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Anais do VI ENCONTRO DO GT NACIONAL DE HISTÓRIA DAS RELIGIÕES E DAS

RELIGIOSIDADES - ANPUH
História das Religiões, Literatura, Conceitos e Identidades - ISSN 2359-6988

ANAIS DO
VI ENCONTRO DO GT NACIONAL DE HISTÓRIA DAS RELIGIÕES E DAS
RELIGIOSIDADES – ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE HISTÓRIA (ANPUH):
História das Religiões, Literatura, Conceitos e Identidades
Anais do VI ENCONTRO DO GT NACIONAL DE HISTÓRIA DAS RELIGIÕES E DAS
RELIGIOSIDADES - ANPUH
História das Religiões, Literatura, Conceitos e Identidades – Vol. VI – ISSN 2359-6988

APOIO
GT História das Religiões e Religiosidades – ANPUH – Nacional
GT História das Religiões e Religiosidades – ANPUH – RJ
Programa de Pós-Graduação em História (PPGH-UERJ)
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES)
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
Centro Histórico de Cultura Judaica (CHCJ)
Associação Brasileira de História das Religiões (ABHR)

COMISSÃO ORGANIZADORA DO EVENTO


Edgard Leite Ferreira Neto (UERJ/UNIRIO)
Adriana Gomes (UERJ/SEEDUC)
Layli Oliveira Rosado (UERJ)

COMISSÃO TÉCNICO-CIENTÍFICA
Artur Cesar Isaia (UFSC/Unilasalle)
Edgard Leite Ferreira Neto (UERJ/UNIRIO)
Solange Ramos de Andrade (UEM)

ORGANIZAÇÃO DOS ANAIS


Edgard Leite Ferreira Neto (UERJ/UNIRIO)
Adriana Gomes (UERJ/SEEDUC)
Layli Oliveira Rosado (UERJ)

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RELIGIOSIDADES - ANPUH
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APRESENTAÇÃO

O Grupo de Trabalho História das Religiões e das Religiosidades da ANPUH


(Associação Nacional de História), foi criado em Dourados, Mato Grosso do Sul, no ano de
2003, durante o I Simpósio Internacional Religião, Religiosidades e Cultura, pelas
Regionais da ANPUH, de Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Paraná e São Paulo.
O GT História das Religiões e das Religiosidades teve sua primeira reunião nacional
no XXIII Simpósio Nacional de História – ANPUH em Londrina, Paraná, na Universidade
Estadual de Londrina (UEL) no ano de 2005, quando foi eleita sua primeira gestão 2005-
2007.
O GT realizou seu primeiro encontro acadêmico nacional em 2007. Promoveu, desde
então, mais cinco encontros nacionais de grande importância para o fortalecimento da área no
país, em 2008, 2010, 2012, 2014 e este, em 2016.
O VI Encontro Nacional de História das Religiões e das Religiosidades foi
realizado no Rio de Janeiro, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, entre os dias 22 a
25 de novembro de 2016.
Teve mais de 130 inscritos, oriundos de todos os lugares do país.
A temática do Encontro foi “História das Religiões, Literatura, Conceitos,
Identidades”. Os organizadores propuseram aos pesquisadores a reflexão sobre questões da
relação entre religião e textos religiosos, sobre temas conceituais e sobre os problemas da
identidade religiosa.
Acreditamos que o Encontro alcançou plenamente seus objetivos, contribuindo para o
fortalecimento da área de pesquisa, através da divulgação e discussão de trabalhos de
investigação realizados em todo país.
O VI Encontro Nacional atuou decisivamente para a continuidade e amadurecimento
do Grupo de Trabalho de História das Religiões e das Religiosidades da ANPUH Nacional.

Dr. Edgard Leite Ferreira Neto


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Coordenador do GT Regional Rio de Janeiro

"Engrandecer a Lei de Moisés" na Bahia do século XVIII


Ademir Schetini Júnior – PPGH/UFF1

Resumo: A diáspora dos cristãos-novos incitou a uma parcela do segmento étnico à criação
de redes sociais nos cantos do globo, eivados, por um lado, pela calmaria que representava
estarem em zona longínqua de atuação do Tribunal da Fé. A seguir o curso desses mares, naus
apinhadas de elementos cristãos-novos rumaram para a luso-América no decorrer dos séculos
XVI a XVIII. Para a cidade da Bahia, se não transportaram bens móveis, alguns levaram
aspectos de uma religiosidade judaica residual. Em começos do século XVIII, um rol de
proposições heréticas “escandalosas” referente a cristãos-novos, segundo correspondências
enviadas a Lisboa por comissários da Bahia, constava posse de livros defesos, críticas à
Inquisição e sérios conteúdos contrários à pureza da fé católica. Em tudo encaminhava a
“engrandecer a Ley de Moyses”. A pesquisa se assenta numa série de fontes da Inquisição
portuguesa, sobretudo processos, documentação avulsa e cadernos do promotor.
Palavras-chave: Inquisição. Religiosidades. Cristãos-novos. Bahia. Século XVIII.

Passaram-se dois séculos da conversão forçada por ordem do rei d. Manuel de


Portugal (1497). A partir do batismo, obrigatório no centro e nas rebarbas do império
português, que os indivíduos tornar-se-iam súditos do rei e da Igreja durante o processo de
unificação católica (MARCOCCI, 2012). O batismo era, então, o rito de passagem através do
qual os descendentes de judeus seriam submetidos à jurisdição eclesiástica. Em Portugal,
acentua-se a discriminação, já vigente em Espanha, entre o cristão-velho e o cristão-novo e os
estatutos de pureza de sangue são reforçados como critérios de acesso a diversos campos da
vida social2.
A religião judaica – suas reuniões em sinagoga, observações litúrgicas e leitura de
textos sagrados – estava proibida. Na América portuguesa, a exceção é período da ocupação
holandesa em Pernambuco, quando, por pouco mais de duas décadas do seiscentos, foi
consentida a prática religiosa judaica e fundada a sinagoga Kahal Zur Israel (VAINFAS,

1
Mestrando em História pela Universidade Federal Fluminense. Bolsista com fomento da CAPES. Endereço
eletrônico: schetinijr@yahoo.com.br.
2
Um estudo crítico a respeito dos estatutos de pureza de sangue em Portugal e no Brasil pode ser conferido em
Carneiro (2005). Os termos usados para categorizar os cristãos como velhos e novos espelham a hierarquia
designativa de Antigo Regime ibérico. De acordo com o dicionarista Bluteau (1638-1734), as palavras têm
caráter distintivo. Embora tivesse a gênese em que abarcasse, entre outras formas identitárias, mouros, negros,
judeus, foi finalmente à última que passou a se referir, lendo-se ao revés que o cristão-velho é “o que naceo de
Pays, & Avôs de hum, & outro Sexo, que nunca professaraõ a ley de Moyses. Christianus, ut vocant, vetus.”
BLUTEAU, 1712, Verbete: “Christam.
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2010). Frente a esse quadro, é possível perguntar se, ante a uniformização católica, os
descendentes de judeus assimilaram completamente a nova religião3; ou se os cristãos-novos
reagiram asperamente ao disciplinamento português4; e ainda se eles trilharam pelo caminho
do meio e passaram a viver entre dois mundos5. Evitando generalizações de qualquer lado, a
análise da identidade dos conversos requer uma pesquisa meticulosa e de certo modo
individualizante (VAINFAS, 2010, p. 41).
A Bahia – sede da administração colonial até 1763 – representou um destino frequente
para esse segmento étnico. É importante lembrar que a capitania baiana fora alvo da ação do
Tribunal da Inquisição durante o período colonial.6 Após a “grande inquirição” de meados do
século XVII que levou personalidades cristãs-novas da governança aos cárceres secretos
(NOVINSKY, 1972), parte considerável dos conversos retornou à Bahia em inícios do século
seguinte, residindo preferencialmente nos espaços urbanos e próximos aos portos (SANTOS,
2002). Tal fato lhes conferia o status de outsiders7. É possível que uma parcela da população
conversa estabelecida nos séculos precedentes tenha se integrado à população cristã-velha,
desviando as suspeitas de impureza de sangue por meio de casamento misto ou manipulação
genealógica8.
De antemão, verificamos que a quase totalidade dos descendentes de judeus
circunscritos ao território baiano no século XVIII (identificada na documentação) recebeu o
batismo no altar, tenha sido em Portugal, Espanha ou Brasil, bem como fora crismada e
apadrinhada. É o caso dos Nunes de Miranda, um ramo economicamente ativo e bem
relacionado na Bahia setecentista, que ao recém-chegarem tiveram seus filhos apadrinhados

3
Uma tese semelhante defendida em Saraiva, Inquisição e cristãos-novos, 1985.
4
Análise neste sentido em Révah, Os marranos, 1977.
5
Tese interessante em que a autora aponta a vivência dupla de alguns cristãos-novos (NOVINSKY, 1972).
6
As ações na Bahia foram caracterizadas, sobretudo, durante os episódios da Primeira Visitação (1591-1593) e
da Segunda Visitação (1618-1620), dirigidos, respectivamente, pelos visitadores Heitor Furtado de Mendonça e
Marcos Teixeira. A “grande inquirição de 1646”, encabeçada pelo governador Teles da Silva, representou assim
um terceiro grande momento de vigilância. Ademais, extensível à América portuguesa, a responsabilidade em
delatar os desvios de comportamento cristão ficava a cargo do bispado, dos ministros da Inquisição, bem como
da população em geral.
7
Conceito tomado emprestado em Norbert Elias e John Scotson (2000).
8
Conferir Evaldo Cabral de Mello (2008). É importante lembrar que “por compra ou por casamento com a filha
de um senhor de Engenho era possível para um rico comerciante de Salvador se tornar um grande senhor de
Engenho. Mas para tanto, era indispensável ser rico, ter conduta irrepreensível e provar que nem gota de sangue
impuro de mouro, de judeu ou de negro - corria nas veias. No que diz respeito à 'conduta irrepreensível' e à
'limpeza de sangue' houve, na realidade, muitas acomodações. Nem sempre a Inquisição pode ou quis descobrir
as origens duvidosas de tal ou outro português, fiel paroquiano da comunidade católica da Bahia” (MATTOSO,
1983, p. 12).
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por proeminências de qualidade. Maria Bernal e Ana Bernal de Miranda, filhas do dr.
Francisco Nunes de Miranda, cristão-novo, formado médico na Universidade de Coimbra,
foram apadrinhadas pelo arcebispo d. Sebastião Monteiro da Vide, antigo prior da Igreja de
Santa Marinha de Lisboa e autor das importantes Constituições Primeiras do Arcebispado da
Bahia, de 1707.9
Outros casos apontam para a circulação de judeus de sinal, isto é, circuncidados, na
territorialidade colonial, sem muito nos informar, no entanto, sobre a religiosidade. As mais
ínfimas escapadelas confessionais permitem entrever, todavia, trechos da vivência religiosa na
colônia. É o caso de Diogo Rodrigues, preso na cidade da Bahia em 1712. Numa das estadias
na cidade, no ano precedente, Diogo Rodrigues (o judeu Abrahão) confessaria ter praticado a
lei de Moisés (e não a de Cristo) com alguns moradores da cidade, talvez notando a diferente
forma com que a observavam no Brasil. Com Jerónimo Rodrigues (apresentado à Inquisição
em 1729), esposo da castelhana Guiomar da Rosa (enviada aos Estaus em 1727), e com a mãe
desta, a chocolateira dona Paula Antónia (natural de Ayamonte), Diogo declarou ter feito
alguns jejuns no decurso do ano, bem como o tradicional jejum do dia grande (Yom Kipur).
Provável o contato ser frequente com a família de dona Paula Antónia, pois ela teria
recomendado a pessoa de Diogo para a padeira Francisca Henriques. Certa feita, vendo Diogo
passar em frente a sua porta, Francisca interpelara-o para, finalmente, declararem a crença na
lei de Moisés. Ao se acompanhar tais cenas cotidianas, vê-se o que se segue. O judeu confessa
aos Inquisidores que “passado algum tempo disse elle confitente a dita Francisca que era
chegado o tempo em que se uzava a Paschoa das Cabanas”. Francisca Henriques (presa pela
Inquisição em 1726), possivelmente estupefata e levando a mão à boca, responderia “que
naquela Cidade senão podia celebrar a dita Paschoa”10. As fontes atestam que a festividade de
Sucót (das Cabanas) não participara do repertório dos marranos na colônia11, diferente, por
exemplo, do rol das práticas religiosas dos “judeus novos” de Amsterdã e dos cristãos-novos
judaizantes da França e da Inglaterra. Explica-se a inexecução pelo fato de ser um preceito

9
ANTT–TSO, IL Processo de Ana Bernal de Miranda (I). Proc. núm 2424. ANTT-TSO, IL Processo de Maria
Bernal de Miranda. Proc. núm. 1820.
10
ANTT-TSO, IL Processo de Diogo Rodrigues. Proc. núm. 5336.
11
É a comemoração da saída dos israelitas do Egito. Está fundamentada no livro de Vayicrá: “E falou o Eterno a
Moisés, dizendo: ‘Fala aos filhos de Israel, dizendo: Aos quinze dias deste sétimo mês, será festa das cabanas
[Sucót], por sete dias, ao Eterno”. Vayicrá 23, 33-34. In: Torá, 2001. Na leitura semanal está é a parashá 31
(Emór). Os judeus constroem uma cabana (sucá) e residem nela durante sete dias, em memória dos 40 anos em
que o povo de Israel atravessou o deserto do Sinai.
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público, à mostra de transeuntes, complicado de ocultar. Cerimônia pública não cabia no


campo da possibilidade.
Diogo Rodrigues, personagem singular nos registros inquisitoriais, teria tentado
transitar por categorias, atropelar jurisdições, colocando-se como judeu ou como cristão-novo.
Preso na condição de cristão-novo, Diogo declarava crer na benevolência do Santo Ofício
para com os conversos; ao se desapontar, confessara ter nascido judeu. Ao final do processo,
o notário registra:
Que não era crhistaó baptizado como havia dito em suas primeiras confissoens, mas
judeu circuncidado aos outo dias despois de nascido, natural da Vila de Vidaxe
Reino de França [...] onde os judeos vivem com liberdade na Ley de Moyses e tem
sua sinagoga, o fizeraó seos paes circuncidar, por serem publicos observantes da
mesma Ley, e lhe puseraó por nome Abrahão, do qual nome usou te a idade de vinte
annos em que assistio na dita Villa de Vidaxe, vivendo publicamente na Ley de
Moyses, em que só foi creado e doutrinado, assistindo na sinagoga, rezando e lendo
com os mais judeos pla Escritura Sagrada em lengoa hebrea, que tambem aprendeu, e
soube...12

O crime, a priori de judaísmo, tomaria outra forma, a saber, de se fingir cristão e


receber os sacramentos da Igreja. A sentença lhe garantiria açoite público intra sanguinis
effusionem e degredo para as galés. O batismo era obrigatório neste caso13.
Como uma sociedade econômica e culturalmente movente, sobretudo ao servir como
rotas para as Minas, na virada para o setecentos, a Bahia apresenta personagens insólitas
registradas na Inquisição. Convém lembrar-se do padre baiano Manoel Lopes de Carvalho,
licenciado no Colégio da Companhia de Jesus, o qual defenderia ideias heterodoxas em
relação àquelas fixadas pelo concílio tridentino. A qualidade do sangue de padre Manoel era
incerta na definição processual, mas, possivelmente, ser ele limpo de sangue ou não pouco
influenciara a teologia que intentou arquitetar ao longo dos anos. Até porque, ao comparar-se

12
ANTT-TSO, IL Processo de Diogo Rodrigues. Proc. núm. 5336.
13
Ocorreria na Sé de Lisboa em 29/07/1713, vinte dias após o auto da fé. Era o tempo de uma rápida catequese,
já que havia decorado a doutrina cristã por meio de uma cartilha na colônia. Regista o cura João Pires da Costa:
“...baptizei nesta S. Sé a Manoel Rodrigues Leão, Hebreo de naçaõ, q de antes se chamava Abráhao aliás Diogo
Rodrigues, e vulgarmente o Dioguinho...”. ANTT Paróquia da Sé, Lisboa, Registro de batismos, Livro de
registro de batismos, Cx. 4, Liv. B8, 1707-1719.
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o misterioso rei de Jerusalém, Malki-Tsédec14, argumentava com o doutor qualificador do


Santo Ofício que era “sine patre, sine matre, sine genealogia”15.
Insistia Manoel Lopes que os cristãos-novos erravam em não reconhecer a divindade
de Jesus, todavia, nas mais proposições, eles deveriam ser espelho para a Igreja romana. Além
de redigir certos tratados teológicos, um deles com 66 artigos, reavivava as ideias milenaristas
de António Vieira, buscando, assim como este jesuíta, defendê-las perante o rei. Encarcerado,
renitente e jurando pelo Deus de Israel, padre “(E)Manoel” intitulava-se como o Messias.
Acabaria enfrentando o último momento na fogueira, em 1726, como judaizante.16 Seja como
for, o tema do milenarismo no século XVIII na Bahia está ainda por ser explorado, como
também pouco se sabe a respeito da memória construída em torno deste padre e de outros
sujeitos que desejaram apressar a vinda do Messias a Lisboa para julgar vivos e defuntos.
Poderíamos perguntar se Manoel Lopes de Carvalho seria um típico caso excepcional
17
normal . Mesmo se assim o afirmássemos, o núcleo das ideias defendidas por este jesuíta
nascido na Bahia reclamava por uma modificação nos quadros sociais do império português,
inclusive, fragilizado frente a outros reinos da Europa. Ainda que se conservassem os agentes,
a exemplo de d. João V, aclamado rei no Quinto Império, algo na mentalidade ibérica deveria
ser alterado. Seguindo a concepção de Émille Durkheim, é possível considerar que as fontes
das quais ela emana se encontrem no seio social18.
Ideias semelhantes às advogadas pelos padres jesuítas António Vieira, João Matheus
Falleti, Valentim Estancel e semelhantes irmãos do Colégio da Companhia de Jesus na Bahia
receberam eco para além dos círculos conventuais19. O rol de proposições heréticas
“escandalosas” referente a cristãos-novos, segundo correspondências enviadas a Lisboa por
comissários da Bahia, constava posse de livros defesos, críticas à Inquisição e sérios
14
Bereshit 14, 18-20. In: Torá, 2001. Na leitura que os judeus fazem da Torá a cada shabat, a passagem em
questão compreende a terceira parashá (i.e. porção semanal) e é intitulada Lech Lechá. Esta parashá inicia com o
chamado de D’us a Abrão (para que este saia da casa dos pais) e se encerra com a circuncisão do patriarca como
sinal da aliança. Um processo atravessa Abrão até que seja transmutado em Abraão.
15
ANTT-TSO, IL Processo de Manoel Lopes de Carvalho. Proc. núm. 9255.
16
Conferir os trabalhos de Araújo Júnior (2006) e Vicente (2008).
17
Conceito desenvolvido por Edoardo Grendi (2009).
18
Para o Durkheim (1978, p. 240), “não apenas elas vêm da sociedade, mas as próprias coisas que elas
exprimem são sociais. Não apenas foi a sociedade que as instituiu, como também são aspectos diferentes do ser
social que lhes servem de conteúdo”.
19
O Colégio da Companhia teria sido animado intimamente pelas alocuções e manuscritos do padre Vieira,
falecido na Bahia em 1697. De acordo com Adriana Romeiro, “os primeiros anos do século XVIII encontraram
os jesuítas da Bahia fortemente enredados com o legado milenarista de Vieira, imersos que estavam nas
especulações em torno das profecias bíblicas e da consumação do Quinto Império” (ROMEIRO, 2001, p. 150).
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conteúdos contrários à pureza da fé católica. Em tudo encaminhava a “engrandecer a Lei de


Moisés”.
A consulta aos arquivos é capaz de sugerir um lado da sociedade baiana setecentista
pouco afeita às orientações inquisitoriais da delação. Raras vezes cristãos-velhos
compareceram diante dos agentes do Santo Ofício para denunciar casos de judaísmo. No
entanto, as poucas denúncias que compõem os cadernos do promotor permitem visualizar o
quadro mais geral em que a sede do arcebispado esteve inserida. Ressalte-se que em meados
da década de 1720 a Bahia voltaria a nutrir de cristãos-novos os cárceres de Lisboa, fato que
estaria marcado pelo comércio com as Minas Gerais20. Na verdade, quando a Inquisição
sentiu-se “atraída” pelo Brasil no século XVIII (MARCOCCI; PAIVA, 2013), a ação
intensificou-se e a origem dos principais prisioneiros atestava os séculos precedentes21.
Dentre as moderadas denúncias localizadas, temos notícia de certo Amaro de Moraes,
nome de quem utilizaria da antroponímia da sobrevivência ao modificá-lo para Luís Mendes
de Moraes e de tal modo ser conhecido em Salvador22. Entre 1706 e 1718, os comissários frei
Rodrigo do Espírito Santo, João Calmon e António Pires Gião receberam cristãos-velhos
moradores na Bahia com o intuito de testificarem as peripécias heréticas de Luís Mendes de
Moraes. O longo tempo da diligência (12 anos) chama atenção. Ao passo que a ordem de
prisão do cristão-novo não pôde ser cumprida, pelo motivo de haver falecido pouco antes.
Nos pareceres enviados pelos comissários ao Conselho Geral, os depoentes relatavam
as insurgências contra a fé católica de Luís Mendes de Moraes, homem de nação e mercador
de logea, morador na cidade da Bahia. Sobressaía logo a acusação de Luís Mendes não
frequentar as igrejas, pois as testemunhas não o viam passar perto delas. Entretanto, em certas
ocasiões, o delatado cristão-novo oferecia missa em outros lugares. O capitão Gonçalo de
Brito, mercador de sobrado, afirma que apareceu o denunciado para realizar a transação de
algumas fazendas de seu interesse. O ajuste dos preços demorara a se concretizar, mas como

20
Diferente da capitania do Rio de Janeiro, quando cristãos-novos presos durante as duas décadas iniciais
daquele século lotaram navios em direção a Lisboa, faltando até mesmo cárceres de espera, sendo uma grande
parcela dos suspeitos do sexo feminino. Conferir Lina Gorenstein (2005).
21
Novo perfil marcaria a devassa ao Grão-Pará com a longa Visitação de 1763-1769, encabeçada por Geraldo
José de Abranches, afinada com a política de Pombal e a manutenção do bispado por meio do Tratado de Madri.
Os principais crimes registrados seriam enquadrados como “blasfêmias”. Parte da política pombalina fora
efetivada com a anulação da distinção entre cristãos-novos e velhos (1773). Ver Mattos (2012).
22
A estratégia da mudança de nome utilizada por cristãos-novos foi desenvolvida por Lipiner (1998, capítulo II).
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Era dia de preceito e queria hir a ouvir missa, lhe respondera o dito Luis Mendes de
Moraes, isso não lhe dê pena a VMce que eu lha mandarei dizer aqui mesmo em
caza, e que chamando hú seu mulatinho lhe dissera: oh rapáz dize aqui missa ao sor
Gonçalo de Brito, e que de facto fizera o dito mulato todas as cerimonias da missa, e
que o dito Luis Mendes se gabava de haver bem ensinado.23

O capitão concluiria a breve denúncia informando sobre a suspeita de que Luís


Mendes de Moraes “judaíza”. Tal relato seria corroborado por uma dezena de testemunhas. O
mercador Bernabé Cardoso, por exemplo, por serviço de Deus e descargo de sua consciência,

Vinha denunçiar de Luis Mendes de Moraes, mercador de logea e morador nesta


mesma cidade, o qual mtas e repetidas vezes, reveste com huñs pannos a hum
mulatinho seu escravo, q poderá ter de idade sete pa outo anos, e lhe ensina a fazer
alguñs (sic) serimonias como se fazem na missa, ajudandolhe o mesmo a missa.24

Era a missa seguida aos moldes tridentinos. O mulatinho pronunciava a consagração e


elevava a hóstia à maneira dos sacerdotes. Ao abençoar com o dominus vobiscum (ou seja, O
Senhor esteja convosco), responderia Luís Mendes algumas vezes que “taobom he o padre
como o Cabrito, outras, tambom cabrão he o pay como o cabrito”25. E isto faria tanto em sua
casa como na de cristãos-velhos, revestindo o mulatinho com diferentes panos entre os quais
uma capa de olhandilha pintada de escarlate que era comumente usada por duquesas. Bernabé
Cardoso completaria a informação ao comissário: “Por ser de tão má opinião, e haver mudado
o nome, pois consta por peçoas qe o conhecem, qe o seu nome era Amaro de Moraes e hoje he
conheçido por Luis Mendes de Moraes e ser cristão-novo e geralmte nesta terra tido por de má
opinião”26. É importante frisar que alterar o nome fora uma estratégia comum entre estes
homens, utilizada, sobretudo, pelos indivíduos condenados ao degredo. Amaro de Moraes
teria sido embarcado do Porto para Angola, na condição de degredado, mas empreendera fuga
nos portos de Pernambuco27.
Contudo, as heresias do tal sujeito não pararam de chegar aos ouvidos dos agentes.
Era corrente que Luís Mendes de Moraes, homem de negócios, viúvo, defendia que a
fornicação não se constituía em pecado. Isto relatara Manuel Moreira Bravo, da mesma
condição matrimonial, quando fora parabenizar o recém-liberto da cadeia de Salvador pela

23
ANTT-TSO, IL Caderno do Promotor 84, 1702-1716.
24
ANTT-TSO, IL Caderno do Promotor 75, 1696-1711.
25
ANTT-TSO, IL Caderno do Promotor 75, 1696-1711.
26
ANTT-TSO, IL Caderno do Promotor 75, 1696-1711.
27
Infelizmente, não se localizou ainda os arquivos processuais de Amaro Mendes em Portugal, nem se sabe o
motivo pelo qual fora sentenciado a degredo.
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soltura (cujo crime foge ao nosso conhecimento). Luís Mendes de Moraes explanaria que
“ums tem por pecado o sexto [mandamento], o que tal não hé nem pode ser”. E explicava, a
partir da interpretação bíblica, por que era desta opinião: “quando Deos fes o mundo e deu a
Ley mandou que houvesse multiplicação”28. A resposta dada por Manuel Bravo deixava claro
a inadmissibilidade daquelas ideias e outras mais, como era pôr em dúvida os milagres
realizados pelos santos e farsa de santo António com o menino Jesus nos braços.
Este retrucara ao delatado: “Meu amigo plo que ouço a vm entendo que vm deve seguir
a ley velha, pois eu sigo a ley nova de Jesus Christo e creyo nos seus santissimos misterios e
na santa Igra catholica”. Além disso, havia de acrescentar à quota dos comissários outras
testemunhas, porque “ouvira elle denunciante a Manoel Garcia de Moura Rolim, e ao capitão
Manoel de Ozeda e Alaya, q o do Luis Mendes de Moraes na prisão em q estava aonde elles
tambem se achavão, proferia o mesmo q já fica dito”29. Assim também o comerciante Bento
Ramos Chaves, casado, morador na freguesia de São Pedro, comentava com Luís Mendes que
os mandamentos que mais ofendiam a Deus eram, em sua opinião, o quinto, o sexto e o
sétimo. Antes de cumprir qualquer outro mandamento, o fiel não deveria matar, adulterar nem
roubar. Ao discordar quanto ao 6º mandamento, Luís Mendes ressaltara que a fornicação
simples não era pecado. Nesse modo, a fornicação envolvia pessoas em estado de solteiras,
mas não constituía defesa do adultério e nem dizia da relação entre parentes. Quanto à
fornicação qualificada, a mais grave das formas, poucos a defenderam no Brasil colonial
(VAINFAS, 1989, p. 66).
Outras proposições recaíam sobre Luís Mendes de Moraes e sobre cristãos-novos de
seu círculo social, como o senhor de engenho Manoel Lopes Henriques, preso em 1706, por
culpas de judaísmo. A casa que lhe pertencia na cidade da Bahia servia, aliás, de acordo com
os denunciantes, de ajuntamento religioso nos dias de Páscoa e Natal30. As queixas contra
Luís Mendes, no entanto, iam além de práticas corriqueiras, assemelhando-se a proposições
sustentadas no Colégio da Companhia. No meio deste bojo, chegava ao conhecimento dos
comissários a ideia de que Cristo havia de ir a Lisboa. E por surpresa descrevia algo raro neste
tipo de fonte, ao apresentar algumas das leituras feitas pelo denunciado. O arrecadador do

