade ao espírito, ao clima, frente ao diverso feixe de possibilidades
do material verbal manipulada; da beleza do texto, não como um ornamento aplicado,
mas o que faz a imagem mental mais definida; da alegria ativa de ler e da liberdade
vital para escrever; dos erros criativos e da higienização dos mitos; do minimalismo
(das textificações, texturas, contextos, texturações); de ser raro e claro; da desaparição
elocutória do poeta e da reaparição espectral de um eu desfigurado e sem-saída; de uma
teoria da composição: (a) que não abole o acaso, mas o incorpora como termo ativo,
ao processo criativo; (b) opção criadora, portanto, que significa liberdade de escolha;
(c) mas, acima de tudo, liberdade vigiada por uma consciência seletiva e crítica; (d) de
modo que, sobre o enxame de constelações móveis, atuam certos critérios de seleção e
descarte; (e) impondo balizas (formantes) à pura fermentação do acaso; da criação de
nossos próprios objetos textuais (passa a não ter importância o fato de as palavras não
serem um dado objeto, porque, na realidade, elas serão sempre o objeto dado).
A favor… da correlação, continuidade e permeação (honestas) de percepções e
ações da Pesquisa em Filosofia-Educação com diversas manifestações artísticas; do
barroco, simultaneísmo, dadaísmo, futurismo, cubismo, arte negra, pop-art, arte ready
made, música pós-dodecafônica; das reivindicações dos Manifestos: (a) Poesia Pau-
Brasil (1924); (b) Antropófago (1928); (c) Futuristas (Fundação, 1909; Técnico, 1912),
que proferem: (a) é preciso destruir a sintaxe, dispondo os substantivos ao acaso de
seu nascimento; (b) empregar o verbo no infinitivo, para que se adapte elasticamente
ao substantivo e não fique submetido ao eu do escritor; (c) abolir o adjetivo, para que
o substantivo nu mantenha sua cor essencial; (d) abolir o advérbio, fivela velha que
mantém unidas as palavras num conjunto; (e) orquestrar as imagens, dispondo-as a partir
de um máximo de desordem; (f) Nada de pontuação; (g) Depois do verso livre, eis,
enfim, as palavras em liberdade; da Semana de Arte Moderna e das marcas modernistas
(1922 são os 10 dias que abalaram o mundo na literatura brasileira, renovação da
crítica literária (anos 40, 50), novo teatro, cinema novo, bossa-nova; dos romances-
invenções, romancepoema, Bildungsroman, nouveau roman, romance-cíclico, romance-
rio, romance-cinematográfico, romance-Vita-Nova; da poesia pau-brasil (1924), a
nossa primeira mercadoria de exportação: A síntese. O equilíbrio. O acabamento
de carrosserie. A invenção. A surpresa. Uma nova perspectiva. Uma nova escala. A
língua sem arcaísmos, sem erudição. Natural e neológica. A contribuição milionária de

323
todos os erros. Como falamos. Como somos; da poesia-bumerangue-concreta (anos 50
e 60, ao redor da revista paulista Noigandres) e suas ações com: (a) o material (em
pé de igualdade com os restantes elementos de composição); (b) e a estrutura espacio-
temporal (a qual suscita, no campo de relações, estímulos óticos, acústicos e significantes);
(c) adquirindo assim, com o mundo total de objetiva atualidade, um parentesco
isomórfico; (d) que é furtado, desde o treinamento infantil; (e) e nos prende num campo de
símbolos substantivos; de poesia objetivista, visual, holopoesia, videopoesia, computer
poetry (70 aos 80), eletrônica (90); de toda poesia de transição, poesia de guerra, poesia
carro de assalto; da profusão de recursos gráficos e tipográficos (pontuação, caligrama,
ideograma, desenhos, fontes, posição e direção livre das linhas, espaços brancos, usos da
folha, cores, substituição da pontuação por sinais musicais, etc.); da inter-ação do verbal,
da inelutável modalidade do visível e do audível, num breve espaço de tempo através
de um breve tempo de espaço; da estruturação verbivocovisual de palavras dúcteis,
moldáveis, amalgamáveis, em suas andaduras escorreitas: gráfico-espacial, acústico-oral
e conteudística; da humana aventura e da terrena finalidade.
A favor… da porosidade da leitura e do assédio-moral da escritura; da palavra texto:
(a) que é também texto mesmo, enquanto conteúdo, isto é, enquanto objeto designado;
(b) palavra-texto, que é a coisa-da-coisa, o texto-do-texto (como la mer dans la mer);
(c) palavra-texto e coisa-texto como isomórficas, ou seja, conflito de fundo-e-forma
em busca de identificação; do texto que não quer dizer nem-isto-nem-aquilo, apenas
diz-se a si próprio; do texto que é idêntico a si mesmo e daquele que se assemelha
só à dessemelhança do autor; do texto feito de palavras-e-silêncios, difícil, mas útil,
consumível, a ser usado; da demolição da ideia (corrente) que um bom-texto tem
de ser chato: Necessitamos de uma ciência da literatura que pese Teócrito e Yeats
numa mesma balança, e que julgue os mortos enfadonhos tão inexoravelmente como
os enfadonhos escritores de hoje, e que, com equidade, louve a beleza sem referência
a almanaques; da fantasia imagética (sem fios) das obras em-processo e do fluxo
polidimensional (sem fim) das obras em-progresso; da atomização da linguagem,
elipse de temas periféricos, organização circular, estrutura pluridividida e capilarizada
dos textos; da qualificação rigorosa, forma aberta, sintaxe experimental, novo sistema
de equilíbrios entre partes e novas relações de vizinhança e hierarquia; de um todo-
textual que, mais do que a (gestáltica) soma das suas partes, é diferente e vive em
tensão (pop e anárquica) com as singularidades parciais; da vivificação da facticidade
da palavra, como campo magnético de novos possíveis; da desintegração de palavras e
descoagulação dos blocos de ideias; da concentração, simplicidade e condensação; de
palimpsestos, collages, associações sonoras, narrações simultâneas, ritmos de palavras-
coisas nos espaços-tempos (abstraídos); dos movimentos de pontos-eventos, mecânica

324
qualitativa, estrutura dinâmica, arquitetônica e neoplasticista da poesia-prosa e da
prosa-poética.
A favor… da linguagem sintética, substantiva, direta e comunicativa, e estru-
turalmente consequente; das composições breves: tensão músculo-linguagem, ele-
mentarismo contundente, ginástica para a mente entorpecida no vago, obra-prima do
óbvio e do imediato atirada à face rotunda da retórica; dos novos saberes e das novas
emoções; das aventuras criativas; da experiência humana poetizável, da presentificação
dos acontecimentos e de toda mentação; da tensão em direção ao infinito de formas,
dissonâncias e trucagens; da figura do escrileitor factivo, que trabalha rigorosamente
a obra, como um operário da construção civil ergue um muro; de desregramento e
nutrimento de impulsos (aléficos) para expansões, fruições e relâmpagos de palavras
que morrem-e-nascem e de teses-manifestos que se transformam.

Aforismos de escrita
Abandonos, distanciamentos, posições e a favor e contra, posologias aqui e acolá
nos encaminham para um funcionalismo artistador da leitura e da escritura em Edu-
cação, Filosofia, Ciência, Artes... Vejamos alguns aforismos que daí podem resultar
acerca de escrever “Como um cão”.
Festa. – A escrita faz do pensar uma festa? – Mas, se não nos enganamos, na
universidade, quase não há festa! – Tão morta que é uma tristeza! – Por isso mesmo!
De brincadeira. Brincar de escrever, usando a intensidade zero do desejo de pes-
quisar e educar como catapulta. Despojar a escrita dos seus elementos representativos
ou emocionais. Desmontar os modelos incorporados às palavras, que as levam a realizar
movimentos figurativos e a imitar alguém ou alguma coisa. Constituir um movimento
novo e puro de escrita, que extraia do escrever como evento a sua energia. Brincar de
escrever que tão-somente inventa e devém muitas escritas, abre o seu espaço a todas as
espécies de eventos que aí podem ter lugar, a elementos que são heterogêneos, mas que
se afectam cada um a todos os outros.
Ensina-se a escrever? – A: É possível ensinar a escrever? – B: Não sabemos se
podemos ensinar a escrever. – C: Para Nietzsche (2003, p. 144 ss.), junto à oratóriaa,
a escrita é uma arte que não pode ser adquirida sem “a orientação mais minuciosa e a
aprendizagem mais penosa”. – A: Agora, dizer, ao modo de Deleuze (1988), – Vem,
escreve comigo, implica escrever para ou com os alunos?
Para escrever é preciso ler... – Como Nietzsche (1995, p. 47-48) mostrou,
essa máxima não é válida para todos os casos. Muitas vezes, para escrever é preciso
deixar de ler, é preciso defender-se da mera reação à leitura, subtrair-se a situações

325
e relações em que se fica sujeito a suspender a iniciativa e tornar-se apenas reativo.
Aquele erudito que, “no fundo não faz senão ‘revirar’ livros” perde “totalmente
a faculdade de pensar por si”. Ou seja, se não revira muitos livros, ele não consegue
pensar; se apenas critica, aprovando e reprovando o que já foi pensado, “ele próprio já
não pensa”, só reage aos pensamentos lidos. O seu instinto de autodefesa encontra-se
embotado, pois, se assim não fosse, ele “se protegeria dos livros”. O erudito é um leitor
em ruínas, um fósforo que se necessita riscar para que brilhe, isto é, para que emita
supostos pensamentos – um décadent, no sentido nietzschiano.
O que é. Uma escrita que cria um mundo incerto e perigoso é a única força que faz o
professor-pesquisador diferenciar-se, isto é, tornar-se o que ele é, para além do que dele
foi feito.
Contramão. Para escapar de uma escrita indiferenciada, que vale para tudo, e
afirmar radicalmente a diferença de uma escrileiturartista, importa investi-la de uma
não-relação com a prática e de afectos da Natureza. Então, ela será apreciada justamente
por estar saturada destes afectos e por não ter qualquer semelhança com aquela prática.
Tudo isso na contramão do moralismo otimista do amor pedagógico.
Escrevo sempre diferente de mim. Escrever de um modo que não seja fusão,
projeção, nem identificação com ninguém implica afirmar um princípio de diferen-
ciação no próprio interior da escrita, que aspira à exterioridade absoluta. Assim como
dizer: – Porque sou algo diferente de mim, porque estou sempre no exterior de mim
mesma, é que escrevo diferentemente de mim. Será essa diferença a única que me permite
entrar num processo de devir-escritora, como ser singular, real, que me torna outra?
Talvez, uma educadora-escritora?
Como um cão. Ao artistar a escrita em Humanas, tomamos partido rigoroso contra
qualquer escrita nostálgica, redentora, aconselhadora, messiânica, profética. Ao es-
crever, bebemos de fontes vivas. Uma necessidade de escrever nos persegue como
um cão.
Combinações. Pode-se pensar a escrileiturartista em Humanas como uma grandeza
determinada e um número determinado de centros de força. Disso se segue que ela
tem de passar por um número calculável de combinações, no grande jogo de dados da
existência do educador. Em um tempo infinito, cada combinação possível está alguma
vez alcançada, infinitas vezes. Cada uma dessas combinações expressa o mundo das
Humanas que infinitas vezes já se repetiu e joga seu jogo in infinitum.
A obra. Essa escrita, com seu caráter de simulacro, é singularidade que perturba a
realidade da educação e que melhor representa o seu pensamento como jogo afirmador
do acaso. Ela escava o campo da moralidade e da religião, as motivações inconfessá-
veis que estão na origem dos valores éticos pretensamente absolutos, a valorização

326
da racionalidade científica. Afirma, então, uma ciência alegre, o luxo intelectual e a
filosofia dos espíritos livres, que celebram o corpo, os instintos e a Terra.
Esquecimento. Ao escrever, nos esquecemos, por momentos, do mundo dos
estados de coisas, embora a este mundo estejamos fadados. Renovada, nossa escrita se
desinteressa de qualquer benefício, prestígio, divulgação, opõe-se à ordem natural, e
liga-se à morte, que é condição da vida. Ela se assume como uma escrita mal-dita. E,
gloriosa, ousa, imagina, cria problemas, como faz todo aquele que artista, ao invés de
resolver problemas. É desse modo que combate a angústia e o desgosto.
Estilo. A escrileiturartista liga-se a uma prova, a uma seleção, como objeto da
vontade e da liberdade. Repete-se a própria escrita, fazendo dessa repetição o objeto
do escrever, aquilo que encadeia a escrita, salva e cura a repetição do Mesmo e da Lei
Moral. Há, nela, ao mesmo tempo, todo um jogo místico de perdição e de salvação, de
morte e de vida, de doença e de saúde. Além de toda uma potência, “que é a da repetição
do eterno retorno” (Deleuze, 1988, p. 28).
Escrita-esquizo. À escrita-representacional pergunta-se: – O que quer dizer? À
escrileiturartista: – Como funciona? Nos dois tipos de perguntas, existem mundos
diferentes. De um lado, encontra-se uma escrita da qual faz-se exegese ou justificação,
algo cognitivo, uma lógica do conhecimento extra-perspectivista. De outro, uma escrita
para a qual valem apenas funcionamentos posicionais no mesmo complexo educaci-
onal, renúncia a qualquer interpretação, opção exclusiva pela utilização operatória.
Maquinação de uma escrita, que é somente produtiva, nem expressiva nem represen-
tativa. Privilegiamento de uso; produtividade em relação à expressividade; utilização
operatória em detrimento do sentido exegético. Perseguição de uma lógica da invenção.
Escrita que não sai da razão, mas renova a arte do pensamento ao reenviar “o pensa-
mento para a arte” (Rajchman, 1991, p. 58).
Desmembrado. É preciso afectar e ser afectado para poder escrever. Escrever é ser
desmembrado. É metamorfose constante. É abertura de um futuro que nunca começou.
Errância total.
Um caso. – A: Escrever tem a ver com o que se viveu ou se vive. – B: E se não
se viveu e nem se vive nada que valha a pena ser escrito? – C: Como assim? Todo
mundo vive; logo, todo mundo escreve. – D: Só que escrever é um “caso de devir”,
“sempre inacabado, sempre em vias de fazer-se”, é um processo, “uma passagem de
Vida”, que “extravasa qualquer matéria vivível ou vivida” e “atravessa o vivível e o
vivido” (Deleuze, 1997, p. 11).
Viver. Escrever é um pensamento de vida, não uma receita de felicidade, nem uma
sonolência gostosa, ou uma irresponsabilidade divertida. Profundo vitalismo: os modos
de vida inspiram maneiras de pensar e escrever; os modos de pensar e escrever criam

327
maneiras de viver. A vida ativa o pensamento e a escrita; o pensamento e a escrita
afirmam a vida. Como fazer da escrita uma arte de viver? Como torná-la vivível? Como
criar uma unidade entre vida ativa e escrita afirmativa? Escrever é dobrar o Fora, como
faz o navio com o mar. Fazer do pensamento uma experiência do Fora, escapar do senso
comum, desestruturar o bom senso, entrar em contato com uma violência que nos tira da
recognição e nos lança diante do acaso, abalando certezas e o bem-estar da verdade. Perder
as referências conosco e com o mundo exterior, afastar-nos do princípio da realidade,
romper com as referências cognitivas, promover uma ruptura com a doxa, colocar em
dúvida o próprio pensamento, o Divino, o Verdadeiro, o Belo, o Bem. Escrever é criar,
aligeirar e descarregar a vida, inventar novas possibilidades de vida, fazer nascer o que
ainda não existe, ao invés de representar o que já está dado e admitido.
O Fora. Aquele que escreve sob a pressão do Fora, do deserto, do exílio, vê
fragmentar-se a própria unidade subjetiva e desaparecer a forma da interioridade de
qualquer essência do Eu. Então, aquele Fora-de-Si, que diz “Eu escrevo”, não pode
representar um sujeito, não pode ambicionar um Eu idêntico a si mesmo, porque integra
uma linguagem sem sujeito atribuível. As mãos que escrevem não são dele, nem de
ninguém, muito menos de algum autor, que nada mais é do que um sujeito inventado.
Elas escrevem uma escrita anônima, despersonalizada, liberta das garras de qualquer
sujeito desaparecido no discurso. Então, só há um ser: o ser da linguagem que habita o
espaço literário, prenhe de um eterno movimento (cf. Blanchot, 1987). Quem escreve?
Ora, um Desdobrado, cuja palavra passa a constituir um espaço de transgressão, em que
tudo o que é fixo se torna móvel, as verdades são abaladas e vêem-se desmanchadas as
dicotomias interior/exterior, sujeito/objeto, eu/mundo. Esplendor de um escrevinhador
impessoal...
As forças. Enquanto o tempo do mundo é infinito, não teve início nem terá fim, as
forças da escrileiturartista, embora múltiplas, são finitas, presentes em toda parte. Forças
que só existem no plural, que não são cada uma em si, mas somente na relação com
outras, e que não são alguma coisa, mas um agir sobre outras forças. Não se pode dizer
que elas produzem efeitos nem que se desencadeiam a partir de algo que as impulsionam,
porque implicaria distingui-las de suas manifestações e enquadrá-las nos parâmetros
da causalidade. Elas tampouco podem não se exercer porque isso seria atribuir-lhes
intencionalidade e enredá-las no antropomorfismo. As forças dessa escrita simplesmente
se efetivam, irradiando vontades de potência, agindo sobre outras, resistindo a outras,
querendo estender-se até o limite, manifestando um querer-vir-a-ser-mais-forte, o que
explicita o seu caráter intrínseco à escrita mesma.
Teoria materialista. Fazer uma teoria materialista da escrita é: 1) expressar um
mundo possível; 2) pôr eventos a bailar; 3) desmascarar a mediocridade e a compaixão;

328
4) denunciar a crueldade, a hipocrisia e o ressentimento; 5) execrar o prosaísmo,
a vulgaridade e o tédio; 6) perguntar pelo valor dos valores; 7) transvalorar a moral
tradicional que habita as Humanas.
Teoria-prática. Na concepção da escrileiturartista, não há distinção entre teoria
e prática: a escrita não é uma teoria sendo feita sobre a prática, que cobiçaria atingir
a sua essência, descobrir as suas leis, ou reduzi-la a seus conceitos. Nada há para ser
conhecido em alguma instância metafísica “A prática”; nada há que possa transcender
essa prática e tomá-la como objeto; não há, lá, nenhum sujeito, nenhuma identidade
permanente, nenhum sentido por trás dela, nenhum fiador universal ou olhar divino,
nenhuma substância inalterada por trás dos sucessivos acidentes, que seja suporte de
diversos atributos; nenhuma prática, enfim, que seja fundamento para a escrita. O que
tomamos como “fato”, criado pela escrita, é sempre já resultado da atividade cognitiva
e interpretativa humana. Por isso, a escrileiturartista não vai deixar de ser, também
ela, uma forma de esquematização da prática, introduzida por um “sujeito”, ou seja,
pela necessidade prática e vontade humana de falsificar o mundo, de impor formas
ao que é disforme, de simplificar o que é complexo, de regular o que é caótico, de
dar sentido ao que é sempre não-senso, de criar o Ser no que não conhece outro estado
senão o do devir.
Ficção. Todo conhecimento conceitual ou categorial produzido por essa escrita
é uma ficção reguladora, não tem valor de verdade, mas é relativo, interpretativo e
antropomórfico. Só pode ser assim, já que todo conhecimento não é uma verdade
ontológica – mesmo que esta fosse apreendida por meios intuitivos –, mas estritamente
operatório.
Imanência. A escrileiturartista integra uma doutrina da imanência.
Contingência. Cada texto é fragmentado e parcial; mas a escrileiturartista em si
não seria dada por sua soma, já que esta soma é contingente, encontra-se em devir per-
manente, enquanto sua perspectiva está continuamente se modificando.
Fluxo. Eternamente movente, maximamente diferenciada, heterogênea, incontável,
inumerável, a escrileiturartista é um vir-a-ser que não deriva de um estado anterior e
nunca atinge um estado final. Ela carece de medida, fundamento e finalidade. Ela é
acaso, contingência e necessidade. Caso fortuito, delírio, pathos da distância. Fluxo do
acontecer, continuum infinito de pontos de vista, força singular de experimentação do
alargamento de horizontes.
Maneirismo. A escrileiturartista é uma maneira de escrever, nem mais avançada ou
progressista ou evoluída ou científica ou lógica ou natural ou erudita do que as outras
escritas. Ela não sublima, não cura, não suspende a vontade, o desejo, o querer... Só que
ela sabe rir, comover, mover pernas e asas...

329
Faxina. A escrileiturartista não é nunca simples. Ela não normatiza, não repre-
senta, não conta história, não ilustra nem narra o que se passou. Algo passa por ela.
Traços, riscos, setas, marcas de espírito nela se exprimem e arrancam a significância
do texto. De qual texto? Ondas, cascatas, olhos de ciclones, as palavras desse texto não
correspondem a formas, mas só captam forças, que se exercem na folha em branco.
Em branco? De jeito nenhum; pois, se assim fosse, o escritor poderia reproduzir um
fato exterior, que funcionasse como matriz da escrita. Uma folha nunca está em branco,
à espera de ser preenchida. Uma folha está, desde sempre, cheia! Povoada de muitos
clichês, opiniões, imagens, lembranças, fantasmas, significantes. Por isso, o escritor-
artista é um faxineiro: ele esvazia, raspa, escova, limpa (cf. Deleuze, 2002). Ele escreve
sobre os códigos, palavras de ordem, regimes de signos, para rechaçá-los, embaralhá-
los, invertê-los, subvertê-los. No entanto, ele distingue entre o que lá pulula: aquilo
que favorece a escrita, o que a obstaculiza, aquilo que a bloqueia, o que deixa passar
intensidades. Porque ele sabe que, se apenas desmanchar reativamente o que encontra na
folha, engendrará outros clichês; os quais, como cabeças de hidra, renascerão enquanto
paródias, plágios, achados: “Tanta gente toma [...] um plágio por uma audácia, uma
paródia por um riso, ou, ainda pior, um miserável achado por uma criação” (Deleuze,
2002, p. 92). Portanto, é entre a cópia e a criação que o escritor faz marcas: livres,
acidentais, irracionais, involuntárias, ao acaso. Agora, essas marcas podem não dar em
nada, estragar a folha, não eliminar os dados. Acontece que o escritor sabe o que quer
fazer, mas não sabe como fazê-lo, nem no que vai dar. Uma questão de maneiras de
pensar e de modos de agir: artistagens da vida...

Ainda-não e póetica
As pesquisas em Humanas, assim como as concebemos ensaisticamente, na
medida em que são compostas experimentando-se, têm uma “intenção tateante” e são
tentativas de “acertar na mosca”, mesmo que conscientes da sua “própria falibilidade
e transitoriedade” (Adorno, 2003, p. 35). Nas tentativas falíveis e transitórias, como a
vida, importa que, com nossas pesquisas, e a partir delas, sigamos ensaiando a escrita
na universidade com o ainda-não. Ou seja, o ainda-não experimentado, o ainda-não
desejado, o ainda-não pensado, o ainda-não amado, o ainda-não pesquisado, o ainda-não
escrito, o ainda-não abandonado. Mas, quem sabe um dia ou uma noite...
Cientes de que a temática da escrita na universidade será sempre geradora de
conflitos e que, por sua importância vital para a academia, ela retornará ad infinitum,
suspendemos, por ora, nossa intervenção, interrompendo-a de forma poética, porque não
poderia ser outra.

330
Estamos fartas das pesquisas comedidas
das pesquisas bem comportadas.
Das pesquisas de burocracia pública e privada com prazos estabelecidos expedientes
protocolos roteiros introdução desenvolvimento conclusão.
Estamos fartos das manifestações de preço e de apreço
às pesquisas feitas nos programas de pós-graduação em Humanas com
notas 6 e 7 da Capes,
às metodologias consagradas,
às normas da ABNT,
aos relatórios do CNPq.
Estamos fartas das pesquisas que param e vão averiguar nos dicionários
o cunho vernáculo de um vocábulo.
Abominamos os pesquisadores puristas, continuistas e oportunistas,
que pesquisam e escrevem a mesma coisa durante a vida inteira.
Abaixo todas as suas palavras de ordem convencionais universais,
sobretudo suas gramáticas semânticas sintaxes
políticas e linguisticamente corretas.
Abaixo todos os seus ritmos sobretudo os quantificáveis
em tantos mil caracteres com ou sem espaço com ou sem referências bibliográficas.
Estamos fartas das pesquisas denunciadoras
Descritoras
Salvadoras
Raquíticas
Sifilíticas
Científicas
Medíocres
Do cotidiano
De gestão
Banais
Triviais
Tolas
Burras
De todas as pesquisas que capitulam ao que quer que seja
fora de si mesmas.
De resto não são pesquisas-escrituras.
Serão contabilidades tabelas de co-senos exigências do Sistema
exemplares de mil modelos de pesquisa que se podem encomendar na internet

331
e maneiras iguais
de agradar os órgãos de fomento, a Qualis, os homens do ministério
e as revistas A1 e A2.
Queremos antes as pesquisas loucas,
as pesquisas dos clowns e dos esquizofrênicos.
Queremos as pesquisas pungentes dos bêbados,
as pesquisas de fígados cambaleantes e de almas não menos ébrias.
Queremos as pesquisas
cujos júbilos não menos tóxicos
derretem a pesquisa palatável.
Não queremos mais saber de pesquisas que não sejam libertação de
A Pesquisa em Humanas.
A partir de nossas fantasias,
de algumas escrituras que já chegaram e de muitas outras que estão por vir,
só queremos pesquisas que,
por favor,
sejam scripturires.

Referências
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(Trad. Jorge de Almeida). São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2003.
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Sulina; EDUFRGS, 2008.
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DELEUZE, Gilles, GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. V. 2. (Trad.
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Deleuze, um começo para pensar. In: Revista Sul-americana de Filosofia e Educação
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KAHLMEYER-MERTENS, Roberto et. al. Como elaborar projetos de pesquisa: linguagem
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Paulo: DIFEL, 1985.

Artigo publicado na Revista Digital do LAV (Laboratório de Artes Visuais), Universidade Federal
de Santa Maria, Santa Maria, RS, v. 9, n. 2, maio/ago. 2016; integrante do Dossiê Temático
Leitura e Escrita: Povoamento entre “Linhas”, organizado por Vivien Kelling Cardonetti,
Marilda Oliveira de Oliveira e Leonardo Charréu.

333
CENAS E TEMPOS DE UMA
INFÂNCIA SEM FIM: O SENTIMENTO
TRÁGICO EM INCÊNDIOS

Sandra Mara Corazza


Deniz Alcione Nicolay

Este texto apresenta uma sequência de observações (e relações), do ponto de vista da


encenação trágica, sobre a peça Incêndios. Dessa forma, procura localizar fragmentos de
instante, de memória que possam ilustrar o caráter da personagem central: Nawal. Parte da
percepção do tempo e da distância dos sentimentos e, por isso, busca nas antigas tragédias
gregas noções constitutivas na composição das cenas. Assim, esse texto se aproxima
de Sófocles, mas, ao mesmo tempo, mantém a devida distância. Ele se aproxima ainda
da noção de Infância Sem Fim, uma vez que considera pertinente (e atual) a crítica do
dispositivo de infantilidade. Desse modo, manifesta apreço pelas infâncias do presente,
pela reflexão crítica que se sobrepõe ao discurso fatalista de nosso tempo.

