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Trabalho - Introdução ao Estudo do Direito ll - Prof.

Rachel Nigro
Nome: Rodrigo Sá Leitão de Abreu Pinto

Conforme proposto pela Prof. Rachel Nigro como trabalho da disciplina de Introdução ao
Estudo do Direito II, tratarei da recepção da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH),
também conhecida como Pacto de San José da Costa Rica, pelo direito brasileiro. A investigação
acompanhará os meandros do processo de incorporação do artigo 7º, item 7, do Pacto San Jose a
respeito da proibição da prisão civil por dívida do depositário infiel, tal como decidiu-se no RE-466-
343-1/SP. Tal decisão seria, em seguida, consumada pela publicação da Súmula Vinculante nº 25,
que garantiu maior garantia de segurança jurídica à ilicitude da prisão civil de depositário fiel, em
conformidade com a CADH.

Para tanto, assumiremos como guia o voto do ministro Gilmar Mendes na RE-466-343-1/SP,
visto que sua posição foi vencedora, levando em conta ainda as considerações vencidas do ministro
Celso de Mello.

Antes de iniciar, enquanto alguém que está dando os primeiros passos em matéria jurídico,
chamou-me atenção a pluralidade de fontes que integrou os votos dos ministros no RE-466-343-
1/SP, bem revelando a diversidade de materiais que são utilizados para a resolução de uma questão
jurídica prenhe de complexidades. Valendo-se das descrições Schaira e Struchiner em Teoria da
Argumentação Jurídica1, pode-se fazer as seguintes afirmações: dentre os materiais utilizados,
incluem-se tanto fontes formais obrigatórias (primárias), isto é, “fontes que os profissionais do direito
se veem obrigados a aplicar na resolução de questões legais”. Quanto fontes opcionais
(secundárias), “aquelas que os profissionais acreditam ser relevantes mas que, ainda assim, podem
ignorar impunemente”.

Naquele primeiro nível, estão as leis propriamente ditas, especialmente as constitucionais. A


complexidade do caso se deve justamente a indefinição ainda persistente nessas leis, o que torna
obrigatório que as fontes opcionais sejam largamente utilizadas para substancializar a posição. Se,
por um lado, “quando a lei é clara e indubitavelmente estabelece a norma que o argumentador
pretende utilizar, as demais fontes cumprem a modesta função de corroborar aquilo que a lei, por
si só, é capaz de estabelecer”. Ao contrário, quando as fontes obrigatórios são indefinidas, as
demais fontes cumprem a importante função de complementá-las. Foi em consequência disso que
o ministro Gilmar Mendes recorreu de maneira oportuna a trechos de obras de juristas consagrados,
as quais compõe o corpo conhecimento como “doutrina”, relativo ao “conjunto da produção
intelectual dos juristas, que se empenham no conhecimento teórico do direito”2 segundo Dimitri

1
SHECAIRA, Fabio e STRUCHINER, Noel. Teoria da Argumentação Jurídica. Rio de Janeiro: Contraponto editora (co-
editora: PUC-Rio), 2016.
2 Dimitri Dimoulis. Manual de Introdução ao Estudo do Direito. São Paulo. Revista dos Tribunais, 2003. P. 199.
Dimoulis. Além disso, em exercício de direito comparado, Gilmar Mendes recorreu às leis
constitucionais outros países para fundamentar suas posições.

Entre as fontes primárias e secundárias citadas acima, existem ainda as denominadas fontes
intermediárias, já que possuem “peso maior que a opinião de juristas, embora tenham peso menor
que a lei”, as quais correspondem a jurisprudência. Miguel Reale definiu a jurisprudência como “a
forma de revelação do Direito que se processa através do exercício da jurisdição, em virtude uma
sucessão harmônica de decisões dos tribunais”3, principalmente levando em conta as decisões dos
tribunais superiores, bastando reparar como o ministro Gilmar Mendes tão somente se valeu de
decisões históricas do próprio STF.