28
ANTT-TSO, IL Caderno do Promotor 83, 1710-1716.
29
ANTT-TSO, IL Caderno do Promotor 83, 1710-1716.
30
ANTT-TSO, IL Caderno do Promotor 75, 1696-1711.
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tabaco João António Olores, natural de Galiza e morador na freguesia de São Pedro, contava
ao comissário sobre alguns dos assuntos que tivera com o delatado.
Conversando algúas vezes com Luis Mendes de Moraes, homem notoriamente
christão novo, por rezão de vizinhos, por morarem em huas cazas de Bento Ramos
Chaves, onde hum separado do outro, o qual Luis Mendes lhe deo a ler huns Livros
intitulado Republica gentilica de fr. Hyeronimo Reymão em idioma castelhano,
Torre de Babilonia de Antonio Henriques Gomes, e o Bocarro e depois hya armar
em conversação com elle denunciante metendosse pelas Escrituras Sagradas e
dizendo mto q Deus amava o Povo de Israel, e que a Ley de Moyses mtas naçõens a
seguia per diversos modos; e q o Principe q prometia o Bocarro q havia reinar em
todo o mundo tendo a sua Corte em Lisboa, não podia ser outro senão Christo,
Senhor nosso.31

As presumíveis heresias se acumulavam denúncia após outra. Detalhes surgiam com


vigor nas páginas dos padres notários. Apesar do acesso a impressos e manuscritos passar por
crivos oficiais de diversas ordens no Brasil colônia, inclusive, considerando-se a alfabetização
algo infrequente, parte da população driblava as censuras para ficar de posse deles. Entre os
cristãos-novos da Bahia não ocorreu diferente, pelo que se depreende nos documentos.
Belchior Mendes Correia, morador na Bahia, preso em 1726, na inventariação dos bens
declarou possuir “vários livros espirituais como de comédias” (NOVINSKY, 1976, p. 66). O
dr. Manoel Mendes Monforte, comerciante em grande escala, dono de parte de engenho em
Matoim, no recôncavo, era dono da famosa biblioteca com mais de 200 volumes arrolada no
inventário (NOVINSKY, Idem, p. 202). Talvez constasse nela um livro manuscrito “herético”
do padre João Matheus Falleti32. Infelizmente, apesar de confiscadas, não é dado a apreciar os
títulos nem os autores das demais obras33.
Luís Mendes de Moraes era conhecido por possuir livraria, biblioteca ou estante com
muitos livros, entre pequenos e grandes, impressos e manuscritos. A inexatidão deixa lacunas.
Todavia, felizmente, algumas dessas obras foram registradas, conforme vimos. O livro do frei
31
ANTT-TSO, IL Caderno do Promotor 87, 1716-1719.
32
ANTT-TSO IL Processo de Manoel Mendes Monforte. Proc. núm. 675. O jesuíta italiano Faletti “chegou ao
Brasil em 1681, quando Vieira estava completamente absorvido na redação da Clavis Prophetarum. Não tardou
muito para se deixar contaminar pela efervescência milenarista que parecia ter se alastrado por entre os jesuítas.
Quando morrei, em 1730, Antonil registrou em seu necrológio que deixara um livro em latim em que expunha e
explicava as teses da Clavis de Vieira; intitulava-se De Regno Christi in Terris Consummato/Tractadus, i quo
Regnum Christi Millenarium/Millenariorum Haeresibus... É, portanto, esta a obra que o padre Manoel Lopes de
Carvalho confessou aos inquisidores ter conhecido e na qual teria encontrado aquelas proposições sobre a
iminência do Quinto Império” (ROMEIRO, 2001, p. 150-151).
33
Um exemplo atípico pode ser encontrado no artigo de Adalberto Araújo Júnior, A biblioteca de um cristão-
novo nas Minas de Goiás (2005). Embora se trate de um cristão-novo preso, a fonte utilizada para conhecimento
dos cem livros de José Pinto Ferreira, de jurisprudência portuguesa, literatura, filosofia, foi o processo de
penhora de bens.
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Jerónimo Román y Zamora (1536-1597) é o Repvblicas del mundo, dividido em três partes,
dedicado a Felipe II de Espanha e I de Portugal. Inicialmente fora censurado (1575) e
obrigado de alterar o texto final (1595). O autor tecia uma crítica à ocupação das Índias
Ocidentais (espanholas) e explanava na obra uma tópica de história universal em que narra
esta história através da evolução das práticas religiosas. Quanto à sua “teoria da religião”, o
frei agostino defendia ser inato ao homem ligar-se a Deus e oferecer sacrifícios ao sagrado,
seja pela lei natural, seja pela positiva. A obra apresenta exemplos da necessidade humana à
fagulha divina e, não obstante, pressupunha uma imunidade eclesiástica. Talvez a parte que
mais atraísse a atenção de Luís Mendes de Moraes fora a descrição dos costumes judaicos
contida em Republica Hebrea com a qual fr. Jerónimo Román introduzira a obra.
Em relação a António Enrique Gómez o personagem ia além da obra e declarava ter
uma relação de parentesco com o autor que, nascido em Cuenca (+/-1600) e falecido em
Sevilha (+/-1663), fora reconciliado em efígie pela Inquisição espanhola após uma vida de
fugas. De acordo com alguns críticos, a obra de Enrique Gómez fora revestida pela ortodoxia
católica, mas essencialmente continha elementos de repulsa à Inquisição, ao confisco dos bens
dos condenados, ao modelo que levara as gentes de nação a se dispersarem pelo mundo.34 O
próprio autor utilizara pseudônimos, um deles, Fernando de Zárate (ARTIGAS, 1997). A obra
que Luís Mendes tivera acesso, a Torre de Babilónia, trata do exílio, comum a ele e sua gente
de sangue judeu.
Outras referências conformavam a percepção da realidade de Luís Mendes de Moraes,
refletida através de seus denunciantes em inícios do século XVIII. De que maneira os livros
lhe chegavam às mãos? Haveria um critério para as escolhas? E o mais importante, como os
lia? São questões a serem investigadas mais a fundo. De todo modo, o personagem não
deixava de opinar que as invasões francesas ao Rio de Janeiro (pelo corsário Duguay-Trouin
em 1711) seria o castigo divino pelas prisões que se faziam aos judeus. A “decadência” do
império português era atribuída à ânsia que os Tribunais da Inquisição mantinham em
confiscar os bens de cristãos-novos. Tais bens confiscados serviam para manutenção das
guerras. Ao ouvir que o Príncipe enunciado por Bocarro seria entronado em Lisboa, o cristão-
34
De acordo com Luís Reis Torgal, “a Inquisição era, realmente, para Henriques Gomes uma autêntica obsessão.
Quase em todos os seus escritos ela aparece, velada ou abertamente, referenciada e, naturalmente, criticada de
forma directa ou indirecta. Mesmo certos tipos de personagens que, em boa verdade, o Santo Ofício contribuiu
para criar na sociedade, aparecem constantemente na bibliografia de Henriques Gomes. É o caso do malsín, o
denunciante, figura trágica para os cristãos-novos” (TORGAL, 1981, p. 321).
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velho retrucara que não dissesse tal, “perque aquella sua proposição era desreprovada”. Em
um ponto ambos concordavam, pois era certo que Cristo haveria de vir, mas o galego António
Olores afirmava que

Lisboa não era o Valle de Josafá. E dandolhe os seus Livros se retirou dalli
dizendolhe q qdo Lesse os Livros lhe desse a intelligencia e sentido verdadro. E
declarou mais elle dinunciante, q em hua’ occazião estando conversando com o
denunciado Luis Mendes de Moraes e falando sobre Antonio Cerrão de Castro,
dizendo elle denunciante q era lastima q hum homem de tão grde juízo deliriasse na
fé, respondeo o denunciado q se elle tivesse feito bem ou mal, já teria dado essa
conta á Deos, ao q acudio elle denunciante dizendolhe q hum homem q se apartava
do sentir da Igra Catholica sem duvida cometia erro e obrava mal.35

O comissário João Calmon, que afirmava conhecer o delatado na cidade da Bahia,


solicitava ao Conselho Geral urgência para o caso, mas as respostas não chegavam
satisfatoriamente. Quando a Inquisição resolvera proceder com a prisão de Luís Mendes de
Moraes, antes chamado Amaro de Moraes, este já havia falecido.
No reinado de d. João V a Inquisição voltaria a atenção para o Brasil. Apesar de ser
promissora a decaída dos autos da fé após o interregno das ações do Santo Ofício junto ao
papado, estas cerimônias tiveram uma súbita reativação e, “entre 1707 e 1750, houve 28 autos
públicos e 341 particulares em Lisboa, 19 públicos e 121 particulares em Coimbra, e em
Évora a relação foi de 18 para 65. Na segunda metade de Setecentos, acabaram por
desaparecer da vista da população” (MARCOCCI; PAIVA, 2013, 263). Festividades de
natureza agregadora e hierarquizante seriam concebidas com frequência. A pomposa
celebração do Corpus Christi ocorrida em Lisboa, em junho de 1719, conforme bem
descreveu Giuseppina Raggi, atesta a “transfiguração imagética do projecto político-religioso
de afirmação e exaltação da monarquia portuguesa que caracterizou a primeira metade do
reinado de D. João V” (RAGGI, 2014, p. 109). A autora deixa de comentar, todavia, sobre o
intenso trânsito de pessoas em direção às Minas e a região como fonte colossal das receitas
monárquicas. Em inícios do século XVIII, na América portuguesa, se dilataria paralelamente
o disciplinamento religioso. No período 1701-20, o Rio de Janeiro fornecera ao Tribunal de
Lisboa cerca de 260 prisioneiros; na década de 1721-30 os réus comporiam a cifra de quarenta
e seis (CALAINHO; VAINFAS, 2016, p. 285). No primeiro quartel na Bahia é mantido o
perfil étnico e as sentenças são de 21 pessoas, sendo que no quartel seguinte 56 pessoas

35
ANTT-TSO, IL Caderno do Promotor 87, 1716-1719.
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tornar-se-iam réus na Inquisição (SOUZA, 2014a, p. 143). A estimativa depreende dos


moradores e/ou assistentes nas capitanias. Na verdade, se os números forem de interesse, o
Brasil colonial teve na primeira metade do século XVIII o ponto fulcral das prisões: 344
homens e 211 mulheres, 51,58% do total dos acusados – notabilizando os de origem cristã-
nova (NOVINSKY, 2009, p. 31).
A pluralidade que representou o fenômeno cristão-novo fica evidente na análise da
documentação. Personagens como os aqui apresentados e tantos outros, naturais de partes
diversas e residentes na cidade da Bahia, seu recôncavo e sertões, processados ou fugitivos
das malhas da Inquisição, demonstram, embora fragmentariamente, um estatuto religioso no
qual a Bahia estava inserida em inícios do século XVIII. Toda multiplicidade de crenças não
podia depender apenas da sobrevivência, conforme afirma Laura de Mello e Souza em obra
fundamental para o estudo das religiosidades no Brasil colonial. “Era, portanto, vivência”
(SOUZA, 2014b, p. 135). Sem sinagoga, sem culto, sem ensino da Torá, a economia do
sistema religioso resguardara o essencial e se reelaborara. Todavia, sem dúvida, a Igreja
portuguesa daria respostas ao molde do Concílio de Trento, como evidenciam a promulgação
das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia por d. Sebastião Monteiro da Vide em
1707 e a tradução de obras antijudaicas, como a Sinagoga desenganada, escrita pelo jesuíta
italiano Giovanni Pinamonti, traduzida pelo colega Antonil em 1720 e impressa por ordem do
arcebispo da Bahia.

FONTES

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ANTT-TSO, IL Caderno do Promotor 83, Portugal, Lisboa, 1710-1716.
ANTT-TSO, IL Caderno do Promotor 84, Portugal, Lisboa, 1702-1716.
ANTT-TSO, IL Caderno do Promotor 87, Portugal, Lisboa,1716-1719.
ANTT Paróquia da Sé, Lisboa, Registro de batismos, Livro de registro de batismos, Cx. 4,
Liv. B8, Portugal, Lisboa, 1707-1719.
ANTT–TSO, IL Processo de Ana Bernal de Miranda (I). Proc. núm 2424, Portugal, Lisboa,
1726-1731.
ANTT-TSO, IL Processo de Diogo Rodrigues. Proc. núm. 5336, Portugal, Lisboa, 1712-
1713.
ANTT-TSO, IL Processo de Manoel Lopes de Carvalho. Proc. núm. 9255, Portugal, Lisboa,
1723-1726.
ANTT-TSO IL Processo de Manoel Mendes Monforte. Proc. núm. 675, Lisboa, Portugal,
1711-1723.

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ANTT-TSO, IL Processo de Maria Bernal de Miranda. Proc. núm. 1820, Portugal, Lisboa,
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Jerry Falwell e o livro "Listen, América!": O renascimento moral dos Estados Unidos

Alexandre Guilherme da Cruz Alves Junior36

Resumo: O presente trabalho tem por objetivo analisar a obra Listen, America!: The
conservative blueprint for America´s moral rebirth, publicada em 1980 pelo pastor Batista e
Fundamentalista Jerry Falwell. Embora Falwell seja autor de mais de 20 obras, o livro Listen,
America é bastante relevante para compreendermos a aproximação e o apoio dos
Fundamentalistas Cristãos ao então candidato do partido republicano, Ronald Reagan, à
presidência dos Estados Unidos, e a relação que Falwell estabelece entre as práticas
econômicas neoliberais e diversas passagens bíblicas. Vale ressaltar que a obra foi publicada
alguns meses após Jerry Falwell assumir a liderança do grupo político conservador Moral
Majority (assumindo uma postura ativa no contexto político-institucional nos anos 1980) e 10
meses antes da eleição presidencial nos Estados Unidos, tornando-se um interessante ponto de
partida para compreendemos o atual engajamento político de grupos fundamentalistas cristãos
naquele país.
Palavras-chave: Estados Unidos; Fundamentalismo Cristão; Jerry Falwell

Jerry Falwell and the book “Listen, América”: The rebirth of the United States

Abstract: This work aims to analyze the book Listen, America !: The conservative blueprint
for America's moral rebirth, published in 1980 by the Fundamentalist Pastor Jerry Falwell.
Although Falwell published more than 20 books, Listen, America is relevant to understand the
approach and support of Christian Fundamentalists to the Republican candidate, Ronald
Reagan, to the presidency of the United States, and the relationship Falwell established
between neoliberal economic practices and various biblical passages. The book was published
a few months after Jerry Falwell assumed the leadership of the conservative political group
Moral Majority (assuming an active stance in the political-institutional context in the 1980s)
and 10 months before the presidential election in the United States, becoming na interesting
starting point to understand the current political engagement of Fundamentalist Christian
groups in that country.
Keywords: United States; Christian Fundamentalism; Jerry Falwell

Introdução:

Em 15 de maio de 2007, o pastor batista e televangelista, Jerry Falwell, foi encontrado


morto, aos 73 anos, em seu escritório na Universidade Liberty, localizada na cidade de
Lynchburg, Virgínia. Uma parada cardíaca, anunciada à imprensa poucas horas depois, pelo

36
Bacharel e Licenciado em História pela Universidade Federal Fluminense (2005). Mestre em História pelo
Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal Fluminense (2009) e Doutor em História
((2015) pelo mesmo Programa. Atualmente é Professor de História da América na Universidade Federal do
Amapá / Campus Binacional do Oiapoque e integra o corpo docente do Mestrado Profissional em História
(PROFHISTÓRIA) - UNIFAP. Email: alexandrecruzunifap@gmail.com
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vice-presidente da instituição, Ronald Godwin, calou uma das vozes mais proeminentes do
cenário político e religioso norte-americano durante mais de 40 anos.
Rapidamente, a notícia de sua morte ganhou as primeiras páginas da imprensa local e
internacional. Uma multiplicidade de vozes veio a público repercutir o significado e o legado
desse personagem para a sociedade norte-americana, compondo um conjunto de discursos
contraditórios; por vezes, lamentando profundamente o falecimento do pastor batista,
considerado um defensor fervoroso e obstinado dos valores cristãos e da nação e, por outras
vezes, os discursos sublinhavam um lado preconceituoso, hipócrita e conservador, do mesmo
homem.
O jornalista Max Blumenthal, crítico do radicalismo religioso cristão, publicou no
periódico The Nation, um dia após a morte de Falwell, o artigo intitulado: Agent of
Intolerance, descrevendo os eventos mais controversos de sua vida pública. Blumenthal
recuperou algumas das últimas declarações polêmicas de Falwell no cenário político e social
norte-americano: como acusar o personagem Tinky Winky, dos Teletubbies, de ser
homossexual em 1999 e, após os atentados terroristas de 2001 nos Estados Unidos, declarar
que vários grupos liberais no interior do país haviam ajudado, de certa forma, os atentados a
ocorrerem.
Esta última declaração polêmica foi dada ao também pastor televangelista, Pat
Robertson, durante o programa de televisão, The 700 Club, dias após os atentados terroristas
de 11 de setembro de 2001. Falwell, defendendo uma nação orientada pelas leis do
cristianismo, acusou os ateus, os defensores do direito ao aborto, as feministas, os gays e
lésbicas e o grupo People for the American Way de enfraquecerem moralmente e
espiritualmente o país, posto que ao buscarem secularizar os Estados Unidos, tinham afastado
a proteção de Deus.
Entretanto, embora fosse uma figura que estimulasse e se alimentasse da polarização
entre os diferentes valores presentes no interior da sociedade norte-americana, Jerry Falwell
foi um personagem complexo, capaz de receber elogios inclusive de representantes de
movimentos sociais contrários ao seu discurso conservador e religioso.
Hans Johnson, presidente da instituição Progressive Victory e William Eskridge,
professor da Yale Law School, ambos ativistas e defensores do casamento igualitário,
assinaram um interessante artigo no jornal Washington Post, onde narraram um encontro que

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tiveram com o pastor: “Como muitas pessoas gays que interagiram com ele, ficamos
impressionados com sua bondade e carinho”37. Após elencar diversos momentos em que
Falwell atacou publicamente o movimento gay, dentre outros grupos minoritários, o artigo
evitou reproduzir uma visão simplista e polarizada da sociedade norte-americana, e
apresentou um olhar mais sofisticado sobre a atuação pública de Falwell, indicando inclusive
que, indiretamente, prestou serviços às causas das minorias:

Ao falar sobre os gays como outsiders, e até mesmo como transmissores de doenças,
[Falwell] forçou muitos cristãos a olharem honestamente para suas congregações e
reexaminar a premissa de sua fé. Ao moldar gays como ameaças à sobrevivência das
famílias, obrigou pais, irmãos e parentes de todos os tipos a reavaliar os valores que
os unem e como eles cuidam uns dos outros. Ao acercar-se da lei, especialmente
sobre privacidade e direitos civis, como um campo de batalha para visões
conflitantes de justiça, ele incitou uma geração de estudiosos e ativistas a não
falarem simplesmente em termos de precedentes e direitos, porém de modo mais
persuasivo em termos de consciência, moralidade e justiça.38

Embora Falwell tivesse ao longo de sua vida construído uma retórica agressiva com
relação às praticas homossexuais, era respeitado por algumas figuras públicas conhecidas
justamente por lutarem pelo fim da discriminação. Talvez um dos casos mais emblemáticos
dessa relação complexa foi ter trabalhado durante mais de 15 anos com o reverendo Mel
White, que escrevia discursos para Falwell, assim como para outros atores proeminentes da
direita cristã norte-americana, como Billy Graham e Pat Robertson. Mel White, após ter se
casado com uma mulher e ter filhos, afirmou ter tentado durante décadas evitar relações
homoafetivas. Porém, em 1994, assumiu publicamente não ter conseguido a “cura” gay, e
passou a atuar como pastor na Metropolitan Community Church, também conhecida como
Universal Fellowship of Metropolitan Community Churches (UFMCC), que luta pelo
casamento igualitário e possui um forte apelo por justiça social.

37
JOHNSON, Hans. ESKRIDGE, William. The Legacy of Falwell's Bully Pulpit. (In) Washington Post. 19 mai.
2007.
38
Idem. No original: “By speaking about gay people as outsiders, and even as disease-bearing strangers, he
forced many Christians to look honestly at their congregations and reexamine the premise of their faith. By
casting gays as threats to the survival of families, he forced parents, siblings and relatives of all kinds to
reassess what values bind them together and how they care for one another. By approaching the law, especially
in privacy and civil rights, as a battleground for competing visions of righteousness, he goaded a generation of
scholars and activists to talk not simply in terms of precedents and entitlements but ever more persuasively in
terms of conscience, morality and fairness.”
21
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Logo após o anúncio da morte de Falwell, Christopher Hitchens39, um famoso ateísta


norte-americano, deu uma polêmica entrevista ao jornalista Anderson Cooper na rede de
televisão CNN, onde não poupou críticas à figura pública de Falwell, acusando-o de semear o
medo e o ódio nas crianças ao ameaçá-las com o castigo do inferno, caso não seguissem uma
interpretação literal da Bíblia. Para Hicthens, Falwell foi uma completa fraude, um pastor
“nonsense”, que teria prestado, na verdade, um grande desserviço aos Estados Unidos.40
Por outro lado, entendemos Jerry Falwell como uma figura muito mais complexa do
que uma simples fraude, ou um pastor oportunista. Como afirmou Mark Joseph, produtor
ligado a grupos conservadores nos Estados Unidos, dependendo de quem escrevesse o
obituário de Falwell, ele poderia ser descrito como o salvador da “civilização” norte-
americana ou como o próprio demônio na Terra.41
Para Joseph, em pelo menos três pontos todos os norte-americanos,
independentemente de orientação religiosa ou política, deveriam concordar com relação ao
legado do pastor Jerry Falwell: o estimulo à participação eleitoral, o abandono do
segregacionismo nas Igrejas norte-americanas e a coragem de lutar por seus ideais mesmo
correndo o risco de tornar-se extremamente impopular.42
De fato, Jerry Falwell foi uma figura polêmica e controversa até o fim. Durante o seu
funeral, realizado na Thomas Road Baptist Church, congregação que havia fundado 51 anos
antes, um séquito de admiradores formou uma enorme fila para a última homenagem. O
funeral contou com a participação de importantes figuras ligadas ao conservadorismo
religioso norte-americano, como os pastores Pat Robertson, Jery Vines e Billy Graham Jr, este
último, nomeado por Jerry Falwell como orador de seu funeral. Embora o então presidente
George W Bush e os pré-candidatos republicanos à presidência dos Estados Unidos não
tenham podido estar presentes, diversos políticos ligados ao partido republicano
compareceram, como o então governador da Virgínia, Bill Bolling, e o senador federal,
George Allen.43

39
Hitchens (1949 – 2011) é considerado um dos mais proeminentes expoentes do ateísmo moderno. Juntamente
como com Richard Dawkins, Sam Harris e Daniel Dannet, compõe o chamado quatro Cavaleiros do Ateísmo.
Em diversos momentos Hicthens reafirmou sua fé nos preceitos do iluminismo. Possui uma vasta obra literária
não ficcional, além de produzir filmes e documentários na afirmação de suas convicções contra as religiões.
40
Disponível em : http://www.youtube.com/watch?v=52yTqMcwuQE Acessado em: 19 de maio de 2013.
41
Disponível em: http://www.foxnews.com/story/0,2933,274817,00.html Acessado em 30 de junho de 2012.
42
Idem.
43
Disponível em: http://hamptonroads.com/node/270431
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Entre Damasco e Casa Branca: a aliança com o partido Republicano


Segundo Eric Foner (1999), a vitória do republicano Ronald Reagan em 1980 foi
construída por uma coalizão “poliglota” de forças, abarcando intelectuais filiados ao velho e
ao novo conservadorismo, famílias suburbanas da SunBelt, trabalhadores católicos, defensores
da economia liberal e evangélicos conservadores. Na teoria, o que uniu estes grupos sociais
em torno da candidatura Reagan foi o vislumbre de tentar restaurar o que consideravam
valores tradicionais da sociedade norte-americana e impulsionar a econômica do país, que
teriam sido “atacados” pela contracultura e pelo movimento dos direitos civis a partir dos
anos 1960.

Os movimentos sociais e políticos dessa década partiram da denúncia da perversão


dos princípios morais em que assentava a nação, constituindo uma crítica da
identidade nacional e da participação dos Estados Unidos no mundo. A rejeição e a
crítica ao status quo, que já vinha sendo feita pela contracultura desde o final dos
anos 1950, explode nos primeiros anos da década de 1960 pela voz de artistas,
hippies, mulheres, negros e jovens. (AZEVEDO, 2007, p.39)

A conjuntura política e econômica dos Estados Unidos, nos anos 1970 e 1980, criou
um terreno ideal para a expansão de vozes políticas conservadoras. A crise econômica em
final dos anos 1970 gerou fortes críticas às práticas econômicas do Welfare44 em diferentes
setores da sociedade norte-americana. Somado a este contexto, percebemos uma aparente
desarticulação de vários grupos originados no seio do movimento pelos direitos civis, abrindo
caminho para o surgimento de fortes críticas aos resultados das lutas mais progressistas dos
anos 1960.
Em maio de 1979, um grupo de políticos conservadores visitou Falwell em
Lynchburg, com o intuito de recrutá-lo para o projeto de liderar o grupo político Moral

44
“O termo Welfare State (Estado de Bem-Estar Social) é oriundo da Grã-Bretanha e geralmente associado ao
período posterior à Segunda Guerra Mundial e a um tipo de Estado que não teria como premissas maiores a
defesa da propriedade privada, nem a edificação de potências militares, mas sim a preocupação com o combate
‘a escassez, a doença, a ignorância, a miséria e a ociosidade’” Ver: SANTOS, Leila Borges. NETO, Arnaldo
Bastos S. Reflexões em Torno à Crise do Estado de Bem-Estar Social. (in) R. Fac. Dir. UFG, V. 32, n. 1, p. 61-
75, jan. /jun. 2008. p.63 Nos Estados Unidos, após a crise de 1929, o governo de Franklin Delano Roosevelt
empreendeu uma importante reforma econômica nos anos 1930 e 1940, onde percebe-se uma maior intervenção
do estado na economia e na relação entre mercado e trabalho. Neste sentido, houve um abandono das práticas
econômicas do liberalismo clássico e uma maior participação do governo nos fluxos da econômia norte-
americana, garantindo assim direitos trabalhistas importantes, como por exemplo, o seguro desemprego. Para
muitos autores, os limites do welfare state já podiam ser sentidos desde os anos 1950, mas será nos anos 1970
que este modelo de desenvolvimento entrará numa profunda crise, dando espaço para novas teorias
econômicas, como o neoliberalismo.
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Majority45. Jerry Falwell, na verdade, era a segunda opção, o pastor Pat Robertson, a primeira,
havia negado assumir a liderança do novo grupo político.
O encontro foi organizado por Robert Billing, que anteriormente havia dirigido a
National Christian Action Coalition. Fizeram parte das conversas ainda Ed McAteer, líder da
Religious Roundtable, e os intelectuais conservadores e estrategistas políticos, Howard
Phillips e Paul Weyrich. Na verdade, Falwell, no primeiro momento, não se sentiu confortável
em representar a síntese entre política e religião, repetindo a postura de Pat Robertson.
Entretanto, acabou sendo convencido por Weyrich, após analisar uma pesquisa nacional onde
a maioria dos eleitores via positivamente tal combinação. (WINTERS, 2012)
De fato, como afirma Hale (2011), em meados nos anos 70, Falwell já dava claros
sinais, através de sermões, que estava disposto a intervir politicamente. Ou seja, o convite
para liderar a Moral Majority, não seu deu apenas pela sua popularidade, mas também a uma
predisposição anterior.
Fundada em 06 de junho de 1979, apenas um mês após a primeira reunião, o que
sugere que já havia uma estrutura prévia alinhavada, a Moral Majority se definiu como uma
instituição pró-família tradicional, pró-vida e pró-Israel, colocando-se publicamente contra o
casamento gay, o aborto e o divórcio. Alguns analistas apontam que dois terços dos cristãos
brancos sulistas que votaram em Ronald Reagan nas eleições de 1980 tinham ligações com o
grupo.46
Embora seus integrantes não fossem necessariamente todos Fundamentalistas Cristãos,
os membros da Moral Majority tinham uma agenda moral e social convergente. Acreditavam
que a verdadeira “América” era conservadora e cristã, e que naquele momento era necessário
defendê-la, pois estava sendo desfigurada por setores do governo federal e da mídia norte-
americana, que impunham práticas e hábitos seculares e humanistas.47
Jerry Falwell foi duramente criticado por outros líderes cristãos conservadores, como o
pastor Billy Graham, por opinar através de seus sermões em assuntos políticos que não
envolviam diretamente uma agenda moral religiosa. Ou seja, mesmo entre importantes figuras

45
Maioria Moral.
46
DIGGINS, John Patrick. Ronald Reagan: fate, freedom, and the making of history. New York/London: W W
Norton, 2007.
47
SMOLLA, Rodney A. Jerry Falwell v. Larry Flynt: the first amendment on trial. New York, St. Martin Press,
1988.
24
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do conservadorismo religioso, a recém associação de Jerry Falwell entre política e religião,


através da ação institucional, era polêmica.
Entretanto, para entendermos a tomada de decisão de Jerry Falwell em entrar
diretamente na arena política, alterando uma perspectiva comum aos pastores
fundamentalistas de manter distância do debate político pela via institucional, faz-se
necessário conjugar dois fenômenos sociais que foram se constituindo em paralelo: as leis
progressistas advindas dos movimentos pelos direitos civis e a expansão econômica do
Sunbelt.
Poderíamos citar como importantes leis progressistas, consideradas como um avanço
do secularismo nos Estados Unidos pelos fundamentalistas, as decisões da Suprema Corte no
caso Brown vs. Board of Education, em 1954, e no caso Abington School District vs.
Schempp, em 1963, quando foram declarados inconstitucionais, respectivamente, a
segregação racial e a oração em escolas públicas feita por professores em horário escolar48,
além da legalização do aborto, em 1973.
A crítica fundamentalista ao intervencionismo do governo em suas escolas privadas
encontrou eco no pensamento neoconservador, que também se opunha ao excesso de poder do
governo federal. Embora a crítica religiosa e política tivessem origens diferentes, moral e
econômica, respectivamente, os fatores econômicos também assombravam os
fundamentalistas, posto que a intervenção governamental geraria mais custos, e, como vimos
anteriormente, os aspectos religiosos e morais não eram negligenciados pelos
neoconservadores.