As areias do tempo
A peça Incêndios de Wajdi Mouawad é extremamente prolífica em efeitos de sen-
tido, dramas pessoais, jogos de cenas, narrativas cruzadas. Trata-se de procurar numa
terra muito distante, do outro lado do oceano, fragmentos de vida para recompor o
quebra-cabeça da vida presente. Por isso, o tempo se intercala, entretempo, ele tem
um início na peça (a leitura do testamento de Nawal), mas não tem um fim previsível,
mesmo que as personagens executem os passos do referido testamento e desvendem

334
os segredos de Nawal. Existe um continuum residual (composto de imagens, detalhes,
cidades) que permanece na memória dos espectadores. A narrativa nunca termina
porque está presa no liame vital das personagens. Tal liame é como se fosse uma teia
que se tece e retece à procura da fibra comum: a grande mãe ou o grande pai. Entretanto,
não há uma origem de tudo, porque ela ultrapassa os tempos e os lugares. O drama
pessoal e familiar de Nawal supera os limites do individual para universalizar-se na
arte trágica. Assim como a trama das antigas tragédias gregas, sobretudo de matriz
sofocleana, Wajdi Mouawad parte dos interstícios da alma humana para fazer rolar as
águas de seu ananke inevitável. Na maldição dos labdácidas, por exemplo, as personagens
são livres para escolher seu caminho; porém, cada escolha tem uma consequência e
segue um curso incontornável até que o circulo se feche e cumpra integralmente a fala
do oráculo (Édipo Rei, Édipo em Colono). Ou seja, a criação do mundo exterior, da
convivência social e das relações, depende de uma projeção do mundo interior. Entre
amores e ódios, as personagens vagam pelo tablado da cena para encontrarem-se umas
nas outras. É como um exercício de interdependência, no sentido que ninguém vive
só, e que as ações transformadoras dependem do esforço coletivo. Dessa forma, a peça
Incêndios provoca reflexão sobre valores humanitários, do que realmente importa no
cotidiano das pessoas e, acima tudo, provoca o sentido da humanidade em nós.
Mas a reconstrução do passado, do passado de Nawal, só é possível por meio da
grafia ou do graphos pessoal da personagem. Ou seja, a escrita testamentária é a
escrita final da personagem; no entanto, ela sugere o início da história com a entrega dos
envelopes aos irmãos gêmeos que, com cuidado, tem atitudes absolutamente diferentes.
Por um lado, a filha Jeanne, estudante de matemática, fica apreensiva e curiosa sobre
o conteúdo dos envelopes; por outro, seu irmão, Simon, boxeador amador, demonstra
desinteresse pela escrita de tais envelopes. Mas é a insistência de Jeanne que levará
ambos ao encontro da verdade, silenciada durante anos na memória de Nawal. Escrita e
memória exercem aqui um papel edificante, pois é quando as vozes se calam na profusão
do tempo é que uma palavra, um nome tem o poder de libertar os signos do passado.
Cada linha, cada detalhe de composição, cada gesto de imagem carrega figurações de
realidades, vividas e experienciadas por quem já abandou o tempo físico. Porém, só se
pode reconstruir uma trajetória individual a partir desses pequenos vestígios. Se Nawal
deixa cartas, uma espécie de mapa e horas e horas de gravações vazias, ela também procede
como uma mente engenhosa. Na matemática, a teoria dos grafos estuda as relações dos
objetos em determinado conjunto (não é aleatório que uma das personagens, Jeanne, se
interesse por conjecturas matemáticas como também, por vezes, se expresse por meio
delas), ou seja, existem pontos, arestas, quadraturas, linhas, todo um jogo matemático
a serviço do tempo e das cenas. Em Incêndios predomina o número quatro, como um

335
quadrado interligado por duas faces, uma aparente outra oculta, uma dentro, outra fora,
uma aberta, outra fechada. A intensidade e o cruzamento entre as linhas de expressão
de cada cena, ou de cada Incêndio, desconstroem noções fixas de tempo e lugar. Claro,
a construção é fruto da singularidade do autor, mas também de uma personagem que,
mesmo morta, conduz a trama. Nawal é como uma Moira que tece o fio da vida, seguindo
os conselhos da avó Nazira: “Aprende a ler, a escrever, a contar, a falar: aprende a pensar.
Nawal. Aprende” (Mouawad, 2013, p. 49). É essa escrita que significa a possibilidade de
recriar passagens esquecidas, alimentando o drama psicológico das personagens.
Assim, torna-se coerente afirmar que em Incêndios, as infâncias do presente
carregam as marcas de Cronos (mas não partilham dele), enfurecidas pelas mazelas
da linhagem familiar. E, como o velho Titã que devora seus filhos, um por um, logo
após o nascimento, também essa infância da obra, negada no brio da existência, há de
se constituir como força de resistência aos efeitos devastadores do tempo. Por isso, as
infâncias do presente partilham do tempo kairós, o antípoda de Cronos. Kairós significa
o instante singular e, portanto, não representa um tempo absoluto, contínuo ou linear, mas
o momento apropriado em que a ação acontece. É de natureza qualitativa em detrimento
ao aspecto quantitativo do velho ceifeiro de cabelos brancos. Ele não reflete o passado,
nem pressente o futuro, mas compõe um momento para toda vida. Quando Nawal (em
Incêndios da infância) recorda o ônibus queimado: “Não existe mais tempo, Sawda.
Não existe mais tempo” (Mouawad, 2013, p. 77), ela revive os horrores da guerra por
meio de imagens estarrecedoras, recorda os sons e os apelos dos refugiados. São mais de
cinquenta anos de história que vão e vêm, personagens (vivos e mortos) que intercalam
diálogos, culturas que se entrecruzam, compondo uma cosmologia cenográfica que, a
cada recorte de tempo, instaura um quadro único. Ora, os antigos gregos acreditavam
que Kairós podia enfrentar Cronos, uma vez que se apresentava mais jovem e ágil que
seu oponente. Considerando que ele é esse tempo que amplia a percepção do presente, é
provável que também tenha cristalizado fragmentos da guerra na mente da personagem
central. Entretanto, ele não acumula memória, mas partilha da leveza e da rapidez. Com
efeito, é Mnemosine que liga o tempo à terra, fonte de perguntas e respostas sobre a
origem de tudo, embora nem toda informação mereça registro. Ela seleciona e aplica
o conhecimento de acordo com a sensibilidade do portador. É por isso que a persona-
gem (Nawal), na peça, lembra-se de alguns eventos muito específicos, quase sempre
relacionados à dor e ao sofrimento. Em algumas mitologias, Mnemosine aparece como
irmã de Cronos e Kairós como filho de Zeus. Mas, para além das linhagens titânicas e
olímpicas, importa referir que as infâncias do presente em Incêndios igualmente partilham
essa tríade funcional Cronos-Mnemosine-Kairós, exatamente nessa ordem. O tempo, a
memória e o instante extraordinário provocam efeitos de sentido, de compreensão da

336
trama e, por isso, perpassam a lógica dos espaços vividos, desconstruindo a consciência
identitária do ser infantil. Assim, não há uma infância singular, mas infâncias que se
enovelam na miséria humana.
Aliás, a definição de infância da personagem que representa o primeiro amor de
Nawal, Wahab, é curiosa e, ao mesmo tempo, profética: “Nawal, hoje à noite, a infância
é uma faca que estão enfiando no meu pescoço” (Mouawad, 2013, p. 45). Curiosa porque
é comparada a uma faca, uma forma de assassinato, do pai que perece para o nascimento
do filho. Wahab é forçado a sair de sua terra, do lugar de sua infância e, provavelmente,
não verá seu filho nascer. Profética porque o nascimento dessa criança significará
a desgraça de Nawal. O fruto do amor inocente, levado por Elhame para os lados do
sul, será alimentado pelo desprezo e pelo ódio, tornando-se um cruel assassino. Depois
do nascimento dos gêmeos (Incêndio de Sarwane), quando Simon lê a carta de Nawal,
aparece a mesma definição: “A infância é uma faca enfiada no pescoço” (Mouawad,
2013, p. 130). Ou seja, o tempo só prolongou o sofrimento, mas Nawal precisa que os
filhos descubram o segredo incestuoso para alcançar a redenção. É preciso reconstruir
a história e quebrar o ciclo de desgraças familiares. É preciso que o amor vença o ódio,
eis a grande mensagem da peça. A obra é uma tragédia pós-moderna e as infâncias do
presente estão por todos os lados. Elas estão no campo de refugiados em Calais, no
noroeste da França; em Dadaab, no Quênia; em Kawergosk, no Iraque; em Atmeh, na
Síria; em Kigoma, no noroeste da Tanzânia. Elas nascem e vivem em zonas de guerra no
Oriente Médio. Elas foram vítimas do massacre de Realengo, da chacina de Candelária.
Elas trabalham nas minas de carvão do norte e nordeste do Brasil. Portanto, a peça expõe
um problema de significação social, presenciado em nosso tempo pelas guerras e pela
exploração financeira do grande capital.

O sentimento trágico em Incêndios


É coerente afirmar que Wajdi Mouawad organiza a produção textual de Incên-
dios inspirando-se nas antigas tragédias gregas (séculos VI e V a.C.). Já referimos
sua proximidade com Sófocles. Mas porque Sófocles e não Ésquilo ou Eurípedes?
Porque os elementos esquilianos são demasiados primordiais, titânicos ou teofânicos.
Eurípedes representa a fase final da tragédia grega, substituiu a antiga Moira pelo
Eros civilizacional, ou seja, por ser o mais jovem dos três grandes poetas trágicos, ele
populariza mecanismos de persuasão e montagem, a fim de desmistificar os efeitos
trágicos da cena, descaracterizando o vínculo original da tragédia com o universo
místico religioso do povo grego. Mas isso também por obra dos efeitos da sofística e do
ambiente democrático da Pólis. Já em Sófocles, assistimos ao exercício da construção de

337
dramas antropomórficos, materializando o amor e o ódio genealógico. A semelhança de
Incêndios com Édipo-Rei é imediata, Jocasta revive Nawal, mas não há Édipo encarnado
na peça de Mouawad, tampouco a verdade é revelada no início como no clássico de
Sófocles. Esteticamente as obras se aproximam, talvez porque sustentem a seguinte
máxima do drama trágico: “A arte do grande poeta consiste em revelar-nos seus
pensamentos sem fugir à textura da obra de arte” (Lesky, 2003, p. 148). Isso significa
que Mouawad precisa pensar na composição do caráter de cada personagem, não apenas
pela necessidade de representação visual da peça, mas porque cada personagem é um
encaixe do quebra-cabeça, como um mosaico turco cujos ladrilhos minúsculos es-
tampam a tonalidade predominante da obra. As falas das personagens mais velhas
transcendem o espaço comum dos signos vulgares, servem como metáforas do segredo
terrível. O mecanismo trágico se afirma numa dupla causalidade, como se fossem as
faces de uma moeda: a face do destino e a face do homem. Ou seja, por meio desse
mecanismo, sabemos que a trama tem um destino inevitável, estarrecedor; entretanto,
isso não elimina a responsabilidade individual de cada personagem. É como se essas
duas faces coexistissem, emitissem signos, uma à outra, afim de que, em algum
momento, o círculo se quebre. É nesse sentido que aparece a afirmação de Nawal no
desfecho da peça: “As mulheres de nossa família estão todas presas numa teia de raiva
[...]. É preciso quebrar esse fio [...]” (Mouawad, 2013, p. 131). O apelo da personagem
é pelo rompimento de uma sina, a sina da dor, pois somente dessa forma aquela que
está morta poderá tornar os vivos melhores. Isso caracteriza o estilo clássico da peça,
a engenhosidade que provoca o sensível. Os pensamentos que questionam valores
e, sobretudo, os princípios que afirmam os pilares da civilização. Logo, distinguindo
razão e desrazão, pequenez e grandeza, afirmação e negação.
Tais considerações transcendem o palco real da encenação. O palco é o mundo e
a narrativa dramática, sua origem em terras distantes, compreende a passagem da
ignorância ao conhecimento. É muito claro o cunho social e transformador da peça,
assim como seu distanciamento do romantismo, do idealismo ou de qualquer matriz de
acepção burguesa. Existe uma concretude encarnada na representação. Tudo é tão real
a julgar pela compreensão do leitor e, quiçá, do espectador. Theatrum mundi da vida
cotidiana, cuja função dos seres humanos é servir de fantoche ao egoísmo e à hipo-
crisia, semelhante ao Mito da Caverna de Platão. O palco da encenação torna-se um
jogo de xadrez onde nós somos as peças. A sequência dos dias e das noites (inevitável
Cronos) são os quadrados brancos e negros por onde nos movemos. No percurso até
o outro lado do tabuleiro, acreditamos que alguns possuem mais poder e influência
que outros, mas todos acabam rumando para dentro da mesma caixa. Mas quem é o
jogador que nos move? Há de se concordar com a afirmação de Romilly (1998, p. 22):

338
“Cada tragédia significava presença, e uma presença aterradora”. Embora ela se refira
às antigas tragédias gregas, em Incêndios essa presença perpassa as cenas. É o fantasma
do outro desconhecido, o silêncio de Nawal, o pecado e o medo, o desterro dos filhos
e o abandono do pai, mas, acima de tudo, é o arrependimento da personagem central.
No tribunal dos homens, Nihad é condenado, vítima e algoz e, assim como Édipo, fura
seus próprios olhos, ele deverá ter coragem para esvaziar-se da vida; porém, a trama
encerra-se antes deste ato. Ora, estamos diante de um teatro social engajado, de uma
problemática contemporânea que assola todos os povos. Talvez haja certa proximidade
com Brecht (1898-1956), na utilização de técnicas e dispositivos a fim de provocar
a análise crítica do leitor (ou do espectador). Tal análise, portanto, não tem outra razão
que não seja o despertar da consciência política e democrática das nações.

Filoctetes e Nawal
À primeira vista uma personagem não tem nada a ver com a outra. São distantes
em todos os sentidos. Então, qual a relação possível? Já tratamos de alguns elementos
edipianos em Incêndios (mesmo sem o Édipo revelado). No entanto, a utilização de
um esquema trágico institucional extremamente simples, como o que é utilizado por
Sófocles no Filoctetes (a penúltima das sete tragédias conservadas e encenada em 409
a.C.) pode nos trazer detalhes comparativos, literários e estruturais com Incêndios. A
lenda é conhecida no universo homérico, porém, menos importante quando comparada
aos grandes heróis da Grécia. O guerreiro Filoctetes, portador do arco de Hércules, é
abandonado na ilha de Lemnos por seus compatriotas, após ser picado por uma serpente.
A ferida nunca cicatriza e por dez anos vive isolado na ilha. Mas, após inúmeras batalhas,
os heróis da Grécia são avisados por um oráculo que só conseguiram tomar Tróia se
contar com a presença de Filoctetes e seu arco. Ulisses convence o jovem Néoptólemo,
filho de Aquiles, a enganar Filoctetes e trazê-lo novamente ao front de batalha. De pária
a herói, eis a breve sina do miserável personagem. Mas são os elementos utilizados por
Sófocles que nos permitem traçar paralelos com Nawal. Uma ferida que nunca cicatriza,
o abandono, o silêncio, o retorno ao passado como condição de compreensão do presente,
a redenção na imagem do menino. Essas são ações que poderiam ser aplicadas tanto
numa tragédia quanto na outra. Embora Filoctetes não comporte nenhum papel feminino,
talvez pelo respaldo institucional e jurídico da Pólis grega da época, existe um universo
sensível que brota de cada verso. Em Incêndios, ao contrário, a potência afirmativa
feminina é definitiva para a mudança de caráter das personagens. Os irmãos gêmeos, por
exemplo, sofrem uma espécie de mutação durante a peça. Eles vão sendo melhorados,
melhorando-se ao descobrir os segredos de Nawal. No Filoctetes também, pois o jovem

339
Neoptólemo inicialmente aceita o plano ardiloso de Ulisses para roubar o arco do
herói; no entanto, após conversar com este, o jovem muda radicalmente seus planos.
Outra relação próxima é a interdependência tempo-lugar. Além do que assinalamos
anteriormente, importa saber que o lugar da ação manifesta a compreensão geográfica da
condição social da personagem. O homem é húmus, é terra, é barro, é argila do continente
onde nasceu, por isso é simbólico o pedido de Nawal durante a leitura do testamento:
“Me coloquem no fundo de um buraco, com a cara contra o mundo” (Mouawad, 2013,
p. 25). Numa atitude de humildade e desprezo, a personagem assume o peso da condição
humana, afirma a sua absoluta imperfeição. Ainda nessa linha, estendendo-a para o
Filoctetes, cujo isolamento na ilha de Lemnos provoca-lhe a extração dos mais pro-
fundos instintos de sobrevivência (próximos do mundo animal), há de se aproximar da
barbárie de Incêndios, da selvageria que cruza naturalmente o mundo civilizado. Porém,
não são mundos muito distantes se considerarmos a construção cultural da vida em
sociedade. Um fio tênue separa civilização e barbárie. Assim, a peça mostra que não
existe tempo definido, nem evolução dos sentimentos, mas uma sequência de erros e
acertos à mercê das forças da natureza. Filoctetes é o eu masculino de Nawal, ainda
que Nawal não seja o eu feminino de Filoctetes, ela se mantém como uma verdadeira
heroína de resistência ao mundo bestializado.

Infâncias do presente e Infância Sem Fim


Se há uma infância em Incêndios, ela não personifica nenhum personagem. Com
efeito, não há ator na peça que represente uma criança. Das idades da vida, a infância
está fora. A infância de Nawal, por exemplo, acontece em meio à pobreza, a guerra
e a miséria. Próximo ao caos e ao extermínio, não há espaço para a manifestação do
sentimento moderno de apreço pelas crianças. Mesmo que esse sentimento seja fruto
do drama burguês, como assinala a história das mentalidades de Philippe Ariès (1981)
é possível afirmar que, nos campos de refugiados, não chegam presentes de natal. “A
infância é uma faca enfiada no pescoço”, eis a máxima que predomina no texto. Na
estrutura da peça, ela simboliza o início e o fim, uma espécie de morto social que carrega
a esperança nos ombros. Ao transpor tal problemática para o contexto das discussões
políticas, econômicas e culturais contemporâneas, Mouawad pretende abrir os olhos do
mundo, denunciar que não há futuro para as crianças se não tratarmos as feridas do
presente. É Cronos que devora seus filhos, pacientemente, sem nenhuma possibilidade
de libertação. No entanto, o tempo ideal desse ser infantil é o tempo Aion porque partilha
do presente transformador. Tempo de intensidades, de brincar com os números e com
as pedras ao modo heraclitiano. Nele, o poder criador e imagético se manifesta como

340
um momento à parte do tempo Cronos (Kohan, 2004). Por isso, há a necessidade de
se reinventar a experiência, distante da maldade e do ódio, para que, assim, crianças
não empunhem fuzis, meninas não sejam violentadas, mães e pais não chorem a morte
de seus descendentes.
Nesse sentido, aproximamos a temática das infâncias do presente com a ex-
pressão “infância sem fim” (Corazza, 2000), uma vez que colocamos em evidência
questionamentos que circundam a passagem entre a infância moderna para, talvez, a
infância contemporânea. Mas porque referimos esse “talvez”? Porque não há nenhuma
clareza absoluta quanto aos movimentos transculturais, de messianismo religioso,
de intolerância entre povos de uma mesma nação, ou seja, do que realmente irá
acontecer daqui há uma ou duas décadas nos campos de refugiados, por exemplo. Não
sabemos se ocorreu uma passagem na história ou se ela nunca existiu. Tal afirmação
é mais coerente e cuidadosa hoje depois da verificação de vários eventos de natureza
econômica ocorridos após os anos noventa. Falávamos no “fim da história” (Fukuyama,
1992) e, por consequência, no fim da infância (Postman, 1999). A presença do novo
milênio que se anunciava trazia consigo o debate de muitos problemas, sobre a
organização da vida e do mundo. É evidente que as diretrizes pós-modernas em relação
aos efeitos culturais são mais antigas, mas só se vislumbraram com intensidade nos
anos setenta, oitenta e noventa. É nessa linha, também, que operamos com o que deno-
minamos “dispositivo de infantilidade” na intenção de erigir análise crítica sobre o
suposto “fim da infância”. Daí uma de nossas problemáticas essenciais: “Em outras
palavras: existiria uma ruptura histórica entre a ‘Idade da Infância’, a análise crítica do
‘Fim da Infância’ e os anseios e práticas culturais em prol de uma ‘Infância Sem Fim’”
(Corazza, 2000, p. 29)? Com efeito, só sabemos de uma concepção quanto da outra
por artifícios do aparato simbólico da linguagem. São os mecanismos tecnopolíticos de
produção de sentido que operam a tríade poder-saber-verdade. Eles fazem essa tríade
funcionar como uma máquina de atualização e reatualização de dados estatísticos,
mormente apregoadas pelas mídias de comunicação e pelo gerenciamento econômico
das grandes potências. Ora, certamente quem escreve a história e quem manipula o
dispositivo de infantilidade não são os habitantes dos campos de refugiados. A infância
é tão vítima quanto o que se fez dela por meio desse dispositivo. Ela é um excedente
da história e da produção desordenada e, por isso, está à margem do tempo e das so-
ciedades civilizadas. Ainda é muito atual o apelo do autor do Desaparecimento da
Infância: “Não é concebível que nossa cultura esqueça que precisa de crianças. Mas está
a caminho de esquecer que as crianças precisam de infância” (Postman, 1999, p. 167).
Seu repúdio serve perfeitamente no contexto de Incêndios, mais pelo núcleo da crítica
social levantada do que pela estética cenográfica. Portanto, “infâncias do presente”

341
e “Infância Sem Fim” estendem linhas sintomáticas de proposição e juízo. Não é
possível compreender as matérias do presente sem recuarmos na história e analisar-
mos os avanços (e retrocessos) do grande capital. Trata-se de um estudo geopolítico,
observando o desenvolvimento dos dispositivos institucionais de uma nação ou país,
aliado de ferramenta crítica genealógica que avalie as dimensões (e intensidades) do jogo
de forças presentes na política e no controle econômico. Mas, assim como Incêndios já
queimou os quadrados das cenas, um estudo estrutural nessa direção implicaria extrapolar
os limites do presente texto e, por consequência, também queimaria seu fundamento e
intenção.
Importa saber que a noção de “dispositivo de infantilidade” é tributária da esteira
foucaultiana. A infância, como as demais composições da subjetividade contemporânea,
foi objeto de estudo e análise do filósofo. Talvez menos a condição etária da criança,
mas, de um modo geral, o sujeito como instância nuclear da modernidade. Desse modo,
associamos o termo dispositivo à infância para tratar dos modos de subjetivação e
produção do ser infantil. Ora, se a compreensão foucaultiana acerca do termo “dispo-
sitivo” parte da análise das sociedades disciplinares dos séculos XVIII e XIX, sobretudo
pela percepção da mutação sofrida pelo mecanismo conhecido como “Panoptismo”,
torna-se coerente aproximar este termo das praticas culturais de nosso tempo e, sobretudo,
das ponderações que assinalamos na obra História da infância sem fim (Corazza,
2000). Ainda sobre tal mecanismo, é esclarecedora a definição dada por Deleuze (1988,
p. 43): “A fórmula abstrata do Panoptismo não é mais, então, “ver sem ser visto”,
mas impor uma conduta qualquer a uma multiplicidade humana qualquer”. Ou seja,
trata-se de elucidar formas de agenciamento e controle, inseridas no próprio espaço de
convivência social, cujo motor propulsor é uma engrenagem informe, imperceptível, mas
que exerce atividade direta na vida das pessoas. É uma pragmática de governo mais
diluída, mais sensível que os modelos repressores da Idade Média, porém com mais
potência e capilaridade quando se trata da produção discursiva e dos efeitos de sentido.
Essa máquina complexa (e produtiva) receberá de Deleuze (1988, p. 44) o nome de
“diagrama”. Com efeito, a noção de diagrama se aproxima da noção de dispositivo e não
seria absurdo equalizar procedimentos e metodologias de pesquisa nessa direção. Isso
faz com que pudéssemos afirmar, a partir dessa perspectiva que: “[...] o dispositivo forma
um conjunto multilinear, composto por linhas de diferentes naturezas que não abarcam
sistemas, onde cada um é homogêneo por sua conta, tal como o sistema do sujeito,
do objeto e da linguagem” (Corazza, 2000, p. 46). É claro que tivemos o cuidado de
observar, nessa afirmação, as três grandes instâncias analisadas por Foucault, ou seja, as
instâncias do saber, poder e da subjetividade. Ao mesmo tempo, tratando-se do dispositivo
de infantilidade e de sua constituição diagramática é oportuno que manifestássemos

342
intenção de mapear o terreno por onde essas linhas discursivas pretendiam trilhar
significados acerca da história da infância. Não apenas da história, compreendida
como ciência que estuda o passado da humanidade, seu processo de evolução (linear,
temporal), mas uma espécie de história do presente que põe em evidência a genea-
logia das relações de força entre o regime de enunciados. Dessa forma, a própria
história é duplicada de maneira coextensiva a todo campo social. Ela nunca é definitiva,
mas parte de pontos de emergência (e proveniência) que se entrecruzam em continuuns
temporais. Portanto, tratar de infâncias do presente é conjuntamente considerar tais
aspectos teóricos metodológicos sobre uma analítica dos modos de subjetivação
contemporâneos, quer seja na realidade das grandes cidades, quer seja no contexto da
peça Incêndios.
Aliás, a partir desses apontamentos, considerando o dispositivo de infantilidade,
podemos tentar compreender parte da trama que envolve a personagem Nihad. Ele
foi abandonado quando nasceu por Nawal, persuadida por sua mãe Jihane. As razões
desse ato não são muito claras na peça, presumimos que em decorrência da miséria
familiar e da pouca idade de Nawal, que contava quinze anos quando do nascimento
da criança (era um menino, Nihad). Ele foi levado por Elhame após o nascimento, mas
Nawal promete: “Aconteça o que acontecer, te amarei para sempre! Aconteça o que
acontecer, te amarei para sempre!” (Mouawad, 2013, p. 47). E, num último gesto de
despedida, Nawal coloca um nariz de palhaço nas fraldas da criança. De alguma forma,
esse gesto marca o início dos percalços pelos quais passou a personagem central. A
referência ao nariz de palhaço aparece mais uma vez, ao final, quando Nihad está sendo
julgado por seus crimes, inclusive pela tortura da própria mãe. Ele refere: “Minha
dignidade é uma careta deixada por aquela que me deu a vida. Essa careta nunca me
deixou” (Mouawad, 2013, p. 125). Então, ele coloca o nariz e canta uma canção,
não da mulher que canta, mas do seu próprio repertório. Ou seja, parte do enredo se
fecha, simbolicamente, com o nariz de palhaço. Mas como atravessarmos o dispositivo
de infantilidade nessa direção? A partir do que assinalamos no texto, Nihad foi tão
vítima dos mecanismos de produção de subjetividade quanto culpado de seus crimes.
Ele era uma peça da engrenagem da máquina social abstrata, uma espécie de fantoche
guiado por outros interesses. E, se ele tivesse nascido (e criado) fora do campo social
onde viveu e cresceu, qual seria o desfecho da história? É disso que se trata. Ora, Nihad
costumava fotografar suas vítimas como um palhaço cruel da sociedade do espetáculo,
colecionador de imagens vazias. Claro que essa não era a intenção de Nawal, o nariz
deveria significar inocência e alegria; porém, converte-se em rancor e desprezo. Mesmo
assim, há que se admirar o brio da personagem central, aquela que conta histórias
dentro da história.

343
Verdade, narrativa e expiação
Também é por meio de sua boca que ouvimos, ao final da peça, na leitura do
envelope, a seguinte afirmação: “Há verdades que só podem ser reveladas se forem
descobertas.” (Mouawad, 2013, p. 132). Essa concepção de verdade, manifestada pela
personagem central, merece atenção na medida em que implica a compreensão da
essência narrativa do drama. É como se tal personagem exercesse a função de oráculo
que decodifica o presente e o passado. A escrita do envelope que, de alguma forma,
personifica a fala de Nawal, traz até a cena um quadro de acontecimentos capazes de
recriar a história de vida de cada indivíduo envolvido na trama. Ela abre a possibilidade
de se reescrever, a partir daquele instante, da leitura da carta, uma gama de experiências
produtivas, porque seus atores já sabem de onde vieram, mas, obviamente, não sabem
para onde vão. Essa forma de presentificação do tempo é própria dos efeitos da ação
narrativa desenvolvidos pelo autor da peça, porém partilhada pela personagem que
narra o evento. Ou seja, isso faz com que se possa diminuir a distância entre os ele-
mentos do enredo e a sequência dos acontecimentos que dão continuidade aos atos de
fala. Dessa forma, entendemos que o conjunto trágico evidenciado por Incendios se
prende num jogo complexo de sentidos e representações imagéticas que põem em
movimento episódios construídos, acima de tudo, para o campo do tablado cenográfico.
Já na Poética, encontramos a definição de quatro tipos de tragédias: a complexa, a
patética, a de caráter, as de monstros (Cf. Aristóteles, 2005, p. 39). Ora, pela
engenhosidade ficcional da peça, pelas idas e vindas do discurso narrativo, diríamos
que a obra de Mouawad se enquadra na primeira definição aristotélica. Ainda que tal
afirmação possa parecer precipitada, uma vez que a preocupação do velho estagirita está
muito mais na distinção entre tragédia e epopeia e na descrição da linguagem poética
do que em classificar a constituição complexa da tragédia; ainda assim, pela riqueza
de elementos nessa direção (que fazem parte da peça) é justo sinalizarmos tal atributo.
Mas as aproximações param por aí, pois ocorre o risco de transformarmos a estética
do drama cênico numa série normativa de gestos e falas, além de moralizar o discurso
das personagens. Com efeito, quanto menos cristianizarmos a obra, quanto menos utili-
zarmos categorias de juízo e redenção, tanto mais será possível decifrar (e apreciar) as
passagens do jogo dramático. Inclusive, o efeito catártico não segue a regra definida
pela Poética, qual seja, a regra de inspirar “pena e temor” no espectador a fim de que
este “opere a catarse própria dessas emoções” (Aristóteles, 2005, p. 24). Claro, não
temos como apreciar o sentimento e as emoções desses espectadores, uma vez que se
trata da representação de uma ação (mimeses), do instante específico em que ela ocorre.
Além do mais, o conceito de catarse não tem uma tradução precisa a partir da Poética.