Foi precisamente da articulação entre tais diferentes fontes que o votos em questão foram
compostos, afinal, “parece-lhes mais poderoso o argumento jurídico que se apoia simultaneamente
na lei e na jurisprudência e na doutrina e em qualquer outra fonte formal do direito que esteja
disponível”. Como alguém que apenas acabou de começar a estudar direito, já tão bem percebo
como, nesse acúmulo de fontes, reside a complexidade tortuosa do direito, mas principalmente a
sua beleza difícil, e irresistível.

A intrincada trama jurídica envolvendo a internalização do Pacto de San José foi


consequência da divergência a respeito da prisão civil por dívida envolvendo depositário infiel4,
posto que a constituição brasileira continha opinião diversa daquela representada pelo Pacto.
Vejamos:

Segundo o artigo 5º, inciso LXVII, da Constituição, "não haverá prisão civil por dívida, salvo
a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e
a do depositário infiel”.

Por sua vez, o artigo 7º, item 7, do Pacto de San José estabelece que “ninguém deve ser
detido por dívidas, exceto no caso de inadimplemento de obrigação alimentar”.

Estaríamos, portanto, diante uma antinomia.

Considerando que, em termos de correção de antinomias, o critério de hierarquia goza de


precedência em relação aos demais, seria natural supor que a lógica do “lei superior revoga lei
inferior” seria utilizada no caso. A questão, não obstante, não é tão simples, dada a inexistência de
uma bem estabelecida hierarquia-normativa entre os tratados internacionais e a Constituição.

O mesmo artigo 5ª da Constituição, em seu §2, afirma que “os direitos e garantias expressos
nesta constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou
dos tratados internacionais em que a Republica Federativa do Brasil seja parte”. Assim, por mais

3 Miguel Reale. Lições Preliminares de Direito. 27ª Edição. São Paulo: Saraiva: 2003. P. 167.
4 Depositário fiel é aquele ao qual foi confiada a guarda de um bem que não lhe pertence, o qual torna-se depositário
infiel quando o bem é surrupiado ou extraviado enquanto esteve sob sua responsabilidade.
que estabeleça uma cláusula aberta de recepção aos direitos presentes em tratados internacionais
assinados pelo Brasil, não determina com precisão a posição hierárquica em que são incorporados.

O Brasil assinou a carta de adesão ao Pacto de San José em 25 de setembro de 1992. Em


06 de novembro de 1992, o estabelecido no Pacto entrou em vigor através do decreto nº 678 que
afirma em seu artigo 1º que “A Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José
da Costa Rica), celebrada em São José da Costa Rica, em 22 de novembro de 1969, apensa por
cópia ao presente decreto, deverá ser cumprida tão inteiramente como nela se contém.”

É certo que, enquanto decreto, as normas do tratados seriam equiparadas à legislação


infraconstitucional, e foi justamente assim que o STF compreendeu inicialmente. Em 1995, por
exemplo, o STF julgou o Habeas Corpus nº 72.131 em que tratava da prisão do depositário infiel.
Mesmo considerando o artigo 7º, item 7, do Pacto de San José, os ministros afirmaram o
entendimento sobre a internalização do direito internacional ao nível de legislação ordinária, onde
se dava a antinomia com o Decreto-Lei nº911, denominado Lei do Depositário Infiel de 1969,
possível de ser corrigida pelo critério cronológico ou de especialidade. Como reconhece Adrian
Sgarbi, em conflito entre tais critérios, “em que pese essa possível disputa de interpretações, é
comum considerar-se o critério da especialidade como o mais forte nessa hipótese”5, como de fato
aconteceu, prevalecendo a Lei do Depositário Infiel contra o previsto pelo Pacto de San José.
Tomando ainda outro exemplo semelhante daqueles idos, durante o julgamento da medida cautelar
da ADI n° 1.480-3/DF de 1997, sobre Convenção nº 158, da Organização Internacional do Trabalho,
o STF também reconheceu que “os tratados ou convenções internacionais, uma vez regularmente
incorporados ao direito interno, situam-se, no sistema jurídico brasileiro, nos mesmos planos de
validade, eficácia e autoridade em que se posicionam as leis ordinárias, havendo, em consequência,
entre estas e os atos de direito internacional público, relação de paridade normativa”.