O Renascimento dos Estados Unidos através da obra Listen, America!


Embora questões de cunho moral fossem frequentemente apontadas como as razões
para a construção do grupo político Moral Majority, em seu livro, Listen, America!: The
conservative blueprint for america´s moral rebirth49, publicado em 1980, Jerry Falwell
dedicou todo o primeiro capítulo a discutir os aspectos econômicos dos Estados Unidos e a
Guerra Fria.

48
Para saber mais sobre as disputas entre a Suprema Corte e as Escolas Privadas Cristãs, ver: DEVINS, Neal.
State Regulation of Christian Schools. (in) William & Mary Law School Scholarship Repository, 1983.
Disponível em: http://scholarship.law.wm.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1456&context=facpubs
49
Grifos nossos.
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No primeiro capítulo, intitulado Liberty – Will we keep it?, Falwell critica a política do
welfare state e faz uma importante defesa dos projetos econômicos de Margaret Thatcher na
Grã-Bretanha.
Até os primeiros dias deste século foi amplamente reconhecido que igrejas e outras
instituições privadas tinham a responsabilidade principal, não apenas com relação à
educação, mas também com os cuidados de saúde e de caridade. O caminho para
derrotar o assistencialismo na América é, para aqueles que desejam ver a lei de Deus
restaurada no nosso país, ofertar [doações] totalmente a organizações que removam
do governo as tarefas que são tratadas mais apropriadamente por instituições
religiosas e privadas. [...] A primeira-ministra Margaret Thacher está fazendo
movimentos ousados para restaurar a Grã-Bretanha. Ela afirmou que o socialismo
aumenta o poder do Estado e que este aumento de poder não produz nem riqueza,
nem mais liberdade, mas o inverso. (FALWELL, 1980, p. 11-24)

Temas como família, homossexualidade, pornografia e educação, aparecem apenas no


segundo capítulo, intitulado Morality – The Deciding Factor. Neste sentido, Falwell
demonstra como a retórica fundamentalista cristã, majoritariamente direcionada para a
preservação de valores morais tradicionais, incorporou os pressupostos do neoliberalismo. As
teorias neoliberais de defesa do estado mínimo e da livre empresa passaram a encontrar
justificativas em passagens bíblicas, de acordo com a interpretação da Direita Cristã. Citando
o 3º.capítulo do livro II Tessalonicenses, Falwell encontra nas palavras de Paulo de Tarso, a
justificativa para atacar os programas assistencialistas do governo norte-americano:
Intimando-vos irmãos, em nome de nosso senhor Jesus Cristo, que eviteis a
convivência de todo irmão que leve vida ociosa e contrária à tradição que de nós
tendes recebido. Sabeis perfeitamente o que deveis fazer para nos imitar. Não temos
vivido entre vós desregradamente, nem temos comido de graça o pão de ninguém.
Mas, com trabalho e fadiga, labutamos noite e dia, para não sermos pesados a
nenhum de vós. Não porque não tivéssemos poder para isso, mas foi para vos
oferecer em nós mesmos um exemplo a imitar. Aliás, quando estávamos convosco,
dizíamos formalmente: Quem não quiser trabalhar não tem o direito de comer.
Entretanto, soubemos que entre vós há alguns desordeiros, que não trabalham, e são
intrometidos. A esses indivíduos ordenamos e exortamos a que se dediquem
tranquilamente ao trabalho para merecerem ganhar o que comer. Vós, irmãos, não
vos canseis de fazer o bem. (FALWELL, Op.Cit. p.28)

Falwell complementa esta passagem bíblica afirmando: “quando o governo se


preocupa com seu povo, por que seu povo deveria se preocupar consigo mesmo? ”
(FALWELL, Op. cit. p.64)
Após tratar do que considera os pecados intrínsecos dos Estados Unidos Falwell volta
a sua atenção para o perigo externo: a União Soviética e o comunismo. Para o pastor, os
norte-americanos estavam apáticos diante do comunismo, ignorando as ameaças vindas de

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Moscou e, principalmente, esquecendo os missionários norte-americanos que perderam suas


vidas fundando hospitais e levando a palavra de Jesus para regiões de conflito, como a
Indochina. Acreditando ter descoberto o modus operandi soviético, Falwell defendeu maiores
investimentos na indústria bélica norte-americana, pois segundo o pastor, a URSS, antes de
invadir um país, aguardava o seu enfraquecimento militar e o aumento de sua corrupção
moral.
Jerry Falwell era adepto da teoria do Dominó, e passou a denunciar publicamente a
invasão e expansão comunista na América Latina. Após a revolução Sandinista na Nicarágua
em 1978, capitaneada pela Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN), o governo
Reagan passou a financiar os grupos contrarrevolucionários, denominados “Contras”. Entre as
alas conservadores norte-americanas havia o medo da influência soviética na América Latina
e Caribe.
Como afirma Winters (2012), Falwell foi escolhido como porta voz do governo para
denunciar o avanço do comunismo na América Central, e dessa forma, justificar a intervenção
militar dos Estados Unidos. O pastor batista então pediu “permissão” ao presidente Ronald
Reagan para gravar um documentário com os refugiados nicaraguenses em El Salvador.
Em setembro de 1983, Falwell e sua equipe viajaram para aquele país em seu avião
particular. O mais interessante é que Falwell não permaneceu nem 8 horas em solo
salvadorenho, visitou apenas 1 dos 89 campos conhecidos de refugiados, mas retornou aos
Estados Unidos com um “raio X completo da iminente expansão comunista na região”,
exortando o Congresso norte-americano a permitir que o presidente Reagan enviasse mais
armas ao exército salvadorenho e continuasse a ajudar os Contras na Nicarágua.
Entretanto, a operação retórica de Falwell em vincular passagens bíblicas com os
valores do liberalismo econômico e com o incremento da indústria bélica norte-americana,
para fazer frente à ameaça comunista, não pode ser atribuída simplesmente a um acordo tácito
com os neoconservadores. Jerry Falwell expandiu a sua Igreja justamente numa região onde
os valores neoliberais e a indústria bélica floresciam. Sua cidade natal, Lynchburg, sofreu
uma importante modificação em sua estrutura demográfica e econômica a partir dos anos
1950, com a chegada de duas poderosas indústrias à região. Em 1955, a Babcok & Wilcox
(B&W) e a General Eletric (GE) instalaram na cidade centros de produção de reatores
nucleares e rádio. A abertura de novas vagas de emprego e o crescimento econômico da

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região alterou o perfil social de Lynchburg. A modesta cidade rural na primeira metade do
século XX transformou-se num centro econômico vibrante, com a expansão dos subúrbios,
lojas de departamento e bancos.
Como afirma Williams (2010), os novos trabalhadores brancos que chegaram à cidade
em busca de empregos, desenvolveram um forte sentimento de fé na industrialização, na
possibilidade de crescimento econômico através do trabalho árduo e no comprometimento
com os gastos nacionais cada vez mais elevados na produção de armas e tecnologias, visando
garantir a defesa nacional no contexto da Guerra Fria.
Neste sentido, o público de Jerry Falwell também mudou, passando de uma maioria
branca, pobre e segregacionistas, para uma maioria formada por brancos da classe média com
um pensamento social diferente. O pastor começou a distanciar-se da política segregacionista
e aproximar-se em direção ao conservadorismo da Sunbelt, que estava mais alinhado com os
interesses do partido Republicano de sua cidade.
Esta percepção de Falwell gerou um grande aumento da receita da TRBC, passando de
5 milhões anuais em 1973, para 50 milhões de 1976. Na prática, a suavização do discurso
segregacionista de Falwell, contribuiu para uma abertura maior de diálogo com outras
denominações evangélicas, e mesmo com outras religiões, como o catolicismo e o judaísmo,
enquanto alinhavam-se cada vez mais ao partido Republicano. Em 1976, enquanto vários
pastores batistas do sul dos Estados Unidos apoiaram a candidatura à presidência do
democrata Jimmy Carter, Falwell apoiou a candidatura do então presidente republicano
Gerald Ford.
Jerry Falwell iniciou assim uma aliança com o partido Republicano que alcançaria seu
auge durante as duas administrações de Ronald Reagan nos anos 1980, quando se tornou o
líder da Moral Majority e um dos personagens religiosos mais proeminente dos Estados
Unidos no final do século XX.

Referências Bibliográficas
AZEVEDO, Cecília. Em Nome da América: Os Corpos da Paz no Brasil. São Paulo:
Alameda, 2007.

FALWELL, Jerry. Listen, America. New York: Doubleday, 1980.

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HALE, Grace Elizabeth. A Nation of Outsiders: How the white middle class fell in love with
rebellion in postwar America. Oxford University Press: New York, 2011.

WILLIAMS, Daniel K. Jerry Falwell´s Sunbelt Politics: The regional origins of the Moral
Majority. (in) The Journal of Policy History. Vol. 22 No.2, 2010.

WINTERS, Michael Sean. God´s Right Hand: How Jerry Falwell made God a republican
and baptized the American right. New York: Harper One, 2012.

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O cristianismo e as crenças “pagãs” em “As brumas de Avalon” por Marion Zimmer


Bradley

Ana Carolina Lamosa Paes (LERR/UEM)50


Orientadora: Prof.ª Dr.ª Vanda Fortuna Serafim

Resumo: A presente comunicação tem por objetivo analisar as representações do cristianismo


e dos cristãos na obra As brumas de Avalon (1982), nos volumes: “A senhora da magia” e “A
grande rainha”, de Marion Zimmer Bradley. As narrativas em questão evidenciam o embate
cotidiano entre a fé cristã e o culto “pagão”, nas figuras de Gwenhwyfar, esposa cristã do rei
Artur da Bretanha, e Morgana, sacerdotisa de Avalon e seguidora da Deusa. Importante
salientar que Bradley foi ligada ao Centro para Religião Não Tradicional (PINHEIRO, 2011),
o que pode ter influenciado nas categorizações das personagens em questão. Com isso,
pretendemos articular o contexto no qual a autora está inserida e a narrativa escrita acerca do
cristianismo. Para tal, utilizaremos como aporte teórico o conceito de “representação” e “lugar
social” de Roger Chartier (1991) e Michel de Certeau (1982), respectivamente.
Palavras-chave: As brumas de Avalon; Cristianismo e Paganismo; História das Religiões.

Christianity and beliefs “pagan” in “The Mists of Avalon” by Marion Zimmer Bradley

Abstract: His article intends to analyze the images of Christianity and Christians in the works
of Marion Zimmer Bradley, The Mists of Avalon (1982), in the volumes: “The Mistress of
Magic” and “The High Queen”. The narratives in question evidence the daily clash between
of the Christian faith and the “pagan” worship in the figures of Gwenhwyfar, Christian wife
of King Arthur of Brittany, and Morgana, priestess of Avalon and follower of the Goddess. It
is important to point that Bradley was linked to the Center for Non-Traditional Religion
(PINHEIRO, 2011), which may have influenced the categorizations of the characters in
question. Therefore, we intend to articulate the context in which the author is inserted and the
written narrative about Christianity. For this, we will use as theoretical contribution the
concept of “representation” by Roger Chartier (1991) and “social place” by Michel de Certeau
(1982).
Keywords: Christianity and Paganism; History of Religion; The mists of Avalon.

Introdução
O presente artigo tem por objetivo analisar as representações do cristianismo e dos
cristãos na obra de Marion Zimmer Bradley As brumas de Avalon (1982), nos volumes: “A
senhora da magia” e “A grande rainha”. Tais narrativas trazem consigo diversas
possibilidades de abordagem, no que se refere à questão do embate entre a fé cristã e o culto
“pagão”. O conflito indicado é evidenciado em toda a trama da narrativa e se personifica nas

50
Graduanda em História pela Universidade Estadual de Maringá. Membro do Laboratório de Estudos em
Religiões e Religiosidades (LERR).
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figuras de Gwenhwyfar, esposa cristã do rei Artur da Bretanha, e Morgana, sacerdotisa de


Avalon e seguidora da Deusa.
A obra The Mists of Avalon foi escrita em 1979 por Marion Zimmer Bradley e
publicada em 1982 numa versão de volume único, pela editora estadunidense Alfred A.
Knopf. Esta foi a única versão total em apenas um exemplar, sendo os subsequentes divididos
em volumes, totalizando quatro. A obra no Brasil foi traduzida como As Brumas de Avalon
sendo os três primeiros volumes traduzidos por Waltensir Dutra e o quarto por Marco Aurelio
P. Casarino, difundido numa coletânea de quatro volumes pela editora Imago.
Considerando a categoria de “Lugar Social”, Certeau (1982) entende que a História se
articula com um lugar de produção socioeconômico, político e cultural. E é em função deste
lugar que se delineia uma topografia de interesses. Nesse sentido, compreender como Bradley
“representa” (CHARTIER, 1991) as práticas religiosas em sua obra literária, pressupõe
compreender que a organização da história é relativa a um lugar e a um tempo, e isso se deve,
inicialmente, às suas técnicas de produção, uma vez que cada sociedade se pensa
historicamente com os instrumentos que lhe são próprios. (CERTEAU, 1982)
É de grande importância salientar que Bradley demonstrava interesse por expressões
religiosas não tradicionais, e posteriormente esteve ligada ao Centro para Religião Não
Tradicional (PINHEIRO, 2011), o que pode ter influenciado na composição das personagens
aqui colocadas em questão. Objetivamos, portanto, articular o contexto histórico da autora e
sua narrativa acerca do cristianismo. Para tanto, buscaremos operacionalizar os conceitos de
“representação” de Roger Chartier (1991) e “lugar social” de Michel de Certeau (1982).

Bradley e as influências mágicas


Existe alguma dificuldade em construir a biografia da autora, sendo que estas
informações apresentadas foram coletadas de sites, reportagens, entrevistas e poucos trabalhos
acadêmicos que buscaram uma investigação mais profunda, mas que fornecem apenas dados
pontuais, sem muitos detalhes.
Marion Eleanor Zimmer Bradley, autora do romance, nasceu em 3 de junho de 1930,
em Albany, capital do Estado de Nova Iorque. Sua infância se dá logo durante a grande
depressão econômica, após 1929, o que a faz crescer num lar bastante humilde. Ao completar
16 anos, Bradley ganha de sua mãe como presente de aniversário sua primeira máquina de

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escrever, presente este que tem o intuito de fazê-la seguir a profissão de secretária e, a partir
daí ela exercita o ato e o hábito da escrita em pequenos contos. Mesmo com as dificuldades
enfrentadas por sua família, ela conseguiu concluir o colégio em 1946, começando a
frequentar, logo em seguida, a New York State College for Teachers, em Albany, onde se
formou em 1949. (PINHEIRO, 2009)
Posteriormente, em 1964, ela completou um bacharelado em inglês e espanhol na
Hardin Simmons University, no Texas, e também estudou psicologia na University of
California, em Berkeley, entre os anos de 1966 e 1967. Bradley acreditava que deveria ter
saberes de diversos campos do conhecimento, a fim de fomentar seu trabalho como escritora,
e para tanto buscou estudar, além de psicologia, parapsicologia, mitologia e religiões.
(PINHEIRO, 2009)
Durante muito tempo escreveu literatura de fácil tiragem, vendendo livros de conteúdo
erótico e romances de ficção científica para garantir o sustento de sua família. Em 1958,
obteve certo reconhecimento, ao publicar o primeiro romance da série Darkover, intitulado
The Planet Savers, outro de seus livros de ficção científica. Mas é nos anos 1980 que Bradley
marca sua carreira ao publicar The Mists of Avalon (As brumas de Avalon), destoando de sua
produção anterior, pois este é um livro longo e com um enredo mais complexo. A obra
permaneceu por três meses na lista dos Best-Sellers do The New York Times, ultrapassando a
marca de 300.000 exemplares vendidos, nesse período. (SEKLES, 1987)
Apesar de haver alguma dificuldade para encontrar referências mais completas sobre a
vida de Marion Zimmer Bradley, notamos a sua passagem por distintas comunidades
religiosas e, embora se apresentasse como cristã, demonstrou interesse por crenças neopagãs e
tinha atração especial pelo ocultismo. Segundo Paxton, cunhada de Bradley e companheira de
escrita, os trabalhos de Dion Fortune podem ter sido a grande influência acerca do ocultismo e
de onde viria a inspiração para a magia de Avalon. (PINHEIRO, 2011)
Dion Fortune é o pseudônimo literário de Violet Mary Firth Evans (1890-1946),
psicóloga e escritora ocultista britânica. Fortune ficou conhecida por suas obras acerca de
magia e ocultismo, saber que, segundo ela, adquiriu através de Theodore Moriarty51, após

51
Theodore Michael Moriarty era maçom e médico, sendo aquele que iniciou Fortune no ocultismo. Junto dele
ela se inspirou para escrever Os Segredos do Dr. Taverner. Ela o conheceu enquanto trabalhava com psiquiatria
e psicanálise. (RICHARDSON, 1987)
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desacreditar da psicoterapia. Bradley cita a obra Avalon of the Heart, de Fortune, como tendo
sido de grande importância para a construção da sua narrativa.
Bradley demonstrava interesse por estes assuntos desde a adolescência, quando
escapava para a biblioteca do Departamento de Educação, em Albany, para ler obras dessa
linha temática, como religião e mitologias, como The Golden Bough, sobre religião
comparada. Nos anos de 1970, o cenário posto é o do surgimento e exploração de diversas
novas formas de expressão de religiosidade, algo que Carrol Fry (1993) chama de Religiões
Não Tradicionais, o que leva Bradley a aprofundar-se nesses conhecimentos.
Fry (1993), em seu artigo publicado em Journal of Popular Culture, escreve sobre seu
contato com o neopaganismo, a partir do desenvolvimento de sua série documental Creeds in
Conflict, a qual consiste em uma série de entrevistas com praticantes de diversos segmentos
religiosos. Nota, então, a presença das obras de Bradley atuando como fonte de influência
para esse público: “Uma característica generalizada entre os pagãos é um amor pelos livros.
Quase todos liam muito da ficção de Bradley”52 (FRY, 1993, p.68). Outro ponto levantado
por Fry é o de que, nos anos de 1970, ocorre uma explosão de produções da ficção popular.
Talvez por causa do laço estreito entre crenças neopagãs e tradições literárias e
folclóricas ocidentais – e talvez por causa do amor dos pagãos pelo medievalismo –
escritores de fantasia heroica aprenderam a usar o Craft, como os praticantes o
chamam, como o quadro para suas obras (FRY, 1993, p.67).

Levando em consideração a vasta produção de obras literárias que seguem esta linha
temática, notamos uma rápida adaptação de um movimento cultural pelos produtores de
conteúdo, por exemplo os escritores. Bradley apresenta cerca de 50 títulos que abarcam a
discussão sobre misticismo, magia e ficção científica, o que nos leva a perceber um público
interessado, que a consome esse tipo de produção.
Bradley, como pessoa influente neste meio e produtora de conteúdo, interpreta estes
desenvolvimentos e os transpassa em suas obras, retratando nelas características do tempo e
do espaço nos quais está inserida. A partir de Certeau (1982), podemos entender que a
literatura de Bradley não pode ser analisada fora da sociedade na qual se insere, pois isso
implicaria a transformação das situações acentuadas, já que o pronome “nós” utilizado pelo
escritor denota um contrato social. Dessa forma, se a organização da narrativa é referente a

52
No original: “One widespread characteristic among Pagans is a love of books. Nearly every Neo Pagan I have
met has read much of Ms. Bradley’s fiction”.
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um lugar e a um tempo, isso se deve, inicialmente, às suas técnicas de produção, uma vez que
cada sociedade se pensa historicamente com os instrumentos que lhe são próprios.
(CERTEAU, 1982)
O livro ou o artigo de história é, ao mesmo tempo, um resultado e um sintoma do
grupo que funciona como um laboratório. Como o veículo saído de uma fábrica, o
estudo histórico está muito mais ligado ao complexo de uma fabricação específica e
coletiva do que ao estatuto de efeito de uma filosofia pessoal ou à ressurgência de
uma “realidade” passada. É o produto de um lugar (CERTEAU, 1982, p.64).

É de grande importância que tenhamos uma boa compreensão do contexto histórico e


de como este possibilita a insurgência de tal diversidade de crenças, a fim de identificar os
grupos que organizam tais movimentos e os que aderem a ele, influenciados ou pela produção
literária a respeito ou pela publicidade de seus líderes.
Sob uma perspectiva histórica ampla, o interesse pelo oculto tem surgido em
períodos de rápida decadência social, quando as instituições estabelecidas deixam de
prover respostas facilmente aceitáveis e o povo se volta para outras fontes em busca
de garantias (RUSSELL; ALEXANDER, 2008, pp.203-204).

O mais recente reavivamento do ocultismo vai da metade do século XIX, até meados
do século XX, momento em que a fé no cristianismo tradicional está mais fraca. Em 1962,
Gardner leva para os Estados Unidos a Wicca e, a princípio, a “Wicca Gardneriana” é
popularizada e tem seu ápice na década de 1970. Declina depois disso mas retorna ao longo
dos anos de 1980, se estabelece e cresce cada vez mais. (RUSSEL; ALEXANDER, 2008)
A Wicca tem sua criação atribuída ao arqueólogo e escritor britânico Gerald Gardner.
Sua origem etimológica seria anglo-saxã, significando o suposto nome de uma antiga religião.
Após viajar e conhecer ritos de várias partes do mundo, principalmente a Malásia, Gardner
retornou à Inglaterra e, em 1954, publicou o livro A feitiçaria hoje. Nele, o autor enfatizava o
renascer de um antigo culto pré-cristão, chamado de ‘a velha religião da Inglaterra’.

A revolução cultural pela qual passou a sociedade ocidental desde a década de 1960
contra o establishment, e as convenções culturais firmadas em valores sociais
conservadores foram ridicularizadas e frontalmente atacadas. No âmbito da religião,
o cristianismo foi identificado como parte integrante desse establishment, e desse
modo os valores judeu-cristãos foram considerados perniciosos (RUSSELL;
ALEXANDER, 2008, p.204).

Esse movimento cultural tem o intuito de extinguir tudo que é antigo e assim buscar
libertar as essências inerentes à pessoa humana. Manifestações através da natureza,
feminismo, liberdade sexual e oposição a uma visão fisicista que dominava diversas áreas da

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ciência tornam o período propício e próspero para a bruxaria moderna e neopagã. “A quebra
de ortodoxias religiosas e científicas deu oportunidade para o surgimento de formas
alternativas de observação do mundo” (RUSSELL; ALEXANDER, 2008, p.204).
A partir destas novas noções, como liberdade sexual e feminismo, Fry (1993)
identifica, em suas entrevistas junto aos integrantes da comunidade neopagã, de que modo a
estrutura dessa religiosidade e de suas práticas privilegiam a figura feminina, e como,
diferente de todas as religiões, usam um tratamento para com o corpo e a sexualidade, tidos
por ela como tradicionais.
Talvez o aspecto mais interessante do neopaganismo, como movimento
cultural, seja o poderoso núcleo feminista da crença. Desde 1960, a ênfase na
Deusa e a sacerdotisa como líder do Coven tem exercido forte atração para
as feministas53 (FRY, 1993, p.70).

A partir das características dessas práticas neopagãs, de um culto enfático quanto à


presença da mulher, percebemos uma diferença com os cultos tidos por Fry como tradicionais,
em que o papel da mulher é reduzido ao de coadjuvante. Parte da comunidade neopagã
entende as religiões cristãs com um caráter misógino, que vem desde a Idade Média e afasta
as mulheres do clero de muitas igrejas.
Durante a realização das entrevistas, para o documentário Creeds in Conflict, Isaac
Bonewits comenta sobre a atribuição da religiosidade neopagã a cultos relacionados ao Diabo
e ao satanismo. Bonewits se posiciona fortemente contrário quanto a qualquer relação entre o
culto pagão com a prática de satanismo, empregando um discurso hostil contra o cristianismo,
e que é partilhado pela comunidade neopagã, tal qual o desprezo pelos satanistas. (Cf. FRY,
1993)
Considerando a presença deste discurso dentro da comunidade neopaganista, na qual
Bradley está inserida, a ideia de cristianismo expressado pela autora pode seguir pelo mesmo
entendimento; sendo assim, vem retratado de forma aproximada em sua narrativa.
A ideia de cristianismo, de Bradley, constitui o pano de fundo da obra As brumas de
Avalon, em conflito com o culto dito pagão, e se mantém durante ambos volumes
selecionados para este estudo. Percebemos que a “representação” do cristianismo, na
assimilação de Bradley a seu respeito, é composta pelas próprias visões de mundo da autora.

53
No original: “Perhaps the most interesting aspect of Neo Paganism as a cultural movement is the powerful
feminist core of the belief. Since the 1960s, the Neo-Pagan emphasis on the Goddess and the priestess as leader
of the coven have exerted a potent attraction for feminists”.
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Ou seja, é um conjunto de aspirações, de sentimentos e de ideias que une os membros de um


mesmo grupo (de uma classe social, na maioria das vezes) e os opõe a outros grupos.
(CHARTIER, 1991)
Tal percepção nos possibilita operacionalizar o conceito de representação de Roger
Chartier (1991) para compreender como o cristianismo é representado na obra, e como são
retratadas as concepções de Bradley a esse respeito. Segundo o referido autor, a
“representação” constitui-se a partir de uma visão de mundo, partilhada pela comunidade na
qual determinado indivíduo está inserido, e se expressa em sua narrativa.
A relação de representação é, desse modo, perturbada pela fraqueza da imaginação,
que faz com que se tome o engodo pela verdade, que considera os signos visíveis
como índices seguros de uma realidade que não o é. Assim desviada, a
representação transforma-se em máquina de fabricar respeito e submissão, num
instrumento que produz uma exigência interiorizada, necessária exatamente onde
faltar o possível recurso à força bruta (CHARTIER, 1991, p.185).