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No drama moderno, por exemplo, tal conceito se aproxima das ideias de ‘purificação’,
‘compensação’, ou seja, de uma descrição moralizada acerca da tragédia antiga. No
entanto, sabemos por meio do livro VII da Política de Aristóteles que, ao tratar dos efeitos
catárticos da música, ele sinaliza para o caráter terapêutico de tal conceito. Identifica este
como uma espécie de ‘descarga de emoções’ capaz de melhorar os sintomas vitais, mas
apenas no momento em que ocorre a ação. Acontece que Nawal foge à regra, já que
está morta na ocasião da leitura das cartas e, portanto, o efeito catártico não se aplica a
presença da personagem. Ela não é melhorada pelo evento. No entanto, na memória de
seus filhos, ela assume atributos (ou caracteres) que vão personificando uma imagem
positiva da mesma. Por meio dessa imagem, o autor se utiliza como guia da narrativa,
sem a qual as personagens não chegariam ao conflito pulsional da obra. Ou melhor, não
chegariam a ‘desvelar a verdade’ que já estava presumida de antemão, porém foi sendo
construída por cada um dos filhos. Em razão disso, devemos aproximar Incêndios da
antiga forma da tragédia grega de interpretar o evento (ou o acontecimento), chamada
por Nietzsche (2006) de ‘Ereignis’. Nesse ponto, não devemos entrar no mérito da
compreensão heidegerriana da expressão, mas na ênfase destacada pelo filósofo de
Sils Maria, já que tal linha de interpretação (a de Heidegger) foge do contexto de nossa
abordagem. É na Introdução à tragédia de Sófocles (2006) que Nietzsche diferencia
a tragédia grega da tragédia moderna, utilizando esse termo (ereignis) para referir-se
ao instante trágico como uma experiência direta e imediata do publico presente. Era
como se ocorresse uma espécie de exercício democrático baseado na aceitação dos
diferentes (mulheres, escravos...). Nas suas palavras: “Reunião total do povo, que
reencontrava seus representantes no coro (vox populi) e seu ideal nos heróis, que eram
habituados a entender tudo politicamente como homens políticos por excelência.”
(Nietzsche, 2006, p. 58, §3). Esse é um momento em que a tragédia grega, no ambiente
da polis, não é deturpada pela atmosfera da corte como será posteriormente com
Eurípedes. A mesma sina ocorre com a tragédia moderna, ela não é mais popular,
mas apenas um artifício de distração das massas. Entendemos aonde Nietzsche quer
chegar ao atribuir essa expressão (Ereignis) ao estado de presença do drama trágico.
Significa o desencadeamento do ‘inédito possível’, cujo desfecho não é preconcebido
de antemão, mas imprevisível e instantâneo. Não é aleatório que o filósofo irá atribuir
importância maior à noção de pathos que, necessariamente, a concepção aristotélica de
ação na tragédia clássica. É o pathos que aproxima os indivíduos e, ao mesmo tempo,
os afasta do vitalismo estético grego. Espécie de mediador entre o sentimento trágico e
a dimensão afetiva do conhecimento humano. Por isso, a noção de verdade na narrativa,
sobretudo na fala de Nawal, vai nessa direção, ou seja, na direção de Ereignis. A verdade
como acontecimento, que se desenrola conforme o grau de afecção investido por seus

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atores. Logo, não há verdade no sentido metafísico do termo, mas sinais que ocorrem
diante de nossos olhos e que determinam a sequência dos fatos.
São esses sinais que auxiliam na construção do aparato discursivo responsável
pelas mudanças entre as personagens. Jeanne, por exemplo, que media os problemas
do cotidiano semelhante à resolução de conjecturas matemáticas, de maneira lógica
racional, acaba desabafando: “Hoje, aprendi que é possível que do ponto de vista que
ocupo, eu possa ver também meu pai; aprendi também que existe um outro membro
desse polígono, um outro irmão.” (Mouawad, 2013, p. 38). Isto quer dizer que a
quadratura da história de vida da personagem não está completa, falta um ângulo, uma
linha desconhecida e invisível. É quando o olhar se detém na possibilidade de traçar
outros planos e avista algo na periferia da retina, mas não identifica a natureza do
objeto. Por isso, se abre para o desconhecido, para o lado oposto do polígono que jamais
aparece porque está encoberto pela lembrança do sofrimento. Esse impulso à procura
da verdade, por parte de Jeanne, independe da ordem lógica dos fatos. A probabilidade
de que o pai, e o irmão perdido, estejam vivos é muito pequena. Tampouco a sentença
especular de que ambos são a mesma pessoa, já que essa é uma hipótese mais distante
ainda da visibilidade concreta do polígono. No entanto, Jeanne desconfia do que é
dito, do cálculo exato, pois não acredita no que não vê (nunca viu o pai ou o irmão
morto), nem naquilo que lhe contaram quando ainda era criança. Então, decide assumir
a escrita de seu destino, procurando vestígios, pistas, signos sonoros capazes de recriar
uma história, como a estória de um conto daqueles das mil e uma noites. Nesse caso,
verdade e ficção estão muito próximas, não se sabe qual delas produz a outra, não há
certeza nos enunciados escritos, nem nas vozes proferidas no discurso. As palavras
podem enganar os ouvintes. A sentença de Nawal é clara: “[...] As palavras são horríveis.
É preciso ficar lúcido. Enxergar. Fazer como os antigos: tentar ler presságios no voo
dos pássaros. Adivinhar.” (Mouawad, 2013, p. 80). Significa que toda verdade é apenas
interpretação de interpretação. Cada palavra que vem a luz carrega o peso condicionante
das estruturas da linguagem, das teias gramaticais. Elas (as palavras) são limitadas,
uma vez que existem acontecimentos que elas mesmas dificilmente assimilarão. Tal
perspectiva é partilhada por Nietzsche na obra Sobre verdade e mentira (2008). Em
algumas traduções essa obra recebe um complemento no título: o termo extramoral,
intitulando-se Sobre a verdade e a mentira no sentido extramoral. Talvez seja o período
mais cético da produção do filósofo, período em que associa a verdade ao aniquilamento
da espécie humana. Em contrapartida, inspirado na tragédia ática, ele vê a arte como
a única alternativa para salvação do espírito. Agora, a verdade em oposição à mentira
é uma criação da atividade gregária da civilização no seu longo processo de interiori-
zação do homem. Por conseguinte, como uma espécie que precisa sobreviver e

346
dominar a outra, o homem de rebanho atribui o nome de verdade a tudo aquilo que
pode preservá-lo e, de mentira, o que pode destruí-lo ou descartá-lo; daí, as palavras
serem usadas pelo seu grau de utilidade em determinada ocasião. Pode-se acompanhar
Nietzsche quando questiona: “O que é, pois, a verdade? Um exército móvel de metáforas,
metonímias, antropomorfisimos, numa palavra, uma soma de relações humanas que
foram realçadas poéticas e retoricamente, transpostas e adornadas [...]” (Nietzsche, 2008,
p. 37, § 1).
Aqui, o filósofo critica a superficialidade da linguagem que utilizamos, já que
apenas reproduzimos sentenças canônicas balizadas por séculos de civilização. Re-
produzimos modos de fala e de representação do pensamento, utilizamos conceitos
chaves para definir um objeto, mas nunca investigamos a natureza das expressões
socialmente aceitas, tampouco questionamos a validade dos nomes. É como se, ao nascer,
o ser humano entrasse numa máquina de decodificação de signos cujos valores e sentidos
fossem determinados de antemão. Com isso, Nietzsche, por meio da valorização do
senso estético das artes, quer destacar a importância de determinadas virtudes, tais como
o esquecimento e a intuição. A primeira porque significa uma forma de esvaziamento das
pseudoverdades que marcam a existência e, a segunda, porque proporciona o raciocínio
imediato sobre determinada ação, refutando, assim, os domínios da razão. Também
Jeanne se vale dessas virtudes quando não aceita a comodidade dos fatos, deixa-se levar
pelo relato improvável da carta póstuma. Ela compreende que a verdade é uma ficção,
depende da potência e da sinergia do evento e, portanto, muitas páginas ainda estão para
serem escritas.
Já falamos da possibilidade de realizar uma leitura descristianizada de Incêndios ou,
quando muito, evitar o hábito de julgamento moral das cenas que compõem o enredo.
Isso porque é muito fácil enquadrar as personagens num rol de caracteres estereotipados.
Assim, encontramos o velho, a mocinha, a heroína, o bruto, a velha, até mesmo o vilão.
Mas não se trata de elencar arquétipos cenográficos à peça de Mouawad, ela não ocorre
nessas condições, nem é possível enquadrar as personagens num único tipo. Com efeito,
a tipologia de Mouawad não se enquadra num esquema clássico de representação da
vida cotidiana. Por vezes, a peça parece com a vida mesma, dado o peso realístico da
trama. É o movimento das falas e o uso do tempo que deslocam as personagens do lugar
comum da encenação dramática. Isso evita uma série categorizada de ideias prontas,
rolls e clichês. Nawal, por exemplo, é representada em três ou quatro momentos da
vida. Claro, todos são importantes e necessários ao conhecimento do drama. Mas é
esse entrecruzamento de falas, tempos, regiões, idades que proporcionam a riqueza de
detalhes, a produção do evento. Ainda em relação à Nawal, como a peça inicia com a
morte da personagem é de praxe no drama trágico procurar o bode expiatório. Ou seja,

347
aquele indivíduo que é responsabilizado pelos pecados da humanidade e, como tal, deve
sofrer martírios até alcançar a redenção. Ora, sabemos que prolongar o sofrimento é
uma especialidade da tragédia edipiana e, na religião, o próprio fundo trágico dionisíaco
serviu de matriz para a morte de Cristo. Entretanto, não devemos conceber nem uma
forma de expiação nem outra. Afinal, por quais falhas e erros Nawal foi condenada?
Quem deve ser culpado pelos erros genealógicos que transcorrem na peça? Essa procura
é infinita porque partilha do sentido trágico original, espécie de niilismo intrínseco a
condição humana. Vamos encontrá-lo na sabedoria céptica do velho Sileno na obra O
nascimento da tragédia de Nietzsche: “Estirpe miserável e efêmera, filhos do acaso e
do tormento! Por que me obrigas a dizer-te o que seria para ti mais salutar não ouvir?
O melhor de tudo é para ti inteiramente inatingível: não ter nascido, não ser, nada ser.”
(1992, p. 36, §1). Tal passagem ilustra o pessimismo que brota da tragédia grega e, por
isso, segundo Nietzsche, a revigoração do campo estético dionisíaco-apolínio. Significa,
sobretudo, no âmbito de Incêndios, que não há um culpado individual pelas mazelas do
destino. Nenhuma heroína como Nawal, por exemplo, deve sofrer as consequências por
seus atos. O que existe é a transposição de um drama da própria humanidade, de maneira
que os erros, as falhas são comuns a todos. Talhada pela imperfeição, a humanidade
segue seu caminho acreditando nas metáforas que ela própria inventou. E, quem sabe,
toda essa trajetória não seja apenas um conto ou uma canção de ninar.
Agora, se a infância é ‘uma faca enfiada no pescoço’ é porque o sofrimento se
prolonga por décadas. É preciso retirar essa faca, fazê-la embainhar um cabedal de
misérias e tormentos. Talvez a ação mais complexa seja exatamente o ato de retirar essa
faca e refletir sobre o que fazer depois. Não é o passado que condena o erro, porém, as
verdades que inventamos para justificar a frieza, a desfaçatez frente aos horrores do
presente.

Considerações finais
Qualquer estudo que se faça sobre a peça de Wajdi Mouawad, Incêndios, acarreta a
possibilidade de incorrermos no reducionismo de conteúdos e na pobreza de expressão.
Trata-se de uma peça de teatro e é como tal que deve ser analisada, de modo que tudo
que fizemos até aqui mereça a nomenclatura de estudo parcial sobre a temática social
provocada pelo drama trágico da personagem. A riqueza dos detalhes, o movimento das
cenas, a caracterização dos atores, a incorporação das falas e a habilidade de interpretação
estão fora dessa análise. Da mesma forma, não se deve entender que partimos de uma
simples resenha crítica sobre a peça, pois, deste modo, teríamos que assisti-la várias
vezes para contrapor enredos. Tal procedimento poderia, ainda, criar uma espécie de

348
psicologização do texto escrito. Se assim pareceu ao leitor, não foi essa a intenção.
Apenas estendemos linhas possíveis, sem individualizar a análise. Num universo poético
de muitas interpretações, esta é apenas uma delas.

Referências
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Paulo: Cultrix, 2005.
ARISTÓTELES. A política. (Trad. Nestor Silveira). São Paulo: Folha de São Paulo: 2010.
ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. (Trad. Dora Flasksman). Rio de
Janeiro: LTC, 1981.
CORAZZA, Sandra Mara. História da infância sem fim. Ijuí: Ed. Unijuí, 2000.
DELEUZE, Gilles. Foucault. (Trad. Claudia Sant’Anna). São Paulo: Brasiliense, 1988.
FUKUYAMA, Francis. O fim da história e o último homem. (Trad. Aulydes Soares Rodrigues).
Rio de Janeiro: Rocco, 1992.
KOHAN, Walter. A infância da educação: o conceito devir-criança. In: KOHAN, Walter
(Org.). Lugares da infância: filosofia. Rio de Janeiro: DP&A, 2004. p. 51-68.
LESKY, Albin. A tragédia grega. (Trad. J. Guinsburg). São Paulo: Perspectiva, 2003.
MOUAWAD, Wajdi. Incêndios. (Trad. Angela Leite Lopes). Rio de Janeiro: Cobogó, 2013.
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo.
(Trad. J. Guinsburg). São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Sobre verdade e mentira. (Trad. Fernando de Moraes
Barros). São Paulo: Hedra, 2008.
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Introdução à tragédia de Sófocles. (Trad. Ernani Chaves).
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006.
POSTMAN, Neil. O desaparecimento da infância. (Trad. Suzana Menescal de A. Carvalho e
José Laurenio de Melo). Rio de Janeiro: Graphia Editorial, 1999.
ROMILLY, Jaqueline de. A tragédia grega. (Trad. Ivo Martinazzo). Brasília: Editora
Universidade de Brasília, 1998.
SÓFOCLES. Filoctetes. (Trad. Trajano Vieira). São Paulo: Ed. 34, 2009.

Artigo publicado em Childhood & Philosophy: Revista do Núcleo de Estudos de Filosofias


e Infâncias (NEFI/UERJ e do International Council for Philosophical Inquiry with Children
(ICPIC), Rio de Janeiro, RJ, v.12, n. 23, jan./abr. 2016; integrante do Dossiê Incêndios: Infâncias
do Presente, organizado por Julio Groppa Aquino e Fabiana A. A. Jardim.

349
PENSAMENTO, CINEMA
E ESTÉTICA DO TEMPO

Ana Carolina Acom


Sandra Mara Corazza

Ontologia da imagem no cinema

Deleuze escreve com o cinema um livro de filosofia, ou melhor, dois livros:


Cinema I: A Imagem-Movimento e Cinema II: A Imagem-Tempo. Estas obras não se
tratam de uma historiografia do cinema, mas trazem os processamentos que a imagem
faz ao longo das épocas, através de uma ontologia da imagem (Rancière, 2001). De
toda forma, são documentos conceituais valiosos, tanto para a história do cinema,
como para a pesquisa imagético-estética em diferentes camadas da filosofia, educação,
comunicação e artes.
“A Pesquisa-filosofia não é uma teoria; é uma arte de mergulhar na zona peculiar
do impensado, que desestabiliza as ideias feitas, na qual tanto a arte como o pensa-
mento da pesquisa adquirem vida e descobrem as suas ressonâncias mútuas.” (Corazza,
2004, p. 26). Segundo Deleuze (2003), a filosofia não é feita para “refletir sobre”,
dizendo isso lhe tiramos tudo. A filosofia consiste em criar ou inventar conceitos. A
teoria cinematográfica deleuziana apresenta o cinema como infinita possibilidade
criativa para a filosofia. O cinema como arte, permite à filosofia posicionar-se em re-
lação com o “todo”. Este estudo almeja visualizar, em obras produzidas pelo cinema:
matéria e pensamento.

350
O cinema para Deleuze pode ser visto como campo de experimentação do pensar
e uma forma extraordinária de pensamento (Vasconcellos, 2006). Para a filosofia e a
arte serem consideradas formas do pensamento ou da criação, elas são trazidas a
experiências-limites, ao desacordo dos dados sensíveis. Como se o próprio da arte fosse
pura sensação, a paisagem que se vê, o pensamento que se pensa, precisamente aquilo
que o homem não pode descrever, uma sinfonia dionisíaca e discordante.
Esta pesquisa é uma tentativa de situar o pensamento cinematográfico deleuziano
pelo viés da estética como modo de pensamento. Neste sentido, a estética nasce como
modo de pensamento quando o cinema torna-se matéria sensível pura. Para isso, é
preciso expor o estudo dos conceitos de imagem e de pensamento na obra de Gilles
Deleuze, e como o filósofo os desenvolve em suas teorias sobre o cinema. O trabalho
será construído através das condições de possibilidades do pensamento pela imagem-
movimento e imagem-tempo, e por via da aproximação da teoria deleuziana, de como
se dá a “gênese do pensamento no pensar”, com a filosofia estética kantiana. Essas
associações parecem válidas, sobretudo quando materializadas na arte, dentre elas, a
arte cinematográfica, principal foco desta pesquisa.
A teoria sobre a experiência estética kantiana, vinculada ao prazer oriundo da arte
na beleza e no sublime, parece pertinente à gênese do pensamento em Deleuze. E ao
tratar da sétima arte, observa-se o pensamento em imagem, dessa forma, a experiência
estética materializada na tela da sala escura.

Possibilidade do pensar no cinema


As imagens que o cinema produz são carregadas de potências que nos forçam a
pensar, e este pensamento que é provocado pelas imagens do cinema vão nos provocar
um choque. Na imagem-movimento, não escapamos do choque que desperta o pensa-
mento. Segundo Deleuze: “É somente quando o movimento se torna automático que a
essência artística da imagem se efetua: produzir um choque no pensamento, comunicar
vibrações ao córtex, tocar diretamente o sistema nervoso e cerebral.” (1990, p. 189).
Essas imagens levam a imaginação ao limite, que sofre um choque e “[...] força o
pensamento a pensar o todo enquanto totalidade intelectual que ultrapassa a imaginação.”
(Deleuze, 1990, p. 191).
No entanto, será no conceito de imagem-tempo, vinculado ao cinema moderno,
que melhor visualizaremos o pensamento como imanente à imagem. A possibilidade
de pensamento no espectador não decorre mais de uma “tomada de consciência” ou
“choque cinematográfico”. Para a filosofia de Deleuze é preciso buscar o impensado do
pensamento, além de suas possibilidades. Ao pensar o impensado deve-se ir de encontro

351
a forças exteriores. O cinema da imagem-tempo assume sua aberração no movimento,
operando uma suspensão do mundo, que afeta o visível, mostrando o que o olhar sensível
não vê.
A experiência do pensamento é vinculada ao cinema moderno da imagem-tempo,
em função da imagem que supera o prolongamento sensório-motor e deixa-se conduzir
pela “visão”, torna-se vidente. O cinema enfraquece a ação pura e nos coloca diante de
situações puramente sensíveis, situações óticas e sonoras puras. Diante do impensável no
pensamento. Pensar o impensável, o impossível, pertence ao pensamento. E isto faz do
impensado a potência distintiva do pensamento.
Em ambos os livros, Cinema 1 e 2, a questão filosófica para Deleuze é: como
funciona o pensamento e quais operações são necessárias para pensar? Como pensar
o pensamento e como descrever sua inventividade? Ou seja, elas seguem com o pro-
blema cerne de sua filosofia, desenvolvido ao longo de sua obra: “imagem do pensa-
mento”.

A gênese do Pensar
Para entender como Deleuze constrói sua gênese do pensamento, invoca-se o
livro Diferença e Repetição de 1968, escrito 15 anos antes do seu primeiro livro sobre
cinema. DR é onde o filósofo expõe algumas condições de efetividade da experiência de
pensamento.
Pensar de fato implica uma violência sobre as faculdades. Através do Empirismo
Transcendental “apreendemos” aquilo que não pode ser induzido pelo senso comum.
Aquilo que não é “apreendido” das formas empíricas ordinárias. Cada faculdade é
conduzida ao extremo de seu desregramento e tomada de uma violência que a força a
exercer-se. Neste momento, com o abalo das faculdades ao seu limite, levadas à última
potência, temos o inapreensível, sobretudo do ponto de vista empírico.
Apenas o uso paradoxal das faculdades pode subverter o senso comum e ordinário,
caro à filosofia da representação. Nessa disjunção das faculdades em um “acordo pela
discordância” emerge no sensível o que só pode ser sentido, o próprio ser do sensível – a
diferença, disjunção autônoma. Neste sentido, é possível compreender o proposto por
Deleuze quanto a um Empirismo Transcendental.
Deleuze considera o filósofo Immanuel Kant como o responsável pela “diferença
transcendental”, mas rejeita sua teoria do conhecimento, que crê em uma relação
harmoniosa das faculdades. Ele o acusa de não ter sustentado o plano transcendental,
decalcando o uso das faculdades no exercício empírico sob determinação do senso
comum.

352
Contudo, Deleuze “salva” de Kant algumas teorias vinculadas em sua Crítica da
Faculdade do Juízo e este aspecto carrega elementos interessantes para a pesquisa
aqui proposta. A estética kantiana, sobretudo o pensamento do filósofo alemão sobre
o sublime da arte, é uma referência essencial para o estudo do “Empirismo Transcen-
dental”. Nesta pesquisa, o assunto adquire maior relevância, pois a “gênese de pen-
samento” está vinculada às imagens tempo e movimento da filosofia deleuziana da
arte cinematográfica.
A “experiência estética”, segundo Kant, provoca um inevitável colapso da “razão”,
é onde há o exercício discordante das faculdades. De forma que, somente a experiência
estética, nos moldes kantianos, possibilitaria o engendramento do pensar no pensamento.
A Analítica da Faculdade de Juízo Estética, escrita por Immanuel Kant em 1790,
afirma que o juízo do gosto é estético e analisa como a faculdade de juízo pode referir a
beleza. Segundo Kant, quando julgamos se algo é belo ou não, não referimos este algo
ao entendimento, como o filósofo havia construído em toda sua teoria do conhecimento,
na Crítica da Razão Pura e em outras obras. Podemos dizer que para Kant, os objetos da
arte são “processados”

[...] pela faculdade da imaginação ao sujeito e ao seu sentimento de prazer e desprazer.


O juízo de gosto não é, pois, nenhum juízo de conhecimento, por conseguinte não é
lógico e sim estético, pelo qual se entende aquilo cujo fundamento de determinação não
pode ser senão subjetivo. (Kant, 1995, p. 47)

Dessa forma, legitima-se a arte a subverter a lógica de toda filosofia da representação.


O sentimento de prazer ou desprazer não é objetivo empiricamente, como era afirmado
do contato com os objetos de conhecimento, Kant afirma que este contato não serve
para o conhecimento, ao contrário, ele entra obscurecendo o conhecimento objetivo e
conceitual.
Na arte “[...] o sujeito sente-se a si próprio do modo como ele é afetado pela
sensação.” (Kant, 1995, p. 48). No plano da experiência estética, as faculdades exercem-
se livremente e sem relação ou submissão à razão ou a conceitos do entendimento. Não
há uma função cognitiva conceitual, mas um domínio da sensação pura, bem diferente
da sensação empírica. Essa sensação anômala, Kant denomina sensação subjetiva.
Assim, os juízos estéticos puros sobre o belo (e subentenda-se também sobre o feio) são
indeterminados.
Segundo o autor Roberto Machado, Deleuze se refere, em diferentes momentos e
obras, à teoria de Kant. “No entanto, o texto mais veemente em infletir a formulação
kantiana no sentido do pensamento de Deleuze é a nota sobre a imaginação de Diferença

353
e Repetição, praticamente o único lugar do livro que se refere a essa faculdade.” (Ma-
chado, 2009, p. 149). Esta nota também serviu como provocação investigativa com-
plementar e fundamental para elaboração desta pesquisa.

O caso da imaginação: este caso é o único em que Kant considera uma faculdade
liberada da forma de um senso comum e descobre para ela um exercício legítimo
verdadeiramente ‘transcendente’. [...] com o sublime, a imaginação, segundo Kant,
é forçada, coagida a enfrentar seu limite próprio, seu fantasteon, seu máximo, que
é do mesmo modo o inimaginável, o informe ou o disforme na natureza (Crítica da
Faculdade de Julgar, § 26). E ela transmite sua coerção ao pensamento, por sua vez
forçado a pensar o supra-sensível como fundamento da natureza e da faculdade de
pensar: o pensamento e a imaginação entram aqui numa discordância essencial, numa
violência recíproca que condiciona um novo tipo de acordo (§ 27). Deste modo, o
modelo da recognição ou a forma do senso comum encontram-se em deficiência no
sublime, em proveito de uma concepção do pensamento totalmente diferente (§ 29).
(Deleuze, 1988, p. 237).

Na estética kantiana, Deleuze encontra a disjunção e a violência que são caracte-


rísticas essenciais de sua teoria das faculdades. A sensibilidade conduz sua coerção à
imaginação. A imaginação ao atingir o exercício transcendental resulta na anomalia do
sensível, a “disparidade no fantasma”, constituindo o que só pode ser imaginado, ou
melhor, o inimaginável empírico. O “Eu” rachado por essa forma é coagido a pensar, na
última potência do pensar, combalido a pensar o impensável.
Contudo, em Diferença e Repetição, o termo “imagem” é ainda pejorativo, pois
imagem e pensamento representacional são sinônimos. O termo imagem instaurava
uma reflexividade suspeita, um reflexo: a imagem procurando uma representação do
pensamento, deformando o pensamento e assinalando a distorção errada pela qual o
pensamento reflete a sua própria atividade; isto é, a imagem do pensamento é a maneira
como o pensamento se representa, implicitamente, a sua própria atividade. Já em
1964, Deleuze escreve a primeira versão de Proust e os Signos, onde traz o capítulo de
conclusão intitulado A Imagem do Pensamento, apresentando como a filosofia necessita
da arte. Assim, o ato de pensar é feito sob a contingência apavorante de uma experiência
que resiste à nossa capacidade de saber: é por isso que o pensamento é criação.

O ato de pensar não decorre de uma simples possibilidade natural; é, ao contrário, a


única criação verdadeira. A criação é a gênese do ato de pensar no próprio pensamento.
Ora, essa gênese implica alguma coisa que violenta o pensamento, que tira de seu
natural estupor, de suas possibilidades apenas abstratas. (Deleuze, 1987, p. 96).

354
O pensamento nasce do acontecimento intrusivo que surpreende o próprio pen-
samento. Essa “nova imagem do pensamento” transmitida pela experiência da arte, da
literatura, transforma os elementos do problema “o que é pensar?” e opõe-se à “imagem
do pensamento” apresentada pela filosofia racionalista e da representação. A partir
daí, o pensamento para Deleuze se faz imagem, de um modo decisivo e até o final de
sua obra. Dessa forma, assim como o filósofo teve necessidade de se apoiar na literatura
de Proust, para modificar o conceito de imagem, nos anos 80 ele se volta para o cinema
para seguir transformando e conceituando a “imagem do pensamento”.
Em Cinema 1 e 2 o pensamento é visto como ato de corte, de enquadramento e de
montagem. Este pensamento não é, de modo algum, representação da consciência, mas
movimento da matéria, o pensamento se insinua na matéria, ou seja, em enquadramentos
de planos, montagem e “reencadeamento” de enquadres. Estes cortes, edições e
composições de cenas, exibem o pensamento como maneira inventiva de recortar nossas
relações com a realidade. O pensamento como relação de forças é uma imagem em si
mesmo, uma imagem-movimento, funcionando como une table de montage.
A análise fílmica e a filosofia cinematográfica deleuziana correspondem a uma
filosofia da invenção, da criação de pensamento, baseando-se no encontro entre
pensamento, movimento e tempo. Na imagem-movimento, a preocupação é sensório-
motora: ação, percepção individual, afecção dos personagens, caracteres e heróis; e o
objetivo é a individuação, a narração, a intriga. Na imagem-tempo, a relação de forças
não diz mais respeito a um corpo sensório-motor individual para atualizar a sua própria
potência, a imagem realiza uma narração de sua potência e não consiste em atualização
de um movimento. O personagem, como nos filmes noir de Nicholas Ray, torna-se o
vetor de uma sensação e não instrumento de transformação da realidade.
Se a experiência da arte já fora invocada por Deleuze em Proust e os Signos, legiti-
mando o pensamento como criação, pode-se dizer que, em suas obras cinematográficas,
a arte é aquilo que nos permite sentir um pouco do tempo em estado puro: o virtual
palpita sobre o atual e a filosofia – o pensamento criador – busca teorizar o devir. O
pensamento se efetiva como um encontro, como o choque intenso com uma imagem,
que pode não agir, mas se impõe como afecção. O cinema materializa o pensamento,
que se insinua na matéria. A arte passa a ser uma operação real, a realidade, e não uma
figuração mental ou representação subjetiva.

Experiência estética e o cinema da Imagem-Tempo


Quando Deleuze escreve sobre a crise da imagem-ação e a transição da imagem-
movimento, onde as percepções se prolongam no esquema sensório-motor, para a

355
imagem-tempo, ele invoca a imagem mental no cinema que abrirá espaço para as
situações óticas e sonoras puras. A crise na imagem-ação fora condição necessária para
o surgimento da nova imagem pensante, a imagem-tempo. E esta soberania do pensa-
mento se dá na ruptura do esquema sensório-motor e na ascensão das situações óticas e
sonoras puras relacionadas diretamente com o pensamento e o tempo. Neste sentido, é
possível pensar a singularidade da experiência estética, traduzida nas situações óticas e
sonoras puras do cinema de vidência. O cinema visionário da imagem-tempo desperta
uma visão transcendental pura que enxerga além das percepções.
A imagem-movimento é uma imagem desenvolvida no esquema sensório-motor,
concebida em uma montagem que a encadeia em outras imagens, prolongadas em
percepções e ações. A imagem-ação é o cerne do cinema clássico, já a imagem-tempo
é caracterizada pela ruptura dessa lógica e pela aparição de situações óticas e sonoras
puras que não mais se transformam em ações. A imagem-tempo é quem fundamenta
o cinema moderno, oposto à imagem-movimento. Essa ruptura não significa uma
substituição e nem o fim da imagem-movimento, e sim a consolidação de um cinema
moderno formado no intervalo entre as imagens e em seus movimentos aberrantes. Na
imagem-movimento já havia, de alguma maneira, a imagem-tempo imanente a ela, assim
como, a imagem-tempo do cinema moderno sempre se serviu de esquemas sensório-
motores essenciais para sua estética pura do tempo. A imagem-tempo existe, afetando
a imagem cinematográfica, desde o início do cinema, ou seja, não há uma etapa da
imagem-movimento e outra da imagem-tempo.
A crise na imagem-ação pode ser claramente percebida na obra cinematográfica de
Alfred Hitchcock. Ao mesmo tempo em que seus filmes são considerados clássicos e o
auge do cinema da imagem-movimento é também o momento em que este é rompido,
pois o esquema que liga ação e reação se quebra, levando-nos pouco a pouco, a um reino
de sensações óticas e sonoras puras e de tempo transcendental. Os filmes de Hitchcock
introduziram um novo tipo de imagem que contem todas as outras que fazem parte do
circuito da própria imagem-movimento e ainda vão além dessas – a imagem-mental.
Através da utilização da imagem-mental, a obra de Alfred Hitchcock abriu caminho
para a emersão do cinema moderno da imagem-tempo. Segundo Deleuze, imagem-
mental é
[...] uma imagem que toma por objetos de pensamento, objetos que têm uma existência
própria fora do pensamento, como os objetos de percepção têm uma existência própria
fora da percepção. Uma imagem que toma por objeto relações, atos simbólicos,
sentimentos intelectuais. Ela pode ser, mas não é necessariamente, mais difícil que as
outras imagens. Ela terá necessariamente com o pensamento uma nova relação, direta,
inteiramente distinta daquela das outras imagens. (Deleuze, 1983, p. 168).