É bom lembrar que as decisões do HC nº 72.131 e do ADI n° 1.480-3, naquilo que toca a
internalização dos tratados internacionais, basearam-se, sobretudo, na jurisprudência do Supremo
Tribunal Federal iniciada através do RE 80.044 de 1977, momento em que discutiu a recepção da
Convenção de Genebra. Antes disso, o STF retinha posição internacionalista, condizente com a
teoria monista de interpretação do direito internacional face ao direito nacional, uma vez que admitia
a prevalência hierárquica do direito internacional sobre o interno. A partir do RE 80.044/77, ao adotar
posição soberanista (teoria dualista), ocorreu um deslocamento da compreensão do STF sobre a
incorporação dos tratados internacionais pelo ordem brasileira - em preferência desse último -
quando consigna-se que os conflitos entre duas disposições normativas, uma de direito interno e
outra de direito internacional, devem ser resolvidas pela mesma regra geral destinada a solucionar
antinomias entre normas de um mesmo grau hierárquico.

A despeito dessa primazia conquistada pelo ordenamento jurídico interno, ela não era
absoluta. Em lugares específicos da legislação brasileira, o direito internacional ainda assim
mantinha precedência. Ao analisarmos o Código Tributário Nacional, o artigo 98 afirma: “Os tratados
e as convenções internacionais revogam ou modificam a legislação tributária interna, e serão
observados pela que lhes sobrevenha.” Ora, enquanto o direito internacional relativa aos direitos
humanos obtinha apenas estatuto infraconstitucional, o direito internacional tributário (âmbito
patrimonial) possuía a prerrogativa inversa, configurando um caso flagrante em que os direitos
humanos estariam preteridos aos direitos patrimoniais, pois os efeitos dos tratados estariam sujeitos

5 SGARBI, Adrian. Introdução à Teoria do Direito. Rio de Janeiro: Marcial Pons Empório, 2013. P. 158.
ao esvaziamento como consequência de uma simples lei ordinária que a fragilizasse. Ao passo que
a proteção aos direitos humanos, outrora corolário absoluto da própria garantia da dignidade da
pessoa humana, encontrava-se defasada6. Afinal, segundo Cançado Trindade:

“Não é razoável dar aos tratados de proteção de direitos do ser humano (a começar pelo
direito fundamental à vida) o mesmo tratamento dispensado, por exemplo, a um acordo
comercial de exportação de laranjas ou sapatos, ou a um acordo de isenção de vistos para
turistas estrangeiros. À hierarquia de valores, deve corresponder uma hierarquia de normas,
nos planos tanto nacional quanto internacional, a ser interpretadas e aplicadas mediante
critérios apropriados. os tratados de direitos humanos tem um caráter especial, e devem ser
tidos como tais.”

A firmeza desse posicionamento seria desafiada em 2004, mediante a promulgação da


Emenda Constitucional nº 45, responsável por reacender as discussões sobre a incorporação dos
tratados internacionais. A EC nº45 adicionou o §3 ao artigo 5º e estabeleceu que “os tratados e
convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do
Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão
equivalentes às emendas constitucionais”. Trata-se, portanto, de norma que sistematizou a
incorporação dos tratados de direitos humanos ao nível hierárquico de emendas constitucionais,
bastando para tanto a aprovação em quorum especial nas duas Casas do Congresso (caso não
obtivessem o quorum, permaneceriam ao nível das leis ordinárias).

A partir de então, torna-se evidente que os tratados assinados e incorporados anteriormente


não possuíam estatuto constitucional, posto que não foram submetidos ao processo legislativo em
caráter especial conforme assentou a Emenda Constitucional nº 45. Em relação ao que nos
interessa: confirmava-se a incorporação do artigo 7º, item 7, do Pacto de San José em nível
infraconstitucional.