Bradley está inserida em grupos nos quais há diversas formas de compreensão da


religiosidade cristã. Ao se apropriar de tais ideias acerca do cristianismo, ou seja, a partir
dessas percepções, partilhadas coletivamente, a autora desenvolve a sua própria interpretação
a respeito das várias formas de cristianismos e as representa na obra.
Em diversos momentos da obra, podemos identificar a presença da representação do
cristianismo e do paganismo, conflitando-se, ou fazendo juízo de valor uma da outra.
Gorlois recusou a alimentação, porque, com seu rei ante o trono de Deus, onde sua
alma seria julgada, preferia jejuar e rezar até que ele fosse enterrado. Igraine, que
aprendera na Ilha Sagrada que a morte era apenas uma porta para uma nova vida,
não compreendia isso: como podia um cristão ter tanto medo de ir ao encontro de
sua paz eterna? Lembrou-se do padre Columba, cantando alguns de seus salmos
doloridos. Sim, o Deus deles era um deus do medo e do castigo, também. Ela podia
compreender que um rei, para o bem de seu povo, tivesse de praticar atos que
pesassem fortemente em sua consciência. Mesmo compreendendo e perdoando isso,
como poderia um deus misericordioso ser mais fanático e vingativo do que o menor
de seus mortais? Talvez esse fosse um dos mistérios cristãos (BRADLEY, 2008a,
pp.55-56).

O Deus cristão é descrito como um deus punitivo, ao qual todos deveriam temer, e que
a rigidez com a vivência da religião cristã será recompensada com a salvação, mas que antes
disso deverá ser julgada. Igraine, tendo sido criada em Avalon, tem uma relação com a noção
de pós-vida diferente de Gorlois, cristão: “(...) ele não comeria, não beberia, nem dormiria
com uma mulher, até que seu rei fosse enterrado. Os cristãos diziam-se livres das superstições

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dos druidas, mas tinham as suas, e Igraine as achava ainda mais deprimentes, por serem
estranhas à natureza” (BRADLEY, 2008a, p.62).

A imortalidade da alma e a morte como punição

Segundo Ana Donnard (2009), as religiosidades celtas tinham uma crença quanto à
imortalidade e renascimento das almas, diferenciando-se da religiosidade cristã, para a qual os
mortos se encontram num repouso eterno, não tendo, afinal, quaisquer perspectivas quanto a
um tipo de retorno ou permanência da vida. Segundo Leomar Brustolin e Fabiane Pasa
(2013), existe uma ancestralidade sobre a morte com teor de punição:

Tudo o que os cristãos podem dizer acerca da morte tem como fonte a Sagrada
Escritura. No Antigo Testamento, a experiência da morte aparece de maneira
profundamente ambígua. Por um lado, ela é vivenciada como o término natural da
vida, por outro lado, é sentida como provação e maldição (BRUSTOLIN; PASA,
2013, p.63).

A morte é entendida como uma punição, dado o fato de que esta é atribuída aos
homens diante de sua desobediência perante a ressalva divina para não consumir o fruto da
Árvore do Conhecimento. Assim, ao desobedecer:

Adão escolheu viver sob o reinado da morte: “Com o suor do teu rosto comerás teu
pão até que retornes ao solo, pois dele foste tirado. Pois tu és do pó e ao pó tornarás”
(Gn. 3, 19). Essa vida, contudo, não foi aniquilada, mas limitada. Não dura para
sempre nem pode ser eterna (BRUSTOLIN; PASA, 2013, p.63).

A partir disso podemos compreender o comportamento do Rei Gorlois, uma


personagem cristã, e seu temor quanto ao destino do morto; também podemos estabelecer um
paralelo com Igraine e sua formação druida, pela qual é possível acessar os mortos por meio
da necromancia, um paralelo existente entre os mundos de vivos e mortos: “O outro mundo
dos imortais era paralelo ao mundo visível e as almas dos parentes mortos ou dos guerreiros
de batalha permeavam todo o espaço fatual. Toda recordação material era uma presença, um
elo com o sagrado mundo das almas imperecíveis” (DONNARD, 2009, p.124).
Donnard (2009) aponta que a compreensão do povo Celta encontra dificuldades na
medida em que há poucos materiais encontrados e em estudo. Parte de sua história vem de
fontes arqueológicas, como, por exemplo, o caldeirão de Gundestrup, um vaso céltico

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encontrado na região da Dinamarca e que traz gravado o detalhe do deus com chifres, bastante
relevante para a construção da narrativa de Bradley.
A transmissão de sua história era feita pela oralidade, de um discípulo druida para
outro, e alguns registros textuais aparecem nos textos medievais célticos:
Na falta deles in vivo, que venham os registros textuais. E se os druidas não
escreveram na Antiguidade, resta-nos, então, as literaturas célticas medievais. E que
resto! O maior mito literário medieval é de origem céltica: Arthur. Obviamente
acompanhado de seu famoso druida Merlim. Ele mesmo nascido e invocado como
filho do diabo ˗˗ coloração cristã do antigo mito céltico da criança escolhida, do
rebento profetizado, do homem de sabedoria, intermediário entre o mundo dos
homens e o outro mundo para onde vão as almas depois da morte (DONNARD,
2009, p.127).

Numa constante, identificamos o caráter punitivo da religiosidade cristã sendo


retratado na narrativa de Bradley, estabelecendo um padrão de penitências a serem realizadas
para agradar o deus cristão:

Os homens sábios reconhecem que os símbolos não são necessários, mas o povo dos
campos precisa de seus dragões alados para um rei, tal como necessitam das
fogueiras de Beltane e do Grande Casamento, quando o rei é casado com a terra... –
Tais coisas são proibidas a um cristão – protestou Gorlois austeramente. – O
Apóstolo disse que há apenas um nome sob os céus pelo qual podemos ser salvos, e
todos esses signos e símbolos são maléficos. Não me surpreenderia saber que Uther,
aquele devasso, tem parte com esses ritos lascivos do paganismo, que cultivam a
loucura dos homens ignorantes (BRADLEY, 2008a, pp.74-75).

Neste trecho podemos perceber a tentativa de depreciar o culto pagão, a partir de uma
atribuição de características negativas na crença, buscando estabelecer a religiosidade cristã
em detrimento do paganismo.
Ao se referir às características da religiosidade cristã, Viviane, a Senhora do Lago, faz
uma análise sobre o modo como a mulher é retratada de diferentes maneiras nos ritos ditos
pagãos; enquanto em Avalon a mulher é valorizada, no culto cristão o tratamento é de
desprezo: “Só os cristãos usam o claustro como um quarto de despejo para as filhas e viúvas
indesejadas” (BRADLEY, 2008a, p.149).
No segundo volume, em “A Grande Rainha”, são mais frequentes e intensos os trechos
em que há o embate entre a religiosidade cristã e o culto tido como pagão, visto que a obra
está localizada num momento de maior conflito armado e também por já estar oficializada a
união de Artur, que deveria reinar sobre Avalon e sobre Bretanha, com sua esposa
Gwenhwyfar, que fora criada num convento e que segue impreterivelmente o cristianismo.

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Esta união implica abrigar na corte real, tanto um padre cristão quanto um druida de Avalon,
para que façam o aconselhamento do rei.
– Gawaine é um bom cristão, mas não tenho a mesma certeza no que concerne a
Lancelote – disse Patrício. – Chegará o momento, espero, em que todos aqueles que
falsamente se dizem cristãos serão desmascarados como adoradores do Demônio
que realmente são. Quem não aceitar a autoridade da Santa Madre Igreja em relação
à vontade de Deus será como disse o Cristo: “Aqueles que não estão comigo, estão
contra mim”. Por toda a Bretanha há homens que pouco mais são do que pagãos. Em
Tara eu me ocupei deles, quando acendi os fogos pascais num de seus montes
pagãos, e os druidas do rei puderam resistir. Não obstante, até mesmo na santa Ilha
de Glastonbury, por onde caminhou José de Arimateia, encontro padres adorando
um poço sagrado! Isso é impiedade! Eu o fecharei, ainda que tenha de recorrer ao
próprio bispo de Roma! Artur sorriu: – Não me parece que o bispo de Roma tenha a
menor ideia do que acontece na Bretanha. – Padre Patrício, o senhor prestaria um
grande desserviço ao povo desta terra se fechasse o seu Poço Sagrado. É um dom de
Deus... – É parte de um culto pagão. – Os olhos do arcebispo brilharam com o fogo
austero dos fanáticos. – É um dom de Deus – insistiu o velho druida –, porque não
há nada neste universo que não venha de Deus, e as pessoas simples precisam de
signos e símbolos simples. Se adoram Deus nas águas que fluem de sua abundância,
que mal há nisso? (BRADLEY, 2008b, p.36).
Neste trecho, pode-se perceber uma das características essenciais das religiosidades
pagãs, que é a relação com a natureza e como esta é uma manifestação do poder da Deusa,
contendo em si características sagradas. Em conflito, temos a fala do padre cristão, atribuindo
malefícios a estas formas de religiosidade através da banalização do seu culto e associando-o
ao demônio.
Mas Balim continuava olhando para Viviane e levantou a mão como se fosse
golpeá-la. – Judas! – gritou. – A Senhora também traiu com um beijo... – Voltou-se,
e correu para o quarto da mãe: – O que fez? Assassina! Maldita assassina! Pai, pai!
É um crime e uma feitiçaria... Gawan, com o rosto branco, surgiu na porta do quarto,
fazendo gestos desesperados para pedir silêncio, mas Balim empurrou-o e entrou
apressadamente no aposento. Viviane seguiu-o, e viu que Gawan fechara os olhos da
morta. Balim também o percebeu e voltou-se para ela, gritando de maneira
incoerente: – Assassinato! Traição, bruxaria! Bruxa assassina! (BRADLEY, 2008b,
p.118).

No trecho acima, Viviane é solicitada para que auxilie na saúde da senhora que cria
seu filho Gawan; mas, por meio da Visão, percebe que é destino de sua amiga, a chegada da
morte. Viviane permanece com ela até o momento e a ajuda a deixar o sofrimento, por meio
de seus poderes. Balin, filho de sua amiga, não aceita a morte da mãe e atribui à Viviane a
culpa pelo falecimento, acompanhado de muitas ofensas. Mais uma vez percebemos o
discurso cristão de associação do culto, tido como pagão, a práticas demoníacas.

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Considerações Finais

No presente artigo, buscamos abordar a obra As brumas de Avalon (1982), trabalhando


os dos volumes “A Senhora da Magia” e “A Grande Rainha”, sob a perspectiva da História
das Religiões, a fim de compreendermos a forma de representação do cristianismo e dos
“pagãos” no corpo da obra, e, para tal, utilizamos os conceitos de “lugar social” e
“representação”, dos autores Michel de Certeau (1982) e Roger Chartier (1991),
respectivamente.
Entendemos que a trajetória de Marion Zimmer Bradley, por abordar diversas formas
de religiosidade, faz com que a autora tenha contato com variadas formas de discurso de cada
uma destas, a respeito da outra. Isso proporciona a Bradley um amplo conhecimento que é
absorvido pela autora, interpretado a partir de suas próprias convicções e transposto para a
obra.
Dessa forma, os conceitos apresentados pelos autores citados acima, podem ser de
grande auxílio teórico e fundamentais para a compreensão das personagens presentes na obra
As brumas de Avalon. Contudo, ressaltamos que este é um olhar inicial sobre a fonte e as
considerações levantadas são apenas possibilidades, não anulando as demais perspectivas que
podem ser usadas ao observarmos a totalidade da obra.

Referências Bibliográficas

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Dutra. Rio de Janeiro: Imago, 2008. [vol. 1]

BRADLEY, Marion. As brumas de Avalon: A grande rainha. Tradução de Waltensir Dutra.


Rio de Janeiro: Imago, 2008. [vol. 2]

BRUSTOLIN, Leomar Antônio; PASA, Fabiane Maria Lorandi. A morte na fé cristã: uma
leitura interdisciplinar. Teocomunicação, Porto Alegre, vol. 43, n. 1, pp.54-72, jan./jun. 2013.

CERTEAU, Michel de. A Escrita da história. Tradução de Maria de Lourdes Menezes;


revisão técnica de Arno Vogel. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982.

CHARTIER, Roger. O mundo como representação. Revista Estudos Avançados, São Paulo,
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DONNARD, Ana. Celtas. In: FUNARI, P. P. (Org.). As religiões que o mundo esqueceu:
como egípcios, gregos, celtas, astecas e outros povos cultuavam seus deuses. São Paulo:
Contexto, 2008, pp.116-129.

FRY, Carrol L. The Goddess Ascending: Feminist Neo-Pagan Witchcraft in Marion Zimmer
Bradley's Novels. The Journal of Popular Culture, vol. 27, pp.67-80, 1993. Disponível em:
<http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/j.0022-840.1993. 64521458967.x/abstract> DOI:
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PINHEIRO, Renata Kabke. Viviane e Morgana: uma nova dicotomia em meio à tensão
discursiva de “As Brumas de Avalon”. Pelotas, 2011. Centro de Ciências Sociais e
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SEKLES, Flavia. Elas são medievais. Revista Veja, 1987. Disponível em:
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Cabral e William Lagos. São Paulo: Aleph, 2008.

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O rito nas crenças afro-brasileiras: reflexões por meio de seus intelectuais

Ana Paula de Assis Souza (PPH-LERR-UEM) 54


Resumo: O presente trabalho está vinculado ao projeto de mestrado intitulado Os Ritos de
Iniciação Afro-Brasileiros em Nina Rodrigues e João do Rio (Brasil - Primeira República). A
finalidade desta proposta objetiva-se a realização de uma discussão teórica acerca da noção de
rito. Para tanto utilizaremos os seguintes autores e suas respectivas obras: Augé (1994)
Iniciação, Enciclopédia Einaudi; Eliade (2010) O sagrado e o profano; Durkheim (1996) As
formas elementares da vida religiosa; Mauss (1979) A Prece; Peirano (2003) Rituais ontem e
hoje; Rivière (1998) Os ritos profanos e Turner (1980) O processo ritual. Tal discussão
teórica pretende estabelecer diferentes interpretações sobre a noção e o fenômeno do rito de
iniciação, bem como, refletir sobre seu tema, funções e problemáticas de poder. Optou-se,
portanto em realiza-la pelo viés da “História, Cultura e Narrativas” por entender que a
História Cultural permite compreender as representações presente nas narrativas dos
intelectuais Nina Rodrigues e João do Rio, acerca dos ritos iniciáticos, em Salvador e Rio de
Janeiro, ao final do século XIX e início do século XX. As fontes eleitas para tanto consistem
em O animismo fetichista dos negros bahianos (RODRIGUES, 1935) e As religiões no Rio
(RIO, 1906).
Palavras-chave: História Cultural; Rito Iniciático; Matriz Africana; Nina Rodrigues; João do
Rio.

The rite in afro-brazilian beliefs: reflections through their intellectuals

Abstract: The present work is linked to the master project titled The Rites of Initiation Afro-
Brazilian in Nina Rodrigues and João do Rio (Brazil - First Republic). The purpose of this
proposal is to conduct a theoretical discussion about the notion of rite. For this purpose we
will use the following authors and their respective works: Augé (1994) Initiation,
Encyclopedia Einaudi; Eliade (2010) The sacred and the profane; Durkheim (1996) The
elementary forms of religious life; Mauss (1979) A Prayer; Peirano (2003) Rituals yesterday
and today; Rivière (1998) The profane rites and Turner (1980) The ritual process. Such a
theoretical discussion aims at establishing different interpretations of the notion and
phenomenon of the rite of initiation, as well as reflecting on its theme, functions and power
problems. Therefore, it was decided to carry it out through the "History, Culture and
Narratives" bias because it understands that Cultural History allows us to understand the
representations present in the narratives of the intellectuals Nina Rodrigues and João do Rio,
about the initiatory rites in Salvador and Rio From January to the end of the 19th century and
beginning of the 20th century. The sources chosen for such consist of The fetishistic animism
of Bahian blacks (RODRIGUES, 1935) and The Religions in Rio (RIO, 1906).
Keywords: Cultural History; Initiatory Rite; African Matrix; Nina Rodrigues; João do Rio

54
Graduada em Pedagogia pela Faculdade Unissa de Sarandi, Graduada em História pela Universidade Estadual
de Maringá, Pós-graduação em Educação Especial e Alfabetização de Adultos pelo Instituto Paranaense de
Ensino e Mestranda em História PPH/UEM. Endereço eletrônico: anapassis.souza@gmail.com.

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Rito: uma breve introdução

A fim de pensar os ritos iniciáticos nas crenças e manifestações afro-brasileiras no


final do século XIX início do XX, implica necessariamente abordá-los a partir de perspectivas
teóricas definidas por historiadores, antropólogos e sociólogos, isto é, uma proposta a ser
problematizada levando em consideração o comportamento técnico racional e o
comportamento mágico, mítico ou ritual do ser humano. Ou seja, estabelecer frentes
explicativas, com diferentes interpretações sobre a noção e o fenômeno do rito de iniciação,
bem como, refletir sobre seus temas, funções e problemáticas de poder.
Para tanto, faz-se necessário elencar algumas contribuições de estudiosos e suas
respectivas obras como, por exemplo; Augé (1994) Iniciação, Enciclopédia Einaudi; Eliade
(2010) O sagrado e o profano; Durkheim (1996) As formas elementares da vida religiosa;
Mauss (1979) A Prece; Peirano (2003) Rituais ontem e hoje; Rivière (1998) Os ritos profanos
e Turner (1980) O processo ritual, a fim de articular análises e reflexões relativas à iniciação
por meio de suas teorias, e modos de compreensões simbólicas e ideológicas.
A princípio, ao abordar está temática, convém pensar as definições sobre o conceito de
rito doravante estudado e apontado por estes intelectuais. Trata-se, pois de anunciar as
perspectivas em torno da existência humana, bem como, a relação social e o comportamento
do homem frente ao que é sagrado e profano, apontado por Eliade e, assim considerado por
ele como experiências provocadas pela revelação de um aspecto do poder divino.
O objetivo último do historiador das religiões é compreender, e tornar
compreensível aos outros, o comportamento do homo religiosus e seu universo
mental. A empresa nem sempre é fácil. Para o mundo moderno, a religião como
forma de vida e concepção do mundo confunde-se com o cristianismo. No melhor
dos casos, um intelectual ocidental, com certo esforço, tem algumas probabilidades
de se familiarizar com a visão religiosa da Antiguidade clássica e mesmo com
algumas das grandes religiões orientais, como, por exemplo, o hinduísmo ou o
confucionismo. Mas esse esforço de alargar seu horizonte religioso, por mais
louvável que seja, não o leva mito longe; com a Grécia, a Índia, a China, o
intelectual ocidental não ultrapassa a esfera das religiões complexas e elaboradas,
que dispõem de uma vasta literatura sacra. Conhecer uma parte dessa literatura
sacra, familiarizar-se com algumas mitologias e teologias orientais ou do mundo
clássico, não é ainda suficiente para conseguir compreender o universo mental do
homo religiosus. [...] (ELIADE, 2010, p. 133-134)

Conforme Eliade (2010) compreender uma festa religiosa significa manter vivo o
ensinamento sacro dos antepassados, onde a atividade humana é carregada de significado,
bem como, imitação de gestos exemplares de deuses em busca da sabedoria. Segundo Eliade,

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é por meio do rito que a presença do transcendente se manifesta em sua plenitude, fazendo o
mito se revelar a cada cerimônia. Propõe à cima de tudo, pensar o homem histórico e suas
diversas experiências religiosas do tempo (sociedades arcaicas), relações do homem religioso
com a natureza, homem moderno e a-religioso, seguindo, portanto dois modos de ser no
mundo, a sagrada e profana.
Compreender o homem religioso requer, todavia analisar suas experiências mais
primitivas num tempo de universo sagrado, como fez Eliade (2010) um historiador
especialista em religiões, que relaciona dois mundos que separam duas modalidades de
experiências assumidas pelo homem ao longo de sua história que de todo modo articula
dentro de uma perspectiva histórico cultural de fatos religiosos endereçados para estudos não
somente a historiadores, mas à antropologia filosófica, fenomenologia e psicologia.
Conhecer as situações assumidas pelo homem religioso, compreender seu universo
espiritual é, em suma, fazer avançar o conhecimento geral do homem. É verdade de
que a maior parte das situações assumidas pelo homem religioso das sociedades
primitivas e das civilizações arcaicas há muito tempo foram ultrapassadas pela
História. Mas não desapareceram sem deixar vestígios: contribuíram para que nos
tornássemos aquilo que somos hoje; fazem parte, portanto, da nossa própria história.
(ELIADE, 2010, p. 164)

Diante de tal evidencia o homem religioso segundo as considerações de Eliade é


aquele que acredita numa existência sobrenatural cuja vida transcende o mundo profano e
conserva a história sagrada por meio do rito, ou seja, reatualizando a história divina com o
objetivo de manter o comportamento e ensinamentos sagrados.
Sendo assim, o rito para Eliade é uma forma de reatualização do mito. É o que
reafirma a narrativa original dos povos, tornando contemporâneo aos que o realiza o tempo
em que deuses e homens viviam juntamente. Os ritos estão presentes na sociedade em
diversas ocasiões: nascimento, casamento e morte. Mas o rito religioso, em especial os de
iniciação e dos cenários iniciáticos, possuem organização própria, podendo ser ritos coletivos,
seletos, masculinos e femininos.
[...] Seja qual for o contexto histórico em que se encontra, o homo religiosus acredita
sempre que existe uma realidade absoluta, o sagrado, que transcende este mundo,
que aqui se manifesta, santificando-o e tornando-o real. Crê, além disso, que a vida
tem uma origem sagrada e que a existência humana atualiza todas as suas
potencialidades na medida em que é religiosa, ou seja, participa da realidade. Os
deuses criaram o homem e o Mundo, os Heróis civilizadores acabaram a Criação, e a
história de todas as obras divinas e semidivinas está conservada nos mitos.
Reatualizando a história sagrada, imitando o comportamento divino, o homem
instala-se e mantém-se junto dos deuses, quer dizer, no real e no significativo.
(ELIADE, 2010, p. 164-165)
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Isto significa, que o homem religioso mantem uma relação com o sobrenatural e
conforme o historiador Eliade esse canal de comunicação com a santidade necessita de um
espaço no qual possibilite essa manifestação, isto é, o homo religiosus e seu universo mental
regido pelo “Cosmo”. Propõe Eliade, no entanto, o termo hierofania para evidenciar ao
homem religioso o conhecimento do sagrado porque este se manifesta, sobretudo, algo de
sagrado quando se revela de ordem diferente, permeando por uma realidade que não pertence
ao nosso mundo (sobrenatural). Deste modo, ao passo que a história das religiões é
constituída desde a civilização mais primitiva às mais elaboradas é possível considerar as
manifestações das realidades sagradas regidas pela história sagrada, como um elemento de
conexão sobre a vida humana.
Vimos que o homem religioso vive num Cosmos “aberto” e que está “aberto” ao
Mundo. Isto quer dizer: (a) que está em comunicação com os deuses; (b) que
participa da santidade do Mundo. Que o homem religioso só consegue viver num
Mundo “aberto”, tivemos ocasião de constatar ao analisar a estrutura do espaço
sagrado: o homem deseja situar-se num “centro”, lá onde existe a possibilidade de
comunicação com os deuses. Sua habitação é um microcosmos, e também seu corpo.
A correspondência corpo-casa-cosmos impõe-se desde muito cedo. Insistamos um
pouco neste exemplo, pois ele nos mostra em que sentido os valores da religiosidade
arcaica são suscetíveis de ser reinterpretados pelas religiões, até mesmo pelas
filosofias ulteriores. (ELIADE, 2010, p. 141)

Para Augé (1994), antropólogo e africanista, utiliza uma abordagem sociológica onde
define no espírito humano o homem religioso, assim, determinada socialmente enquanto
práticas de renovações cujo poder Simbólico e ideológico envolve conhecimento por
representação no ato do rito de iniciação, onde existem ensinamentos religiosos dentro de uma
condição lógica do poder que adentram as necessidades de diversidade, ordem, organização,
política, social, cultural e religiosa.
Conforme as considerações de Augé (1994), a história da religião contempla
compreender que e sua forma de manifestação está dentro de um processo, que visa adentrar
conhecimentos dos fenômenos religiosos e práticas de renovação. Pressupõe ainda às
necessidades do homem em se apropriar, apoderar, iniciar em um grupo, seita e ou confraria
(ser social), ou seja, assimilar ensinamentos como modo de organização e aceitação social.
[...] conjunto de ritos e de ensinamentos orais, que visa a modificação radical do
estudo religioso e social do sujeito a iniciar, equivale a uma mudança ontológica do
regime existencial; esta mudança é comum aos diferentes tipos de iniciação
enumeráveis, entre os quais Eliade distingue os ritos de puberdade – colectivos e
obrigatórios – , os ritos de entrada em seitas ou confrarias – selectivos - e, enfim os
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que caracterizam a vocação mística do xamâ ou do medicine-man. Tais ritos têm em


comum um certo numero de temas que garantem a sua eficácia enquanto, no
essencial, ritualizam o mito cosmogônico inicial, respondendo nisto a uma exigência
do espírito humano, ávido de participar na plenitude do Tempo Sagrado, primordial.
Nesta perspectiva, enfatiza-se a temática da iniciação, temática cuja coerência e
generalidade permitem definir a iniciação como um objecto homogêneo de análise e
de reflexão. (AUGÉ, 1994, pg 74)

Durkheim (1996) o sociólogo francês, porém sinaliza para um sistema religioso cuja
proposta gira em torno de aspectos que traduzem algumas necessidades humanas, isto é,
aspecto da vida, seja individual ou social. Segundo Durkheim, “toda religião, com efeito, tem
um lado pelo qual vai além do círculo das ideias propriamente religiosas e, sendo assim, o
estudo dos fenômenos religiosos fornece um meio de renovar problemas que até agora só
foram debatidos entre filósofos” (1996. p.15). Isto significa compreender que, a religião está
atrelada especificamente e eminentemente as razões sociais e o rito faz parte deste vínculo.
[...] Os ritos mais bárbaros ou os mais extravagantes, os mitos mais estranhos
traduzem alguma necessidade humana, algum aspecto da vida, seja individual ou
social. As razões que o fiel concede a si próprio para justifica-los podem ser – e
muitas vezes, de fato, são – errôneas; mas as razões verdadeiras não deixam de
existir; compete à ciência descobri-las. (DURKHEIM, 1996, pg. 7)

De todo modo, o trabalho com religiões mais primitivas realizadas por Durkheim em
pesquisa, “correspondem às mesmas necessidades, desempenham o mesmo papel, dependem
das mesmas causas; portanto, podem servir muito bem para manifestar a natureza da vida
religiosa” (Durkheim, 1996, p. 8). Pressupõe, portanto, que todas as religiões são igualmente
religiões que perpassaram historicamente cujas representações que o homem produziu do
mundo e de si próprio possuem origem religiosa.
[...] Se do homem forem retiradas a linguagem, as ciências, as artes, as crenças da
moral, ele cairá no nível da animalidade. Os atributos característicos da natureza nos
vêm, portanto, da sociedade. Mas, por outro lado, a sociedade só existe e só vive nos
e através dos indivíduos. Se a ideia da sociedade se extinguir nos espíritos
individuais, se as crenças, as tradições e as aspirações da coletividade deixarem de
ser sentidas e partilhadas pelos particulares, a sociedade morrerá. [...] (DURKHEIM,
1996, p. 374)

Trata-se, pois segundo Durkheim de reconhecer no rito o processo psicológico que


leva a seus fiéis a renascer junto às forças espirituais que necessitam, visto que, o rito
representa um efeito de recriar periodicamente um ser moral do qual a sociedade depende.
Essa dependência estabelece sobretudo crenças comuns, tradições comuns, lembranças dos

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grandes antepassados, enfim, o ideal coletivo do qual são a encarnação. Para Durkheim, o rito
exerce uma ação profunda para os fiéis cujo bem estar é justificado socialmente.
[...] O rito consiste unicamente em relembrar o passado e torna-lo presente, de certo
modo, por meio de uma verdadeira representação dramática. A palavra é ainda mais
oportuna por não ser o oficiante, nesse caso, de maneira nenhuma considerado uma
encarnação do antepassado que representa: ele é um ator que representa um papel.
(DURKHEIM, 1996, p. 405)