356
Os filmes de Hitchcock fazem do “mental” objeto da própria imagem. A imagem-
mental trabalha com percepções fora da percepção sensível, lidando com objetos de
pensamentos. No filme Rebecca – A mulher inesquecível (1940), Rebecca é a perso-
nagem mais significativa na trama. Ao longo do filme o espectador tem toda a dimensão
de sua personalidade, seus hábitos e relações, no entanto, ela sequer aparece durante
toda película.
A crise da imagem-ação, apesar de decisiva e evidente na obra do diretor, já se
manifestava em filmes anteriores e em outras escolas do cinema clássico, tanto no plano
da montagem como em outras configurações de imagens. O Expressionismo Alemão é
um caso onde a imagem-mental ou outros recursos aberrantes ocorrem no próprio jogo
de horrores que está no cerne de sua constituição.
M – O Vampiro de Düsseldorf (1931) é o primeiro filme falado de Fritz Lang. Seu
roteiro foi adaptado das páginas policias, pois de fato existira um assassino de criancinhas
em Düsseldorf na Alemanha, e este, em certa ocasião chegou a beber o sangue de sua
vítima. O filme inicia com as crianças cantando uma música macabra, e esta é a forma
encontrada para anunciar que há um assassino na cidade. A seguir, outra cena traz o
cartaz de “procura-se” e uma criança interagindo com ele através da brincadeira de bola.
Logo surge uma sombra com a silhueta do ator Peter Lorre, que interpreta o criminoso.
Desse modo, a imagem-mental do assassino e de seus crimes hediondos é introduzida em
“M”. Por oposição ao cinema mudo, O Vampiro de Düsseldorf não possui trilha sonora,
no entanto é justamente a música que o assassino assoviava (In the Hall of the Mountain
de Edvard Grieg), usada como leitmov, que o identifica para condenação. Fritz Lang foi
seduzido pelas possibilidades de expressão sonora, trouxe um filme onde cada ruído e
som de passos é essencial, e a cantiga de roda e o assovio são decisivos. Dessa maneira,
ele traz os sons e mesmo as falas não necessariamente inseridas no encadeamento das
ações e reações, e sim como imagens sonoras autônomas que dão forma a trama.
Ainda em M – O Vampiro de Düsseldorf, há a sequencia de cenas de uma mãe,
esperando a filha na cozinha de seu apartamento, que pode ser comparada à descrição que
Deleuze faz de uma cena do filme Umberto D. (1952) de Vittorio De Sica, quando situa
o Neo-Realismo italiano na ascensão das situações óticas puras do cinema. Em Umberto
D. temos a clássica cena da empregada na cozinha em gestos banais e cotidianos, mas
quando ela olha para sua barriga de grávida
[...] é como se nascesse toda a miséria do mundo. Eis que, numa situação comum ou
cotidiana, no curso de uma série de gestos insignificantes, mas que por isso mesmo
obedecem, muito, a esquemas sensório-motores simples, o que subitamente surgiu
foi uma situação ótica pura, para a qual a empregadinha não tem resposta ou reação.
(Deleuze, 1990, p. 10).

357
Da crise da imagem-ação à imagem ótico-sonora pura é possível visualizar uma
passagem transitória. Dos gestos ordinários da vida cotidiana à passagem da miséria
humana e desespero de uma mãe, traduzidos em sensações puras. No filme “M”, depois
de informado que há um assassino de criancinhas na cidade, temos diversas imagens
de uma mãe, que faz coisas corriqueiras e cotidianas, mais uma vez, em um ambiente
que é a cozinha. O olhar da mãe alcança o relógio-cuco batendo meio-dia. Logo, ouve-se
o badalar do sino anunciando o final das aulas, é preciso preparar o almoço de sua filha
Elsie. As cenas da mãe se intercalam com as da filha que é abordada por um transeunte
a caminho de casa. A mãe de Elsie olha novamente para o relógio. As cenas da mãe, que
sente o pequeno atraso da menina, começam a ficar mais apreensivas. A mãe demonstra
tensão nos gestos corriqueiros, como o de colocar a mesa. Cada vez mais tenso o clima,
é notável a preocupação da mãe quando ela pergunta para o jornaleiro ou para as demais
crianças sobre a filha e eles lhe respondem não saber de Elsie, sem qualquer preocu-
pação, com naturalidade e automáticos.
As cenas seguintes mostram o tempo passando: o olhar da mulher focalizando o
relógio, as variações dos minutos; cenas externas onde a bola de Elsie está sozinha no
gramado; o balão enroscado no fio de eletricidade e depois desprendendo-se. Mais uma
vez, é visível a passagem do tempo como medida de movimento, pelos gestos da mãe
na cozinha, a uma representação direta do tempo transcendental, que sai dos eixos e se
apresenta em estado puro. Então temos as sensações óticas-sonoras puras na apreensão
da mãe e nas imagens do vazio que correspondem ao assassinato da menina (lugares
vazios, varal, bola que cai sozinha, balão perdido no fio).
A lógica das relações e a imagem-mental parecem concluir o circuito e as trans-
formações da imagem-movimento. O intervalo do movimento não é mais aquilo que
constitui um conjunto sensório-motor. O vínculo sensório-motor foi rompido, o intervalo
de movimento faz aparecer outra imagem que não a imagem-movimento. Agora novos
signos surgirão de uma imagem-tempo, que apresentará outras imagens como formas
irredutíveis à imagem-movimento, mas não sem relação determinável com ela. As
situações óticas e sonoras puras liberam os sentidos, que se prolongam em uma relação
direta com o tempo e com o pensamento. Esse prolongamento torna sensíveis o tempo
e o pensamento, torna-os visíveis e sonoros.
Primeiramente, enquanto a Imagem-Movimento e seus signos sensório-motores estavam
em relação apenas com uma imagem indireta do tempo (dependendo da montagem), a
imagem ótica e sonora pura, seus opsignos e sonsignos, ligam-se a uma imagem-tempo
que sub-ordenou o movimento. É essa reversão que faz, não mais do tempo a medida do
movimento, mas do movimento a perspectiva do tempo: ela constitui todo um cinema do
tempo, com uma nova concepção e novas formas de montagem. (Deleuze, 1990, p. 33).

358
A aberração do movimento, que é característica da imagem-tempo, opera o tempo
em sua apresentação direta, livre de quaisquer encadeamentos necessários. Dessa
forma, é revertida a relação de subordinação do tempo ao movimento normal, que
identificava a imagem-movimento. O movimento aberrante vai revelar o tempo como
“todo”, trazendo infinitas possibilidades não mais definidas pela experiência do
movimento. O movimento aberrante é anterior ao tempo que ele apresenta de maneira
direta, em situações anacrônicas, fluxos mentais, indeterminações e em falsos raccords.
Dessa forma, o cinema aporta condições para que o pensamento pense o tempo e suas
vicissitudes, os devires do tempo.
Nas obras cinematográficas de Alain Renais, sobretudo o filme O Ano Passado
em Marienbad (1961) e de Andrei Tarkovski, que é o “mestre do tempo”, entre outros
grandes cineastas modernos, teremos a anti-trama e o fluxo de consciência como
apresentação direta do tempo. Onde a linearidade, além de muitas vezes não utilizada,
não é mais necessária para a experiência estética de seus filmes. Esses filmes controlam
o tempo que resulta no movimento, remetendo passado, presente e futuro como fluxo
mental, tal qual, são as memórias ou sonhos.
O cineasta Andrei Tarkovski, em seu livro não aleatoriamente intitulado Esculpir
o Tempo, afirmou: “O tempo, registrado em suas formas e manifestações reais: é esta
a suprema concepção do cinema enquanto arte.” (Tarkovski, 1998, p. 72). As palavras
de Tarkovski sobre o tempo, assim como seu domínio cinematográfico do mesmo, me
parecem dar vida às teorias deleuzianas sobre o cinema da imagem-tempo. O filme
O Espelho (1975) trabalha com as propriedades da memória de uma maneira natural e
sem os usuais recursos oníricos de “véu de neblina” ou efeitos musicais, esses anuvia-
mentos misteriosos que o público já familiarizado identifica o sonho ou alucinação.
Tarkovski defende a concepção da imagem cinematográfica pelo viés das formas na-
turais e reais da vida, percebidas pelo espectador pelos sentidos da visão e audição.
Percebemos a forma da imagem através dos sentidos, ou seja, as imagens óticas-sonoras
puras não se dão nos “efeitos-especiais” ou algo do tipo, e sim na subjetividade.

Se me perguntassem: E o que dizer do caráter indistinto, da opacidade, da inve-


rossimilhança de um sonho? – eu responderia que, no cinema, “opacidade” e “ine-
fabilidade” não significam uma imagem indistinta, mas a impressão específica criada
pela lógica do sonho: combinações insólitas e inesperadas de elementos inteiramente
reais e situações de conflito entre eles. Esses elementos devem ser mostrados com a
máxima precisão. Por sua própria natureza, o cinema deve expor a realidade, e não
obscurecê-la. A propósito, os sonhos mais interessantes ou assustadores são aqueles
dos quais nos lembramos até mesmo dos mais insignificantes detalhes. (Tarkovski,
1998, p. 83)

359
“O Espelho” traz a história de vida do personagem Alexei (Ignat Daniltsev) seus
pensamentos, lembranças e sonhos. Através da exterioridade imagética que o cinema
proporciona, o filme traz a disposição dos acontecimentos, das ações e do comporta-
mento do protagonista, e ainda, remete à imagem de pensamento deste personagem: a
expressão e o retrato da personalidade do indivíduo e a revelação do seu mundo interior.
As imagens do filme constroem o universo mental de Alexei e legitimam seu fluxo de
consciência que jorra na tela. A utilização da mesma atriz para interpretar sua mãe e
sua esposa em momentos distintos concretiza a confusão mental que vive a pregar peças
em lembranças e sonhos. Além disso, o ator que faz Alexei criança, também interpreta
seu filho em certo momento.
No mesmo filme, Tarkovski utiliza em algumas cenas a câmera lenta de modo
quase imperceptível. Em seu livro Esculpir o Tempo, ele afirma que a utilizou sutil-
mente, para que o espectador não notasse imediatamente, mas tivesse apenas uma vaga
sensação de que algo estranho se passava. Ele pretendia evocar um estado de espírito
através de outro meio que não o trabalho do ator. A cena do banho e o teto que desaba
é um claro momento onde esse “estado de espírito” atinge o mistério do tempo e das
lembranças, e une a imagem, o pensamento e a câmera em uma mesma subjetividade.
Podemos dizer que as imagens e sensações ótica-sonoras puras geradas pela obra de
Tarkovski são muitas vezes associadas à água. Além das cenas de banhos, lagos e chuvas
de O Espelho, seu filme Stalker (1979) é considerado um dos mais úmidos e encharcados
da história do cinema. A associação mais comum com a água seria uma analogia ao
subconsciente e ao próprio fluxo psicológico de pensamentos. Contudo, a água em
Stalker tem um importante caráter físico, ademais de todas as interpretações possíveis e
subjetivas que podem ser feitas a seu respeito. A água pesa os ambientes, pesa as roupas
e traduz fisicamente angústia, sofreguidão e desesperança, porque ela nunca seca.
No cinema de Alain Resnais são muitos os personagens que se movem no tempo
e no pensamento, de modo que o presente flutua incerto e observa-se a coexistência
de lençóis de passado, com lembranças que se intercruzam, provocando imagens
indecidíveis. O Ano Passado em Marienbad evidencia, mais uma vez, o desarme da
imagem-ação, iniciando com uma cena paralisada. Essa imobilização dos personagens
e da cena de teatro, já dimensiona os jogos atemporais que constituem o filme. Segundo
Deleuze, cabe ao cinema apreender o passado e o futuro que coexistem com a imagem
presente, e a obra de Resnais vai de encontro a essa coexistência que a alicerça.
Em “O Ano Passado...” temos um homem obcecado por um passado e por um futuro
relacionado a uma mulher, que pertence a estes “tempos” de maneira nebulosa. Na tela,
é apresentado este passado, que se refere a um antigo presente obscuro e um futuro que
consiste em incertezas e contradições. O presente coexiste com um passado e futuro e

360
todos fluem a partir da memória de dois ou três personagens, pois o marido da mulher
também costura estes lençóis.
O filme transpõe em suas imagens, as relações com a memória expostas por Bergson
e invocadas por Deleuze para visualizar a imagem do cinema do tempo. A memória
não pode ser reduzida a uma memória psicológica, feita de imagens-lembrança, e
composta no cinema convencionalmente por flashes-back. O Ano Passado... possui
uma falsa impressão de composto por flashes-back, quando pensado posteriormente.
No entanto, a característica do filme, consiste em não ser composto por esses ele-
mentos, mas apresentar uma contração do presente, que explora lençóis sombrios de
passados, provoca lembranças de dois personagens que se confundem e tudo coexiste na
tela. O cinema de Resnais está fundamentado em acontecimentos que não se sucedem em
um tempo cronológico. Ele fez desaparecer um centro ou ponto fixo. Os acontecimentos
não param de ser remanejados conforme pertencem a este ou aquele lençol de passado,
ou ainda à memória de um ou de outro personagem.

Referências
CORAZZA, Sandra Mara. Pesquisar o Acontecimento: estudo em XII exemplos. In: TADEU,
Tomaz.; CORAZZA, Sandra Mara; ZORDAN, Paola. Linhas de escrita. Belo Horizonte:
Autêntica, 2004.
DELEUZE, Gilles. Cinema II: A Imagem-Movimento. São Paulo: Editora Brasiliense, 1983.
DELEUZE, Gilles. Cinema II: A Imagem-Tempo. São Paulo: Editora Brasiliense, 1990.
DELEUZE, Gilles. Deux Régimes de Fous. Paris: Les Éditions de Minuit, 2003.
DELEUZE, Gilles. Diferença e Repetição. São Paulo: Graal, 1988.
DELEUZE, Gilles. Proust e os Signos. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987.
TARKOVSKI, Andrei. Esculpir o Tempo. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
VASCONCELLOS, Jorge. Deleuze e o Cinema. Rio de Janeiro: Editora Ciência Moderna,
2006.
RANCIÈRE, Jacques. De uma imagem à outra? Deleuze e as eras do cinema. (Trad. Luiz
Felipe G. Soares). Da obra: La fable cinématographique. Paris: Le Seuil, 2001. Disponível em:
<http://pt.scribd.com/doc/61274942/Jacques-Ranciere-Deleuze-e-as-eras-do-cinema> Acesso
em: 12 de dez. 2013.

Este texto foi publicado no periódico Quaestio: Revista de Estudos de Educação da Universidade
de Sorocoba, SP, v. 18, n. 2, set. 2016; integrante da Edição Especial, Dossiê temático Imagem e
Educação, organizado por Amanda Maurício Pereira Leite e Renata Ferreira da Silva.

361
CONHECIMENTO COMO INVENÇÃO:
PAUL VALÉRY NO ENSINO DA
EDUCAÇÃO CONTEMPORÂNEA

Máximo Daniel Lamela Adó


Maria Idalina Krause de Campos
Sandra Mara Corazza

Introdução

O pensamento não pode prescrever a si mesmo, nos diz Paul Valéry (1947).
Dar ao próprio pensamento uma definição mais ou menos clara ou definitiva seria
como dar a ver uma impossibilidade. Ou seja, mesmo que pudéssemos observar
uma gravação de nossos próprios pensamentos não estaríamos observando, de fato,
o pensamento e tampouco o seu movimento, pois, inclusive essa ordem, mesmo que
expressa – a do movimento do pensar, ou, do mesmo modo, o seu processo – não seria
ele, e sim algo como um penso pensar o pensamento pensado. O objeto limpo único
e perpétuo do pensamento seria o que não existe de modo finito, algo como um finito
passado. Aquilo que já não está, numa perpétua tentativa, diante mim. O impossível,
assim como o exercício de tentar pular a própria sombra.
Nesse sentido, Paul Valéry toma o pensamento como um modo privilegiado de
dar especial atenção às invenções do intelecto – a partir de um Eu-função, pode-se
desenvolver uma consciência do processo do pensar para fins de conhecimento.
Pensar está na ordem da ficcionalização e construção de realidades que são, cada
uma ao seu modo, sempre inventadas, assim como aquilo que se sabe de si, do mundo

362
e suas relações. No âmbito da Educação Contemporânea, especialmente no que tange
à prática de ensino, esse pensamento ganha e doa força na medida em que se toma
esse Eu-função como um modo de operar a singularização e não individualização.
O que se conforma pelo processo de um Eu-função, como veremos adiante, é uma
singularidade e não uma identidade. Quando há uma identidade possível na relação
entre indivíduos ela, jamais, pode ser prevista antes da relação e tampouco pode ser
estabilizada imediatamente depois. Não há identidade fora de qualquer relação, deste
modo o que importa não é a identificação – exercício homogeneizador de diferenças
por meio da distinção de iguais –, mas, justamente, a potência da singularização na
atuação das relações entre indivíduos.
Paul Valéry em toda sua trajetória de vida pesquisou, estudou, escreveu sobre
conteúdos das mais diversas áreas do conhecimento. Misto de poeta, pensador e crítico
da cultura possui uma forma original de lidar com o espírito, tendo sido traduzido por
escritores e também poetas em vários idiomas: Augusto de Campos (para o português);
Jorge Guillén (para o espanhol); Rilke (para o alemão). No entanto, apesar de possuir
um reconhecimento internacional pelo conjunto de suas obras produzidas é ainda pouco
explorado no Brasil. Principalmente no que tange ao uso – teórico prático – de seu
pensamento no campo da Educação. Daí a importância de um debruçar-se mais efetivo
sobre seu pensamento, assim como sua vida e seus escritos de formas variantes (diálogo,
prosa, poesia, ensaio, carta, discurso, aula) e que contemplam uma multiplicidade de
áreas do conhecimento como: filosofia, matemática, música, poesia, teatro, além de
análises e críticas sobre cultura e sociedade.
Paul Valéry possui um pensamento vivo! Pode ser lido como um educador por
sua dinâmica textual sempre em transição, visto que consideramos que a formação
espiritual de um educador se encontra em constante estado de devir e mutação. Trata-
se de um leitor ávido, um escritor compulsivo, um observador da arte e da vida como
obra de arte. Um pensador que busca, no movimento de leitura e escrita, exercitar
conscientemente os pensamentos. Verificando no que estes implicam, procura vê-los
com precisão e pesquisar seus labirintos, sua mecânica psíquica íntima, seu método
operativo.
Desse modo Paul Valéry compõe uma escrita nada convencional e bastante digres-
siva. A produção valéryana está longe de ser um sistema filosófico, nela não se verifica
uma cronologia ou sistematização de regras fixas. Não há hierarquia de escrita, mas
graus de importância de acordo com a temática desenvolvida a cada momento. Tal
temática e seu desenvolvimento pode no instante seguinte de sua produção ser deixada de
lado, como um rascunho, uma anotação, um desenho, podendo voltar a circular à medida
que se funda ou se mescle, com uma nova temática em foco. Aborrece-lhe a ideia que

363
vem de primeira, tem gosto por fazer um trabalho de composição; que proporciona ao
espírito transformações meditadas, um esforço intelectual, um esmero da criação e do
querer fazer. Onde o escritor, e consequentemente o pensador, define-se, segundo ele:
“através da relação entre um certo ‘espírito’ e a linguagem [...]” (Valéry, 2011. p. 179).
Este texto trata de abordar o tema da construção do conhecimento via um modo de
lidar com o pensamento e seu legado para a Educação. Tal modo procura ter a invenção
como um procedimento que coloca o pensamento sempre em movimento e para que isto
ocorra o mesmo não pode estar dissociado da vida, ou seja, de seu próprio movimento
na cotidianidade ordinária. O texto apresenta o tema por meio de quatro tópicos:
1) Self-variance [autovariação] – observa um modo valéryano de conceber o Eu empírico
como uma função para alcançar o Eu puro, ou seja, o pensamento; 2) Conhecimento e
linguagem ­– apresenta como Paul Valéry lida com o cartesianismo e o transforma em
uma força inventiva que se vale da linguagem para construir conhecimento a partir de
si; 3) Método do Informe ­– expõe experimentos de um modo de desenvolver pesquisa
no ensino de uma Educação contemporânea; 4) Como fazer? – afirma que o trabalho da
docência é um trabalho de pesquisa e mostra alguns caminhos percorridos no exercício
empírico da apropriação desse pensar para a Educação e, especialmente, para o ensino.
O texto se desloca por esses tópicos e, com eles, deseja abrir caminho para o debate
a respeito da pesquisa e de modos de conceber o ensino na Educação Contemporânea.

Self-variance [autovariação]
Paul Valéry utiliza-se da palavra francesa esprit para aludir ao Eu. Mas há em seu
pensamento a distinção entre dois tipos de espírito: Moi que seria o Eu empírico (self-
variance) e Moi que seria o Eu puro (Idolle de l’Intelect) a ser cultuado, buscado. Este
conceito de Eu puro deve ser entendido com uma significação particular: o Eu como
consciência de si, intelecto, inteligência. Um Eu que atua como um sujeito que não
se assujeita, mas aspira e realiza a criação, sem divindade reguladora, sem idealismo
(Eu absoluto do Idealismo Alemão) e distante da metafísica da alma imortal (Eu subs-
tancial do racionalismo de Descartes). Portanto o Eu puro valéryano não guarda uma
moralidade, consistindo na invariabilidade, naquilo que não muda no espírito. O espírito
como um signo de pura possibilidade, de uma virtualidade. Um estado de espírito ao
qual o Eu empírico aspira e tende. Eu que passa por uma ascese e encontra-se – purifi-
cado de paixões, de outros ídolos e idolatrias – liberto para agir e pensar.
Para Valéry espírito é também uma palavra infinita que evoca a origem e o valor
de todas as demais palavras. Espírito é possibilidade, necessidade, energia, capacidade
de transformação, aventura intelectual que tem na linguagem um meio para expressar

364
ideias. É tarefa do espírito, aumentar os graus de sua racionalidade, via consciência e
atenção na atividade intelectual.
Valéry, na primeira fase de suas obras, busca o espírito que se pensa a si mesmo,
um espírito puro sem corpo e sem matéria. Numa segunda fase, já na década de vinte
do século passado, ocorre uma ligação entre os processos psíquicos e as atividades
fisiológicas corpóreas, em que o espírito faz uma mediação entre os processos do corpo
e os mentais.
Espírito e verbo são quase sinônimos para Valéry. Verbo vem do grego lógos que
simultaneamente quer dizer: cálculo, palavra, discurso, conhecimento, ao mesmo tempo
também designa expressão. Assim o verbo que é primeiro coincide com o espírito que
também o é. O espírito é, pois, potência de vida. Aberta para a aventura extraordinária
da existência!
Valéry é um apaixonado pelas luzes do Iluminismo e do sensualismo-materialista
do Século XVIII – o que pode soar contraditório –, o que lhe interessa na verdade
nessas correntes, são as arquiteturas da forma do texto, seus métodos de composição,
suas forças compositivas, nos quais o meio de ocorrência textual é mais importante do
que um fim ou meta. Em seu texto A Tentação de (São) Flaubert, Valéry fala sobre
uma diabólica tentação, humana e poética para provocar uma escrita amebiana, um
meio para um jogo de uma escrita do vivível: “[...] viver é, a todo instante, sentir falta
de alguma coisa – modificar-se para atingí-la – e, desse modo, tender a substituir-se no
estado de sentir falta de alguma coisa” (Valéry, 2011, p. 83). Trata-se de um movimento
corpóreo como o feito pela ameba, ou seja: de transubstanciação com o objeto amado.
Pois “[...] vivemos do instável, pelo instável, no instável: essa é a função completa da
Sensibilidade, que é a mola diabólica da vida dos seres organizados” (Valéry, 2011).
Valéry tem um olhar comparado ao o de uma serpente: obsessivo, metódico,
disciplinado, que pesquisa as operações espirituais de como se dá o pensamento,
percorrendo trajetórias, refazendo caminhos potenciais ainda não descobertos. Uma
Ofis-sofia (Campos, 1984, p. 69), composição de operações intelectivas constantes,
como de um educador espiritual sem trégua, a buscar meios para poder sê-lo.
Segundo Valéry “[...] não pode haver um modo novo de ver sem um modo novo
de pensar” (2011, p. 33). Estas operações – novo-ver, novo-pensar – desenham mapas
mentais, guias, para um enfrentamento ao pensamento do senso-comum compreendido
como paralisante e impotente. Abrindo vãos para uma retina imanente que espia; a
intensidade deste olhar é educativa, proporciona um novo desenvolvimento potencial,
através de forças capturadas e tem nelas, combustível, para novos fazeres espirituais.
São tramas – como alude Valéry – que se apresentam ao espírito, uma diversidade em
meio à qual não há uma determinação única e ilusória que imita o real, mas o possível-

365
a-cada-instante de um texto que se compõe. Escrita, alinhavada entre fluxos de correntes
energéticas, onde pulsa o espírito e a mão escreve esboços “[...] da individualidade de
uma jornada, de uma estação, de uma vida” (Deleuze, 1994, p. 57- 65). Para Valéry,
assim como para Spinoza, o espírito é inseparável da matéria e a matéria é inseparável do
espírito (Adó, 2012). O espírito é sempre visto em circunstância, em situação, num dado
tempo e espaço, em sua fragilidade real. Segundo Pimentel diante do vivível o espírito
encontra-se, “condicionado a si mesmo, aos outros e ao mundo” (Pimentel, 2008, p. 33)
e não evoca um eu substancial, mas um eu funcional, ou seja, um eu sempre em relação.
Paul Valéry trata o espírito como o Eu funcional inseparável da matéria, dotado de
uma consciência e inteligência mutável que utiliza seu trânsito pela existência e pensa-
se. Diferentemente de René Descartes, que afirma: Penso, logo existo, Valéry tem como
foco: O que é que em nós está pensando, quando se pensa (Valéry, 1996). Um Eu como
função do próprio pensamento e não como essência “Ego”, mas como atividade funcional
para pensar. Um espírito operador que compõe uma comédia do intelecto à medida que se
mostra a si mesmo à luz do dia. Um Eu operador consciente, Eu puro como Leonardo Da
Vinci, que “guarda, esse espírito simbólico, a mais vasta coleção de formas, um tesouro
sempre claro às atitudes da natureza, um poder sempre iminente e que cresce de acordo
com a extensão de seu domínio” (Valéry, 1998 p. 55).