Não obstante tal consequência imediata, deve-se notar que a Emenda Constitucional nº45
lavra duas tendências convergentes. Em primeiro lugar, na medida em que a EC nº45 especificou
o caráter dos tratados internacionais em questão, sublinhou-se a particularidade dos tratados de
direitos humanos ao dotá-los de caráter preponderante uma vez comparados aos demais. Se os
tratados de direitos humanos, de agora em diante, obedeceriam a um mecanismo singular de
incorporação, pelo qual previa-se a possibilidade de incorporação com peso normativo
constitucional, o tema dos direitos humana gozava portanto de “precedência temática”7, nos termos
de Adrian Sgarbi, de forma que eram “distinguidas pelos operadores em termos de importância
valorativa”8, próximo ao entendimento que prevaleceu na Constituição de 1988 quanto aos direitos
e garantias individuais.

Em segundo lugar, a EC nº45 constitui um marco no processo de incorporação dos tratados


internacionais no direito brasileiro. Anteriormente, a despeito da crescente outorga de
responsabilidade aos Estados americanos que violem os tratados internacionais (posicionamento

6 Como dizia Cançado Trindade: “Não é razoável dar aos tratados de proteção de direitos do ser humano (a começar pelo
direito fundamental à vida) o mesmo tratamento dispensado, por exemplo, a um acordo comercial de exportação de
laranjas ou sapatos, ou a um acordo de isenção de vistos para turistas estrangeiros. À hierarquia de valores, deve
corresponder uma hierarquia de normas, nos planos tanto nacional quanto internacional, a ser interpretadas e aplicadas
mediante critérios apropriados. os tratados de direitos humanos tem um caráter especial, e devem ser tidos como tais.”
7 SGARBI, Adrian. Introdução à Teoria do Direito. Rio de Janeiro: Marcial Pons Empório, 2013. P. 121.
8 Ibid. P. 122.
que surgiu em paralelo ao Pacto de San José da Costa Rica), o Brasil ainda protagonizava
compreensões como aquelas em voga no HC nº 71.131 e na ADI n° 1.480-3. O que parecia, dada
a sua ampla pretensão soberanista, em desacordo com intuitos internacionalistas presentes na
constituição, a exemplo do artigo 4º, parágrafo único, que afirma que “a República Federativa do
Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina,
visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações”.

EC nº45 estabelece um novo paradigma internacionalista pois, além de reconhecer a


possibilidade de incorporação dos tratados em grau hierarquia de emenda constitucional, a mesma
Emenda reforçou a adesão internacionalista pois adicionou também o §4 ao mesmo artigo 5º da
constituição, em que estabelece que “o Brasil se submete à jurisdição de Tribunal Penal
Internacional a cuja criação tenha manifestado adesão”. A importância desse novo posicionamento
é resgatada pelo ministro Gilmar Mendes, ao lembrar que "a experiência de diversos ordenamentos
jurídicos, especialmente os europeus, demonstra que as Cortes Constitucionais costumam ser
bastante cautelosas quanto à questão da apreciação da constitucionalidade de tratados
internacionais”, alertando para a má repercussão internacional da declaração de
inconstitucionalidade de uma norma de tratado internacional

O certo é que, ao pôr em mútua implicação a recepção sistematizada dos tratados


internacionais e a preponderância dos direitos humanos, Gilmar Mendes insiste que o Brasil filia-se
a tendência contemporânea do constitucionalismo mundial, tendência que destaca a relevância dos
tratados internacionais sobre direitos humanos em relação aos ordenamentos internos. Basta notar,
por exemplo, a constituição do Paraguai cujo artigo 145º afirma: “A República do Paraguai, em
condições de igualdade com outros Estados, admite uma ordem jurídica supranacional que garanta
a vigência dos direitos humanos, da paz, da justiça, da cooperação e do desenvolvimento político,
econômico, social e cultural." Ou a constituição da Argentina em seu artigo 75º, inciso 24:
“Corresponde ao Congresso: aprovar tratados de integração que deleguem competência e
jurisdição a organizações supraestatais em condições de reciprocidade e igualdade, e que
respeitem a ordem democrática e os direitos humanos. As normas ditadas em sua consequência
têm hierarquia superior às leis.” Ou ainda a constituição da Espanha, artigo 10.2: “As normas
relativas aos direitos fundamentais e às liberdades que a Constituição reconhece serão
interpretadas em conformidade com a Declaração Universal de Direitos Humanos e os tratados e
acordos internacionais sobre as mesmas matérias ratificadas pela Espanha.”