Durkheim corrobora descrevendo vários tipos de ritos dentre os quais destacamos o


chamado piacular que pressupõe a celebração na inquietude ou na tristeza por meio de ritos
funerários, bem como, ritos da reprodução da espécie totêmica, como também o Intichiuma,
uma cerimônia representada diante do jovem para iniciá-lo ás tradições da tribo, ou ainda,
ritual que demanda, com efeito, o sacrifício e toda uma série de operações essenciais à
comunhão. Dito isto, Durkheim aponta, a ambiguidade da noção do sagrado entre o puro e o
impuro, o santo e o sacrílego, o divino e o diabólico.
[...] Já mostramos que ritos de oblação e de comunhão, ritos miméticos, ritos
comemorativos, cumprem com frequência as mesmas funções. Poder-se-ia pensar
que o culto negativo, pelo menos, é mais claramente separado do culto positivo; no
entanto, vimos que o primeiro é capaz de produzir efeitos positivos, idênticos aos
que produz o segundo. Com jejuns, abstinência, automutilações, obtêm-se os
mesmos resultados que com comunhões, oblações, comemorações. Inversamente, as
oferendas e os sacrifícios implicam privações e renúncias de toda espécie. Entre os
ritos ascéticos e os ritos piaculares a continuidade é ainda mais evidente: ambos são
feitos de sofrimentos, aceitos ou suportados, aos quais é atribuída uma eficácia
análoga. Assim, tanto as práticas como as crenças não se classificam em gêneros
separados. Por mais complexas que sejam as manifestações exteriores da vida
religiosa, ela é, no fundo, uma e simples. [...] (DURKHEIM, 1996, p. 455)

Assim como Durkheim (1996), Rivière (1997) aborda o conceito de rito numa
perspectiva sociológica e de etnologia religiosa, isto é, “enquanto modo de existência dos
seres humanos, atividade refletida produzida por organizações humanas e forma de
objetivação intencional do pensamento em comportamentos simbólicos” (RIVIÈRE, 1997, p.
28). Para Rivière a representação coletiva está ligada a crença e a conduta, envolvendo
tradições e costumes sociais.
Antes de especificar nossas asserções pelos comentários dos capítulos seguintes,
propomos esta definição inicial dos ritos: quer sejam bastante institucionalizados ou
um tanto efervescentes, quer presidam a situações de comum adesão a valores ou
tenham lugar como regulação de conflitos interpessoais, os ritos devem ser sempre
considerados como conjunto de condutas individuais ou coletivas, relativamente
codificadas, com um suporte corporal (verbal, gestual, ou de postura), com caráter
mais ou menos repetitivos a escolhas sociais julgadas importantes e cuja eficácia
esperada não depende de uma lógica puramente empírica que se esgotaria na
instrumentalidade técnica do elo causa-efeito. Esta definição não prejulga de modo

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algum o conteúdo das crenças, a força das adesões, os ritmos de reprodução das
condutas, ou o grau de coloração misteriosa, fascinante ou terrível, dos valores que
dão sentido à vida. (RIVIÈRE, 1997, p. 30)

Entretanto, o que chama a atenção de Rivière (1997) é a dicotomia empregada em


cima do conceito de rito diante dos fenômenos profanos, sagrados (mágicos) que sinalizam
enquanto responsáveis pela organização da vida social, cujos acontecimentos e atos baseiam-
se no comportamento humano. O importante segundo Rivière é compreender os elementos
que permeiam o rito, bem como, atentar e não fragmentar e sim conhecer os termos em
decorrência de sua necessidade de interação social.
Ao propor a definição de rito segundo Rivière, significa esclarecer no sentido em que
as analises positivas vão ao encontro da zona de conforto, ou seja, o fenômeno do rito
utilizado conforme as necessidades de aplicação social, teórica, ideológica. Pois existe uma
ampla definição para tal fenômeno com efeitos, perspectivas e concepções que vão traçando
sua condição que está longe de se esgotar enquanto estudo das relações e comportamentos dos
seres vivos.
Determinados ritos de forma relativamente semelhantes podem visar diferentes
finalidades: demanda de chuva, de fecundidade; interrogação do transcendente na
adivinhação; ação de graças após um nascimento, uma boa safra, uma vitória,
dessacralização para tornar profano um de objeto de culto; comemoração (sigi entre
os dogon); vingança (bugush entre os diola); propiciação (oferenda de primícias);
regeneração (condensação à morte dos reis bantos); etc. (RIVIÈRE, 1997, p. 34)

Todavia, Rivière (1997) identifica nas sociedades religiosas o estabelecimento entre o


sagrado e profano enquanto distinções diferentes cuja característica é observada no imaginário
social, pois os mitos equivalem às crenças teofânicas e cosmogônicas concebidas pela
etologia a medida em que é mais arcaico e constante nos comportamentos entre os seres
humanos. Entretanto, este rito tradicional sofreu transformações sociais e declínio com o
passar do tempo e de todo modo Rivière conceitualiza os ritos profanos com resíduos dos
sagrados no que concerne determinados elementos como; festas, hábitos, cotidianos e
símbolos.
Tais ritos tomados por Rivière (1997), trote de calouros, sexo, esportivos e alimentares
exploram a perspectiva ritual no cotidiano e por sua vez, acompanham o modo de existência
dos seres humanos e de certa forma refletem na atividade produzida por organizações
humanas, com intencionalidade e comportamentos simbólicos. O que sugere também a

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questão de saber como a representação coletiva, até mesmo fora da religião, implica a crença
e esta a conduta corresponde como se iniciação.
Em particular, através do sentido pejorativo do termo ritualismo, o rito é pensado
como conjunto de gestos estereotipados e recorrentes, esvaziados de significação
simbólica. Pelo menos, sob o efeito do recalcamento, seu sentido tornou-se
inconsciente. Na neurose obsessiva, para lutar contra a angústia, o doente utiliza
procedimentos ritualizados de execução repetitiva de um ato cotidiano (rituais de
higiene, ao deitar-se, ao fechar as portas). (RIVIÈRE, 1997, p. 67)

Rivière destaca a compreensão do rito enquanto inserido em uma perspectiva religiosa


e mágica. Mas, porém, a laicização do saber, separa Deus, o sagrado absoluto e puro, ou o
santo em contato com ele, ou a força sobrenatural onde se percebe existem ritos religiosos que
tomam como referente um valor abstrato que lhes dá sentido e autoridade, sem os justificar
por algum mito fundador representado em imagens.
Se a cerimônia é um elemento estabilizador da vida social, o rito enquanto processo
comporta um acentuado dinamismo no sentido em que é produtor de significação e
exerce consequências tangíveis sobre os participantes, nem que fosse pelo fato de
revestir um caráter coletivo e da carga afetiva contida nos símbolos. A ação
simbólica é, com certeza, polissêmica, mas tem sobretudo um valor condensador no
sentido em que se fundem sí o mundo vivo com o mundo imaginário em uma
transformação idiossincrásica da realidade, sem que seja necessário estabelecer,
como em Durkheim, a necessidade de uma sociedade hipostasiada, enquanto
coroamento do conjunto. (RIVIÈRE, 1997, p. 56)

Contudo Rivière (1997) define o rito enquanto o contínuo da vida com o descontínuo
do pensamento a partir das oposições encadeamento/interrupção, imediato/deferido, ou seja, a
repetição de aspectos negativos e positivos num balanço entre o que é intensamente vivido e
experienciados. É, pois uma riqueza de processos de ritualização (culto) do homem que se
aplica a uma emancipação do contexto religioso e por sua vez, associa-se a uma utilidade
social. Os ritos são conforme Rivière um sistema de sinalização a partir de códigos definidos
do ponto de vista cultural, apresentando modelos, ações, encenações, drama, jogo cujo
operador está configurado na mudança, na repetição, seja no vazio emocional na
agressividade de descarga de explosões de violência, adoção de regras e papéis ou no ato de fé
sacrificial.
Já para o antropólogo britânico Turner (1974), o homem religioso é aquele que possui
uma extensa natureza imaginativa e emocional capaz de desenvolver ideias religiosas que são
responsáveis pelas crenças e práticas religiosas para a manutenção e a transformação radical
das estruturas humanas, tanto sociais quanto psíquicas. Segundo ele, “A finalidade do homem

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na vida é salvar a alma, e para salvar a alma deve viver ‘religiosamente’ e para viver
‘religiosamente’ deve renunciar a todos os prazeres da vida, trabalhar, humilhar-se, sofrer e
ser compassivo” (TURNER, 1974, p. 240). Isto implica assegurar a ordem social e política de
uma determinada comunidade ou tribo.
Entiendo por ritual una conducta formal prescrita en ocasiones no dominadas por la
rutina tecnológica, y relacionada con la creencia en seres o fuerzas místicas. El
símbolo es la más pequena unidad del ritual que todavia conserva las propriedades
específicas de la conducta ritual; es la unidad última de estrutura específica en un
contexto ritual. Dado que este ensayo es basicamente uma descripción y un análisis
de la estrutura y las propriedades de los símbolos, por el momento bastará que
digamos, con el Concise Oxford Dictionary, que un símbolo es una cosa de la que,
por geral consenso, se plensa que tipifica naturalmente, o representa, o recuerda
algo, ya sea por la posesión de cualidades análogas, ya por asociacíon de hecho o de
pensamento. Los símbolos que yo observe sobre el terreno eran empiricamente
objetos, actividaes, relcaciones, acontecimientos, gestos y unidades especiales em
um contexto ritual. (TURNER, 1999, pg. 21)

Desta forma, Turner (1974) compreende o ritual por meio de experiências que obteve
em um trabalho de campo. Trata-se de um trabalho de dois anos e meio em contato com o
povo ndembo, do noroeste de Zâmbia, cuja conduta é tomada pelo homem que crê numa força
mística capaz de dar significado ao contexto social de um grupo.
Assim, de acordo com Turner (1974), as celebrações rituais são fases específicas dos
processos de estruturas sociais como forma de ajustes, adaptação ao meio ambiente,
sobretudo, sinaliza enquanto uma atividade simbólica de expressão que fundamenta e
reconhece o ritual como produto.
Comecemos pelo atento exame de alguns rituais executados pelo povo em cujo meio
fiz um trabalho de campo durante dois anos e meio, o povo ndembo, do noroeste de
Zâmbia. Tal como os iroqueses de Morgan, o povo ndembo é matrilinear, e combina
a agricultura de enxada com a caça, à qual atribuem alto valor ritual. O povo
ndembo pertence a um grande conglomerado de culturas da África Central e
Ocidental, que associam considerável habilidade na escultura em madeira e nas artes
plásticas a um complicado desenvolvimento do simbolismo ritual. Muitos desses
povos têm ritos complexos de iniciação, com longos períodos de reclusão na
floresta, para treinamento de noviços em costumes esotéricos, frequentemente
associados à presença de dançarinos mascarados, que retratam espíritos dos
ancestrais ou deidades. Os ndembos, juntamente com seus vizinhos do norte e do
oeste, os lundas de Katanga, os luvales, os chokwes e os luchazis, dão grande
importância ao ritual; seus vizinhos do leste, os kaondes, os lambas e os ilas, embora
pratiquem muitos rituais, parecem ter menos exuberante, e não possuem cerimônias
de circuncisão dos meninos. Suas diversas práticas religiosas são menos
estreitamente unidas umas às outras. (TURNER, 1974, p. 16-17)

Sobretudo, segundo as considerações de Turner (1974), as celebrações rituais


(práticas religiosas) significam processos de cunho estrutural onde permitem a um grupo
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social organizar-se, adaptar-se no ambiente, pois corresponde a uma ação que determina a
convivência, cujo rito e sua manifestação são capazes de manter suas atividades sociais. Ou
seja, uma maneira de associar os interesses dos seres humanos com seus propósitos, onde fins
e meios possibilitam condutas observadas e adequadas ao contexto social.
De tudo isso, concluo que, para os indivíduos ou para os grupos, a vida social é um
tipo de processo dialético que abrange a experiência sucessiva do alto e do baixo, de
communitas e estrutura, homogeneidade e diferenciação, igualdade e desigualdade.
A passagem de uma situação mais baixa para outra mais alta é feita através de um
limbo de ausência de “status”. Em tal processo, os opostos por assim dizer
constituem-se uns aos outros e são mutuamente indispensáveis. Ainda mais, como
qualquer sociedade tribal é composta de múltiplas pessoas, grupos e categorias, cada
uma das quais tem seu próprio ciclo de desenvolvimento, num determinado
momento coexistem muitos encargos correspondentes a posições fixas, havendo
muitas passagens entre as posições. Em outras palavras, a experiência da vida de
cada indivíduo o faz estar exposto alternadamente à estrutura e à communitas, a
estados e a transições. (TURNER, 1974, p. 120)

Conforme a experiência trazida por Turner, o ritual ndembo mostra a necessidade de


compreender e explorar os símbolos praticados e incorporados enquanto costumes de uma
determinada tribo, ou seja, segundo Turner, “No contexto ritual ndembo, quase todo objeto
usado, todo gesto realizado, todo canto ou prece, toda unidade de espaço e de tempo
representa, por convicção, alguma coisa diferente de si mesmo” (TURNER, 1974, p. 29). O
que justifica o modo de vida no qual os ndembo vivem, são as sombras de estruturas de
linhagem matrilinear, assim como a determinação da organização da tribo, que corresponde,
porém ao direcionar os rituais de maneira à comtemplar sua estrutura.
[...] Se quisermos penetrar agora na estrutura interna das ideias contidas neste ritual,
temos de compreender como os ndembos interpretam os seus símbolos. Meu método
é assim necessariamente o inverso daquele de inúmeros estudiosos que começam
por extrair a cosmologia que frequentemente se expressa em termos de ciclos
mitológicos e, então, passam a explicar rituais específicos como exemplos ou
expressões de “modelos estruturais” que encontraram nos mitos e narrativas
cosmológicas ou cosmogônicas. É, consequentemente, necessário começar pela
outra extremidade, com os blocos básicos da construção, as “moléculas” do ritual. A
estas chamarei “símbolos” e por enquanto evitarei envolver-me no longo debate
sobre a diferença entre os conceitos de símbolo, signo, e sinal. Já que esta
aproximação preliminar parte de uma perspectiva “de dentro”, façamos antes do
mais um exame dos costumes dos ndembos. (TURNER, 1974, p. 29)

O ritual ndembo apresentado por Turner é chamado de chijikijilu por fazer parte de um
sistema simbólico enquanto “ponto de referência”, isto é, por demarcar elementos simbólicos
como, por exemplo; uma árvore, uma planta em específico, natureza, machado, cuja intenção

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e objetivo estão em fazer parte de rituais que envolvem a virilidade, fertilidade, sexo,
circuncisão, hierarquia, cura numa dinâmica de comunidade chamada de communitas.
Compreendem-se por communitas segundo Turner as comunidades instituídas de uma
combinação de posições ou de situações sociais. Turner corrobora, em seus estudos com os
ndembos existem uma forma de definir uma tribo e seus rituais, os “communitas” que por sua
justaposição a aspectos de estrutura social ou pela hibridização com estes, numa relação de
“liminaridade”, ou seja, formas culturais que proporcionam aos homens um conjunto de
padrões ou modelos que constituem, em determinado nível, reclassificações periódicas da
realidade e do relacionamento do homem com a sociedade, a natureza e a cultura.
A “communitas” irrompe nos interstícios da estrutura, na liminaridade; nas bordas
da estrutura, na marginalidade; e por baixo da estrutura, na inferioridade. Em quase
toda parte a “communitas” é considerada sagrada ou “santificada”, possivelmente
porque transgride ou anula as normas que governam as relações estruturadas e
institucionalizadas, sendo acompanhada por experiência de um poderio sem
procedentes. Os processos de “nivelamento” e de “despojamento” para os quais
Goffman chamou nossa atenção, frequentemente parecem inundar de sentimento os
que estão sujeitos a eles. [...] (TURNER, 1974, p. 156)

O antropólogo e sociólogo francês Mauss (1909), contribuí analisando o fenômeno


religioso a “prece”, como um elemento integrante da natureza da crença e do rito, ou seja,
uma linguagem carregada de palavras com sentido e movimento no qual é possível verificar o
estado de progresso de uma religião. Sendo assim, segundo Mauss um rito só encontra sua
razão de ser quando se descobre o seu sentido, isto é, as noções que formam e formaram sua
base, as crenças às quais ele corresponde.
Em primeiro lugar, a prece é o ponto de convergência de um grande número de
fenômenos religiosos. Mais do que qualquer outro sistema de fatos, ela participa ao
mesmo tempo da natureza do rito e da natureza da crença. É um rito, pois ela é uma
atitude tomada, um ato realizado diante das coisas sagradas. Ela se dirige à
influência ela consiste em movimentos materiais dos quais se esperam resultados.
Mas, ao mesmo tempo, toda prece é sempre, em algum grau, um credo. Mesmo onde
o uso a esvaziou de sentido, ela ainda exprime ao menos um mínimo de ideias e de
sentimentos religiosos. Na prece o crente age e pensa. E ação e pensamento estão
estreitamente unidos, brotam em um mesmo religioso, num único e mesmo tempo.
Esta convergência é aliás bem natural. A prece é uma palavra. Ora, a linguagem é
um movimento que as palavras traduzem para o exterior e substantificam. Falar é ao
mesmo tempo agir e pensar: eis porque a prece pertence ao mesmo tempo à crença e
ao culto. (MAUSS, 1909, pg. 103)

Mauss (1909) se preocupa com o fenômeno “prece”, pois de fato apresenta uma
manifestação religiosa que abarca práticas coletivas e individuais, cujo significado e o uso da
linguagem são fatores determinantes num processo de ritual. A “prece”, portanto se torna um

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elemento religioso que por si só caracteriza um ritual, visto que, seu discurso adentra efeitos
por uma sociedade religiosa.
Por entender a “prece” enquanto um ritual, Mauss atribui a este fenômeno uma série
de palavras que contem em sua essencial um sentido proclamado por uma sociedade. Isto
implica dizer que de uma forma ou de outra a “prece” “confere aos padres, profetas, videntes,
quer dizer, homens que a comunidade acredita em relações com os deuses” (MAUSS, p. 122-
123). Quando falam, são os deuses que falam por suas bocas. Não são simples indivíduos,
eles mesmos são forças sociais”
[...] Quando nos encontramos em presença do verdadeiro texto de preces, estamos
mais próximos dos fatos originais, mas ainda assim é preciso levar em conta tudo o
que nos separa deles. Na maior parte do tempo possuímos apenas traduções, o valor
das quais é preciso determinar, segundo a competência, a consciência do autor etc. A
seguir, nos é necessário medir a autenticidade do documento apresentado, segundo
as condições nas quais foi recolhido, o informante que o ditou etc. [...]. (MAUSS,
1909, pg. 127)

Sendo assim, à medida que a prece se torna integrante do ritual, é, portanto uma
instituição social carregada de sentido e como tal é necessário tomar alguns cuidados na sua
identificação, ou seja, saber quais são de fato que merecem ser chamados de preces. Isto
significa que para entender este fenômeno requer uma abordagem metodológica, onde os
elementos como definição, observação e explicação reconhecem o fenômeno “prece”, pois
segundo Mauss “é preciso compreender que ela muda de um indivíduo a outro, de um povo a
outro; ela muda, num indivíduo como num povo segundo o estado de espírito em que se
encontram”. (MAUSS, p. 125). Trata-se, pois de distinções postas por Mauss no sentido de
identificar a prece enquanto elemento de um ritual e para isto, implica reconhecer que existem
modelos de atos tradicionais e que nem todos são considerados ritos. Para Mauss (1909) é
certo, com efeito, que o rito se vincula ao simples costume por uma série ininterrupta de
fenômenos intermediários.
[...] Os ritos da religião possuem um caráter diferencial que se vincula à natureza
exclusivamente sagrada das forças às quais se aplicam. Poderemos, portanto,
concluindo, defini-los: atos tradicionais eficazes que se relacionam com as coisas
consideradas sagradas. (MAUSS, 1909, pg. 142)

Mauss acrescenta ainda, a definição de tipo de preces e sua eficácia num ritual de
modo a reconhecer sua forma oral e manual, ou seja, prática a partir do movimento do corpo,
objeto e as locuções:

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Mas, entre os feitiços e as preces, como geralmente entre ritos da magia e os da


religião, há todos os tipos de graus. Certas preces, com efeito, são em certos
ângulos, verdadeiros feitiços. Por exemplo, as que servem para consagrar produzem
necessariamente a consagração. Inversamente, certos feitiços contêm louvações e
solicitações aos demônios ou aos deuses, aos quais dirigem. [...] (MAUSS, 1909, pg.
143)

Estes dois ritos, manual e oral, podem ser chamados de prece, pois Mauss identifica
uma linguagem por meio de gestos e dramaturgias cuja intencionalidade está em reproduzir
aos deuses a própria história e assim renová-las ritualmente. Porém, nem todos os ritos orais
são preces, ela é antes de tudo um meio de agir sobre os seres sagrados, segundo Mauss
(1909) ao rezar, espera-se um resultado da prece.
[...] há certos ritos manuais, nitidamente simbólicos, que se poderiam chamar de
preces, porque são em realidade uma espécie de linguagem através do gesto; por
exemplo, todas as dramaturgias religiosas, que têm por objetivo reproduzir os altos
feitos dos deuses, suas lutas contra os demônios etc. são práticas equivalentes aos
cantos rezados que contam aos deuses a sua própria história e os incitam a renovar
suas façanhas. Mas, estão apenas às margens da prece, como a linguagem por gestos
está às margens da linguagem articulada, e, por conseguinte, não os consideraremos
em nossa definição. Ao contrário, há certos ritos orais que consideraremos como
prece, ainda que tenham se tornado manuais por uma série de degradações, a que
chamamos regressões. A origem deles, com efeito, é sempre oral, é à virtude das
palavras que devem seu poder. (MAUSS, 1909, pg. 144)

Contudo, Mauss (1909) define o fenômeno prece: “a prece é um rito religioso, oral,
diretamente relacionada com as coisas sagradas”. (MAUSS, 1909, pg. 145-146), analisando
assim o princípio religioso por excelência entre ambos, bem como, as relações controvertidas
estabelecidas conforme seus múltiplos aspectos e numerosas funções. Todavia, a ideia de
evolução dos fenômenos religiosos apresentado por Mauss demonstra onde “toda prece é um
discurso ritual, adotado por uma sociedade religiosa” (MAUSS, 1909, p. 118), sobretudo
associá-la enquanto fenômeno social coletivo e individual.
[...] Mas é sobretudo no caso da prece que a solidariedade das duas ordens de fatos
se manifesta com evidência. Nela o lado ritual e o lado mítico são, rigorosamente,
apenas as duas faces de um único e mesmo ato. Eles aparecem ao mesmo tempo, são
inseparáveis. Certamente a ciência pode abstraí-los para melhor estuda-los mas
abstrair não é separar. Sobretudo não se trata de atribuir a um ou a outro uma espécie
de primazia. (MAUSS, 1909, pg. 104)

A antropóloga Peirano (2003) acrescenta a possibilidade dos rituais e representações


formarem um par indissociável cuja sobrevivência, está associada a um grupo de pessoas,
onde a “comunidade moral se encontra relativamente unida em torno de determinados
valores” (PEIRANO, 2003, p. 14), ou seja, a posição da sociedade supostamente relacionada à

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condição de “sagrada”, pois significam o viver e o pensar segundo Peirano (2003). Na visão
de Peirano, o Brasil apresenta a possibilidade de desenvolver vários rituais em nome da
sobrevivência de determinados valores, que de todo modo é consideradas representações que
celebram, por exemplo; a Proclamação da Independência, da República entre outros.
O ritual é um sistema cultural de comunicação simbólica. Ele é constituído de
sequências ordenadas e padronizadas de palavras e atos, em geral expressos por
múltiplos meios. Estas sequências têm conteúdo e arranjo caracterizados por graus
variados de formalidade (convecionalidade), estereotipia (rigidez), condensação
(fusão) e redundância (repetição). A ação ritual nos seus traços constitutivos pode
ser vista como “performativa” em três sentidos: 1) no sentido pelo qual dizer é
também fazer alguma coisa como um ato convencional [como quando se diz “sim” à
pergunta do padre em um casamento]; 2) no sentido pelo qual os participantes
experimentam intensamente uma performance que utiliza vários meios de
comunicação [um exemplo seria o nosso carnaval] e 3), finalmente, no sentido de
valores sendo inferidos e criados pelos atores durante a performance [por exemplo,
quando identificamos como “Brasil” o time de futebol campeão do mundo].
(PEIRANO, 2003, pg. 9).

Peirano (2003) aborda perspectiva antropológica e etnográfica cuja relação do rito


com a sociedade demonstra haver relações com eventos considerados especiais. E isto
significa entender os eventos especiais enquanto elementos carregados de ações sociais onde
estão presentes eventos de natureza que podem ser de certa forma, profanos, religiosos,
festivos, formais, simples ou elaborados. Segundo Peirano o rito é operacionalizado dentro de
um processo de criatividade e eficácia, isto é, situações cotidianas que transmitem valores e
conhecimentos comuns a um determinado grupo.
Neste sentido, Peirano explica que em todas as sociedades existem eventos
considerados especiais, são, sobretudo eventos gerados socialmente como a formatura,
casamento, campanha eleitoral, ou até mesmo a posse de um presidente e mais ainda um jogo
final da Copa do mundo. Isto pressupõe, que estes eventos conforme Peirano indica ao
pesquisador a condição do ritual e seus elementos que de certa forma apresentam certo grau
de convecionalidade, de redundância, que combinam palavras e outras ações de cunho ritual.
[...] Consideramos o ritual um fenômeno especial da sociedade, mas o ritual
expande, ilumina e ressalta o que já é comum a um determinado grupo. Como venho
enfatizando, ao invés de nos fixarmos nos critérios (ocidentais) de racionalidade,
procuraremos seguir critérios de criatividade e eficácia. Rituais são bons para
transmitir valores e conhecimentos e também próprios para resolver conflitos e
reproduzir as relações sociais; finalmente, como vivemos em sociedade, tudo aquilo
que fazemos tem um elemento comunicativo implícito. Ao nos vestirmos de
determinada forma, ao assumirmos determinadas maneiras à mesa, ao escolhermos
determinados lugares para frequentar, estamos comunicando preferências, status,
opções. Da mesma forma, falar também é uma forma de agir, como qualquer outro

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tipo de fenômeno: falar e fazer têm, cada um, sua própria eficácia e proposito, mas
ambos são ações sociais. (PEIRANO, 2003, pg. 8-9)

Na visão de Peirano, o ritual tem haver com o conhecimento de nosso mundo e de


nossos projetos e ambições, pois somente a partir deles revelam-se trilhas, encruzilhadas e
dilemas no processo e assim caminhar para mudanças e transformações.
Alguns anos mais tarde, em 1966, Leach (1911 – 1989) define em mais detalhes o
aspecto ritual da comunicação, distinguindo três tipos de comportamento: 1) o
racional – técnico, dirigido a fins específicos que, julgados por nossos padrões de
verificação, produzem resultados de maneira mecânica; 2) o comunicativo, que faz
parte de um sistema que serve para transmitir informações por meio de um código
cultural; e finalmente 3), o mágico, que é eficaz em termos de convenções culturais.
Exemplos desses três tipos de comportamento são (1) o corte de uma árvore; (2) um
aperto de mão; (3) um juramento. Leach enfatiza que a antropologia até então
considerava ritual apenas a classe de comportamentos do terceiro tipo, chamando o
segundo de etiqueta ou cerimonial. Para Leach, “ritual” seria um termo aplicável
tanto ao segundo quanto ao terceiro tipo de comportamento. (PEIRANO, 2003, pg.
24)

Entretanto, as crenças religiosas, os ritos não ocorrem à revelia de uma percepção de


sagrado. Conforme as teorias apresentadas aqui, o sagrado está relacionado a algo especial
que requer preparação, permitindo ao indivíduo a experiência do contato com o transcendente,
sensações, energias, sentimentos próprios com bases emocionais. Segundo Eliade o profano
por sua vez, é compreendido como as relações com as coisas do mundo sem qualquer
preparação, cuja atitude pelo sujeito é encarada como transgressora do proposto como ideal
para uma instituição.
Equivale ressaltar que os ritos apresentam ações complexas dentro de processos de
crenças mágicas e religiosa nas quais destina explicar fenômenos naturais e sobrenaturais de
um povo, bem como, representações em eventos especiais do cotidiano que geram para a
sociedade uma forma de organização.

Referências Bibliográficas

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- Casa da Moeda, 1994, vol. 12. pp. 74-93.