Conhecimento e linguagem
Conhecer é lidar com a linguagem. Para Paul Valéry em todo o saber científico
moderno está incorporada uma vontade de poder. Esta vontade de poder está associada à
crença na verdade dos enunciados científicos, uma vez que os mesmos são passíveis de
aplicação e verificação empírica. No entanto, observa Valéry, nada disso seria possível
fora da linguagem. Cabe chamar a atenção de que essa noção de verificação científica
procede de um legado do pensamento cartesiano como a ideia do eu que pensa a si
mesmo, ou seja, da fórmula de Descartes: cogito ergo sum [Penso, logo existo] e esta,
a sua vez, decorre na separação entre sujeito e objeto, uma vez que separa o sujeito que
pensa do objeto pensado ou pensamento.
Paul Valéry chamará esse procedimento de egotismo, ou seja, um modo de atenção a
si mesmo. Ao apresentar o livro de Descartes Discurso do Método ele diz: “Servindo-me
duma palavra de Stendhal, que a introduziu em nossa língua, e a desviando um pouco
para o meu uso, direi que o verdadeiro Método de Descartes devia se denominar o ego-
tismo, o desenvolvimento da consciência para os fins do conhecimento” (1955, p. 57).
É justamente isto que ele chama de egotismo o ponto de contato que Valéry encontra
entre seu pensamento e o de Descartes. No entanto, o egotismo valéryano se resguarda

366
no espaço da linguagem e, por isso, na instância inseparável entre sujeito que pensa e
objeto pensado. Como observam Brutus Pimentel (2008) e Karl Löwith (2009), uma
atenção a si mesmo equivale dizer uma atenção ao Eu ou ao Espírito pelo movimento
de um pensamento que se pensa.
Ao falar de Descartes e, principalmente, a respeito do cartesianismo, Valéry afirma:

[...] todo sistema é uma empresa do espírito contra si mesmo. Uma obra exprime não
o ser, dum ator, mas sua vontade de parecer, que acolhe, ordena, combina, disfarça,
exagera. Quer dizer que uma intenção particular trata e trabalha o conjunto dos
acidentes, dos jogos do acaso mental, dos produtos de atenção e de duração consciente,
que compõem a atividade real do pensamento; mas esta não quer parecer o que é:
quer que essa desordem de incidentes e atos virtuais não entre em linha de conta,
que suas contradições, seus equívocos, suas diferenças de lucidez e de sentimentos
sejam reabsorvidos. Disso resulta que a reconstituição dum ser pensante, baseada
no exame dos textos, conduz à invenção de monstros, tanto mais incapazes de vida
quanto mais cuidadosa e rigorosamente elaborado tenha sido o estudo, chegando-se
a operar conciliações de opiniões que não são jamais produtos do espírito do autor, a
explicar obscuridades por ele suportadas, a interpretar termos cujas ressonâncias eram
singularidades desse espírito, a ele próprio impenetráveis. Em suma, o sistema dum
Descartes não representa o mesmo Descartes senão como manifestação de sua ambição
essencial e de seu modo de a satisfazer. Mas em si, é uma representação do mundo e
do conhecimento que não poderia absolutamente deixar de envelhecer, como envelhece
uma carta geográfica. (Valéry, 1955, p. 21-22)

Pode-se perceber que Paul Valéry se apropria do pensamento de Descartes para


dizer com ele e contra ele que toda a filosofia cartesiana trata de uma confissão e su-
posição explícita de seu EU. Considera a obra de Descartes e apreende da mesma a
ideia de um pensamento que se pensa e, também, a noção e implicação anti-filosófica da
filosofia. Trata-se de apreciar em Descartes a potência inventiva de seu método. Antes
de conciliar opiniões, partir delas para a constituição de novas singularidades para o
pensamento e, consequentemente, para o sujeito que pensa. No sistema cartesiano nada
parece haver no conhecimento que não possa ser elucidado, transformado em saber
utilizável e sólido com a ressalva de que: “Um método não é uma doutrina: é um sistema
de operações que realize melhor que o espírito entregue a si próprio o trabalho do próprio
espírito” (Valéry, 1955, p. 28).
O que propugna Descartes no Discurso do método é alcançar uma certeza de si
mesmo e é nesse ponto, aparentemente de âmbito pessoal e singular que Valéry vê
sua potência e universalidade. A atualidade de Descartes está, para Valéry, em ter-se

367
atrevido a começar de novo. A repreender a filosofia que já conhecia e travar um novo
empreendimento filosófico a partir de si. Mas, adverte que é isso o que lhe importa em
Descartes, a forma de seu pensar e não o conteúdo conciliatório que derivou de seu
pensamento, pois o mesmo é datado e temos de tomá-lo com a leitura e as necessidades
de nosso tempo. Afirmar: Existo, observa Valéry, não tem sentido, ao menos que a pessoa
seja tomada por morta (1955, p. 34). Mas, é justamente essa afirmação que coloca em
relevo a fusão que há na produção do conhecimento como um amálgama da linguagem
com aquilo que se passa; aquilo que provoca uma emissão particular, uma observação
e, também, uma representação ou sensação de sensibilidade análoga. No entanto, ou,
em último caso, “[...] a palavra, produzindo-se como consequência imediata, tem a
insignificância e o valor de um reflexo” (Valéry, 1955, p. 35), ao voltar o pensamento
para essas palavras se verifica que elas “[...] nada significam por si mesmas, tendo, porém,
desempenhado um papel instantâneo durante uma brusca modificação da expectativa
ou da orientação íntima de um sistema vivente” (Valéry, 1955, p. 35-36).
O Cogito, para Valéry, é um ato reflexo do homem, o irromper de um ato. A potência
do pensamento como um modo de alcançar o conhecimento está presente nesse ato. Há
nele a força de uma política interior em relação com outra que lhe é exterior e ao encontro
dessas forças podemos chamar de invenção. Trata-se da tentativa, sempre inconclusa e
inesgotável, de colocar em palavras as atitudes comuns de todos os homens dedicados à
reflexão. A esse movimento de um pensamento dos espíritos dedicados à criação Valéry
denominou comédia do intelecto ou comédia intelectual. Em uma passagem de Tel Quel
I mais precisamente em Cahier B conjunto de textos de 1910, Valéry afirma que filosofar
só é possível, justamente, pela impossibilidade de registrar as intuições; observá-las em
estado puro. E se pergunta: Se quando um pensador fala do ser pudéssemos olhar para
o que ele pensa nesse exato momento o que encontraríamos? O que é o Cogito exceto a
tradução de um estado intraduzível? E, na sequencia, temos a afirmação: É perfeitamente
inútil um saber que não posso modificar (Valéry, 1943, p. 188). O cogito ergo sum
cartesiano funciona, assim posto, como um cenário, ou melhor, um palco bem montado
para a dramatização do intelecto. Trata-se de fazer do pensamento um impulso para a
criação, sempre inventiva, do conhecimento.
A intenção de Descartes, segundo Valéry, foi a de empreender uma grande aventura
intelectual – a sua grande aventura – e fazer com que aqueles que tomassem contato com
seus escritos pudessem escutar seu próprio eu, pois: “Jamais, até ele, filósofo algum
se havia tão deliberadamente exposto sobre o teatro do seu pensamento, pagando com
a sua pessoa, exibindo o seu Eu durante páginas inteiras [...]” (Valéry, 1943, p. 36). É
interessante ressaltar as próprias palavras de Descartes na Primeira Parte de Discurso do
Método: “Assim, o meu intuito não é ensinar aqui o método que cada um deve seguir

368
para bem conduzir a sua razão, mas apenas fazer ver de que maneira tratei de conduzir
a minha” (Descartes, 1955, p. 67).
Tomado por esse egotismo cartesiano Valéry escreve, e publica em 1895, Monsieur
Teste (1997). Trata-se da vida e os pensamentos de um personagem tido como um
discreto burguês e interpretado pela crítica e pelos leitores em geral como a construção
de um alter ego de Paul Valéry. No capítulo denominado Carta de Madame Émile Teste
no conjunto de textos que compõem o livro, podemos ler: “Nunca pensamos que o que
pensamos esconde de nós o que somos” (Valéry, 1997, p. 37); em outro fragmento do
conjunto, intitulado “Trechos do log-book de Monsieur Teste” lemos: “Confesso que
fiz de meu espírito um ídolo [...]” (Valéry, 1997, p. 56). O que movimenta Monsieur
Teste é toda uma relação com o EU e nisso a criação de um personagem para pensar o
pensamento. É “demónio da possibilidade” (Valéry, 1997, p. 11) tomado pelo egotismo
cartesiano.
O que lemos no conjunto valéryano não mais fundamenta um sujeito da razão como
aquele fundado no “Penso, logo existo” do Discurso do Método de Descartes. Aquilo que
em Descartes seria uma íntima revelação de uma presença originária e imediata, surge,
em Monsieur Teste, como um espaço de ficção que poderíamos denominar: teatro do
espírito.
O mundo moderno, na esteira da filosofia cartesiana, inaugura o mundo da repre-
sentação com relação ao pensamento. As categorias de sujeito e objeto se constituem
como categorias indissociáveis e complementares da representação. A categoria de
representação do modelo cartesiano converte-se em uma relação privilegiada para o
conhecimento. Desse modo, o pensar atua como sinônimo de representar e obedece a
relação da representação com o representado: sujeito e objeto, idea como perceptio.
Verificando uma consistência puramente linguística do Eu, Valéry dissolve com
facilidade toda essa ilusão de realidade doada pela obediência da relação de representação
com o representado quando transforma esse ser da consciência em uma impossibilidade
do próprio pensamento, ou seja, uma invenção funcional para lidar com os modos de
conhecer.
Podemos observar que há na produção valéryana certa rejeição a uma metafísica do
sujeito, poderíamos dizer que se trata de um rompimento de uma filosofia essencialista
como a filosofia da consciência ao adotar uma filosofia da linguagem. Essa rejeição
de uma metafísica do sujeito está, justamente, acompanhada de uma crítica aos valores
dualistas da modernidade filosófica.
O pensamento contemporâneo, preocupado com a complexidade das relações
em todos os âmbitos, ergue-se, justamente, por meio da rejeição da definição de um
sujeito universal, estável, unificado, totalizado e totalizante e, com isso, interiorizado e

369
individualizado. Uma vez que admite que o sujeito moderno do cartesianismo esconda,
em seus pressupostos essencialistas, a noção de que sua constituição é fabricada e essa
fabricação está permeada de valores e vontades de poder.
A problemática exposta nessa contenda, qual seja: a da constituição de um sujeito,
relacionada com a discussão a respeito de um Eu é a mesma que instaura uma crise
da representação [a do próprio eu] na e da modernidade filosófica. Tal crise pode ser
observada já na constatação de que o ego cogito ergo sum de Descartes se funda em
uma representação do Eu que procura instaurar certa estabilidade para o pensamento e,
consequentemente, para um eu pensante como subjectum (sujeito).
Em um texto dedicado ao pensamento nietzschiano, Martin Heidegger (2000)
explicita que Descartes inaugura a ideia de que toda consciência das coisas, e do ente
em sua totalidade, é reconduzida a uma autoconsciência do sujeito humano como funda-
mento inabalável de toda certeza. Com esse movimento o cogito cartesiano fundamenta
a ideia de que a realidade do real é o ser representado por meio do sujeito representante
e, ainda, para este mesmo sujeito representante. Temos aí uma circularidade vertiginosa,
onde o Eu é uma co-representação de si mesmo. Uma consciência unitária e autoidêntica,
ou seja, constitui-se como referência última de si mesmo. Com isso a verdade cartesiana
se fundamenta pela certeza de si como sujeito humano; deste modo o homem passa a
regular e figurar um papel especial na história da metafísica, pois passa a desenvolver,
fundamentar e constituir o conhecimento metafísico sendo, também, quem o transmite e
o deforma. O homem cartesiano se constitui como sujeito de toda objetividade e centro
dessa relação sujeito-objeto fundamentando a verdade enquanto certeza como uma marca
da modernidade. É, segundo Heidegger, nesta fundamentação cartesiana, a do cogito
ergo sum, que ocorre o mascaramento da constituição de um Eu estável e plano para a
recorrência da verdade como certeza na adequação. É via essa estabilidade de um Eu
como a fixação de um real e representação de um sujeito privilegiado que este mesmo Eu
passa a ser o ponto onde tudo se mostra e por meio do qual se possa assegurar a realidade
como certeza. Nesse sentido, Heidegger afirma que a verdade cartesiana se funda na
certeza, isto é, na certeza do cogito no qual o (Penso, logo existo) pode ser lido como
um (eu represento, logo existo), pois com essa proposição Descartes inaugura uma nova
postura para o humano. O homem não é mais aquele que assume uma doutrina como uma
condição de fé, mas tampouco adquire o conhecimento do mundo por qualquer via. Ele
o representa.
Com o cogito cartesiano o homem passa a crer, com uma certeza incondicional, que
é ele o ente cujo ser possui maior certeza e, deste modo, converte-se no fundamento
e medida, (autofundante e, portanto, fabulação posta pelo próprio homem), de toda
certeza e verdade. Heidegger explicita que o pensamento de Descartes, como marca da

370
metafísica da modernidade, transfere a humanidade e sua história de um âmbito que
podemos definir como o de uma especulativa verdade da fé do homem cristão ao de
uma representatividade do ente fundado no sujeito. Neste fundamento essencial se torna
possível a moderna posição dominante do homem e com ela a ideia de estabilidade e
centralidade de uma consciência humana.
Valéry, ao ter de escrever sobre Descartes, se dá conta dessa trama e procura se
apropriar do que há de melhor nesse pensamento. Faz o que ele chama de comédia do
intelecto. Ao invés de condenar os movimentos realizados pela intelectividade carte-
siana – com relação ao seu legado para a cientificidade – se apropria deles e, num
movimento simples dotado na potência do pensamento literário, desmonta o essencia-
lismo fundado na verdade de um sujeito ofertando uma verdade instável – como é sua
própria fundamentação – por meio da linguagem de um eu como self-variance. E esse
eu importa, pois, na acepção valéryana “na verdade, não existe teoria que não seja um
fragmento cuidadosamente preparado de alguma autobiografia” (Valéry, 1991, p. 204).
Tomar a perspectiva valéryana para o ensino tem como objetivo reforçar a ideia de
que a expressão de uma prática educacional que valorize as singularidades – antes que
reafirmar identidades homogeneizando culturas via a pasteurização dos procedimentos
educacionais, ­– esteja em seu processo e não em alguma metodologia com fins que se
traçam para além dela mesma. A ideia é a de fortalecer a imagem de uma Educação
intransitiva, que não se estabelece como mediação, no sentido de explicar o mundo,
mas interroga-o de forma indireta ao transformar a explicação em espetáculo auleiro, ou
melhor, em estratégia poética, e por isso política. Uma Educação-tarefa que se constitua
em si mesma como um fazer e não funcione apenas como suporte ou instrumento de uma
atividade que deverá ocorrer ou ocorre de modo paralelo. Nisto o processo passa a atuar
como acontecimento e o acontecimento passa a ser o sentido imanente dessa prática.

Método do Informe
O método do informe possibilita o desenvolvimento de um tipo de pesquisa em
Educação em que se possa, justamente, enfrentar as dificuldades de pensar o informe
(Corazza, 2014). Trata-se de uma composição que tem em vista valorizar a pesquisa do
espírito humano juntando as proposições sobre o espírito, como explicitadas por Paul
Valéry, à filosofia da diferença, em especial, aquela desenvolvida por Gilles Deleuze.
Tal método se insere no campo das pesquisas pós-críticas na Educação. Trata-se de um
modo de fazer pesquisa que tem como perspectiva a interrogação e a variação durante
todo o processo. Não possui regras fixas para não matar o prazer do inusitado. Mas
se vale de um obstinado rigor [hostinato rigore] (Valéry, 1998, p. 13) – procedimento

371
tomado de Valéry que, a sua vez o tomou da divisa de Leonardo da Vinci assim como,
de outro modo, dos textos de Edgar Allan Poe –, para dar uma especial atenção às tramas
complexas que entram na confusão do intelecto voltado a criar conhecimento.
O método é o de capturas de forças dos textos, das imagens, das musicalidades, das
vozes, dos conhecimentos, de tudo que devém em vida potente sendo apropriado para o
ensino e suas práticas, pois como alude Valéry “[...] é o que contenho de desconhecido a
mim mesmo que me faz ser eu mesmo” (Valéry, 1997, p. 59).
Os procedimentos utilizados na pesquisa são operações inventivas de um pensamento
que busca investigar problemas, diante das nuances do ensino, tentando, por seus
próprios meios, envolve-los em um desenvolvimento que evite a mediocridade e aposte
na experimentação de novos meios.
Através dos conhecimentos adquiridos, no próprio processo de pesquisa assim
como na história do desenvolvimento teórico-prático do campo, propõe um novo fazer.
Digamos que se procura agir como um Robinson Crusoé que na concepção de Valéry,
aludindo a Daniel Defoe para falar de seu próprio espírito problemático de poeta e
pensador: “[...] numa ilha de espírito e carne, rodeado por todas as partes de ignorância,
a fabricar generosamente seus utensílios e sua arte” (Pimentel, 2008).
Assim o espírito opera por necessidade, passando a viver num estado de existência
compositiva, que pressupõe um fazer expresso via, principalmente, da escrita. Tendo na
grafia da palavra regada, no conceito dramatizado, um valor potencial de uma escritura
que emerge do punho, da mão que rabisca, expressando os pensamentos de um espírito
amante. Enamorado este espírito que nada mais é que um serpensamento arrisca um
novo olhar diante da realidade do mundo espetacular: “Uma forma de pensar circulo-
viciosa, um serpensamento, a que não estão alheios os universos tautológicos de
Mallarmé e de Joyce, do lance de dados ao riocorrente, que retorna a si mesmo por
um cômodo Vicus de recirculação... PEN(T)SER.” (Campos, 1984 p. 23). Um espírito
que quer dizer-se, autoeducar-se, explorando as potências da linguagem dentro de um
processo de culto ao intelecto. Método que sonha com um Educador à procura de um
Eu puro, senhor de si e que se experimenta em uma comédia intelectual antropofágica.
Voltada ao drama das existências espirituais dedicadas a compreender e a criar, vai
ao mundo de outras criaturas de pensamento para de suas obras analisar o que sobressai
em algum ponto e dele passa a extrair fragmentos, uma fração capturada que o leva a
pensar em o nome da criatura estudada como “um signo” (Valéry, 1998, p. 9), e assim
passa a explorar, inventar e transmutar o vivível, indo além do que já se tem ciência.
E a partir desta operação de colheita espiritual, vivido em coexistência percorrendo,
vidas e obras, dá asas à imaginação e com ela sobrevoa caminhos e trajetórias, becos e
vielas, que foram utilizados prodigiosamente como tessitura de ações criadoras de um

372
espírito pensante. Movimentos febris, “de um espírito que deseja imaginar um espírito”
(Valéry, 1998, p. 11) audaz, refazer esse trajeto de pensamento e conceber assim, uma
nova imagem que é dada por nós, – via malha intelectiva, – oriunda dos labirintos e
das entranhas da imaginação. Um espírito de escrita serpenteada, um operador que
transforma para si tudo o que existe.
O Método do Informe para a pesquisa em Educação procura atuar como Edmond
Teste, personagem de Monsieur Teste de Valéry, que opera com o que lhe é proposto
“[...] manipulando e mesclando, fazendo variar [...] podendo cortar e desviar, esclarecer,
congelar isto, aquecer aquilo, afogar, realizar, nomear o que não tem nome, esquecer o
que queria, adormecer ou colorir isso ou aquilo” (Valéry, 1997). Desse modo o espírito
compõe um novo mundo e nele passa a habitar. Procura criar possibilidades para um
serpensamento, uma forma de pensar que por vezes se torna protagonista voraz e satânica
e que serpenteia nos labirintos do espírito mordendo o que pode.
Nesta trajetória é preciso se ater aos detalhes. Como Marcel Schwob em Vidas
imaginárias, é preciso procurar estar do lado da arte que “[...] está no oposto das ideias
gerais, só descreve o individual, só deseja o único. Ela não classifica; desclassifica”
(Schwob, 1997). Procura-se um modo de lidar com o ensino que se possa operar a arte
da “invenção circunstancial” (Borges, 1997). O interesse está voltado em criar uma
tensão entre ficção e história, ficção e filosofia, ficção e arte, ficção e educação, ficção
e ensino, ficção e conhecimento. Trata-se de reescrever e reinterpretar, de compor uma
escritura, criando novos movimentos que se entretecem onde as informações trazidas
são verificáveis.
Para tanto é preciso se despir da representação costumeira, para que o ensino, no
fluxo de um movimento de pesquisa e escrita, flua sem ares de uma história ilustrada.
Deixar-se guiar pela vida e pela obra de uma criatura do pensamento, investigando como
ocorre o seu pensar e, a partir desse procedimento, operar com pequenas inserções e
cortes na busca pelos pormenores de uma vida e suas criações. E isto requer esforço,
luta disciplinada do pensar, colocando em ação as potências de conhecer, de inventar, de
pensar com renovação e achar modos de incorporar ideias para, quem sabe, ir um pouco
mais longe do o que nos impõe o senso-comum, que apenas reproduz conhecimentos.
Busca-se reconhecer a força do conhecimento empírico voltado a ser criação pela potência
sinérgica do pensamento. Ultrapassar a lógica totalizadora, redutora e racionalizadora do
conceito colocando-o para funcionar, também, como força empírica; um gesto sempre
inacabado como é a vida.
Espírito consciente de si, em self-variance constante, que tem ciência que nada há
neste processo de permanente, mas movimentos extratores de forças que favorecem como
diz Corazza: “as culturas do dissenso” para reinventar novas formas, novas “significações

373
de indivíduos e de grupos” (Corazza, 2011). Através de uma educação que promove
uma pesquisa gaia, que aumente nossa potência de agir, longe da tristeza geradora de
desesperança e do medo presente na contemporaneidade. Treinando o espírito para
planejar a navegação com Paul Valéry, em águas plurais onde o conhecimento como
invenção abre possibilidades criadoras no ensino de uma educação contemporânea.
Navegação que não pode ser estabelecida previamente, senão no próprio navegar.
Educação que opera com muitos códigos, pois é aí que está sua contemporaneidade, na
inerente multiplicidade de possibilidades que o campo carrega ao admitir que o seu meio
é de constantes mudanças e seu status é sempre provisório e variável. É disso que se trata!

Como fazer?
O trabalho da docência é um trabalho de pesquisa e o trabalho de pesquisa, quando
se é professor, é também um trabalho de docência. O fazer dessa pesquisa não pode ser
confundido com a apresentação ou constatação de uma verdade. A Educação é um lugar
que se inventa no movimento da escrita pela leitura e da leitura pela escrita; nas relações
que esse movimento comporta e, principalmente, na invenção e reinvenção do espaço-
auleiro como um espaço de ficção.
Entende-se que é preciso dramatizar o conceito de verdade (Deleuze, 1994); atentar
para quais forças e que vontades este conceito qualifica e pressupõe por direito. Pois,
sabe-se que qualquer produção de verdade sempre teve um pacto com a ficção. Disso
resulta dizer que o que se quer com o trabalho da docência não é o de uma produção de
verdade, mas a instauração de um multiverso de possíveis para o ensino.
Nesse sentido o fazer da Educação, assim como o da filosofia, para que continue
possível precisa começar a compreender que o conhecimento, como um modo de
incorporação da verdade é, sem dúvida, impossível. O conhecimento da possibilidade é
o que se afirma como paixão (pathos). E a paixão é aquele movimento que “me faz sair
de mim mesmo, empurra-me para fora de mim, para as coisas: é ‘a maneira extrema de
ver algo fora de si’” (Ponton, 2009, p. 53).
O que conta é um fazer educacional ao modo de um traçado que opera mais para
uma geografia do que para uma história. É escrevendo que se escreve e se vira escre-
vedor, nos diz Raymond Queneau (1995), entende-se, então, que a educação, constituída
pelos traçados de uma aula e pela prático de ensino, opera desse mesmo modo. Ou
seja, atenta à ideia de que toda expressão só se expressa ao se expressar, já que inexiste
como forma pré-definida ao expressado, procura que seu processo atue pelas e nas
multiplicidades potenciais da expressão, sem a procura de uma estabilidade doada
por um sentido unívoco ou pré-estabelecido. O objetivo está em dar mais atenção ao

374
processo do que ao resultado em si. A aula é todo o processo e acontecimento e não meio
para chegar a outro lugar que não o de sua própria vivência.
Nesse sentido, a aula como um espaço de ficção, ao operar com atenção ao processo,
se planeja para que, de algum modo, funcione. Esse planejamento precisa ser constituído
via certo distanciamento. Trata-se de um distanciamento que visa tramar a dramatização
desse espaço. Como esse espaço, o de uma aula, assume-se de antemão como um espaço
da ficção, ele não opera por repetição com vias a representar ou imitar, analogamente,
uma ideia. Decalcando-a como na concepção platônica de imitação. Pois, sua imitação
(se é que ela ocorre) é fabricadora do processo pelo qual se constituiu uma ideia e não
do objeto da mesma. Por isso o distanciamento se faz necessário. Uma vez que é via esse
distanciamento, mesmo que especulativo, que se pode vislumbrar o vivível e o vivido por
meio de sua reinvenção. Trata-se de uma operação tradutora.
Deste modo, ao repetir o processo de uma ideia o que ocorre não é repetição de
fato, mas composição. Renova-se aquilo que a operação tradutora passou ao traduzir dos
elementos filosóficos, científicos, artísticos operados em aula.
Tomemos a produção de Paul Valéry, que fez do processo a marca de sua escrita,
como um modo de fabricar uma aula e, assim, procurar reinventar a educação por meio
de si mesma. A produção valéryana está mais que entremeada por rasuras, artifícios da
forma, mas quer constituir-se na e pela rasura. Adota a rasura como um estatuto para-
doxal para a própria escrita. Uma escrita em que seus procedimentos, operações,
mecanismos, voltam-se à composição de textos com fins a expressá-los para produzir
o máximo de efeito ao leitor-ouvinte, leitor que se ouve e hesita a significar o lido entre
som e sentido. Por isso a escrita valéryana está composta por uma variedade temática
diletante e é aí que apoia sua consistência, em uma espécie de simultaneidade na
qual sensível e inteligível atuam em reciprocidade. Operando, evidentemente, por uma
relação indissociável entre teoria e prática, leitura e escrita.
Em domínios de interação mútua, no qual a escrita e sua outra metade, a leitura,
agem como rasura, acaba por determinar o apagamento do que foi feito-lido-escrito. O
que fica é uma mancha de sentido, uma tentativa de deliberar toda uma orbita por meio
de qualidades próprias. Como pudesse se negar ao afirmar-se, atuar por meio de cortes e
desvios, evasões, reescritas, repetições, atualizações, por fim, incompletudes.
Tem-se que Valéry, lido assim para servir como ferramenta para a Educação, não
é um modelo, mas um modo de constituir forças fabricadoras de composições. Um
movimento que não se interessa por uma história da verdade, como já dissemos antes, mas
por uma história que nada narra, senão, a sua potência como contingência compositiva.
Um escrever como experimento do trabalho de alguém que escreve para conhecer, e
não para dar a ver o que já conhece. E, mesmo assim, o conhecido – de uma escrita e

375
de uma aula –, se dá por uma relação constante com o incognoscível e imperceptível de
cada aula-escrita, dá-se em um processo inacabado e sempre por recomeçar.
Agindo valéryanamente, ou seja, pensando que o pensamento age como um
movimento em segredo que produz efeitos cria-se um distanciamento para ficcionalizar
os modos de conceber uma aula. Algo como “[...] adivinhar por quais sobressaltos de
pensamento, por quais bizarras introduções dos acontecimentos humanos e das sen-
sações contínuas, depois de quais imensos minutos de languidez são reveladas aos
homens as sombras de suas obras futuras, os fantasmas que as precedem” (Valéry, 1998,
p. 19-21). Tais fantasmas, como movimentos em segredo, são os fantasmas das criações
e anotá-los e, com isso fazer com que se constitua de palavras a sua matéria é como se
insinuar ao modo de promover um método no qual, por intermédio de uma ação imitativa
e tradutora do ato descrito, um novo ato promova adaptações possíveis do primeiro,
tornando-se outro por meio da necessidade de seu uso e, a cada vez, promovendo uma
nova necessidade.
Trata-se de conceber uma aula que visa operar por uma estratégia do desvio como
força de constituição criadora. Ao modo do Pierre Menard, el autor del Quijote de
Borges (1995), opera pela técnica do anacronismo deliberado e das atribuições errôneas.
Visa, ao extrair conceitos, fazê-los servir a fins de uma potência ficcional e, por isso,
produtora de sentidos que diferem. Doando a estes que os extraem, professores, alunos
agentes de uma aula, a possibilidade potencial da invenção como modo de portar uma
paixão pelo conhecimento.
No melhor dos casos – esse modo de tentar operar na educação via uma aula que
se admita, a cada vez, como reinvenção de si –, cria possibilidades inesperadas que
coloquem em jogo o próprio fazer, descentralizando uma prevista e imaginável auto-
ridade do docente pesquisador.
Por que todo fazer pressupõe um campo empírico e experimental o exercício da
apropriação de um pensar – que tenha o conhecimento como um campo de múltiplas
variações onde o movimento de invenção visa superar a trivialização de suas próprias
propostas – se torna possível na medida em que encontra espaço, não só para sua
formulação como, também, evidentemente, para sua atuação.
No âmbito de nossas pesquisas esse espaço se tornou possível, também, através de
oficinas promovidas pelo projeto Escrileituras: um modo de ler-escrever em meio à
vida do programa Observatório da Educação CAPES/INEP. Dentre as várias ações do
projeto, foram oferecidas oficinas por meio de uma atividade de extensão denominada
“Transcriações no cotidiano”, que ocorreu entre 07 de junho e 25 de agosto de 2011,
na Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Fruto desse
canteiro de experimentações, estas operações informes têm suas pesquisas cultivadas
dentro do Projeto Escrileituras. Terreno fértil e aberto ao esforço da criação, à variação

376
espiritual, onde o serpensamento transforma-se e arrisca um novo olhar diante do
espetáculo do mundo; para assim dizer-se, autoeducar-se, explorando as potências da
linguagem no ensino e na pesquisa em Educação.

Considerações finais
É certo que este texto se apresenta, pelo menos para nós, como abertura e conti-
nuidade de pesquisa. Roland Barthes afirma a escritura como destruição de toda origem.
Quando começa a escritura começa, também, a morte do autor (Barthes, 1988). Valemo-
nos de sua fala para afirmar que a Educação Contemporânea, parece-nos, carece da
escritura para livrar-se de seu próprio ranço constitutivo, isto é, livrar-se de uma postura
autoral com relação aos modos de conhecer e apostar em suas práticas como fluxo
inventivo, como força produtora do novo e por isso, produtora de conhecimento. Caso
contrário ela se volta para a defesa de uma identidade que representaria suas intenções.
Não há intenções na Educação, não para uma Educação que deseja se afirmar como
singularidade e potência criadora. O importante está em seu processo, como ela arma as
composições e arbitrariedades dos encontros.
Nesse sentido o texto procurar mostrar: 1) que a autovariação, como afirmada por
Paul Valéry, é constitutiva do conhecimento e da singularização do espírito e que, nesse
sentido, a Educação tem de aprender a lidar com essa instabilidade em suas práticas;
2) que o conhecimento é um movimento inventivo do espírito e sua construção se vale
da linguagem como potência ficcional e ferramenta ativa na construção de conhecimento;
3) que para lidar com a instabilidade e variação do pensamento pode-se criar um método,
o Método do Informe, que visa associar “a vivência dos limites formais e a criação
artistadora” (Corazza, 2014); e, finalmente 4) que todo pensamento conforma um fazer
e este se prefigura em uma prática experimental desde que o espaço para a mesma seja,
de algum modo, propiciado.
Em tudo isso “o mais difícil é ver o que existe”. (Valéry, 1997, p. 103)

Referências
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377
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VALÉRY, Paul. A alma e a dança e outros diálogos. (Trad. Marcelo Coelho). Rio de Janeiro:
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VALÉRY, Paul. Tel Quel I. Paris: Gallimard, 1941.

Este texto foi publicado na revista Educação por Escrito (Online) da PUCRS, v. 6, 2015.