Foi Cançado Trindade, na época consultor jurídico do Itamaraty, que propôs na Assembleia
Nacional Constituinte (durante a audiência pública de 29 de abril de 1982 da Subcomissão dos
Direitos e Garantias Individuais), o artigo 5º, §2, daquela constituição. O intuito de sua proposta era
justamente uma abertura internacional do país, conforme afirmado pelo mesmo:

“Se, para os tratados internacionais em geral, tem-se exigido a intermediação pelo Poder
Legislativo de ato com força de lei de modo a outorgar a suas disposições vigência ou
obrigatoriedade no plano ordenamento jurídico interno, distintamente, no tocando aos
tratados de direitos humanos em que o Brasil é parte, os direitos fundamentais neles
garantidos passa, consoante os parágrafos 2 e 1 do artigo 5º da Constituição Brasileira de
1988, pela primeira vez entre nós a integrar o elenco dos direitos constitucionalmente
consagrados e direta e imediatamente exigíveis no plano do nosso ordenamento jurídico
interno.”9

Ou seja, se a interpretação da lei estivesse de acordo com a intenção daquele que a propôs,
a jurisprudência do STF postulada desde o RE 80.044 de 1977 não teria inibido, como vimos, casos
como aquele do HC nº 71.131, em que persistiu a paridade ordinária entre os tratados internacionais
de direitos humanos e a legislação infra-constitucional. De maneira acentuada, visto que estamos
tratando de um caso diretamente relacionado ao Pacto de San José, a postura de Cançado Trindade
era justamente motivada pela provável adesão ao Pacto que já se insinuava em 1987, no momento
da Constituinte, por mais que só fosse realmente fixada em 1992: “Minha esperança, na época, era
no sentido de que esta disposição constitucional fosse consagrada concomitantemente com a
pronta adesão do Brasil aos dois Pactos de Direitos Humanos das Nações Unidas e à Convenção
Americana sobre Direitos Humanos, o que só se concretizou em 1992.”10

Retomando as intenções de Cançado Trindade, o ministro Gilmar Mendes, ao analisar um


caso que envolvia a prisão por dívida do depositário infiel, propõe-se então a dar uma solução
definitiva para o lugar hierárquica dos tratados internacionais assinados e incorporados
anteriormente a EC nº45. A tal objetivo corresponde o sinuoso caminho que seu voto percorre no
RE-466-343-1/SP até uma solução conveniente. A sinuosidade deve-se ao fato de que, embora
insatisfeito com o mero reconhecimento do status de lei ordinária aos tratados de direitos humanos,
o ministro tampouco considera conveniente dotá-los de natureza supraconstitucional ou
constitucional.

Sobre o caráter supraconstitucional que tais tratados externos obteriam, Gilmar Mendes
sublinha a “dificuldade de adequação dessa tese à realidade de Estados que, como o Brasil, estão
fundados em sistemas regidos pelo principio da supremacia formal e material da Constituição sobre
todo o ordenamento jurídico”. Ressalte-se, portanto, não somente uma mera dificuldade, mas uma
impossibilidade de realizar tal internalização supraconstitucional sem atentar contra a soberania do
país (primeiro fundamento do Estado, segundo o artigo 1º, inciso I) e a pirâmide kelseniana na qual
se baseia o Direito Brasileiro com a constituição no topo.

Sobre a possibilidade da natureza constitucional de tais tratados, além de incluir as mesmas


razões expostas quanto a supraconstitucionalidade, Gilmar Mendes reitera o perigo envolvido numa
possível ampliação indevida da expressão “direitos humanos”, contra a qual o direito brasileiro
estaria desamparado, já que não poderia exercer o eficaz instrumento de controle de
constitucionalidade em relação aos tratados internacionais que versassem sobre direitos humanos.
O Brasil, destarte, estaria exposto aos riscos de produções normativas distanciadas do controle
quanto a compatibilidade de tais normas com a ordem constitucional interna.