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Fontes, 2010.

DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa: o sistema totêmico na


Austrália. Trad. Paulo Neves. São Paulo, Martins Fontes, 1996.

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MAUSS, Marcel. A Prece. In: Oliveira, Roberto C. de (Org). São Paulo: Ática [1909], 1979.

PEIRANO, Mariza. Rituais ontem e hoje, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.

TURNER, W, Victor. O processo ritual: Estrutura e Antiestrutura. Trad. Nancy Campi de


Castro. Petrópolis, Vozes, 1974.

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(http://iidypca.homestead.com/fundamentosantropologia/turner_simbolos_en_el_ritual_ndem
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RIVIÈRE, Claude. Os ritos profanos, Petrópolis: Vozes, 1997.

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O CATOLICISMO E AS RELIGIÕES NO LIVRO DO ROSÁRIO DE NOSSA


SENHORA (1573) DE FR. NICOLAU DIAS

André Rocha Cordeiro55


Prof. Dra. Solange Ramos de Andrade56

Resumo: A presente comunicação propõe pensar como são concebidas as religiões em


Portugal, do século XVI, elencadas no discurso do frade dominicano Nicolau Dias (1573).
Parte-se da obra Livro do Rosário de Nossa Senhora, impresso na casa de Francisco Correa,
em Lisboa, na perspectiva de analisar como um membro da instituição católica referência sua
própria religião e as demais religiões existentes no território português. As reflexões tecidas
pautam-se nos conceitos de “lugar social”, de Michel de Certeau (1982), e de “linguagem
autorizada”, de Pierre Bourdieu (1998), na medida em que compreende-se que Frei Nicolau
Dias é um agente religioso detentor de uma fala que é legitimada pela instituição do qual fala
e representa.
Palavras-chave: Fr. Nicolau Dias, Ordem dos Pregadores, Portugal, Catolicismo, Religiões.

CATHOLICISM AND RELIGIONS IN THE BOOK OF THE ROSARY OF OUR LADY


(1573), OF FR. NICOLAU DIAS

Abstract: The present communication proposes to think how are conceived the religions in
Portugal, of century XVI, listed in the speech of the Dominican priest Nicolau Dias (1573).
Part of the work Book of the Rosary of Our Lady, printed in the house of Francisco Correa, in
Lisbon, with the perspective of analyzing as a member of the Catholic institution reference its
own religion and the other religions existing in the Portuguese territory. The reflections are
based on the concepts of "social place" by Michel de Certeau (1982) and Pierre Bourdieu's
"authoritative language" (1998), in that it is understood that priest Nicolau Dias is an agent
religious who holds a speech that is legitimized by the institution of which he speaks and
represents.
Key-words: Fr. Nicolau Dias, Order of Preachers, Portugal, Catholicism, Religions.

Fr. Nicolau Dias e o Livro do Rosário de Nossa Senhora (1573):

Refletir o catolicismo e as religiões a partir da obra Livro do Rosário de Nossa


Senhora (1573) de Fr. Nicolau Dias traz contributos para compreender como foram
construídas, discursivamente, as concepções acerca das referidas por membros especialistas
da Igreja Católica, Portugal, no século XVI. Por meio da referida fonte nos é permitido

55
Graduado e Mestrando em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual de
Maringá (PPH-UEM). Integrante do Laboratório de Estudos em Religiões e Religiosidades na Universidade
Estadual de Maringá (LERR - UEM).Bolsista CAPES. E-mail: andrerochacordeiro@hotmail.com.
56
Orientadora. E-mail. sramosdeandrade@gmail.com.
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elaborar e tracejar categorias que estavam em voga no período quinhentistas e analisar como
tais ideias, devidamente contextualizadas, circulavam no meio social que as permitia existir.
André Cellard (2008, p. 295) pontua que, dentre a variedades de fontes que hoje estão
disponíveis ao historiador, a fonte escrita desempenha um papel de importância para a análise
histórica, tal como aos demais documentos, dentre eles: os iconográficos e os arqueológicos.
Cabe ao historiador em seu ofício, “peneirar” as informações contidas nas fontes escritas e
analisá-la, a partir de referenciais teóricos, na perspectiva de compreender o porquê da sua
produção, por quem, para quem e de que forma foi apresentada.
Uma das prerrogativas do historiador em seu ofício é realizar a crítica documental.
Ademais, a mesma evoca a necessidade de explicitar a identidade do autor, bem como dos
interesses que o levaram a produzir tal texto e para que público a direcionou. Silva Lara
(2008), defende que é de suma importância conhecer em que espaço socioeconômico um
autor está inserido, pois é este que permite e motiva a elaboração de um discurso e de um
documento escrito. Desse modo, o primeiro questionamento a ser analisado, para se refletir
sobre o catolicismo e as religiões no Livro do Rosário de Nossa Senhora (1573), é: quem é o
autor da referida obra e para quem ele a produziu? Quem foi Fr. Nicolau Dias ou quem é esta
personagem que constrói e fabrica tal narrativa?
Pautados em estudos realizados, observamos que não existe uma “biografia”, que
narra nascimento, infância, juventude, período adulto e morte, sobre Dias. O que existem são
informações esparsas de alguns estudiosos portugueses e brasileiros que se debruçam sobre as
produções escriturárias de Fr. Nicolau Dias. Sobre os campos do conhecimento que
abordaram acerca das obras de Dias, destacamos: Antropologia; Teologia e História. De tais
campos do conhecimento destacamos os intelectuais: Raul Rolo (1982), António de Almeida
(2006), Bertrand de Margerie (1991;1994), Juliana Beatriz de Souza (2002) e Leonara Delfino
(2013; 2015).
Fr. Nicolau Dias foi um homem que se destacou na literatura portuguesa do século
XVI, pela produção de livros de conteúdo religiosos, destacando-se o Tratado da Paixão de
Nosso Senhor Jesus Cristo (1580) e o Livro do Rosário de Nossa Senhora (ROLO, 1982;
MARGERIE, 1991; MARGERIE, 1994). Também lhe é concedida a autoria de Vida da
Sereníssima Princesa Dona Joana (1585), de tratados sobre o Juízo Final, as Excelências de
S. João Baptista e um relato de sua peregrinação à Terra Santa (ROLO, 1982, p. 1).

59
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Nascido, provavelmente, entre os anos de 1520 e 1525, e falecendo no Convento São


Domingos de Lisboa, em 06 de fevereiro de 1596, Fr. Nicolau Dias adentrou a Ordem dos
Pregadores, sendo que professou os votos solenes da Ordem em 02 de junho de 1541. No ano
de 1571 se tornou padre-mestre em teologia, grau que, possivelmente, lhe permitiu exercer a
docência para jovens dominicanos lusitanos em formação (ROLO, 1982; MARQUES, 2010).
No ano de 157157, Fr. Nicolau Dias participou, na condição de delegado58 da Província
Portuguesa da Ordem dos Pregadores, no Capítulo Geral da Ordem59, realizado em Roma,
evento no qual foi eleito mestre geral Seraphinus Cavalli60 (1571-1578). Neste encontro, Dias,
provavelmente, teria entrado em contato com o papa dominicano Pio V (1566-1572),
conhecido também como papa do rosário, de modo a ser incentivado a produzir o Livro do
Rosário de Nossa Senhora, que foi publicado dois anos após o encontro por Francisco
Correia, então impressor do Cardeal Infante Dom Henrique (1512-1580).
No que concerne ao Livro do Rosário de Nossa Senhora (1573) cabe destacar que a
referida obra foi direcionada a uma comunidade leitora denominada por Dias como Devoto
Leitor.
Considerando algumas vezes devoto leitor, na devoção do Rosário de nossa
Senhora, coisa de tanto serviço de Deus, glória da mesma Virgem, e proveito das
almas: e vendo como muitos desejavam saber o princípio dela, e os perdões que
ganham os Confrades do Rosário, determinei satisfazer a seus santos desejos (DIAS,
1573, p. 07; grifo nosso).

Partimos das considerações de Roger Chartier (1995) para pensarmos a figura leitor,
no que se refere a discussão e concepção de que estes recebem uma determinada obra em
circunstâncias e momentos singulares, que, mesmo de forma inconsciente, projetam

57
Embora não tenhamos encontrado uma historiografia que apontasse o motivo da celebração do Capítulo Geral
de 1571, realizado na cidade de Roma, acreditamos que tenha ocorrido pela nomeação de Vincezo Giustiniani
(1516-1582) para cardeal da Igreja Católica, em 1570. Giustianiani foi mestre-geral entre 1558 e 1570,
permanecendo no cargo de geral mesmo após sua nomeação cardinalícia. A cronologia dos Mestres Gerais da
Ordem de Pregadores está disponível no endereço eletrônico https://estudosop2.wordpress.com/2010/09/07/os-
mestres-gerais/. Acesso em 21/04/2016.
58
De acordo com o Livro de Constituições e Ordenações, da Ordem dos Pregadores, no seu cap. XVI, art. III,
inc. 405 – 409, os delegados são frades eleitos para representar a província, a qual é jurisdicionalmente membro,
no Capítulo Geral (LCO, OP, 2010, p. 144-148).
59
Capítulo Geral é uma assembleia que congrega representantes de determinada ordem religiosa. No caso da
Ordem dos Dominicanos, o Capítulo Geral, segundo consta no Livro das Constituições e Ordenações (LCO), em
seu cap. XV, art. III, inc. 405, “é a reunião dos frades representantes das províncias para tratar e definir tudo o
que diz respeito ao bem de toda a Ordem, e, se for o caso, eleger o Mestre da Ordem” (LCO, OP, 2010, p. 144-
148).
60
Foi o 48º mestre geral da Ordem dos Pregadores.
60
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concepções e leituras a partir de referências que lhes são oferecidos e apropriados. Segundo o
referido autor, é necessário que o historiador, que verte seu olhar para a prática da leitura,
compreenda a cultura escrita do período escrito, pois múltiplas interpretações podem ser
realizadas a partir da mesma.

Cada leitor, em cada uma de suas leituras, em cada circunstância, é singular. Porém
esta singularidade está atravessada pelo fato de que esse leitor se assemelha a todos
aqueles que pertencem a uma mesma comunidade cultural. O que muda é a
definição dessa comunidade, segundo os diferentes períodos, não é regida pelos
mesmos princípios. Na época das reformas religiosas, a diversidade das
comunidades de leitores está organizada em grande medida a partir da pertença
confessional61 (CHARTIER, 2000, p. 58; tradução nossa)

Não podemos negar que os indivíduos, enquanto seres pretensamente autônomos,


podem realizar leituras de uma obra de formas particulares e variadas, destoando por vezes
das intenções do autor. Todavia, a partir de uma cultura do ler que permeia este indivíduo nos
é permitido conjecturar uma comunidade leitora ou mesmo receptora de dado livro. Estes
sujeitos, enquanto seres instituídos62, não existem fora de uma cultura determinada, sendo que
subsistem apesar ou contra ela (LOURAU, 1996, p. 43).
Com base nas considerações acerca da comunidade leitora, proposta por Chartier
(2000), compreendemos que Fr. Nicolau Dias remete suas obras à comunidade católica
lusitana letrada. Tal compreensão se pauta em algumas constatações, dentre elas a análise do
contexto histórico da produção.
Destacamos que no século XVI, na Europa, a leitura era algo restrito para poucos. Os
índices de analfabetismo da população eram altos e, segundo Gilment (2004, p. 392; tradução
nossa), “Não cabe dúvida de que a população [europeia, do século XVI,] era analfabeta;

61
Cada lector, en cada una de sus lecturas, en cada circunstancia, es singular. Pero esta singularidad está
atravesada por el hecho de que ese lector se asemeja a todos aquellos que pertenecen a una misma comunidad
cultural. Lo que cambia es que la definición de esas comunidades, según los diferentes períodos, no se rige por
los mismos principios. En la época de las reformas religiosas, la diversidad de las comunidades de lectores está
organizada en gran medida a partir de la pertenencia confesional (CHARTIER, 2000, p. 58).
62
Compreendemos indivíduos instituídos a luz de René Lourau (1996), em sua obra A análise institucional. Para
o referido autor, “O sujeito não existe antes da instituição, apenas dela ou contra ela, mas existe enquanto
instituído. O exemplo do casamento e da família serve para provar, contrariamente às teorias contratuais, que
consideram << a pessoa autônoma em sua individualidade>>, que a família é unicamente uma pessoa
substancial, << da qual os membros são os acidentes>>. Mas qual é o laço que liga estes acidentes para constituir
uma substância? É <<a identificação das personalidades>>, que não é outra senão o <<espírito moral
objetivo>>” (LOURAU, 1996, p. 43).
61
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entretanto, em que proporção? A pergunta é quase insolúvel63”. Em miúdos, as comunidades


leitora da Europa quinhentista era composta por uma elite letrada, sendo basicamente formada
por membros da Igreja e da nobreza. Nas Epistolas Dedicatórias das edições do Livro do
Rosário de Nossa Senhora tem-se enquanto remetentes nomes de nobres portugueses, sendo
que todas as edições, a partir da primeira publicada em 1573, da obra em questão foram
dedicadas ao casal português Jorge da Silva e dona Luísa de Barros.

Aos ilustres senhores Jorge da Silva e dona Luísa de Barros sua mulher.
Muito tempo há que desejava oferecer coisa, em que mostrasse a vontade que tinha
de servir vossas mercês: porque como sejam também feitores da ordem e
particularmente deste mosteiro de São Domingos de Lisboa [...] (DIAS, 1573, p.04)

Do mais é necessário compreender o contexto social no qual o documento foi


produzido e no qual o autor está inserido (CELLARD, 2008).

Seja como for, o analista não poderia prescindir de conhecer satisfatoriamente a


conjuntura política, econômica, social, cultural, que propiciou a produção de um
documento determinado. Tal conhecimento possibilita apreender os esquemas
conceituais de seu ou de seus autores, compreender sua reação, identificar as
pessoas, grupos sociais, locais, fatos aos quais se faz alusão, etc. Pela análise do
contexto, o pesquisador se coloca em excelentes condições até para compreender as
particularidades da forma, da organização, e, sobretudo, para evitar interpretar o
conteúdo do documento em função de valores modernos (CELLARD, 2008, p. 299-
300).

Na perspectiva de melhor compreender o discurso construído por Fr. Nicolau Dias em


sua obra Livro do Rosário de Nossa Senhora (1573), se faz de suma importância compreender
acerca das discussões realizadas acerca do conceito de Reforma Católica e como tal
conceituação contribui para pensar o referido dominicano como um homem que compartilhar
de conceitos e acepções de seu período histórico, o século XVI.
Conforme já afirmamos, Fr. Nicolau Dias pode ser considerado um homem
quinhentista por excelência, uma vez que sua trajetória de vida não ultrapassou as barreiras
cronológicas do século. No referido período a Igreja Católica tem sua hegemonia abalada com
o surgimento de novas denominações religiosas, mais detidamente cristãs. A Europa, outrora
Católica, vivência instituições disputando o monopólio e poderio de capital simbólico
religioso e os indivíduos crentes em tentar adquirir bens oferecidos para a salvação de suas
almas (BOURDIEU, 2007).

63
“No cabe duda de que la población era analfabeta; pero, ¿en qué proporción? La pregunta es casi insoluble”
(GILMONT, 2004, p. 392).
62
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Diante da nova configuração religiosa que a Europa assume durante o século XVI,
podemos analisar que a Igreja Católica, objetivando perpetuar-se enquanto instituição
religiosa, detentora do monopólio simbólico religioso, ao ter sua hegemonia do campo
religioso abalada, empreende ações de combate e disputa pelo capital simbólico
(BOURDIEU, 2007). Nos é permitido, a partir das reflexões de Pierre Bourdieu (2007), que o
rompimento da hegemonia católica ocasionada pelos reformadores, e reconhecida pelo poder
monárquico que os legitimam (luteranos, calvinistas e anglicanos), fez com que novas formas
de impedir essas novas empresas de bens de salvação fossem desenvolvidas pela instituição
católica. Entretanto, não pensamos que, no contexto do século XVI, as ações reformistas que
ocorreram se expressam unicamente como uma resposta aos mais diversos reformadores do
período, antes foram operadas enquanto uma imprescindibilidade da Igreja Católica e que
tinha sua origem em períodos antecedentes (BATTELLI, 1996). Desse modo, partimos do
conceito de Reforma Católica na perspectiva de refletir acerca do discurso de Fr. Nicolau Dias
inserido no movimento de renovação espiritual, uma vez que ao longo do mesmo observamos
indícios de práticas da Reforma Católica, como: renovação da devoção e confraria do Rosário
(DIAS, 1573, p. 18).
Compreendendo que todo sistema de conhecimento está relacionado aos mais diversos
lugares, contribui para as reflexões que tecemos neste capítulo a discussão conceitual de
Michel de Certeau (1982) acerca do lugar social. Segundo o referido historiador, ao encarar a
história enquanto uma operação é necessário ao pesquisador a compreensão de que discursos
e narrativas históricas estão articuladas com os lugares de produção, que podem ser: político,
cultural, social e cultural (CERTEAU, 1982, p. 66). Para o referido historiador, por meio da
análise dos lugares sociais, enquanto espaços que oferecem condições da produção dos
sistemas de pensamentos, ideias e de discursos, é possível traçar os delineamentos silenciados
ou não ditos (CERTEAU, 1982). Outrossim, se faz necessário pensar o discurso construído
por Fr. Nicolau Dias a partir dos lugares sociais que o mesmo transitou e que lhe influenciou
na construção de um discurso na promoção culto mariano ao Rosário. Cabe mensurar estes
dois lugares: Igreja Católica e Ordem dos Pregadores.

As crenças e suas características na obra de Fr. Nicolau Dias (1573): o Catolicismo, o


Judaísmo e o Islamismo

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Objetivando analisar a construção narrativa acerca das religiões em Portugal, do


século XVI, elencadas no discurso institucional católico do frade dominicano Nicolau Dias
(1573), partimos, conforme já elencado, da obra "Livro do Rosário de Nossa Senhora",
impresso na casa de Francisco Correa, em Lisboa, na perspectiva de analisar como um
membro da referida instituição faz referência ou constrói uma narrativa de alteridade e de
identidade da sua religião e outras duas religiões existentes no território português. Importante
salientar que para o referido estudo compreenderemos “Religiões” enquanto sistemas de
crenças e práticas institucionais, mais detidamente: Catolicismo, o Judaísmo e o Islamismo.
Escrita em 492 páginas, com dimensões físicas de 16 cm, a referida obra foi produzida
para um público leitor português católico peninsular, mas detidamente para os possíveis e
futuros confrades dominicanos do Reino Português, com o objetivo de promover a prática e
culto do rosário neste território. Voltado “a todos os Cristãos assim homens, como mulheres,
de qualquer estado e condição de seja, grandes e pequenos” (DIAS, 1573, p. 30), em outras
palavras, voltados a um público amplo que não se restringia a gênero e condição servil ou
econômica. Em sua narrativa, em variados momentos, na perspectiva de apresentar exemplos
ao leitor cristão, Fr. Nicolau Dias enuncia o outro enquanto diferentes.
Pautamos nossas reflexões nas considerações tecidas por François Hartog (1999),
acerca de “Uma narrativa da alteridade”. Para o referido historiador, falar de um outro é
considerá-lo e enuncia-lo como diferente, é construir paralelos entre dois termos, a e b, e que
a não é b”, um “nós” e um “eles”, e, desse modo, edificar quadros referenciais e
comparativos. Em consonância com Hartog (1999), Jorge Larrosa e Nuria Pérez de Lara
(1998) enfatizam que as imagens do outro e as alteridades são fabricadas com a finalidade de
classificar e/ou excluir. Estas imagens partem de um “nós” que objetivando delinear campos
constrói um espaço para eles.
Embora não seja a intenção de Fr. Nicolau Dias (1573) privilegiar práticas religiosas
das crenças islâmicas ou judaicas, podemos notar que ao intentar abarcar um público lusitano
maior, o referido frade apresenta tais grupos religiosos enquanto “eles” na narrativa. Estes
mesmos grupos, na narrativa de Dias (1573) não devem ser seguidos pelo o cristão católico,
fiel aos preceitos da fé institucional e que cultuam a Virgem e seu rosário, que se configura
enquanto o “nós”. Tecendo os paralelos entre o “nós” e o “eles” Fr. Nicolau Dias (1573)

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apresenta as práticas religiosas de cada grupo pretendendo construir um modelo ideal do ser
católico em Portugal do século XVI.
No que concerne a Religião Judaica em Portugal, cabe destacar que, em fins do século
XV os judeus foram expulsos ou convertidos, como cristãos-novos, nos reinos ibéricos. De
acordo com Robert Rowland (2010), oficialmente, por meio dos decretos régios, Espanha e
Portugal não possuíam populações judaicas em seus territórios imperiais, pois todos aqueles
que compartilhavam da religião judaica, só foram autorizados a permanecer nos referidos
territórios caso tivessem se convertido – voluntariamente ou não – ao catolicismo.
Entretanto não pode-se afirmar que de fato tais documentos reais tenham conseguido
na prática expulsar ou converter todos os judeus. Um pequeno exemplo da permanência de
grupos judaicos pode ser analisado por meio dos relatórios inquisitoriais acerca das “práticas
judaicas” realizadas por “cristãos-novos”. Para Rolawnd (2010, p. 172), “mundo ibérico dos
séculos XVI, XVII e XVIII, por conseguinte, todos os judeus remanescentes eram
necessariamente judeus clandestinos, para quem era de importância vital dissimular suas
práticas e seus sentimentos religiosos”.
Fr.Nicolau Dias não constrói nenhuma narrativa hagiográfica, na perspectiva de
edificar um santo ou uma prática, sobre os judeus, tal qual faz com os islâmicos. Tal grupo
religioso aparece na narrativa acerca do quarto mistério doloroso enquanto “povo cego e
obstinado” (DIAS, 1573, p. 148), pois negaram a Jesus como seu rei, recordando a passagem
bíblica da inscrição da placa/letreiro da Cruz, o INRI. Enquadrando-se como diferentes,
declara ao seu leitor que “Nesse passo tem o devoto [leitor] muita ocasião para levantar o
pensamento, e muito de verdade, e com grande desejo pedir ao Senhor que queira ser seu Rei
e ensenhorear-se de seus corações”. Desse modo, os termos distintivos, conforme preconiza
Hartog (1999), se expressam por “eles” negaram a Cristo e o “Nós” que devemos aceitar o
mesmo Cristo com Rei de sua vida e coração.
As práticas islâmicas ou indivíduos que se caracterizavam com tal religião aparecem
em duas narrativas hagiográficas do Livro Quarto em que se contam alguns dos muitos
milagres que nosso Senhor por intercessão da Virgem gloriosa nossa Senhora tem obrado,
mediante a devoção do Rosário (DIAS, 1573, p. 289-383). Na primeira narrativa, intitulada
Como uma cativa por virtude do Rosário saiu do cativeiro, os islâmicos são apresentados
como perseguidores dos cristãos, já na segunda, de título Como um mouro sarou de uma

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enfermidade, e se converteu por virtude do Rosário, este mesmo grupo é caracterizado


enquanto zombadores da fé cristã.
Importante destacar que, conforme propõe Michel de Certeau (1982) as narrativas
hagiográficas são tipologias textuais que mescla milagres e virtudes, na perspectiva de
edificar um culto e uma personagem revestida de santidade. Nas narrativas do Livro do
Rosário de Nossa Senhora (1573) o modelo proposto se expressa pelos cristãos católicos
devotos e que recitam o Rosário, sendo este último um elemento que proporciona ao fies a
possibilidade da salvação e transformação.
Os islâmicos na primeira narrativa que os abordam enquanto personagens são
caracterizados como perseguidores dos cristãos e exemplos a serem negados e temidos. Esta
mesma narrativa, apresenta como personagem uma jovem mulher, filhas de pais católicos e de
“bons costumes”, que estava “prenhe” [grávida] de 8 meses. Se deslocando para Cordova com
o esposo, uma quadrilha de mouros, a pé e a cavalo, entrou em confronto com os primeiros.
Desse modo, cristãos e mouros não apresentados como rivais. De acordo com a narrativa, o
esposo da jovem grávida, juntamente com seus servos, foi morto. A mulher levada como
cativa, prática comum no século XV, temia que tomassem o filho que esta tinha no ventre e o
tornasse “infiel” (DIAS, 1573, p. 350). Logo após o nascimento do filho a senhora rezou, por
meio do rosário, por sete dias solicitando a Deus e a Virgem gloriosa que livrassem o menino
da circunscrição islâmica. No oitavo dia, no qual iriam circuncidar o menino. Chorou muito e
adormeceu com o rosário na mão.
Em sonho, teria lhe aparecido uma senhora em grande majestade, e esta perguntava a
mãe se queria que o filho fosse batizado, a mulher em resposta declarava que sim,
expressando temer o futuro do filho. A mesma senhora, vestida de majestade, que se
levantasse e seguisse-a para que ela levasse mãe e filho para o local de batismo. “E segundo
ela a dita Senhora, ia até a porta de uma igreja de Santiago de Galiza. Quando acordou viu
que era assim e achou-se a porta da igreja de Santiago, onde fez o batismo do menino. E dali
por diante foi muito mais devota da Virgem gloriosa, e de seu Rosário [...]” (DIAS, 1573, p.
351).
Na narrativa, acima apresentada, é possível entrever que no discurso católico do século
XVI o torna-se islâmico era algo considerado como terrível uma vez que a mãe teme e chora

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pelo futuro do filho. Além do mais, o mesmo grupo é caracterizado como perseguidores e
responsáveis pelo cativeiro dos cristãos nas regiões fronteiriças.
Na narrativa Como um mouro sarou de uma enfermidade, e se converteu por virtude
do Rosário (DIAS, 1573, p. 357-360), embora o grupo islâmico seja retratado como de
intelecto e de “bom entendimento, bom juízo e folgava de conversar com homens sábios na fé
de Cristo”, possui a característica de ser, também, zombadores da fé em Cristo.
Ainda na referida narrativa, um mouro era amigo de um sacerdote letrado, que o
convidava a conversão ao cristianismo. O mouro brincava que se tornaria praticante da fé
cristã católica quando Deus quisesse, entretanto aprendeu a Ave Maria e o Pater Noster. Este
ficou enfermo, a ponto de sentir dor noite e dia. O religioso cristão, amigo do mouro, teria ido
visita-lo e disse-lhe que seria errôneo morrer sem o batismo e na “Ley de Mafamede”, e caso
quisesse se livrar da moléstia que o afetava poderia recorrer a Nossa Senhora, mediadora de
Deus, por meio da prática do Rosário. De acordo com a narrativa hagiográfica, o mouro
aconselhado pelo sacerdote começou a rezar o Rosário e começou a sentir-se melhor, sendo
que em três dias encontrou-se curado. Após tal milagre o mesmo mouro teria se convertido ao
cristianismo.
Importante destacar que as narrativas hagiográficas relacionadas com interesses e
práticas estabelecidas por que a apresenta, propõe e demarcas as relações de um grupo em
relação a um outro. No caso observamos a construção de uma prática católica, revestida de
caraterísticas devotas, e uma prática moura ou islâmica, considerada modelo a não ser seguida
e que zomba das demais práticas religiosas. Além disso, apresenta de uma maneira distinta
característica da sociedade que lhe permitiu ser produzida. Desse modo, não é de todo
estranho a referida caracterização do grupo religioso islâmico, que invadiu a Península Ibérica
no século VIII e permaneceu com território islamizados até o século XV. Partindo da obra de
Fr. Nicolau Dias percebemos, outrossim, que no que concerna às práticas islâmicas, estão são
consideradas práticas a serem temidas e negadas pelos cristãos a partir do discurso
institucional.
Por fim, observamos que ao desenvolver suas narrativas hagiográficas e apresentando
textos bíblicos, Fr. Nicolau Dias (1573) contrapõe aos judeus e aos islâmicos um modelo de
cristão católico que se faz seguidor de Jesus e devoto do Rosário. Nas meditações dos

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mistérios do Rosário, o exemplo de católico, contraposto ao modelo de judeu, é aquele que


“muito tem à considerar” com a recitação e devoção do Rosário.