378
O PROFESSOR-TRADUTOR: IMAGENS
DO PROJETO POLÍTICO-PEDAGÓGICO
NA EDUCAÇÃO INFANTIL

Cláudia Schvingel
Sandra Mara Corazza

Para iniciar

Estudos mostram que, devido à implementação de políticas neoliberais e à


descentralização da educação no Brasil, na década de 1980, criaram-se contradições
e disputas no cenário educacional. O modelo reprodutivista não servia mais para a
sociedade dos anos 1980, período marcado por mudanças em nível mundial, com a
reestruturação social, política e cultural da sociedade.
O novo modelo econômico dos governos de esquerda associava o projeto demo-
crático à garantia da universalização da educação e à implementação de um projeto
democrático popular. Esse movimento buscava a descentralização, a emancipação de
ideias e a construção de espaços democráticos também na área da educação. Além
disso, propiciava, às escolas, autonomia na elaboração de suas propostas pedagógicas.
Na esteira dessas transformações, encontramos o Projeto Político-Pedagógico (PPP),
que teve sua origem no período de reformas no Brasil na década de 1980. A efetivação
do PPP, porém, ocorreu com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB),
n° 9.394, em 20 de dezembro de 1996, ou seja, mais de uma década após as reformas
educacionais e sociais. Todos esses movimentos foram importantes no processo de

379
construção de políticas públicas que legitimam a elaboração do Projeto Político-
Pedagógico das escolas brasileiras, por meio da LDB n° 9.394/96.
Na redação da lei 9.394/96, podemos observar a clareza quanto à necessidade de
delegar aos estados e municípios a construção de seus Projetos Político-Pedagógicos.
O Art. 12 define que os estabelecimentos de ensino, entre outras incumbências, devem
“I- elaborar e executar sua proposta pedagógica” (BRASIL, 1996). Assim, verificamos o
caráter descentralizador e o viés democrático da ação do Estado.
No que expressa a LDB em seu Art. 13, os docentes responsabilizam-se em:
“I – participar da elaboração da proposta pedagógica do estabelecimento de ensino”.
Ainda no Art. 14, visualizam-se os princípios que definem as normas da gestão
democrática do ensino público, entre os quais: “I – participação dos profissionais da
educação na elaboração do projeto pedagógico da escola” (Brasil, 1996).
A LDB, em seus Artigos, em nenhum momento compõe as três palavras – “projeto
político-pedagógico” – e, de imediato, questionamos: Por que a composição dessas três
palavras? Por que não “projeto pedagógico”, “proposta pedagógica”, como bem expressa
a LDB? O que esse projeto tem de político? E não poderia ser um P ao Quadrado?
Ou incluir a palavra “poético”? O que, de fato, o PPP da escola traduz ou representa?
Quais as imagens criadas pelos professores acerca do PPP? São provocações, problemas
levantados que tentaremos elucidar e investigar.
Explicitamos que este trabalho não teve intenção de julgar por meio de bina-
rismos as traduções ou representações do PPP, muito menos de encontrar respostas
ou verdades escondidas nas imagens. Porém, os estudos e leituras da disciplina “O
professor–tradutor de 28EIS AICE: currículo e didática” nos levaram, como bem diz
Corazza (2002, p. 118), “[...] a suspeitar de todo e qualquer sentido consensual, de
toda e qualquer concepção partilhada, com os quais estamos habituadas/os [...]”. O
que se faz necessário, – por este viés da suspeita –, é indagar a realidade, as práticas
educativas, levantando novos problemas que colocam em xeque os sentidos cristali-
zados e legitimados da escola.
Por conta dessas ideias, tivemos, com este trabalho, o intuito de “olhar” as traduções
ou representações do PPP, por meio de imagens, de um grupo de professores de uma
escola pública de Educação Infantil. Primeiramente convidamos todos os professores,
monitores, estagiários (todos serão nomeados de educadores) para participarem do
presente trabalho de forma voluntária. Além disso, fizemos uma explanação dos obje-

28
EIS AICE: EIS (E- Espaços, I- Imagens, S- Signos); AICE (A- Autor, I- Infantil, C- Currículo, E- Educador). EIS
AICE unidades criadas pela professora Sandra Mara Corazza e seus colaboradores durante o Seminário Avançado
Projeto Escrileituras no Observatório: Pesquisa, Didática e Currículo (2013), da Universidade Federal do Rio Grande
do Sul, Linha de Pesquisa 09 Filosofias da diferença e educação.

380
tivos e, no final, sete educadores inseriram-se no trabalho. Cada educador recebeu uma
folha A3 e a seguinte tarefa: “Traduza o PPP da escola na forma de imagem ou imagens”.
Cabe destacar que a escola de Educação Infantil escolhida foi aquela em que
fomos incitadas a estudar e aprofundar o conhecimento a respeito do Projeto Político-
Pedagógico. Não foi por acaso a “escolha” desta escola e, em especial, deste grupo de
professores, mas nos perguntamos: Será que não foram eles (os educadores) que nos
desafiaram?
Durante os encontros de escrita do PPP da escola, muitas palavras foram enun-
ciadas e outras foram manifestas nos gestos e expressões. Nesse processo de estudos e
de (re)construção do PPP, há que se ter cuidado com aquilo que parece visível, como
se sempre estivesse ali. Segundo Lopes e Veiga-Neto (2004, p. 232), “Essa tentativa de
ir para além do imediatamente visível não implica supor um nível oculto, misterioso e
mais profundo a ser decifrado”.
No desenvolvimento do trabalho, também precisamos assumir a postura de pes-
quisadoras para “olhar” as imagens criadas acerca do PPP e isso implicou em alfabetizar
“[...] o olhar para conseguir enxergar tudo aquilo que se dá a esse olhar” (Lopes; Veiga-
Neto, 2004, p. 232). Para esses autores, significa observar os detalhes do cotidiano,
“[...] de modo que, olhando para além do lugar comum, se consiga apreender os jogos
de significação nos e pelos quais aprendemos – entre outras coisas, a viver segundo
esquemas temporais e espaciais mais ou menos disciplinados” (Lopes; Veiga-Neto,
2004, p. 232).
De fato, como se educa o olhar? O que é preciso aprender e desaprender neste
processo que busca os detalhes do cotidiano? Quais tipos de tradução podem ser feitos
nesse visível jogo de significações? Como se dá a ação de traduzir?
A seguir, em “Algumas interlocuções teóricas: imagens dos educadores”, evi-
denciaremos reflexões a respeito das traduções ou representações feitas pelos pro-
fessores, a partir do referencial teórico que sustenta este trabalho: Imagens e Educador,
do ensaio de EIS (Espaços, Imagens e Signos), AICE (Autor, Infantil, Currículo, Edu-
cador) e seu Glossário (Corazza, 2015a); Imagem do pensamento (Deleuze, 2009),
(Corazza, 2013), (Machado, 2013); Da tradução como criação e crítica: o tradutor (Campos,
2013), (Corazza, 2013; 2015b). Por fim, desenvolveremos algumas considerações para
(não) finalizar e apontaremos algumas possibilidades para outros estudos.

Algumas interlocuções teóricas: imagens dos educadores


Quais são as imagens criadas no pensamento dos professores e traduzidas ou
representadas por eles ao ensinar acerca do PPP? São imagens-deuses, imagens-mortas,

381
imagens-salvação, imagens-solução, imagens-chatas, imagens-engavetadas, imagens-
saco, imagens-criação, imagens-diferença, imagens-individuais, imagens-grupais,
imagens-luz, imagens-..., imagens-...?
O que é olhar a imagem? O que é pensar a imagem? E, ainda, o que é este pensar
a imagem? Alguém, e neste trabalho o educador, ao traduzir ou representar o PPP na
forma de imagem, a pensou. O desafio, “Traduza o PPP da escola na forma de imagem
ou imagens”, proposto aos professores de uma escola pública de Educação Infantil, nos
fez reler o documento do Projeto Político-Pedagógico da escola. Constatamos, nessa
leitura, que o referido Projeto apoia-se em autores, tais como Salles e Faria (2012),
Veiga (2002), Barbosa e Horn (2008), e em documentos como as Diretrizes Curriculares
Nacionais da Educação Básica (2013) e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (9.394/96). Além disso, procuramos nesses autores e documentos os conceitos
defendidos em torno do PPP e destacamos as seguintes ideias:

Quadro1: Recortes do Projeto Político-Pedagógico da escola-2015

É a busca de construção da identidade, da organização e da gestão do trabalho de cada


instituição educativa. O projeto reconhece e legitima a instituição educativa como histórica
e socialmente situada, constituída por sujeitos culturais que se propõem a desenvolver uma
ação educativa a partir de uma unidade de propósitos (Salles; Faria, 2012, p. 20).

O projeto político-pedagógico, ao se constituir em processo democrático de decisões,


preocupa-se em instaurar uma forma de organização do trabalho pedagógico que supere
os conflitos, buscando eliminar as relações competitivas, corporativas e autoritárias, [...]
(Veiga, 2002, p. 2).

[...] entender a proposta pedagógica como um instrumento que responda às


necessidades sociais da comunidade onde se insere e, a partir disso, desvelar o “para que” e
“para quem” se ensina (Barbosa; Horn, 2008, p. 43-44).

[...], a proposta pedagógica das instituições de Educação Infantil deve ter como
objetivo principal promover o desenvolvimento integral das crianças de zero a cinco anos
de idade garantindo a cada uma delas o acesso a processos de construção de conhecimentos
e a aprendizagem de diferentes linguagens, assim como o direito à proteção, à saúde, à
liberdade, ao respeito, à dignidade, à brincadeira, à convivência e interação com outras
crianças (Brasil, 2013, p. 88).

382
O documento, assim intitulado Projeto Político-Pedagógico (PPP), conforme os
autores citados, faz parte do currículo, busca uma identidade, organiza, garante a
construção de conhecimentos, descreve e demarca a proposta pedagógica adotada e
assumida pela escola. Por conta disso, é “Projeto”, pois traça as ações concretas da es-
cola; “Político”, pois considera a escola como um dos espaços de formação de cidadãos
conscientes e críticos, que atuarão de forma individual e/ou coletiva na sociedade; e
“Pedagógico”, pois define e organiza as atividades e os projetos educativos necessários
ao ensino e à aprendizagem de todos os envolvidos.
As produções dos educadores evidenciadas no quadro “As traduções ou represen-
tações dos educadores” relacionam-se com a matéria chamada PPP, e foram criadas
pelo próprio educador e por ninguém mais. Além disso, sinalizam a imagem do pen-
samento acerca do objeto PPP e suas relações com o currículo. Então, neste momento
de escrita, perguntamos, como Fischer (2012, p. 93): “Mas por onde começar?”.

Existe em muita gente penso eu, um desejo semelhante de não ter de começar, um
desejo de se encontrar, logo de entrada, do outro lado do discurso, sem ter de considerar
do exterior o que ele poderia ter de singular, de terrível, talvez de maléfico. A essa
aspiração tão comum, a instituição responde de modo irônico; pois que torna os
começos solenes, cercados de um círculo de atenção e de silêncio, e lhes impõe formas
ritualizadas, como para sinalizá-los à distância (Foucault, 2012, p. 6-7).

Por onde começar a “olhar” as imagens traduzidas ou representadas pelos educa-


dores? Também, não queremos passar a sensação de que esse “olhar” é solene, como
um ritual, cercado de silêncio. Inspiradas nos excertos acima, ocupamo-nos em expli-
citar alguns conceitos de imagem na perspectiva de Gilles Deleuze e de alguns de
seus comentadores, para pensar as imagens acerca do Projeto Político-Pedagógico de
uma escola de Educação Infantil. Ainda nesse pensamento, o conceito de tradução
enquanto crítica e criação de Haroldo de Campos.
É importante ressaltar que, inicialmente, nossos estudos se concentraram em alguns
pesquisadores, tais como Corazza (2013; 2015a; 2015b) e Machado (2013). Muitas vezes,
porém, os estudos desses comentadores nos remetiam às ideias de Deleuze e Campos,
razão pela qual optamos por iniciar nossas argumentações apoiadas nos seus escritos.
Para Corazza (2015a, p. 1), no discurso de EIS AICE, currículo e didática da
diferença, as imagens “doam e captam, produzem e reproduzem, fazem e se refazem,
suscitam e são suscitadas”. Com Corazza (2015a), há também imagens pobres, copiadas
e coladas, ou seja, que simplesmente representam. A imagem é compreendida, na
esteira do pensamento de Corazza (2013), como criação do pensamento, ou seja, é a
“estrangeiridade do pensar” (op. cit., p. 183).

383
Ainda para a autora, “A imagem do pensamento é o que precisamos para pen-
sar” (Corazza, 2013, p. 187). Em cada imagem há um tipo de pensamento e não é uma
questão de cópia ou representação do pensamento. Portanto, “A imagem é diagrama,
horizonte e solo, atmosfera e reservatório, vibração movente da matéria e relação de
forças sensíveis, desprendidas dos afectos” (Corazza, 2013, p. 187).
Esses estudos nos fizeram compreender a imagem, disseminada no pensamento,
como aquela que problematiza e formula problemas. Portanto, no que teoriza Corazza
(2013; 2015a), conceber a imagem dessa forma é preparar o pensar para a intensidade
e a diferença. Ademais, a autora ainda acrescenta que, se há uma imagem assentada
no pensamento do currículo escolar, que compõe um modelo legal que individualiza
os sujeitos, constituindo-os como bons e em que tudo, no campo do currículo, se torna
sólido, firme e estável; essa é uma imagem representada.
Machado (2013), ao teorizar conceitos deleuzianos, escreve que imergir na re-
presentação significa afirmar os direitos dos simulacros, identificando neles a potência
positiva, capaz de acabar com as categorias de original e de cópia, tanto do modelo
como da reprodução. “O simulacro é uma instância que compreende uma diferença em
si” (Machado, 2013, p. 49) e que contesta as noções de identidade e semelhança. Esse
autor diz que Deleuze, ao teorizar sobre a imagem mental, a considera um objeto do
pensamento que toma objetos os quais possuem uma existência fora do pensamento,
ou seja, é uma imagem que toma como objeto as relações, os atos simbólicos e os
sentimentos intelectuais.
Com Deleuze (2009, p. 191), há alguém, mesmo que seja somente um, “[...] que
não chega a saber o que todo mundo sabe e que nega modestamente o que presume
que todo mundo reconhece”. Alguém que não se deixa representar e que também não
quer representar alguma coisa, ou melhor, com “[...] um pensar singular cheio de má
vontade e que não seja suposto anteriormente” (Deleuze, 2009, p. 191). Um pensamento
que desconfia.
O que se presume é que todos saibam pensar e a “[...] forma mais geral da
representação está, pois, no elemento de um senso comum como natureza reta e boa
vontade” (Deleuze, 2009, p. 192). Enquanto esse tipo de pensamento estiver ligado
a uma imagem que prejulga tudo, essa é uma imagem do pensamento moral e assim
não há criação. O que se quer é um movimento contrário que pense a imagem en-
quanto deformadora do pensamento, enquanto potência do pensar. Para Deleuze (2009),
não é fácil pensar e, ao teorizar a respeito da imagem do pensamento, escreve que é
preciso renunciar à imagem do pensamento que se cola ao senso comum e ao bom
senso, ou seja, àquilo que é reconhecível e reconhecido, e que é aceito na forma de
conformidade.

384
Deleuze (2009, p. 197) aponta a necessidade da crítica a essa forma de imagem
do pensamento que simplesmente representa, “[...] como se o pensamento não devesse
procurar seus modelos em aventuras mais estranhas ou mais comprometedoras”. Ainda
acrescenta: “Eis porque o mundo da representação se caracteriza por sua impotência
em pensar a diferença em si mesma; e, ao mesmo tempo, em pensar a repetição para
si mesma [...]”. Segundo o autor, a representação é apreendida por meio da recognição,
da reprodução, da repartição e da semelhança.
Para Deleuze (2009), há algo no mundo que nos força a pensar, um “encontro
fundamental”, que pode ser apreendido de formas diferentes, seja pela afeição, admiração,
amor, ódio e dor. A questão está em destruir a imagem de um pensamento que pressupõe
a si próprio. Essa seria a crítica e a criação do pensamento, ou seja, o impensável, ou o
não pensado.
Ainda segundo Deleuze (2009), é sempre por meio de uma intensidade que o
pensamento nos advém e isso acontece no encontro do que força a sentir com aquilo que
só pode ser sentido. Nesse momento encontram-se não os deuses, mas “[...] os demônios,
potências do salto, do intervalo, do intensivo ou do instante, e que só preenchem a
diferença com o diferente; eles são os porta-signos” (Deleuze, 2009, p. 210).
Todas essas ideias nos fizeram buscar os conceitos de Corazza (2015b) ao propor
o professor-tradutor. Para a autora, é aquele que possui autoria heterogeneizada e que
adota o método da criação. Seja a tradução que for, e aqui o PPP de uma escola, tem
que ser tomada para a transcriação, para uma ideia, ideia-força, ideia-potência que abala
e que seja contrária à petrificação. Segundo Corazza (2015b, p. 109), “[...] ao atribuir
uma tradução às matérias – sejam científicas, artísticas ou filosóficas, expressas pelos
currículos –, ecoamos um determinado significado, que já existia nos originais, como
a sua possibilidade mesma de existir”.
A autora propõe vários “nãos” ao trabalho do professor-tradutor. Portanto, o
professor que é tradutor não faz cópia ou dublagem, não trata o original como sagrado,
não é escravo ou ladrão de autores, não protagoniza ressurreição, não transmite, não
dá aula ou conteúdos, não serve como auxiliar à leitura dos originais. Pelo contrário,
para a autora, o “professor-tradutor-intérprete” é aquele que experimenta, desconstrói
o existente, transgride, inventa e rasura a origem.
O Educador, último elemento da composição de EIS AICE de Corazza (2015a), é um
personagem que, para educar e ensinar, pesquisa, procura, cria e ensina. Para Corazza
(2015a), todo educador que cria, traduzindo, adota um ponto de vista transcriador, que
escova os clichês do senso comum, as formas legitimadas da escola e assume suas
traduções curriculares e didáticas, sem a necessidade de apelar para algo ou alguém
superior a ele mesmo. O educador é aquele que se assume como tradutor. Ao assumir-se

385
como educador-tradutor, cria um processo de autocriação, em que as diferenças existem
somente para se diferenciar.
Corazza (2013, p. 208) escreve que a tradução “[...] percorre a DidáticArtista,
como um dispositivo que a desencadeia e uma prática que a desdobra”. Para a autora a
tradução é como se fosse uma paródia, um canto paralelo entre os elementos originais e
as traduções consistindo em uma criação paralela e autônoma. Nesse sentido, a tradução
é um ato político, “[...] que desfuncionaliza línguas instrumentais e aproxima distâncias,
num processo de transformação cultural” (Corazza, 2013, p. 209). As traduções dos
professores “[...] transgridem as circunscrições sígnicas; rompem a relação aparente
entre forma e conteúdo; recusam-se a ficar atreladas à tirania de um logos pré-ordenado”
(Corazza 2013, p. 214). A autora defende que o professor passa a dominar a tradução
“[...] quando coloca o seu próprio ser dentro dela” (Corazza, 2013, p. 217).
A autora supracitada, apoiada nos escritos poundianos, também diz que o trabalho
inicial das traduções é crítico. Faz-se necessária “[...] uma penetração intensa da mente
do autor [...]” (Corazza, 2013, p. 217). Mas, não basta somente isso. Na sequência, o tra-
balho torna-se técnico e acontece a “[...] projeção exata do conteúdo psíquico de al-
guém e, pois, das coisas em que a mente desse alguém se nutriu” (Corazza, 2013, p. 217).
De fato, para a autora, a tradução é uma sobrevida ao original, pois “[...] a tradução
não ambiciona atingir qualquer semelhança com o original, desde que a própria vida
deste consiste, desde sempre, em renovação das suas marcas de historicidade” (Corazza,
2015b, p. 111). Com tudo isso, a tradução, em Corazza, implica muito mais em recriar do
que simplesmente transpor ou transportar os sentidos de uma língua.
Marcelo Tápia, ao realizar a apresentação do livro Haroldo de Campos Transcriação
(2013), escreve que o conceito de tradução poética “[...] foi sendo submetido a uma
progressiva reelaboração neológica” (XIV). Marcelo Tápia diz que, na tarefa do tradutor,
“Haroldo postula que o tradutor de poesia é um coreógrafo da dança interna das línguas,
[...]” (XV). A tradução, nesse referencial teórico, não desencadeia a transmissão do
conteúdo original; o que se quer é provocar uma coreografia. Como na coreografia há
vários ensaios, e cada ensaio é diferente e único, a escola precisa ser pensada por meio
desse viés, assim como o seu PPP.
Esse pensamento nos remeteu às ideias de Jacques Derrida (2002), de forma
específica para alguns de seus escritos em Torres de Babel. Esse autor diz que o original
se dá modificando-se, que vive e sobrevive em mutação. Ou seja, todo original sofre
transformação pela prática da tradução, sendo essa a característica do tradutor enquanto
recriador ou usurpador, e jamais como representação.
Haroldo de Campos (2013) enuncia que é impossível distinguir entre representação
e representado, pois este não possui outro conteúdo senão a própria estrutura e não é

386
outra coisa senão o seu próprio instrumento. Operando com essa lógica, não há tradução,
pois esta supõe a separação entre sentido e palavra. Para Haroldo de Campos (2013,
p. 2), o lugar da tradução seria a disparidade entre o “dito e o dito”, criando entre eles
a discrepância. Para o autor, toda a tradução é crítica, pois “[...] nasce da deficiência da
sentença, de sua insuficiência para valer por si mesma” (Campos, 2013, p. 2).
O sentido crítico empregado por Haroldo de Campos (2013) vem do conceito
poundiano, com uma “[...] penetração intensa na mente do autor [...]” (p. 8), ou seja, da
crítica via tradução como “[...] nutrimento do impulso criador” (p. 13). O autor em seus
estudos cita a frase de J. Salas Subirat: “Traduzir é a maneira mais atenta de ler” (p. 14).
É uma leitura com atenção, que revela “[...] uma operação crítica ao vivo” (p. 14).
Com esse autor, compreendemos que se traduz o que não é linguagem e nesse
processo acontece a criação. Ao traduzirmos, acrescentamos algo que não é observável,
ou seja, um elemento novo, imprevisível e de surpresa para o leitor. “A tradução é arte”
(p. 5), como bem afirma Haroldo de Campos (2013). Ainda em seus estudos, expressa
que a tarefa do tradutor é traduzir o intraduzível e que a “[...] tradução de textos criativos
será sempre recriação, ou criação paralela, autônoma, porém, recíproca” (p. 5). Segundo
o autor, quanto mais carregado de dificuldades o texto, mais recriável e sedutor e,
consequentemente, uma possibilidade aberta de recriação.
Acerca dessas teorizações e reflexões, o quadro abaixo, “Traduções ou representações
dos educadores”, expressa as criações em torno do desafio: “Traduza o PPP da escola
na forma de imagem ou imagens”. Para manter o anonimato dos educadores, eles foram
nomeados como Educador (E1), Educador (E2) e assim sucessivamente até o Educador
(E7). Ainda, as imagens são apresentadas em tamanhos diferentes para facilitar a leitura.

Quadro 2: Traduções ou representações dos educadores

Fonte: Educador 1

387
Fonte: Educador 2

Fonte: Educador 3

388
Fonte: Educador 4

Fonte: Educador 5

389
Fonte: Educador 6

Fonte: Educador 7

390
Ao “olhar” essas imagens, encontramos diferentes traduções ou representações.
Mas, seriam essas imagens as traduções ou representações dos pensamentos dos pro-
fessores, ou seja, a imagem do pensamento acerca do PPP?
Essas traduções ou representações, apresentadas no quadro, possuem composições
diferentes e encontram-se no pensamento dos educadores: um livro aberto, sinalizando
para o educador-pesquisador (Educador 1); traços que ligam os personagens da escola,
uma lâmpada e um balão de ideias (Educador 2); um labirinto com palavras, entre as
quais, aprendizagem, educação, caminho, fazer escolhas e, ao redor dele, imagens
de diferentes pessoas (Educador 3); uma teia e no seu entorno palavras como rede,
mudança, conquista, mudanças em andamento, diálogo aberto, investigação, pesquisa
(Educador 4); diferentes objetos, duas alianças, taças e personagens, uma bailarina,
uma pessoa, e alguns dizeres (Educador 5); um caminho com a Lei de Diretrizes e Base
da Educação Nacional, Plano Nacional de Educação, Plano Estadual de Educação,
Primeira Conferência Municipal da Educação, Plano Municipal da Educação, Projeto
Político-Pedagógico da escola com uma lâmpada, balão de ideias, pessoas e ponto de
interrogação (Educador 6); um quebra-cabeça com palavras, entre elas, crescimento,
desafio, diferenças, movimento, futuro, opiniões (Educador 7).
Diante dessas imagens, cabem algumas questões: Por que da tradução ou
representação do PPP na forma de labirinto, quebra-cabeça, caminho? Que concepção de
escola, de PPP, de currículo, há no pensamento dos professores para que sejam utilizadas
essas formas de traduções ou representações?
Seguimos problematizando: Seriam essas imagens traduções ou representações dos
educadores? Por que usaram essas imagens e não outras? A imagem do Educador 2 – o
que quer mostrar ou denunciar? Seria a escola um ciclo, que tudo repete? Já o Educador
7 traduz ou representa o PPP na forma de um quebra-cabeça com um encaixe perfeito
de todas as peças. Na escola, as peças sempre estão encaixadas, em harmonia? E não
poderiam estar desencaixadas? O que as imagens do quadro acima sugerem?
Olhar as imagens! Não se trata de “olhar” as imagens pura e simplesmente, como
um começo e um fim em si mesmo, pois essas denunciam, agem e (re)produzem pen-
samentos, mas sim, de “olhar” as imagens do quadro com o sentido único de provocar
outros e novos pensamentos para as composições do currículo escolar e, dentro deste,
o PPP. Quais desvios, pistas são criadas a partir dessas imagens para a criação de um
currículo diferente e, consequentemente, de um ensino que cria? Elas poderiam en-
gendrar outras imagens?
É um movimento de presença e, ao mesmo tempo, de ausência, como bem afirma
Corazza (2015a, p. 2), de “Imagens ausentes que presentificam presenças e Imagens
presentes que presentificam ausências”. Que as imagens dos sete educadores, retratadas

391
no quadro, provoquem diferentes pensamentos e modos de existência para a Educação
Infantil e jamais sejam coladas à representação.
Ao traduzirem o PPP da escola, o que, de fato, esses educadores destruíram em seu
pensamento, para poderem criticar e criar? Ao realizarem as traduções do PPP na forma
de imagem, aconteceu um movimento de pensamento, seja de recognição ou de criação.
As traduções que os educadores realizaram estão longe de serem “olhadas” nesse viés
teórico enquanto representações. Portanto, o campo teórico adotado para este trabalho
“olha” para a representação como algo que se identifica, julga, encontra semelhanças
entre as imagens e isto significa não pensar a diferença.
O que propomos é um encontro com aquilo que força o pensamento, ou melhor,
o pensar, e, como bem expressa Deleuze (2009), com uma paixão de pensar. Um
pensamento que faz nascer aquilo que ainda não existe. Em Deleuze (2009, p. 213),
“Pensar é criar, não há outra criação, mas criar é, antes de tudo, engendrar, “pensar” no
pensamento”. Pensar as correntes de pensamento ou correntes filosóficas por trás, ao
lado, acima, à frente dessas imagens dos educadores. Nesse sentido, há uma corrente do
pensamento que foi se constituindo ao longo da história.
Diante disso, procuramos novas maneiras de pensar o PPP? Se operamos com a
crítica do pensamento, esta deveria inspirar novas maneiras de pensar. O que o PPP
inspira de novo? Através da tarefa proposta aos educadores, “Traduza o PPP na forma
de imagem”, não quisemos encontrar respostas, mas problematizar e inspirar pensa-
mentos e modos de pensar dos educadores acerca do PPP. Segundo Deleuze (2009,
p. 226), “[...] é preciso parar de decalcar os problemas e as questões sobre proposições
correspondentes, que servem ou podem servir de respostas”, pois, do contrário, perdemos
a gênese do ato de pensar.
Todas as imagens do quadro traduzem ou representam algo acerca do PPP, mas
também podem silenciar. Deleuze (2009), quando se refere aos oito postulados, ex-
pressa que não há necessidade deles serem ditos, ou seja, eles agem muito melhor em
silêncio. Os postulados de Deleuze (2009, p. 240) “[...] esmagam o pensamento sob
uma imagem que é do Mesmo e do Semelhante na representação”, e ainda traem o que
significa pensar. Para Deleuze (2009), o pensamento sem imagem é um pensamento
que nasce no pensamento, ou seja, é um ato de pensar engendrado num significado mais
abrangente.
O que esses educadores criam nas imagens traduzidas? Para Haroldo de Campos
(2013), não se traduz apenas o significado, mas o próprio signo. Tradutor-recriador,
que, ao traduzir o PPP da escola, recria outros modos de escolarização, criticando os
existentes, eliminando as repetições, adotando um ponto de vista transcriador, ou seja,
uma nova vida pela tradução. Ao traduzirmos, adotamos um olhar crítico e criativo, em

392
que é necessário trair o original para que aconteça a criação, acrescentando efeitos novos
ou variantes.
A tradução é uma leitura crítica, artística, poética, para a criação no ensino de forma
potente e competente. A tradução é transcendente. Traduzir é trair, é ferir sempre, na
medida em que, por exemplo, tomamos o PPP de uma escola. É ir contra aquilo que
parece blindado e que não nos afeta. Por conta desse entendimento, não existe o original,
o intocável, mas existem correntes na educação. O professor tradutor não precisa fazer,
a todo instante, reverência ao original, transmitindo, conduzindo de forma servil, como
besta de carga. A tradução é um processo de interpretação e reposição de significado. O
tradutor pensa! Para Deleuze (2009), o verdadeiro pensar vai implicar a criação de um
novo problema, que desmancha e descola o vivido.
“Olhamos” para as imagens do quadro e pensamos se elas traduzem tudo o que pode
ser traduzido no espaço da folha acerca do PPP e se tudo o que nos cerca é uma questão
de imagem. Esse pensamento provoca outras perguntas: O PPP não poderia ser uma
imagem do currículo para a Educação Infantil? E se, antes de pensarmos o PPP para
a Educação Infantil, fosse necessário inventarmos imagens para ele? Nesse sentido,
o que esses educadores criam ao traduzir o PPP da escola enquanto educam? O que
movimentam e, ao mesmo tempo, desconstroem em seu pensamento? Qual é a vontade
de potência?
Este trabalho, ao fomentar um “olhar” que olha os Projetos Político-Pedagógicos
pelo viés da tradução poética, denuncia o que resiste à representação, à colagem de
documentos que sempre foram escritos da mesma forma. Por que não um PPP com a
inserção de mais um P, um P Poético que aspira às individualidades de cada indivíduo
pensante? Um PPPP, ao quadrado, que pertença a um currículo vivo e alegre, em
movimento e que resista às coisas coladas, impensadas e mortas. Que instaure entraves,
problematizações. Em que cada educador, ao traduzir o PPPP para e com seus alunos,
possa provocar (re)criações e reflexões.
Enfim, chegando às últimas palavras desta escrita, cabem ainda algumas perguntas: E
como o professor alfabetiza seu olhar para “olhar” o PPPP? Como se dá essa “formação”
“deformação” do professor? Conforme diz Henz (2009, p. 69):

Pensar a formação de professores na chave da deformação pode ser uma estratégia


eficaz para acompanhar dois movimentos: um primeiro, daquilo que está desistindo em
um grande cansaço, e um outro, por vezes concomitante, daquilo que está se gestando
no registro do sensível e dos processos de aprendizagem. Isso exige um tanto de
solidão e disponibilidade, não só para as formas acabadas que parecem definidas, mas
especialmente para as forças do coletivo, que produzem outras formas vivas (esgotadas)
de pensar, sentir e colaborar.