A defesa da automática constitucionalidade dos tratados internacionais de direitos humanos


foi sustentada principalmente pelo Ministro Celso de Mello - não à toa, considerado um dos mais
eminentes internacionalistas do direito brasileiro. Ao votar durante o julgamento do RE 466.343-SP,
o ministro alterou radicalmente sua antiga posição quanto assunto. Anteriormente, no despacho
monocrático do HC 77.631-5/SC de 2000, quando afirmou que “não me parece que o Estado

9 CANÇADO TRINDADE, Antonio Augusto. Memorial em prol de uma nova mentalidade quanto à proteção dos direitos
humanos nos planos internacional e nacional. In: Arquivos de Direitos Humanos 1. Rio de Janeiro: Renovar; l999, p. 46-
47 MENDES, Gilmar em Recurso Extraordinário 466-3413-1 São Paulo.
10 Ibid.
brasileiro deva ter inibida a prerrogativa institucional de legislar sobre prisão civil por dívida, sob o
fundamento de que o Pacto de São José da Costa Rica teria pré-excluído, em sede convencional,
ao menos no que se refere à hipótese de infidelidade depositária, a possibilidade de discipllinação
desse mesmo tema pelo Congresso”. Agora no RE 466.343-SP de 2008, de maneira semelhante
ao que fizera pouco antes no HC 87.585-8/TO (12/03/2008) em que já se evidenciava sua mudança
de compreensão, Celso de Mello defendeu que os tratados internacionais deveriam ser
incorporados a nível constitucional, afirmando que, a respeito das convenções internacionais de
direitos humanos celebradas antes da Emenda Constitucional nº 45, “incide o § 2º do art. 5º da
Constituição, que lhes confere natureza materialmente constitucional, promovendo sua integração
e fazendo com que se subsumam à noção mesma de bloco de constitucionalidade.”

Mesmo a par da brilhante exposição de Celso de Mello, Gilmar Mendes manteve sua opinião
e não coadunou com a posição internacionalista do seu companheiro de STF. Uma vez excluída a
possibilidade de incorporação ao nível constitucional, restaria incluir o Pacto de San José como lei
ordinária, já que a mesma não passou pelo processo estabelecido pela EC nº45. No entanto, como
afirmamos acima, esse contexto fragiliza a defesa dos direitos humanos, visto que as normas dos
tratados internacionais poderiam ser revogadas por outras leis posteriores ou específicas. Era
importante, portanto, garantir uma posição aos tratados acima das leis ordinária para que, dessa
maneira, estivesse posta uma limitação aos conteúdos de outras leis que poderiam intervir naquela
sob a cláusula da cronologia ou especialidade.

É por isso que Gilmar Mendes retoma uma posição expressa anteriormente pelo ministro
Sepúlveda Pertence em 29 de março de 2000, na ocasião do julgamento do RHC nº 79.785-RJ.
Assim como Gilmar Mendes ao analisar as possibilidades de supraconstitucionalidade e
constitucionalidade dos tratados, Sepúlveda Pertence afirma de maneira semelhante que “a partir
da Constituição positiva do Brasil - e não daquilo que a cada um aprouvesse que ela fosse - fica
acima de minha inteligência compreender que, sobre ela, se afirmasse o primado incondicional das
convenções internacionais”. Sepúlveda Pertence então complementa:

“Com o alinhar-me ao consenso em torno da estatura infraconstitucional, na ordem positiva


brasileira, dos tratados a ela incorporados, não assumo compromisso de logo (…) com o
entendimento, então majoritário - que, também em relação às convenções internacionais de
proteção dos direitos fundamentais, preserva a jurisprudência que a todos equipara
hierarquicamente às leis.”

Dessa maneira, o ministro Sepúlveda Pertence assume a defesa de uma posição hierárquica
que, embora infraconstitucional, não se iguala às demais leis ordinárias. É plasmada, portanto, uma
posição entre a constituição e resto do ordenamento jurídico brasileiro, de tal modo que adita a
Constituição ao acrescentar uma limitação à lei ordinária. Segundo Sepúlveda Pertence, trata-se
de“aceitar a outorga de força supra-legal às convenções de direitos humanos, de modo a dar
aplicação direta às suas normas - até, se necessário, contra a lei ordinária - sempre que, sem ferir
a Constituição, a complementem, especificando ou ampliando os direitos e garantias dela
constantes.”