[...] assim os que começam a rezar esta devoção entram em um jardim e rosal
espiritual: no qual há três ruas de coisas muito lindas, e para considerar. A primeira
de gozos e contentamentos. A segunda de dor e sentimento. A terceira de glória. E
em cada uma destas ruas há muitos e diversos passos, em que se pode ocupar a
consideração, entretanto com a boca se disser o Pater noster e as Ave Marias (DIAS,
1573, p. 87-88).

Tal modelo de cristão católico é enfatizado, também, nas narrativas hagiográficas que
possuem como personagem o mouro. Em ambas narrativas observamos que a prática católica
defendida por Dias (1573), como “excelente” e aceita a Deus e a Virgem Gloriosa, é a prática
do Rosário. Tanto a narrativa acerca da mulher grávida quanto a do mouro que se converte ao
cristianismo a prática do Rosário perpassa as narrativas como símbolo e modelo de prática
cristã católica.

Considerações Finais:
Em suma, compreendemos que ao estabelecer uma narrativa de alteridade,
contrapondo um “nós” e um “eles”, Fr. Nicolau Dias, em o Livro do Rosário de Nossa
Senhora (1573), ao empreender um discurso em promoção do Rosário, propõe enquanto
modelo a não serem seguidos os judeus e os islâmicos, sendo: os primeiros por serem os que
condenaram a Cristo e os segundos por perseguirem e zombarem da fé cristã. Por sua vez, o
modelo de cristão católico considerado ideal é o de devoto fiel seguidor da doutrina cristã e
devoto ao Rosário da Virgem Maria.
Enquanto agente da instituição, inserido em lugares sociais que lhe permitem falar, é
possível observar que Fr. Nicolau Dias (1573) buscando legitimar seu discurso e a prática do
Rosário, constrói e apresenta referências e modelos dos indivíduos da própria religião e das
religiões Judaica e Islâmica, de conhecimento da comunidade leitora lusitana a qual direciona
sua obra. Cabe destacar, que a discussão aqui apresentada se expressa um olhar possível sobre
o Livro do Rosário de Nossa Senhora (1573) e as considerações levantadas são tem a
pretensão de esgotar as possibilidades que a fonte histórica em questão possibilita e nem as
demais perspectivas analíticas.

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Revista A Cruzada (1926 – 1931) e a imprensa católica no Paraná


Andressa Paula (Mestranda UEM/LERR)64
Solange Ramos de Andrade (UEM/LERR)65
Resumo: O presente artigo tem como objetivo apresentar os aspectos iniciais da pesquisa de
mestrado em desenvolvimento que se propõe a analisar os discursos produzidos pela imprensa
católica no Paraná a partir da revista mensal A Cruzada (1926 – 1934) de Curitiba/PR. No
início do século XX no Brasil há uma intensificação de publicações ligadas á Igreja Católica,
provocadas pela criação do Centro da Boa Imprensa (1910) órgão responsável pela
organização e sistematização de captação de recursos e de direcionamento de temáticas para
jornais, revistas ou informativos católicos. Para a pesquisa serão analisadas as edições de
1926 á 1931, período de circulação mensal da revista. A abordagem metodológica dessa
investigação é apoiada em Luca (2008), Martins (2003) e Cruz e Peixoto (2007). Serão
destacados nesse artigo os primeiros resultados da leitura e tabulação das revistas quanto á
identificação do periódico e o projeto gráfico/editorial.
Palavras-chave: Igreja Católica; Imprensa católica; Discurso religioso.

A Cruzada Magazine (1926 - 1931) and the Catholic Press in Paraná


Abstract: The present article aims to introduce the initial aspects of the research to the
masters degree in development that proposes to analyze the speeches produced by the
Catholic press in Paraná from the monthly magazine A Cruzada (1926 - 1934) from Curitiba /
PR. At the beginning of the 20th century in Brazil there is an intensification of publications
related to the Catholic Church, caused by the creation of The Good Press Center (1910) organ
responsible for the organization and systematization of fundraising and thematic targeting to
newspapers, magazines or catholics informatives. To the research will be analyzed the
editions of 1926 to 1931, period of the magazine's monthly circulation. The methodological
approach of this research is supported by Luca (2008), Martins (2003) and Cruz e Peixoto
(2007). The first results of the reading and tabulation of the magazines on the Journal
identification and graphic / editorial design will be highlighted.
Keywords: Catholic Church; Catholic press; Religious speech.

Introdução
O presente trabalho é decorrente da pesquisa de mestrado em andamento intitulada de
“A revista A Cruzada (1926 – 1931): Igreja Católica e a “boa imprensa” no Paraná” e que se

64
Graduada em História pela Universidade Estadual do Paraná – UNESPAR (Campo Mourão/PR). Mestranda
do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual de Maringá – UEM, orientada pela Dra.
Solange Ramos de Andrade, e integrante do Laboratório de Estudos em Religiões e Religiosidades/LERR. E-
mail de contato: andressapaulah@gmail.com
65
Doutora em História pela Universidade Estadual Júlio Mesquita – UNESP (Assis/SP). Professora associada da
Universidade Estadual de Maringá-UEM e docente do Programa de Pós-Graduação em História (PPH-UEM).
Coordenadora do GT Nacional da Anpuh – História das Religiões e das Religiosidades. E-mail de contato:
sramosdeandrade@gmail.com
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propõe a analisar a atuação da chamada “boa imprensa” no Paraná que objetivava a partir de
periódicos ligados a Igreja Católica propagar a doutrina cristã/católica e combater os
discursos anticlericais em circulação na sociedade brasileira. A proposta da pesquisa do
mestrado é analisar as publicações da revista entre 1926 a 1931, período de circulação mensal,
e realizar por meio da leitura e tabulação dos exemplares disponíveis, o levantamento dos
temas e assuntos mais recorrentes e a posição da revista perante a eles.
O cenário brasileiro da imprensa no final do século XIX e início do XX era composto
por variadas publicações de todos os tipos com revistas, jornais, almanaques, folhetos de
divulgação e também de variadas temáticas, seja elas políticas, esportivas, econômicas,
noticiosas e entre elas as religiosas, das quais a Igreja Católica por causa do seu poder possuía
grande parte do espaço editorial. (MARTINS, 2003) Vista como um perigo, a Igreja Católica
irá utilizar a força da imprensa ao seu favor. Se existiam em circulação periódicos da “má
imprensa”, a proposta foi a criação e a disseminação no país de uma leitura sadia e
recomendável aos leitores católicos, ou seja, uma “boa imprensa”. Em um momento de
reorganização do espaço da Igreja Católica no Brasil e de recristianização da população, a
imprensa seria mais uma arma, aliada a missão de levar aos católicos leitores a doutrina
católica como ensinamentos bíblicos, reforço dos sacramentos, principalmente do
matrimônio, e alertar contra aos perigos dos inimigos, personificados nos movimentos
políticos, com o socialismo, o sindicalismo e o anarquismo; contra outras denominações
religiosas como o espiritismo, o protestantismo e as religiões de matriz africana, assim como
combater o crescimento dos perigos relacionados ao mundo moderno, como a ciência, a
leitura e o cinema, que eram redirecionados para uma utilização de santificação.
Importante ressaltar que no Brasil já existiam periódicos ligados á Igreja Católica ao
longo do século XIX, mas que é no final do século e início do XX que busca-se organizar de
forma mais sistematizada, a partir das diretrizes de um estatuto e com a arrecadação de auxílio
financeiro, a circulação dessas revistas e jornais a serviço do catolicismo no Brasil, por meio
da fundação do Centro da Boa Imprensa em 1910 no Rio de Janeiro.
Assim como aponta Solange Ramos de Andrade em História das religiões e
religiosidades: uma breve introdução (2013) é nos anos de 1980 que se despertou no Brasil
um maior interesse pelo estudo das religiões e religiosidades influenciadas pelo alargamento
dos novos problemas, novas abordagens e novos objetos proposto por Pierre Nora e Jacques

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Le Goff, na chamada Nova História, herdeira da quebra de paradigmas historiográficos do


movimento dos Annales, “[...] o que antes era objeto da sociologia, da teologia, da filosofia e
também da antropologia, passou a ser interesse da história.” (ANDRADE, 2013, p. 14)
A abordagem da historiografia sobre as religiões e religiosidades tem absorvido muito
dos estudos anteriores realizados, principalmente pela sociologia e da antropologia. O
antropólogo Carlos Rodrigues Brandão em Ser católico: dimensões brasileiras um estudo
sobre a atribuição através da religião (1988) salienta o predomínio da religião cristã, na sua
vertente católica no Brasil, apesar do espaço que tem perdido para outras denominações e
religiões. Quanto à escrita da história da Igreja Católica o autor ressalta que por muito tempo
esta esteve relegada apenas aos seus próprios agentes. Sobre as pesquisas desenvolvidas sobre
a temática na contemporaneidade Brandão (1988) diz que:
Pesquisas sobre a Igreja Católica discutem com frequência a sua condição
dominante no campo religioso e na vida nacional e, com surpresa, as transformações
que pelo menos os seus setores mais avançados realizam aí. Por outro lado, estudos
de uma cultura católica descrevem o modo como um tal monopólio de crença e de
culto espelha-se em diferentes situações da vida cotidiana e do imaginário religioso
e religiosamente social de diferentes categorias de sujeitos populares. (BRANDÃO,
1988, p. 47)

A proposta dessa pesquisa de mestrado é analisar os discursos produzidos pela


imprensa católica do Paraná no contexto de reorganização e recristianização da sociedade
brasileira após o rompimento das relações entre Estado e Igreja no Brasil. Busca-se também
relacionar as temáticas apresentadas na revista A Cruzada, fonte principal dessa investigação,
com as encíclicas papais que a partir de uma leitura do mundo direcionavam o que precisava
ser debatido, ressaltado ou combatido na sociedade. O presente artigo objetiva apresentar os
aspectos iniciais levantados por meio da leitura e tabulação dos exemplares da revista e
destacar pontos como a identificação da revista e o seu projeto gráfico/editorial.

A Igreja Católica no Brasil: final do século XIX e início do século XX


As relações entre Estado e Igreja Católica no Brasil firmadas no período da
colonização, levaram o cristianismo e a sua denominação católica ao status de religião oficial
do país, entre os benefícios dessa intitulação estão os subsídios governamentais recebidos
através do sistema do padroado, que por outro lado também atribuía ao Estado o direto de

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intervir na organização eclesiástica brasileira, ao participar das decisões sobre a criação de


paróquias e dioceses e também na nomeação de clérigos.
Nesse contexto entre 1869 á 1870 aconteceu em Roma o I Concílio Vaticano
convocado e presidido pelo Papa Pio IX (pontificado de 1846 á 1878), onde foram discutidas
questões sobre a relação entre fé e razão, além de afirmar o primado e a infalibilidade do
papa. Boris Fausto (1995) destaca que uma das consequências do I Concílio para o Brasil foi
o incentivo de “[...] uma atitude mais rígida dos padres em matéria de disciplina religiosa e
uma reivindicação de autonomia perante ao estado.” (FAUSTO, 1995, p. 229) A estremecida
relação Igreja e Estado, na segunda metade do século XIX, abalou-se ainda mais com a
questão religiosa de 1872, quando bispos que seguiam o ultramontanismo, doutrina defendida
pelo papa Pio IX, iniciaram uma campanha contra os maçons e foram punidos com prisão
pelo governo imperial.
Segundo Ivan Manoel (2004) a longevidade da Igreja Católica é permeada por
diferentes momentos, em mais de 2000 anos não é possível dizer que a Igreja sempre foi à
mesma, uma vez que cada período histórico requereu posicionamentos e ações diferentes. O
ultramontanismo pode ser compreendido como uma autocompreensão da Igreja Católica que
vigorou entre 1800 à 1960 e que possuía como fundamentos a condenação do mundo
moderno, a centralização eclesiástica em Roma e um retorno ás bases da Igreja na Idade
Média tomadas como paradigma. Autocomprensão da igreja é um conceito que designa o
momento em que determinada forma de organização torna-se dominante e direciona a
atividade católica, a postura específica a ser tomada e as tarefas, obrigações e papéis sociais
determinados. (MANOEL, 2004) Quanto à autocompreensão ultramontana, o autor salienta
que:
Por ser um “tipo ideal”, o conceito tende a uma certa fixidez, como se as definições
estruturadas em seu interior se referissem a realidades não passíveis de mudanças
históricas. No entanto, elas existiram, de tal sorte que se percebem distintamente,
naquele período histórico, três momentos que explicitam essas mudanças, não
obstante as permanências: 1º momento: de Pio VII (1800 -1823) a Pio XII (1846 –
1878), que corresponde à consolidação da doutrina conservadora, com uma
estratégia centrada mais no discurso do que na ação; 2º momento: pontificado de
Leão XII (1878 – 1903), que, sem abandonar a doutrinação contra o mundo
moderno, deu passos decisivos para o estabelecimento de uma política de
intervenção católica na realidade concreta, de que as Concordatas são exemplo, além
de, em certas questões, com a ideia de democracia, demonstrar menos restrições; 3º
momento: de Pio X (1903 – 1914) a Pio XII (1939 – 1958), a conversão da doutrina
em política, do discurso em práxis, por meio do desenvolvimento dos programas da
Ação Católica, que acabaram por gerar as contradições que levaram ao Concílio

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Vaticano II e, na América Latina, à Teologia da Libertação. (MANOEL, 2004, p. 11


– 12)

Esse é o contexto da Igreja Católica ao longo do século XIX e na primeira metade do


século XX no cenário mundial, e que influenciaram as tomadas de decisão e as ações no
Brasil. É também no final do século XIX que vários acontecimentos e aspectos levaram ao
fim do governo monárquico e o início do regime republicano no Brasil em 1889. A Primeira
República, conhecida também como República Velha (1889 - 1930) foi marcada por várias
mudanças nos cenários políticos, econômicos, sociais e culturais. A nova constituição de 1891
trouxe também mudanças na relação do Estado e a Igreja que passaram a serem instituições
separadas, além disso, a Igreja Católica deixa de ser considerada a religião oficial do país, o
casamento civil passa a ser o reconhecido pelo Estado, e os cemitérios antes ligados a Igreja,
passam a ser das administrações municipais. (FAUSTO, 1995) Sobre essa separação Miceli
(2009) aponta que:
Do ponto de vista político-organizacional, a separação cancelava na prática todos os
direitos de intervenção sobre os negócios eclesiásticos de que dispunha o poder
central, conforme estipulava o regime do padroado. A criação de novas dioceses e
paróquias, a fundação de seminários e de outras obras, a distribuição do clero pelos
diversos cargos e carreiras alternativos, a indicação e nomeação de prelados, a
fixação de normas e diretrizes de interesse para as atividades e serviços eclesiásticos,
e outras tantas atribuições até então de competência do próprio imperador ou de seus
altos prepostos, passavam a depender do alvitre da alta hierarquia eclesiástica.
(MICELI, 2009, p. 25)

Para continuar como a principal religião na sociedade brasileira e colocar em ação o


processo de recristianização da população, a Igreja Católica se fazia presente em festas e
desfiles cívicos, formaturas, inaugurações entre outros. No início do século XX com o aval da
alta cúpula eclesiástica houve a criação de um órgão responsável pela organização e pela
regulamentação dos periódicos que funcionariam como local de combate aos discursos
anticlericais, a descristianização das famílias, e da presença de outras religiões e como
instrumento de divulgação dos preceitos do cristianismo na sua vertente católica.
O Centro da Boa Imprensa – Sociedade Cooperativa de Produções de responsabilidade
limitada foi criado em 29 de janeiro de 1910 no Rio de Janeiro com o objetivo de combater a
imprensa anticlerical e trazer aos lares católicos uma leitura sã. No estatuto do Centro
composto por doze artigos, os leigos católicos eram convidados a serem sócios desse
empreendimento cristão ao contribuir de duas formas: primeiro ao realizar orações em nome

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da “causa”, e segundo ao contribuir financeiramente. Aos associados seriam concedidas


intenções em missas e indulgências do Papa. O frei alemão Pedro Sinzig foi um dos
responsáveis pela criação do Centro, uma das suas grandes preocupações era com o conteúdo
das obras que os fiéis cristãos liam, por esse motivo escreveu obras de ficção e manuais de
leitura para os católicos. (SANTOS, 2004) Periódicos católicos já existiam antes da criação do
Centro, o órgão foi criado justamente para a sistematização e a organização dessas revistas e
jornais e para a criação de novas publicações.

A imprensa católica no Paraná


Com a autonomia recém-conquistada na Constituição de 1891, decorrente da
separação entre Igreja e Estado no Brasil, a Igreja Católica irá colocar em prática uma das
consequências dessa separação, a sua autonomia eclesial de nomear clérigos e criar dioceses e
paróquias sem a necessidade do consentimento imperial. Segundo Sérgio Miceli no livro A
elite eclesiástica brasileira (2009) dentro desse novo contexto das relações religiosas e do
governo no Brasil, entre os anos de 1890 á 1930, a Igreja Católica utilizando-se do seu poder
de decisão criou 56 dioceses, 18 prelazias e 3 prefeituras apostólicas, esse crescimento
resultou em que quase todos os estados brasileiros passassem a possuir pelo menos uma
diocese, ganhando assim, ares de “estadualização”. (MICELI, 2009)
É dentro desse contexto que Papa Leão XIII criou em 1892 a primeira diocese
paranaense em Curitiba, para ser responsável pelo estado do Paraná e também de Santa
Catarina, que até aquele momento fazia parte da diocese de São Paulo, a partir da bula Ad
Universas Orbis Ecclesias. A instalação ocorreu em 30 de novembro de 1894, com a posse do
Bispo paulista Dom José Camargo Barros, em 1926 a diocese curitibana foi elevada a
Arquidiocese. Sobre a formação da diocese de Curitiba Névio de Campos (2010) aponta que:
Havia grande interesse por parte da Igreja Católica na formação da Diocese de
Curitiba, pois junto com os imigrantes europeus veio uma diversidade de correntes
teóricas, como por exemplo, anarquistas, sindicalistas, socialistas, positivistas,
liberais. As ideias liberais estavam presentes entre o grupo que se denominava
representante do pensamento laico. Com a criação dessa diocese, a Igreja acreditava
que estava constituindo um importante elemento de reação aos anticlericais que já
estavam presentes no cenário cultural paranaense, acima de tudo, uma instituição que
se colocava como a portadora da missão de organizar o clero e o laicato católico para
divulgar a doutrina católica ultramontana. (CAMPOS, 2010, p. 46)

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No Paraná a Igreja Católica ainda estava organizando suas bases oficiais com criação
de paróquias e a própria diocese na capital e posteriormente em 1926 a criação das dioceses
de Ponta Grossa e Jacarezinho. (MICELI, 2009) Periódicos ligados aos grupos citados acima,
estavam presentes no cenário paranaense do final do século XIX e início do XX, no bojo de
suas discussões haviam ideias anticlericais, sobre a laicização do Estado, do ensino, o livre
culto. A presença e a reprodução de discursos anticatólicos na imprensa eram vistos como um
problema para a reorganização do espaço da Igreja Católica no Brasil.
São no início do século XX que irão aparecer no cenário paranaense jornais e revistas
a partir dos preceitos instituídos pelo Centro da Boa Imprensa e a serviço da Igreja Católica.
Entre os periódicos de maior destaque estão à revista A Cruzada (1926 -1934) de propriedade
do grupo da Mocidade Católica Paranaense, o jornal Cruzeiro (1931 - 1932) de propriedade
da Legião Paranaense da Boa Imprensa, o jornal Alvor (1935 – 1936) órgão da Associação
dos Ex-alunos do Instituto Santa Maria e O Luzeiro (1937 - 1939) periódico mensal da
Confederação de Associações Católicas de Curitiba. (CAMPOS, 2010) Segundo Campos
(2010) a organização de um laicato católico no Paraná começou a se delinear com a criação
da imprensa católica sob direção de leigos:
O grupo que pesquisamos privilegiou a ação na imprensa que não se tratava da
formação dos futuros dirigentes políticos, nem se destinava às massas, pois naquele
contexto o índice de analfabetismo era muito alto entre a população. No nosso
entendimento, a intervenção na imprensa visava a um público culto, intermediário,
capaz de divulgar entre os não leitores as ideias escritas nos periódicos católicos.
(CAMPOS, 2010, p. 262 – 263)

A revista A Cruzada fonte da pesquisa em desenvolvimento foi lançada dentro desse


contexto e obtinha objetivos específicos de atender a demanda de uma determinada
instituição, a Igreja Católica, e as suas publicações procuraram estar em consonância com os
dogmas e preceitos da religião cristã, nesse periódico mensal havia a presença de clérigos na
direção e na colaboração com textos e artigos. O periódico configurou-se como um espaço de
divulgação de ideias religiosas, de combate à imprensa anticlerical, desenvolvidos dentro dos
encaminhamentos dos posicionamentos do Papa Pio XI (pontificado de 1922 á 1939).

Periódicos como fonte de pesquisa histórica


Segundo Tânia Regina de Luca (2008) na década de 70 do século XX ainda era
pequeno o número de pesquisas que utilizavam a imprensa como fonte, nesse período já havia
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certa expressividade na escrita da história da imprensa, mas ainda haviam resalvas quanto a
história por meio da imprensa. As tradições do século XIX e início do XX ainda eram fortes
quanto à resistência na utilização da imprensa como fonte, uma vez que esta era vista como
um fragmento escolhido do passado, escrito e movido a partir de objetivos e paixões. Esse
cenário irá mudar ainda na década de 70 quando a imprensa passa a ser objeto de pesquisa,
ressaltam nesse período os trabalhos de Arnaldo Contier em Imprensa e ideologia em São
Paulo (1973), de Maria Helena Capelato e Maria Ligia Prado (1974) que fundiram seus
trabalhos no livro O bravo matutino (1980) e Vavy Pacheco Borges em Getúlio Vargas e a
oligarquia paulista (1979). (LUCA, 2008)
Ao analisar a imprensa como fonte de pesquisa Cruz e Peixoto (2007) indicam que
“De há muito, acertamos que o passado não nos lega testemunhos neutros e objetivos e que
todo documento é suporte de prática social, e por isso, fala de um lugar social e de um
determinado tempo, sendo articulado pela/na intencionalidade histórica que o constitui.”
(CRUZ; PEIXOTO, 2007, p. 258) De fato, não apenas a imprensa, mas todos os tipos de
testemunho do passado, possuem essa característica de parcialidade, a sua produção seja
voluntária ou involuntária, a sua intenção de ser fonte para a história ou não, não diminuem o
seu caráter de produção movida por interesses e objetivos pré-estabelecidos.
Por isso se faz necessária a análise crítica do periódico a partir de variados aspectos,
como o contexto de publicação, ou seja, no caso da pesquisa em desenvolvimento as
configurações do Brasil, do Paraná e da cidade de Curitiba, tanto quanto a estrutura da Igreja
Católica no início do século XX. Além disso, precisam ser estudados a linha editorial, os
proprietários, anunciantes, redatores e seus objetivos, e também elementos técnicos, como o
projeto gráfico, tamanho das matérias, cadernos especiais, colunas fixas entre outros. Todos
esses aspectos são importantes para a análise uma vez que:
[...] materiais da imprensa não existem para que os historiadores e cientistas sociais
façam pesquisa. Transformar um jornal ou revista em fonte histórica é uma operação
de escolha e seleção feita pelo historiador e que supõe seu tratamento teórico e
metodológico no decorrer de toda pesquisa desde a definição do tema à redação do
texto final. A Imprensa é linguagem constitutiva do social, detém uma historicidade
e peculiaridades próprias, e requer ser trabalhada e compreendida como tal,
desvendando, a cada momento, as relações imprensa /sociedade, e os movimentos de
constituição e instituição do social que esta relação propõe. (CRUZ; PEIXOTO,
2007, p. 260)

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Ao optar pelo uso de periódicos na pesquisa história devem-se levar em conta todos os
indicativos anteriores, e não se deve esquecer-se da proposta da análise ou acabar por se
deslumbrar com o material. Dentro da categoria periódico, há jornais, revistas, folhetos,
almanaques entre outros, e cada um desses gêneros possuem características específicas.
Quanto a diferenciação entre o jornal e a revista a historiadora Tânia Regina de Luca (2008)
discute que:
A fixação dos gêneros foi lenta e pode ser acompanhada a partir dos sentidos
atribuídos a termos como jornal, revista, magazine, hebdomadário em dicionários e
compêndios de diferente épocas. As definições hoje correntes, que reservam o termo
jornal para a publicação diária, em folhas separadas, e revista para as de
periodicidade mais espaçada, enfeixadas por uma capa e com maior diversidade
temática, tampouco esgotam a questão, pois sempre se pode citar os jornais
semanais e seu afã de também tudo abraçar, ou as revistas extremamente
especializadas. (LUCA, 2008, p. 131)

É a partir dessa especificidade que Ana Luiza Martins desenvolveu sua pesquisa de
doutorado através de revistas de São Paulo nas primeiras décadas da República. Ao apresentar
os números da Estatística da Imprensa Periódica no Brasil publicado no Rio de Janeiro pela
Tipografia do Departamento Nacional de Estatística em 1931, ressalta o crescimento da
presença desse tipo de periódico em comparação entre os anos de 1912 e 1930. São
apresentados números de revistas de várias naturezas como, noticiosos, literários,
humorístico, esportivos entre outros. O que nos interessa nessa pesquisa é o número de
revistas religiosas, que segundo a estatística eram 84 em 1912 e passou para 272 em 1930 um
aumento de 188 revistas religiosas pelo Brasil, e que contabiliza um crescimento de 223,8 %.
(MARTINS, 2003) Quanto às revistas religiosas no contexto do início do século XX Martins
(2003) destaca que:
[...] as revistas religiosas, beneficiadas pela recente liberdade de cultos, opondo-se
ferrenhamente à pregação secular então encetada, cumprindo papel decisivo no
controle da palavra e das mentes. Valendo-se de significativos recursos materiais,
com gráficas próprias, bem aparelhadas e contando com subsídios vários, as revistas
de cunho religioso alastraram-se, não raro qualificadas pela colaboração de
talentosos articulistas e ilustradores do período. Maior circulação ainda obtinham as
revistas de origem católica, com entrada garantida nos lares, vistas como inofensivas
e benéficas às famílias de formação cristã, que conformavam a imensa maioria do
País. (MARTINS, 2003, p. 66)

Como já ressaltado as pesquisas historiográficas tem cada vez mais reconhecido e


utilizado periódicos como fonte de pesquisa, destaque também perceptível nos estudos sobre
religiões e religiosidades, dado ao perfil de divulgador e criador de padrões que os periódicos

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possuem, como também o perfil de retratar o cotidiano e suas variadas expressões, entre elas
as práticas religiosas.
Entre as pesquisas que se pode ressaltar estão a de Solange Ramos de Andrade que em
sua tese de doutorado transformada no livro Catolicismo Popular na Revista Eclesiástica
Brasileira (2009) realiza uma investigação quanto à construção do conceito de catolicismo
popular pela Igreja Católica por meio da Revista Eclesiástica Brasileira entre os anos de 1963
á 1980, publicada pela Editora Vozes de Petrópolis, Rio de Janeiro. Assim como o
pesquisador Névio de Campos no livro Intelectuais e a igreja católica no Paraná: 1926 –
1930 (2010) que discute o papel da imprensa católica e dos intelectuais leigos no processo
formativo da Igreja Católica no Paraná a partir de diversos periódicos entre eles a revista A
Cruzada, também fonte dessa investigação. Como salienta Andrade (2009) “[...] o periódico é
um tipo de documento que permite ao historiador elucidar, num determinado período, quais as
ideias e comportamentos de um determinado grupo social.” (ANDRADE, 2009, p. 25)
Pela grande quantidade de informações de variadas naturezas e assuntos, as pesquisas
que se utilizam de periódicos buscam realizar suas abordagem a partir de uma análise
temática, como a repressão, o nacionalismo, a política, a religiosidade entre outros. Dentro do
exposto, a escolha da revista A Cruzada como objeto de análise ocorreu por ela ser um espaço
de divulgação de ideais religiosos inseridos em um contexto de necessidade de reorganização
da presença católica no Brasil, onde a revista colocava-se em uma posição de disseminação de
discursos em nome de uma instituição, a Igreja Católica.