393
Para (não) finalizar
Para (não) finalizar! Finalizar? Seria essa a melhor palavra? Ou essa palavra po-
deria provocar outros modos de ser, estar e agir no mundo? E será que finalizamos
algo? Mas, é hora de escrever as últimas palavras deste trabalho. Um trabalho que
movimentou em nós, como diz Corazza (2002, p. 56) “[...] outra máquina do pensar” que
colocou em questão “olhar” as imagens traduzidas ou representadas acerca do Projeto
Político-Pedagógico de um grupo de educadores de uma escola pública da Educação
Infantil. Além disso, nos fez “olhar” para as nossas traduções ou representações como
professoras e pesquisadoras.
Pensar o Projeto Político-Pedagógico por meio de imagens criadas pelos educa-
dores e, ao mesmo tempo, problematizá-las por meio de um olhar alfabetizado, atento
aos pormenores, foi um desafio. Nossos “olhos” de pesquisadoras olharam para as sete
imagens traduzidas ou representadas enquanto potentes para a criação no ensino. A tarefa
proposta, “Traduza o PPP na forma de imagem ou imagens”, foi “olhada” não como
simples produção ou ilustração, mas como força criadora. Conforme bem evidenciado
neste trabalho, trata-se de olhar para as imagens enquanto possibilidades criadoras
acerca do PPP da escola.
Este trabalho propôs um pensamento contrário ao que está colocado, sem vida,
acerca do PPP. Quantos e tantos movimentos contrários já fizemos para tomar e trans-
formar em morte a nossa potência criadora no ensino e para nos desprender daquilo
que já é e sempre foi feito da mesma forma. Isso é tradução! É movimentar, é criar!
Todo este estudo nos fez pensar: por que os educadores ainda fazem uso de
quebra-cabeça, labirinto, caminhos para traduzir ou representar o PPP da escola? Será
que esses educadores traduziram ou representaram? Conforme os autores citados neste
trabalho, a tradução é criação. Se, para esses educadores aconteceu a tradução no sentido
defendido neste trabalho, de pensar um PPP mais ambulante, nômade e que movimenta
sentidos e sentimentos, essa se fez. Caso contrário, é pura representação da ordem da
colação.
Por conta disso, que este trabalho possibilite outras redes de significações para os
professores-tradutores e que possa ter contribuído para as discussões referentes à (re)
construção de Projetos Políticos-Pedagógicos mais Poéticos e para a problematização de
questões vinculadas à imagem do pensamento e à tradução na Educação. E, ainda, que
este trabalho possa sinalizar para outras investigações.
Concluímos com Alícia Fernandes (1990) que, em sua obra intitulada “A mulher
escondida na professora”, entre outras questões, destaca a inteligência aprisionada de
cada um de nós, como ensinantes e aprendentes. Segundo a autora, temos sintomas

394
e inibições que nos autorizam a pensar e a perguntar, deixando espaço à imaginação
e ao prazer de aprender e, como consequência, ao prazer de ensinar.
Diante disso, também finalizamos, reforçando: Finalizar? Não! Que este trabalho
possa movimentar pensamentos outros, que estimule a estrangeiridade do pensar, evi-
tando as certezas, permeando outras discussões acerca do assunto “professor-tradutor
– imagens do Projeto Político-Pedagógico na Educação Infantil”. Pensamentos para
um traduzir transcriando a matéria do PPPP ao quadrado no currículo escolar como
um desafio criador, numa relação e somente simples relação, de transcriação enquanto
arte que experimenta, problematiza, formula, critica problemas e, por fim, CRIA.

Referências
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Educação Infantil. Porto Alegre: Artmed, 2008.
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Acesso em: 24 nov. 2013.
BRASIL. Ministério da Educação. Lei n° 9.394 de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as
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Artigo publicado na REVEDUC – Revista Eletrônica de Educação, São Carlos, SP: Universidade
de São Carlos, Programa de Pós-Graduação em Educação, v. 10, n. 3, nov. 2016.

396
LA ESCRITA SOCIOGRÁFICA COMO
DIDACTICA TRANSCREADOR Y
PRODUCTORA DE PRESENCIA

Máximo Daniel Lamela Adó


Sandra Mara Corazza

Introducción

El texto expone un intento para pensar una educación de la inmanencia valiéndose


de procesos de creación literaria como procedimientos didácticos. Se utiliza de la
literatura de Georges Perec como componente hipotextual para traducir, al modo de una
transcreación, algo del cotidiano educacional a partir del aula. Entiende esos procesos,
elaborados por la escritura, como una actividad de traducción transcreadora que se
despliega como investigación de la vida cotidiana.
En ese sentido recurre a la literatura de Georges Perec entendiéndola como un
procedimiento transcreador del espacio, de un discurso sobre las cosas y de una intensa
relación con otros textos. Así el hacer de esa escritura se transfigura como pensamiento
y, además de donatario de sentido, ofrece procedimientos poéticos para establecer
conexiones transtextuales figuradas en textos y modos de proceder didácticamente.
En ese sentido es que denominamos ese tipo de escritura literaria, como la de algunos
textos de Georges Perec, de sociografía.
Es importante decir que la sociografía que caracterizamos aquí se dimensiona
como actividad que difiere de una sociología en muchos sentidos pero principalmente

397
por asomarse más para un gesto poético que para una actitud interpretativa de fenó-
menos sociales.
El resultado de escritura de esta sociografía se presenta como un instrumento para
hacer un trazado de la imaginación pública hilvanado como una red discursiva de lo que
circula sobre lo social y como posibilidad de definir un presente. Ese trazado se comporta
como autobiográfico por admitir la singularidad de cada lector y de cada lectura, pero sin
individualizarla y tampoco dejar de ver que su potencia se da por un atravesamiento de lo
colectivo. Es decir, con Jean-Luc Nancy (2006), que esa potencia se comporta como un
estar singular plural; una producción siempre relacional entre la singularidad de un sujeto
y la colectividad de lo social. En ese sentido no se podría concebir la existencia de los
entes, vivientes o no, en separado. Para esa concepción toda existencia es co-existente, lo
singular es plural y lo plural singular. La literatura de Walt Whitman, como presentada
por Gilles Deleuze, puede servir de perspectiva y expresión de esa dimensión, es decir,
la que nos da a leer que no existe historia privada que no sea pública, política y popular.
Para Deleuze, al mencionar la obra de Whitman, toda literatura deviene como un asunto
del pueblo; la autobiografía más personal es necesariamente colectiva (1997, p. 68).
En ese sentido la práctica de una escrita sociográfica tratada como didáctica
transcreadora se torna prolífica como instrumento para una educación de la diferencia y
de la inmanencia, o sea, para una educación que difiere de sí misma en la medida en que
se repite como alteridad multiforme y se hace presente al no crear para sí un meta-relato
que la proyecte para otro plan que el de su propia práctica del presente.
La escrita sociográfica – en el sentido de colocar por escrito modos de operar una
relación con lo cotidiano –, sirve como operadora de una didáctica de la traducción que
acarrea una oportunidad de la producción de presencias por el devenir que sobreviene
de su apertura. La presencia se produce, también, por cierto efecto de la escritura. Ella
misma y su materialidad conllevan diferentes fuerzas intelectuales que están más allá
del sentido formal que componen el conjunto de sus palabras. Se trata de una atmosfera,
un estado de espíritu que podríamos llamar de tonalidad afectiva [Stimmung] que, como
en el escuchar de una música, coloca al oyente en una condición compleja que afecta a
todo su cuerpo y mente. Se trata de un estado que a pesar de que no comprendamos su
dinámica o encontremos su causa no podemos dejar de dar atención a su existencia, como
presencia, y anotar – por una escrita siempre de invención–, sus variantes.
Con Perec, podemos afirmar que si no interrogamos a lo habitual eso que ahí pasa
no nos interroga y no lo planteamos como problema; lo vivimos sin pensar como si no
fuese portador de información y cargado de fuerzas intelectuales e intelectivas que dan
potencia a las acciones de nuestra vida. “Pero nuestra vida, ¿dónde está? ¿Dónde está
nuestro cuerpo? ¿Dónde nuestro espacio?

398
Podríamos pensar que un aula, como en la lectura de una novela, produce un efecto
y, talvez, ese efecto pueda ser colocado en presencia vía la materialidad de una escritura
descriptiva de la materialidad que la compone. Como los inventarios hechos por Perec.
Por lo tanto admitimos que no es necesario que tras cada acontecimiento haya
un escándalo “[…] como si la vida no debiera revelarse nada más que a través de lo
espectacular, como si lo elocuente, lo significativo fuese siempre anormal: cataclismos
naturales o calamidades históricas, conflictos sociales, escándalos políticos…”, o sea,
“lo que ocurre cada día y vuelve cada día. Lo trivial, lo cotidiano, lo evidente, lo común,
lo ordinario, lo infraordinario, el ruido de fondo, lo habitual, ¿cómo dar cuenta de ello,
cómo interrogarlo, cómo describirlo?” (Perec, 2010)
Cómo hablar de esas cosas comunes – que pueden ser leídas en la atmosfera de una
novela, de una pintura, una película o, también, sentidas en el ambiente de un aula – cómo
traducirlas o darles materialidad y presencia. Con esas interrogativas nos asomamos a
pensar una escrita que llamamos de sociográfica y con ella hilvanar una práctica que
sea didáctica pero no didactizante en el sentido de que no se reduzca a modelos de
instrucción. Pero afirme modos de operar que potencialicen, con diferencia, sus prácticas
a cada hacer que provoca la multiplicidad antes que lo homogéneo y universal.

Aspecto autobiográfico de la teoria


Paul Valéry dice que no existe teoría que no sea un cuidadoso fragmento pre-
parado de alguna autobiografía (Valéry, 1991, p. 204), admitiendo, con eso, que toda
teoría está formada por una existencia humana e intelecto que le da sentido y signi-
ficado en su propio campo de posibilidades. Siguiendo con el pensamiento valéryano,
afirmamos que todo lo que se puede definir luego se distingue del espíritu productor
oponiéndose a él, o sea, el trabajo de una obra del intelecto solamente existe como acto
y como proceso de producción. Lo resultante de ese proceso, sea un producto material o
abstracto como suena ser una idea, se torna un objeto y su uso es completamente extraño
a las condiciones de su producción, es decir, de su proceso de creación.
Volverse a ese acto de producción del intelecto, más que para sus productos, es
como admitir cierto fracaso de los resultados y, en esa calidad, subrayar las fuerzas
del proceso sin dejar de tener como afirmación del mismo la materialidad del producto.
Con eso, insistir en lo que constituye una expresión inmanente o inmanencia expresiva
como marca de una variación de si a través de un hacer, o sea, una inmanencia expresiva
de todo lo que se hace (Deleuze, 1996).
La producción literaria de Georges Perec comparte de esa relación autobiográfica
que podemos leer en Paul Valéry desde su primer publicación Les choses en 1965.

399
Pero lo que nos interesa señalar la idea – existente en varios de sus proyectos lite-
rarios –, de escudriñar los propios pensamientos y acciones con la intención de con-
tornar una miopía a respecto de todo lo que nos constituye como vivientes de una
urbanidad. Hablar de detalles que nos componen como seres pensantes y productores en
el trato con lo cotidiano.
Se trata de un cuidado que tiene como procedimiento una búsqueda en lo usual
como modo de prefigurar detalles, siempre inconsistentes, de cosas que hacemos y
nos producen como vivientes relacionales. Lo que hay en la escritura de Georges Perec
es un modo sociográfico de transponer lo infraordinário en literatura, es decir, leer la
propia literatura y el arte como maneras de escribir sobre lo social.
Algunos procedimientos literarios de Perec experimentan una traducción inter-
semiótica de su experiencia como viviente, ya que parece preocuparse en describir y
encontrar maneras de instaurar un efecto de lo social a través de la escritura, no solamente
en el contenido, o en algo que se cuente, pero especialmente en la forma. Lo importante
está más para cómo procesa lo que se puede escribir, de lo que en algo que quiera contar.
A la vez, lo que se escribe se torna chirlo. Hay algo en el lenguaje que truca. Todavía
que se utilice de un lenguaje descriptivo y aparentemente comunicativo y transparente
hay siempre algo, un modo sintáctico, una falla, una incompletitud que lanza la lectura
a un sentido ambivalente, o mejor dicho, lanza la escritura a una paradójica del sentido.
Para Georges Perec los elementos autobiográficos acceden una historia colectiva
que él la afirma con el gesto de estar volcado a sí mismo y a su entorno. Con eso se
estimula una escrita descriptiva y colmada en detalles del espacio observado. Por lo
tanto, lejos de una universalización generalizadora de regularidades identitárias, por
preocuparse con los detalles, es afirmadora de acontecimientos singulares en su con-
dición de potencia y no de realización. O sea, no se trata de una descripción referencial,
es decir, que tenga lo descripto como una verdad observada, pero, como una noción de
inventividad impuesta por una rigurosa condición de atención a las relaciones entre el
observador y lo observado. Para Perec esta sería una manera de hacer una antropología
ya no de lo exótico, sino de lo endótico y de lo infraordinario. Hacer una antropología,
dice Perec, que hable de uno mismo, que busque en nosotros lo que fuimos a buscar y
saquear en los otros (Perec, 2010, p. 23).
En su práctica de escritura Georges Perec expone la idea de que diferencia y repe-
tición no son opuestos, pero que la repetición produce una visibilidad de la diferencia
(Nordholt, 2008). A la manera del texto de Jorge Luis Borges Pierre Menard, autor
del Quijote (1995b, p. 43-54) lo que se repite, es decir, lo que vuelve, vuelve como
una traducción creadora. Una traducción de algo que se establece como original, pero
se transforma y pierde su estatus de original al hacerse presente en la medida que

400
cambia, por influencia e interrelación, el pasado leído como una proyección presente
y en proceso.
De ese modo, volviendo a Perec, se constituye una literatura como una manera de
inventariar cosas del cotidiano, de repetirlo con diferencia, de instaurar una atención
a algo como las sensaciones de lo inaprehensible. En Tentative d’épuisement d’un
lieu parisien de 1974, opera con una anotación del presente y lleva esa práctica a un
experimento de agotamiento. Bosqueja fichas con anotaciones de la observación del
espacio, con fecha, hora, lugar, clima, tiempo, anudado a la descripción de cosas vistas
como letras, frases, simbologías utilizadas en la comunicación urbana, clasificaciones
de orden variado. De ese modo Perec actúa como una especie de botanista urbano, un
urbanologista poético.
Así se puede leer, en la escritura de Perec, que toda percepción es limitada y, por
eso, siempre inventiva al mismo tiempo que no pasa de una repetición descriptiva
de lo que ya se conoce. Su proyecto de coleccionador de trazos tangibles de la vida
urbana construye una textualidad que se vale del empleo descriptivo de las cosas como
una manera de poblar espacios con un conjunto de restos de nuestros días. Todo se torna
materia para un texto sociográfico que es, en la primera y última mirada, un texto poético
habitado por nombres – en suspensión – de muchas cosas. Nombres que en una instancia
lectora se tornan duplos o, a lo mejor, múltiplos. Fallan en su condición referencial.
Escribir es traducir, nos dice Paul Valéry (1956), y cuando lo hacemos estamos
creando un duplo de nosotros mismos, inventando otro espacio vital que pueda ser nuestro
mientras somos, constantemente, invadidos por ideas ajenas que, paradójicamente, son
nuestras y nos llegan por medio de un improviso compartido con una búsqueda (Vila-
Matas, 2002). Son elementos de ese tipo que habitan un aula a la mediada que en ella
se hace presente el compartir de una búsqueda, o sea, una tarea volcada para un hacer
relacional y no de transmisiones y saberes establecidos.

Sociografía y educación
Admitimos, con Thomas Kuhn (1998), que para la ciencia, la teoría del conoci-
miento y la filosofía, ningún hecho es aisladamente apenas un hecho, pues que todo
hecho conlleva teoría, o sea, presupone un campo que lo explica a través de conceptos
previamente elaborados y aceptos consensualmente en la esfera de su uso. Esa acep-
tación hace con que se entienda el conocimiento como una actividad situacional. O sea,
aquellos que la operan les donan sentido en reciprocidad con aquellos que la utilizan.
Si estamos de acuerdo con Paul Valéry (1991), de que toda teoría está cargada de
elementos autobiográficos, accedemos a la idea de que todo hecho está, voluntaria o

401
involuntariamente, adquiriendo significado a partir de una vida que lo subyace. Esta,
a su vez, está dotada de movimientos que la conforman en sus acciones cotidianas, o
sea, los movimientos que esa vida produce en la sociedad en que vive. En ese sentido
nos interesa la idea de sociografía entendiendo que una escrita, a respecto de una vida en
sociedad, se vale – explícita o implícitamente – de modos de la creación literaria y de las
artes como potencia para poner en perspectiva y con eso producir la propia vida como
una existencia inmanente.
En las ciencias humanas y sociales, la filosofía y el arte – especialmente cuando
pensamos su desarrollo por intermedio de la investigación y enseñanza, o sea, Educa-
ción – sería peligroso mantener el pensamiento separado de la experiencia del mundo
que se está estudiando, pues entendemos que el pensamiento se coloca en funcionamiento
cuando ocurre esta relación. Mejor dicho, solamente cuando algunas conexiones son
posibilitadas por los encuentros. Para decirlo de otro modo, nos interesa señalar que
un pensamiento ocurre cuando realidad y ficción se cruzan y sus fronteras quedan
borradas, pues aquello que las define está colocado en régimen de sospecha.
Se logra concebir que el mundo pueda ser leído como ficción y, en esa medida,
es la ficción un elemento constituyente de un pensamiento de la realidad. Es en ese
sentido, en el de la relación entre ficción y realidad, que se produce algo nuevo. Algo
que puede proliferar como desconocido al trazar de otro modo aquello que ya se conoce.
Cuando optamos por la noción de sociografía para subrayar un trazado de los hechos
cotidianos, es por entender – en un ámbito práctico – que al hablar en una sociografía
estamos imaginando que la observación de procesos sociales es concebida por una
escrita que se decide, también, como una autocreación y como autobiografía. De ese
modo, afirmamos que toda escrita está coadunada a una lectura y que estas, escrita y
lectura ­– tratadas como movimientos que reconocemos como escrileituras [escrilecturas]
(Corazza, 2008; 2013) –, son actividades constitutivas de la vida cotidiana, sus discursos
y relatos, gestos e imágenes. Subrayando que una sociografía permuta una postura
interpretativa de los fenómenos sociales por una escritura descriptivo-inventiva de
tales fenómenos, y estos entran en relación como asociaciones interactivas: movimientos
que se realizan en red y de modo autocreador.
El observador ­– como un sociografísta – se instala como un artista que se da
cuenta que al moldar la materia es moldado por ella incluso cuando esa materia sea
él mismo. Se trata de entender la relación de lo que estamos llamando de sociografía
como un elemento constitutivo al mismo modo de lo que llamamos de educación, o
sea, un elemento componente de prácticas de escritura que transfieren, a uno mismo
y a las relaciones por ende establecidas, una performatividad de la invención y una
producción de inventividad. Se trata de traducir y renovar aspectos de la vida a la

402
manera de producir expresividades que emitan posibilidad de repercusión. Como
dijo Bachelard (1989), la repercusión ­– diferente de la resonancia que sería un modo
de dispersar los distintos planes de la vida en el mundo ­– nos permite leer un poema
hablándolo como si fuera nuestro, mejor dicho, haciendo de lo leído materia sin-
gular que nos invita a un ahondamiento de nuestra propia existencia. En la repercusión
somos tomados por una multiplicidad que las resonancias dispersan.
Tomada en ese sentido, una escrita sociográfica funciona como la repercusión,
anotada, de una experiencia de lo social. Es decir, una materia autobiográfica y de un
acercamiento a lo colectivo.

Realidad e identidad
Una verdad, cuando instituida, está configurada por los mismos principios y
conjeturas de realidad que le dan sentido. Podemos afirmar con Flusser (2006), que una
realidad es una ficción corroborada por un campo consensual y hegemónico; luego, una
realidad es constituida por un principio de identidad. Flusser se apoya en el dictamen
wittgensteiniano que dice que los matemáticos nada descubren: inventan (Wittgenstein,
1991); y, en ese contexto, sus invenciones son realidades verificables.
Nos interesa afirmar que así también funciona la educación y, evidentemente, la
sociedad. Un currículo dimensionado por la teoría que, de algún modo, lo justifica se
desarrolla como una cuestión de identidad. Como manifiesta Silva (2011, p. 16) las
teorías del currículo están activamente comprometidas en la actividad de garantizar el
consenso y obtener hegemonía. Estas teorías están ubicadas en un campo epistemológico
social.
Las realidades instauradas por las invenciones que conlleva un currículo establecen
lugar, espacio, territorio; conforman identidades y constituyen relaciones de poder. En
ese sentido son, también, constituyentes de un texto y un discurso que puede ser leído
como autobiográfico, pues organiza la identidad de quienes operan y son operados por
él (Silva, 2011, p. 150).
Todavía se puede observar que el objeto de investigación de una sociología es
aquello que se denomina realidad social, pero lo que el sociólogo realiza no es extraer
una muestra de la realidad, pues eso carece de posibilidad. Lo que es posible, vía análisis
estadísticas, por ejemplo, es retirar una muestra de datos que subsidian una interpretación
que se designa como realidad. Lo que el sociólogo o científico social hace es designarle
un contexto (Lepetit, 2001), encadenando una interrelación de circunstancias que
acompañan un hecho, lo que implica el conjunto de discursos que le da valor, o sea,
un texto. En esa perspectiva el estatuto de toda definición sociológica está situado

403
entre una observación singular y un concepto universal – pensando ese universal por la
noción de Karl Popper observada por Bernard Lepetit (2001), o sea, por la idea que un
concepto puede ser considerado como universal cuando dispensa una referencia directa
a un nombre propio – y por ser universal solo tiene validad cuando el parentesco de los
contextos que definen su permanencia histórica le dan fuerza operatoria (Lepetit, 2001,
p. 127). De esa noción proviene una circularidad que afirma que un concepto histórico
solo adquiere sentido delante de ese recorte del mundo al cual él mismo da sentido.
Se trata de una lógica contradictoria que, simultáneamente es operacional, una vez
que se admita que la inteligibilidad del mundo no se separa del proceso de investigación.
Dicho al modo de Lepetit, no se separa el modelo de la modelización.
Asimismo, la pertinencia de una observación singular – de una experiencia sin-
gular – interactúa como una valorización extraordinaria, o sea, más allá del consenso.
Observase, sin embargo, que si una sociografía no persiste para un más allá de una
observación singular, según Passeron (1989), esta no puede, no está apta, a movilizar
una inteligibilidad construida para el consenso y, en ese sentido, no podrá ser concebida
como un raciocinio sociológico. Passeron afirma que si una sociografía se comporta
como una descripción social en que su validad solamente se confirme en un contexto
único, no posee legitimidad sociológica a pesar de servir para la naturaleza literaria.
Para que tenga legitimidad sociológica una sociografía necesita evocar una interacción
con un concepto universal29.
Sin estar en contra la afirmación de Passeron nos preguntamos, con Mauger (1994),
si es posible constituir un pensamiento a respecto de las interacciones recíprocas
que entendemos como sociales, valiéndonos de una práctica como la de la escrita
literaria. Mauger argumenta que autobiografías literarias, por ejemplo, pueden no
apenas establecerse como objetos para un pensamiento sociológico pero, también, son
herramientas útiles para las ciencias sociales. Mauger tiene un trabajo investigativo
donde se vale de la teoría literaria y de la investigación bakhthiniana sobre Rabelais y
sobre la cultura popular, para observar en las prácticas textuales de la representación de
si elementos constitutivos de una condición de la propia expresividad, como también de
aquello que de ese modo es descripto.
Por lo tanto, es necesario prestar atención y llevar en consideración el carácter de
ilusión referencial que conlleva toda representación, incluso la científica. La literatura,
especialmente la moderna, es entendida como un texto autoreferencial, o sea, un texto
que habla de textos, un texto que se vale de la ilusión referencial para constituirse.

29
“On a souvent vu faire de la bonne littérature avec de la mauvaise sociologie, parfois même avec de la bonne, écrit-il,
jamais de la bonne sociologie avec de la littérature, bonne ou mauvaise.” (Passeron, 1989, p. 249)

404
En las ciencias sociales, a su vez, no hay un consenso a respecto del carácter inventivo
de sus prácticas escriturales. De este modo nos preguntamos si las ciencias sociales, en
la medida que operan con textualidades: ¿están libres de la ilusión referencial? Con eso,
nos hacemos otra pregunta: ¿Se debe abandonar el ejercicio de la descripción social en
la medida en que se concibe que, del punto de vista textual, no se pueda separar ficción
y realidad? La cuestión es ponderada por la idea de que es difícil destacar categorías,
en la construcción textual, que distingan – en definitiva ­– lo real de su representación.
Como preconizan Nietzsche (1978) y también Paul Valéry (1995; 1998) entre otros, no
se alcanza lo real, apenas sus representaciones. En ese sentido, y paradójicamente, se
admite que las expresividades son la propia realidad. O sea, lo real se configura como
una invención que se prefigura por una tratativa textual, discursiva y fabuladora. Todo
eso sin dejar de considerar que toda tratativa textual se da delante de una materialidad
que le da razón y sentido.
Con esa relación expuesta, aquél que se otorga la tarea de observar y describir su
entorno, no puede olvidarse de la tensión existente entre realidad y ficción y hacer de
cuenta que aquello que crea al describir no es, también, una relación de ilusión referencial.
Hay que preconizar que jamás se trata de una observación de lo real efectivamente,
mismo cuando ajustada a la neutralidad y metodología de un observador con pretensiones
científicas. Como dice Marshall Sahlins (2002, p. 7)30 parafraseando John Barth, la
realidad es un precioso lugar para visitar – filosóficamente – pero nadie nunca vivió allá.
En ese sentido, todavía, se puede afirmar que la idea de sociedad y su constitución
como asociaciones recíprocas (Tarde, 2207; Latour, 2012) son compuestas por una orden
literaria, para no decir mítica. Las ideas de sociedades se reinventan por intermedio del
relato que escogen para expresar sus identidades. Por ese camino pueden ser entendidas
como hipertextualidades que se afirman en la constitución de imágenes que, a su vez,
encuentran eco en un imaginario constituido por esos mismos relatos.
Hay que llevar en consideración que los relatos no solo constituyen identidades,
como también estabilizan invisibilidades vía negatividad. Oscar Favre (1994) reflexiona
a ese respecto cuando apunta para la invisibilidad indígena en el imaginario que compone
la nación uruguaya. La idea de la inexistencia de una populación indígena autóctona
en la región hace con que las circunstancias materiales, históricas y geográficas de las
investigaciones se amparen por el recorte de esa invisibilidad que desarrolla toda su
atención para características mayoritariamente de inmigración europea. Con esa actitud
se repasa la idea de que la presencia indígena, mbyá guaraní, por ejemplo, se trata de
inmigración reciente en el territorio nacional uruguayo. Po lo tanto, al admitir, por

30
“So to paraphrase John Barth, reality is a nice place to visit (philosophically), but no one ever lived there.”

405
negatividade, que la presencia indígena no constituye las bases fundacionales de esa
comunidad imaginada – en contraposición a las recientes investigaciones que relatan
esas presencias – se activa, por la ponderación de esas ausencias, paradójicamente, vía
texto, sus presencias. O sea, este nuevo texto que admite que los anteriores operaban la
invisibilidad retoma la propia invisibilidad como presencia y, con ese gesto de escritura,
se constituye una visibilidad vía el relato que la admite ausente. Es decir, esas presencias
ausentes se tornan realidad.