Gilmar Mendes retoma isso para referendar a característica de supralegalidade dos tratados
e convenções de direitos humanos internacionais. Através da supralegalidade, impossibilita-se a
eficácia jurídica das normas infraconstitucionais conflitantes com os tratados. Embora continuem
infraconstitucionais, tais normas internacionais de direitos humanos adquirem um atributo de
supralegalidade, ao contrário dos demais tratados internacionais que continuam incorporados em
termos ordinários. Como afirmou Gilmar Mendes, “os tratados sobre direitos humanos não poderiam
afrontar a supremacia da Constituição, mas teriam lugar especial reservado no ordenamento
jurídico. Equipará-los à legislação ordinária seria subestimar o seu valor especial no contexto do
sistema de proteção dos direitos da pessoa humana.” De agora em diante, ao serem interpostos
entre a constituição e a legislação inferior, os atos normativos internacionais de direitos humanos
incidem com efeito paralisante sobre as leis infraconstitucional que legislem sobre a mesma matéria
tratada pela norma internacional, de modo que aquelas perdem sua aplicabilidade, sejam elas
anteriores ou posteriores ao gesto de adesão ao tratado.

No caso da prisão por dívida do depositário infiel, tornam-se ineficazes o Decreto-Lei n° 911
(Lei do Depositário Infiel) e o art. 652 do Código Civil de 2002 (similar ao art. 1.287 do Código Civil
de 1916). Dito de outro modo, elimina-se a base legal para a prisão civil do depositário infiel
conforme previa o artigo 5º, inciso LXVII, da Constituição, o que só pode ser alterado, a partir de
então, caso seja aprovado alguma emenda constitucional que contenha conteúdo semelhante ao
das normas que atualmente tratam desse assunto, presentes na legislação civil e na processual
civil. Como concluiu Gilmar Mendes:

“A prisão civil do depositário infiel não mais se compatibiliza com os valores supremos
assegurados pelo Estado Constitucional, que não está mais voltado apenas para si mesmo,
mas compartilha com as demais entidades soberanas, em contextos internacionais e
supranacionais, o dever de efetiva proteção dos direitos humanos.”

Assumindo a supralegalidade, o STF não estariam sujeitos aos problemas da tese da


constitucionalidade. Como afirmou Antonio Moreira Maués em texto sobre o assunto, “a
supralegalidade exclui a possibilidade de que os tratados de direitos humanos possam ser utilizados
como parâmetro de controle de constitucionalidade, o qual, para o STF, continua sendo formado
exclusivamente pela Constituição de 1988”11. Ao fim e ao cabo, somente se forem incorporados ao
ordenamento jurídico como emenda constitucional, de acordo com o estabelecimento no artigo 5º,
parágrafo 3º, as normas internacionais de direitos humanos serão instrumentos de controle de
constitucionalidade - caso contrário, estarão abaixo da constituição e poderão ser, eles mesmos,
alvo do controle de constitucionalidade, garantindo assim “a supremacia formal e material da
Constituição sobre todo o ordenamento jurídico”

À guisa de conclusão, ressalta-se como a supralegalidade consistia numa a engenharia


jurídica de que lançou mão o ministro Gilmar Mendes, recorrendo a uma possibilidade alçada
primeiramente pelo ministro Sepúlveda Pertence, para assim realizar dois objetivo. Incorporar os
tratados internacionais de direitos humanos de modo que não sejam facilmente revogados pelas
leis ordinárias, tal como julga-se conveniente para a preservar a boa imagem do Brasil no contexto
jurídico internacional. Sem abandonar o pressuposto de manutenção da constituição como instância
suprema e soberana.

11 MAUÉS, Antonio Moreira. Revista Internacional de Direitos Humanos – v.1, n.1, jan.2004 – São Paulo, 2004. P. 228.

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