Sobre una didáctica de la invención


Con la finalidad de ampliar el campo de expresividades de las ciencias sociales
y constituir el propio campo por la apropiación transversal de procedimientos de las
artes, Howard Becker pasó a observar prácticas de descripción social de afuera del
campo, pues no creía que la descripción social sería un privilegio de los científicos
sociales y que el modo de las ciencias sociales fuera el único. Su interés está relacionado,
por un lado à la experiencia que pudo tener con los trabajos de Dwight Conquergood en
el Departamento de Estudios de la Performance en la Escuela de Comunicación y Artes
de la Universidad de Northwestern, experiencia descrita en el libro Telling about Society
y, por otro, a su propia experiencia como estudiante de ciencias sociales, profesor y,
también, con su trato con la fotografía, el cine, el relato ficcional, la música y el teatro
(Becker, 2009).
Lo que Dwight Conquergood estudia y desarrolla entre los años de 1970 y 1990
es lo que se denominó de aspectos performativos de la sociedad. Conquergood llega a
presentar sus resultados de investigación al respecto de refugiados asiáticos y pandillas
de Chicago en la forma de performances. De esa interacción de Becker con Conquergood
surge un curso que ambos denominan de Ciencias Sociales Performativas (Performing
Social Science). Para Becker lo importante de esa investigación no es legitimar el
campo de las ciencias sociales con otro modo de expresión de sus investigaciones – como
era la preocupación de Passeron (1989) –, o sea, hacer de esa práctica materia para la
validación del trabajo sociológico; lo más importante es una búsqueda de maneras que,
más allá de las conocidas por los científicos sociales, se pueda comunicar un estudio
de carácter sociológico. En nuestro entendimiento esa práctica, al buscar otros modos
de expresión para el campo, amplia la propia concepción que se tiene del campo, o
sea, interfiere en sus demarcaciones de fronteras y con eso cambia la noción sobre el
carácter sociológico.
De ese modo Becker nos cuenta la experiencia en el seminario del curso descri-
biendo que en el período en que fue ministrado cada semana era dedicada a una forma

406
diferente de expresión, como el cine, el teatro, las tablas estadísticas etc; Becker
indicaba lecturas y presentaba al grupo de estudiantes algo que provocase una reacción
a las ideas estereotipadas sobre lo que constituía una forma apropiada de describir la
sociedad (Becker, 2009, p. 09).
De esa manera una sociografía actúa como un carácter constitutivo para observar,
por las propias expresiones, un modo de ser en el hacer de aquellos que investigan
y de los investigados sin, con todo, optar por una metodología demasiadamente dua-
lista – que separa investigador de aquello que se investiga –, pues busca la instauración
de una indisolubilidad entre conocimiento, poder y placer, entendiendo que mucho de la
actividad pedagógica consiste en testar las formas por las cuales se produce significado
y se representa, a nosotros mismos, las relaciones con los otros e con el ambiente en que
se vive (Giroux; Simon, 1995, p. 107).
Se puede ponderar, con Lepetit (2001), que la interdisciplinaridad es una práctica
ambigua, por ende se vale de incomprensiones parciales. En el ámbito literario se podría
atribuir esa práctica al personaje borgeano Pierre Menard (Borges, 1995b) que utiliza
como técnica el anacronismo deliberado y las atribuciones erróneas; a la vez que esa
técnica nos sirve como procedimiento en el mismo sentido afirmado por Chartier (2014),
o sea, de que la transferencia de conceptos, problemas o métodos de un campo para
otro no se realiza sin la transformación de estos campos. Se puede entender que tal
movimiento ocurre como una transposición traductora y toda transposición comporta
una traición, aunque sea parcial. Toda lectura opera, de algún modo, el error.
Por esa razón la sociografia que evocamos en este texto no se resume a un recorte
social previamente construido, como defiende Passeron (1989) con relación a la
sociología científica que, para él, difiere del ensayismo sociológico. Esta noción se vale
de lo contrario, o sea, operar con la noción de ensayo adorniana (2003), entendiendo
que forma de expresión y contenido no se separan. Con eso, la práctica didáctica busca
traducir las fuerzas que se pueden observar en toda acción creadora, a través de formas
que habiliten nuevas fuerzas, como el experimento de Dwight Conquergood al presentar
sus investigaciones a través de performances.
En ese espacio didáctico de operación traductora la educación estrena e instituye
un tránsito creador por intermedio de una lectura atenciosa e interactiva. Lectura que
se establece y se considera como un flujo de asociaciones variadas donde ninguna es
original o privilegiada. La lectura, en este caso, es concebida como una acción relacional
que se enlaza por un efecto de redes heterogéneas siendo, todas ellas, lazos para una
didáctica de la invención como desarrollada por Corazza (2013). A su vez, una didáctica
de la invención actúa como una maniobra traductora que se forma como un tejido de citas,
un gesto de combinaciones de elementos finitos con algún otro gesto anterior confor-

407
mando que esa maniobra se establezca como una convergencia, o una, reciprocidad
entre textos.
Esa convergencia puede ser entendida como una relación hipertextual, ya que se
vale de un sentido de flujo interactivo para la lectura. En esa noción la actividad lectora
se apropia de un montaje de relaciones transtextuales al modo de potencializar todo
lo que se coloca en relación manifiesta o secreta con el otro, sean textos, imágenes,
gestos, palabras, signos etc. Y la idea de hipertexto tiene de ser entendida como una red
potencialmente infinita de conexiones (Genette, 1982; 1989).
Con eso podemos afirmar que una sociografía, valiéndose del sentido de hiper-
texto, tiene como propuesta establecer conexiones transversales que propicien el ejercicio
de que se haga una lectura que se activa como escritura. Intensificando la noción de
que un espectador, consumidor y, también, un lector son productores que al leer, leen
lo antiguo con lo nuevo. Con eso se busca explorar el territorio de una cultura de la
convergencia, donde la recombinación es vista como una forma productiva, inventiva y
no-excluyente de proliferar modos de leer culturas antes de caracterizar diferencias. En
ese sentido lo que importa es leer la teoría como ficción y, con eso, hacer del pensamiento
para la educación una fictio, es decir, dislocarla de una voluntad de verdad unívoca y
esencialista al tenerla como una potencia de lo falso y que no pretende la obliteración de
lo desconocido.
Para tanto la escritura importa como un modo de leer a sí mismo y de pertenecer,
como partícipe, de la construcción de signos permitiendo los silencios sin habitarlos,
insistentemente, con hegemonías colonizadoras. La voz y la letra de este que lee y
se apropia es de todos y de ninguno, es suya y de la multitud que la comparte. Es un
ejercicio de perderse en una red de signos y de perderse, también, como signo al formar
pensamientos.

La literatura de Georges Perec como didáctica de la vida cotidiana


La escrita de Georges Perec asume un aspecto autobiográfico que está en acuerdo
con la idea de una sociografía como planteada hasta aquí. Georges Perec parece hacer
una escritura de lo social buscando maneras de poner en escena acontecimientos de
una experiencia vivida. Como si buscara mirar para la vida cotidiana por medio de una
especie de descripción de asociaciones interactivas. Un conjunto de asociaciones de sí y
de los objetos, espacio y tiempo en su entorno. Transformando los propios espacios en
que se vive la cotidianidad, como las ciudades, en artefactos que personifican sus textos
y, en reciprocidad, recrean el propio espacio textual como un espacio de asociaciones
recíprocas. De este modo los espacios de lo social se prefiguran como textos o sea, los

408
textos son alimentados por la propia descripción textual que les da razón de texto y, al
mismo tiempo, de espacio de relaciones.
En este caso nos referimos a textos de la fase anterior a la entrada de Perec al
Ouvroir de Littérature Potentielle (OuLiPo), o sea, fase que precede sus textos
oulipianos. Hay que observar que OuLiPo puede ser traducido por Taller de Lite-
ratura Potencial (TaLiPo) y se trata de un grupo, más que un movimiento, fundado por
François Le Lionnais e Raymond Queneau en el mes de noviembre del año 1960 en
Francia. Muchos son los miembros del OuLiPo, entre los más conocidos están Georges
Perec, el propio Raymond Queneau, Ítalo Calvino, Marcel Duchamp entre otros. El
OuLiPo sigue existiendo y produciendo material de creación literaria. Recientemente, en
2014, el escritor argentino Eduardo Berti entró en la lista de los oulipianos reconocidos
entre sí.
El objetivo del OuLiPo es el de crear y apropiarse de reglas, restricciones [contraintes],
juegos, combinatorias para escribir. Tratando de encontrar nuevas formas poéticas y
narrativas por intermedio de las relaciones de transferencia, traducciones, apropiaciones,
reglamentos retóricos entre otros recursos destinados a la escritura.
Aunque la distinción de los textos de Perec, con relación a su fase oulipiana y la
anterior, no se establezca sin hesitaciones se puede conferir algunas distintivas; Perec
entró al OuLiPo en 1967. En la novela La vie mode d’emploi, por ejemplo, texto
dedicado a Raymond Queneau y publicado en 1978, la restricción funciona como un
modo de desvío colocando en escena varias vidas que se entrecruzan en simultaneidad.
Se expone como un puzzle, un rompecabezas, pero también como un libro de aventuras,
un juego, una lista que presenta ausencias. En este libro Perec presenta el cotidiano
como inagotable, fecundo e impenetrable evocando la lectura como un erro, es decir, una
lectura que funciona como un desvío incesante de recorrido, una deriva inmanente. Pero
su primer libro Las cosas publicado en 1965, ya elabora esa temática de lo cotidiano en
los nombres de las cosas, objetos recubiertos por el lenguaje publicitario; una escritura
realista al extremo de las palabras y sus posibilidades relacionales.
Los textos perequianos, oulipianos y no-oulipianos, – o sea, que siguen una
restricción para su construcción o no – conllevan cierta repetición temática como la
autobiografía, el espacio, lo cotidiano, las ausencias, pero esos temas no insisten en
una significación unívoca. Los textos de Perec buscan dar un efecto a respecto del
tema que le sirve de impulso para la escritura. Para hablar de ausencias, por ejemplo,
construye una novela lipogramática intitulada La disparition. Esa novela, publicada en
1969, cuenta el desaparecimiento de la letra e ausentando esa letra de todo el texto.
Ese desaparecimiento hace con que cambie palabras, modifique la sintaxis, subvierta
algunos códigos de escritura para que la misma siga siendo posible. Perec se vale de

409
la idea de un libro lipogramático publicado en 1939 por Ernest Vincent Wright inti-
tulado Gadsby. En ese sentido, lo que hace Perec es seguir una red de apropiaciones,
como un ladrón que transforma lo que le interesa en repercusiones por intermedio de sus
proyectos.
En 1967, mismo año en que entró al OuLiPo, publicó Un homme qui dort texto
considerado autobiográfico y que coloca en tensión el espacio del cotidiano y de la
solitud urbana. En ese texto su narrativa descriptiva se elabora como una estética de la
creación autobiográfica donde narrar utilizando una tentativa exhaustiva de describir el
mundo se torna, como en un mise en abîme, el propio problema que es narrado. Lo que se
narra es la descripción como espacio de inscripción, dicho de otro modo, la descripción
como constituidora de espacios. Lo que se narra es el propio acto descriptivo reteniendo
la descripción como sistema de autodiferenciación.
Ese tema de la constitución del espacio textual es directamente desarrollado por
Perec en el libro Espèces d’espaces, texto publicado en 1974. Una vez más podemos leer
siendo provocados por un efecto que está más allá de su escrita, es decir, la utilización del
espacio de las páginas que forman el libro tratan, justamente, de dar a ver la utilización e
institución del espacio de esas hojas, o sea, la conformación del espacio se configura en
lo que se dice y en la forma de incorporar el propio espacio de una página para decirlo.
Con eso podemos indicar que la literatura de Georges Perec proporciona un ejercicio
para el ultrapasamiento de fronteras. Sus textos son imagéticos y performáticos y sus
imágenes son textuales. Un ejemplo de imágenes retumbantemente textuales es la
película Un homme qui dort realizada en 1974 con dirección de Bernard Queysanne
con el guion de Perec.
Si Perec se pone un problema para su literatura, podríamos decir que es el de en-
contrar modos de expresar al otro – mismo cuando ese otro es él mismo – aquello que
fue visto, sentido, tocado, vivido, o sea, maneras de materializar encuentros. Se trata
de proliferar diferencias a través de la repetición de aquello que conocemos y que
nos alejamos por hábito de mecanismos de la propia repetición.
Al modo de Paul Valéry, tomado por los hechos de Leonardo Da Vinci, nos parece
interesante dar atención a los esbozos, apuntes dispersos y otras cosas que son parte
de nuestro cotidiano, como lo hizo Perec. Los tickets de compras, los sellos, las cartas
y, hoy día, los twitters, selfies, blogs y todo lo que configura, o puede configurar, un
gesto de acción viviente en la trama cotidiana. Como si pudiésemos, en la conjunción
de esos restos y rastros de las cosas y acciones, tener una historia de lo que nos pasa sin
un relato propiamente dicho. Algo como tener la efectuación de acontecimientos por el
decir dado en la presencia de las cosas, como si estas presencias desconfiaran, siempre,
de los nombres que les dan algún sentido unívoco.

410
Por lo tanto, materializar sus presencias en una escrita que las nombra se puede
tornar un ejercicio que sea, más que darles un nombre o establecerles un sentido,
un carácter de compartir con ellas la instauración de sus atmósferas. Esa tarea practicada
en sala de aula, con elementos de la misma es como darle un límite expandido.
Esa tarea de evocar una sociografía para la educación sugiere provocar una relación
anti-ilusionista, una vez que, con ese ejercicio, aquél que se toma la actividad de
sociografiar el presente, disputa, constantemente, con un límite al darse cuenta que, a
cada vez que se pone a escribir las relaciones, miradas o percibidas o, todavía, vividas,
necesita inventarlas en la escrita y por la escrita. No existe ilusión posible que no sea
construida por la coherencia espacio-temporal de una invención que es su creación.
El ejercicio de la escritura sirve como un modo de captar los hechos de lo cotidiano
y colocar al practicante en una relación falsificadora de la realidad. De esa manera lo
vivido se torna, de algún modo, literatura y esa práctica adviene como una didáctica
de la traducción al mismo tiempo que coloca en presencia textual, el devenir de un
atravesamiento de los hechos cotidianos de un aula.

Notas finales
Lo que hemos destacado en este texto es una propuesta que perspective los en-
cuentros al tornar presente algunos efectos producidos en una lectura de la atmósfera
de un aula. O sea, encuentros con producciones que se exponen como procesos tra-
ductorios del aula y sus aparatos constituidores, como el currículo y la didáctica.
Traducir como un proceso recíproco de relación con la alteridad. Tal vez de ese modo se
pueda devenir con potencias poco exploradas en la práctica docente y en la educación en
general. Tomar algunos procedimientos de escritura, como los de Georges Perec, como
si fuera posible hacer un pacto con lo insignificante y lo efémero en la Educación. Lo
insignificante seria lo no-significado y lo efémero la propia escena del aula y su espacio.
En el sentido presentado, el texto se permite dar un paso hacia un procedimiento
de escritura que se autoriza autodenominarse sociografía. Eso ocurre en la medida en
que la comprehende como una recombinación traductora de elementos relacionales entre
cosas, personas, espacios y tiempos, o sea, relaciones entre un más allá antropocéntrico
y antropomórfico.
Para que eso sea posible entiende lo social como una integración de todo lo que
se pueda concebir como existente en relación. En el caso en que se insiere este texto,
se escoge un aula como un dinamismo espacio-temporal donde se intenta producir
presencias de esas conexiones ausentes por indefinición. Aspectos de lo infraordinario
que habitan días de profesores y alumnos.

411
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413
APRÈS-COUP – IMPRESSÃO
E ARQUIVAMENTO

Cristiano Bedin da Costa


Máximo Daniel Lamela Adó

The line it is drawn


The curse it is cast
Bob Dylan

N   ão desperdice o tempo: é o pano de que a vida é feita. Foi essa a frase, como a
  divisa de um projeto après-coup, que o Robinson de Michel Tournier gravou com
letras enormes e brancas no granito das rochas de Speranza. “Cada palavra transmitida
pela muralha negra parecia catapultada como um bramido silente para o horizonte rumoso
que franjava a vasta cintilação do mar” (Tournier, 1987, p. 107).
Com esse gesto Robinson doa à ilha, escrevendo na própria carne de Speranza, a
impressão e o arquivamento de que esta se torna fluxo. A ilha, como suporte, muda de
figura a cada nova impressão, a cada escrita que se faz em sua carne, a cada vez que
se falseiam as ideias no seu tempo. A ilha é para Robinson um suporte para que este,
com seu imaginário primeiramente voltado às origens, possa fazer algo com os restos do
naufrágio e inscrever nesse ato um arquivamento. Mas, à medida que este Robinson trava
uma relação com a ilha é evadido de sua posição voltada a uma origem para a de um fluxo
que o deriva a fins, como tratasse de fatos futuros. Como tratasse dele mesmo lançado
num projeto de simbiose autoreconstrutora junto à ilha. A ilha, deserta e potencialmente
governável, pouco a pouco e em medida incerta vai se transubstanciando no corpo de
Robinson e ele no corpo da ilha.
Os eflúvios, a grandeza e a doçura de Speranza perturbaram a disciplina dirigente
e original de Robinson que esperava a notícia, vinda por mar, de seu retorno às terras
administradas, terras das quais seu pensamento é herdeiro. A espera de Robinson é tomada
pelo tempo de uma imanência, o tempo de uma vida, a sua, transmutada, transubstanciada,
transcriada em direção ao futuro limitado pela ilha. Nessa ilha deserta Robinson toma

415
parte de uma alteridade radical. O outro no mesmo. O drama da existência voltado à
criação de si no encontro da libido com elementos livres, na descoberta de uma energia
cósmica e uma saúde elementar.
Este Robinson transmuta um desvio fantástico, o do mundo administrado ao mundo
interconectado; ao mundo distraído quando aberto ao outro desantropomorfizado. Na
ilha deserta Robinson é multidão implicada em multidões. Nessa multidão-mundo-
Robinson-ilha, nada além de elementos, acabou-se a doçura das contiguidades e das
semelhanças que permitiam habitar o mundo com as linguagens do já conhecido; as
próprias linguagens do habitar. É o mar das sirtes que se vive. O mar das falésias. O mar
que cobre a terra e, mesmo quando esta irrompe em sua superfície, ainda é ele, o mesmo
mar, que persuade a sua geografia.
Seria nessas águas-vivas de uma robinsonada da docência-pesquisadora, que um
arquivo-mar se expressa instituindo, a cada vez, um lugar de impressão e arquivamento.
E é sempre em relação a essas águas que o leitor, seja ele quem for, define sua posição
em meio ao jogo: pois é disso, claro, que se trata. Ora, se é verdade que os textos aqui
reunidos configuram um ruidoso inventário de múltiplas ordens afetivas, também é fato
que sua qualidade polifônica convoca ainda vozes e assinaturas outras que não aquelas
aqui listadas: o testemunho é sempre coletivo; o mar, quando devidamente confrontado,
é sempre de se perder de vista.
Seria um erro, portanto, tomar estes textos como registros de casos encerrados,
matérias mortas, frutos que seriam de um tempo passado. Aqui, assim como é por toda
parte, nada está dado, e de tudo parece emanar o hálito de um futuro que não espera ou
tampouco depende do presente, mas sim que instaura, a posteriori, a real possibilidade
daquilo que o precede.
Sem dúvida, trata-se de uma questão de perspectiva. Para nós, que temos na
docência-pesquisa da diferença o nosso partido, e que aqui testemunhamos a tradução
transcriadora enquanto método, interessa que outros episódios ainda sejam tramados, que
haja jogo, e que o gesto múltiplo de escrileitura aqui inscrito possa então transmutar-se,
retroativamente, num texto possível: este, que não se encerra na próxima página; que
envolve outras práticas em outros tempos e outros espaços; que escorre pelas bordas; que
assombra o passado ao embaralhar suas direções e sentidos. Ao livro-arquipélago, não
cabe ditar regras, mas sim aguardar o golpe, mover-se aos pedaços, pelo povoamento
silencioso de suas pequenas peças, ao sabor dos desígnios por ora impensáveis do que
ainda há de vir.
Nenhuma inocência, nenhuma passividade. Antes, melhor seria dotar a ilha da
consistência de um ringue, a aderência da areia feita lona, os limites pelas cordas em
linha margeados, sucessivos assaltos entrecortados por um gongo incansável (um, dois,

416
três minutos; seis dias, três meses, um ano, um instante ou uma vida, ouça, ele não para):
eis o cenário, e é preciso ir até esse ponto, que aquilo que potencialmente já estava ali
ganhe corpo e possa então ser agredido e obrigado a perceber suas feridas. É preciso
que uma temporalidade retrospectiva marque o momento de combate entre registros
diversos, que os golpes de um só-depois ressignifiquem as impressões em luta. Blunt
Force Trauma: é preciso o choque, a troca e a esquiva, o clinch no qual o futuro é
dado anterior e o possível é “miragem do presente no passado” (Bergson, 2006, p. 115).
É preciso o um e o outro, e é preciso, tal como nos ensinaram Deleuze e Guattari (1997,
p. 99), “que eles se afrontem ou se atraquem, como dois lutadores que não podem
mais derrotar um ao outro, e deslizam numa linha de declive”

10
9
8
7
6
5
4
3
2
1
0
A linha está traçada, a maldição está lançada:
não desperdicemos, pois, o tempo. Do mundo, que segue se fazendo aos poucos, tudo
isso não constituiu mais que um repertório mínimo. Será preciso lançar-se de novo: a
mesma luta, um novo round.

(Ouça, ele não para)

Referências
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Prado Neto). São Paulo: Martins Fontes, 2006.
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TOURNIER, Michel. Sexta-feira ou Os limbos do Pacífico. (Trad. Fernando Botelho). São
Paulo: Bertrand Brasil, 1987.

417
AUTORES

Sandra Mara Corazza


Professora Titular da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Faculdade de
Educação, Departamento de Ensino e Currículo, Programa de Pós-Graduação em
Educação. Pesquisadora de Produtividade 1 C do CNPq (2002). Líder dos Grupos
de Pesquisa, Diretório do CNPq/Lattes: 1) DIF – Artistagens, Fabulações, Variações
(2002); 2) Escrileituras da diferença em filosofia-educação (2015). Experimentadora de
Filosofia-Educação; Escrileituras da Diferença; Currículo e Didática da Tradução.
E-mail: sandracorazza@terra.com.br

Ana Carolina Acom


Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Sociedade, Cultura e Fronteiras da
Universidade Estadual do Oeste do Paraná. Mestre em Educação pela Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, na Linha Filosofias da Diferença e Educação, Graduada
em Filosofia também pela UFRGS (licenciatura e bacharelado). Especialista em Moda,
Criatividade e Inovação pela Faculdade de Tecnologia do SENAC-RS. Integrante dos
grupos de pesquisa: História da Arte e Cultura de Moda (UFRGS) e Escrileituras da
Diferença em Filosofia-Educação (UFRGS). É professora no Centro Universitário
Dinâmica das Cataratas (UDC), no curso de Design de Moda.
E-mail: anacarolinaacom@gmail.com

Ana Felícia Guedes Trindade


Doutora em Educação, com ênfase em Potência Humana e Autonomia – Formação de
Professores, Reorientação Curricular, Educação Popular e Pedagogias Transformadoras
em Escolas Públicas, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Mestre
em Educação, com ênfase em Práticas Pedagógicas, Formação de Professores e Ética da
Vida, pelo PPGEDU, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – Linha
Pessoa e Educação (Interdisciplinaridade/Transdisciplinaridade /Práticas Pedagógicas,
Formação de Professores, Inteireza do Ser).
E-mail: escidada@hotmail.com

Carla Gonçalves Rodrigues


Psicóloga e Lic em matemática. Doutora em Educação, docente permanente do PPGE
e professora associada do Departamento de Ensino da Universidade Federal de Pelotas.
Pertence ao Grupo de pesquisa Escrileituras da diferença em filosofia-educação.
E-mail: cgrm@ufpel.edu.br

418
Carolina Comerlato Sperb
Professora-artista em Libras. Docente do Instututo Federal do Rio Grande do Sul no
campus Porto Alegre. Pesquisadora-criadora em Educação. Doutoranda da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, com pesquisa na Linha Filosofias da Diferença e
Educação. Graduada em Letras/Português e Literaturas de Língua Portuguesa pelo
Centro Universitário La Salle e em Letras/Libras pela Universidade Federal de Santa
Catarina.
E-mail: ccsperb@hotmail.com

Cláudia Schvingel
Doutoranda em Ensino pelo Programa de Pós-graduação do Centro Universitário
Univates. Mestre em Ensino pelo Programa de Pós-graduação do Centro Universitário
Univates. Especialista em Gestão do Trabalho Pedagógico: Supervisão e Orientação
Escolar pela Faculdade Internacional de Curitiba Facinter. Graduada em Pedagogia com
habilitação em Magistério nas Séries Iniciais e Magistério das Matérias Pedagógicas
de Ensino Médio pelo Centro Universitário Univates. Magistério pelo Colégio Madre
Bárbara de Lajeado/RS. Professora de Educação Infantil e Anos Iniciais no município
de Lajeado/RS. Integra a Equipe de Assessores Pedagógicos do Instituto Palavrações de
Lajeado/RS.
E-mail: clau.dia1@hotmail.com

Cristiano Bedin da Costa


Heterotopologista; Psicólogo pela Universidade Federal de Santa Maria; Doutor em
Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul; Docente da Faculdade de
Educação da UFRGS.
E-mail: cristianobedindacosta@hotmail.com

Deniz Alcione Nicolay


Doutor em educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Membro do DIF
– artistagens, fabulações, variações. Professor da área de Fundamentos da Educação na
Universidade Federal da Fronteira Sul.
E-mail: deniznicolay@uffs.edu.br

Ester Maria Dreher Heuser


Professora-pesquisadora adjunta da UNIOESTE, Campus Toledo (PR), no curso de
Filosofia – Licenciatura, Mestrado e Doutorado. Pesquisa, publica e leciona em torno
da Filosofia de Deleuze e seus intercessores. Interessa, sobretudo, ocupar-se das

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variações e possibilidades de modos de existência que desafiam a lógica da identidade,
da representação e do juízo e que afirmam o devir e a invenção. Participa do Grupo
de Pesquisa Escrileituras da diferença em filosofia-educação. Graduada em Filosofia
e mestre em Educação nas Ciências, área Filosofia – UNIJUÍ; doutora em Educação –
UFRGS.
E-mail: esterheu@hotmail.com

Fabiane Olegário
Doutoranda em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, na linha de
pesquisa Filosofias da Diferença e Educação. Integrante dos projetos Escrileituras: um
modo de ler-escrever em meio à vida e Didática da tradução, transcriação do currículo:
escrileituras da diferença. Membro integrante do BOP Bando de Orientação do Grupo
de Pesquisa DIF – artistagens, fabulações, variações. Possui graduação em Pedagogia
pelo Centro Universitário UNIVATES, especialização em Educação e Psicopedagogia
pela mesma Instituição. Mestre em Educação pela Universidade de Santa Cruz do Sul.
Professora Assistente do Centro Universitário UNIVATES.
E-mail: fabijj10@yahoo.com.br

Fabiano Neu
Especialista em Atividades Criativas e Culturais pela Universidade Federal do Pampa
(2016); Graduado em Comunicação Social - Publicidade e Propaganda pela mesma
universidade (2013). Pesquisador no GP t3xto.
E-mail: f.neu@hotmail.com

Karen Elisabete Rosa Nodari


Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professora
Titular do Departamento de Humanidades do Colégio de Aplicação da UFRGS e
pesquisadora da Filosofia da Diferença. Atualmente faz estágio pós doutoral com
supervisão da profa. Dra. Sandra Corazza e integra Grupo de Pesquisa DIF: artistagens,
fabulações, variações.
E-mail: kernodari@gmail.com

Larisa da Veiga Vieira Bandeira


Licenciada em Pedagogia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Mestre
em Educação e Doutoranda da Linha de Pesquisa Estudos Culturais em Educação do
Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
E-mail: lvvbandeira@gmail.com

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Luiz Daniel Rodrigues Dinarte
Tradutor/intérprete de LIBRAS. Mestre em Educação pelo Programa de Pós-Graduação
em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Atua como tradutor
intérprete de LIBRAS e em cursos de formação de Tradutores e Intérpretes de LIBRAS.
Doutorando em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, vinculado ao
Grupo de Pesquisa DIF – artistagens, fabulações, variações.
E-mail: dionisio.z@gmail.com

Maria Idalina Krause de Campos


Doutoranda em Educação do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, bolsista CAPES. Membro integrante do BOP – Bando de
Orientação e Pesquisa; da Linha de Pesquisa 09 Filosofias da Diferença e Educação; e do
Grupo de Pesquisa DIF – artistagens, fabulações, variações.
E-mail: idalinakrause@yahoo.com.br

Máximo Daniel Lamela Adó


Doutor em Educação (Universidade Federal do Rio Grande do Sul). Mestre e Literatura
(Teoria literária) e Licenciado em Ciências Sociais (Universidade Federal de Santa
Catarina). Professor da Faculdade de Educação e no Programa de Pós-Graduação em
Educação da UFRGS.
E-mail: maximo.lamela@ufrgs.br

Polyana Olini
Mestre em Educação pela Universidade Federal de Mato Grosso; Doutoranda do
Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do
Sul, com pesquisa na Linha Filosofias da Diferença e Educação; Bolsista CAPES.
E-mail: polyanaolini@gmail.com

Róger Albernaz de Araujo


Doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, mestre em
Educação pela Universidade Federal de Pelotas. Atualmente é Coordenador do Curso
de Licenciatura em Computação e professor regular do Programa de Pós-graduação em
Educação – Mestrado em Educação e Tecnologia do IFSul/Campus Pelotas.
E-mail: roger.albernaz@gmail.com

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Silas Borges Monteiro
Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo. Professor Associado do
Departamento de Teorias e Fundamentos da Educação do Instituto de Educação da
Universidade Federal de Mato Grosso; Coordenador do Grupo de Pesquisa Estudos de
Filosofia e Formação. Atualmente é diretor do Instituto de Educação da UFMT. Foi
coordenador do Núcleo UFMT no projeto Escrileituras: um modo de ler e escrever em
meio à vida.
E-mail: silasmonteiro@ufmt.com.br

422
supernovaedit@gmail.com
Porto Alegre/RS – Fone: (51) 3386 1984

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