Pesquisa em andamento...
Uma das primeiras etapas da pesquisa foi realizar a coleta dos exemplares da revista a
ser analisada, uma vez que ainda não existe sua versão digitalizada. Nas pesquisas iniciais
para a realização do projeto de pesquisa a ser apresentado na seleção do Programa de Pós-
Graduação em História da Universidade Estadual de Maringá, foi averiguado a existência de
acervo da revista A Cruzada na Biblioteca Pública do Paraná e no Círculo de Estudos
Bandeirantes - CEB66, entidade ligada a Pontífice Universidade Católica - PUC ambos
localizados na cidade de Curitiba/Paraná.

66
Apresentado o Círculo de Estudos Bandeirantes o texto desse artigo utilizará a partir de agora a sigla CEB para
se referir à instituição.
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A partir de uma plataforma disponível online foi constatado que os dois arquivos
possuíam basicamente as mesmas edições, e com o contato com a Biblioteca Pública do
Paraná e com o CEB, optou-se pela consulta e coleta dos exemplares existentes no último
local. Através de trocas de emails foi acertado com a professora Kátia Maria Biesek
coordenadora do Centro de Memória da PUC – Curitiba a visita ao acervo e a coleta por meio
da fotografia.
Assim como aponta Marc Bloch em Apologia da história ou o Ofício de historiador
(2001) “Reunir os documentos que estima necessários é uma das tarefas mais difíceis do
historiador. De fato ele não conseguiria realizá-la sem a ajuda de guias diversos: inventários
de arquivos ou de bibliotecas, catálogos de museus, repertórios bibliográficos de toda sorte.”
(BLOCH, 2001, p. 82) O autor ainda ressalta que a maioria dos pesquisadores apenas listam
no final de seu trabalho os arquivos que consultou, e que o indicado seria dedicar um capítulo,
ou pelo menos alguns parágrafos da escrita de uma pesquisa, para apresentar ao leitor os
caminhos que o levaram até os documentos que foram utilizados no estudo, ou nas palavras
de Bloch apresentar ao leitor o “Como posso saber o que vou lhes dizer?”. (BLOCH, 2001, p.
82)
Portanto, torna-se relevante para a pesquisa apresentar o detentor do acervo
consultado. O Circulo de Estudos Bandeirantes foi criado em 1929 na cidade de
Curitiba/Paraná para ser um centro de formação da intelectualidade católica do estado, entre
os fundados estão o Pe. Luiz Gonzaga Miele, José Lourenço Ascensão Fernandes e José
Farani Mansur Gueiros. Sem uma sede própria a entidade realizava suas reuniões no porão da
casa dos pais de José Lourenço até que em 1942 após várias solicitações o Poder Público
Estadual fez a doação de um terreno situado na Rua XV de Novembro. Com arrecadação de
doações dos associados e de outras pessoas, foi construído e inaugurado o prédio para sediar o
Círculo em 1945, e que até hoje conserva sua arquitetura original e o funcionamento no
mesmo local. O CEB era mantido pela iniciativa privada, estadual e pelos Irmãos Maristas
que em 1987 fizeram do grupo parte integrante da Pontífice Universidade Católica do Paraná.
(BIESEK; DOARTE, 2015) Quanto ao acervo destaca-se que:
O acervo do Círculo começou a se formar aos poucos, como qualquer entidade
cultural. Um grande volume de material inaugurou os trabalhos de se guardar
coleções no CEB. Este material eram os livros contábeis manuscritos da “Casa
Comercial Fernandes Loureiro”, que retratam o histórico do comércio feito com
carroças no Paraná, assim como as estradas comerciais mais usadas, entre outros

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aspectos históricos, e comportam o período de 1881 até 1900. Além de documentos


históricos, o acervo foi e vem sendo composto de bibliotecas, sendo mais conhecida
e frequentada a sessão paranaense. O acervo bibliográfico também é formado por
obras de História Geral, Legislações Históricas, Geografia, Biografia, Literatura,
Antropologia, e demais temáticas comportadas pelos estudos da cultura. (BIESEK;
DOARTE, 2015, p. 320)

O acervo do CEB é ligado ao curso de História da PUC-PR desde 2013 e tem buscado
realizar um trabalho de higienização, conversação, restauração e acondicionamento dos
materiais que possui. (BIESEK; DOARTE, 2015)
A realização da coleta dos periódicos ocorreram em outubro de 2016, como já
indicado o trabalho foi realizado a partir da fotografia sem flash das edições disponíveis que
estavam organizadas em sete encadernações que possuíam as publicações de março de 1926 á
fevereiro de 1931, com uma falta de publicações que voltam apenas com as edições de janeiro
e fevereiro de 193467. Como já ressaltado a proposta da pesquisa foi analisar o período mensal
da revista que foi até 1931, portanto, os cinco primeiros anos de publicação.
Com as fotos dos periódicos “em mãos” a segunda etapa da pesquisa foi à realização
da tabulação das características gráficas, do conteúdo, colunas, artigos entre outros. Na leitura
das edições buscou-se identificar os seguintes aspectos que compõem uma tabela em formato
word: 1. Data; 2. Edição/Número da revista; 3. Subtítulo; 4. Endereço da redação; 5.
Tipografia; 6. Redator-chefe; 7. Gerente; 8. Diretor; 9. Capa; 10. Aspectos gráficos (fonte,
cor, dimensões e etc.), 11. Número de páginas; 12. Colunas/Seções; 13.
Autores/Colaboradores; 14. Número de artigos e textos; 15. Número e tipo de imagens; 16.
Tipos de comercialização/preço da revista; 19. Preço das publicidades; 20. Publicidades; 21.
Temáticas recorrentes e 22. Análise por página.
O terceiro passo da pesquisa é a análise do conteúdo das edições, etapa essa que está
em andamento. Para esse trabalho optou-se por apresentar alguns dados preliminares que dão
conta da identificação da revista e do projeto gráfico/editorial.
Quanto a identificação da revista já é possível salientar que a revista A Cruzada teve
sua primeira edição lançada em 19 de março de 1926, no calendário religioso é o dia de São
José, escolhido para ser padrinho da revista como já indicado no artigo São José e a Família

67
O acervo da Biblioteca Pública do Paraná indica na plataforma online, possuir também as publicações de
março e maio de 1934.
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de autoria de A. B.68 onde é ressaltado o modelo de família cristã, temática esta que
configura-se como uma das mais recorrentes nas publicações do periódico. A revista se
apresentava como pertencente à Mocidade Católica Paranaense e tinha como redator-chefe
Rosario Farani Mansur e como gerente Frederico Carlos Allende, após um ano de publicação
passa a apresentar também o nome do diretor o Padre Antônio Mazzaroto.
Ao longo das edições da revista é possível identificar outros nomes que compunham o
seu corpo de funcionários, principalmente presentes nas colunas sociais (Sociaes, Movimento
Social, A Cruzada Social) que ressaltavam os nomes dos aniversariantes do mês. A partir
dessas colunas foram identificados: José Farani Mansur, redator secretário; Leovegildo
Avelledo, guarda livros da revista e Odilon Passos, auxiliar da administração, a maioria dos
trabalhadores eram jovens que participavam de grupos católicos como a Congregação
Mariana, a União de Moços Católicos, e também do Centro Operário Católico e do Grêmio
Literário São Luiz.
As edições da revista eram mensais, mas cinco ocasiões ao longo de 1926 á 1931
tiveram edições bimestrais, que englobavam dois meses, além disso, o anuário da revista era
de março a março. Entre os cinco anos analisados na pesquisa foram identificados 55 edições.
Entre março de 1926, primeira edição da revista, á maio de 1927 a revista tinha como
subtítulo os seguintes dizeres: Revista da Mocidade Católica Paranaense, que foi substituído
por Revista Católica Paranaense entre junho de 1927 á março de 1928, quanto recebe uma
nova nomenclatura Revista Ilustrada Paranaense. Buscar compreender o porquê das
mudanças de subtítulo e se elas foram acompanhadas por mudanças editoriais, de conteúdo ou
de posicionamentos será uma das questões analisadas uma vez que como aponta Cruz e
Peixoto (2007) “Títulos e subtítulos funcionam como “manchetes”, primeiros enunciados por
meio dos quais uma publicação procura anunciar a natureza de sua intervenção e suas
pretensões editoriais.” (CRUZ; PEIXOTO, 2007, p. 261)
Quanto aos aspectos do projeto gráfico/editorial pode-se ressaltar que a média de
número de páginas nas edições eram de 33 páginas, sendo que a menor edição foi a de janeiro
de 1931 com 14 páginas e a maior foi março de 1928 com 56 páginas. A paginação da revista

68
Artigo presente na edição do ano 1, número 1, páginas 2 – 4, lançado em 19 de março de 1926 na revista A
Cruzada. Muitos colaboradores da revista utilizavam apenas as inicias do nome para dar autoria ao texto, assim
como o colaborador A. B.
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seguia uma sequencia em todas as edições do ano, quando iniciava-se um novo ano da revista,
iniciava-se novamente a contagem das páginas.
As dimensões do formato da revista mudaram no decorrer dos anos, na edição de
lançamento até a edição de fevereiro de 1928 media 15 cm x 22 cm, após mudanças gráficas
propostas no terceiro ano de publicação passou a ter 17,5 cm x 26,5 cm. O tamanho e o tipo
da fonte não possuíam um padrão, variavam, e as cores utilizadas eram exclusivamente o
preto até maio de 1926 e após isso foram inseridos a cada edição novas cores como o
vermelho, o azul, o verde e o amarelo, que coloriam as fontes e também as imagens.
Quanto aos tipos de comercialização e os preços dos dois primeiros anos de
circulação, a revista era vendida a partir de assinaturas, sendo que o preço anual era de 6$000,
o semestral era 4$000, as edições avulsas $600 e as atrasadas 1$000. Havia também a opção
de Assinatura Benemérita por 10$000, os assinantes dessa última modalidade tinham seus
nomes apresentados nas edições da revista69. Quanto à publicidade, os preços do primeiro ano
de circulação variavam entre 700$000 para 12 publicações na última capa litografada, e de
10$000 para uma publicação em um oitavo da página, além disso, os rodapés e os anúncios
em textos possuem preços especiais. Com uma média de 15 publicidades no primeiro ano da
revista, os anúncios eram de lojas de confecções, de instrumentos musicais e máquinas de
escrever; serviços médicos, dentistas e barbeiros; tipografias e livrarias católicas, além das
próprias publicidades de venda da revista.
Quanto à circulação da revista é possível indicar, a partir do exposto em suas
publicações, que possuíam agentes responsáveis pela realização de assinaturas em seis estados
do Brasil, no Paraná, além de Curitiba, a revista circulava em Serro Azul, Lapa, União da
Vitória, Antonina, Ponta Grossa, Prudentopolis, São João do Triunfo e Piraí; no Rio Grande
do Sul, nas cidades de Porto Alegre e São Luiz das Missões; em Santa Catarina nas cidades de
Itajaí, Porto União, Colônia Mineira e Ouro Verde; em São Paulo, na capital e em Aparecida
do Norte; em Minas Gerais em Manhuaçu e no Espírito Santo na capital Vitória.
Os aspectos acima relatados são alguns dos resultados das leituras para tabulação da
revista A Cruzada, que se configura como uma das primeiras etapas para identificação do
periódico enquanto um instrumento da Igreja Católica no Paraná. Para a pesquisa de mestrado

69
Os exemplares analisados nessa pesquisa fazem parte de um tipo de publicação vendida por 12$000 a partir de
1928, onde a tipografia da revista realizava a encadernação das edições anuais em capa dura.
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buscam-se elencar quais temáticas eram mais recorrentes na revista e qual o posicionamento
do mesmo quanto às questões discutidas.

Considerações finais
O presente trabalho teve o objetivo de apresentar alguns aspectos iniciais da pesquisa
de mestrado em andamento no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade
Estadual de Maringá, que tem como proposta identificar as temáticas mais recorrentes
apresentadas nas edições da revista A Cruzada, periódico mensal ligado a Igreja Católica e
que esteve em circulação entre 1926 á 1934 em Curitiba no Paraná.
A partir do exposto nesse trabalho é possível indicar que uma das estratégias utilizadas
pela Igreja Católica para conter o avanço de ideias de grupos anticlericais e para propagar a
doutrina cristã, foi a utilização da imprensa, que antes era vista como perigosa, e que passa a
ser uma arma de contra-ataque. Com a recorrente referência a dualidade de publicações com a
“má” e a “boa imprensa”, demonstra que a Igreja estava ciente da força da imprensa na
sociedade brasileira e passou a utilizar-se desse meio de comunicação e fazer uma imprensa
apropriada para os católicos leitores. A criação do Centro da Boa Imprensa em 1940, no Rio
de Janeiro, não inaugurou a imprensa católica no Brasil, uma vez que já havia publicações
desse tipo no território brasileiro, a sua criação buscou sistematizar a criação de novos
periódicos e orientar a disseminação das publicações para cumprir essa missão cristã.
No Paraná a revista A Cruzada era considerada como um agente da Boa Imprensa e
recorrentemente em seus anúncios de assinatura solicitava que os leitores católicos
auxiliassem na causa da boa imprensa. A partir das leituras e tabulações realizadas foi
possível destacar a identificação do periódico e o projeto gráfico/editorial, que demonstram a
organização desse periódico mensal e deixa visível a sua importância no cenário de
recristianização da sociedade brasileira, com a circulação não restrita á Curitiba, ou ao Paraná,
mas que possuía agentes em outros cinco estados brasileiros.

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Leituras a contrapelo: considerações sobre a sofisticação da mensagem contida nas


cartas de João Maria de Agostini e sobre a carta paulina de 1ª Tessalonicenses

Artur Araujo Santos70

Resumo: Através da aproximação entre duas experiências cristãs deslocadas no espaço e no


tempo, o cristianismo proferido por João Maria de Agostini e o cristianismo paulino da
Primeira Carta aos Tessalonicenses, a exposição visa discutir os processos de elaboração
cultural que levam à radicalização das experiências. Os cristãos sul brasileiros do século XIX-
XX e os tessalonicenses das Cartas bíblicas do século I evidenciam uma disputa teológico-
prática que percorre toda a história do cristianismo, a saber, os refluxos escatológicos
decorrentes da assimilação de tradições apocalípticas. A atuação e as mensagens do monge
João Maria de Agostini serão pontos balizadores para o cruzamento com a pregação e a carta
paulina de Primeira Tessalonicenses. À maneira benjaminiana, as mensagens serão lidas a
contrapelo e, assim, as exortações e os aconselhamentos “paulinos” e “joaninos” alcançarão
novos horizontes de compreensão.
Palavras-chave: Tessalonicenses; Paulo; João Maria de Agostini; Escatologia; Religião
Popular.

Readings against the grain: considerations about the sophistication of the message
contained in the letters of João Maria de Agostini and the Pauline letter of First
Thessalonians

Abstract: Through the approach of two christian experiences displaced in space and time, the
christianity given by João Maria de Agostini and the pauline christianity of the First Letter to
the Thessalonians, the work aims to discuss the processes of cultural elaboration that lead to
the radicalization of experiences. The South Brazilian Christians of the nineteenth and
twentieth centuries and the Thessalonians of the Biblical Letters of the first century show a
theological and practical dispute that runs through the whole history of christianity, namely
the eschatological refluxes arising from the assimilation of apocalyptic traditions. The
performance and messages of the monk, João Maria de Agostini, will be the starting points
for the cross with the preaching and the pauline letter of First Thessalonians. In the
benjaminian way, the messages will be read against the grain, and thus the exhortations and
advice of Paul and Agostini will reach new horizons of understanding.
key-words: Thessalonians; Paul; João Maria de Agostini; Eschathology; Popular Religion.

O presente estudo investiga o processo de sofisticação da mensagem cristã no seio


popular, por meio de método comparativo, tendo como âncora o contexto cultural
experimentado por Paulo, durante a confecção da Primeira Carta aos Tessalonicenses – em
meados do século I, na Grécia – e o contexto cultural da religião popular evidenciado nos
70
Mestre em História pela Universidade de Brasília (2014), especialista em História do Cristianismo Antigo
também pela UnB (2008). Graduado em História pela Universidade Federal do Ceará (2004). Endereço
eletrônico: artur.s@bol.com.br. Currículo acadêmico: http://lattes.cnpq.br/0439205641775180.
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escritos e nas mensagens do monge João Maria de Agostini – em meados do século XIX, no
sul do Brasil.
A Primeira Carta aos Tessalonicenses71 é considerada o marco de surgimento de
uma literatura cristã autêntica. Datada do início dos anos 50 do primeiro século, esta carta é o
aconselhamento do apóstolo Paulo para a comunidade que deixou pelo seu caminho
missionário. A crítica dirigida por Paulo aos tessalonicenses evidencia um comportamento
não agradável aos olhos do apóstolo. Da mesma forma as cartas Aos dos Campestres e Aos do
Monte Palma, do monge João Maria de Agostini, demonstram a tentativa do religioso em
ordenar as práticas por ele estimuladas.
Resguardada a distância tempo-espacial dos ocorridos, um suposto anacronismo é
aqui usado de forma controlada, na acepção de Nicole Loraux (2009, p. 194). Não se trata de
buscar respostas cabais, mas avançar nas perguntas aos objetos. Porém,
a comparação com os dados etnográficos, quer na sua versão mais prudente (que
procura simplesmente motivações para novas perguntas), quer na sua versão mais
audaz (que não exclui a possibilidade de descobrir novas respostas), impõe uma
crítica preliminar dos testemunhos (GINZBURG, 1989a, p. 161-162)

As comparações sistemáticas são há muito utilizadas nas ciências sociais para a


aproximação de esferas econômicas, sociais ou mesmo religiosas. “É apenas graças à
comparação que conseguimos ver o que não está lá; em outras palavras, entender a
importância de uma ausência específica” (BURKE, 2002, p. 40). Segundo Burke (2002, 41), as
abordagens que particularizam e que generalizam, histórica e teórica, complementam-se.
Walter Benjamin, ao repensar uma história que dê conta dos excluídos, esboça uma
crítica documental coerente com o problema aqui apresentado. Benjamin aponta um caminho
para a reconstituição dos trajetos missionários e das documentações decorrentes, para que não
se continue a superestimar a mensagem literária e ideal em detrimento da experiência sócio-
histórica.
Sua tese número VII, em Sobre o Conceito de História, propõe escovar a história a
contrapelo (BENJAMIN, 1985, p. 225) e reconhecer tendências e ângulos menosprezados
pela leitura institucional dos eventos. Ou seja, enxergar através da documentação aqueles que
foram desconsiderados e subestimados, mas que compõe plenamente o fazer histórico ali

71
As citações de livros bíblicos serão feitas a partir da Bíblia Tradução Ecumênica (TEB). São Paulo: Edições
Loyola, 1994.
88
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descrito. Sendo assim, far-se-á na sequência a leitura a contrapelo das documentações


referentes aos missionários estudados: a Primeira Carta aos Tessalonicenses, de Paulo, e as
cartas Aos dos Campestres e Aos do Monte Palma, do monge João Maria de Agostini.
A cidade de Tessalônica está no decurso da segunda viagem evangelizadora de
Paulo, o apóstolo Paulo, e pode ser considerada a porta de entrada do cristianismo na Europa.
A arqueologia de Tessalônica não preservou vestígios dessa comunidade cristã, o que eleva o
grau de importância das Cartas aos Tessalonicenses como principal documentação a tratar
desses cristãos históricos.
Carta pragmática, sem grandes elaborações dogmáticas concebidas antecipadamente,
a Primeira Carta aos Tessalonicenses evidencia um tom preocupado com o sucesso da
empreita missionária. Paulo é obrigado a se posicionar diante dos problemas apresentados
pelos mensageiros e co-evangelizadores que trouxeram a ele notícias não inteiramente
agradáveis.
Em 1Ts 3: 2, existe a informação que um colaborador de Deus (e de Paulo), Timóteo,
fora enviado à Comunidade para prestar assistência à fé daquela recém formada igreja. É
comentado que Timóteo retorna com notícias (1Ts 3: 6), ou seja, informações que fazem parte
da Carta enviada para a Comunidade tempos depois. Paulo fica em Atenas, segundo 1Ts 3: 1.
A campanha missionária de Paulo sofreu reveses, pois seu anúncio de um messias
redentor morto numa cruz teria aborrecido os judeus da diáspora, insatisfeitos com a
deturpação tradicional de um messias davídico entronizado. A seita judaica, que se propagava
ligada a um candidato messiânico, assassinado vinte anos antes, perturbava a ordem
estabelecida, tanto pela pregação de teores apocalípticos, proferida por Paulo, quanto pelo
foco negativo que aquele tipo de “judaísmo” atraía. Os judeus da diáspora mantinham uma
relação de certa estabilidade com o Império Romano, contudo os limites, bem demarcados
para que as práticas judaicas não gerassem problemas à coesão do Império, estavam
ameaçados devido à nova teologia que nascia e que era identificada a um tipo de judaísmo.
Crossan e Reed (2007) argumentam que Paulo, como bom estrategista, pregava na
circunscrição desses judeus, próximo às sinagogas ou mesmo nas sinagogas, pescando novos
convertidos entre aqueles já familiarizados com aquele tipo de anúncio. Crossan e Reed
discutem a possibilidade de que os não judeus, ligados às práticas das sinagogas, tenham
demonstrado interesse pela pregação de Paulo. Seriam os adoradores de Deus ou tementes a

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Deus, mencionados inclusive em achados arqueológicos, que estariam entre os convertidos de


Paulo. Não se quer dizer com isso que os convertidos seriam provenientes somente de círculos
judaicos, pois a Palavra, aberta a todos aqueles dispostos a aceitá-la, também frutificou entre
idólatras que, abandonando seus ídolos, voltaram-se para Deus (1Ts 1: 9). Sabe-se da
proibição da idolatria, do culto a ídolos, entre os judeus e, assim, averigua-se a proveniência
de uma origem variada de convertidos.
O capítulo 2 de Primeira Tessalonicenses transmite o entusiasmo de Paulo e o
sentimento de paternidade para com a comunidade recém nascida, demarcando o caráter de
autoridade. Ao mesmo tempo, a repreensão também viria à altura, inclusive relembrando o
fato de trabalhar para sustentar a própria estadia quando esteve entre eles (1Ts 2: 9; 4: 11). De
fato, um ponto já chama atenção: o trabalho. Nas admoestações, o estímulo ao trabalho se faz
constante: “Tomai a peito viver uma vida tranquila, ocupar-vos com vossos negócios e
trabalhar com vossas próprias mãos, como vos ordenamos, para que vossa conduta seja
decorosa aos olhos dos estranhos e não tenhais precisão de ninguém” (1Ts 4: 11-12).
Paulo faz críticas ao que define por desordeiros72 e insiste em um “não revide” entre
a Comunidade, respeito entre eles e para com outros (1Ts 5: 14 e 15).73 Se o trabalho num
ambiente pagão é função de escravos, tem-se aí também indícios da origem social de parte
dos cristãos de Tessalônica. O que está em jogo é o trabalho habitual e cotidiano, relativizado
pela volta iminente do Senhor.
Paulo vinha fugindo da cidade de Filipos, insultado pela desordem causada por seu
discurso (At 16: 20-24 e 1Ts 2: 1-2). Segundo seu argumento aos tessalonicenses, o tom
severo e punitivo, para aqueles que o escorraçaram, convoca a ira de Deus que se abateria
sobre os pecadores por ocasião da volta do Senhor (1Ts 1: 10; 2: 16 e 5: 9). Paulo declara que
72
Em nota referente a esta passagem, a TEB comenta que a vida desordenada pode estar associada a indivíduos
que vivem na agitação, pensando que a vinda do Senhor é iminente. (TEB, 1994, p. 2311)
73
Alguns observadores menos atentos acreditariam que as exortações paulinas, quanto ao trabalho, destinavam-
se a pessoas recém-convertidas, cujo status não lhes permitiriam sujeitar-se a trabalhos rotineiros. Soa como uma
tendência marxista na boca de Paulo, um presentismo. Por mais que existisse uma receptividade característica do
politeísmo, quanto a cultos diversos, não podemos ignorar um processo gradual de disseminação e sofisticação
da cultura cristã. Importante lembrar que a exortação não é somente com relação ao trabalho, mas o não trabalho
juntamente com o comportamento desordeiro. Não faz sentido pessoas, cujo status as impedem de trabalhar,
serem admoestadas por viverem em desordem. A desordem é algo além de não trabalhar. O trabalho que
sustenta a vida passa a ser confundido com a obra evangelizadora; outro presentismo. Julga-se que o discurso
paulino, inicialmente, não atingia, em grau elevado, pessoas de status, pois este cristianismo reagia nas massas e
colocava em xeque o sistema estabelecido que sustentava tais emblemas. Paulo e ajudantes, feridos e
maltrapilhos por causa das perseguições sofridas em cidades anteriores a Tessalônica (1Ts 2: 1) não se
diferenciariam grandemente de profetas modernos cujas barbas e gestos estremecem dada ordem asséptica.
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a ira do Senhor está vindo e que é necessário ser encontrado de maneira santa, justa e
irrepreensível (1Ts 2: 10; 3: 13; 5: 23), pois é preciso “agradar a Deus, que prova nossos
corações” (1Ts 2: 4).
A perseguição e má acolhida “histórica” à pregação dos profetas é uma das chaves de
interpretação que garantem ao próprio Paulo (e talvez para o próprio monge Agostini) estar no
caminho certo. Perseguição e violência são sinais da iminência da manifestação divina, já que
eram destinados a provações (1Ts 3: 3-4); quesito esse ligado à apocalíptica judaica que
acreditava que, antes do Fim dos Tempos, sobreviria um período de adversidades para os fiéis,
até que finalmente viesse o messias. As provações, que também pode ser traduzido por
tribulações, é um termo técnico da apocalíptica. Paulo reorganiza a expectativa apocalíptica
em torno de Jesus.
Paulo despede-se encorajando a comunidade que viva em paz (1Ts 5: 13), que corrija
os que vivem de maneira desordenada (5: 14) e que não se retribua o mal com o mal (5: 15).
Um grave problema de autoridade estava presente entre os cristãos tessalonicenses e
evidências não faltam para corroborar um desentendimento intracomunitário (5: 12-13). “Eu
vos conjuro pelo Senhor: que esta carta seja lida a todos os irmãos” (1Ts 5: 27).
A experiência autônoma dos cristianismos ora estudados aguça a elementaridade da
mensagem religiosa. É nesse momento de fermentação que novos sentidos são agregados,
novas práticas e usos da experiência religiosa se desenvolvem. É a isso que o conceito de
sofisticação cultural utilizado remete. Pois, “se existe um equilíbrio na cultura humana, este
só pode ser descrito como dinâmico, não como estático; é o resultado de uma luta entre forças
opostas” (CASSIRER, 1972, p. 348).
Trazendo as considerações de Benjamin para a análise em contraponto, a
visualização das experiências descritas na Primeira Carta aos Tessalonicenses conquista
acuidade ao ser estudada ao lado de processo social de sofisticação cultural semelhante. A
cultura cristã católica popular que se desenvolveu no sul do Brasil, através da ação
missionária de monges considerados santos, demonstra um alto teor de elaboração. O
cristianismo difundido, fora do circuito católico oficial, deixou margens para que as práticas
populares da religião tanto incrementassem a devoção ensinada por meio das experiências
locais como também demonstrassem certa propensão para a vertente mais crítica e
contundente da mensagem social cristã. As expectativas cristãs relativas à passagem do

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monge João Maria de Agostini, através de documentação ligada às suas pregações,


evidenciam o processo de sofisticação cultural pela qual passam as mensagens e sua
emancipação na oralidade.
Os documentos apresentados na sequência remetem à tentativa do monge Agostini de
organizar a devoção desencadeada pela sua passagem. Para duas localidades, houve o desejo
do eremita em deixar, por escrito, instruções que pudessem balizar a organização desses
lugares, inclusive apontando gestores responsáveis, nas localidades que dão nome às cartas.
Aos dos Campestres, de 184974
Saúde eterna em Jesus Cristo nosso Salvador
Eu confirmo o Sr. Américo no seu emprego de Procurador do grande Santo Antônio
Abade. Este grande Santo solitário nos desertos do Egito é protetor dos animais
cavalares e contra as cobras e animais ferozes, protetor do fogo divino e material.
Confirmo ao dito procurador em todo o tempo de sua vida, não havendo motivo
imposto dele, se deve ter por um dos mais dignos.
Os doze zeladores, já assinalados por mim, tem a faculdade de fazer o mesmo
procurador com maior voto de todo povo do Campestre. Assim mesmo podem por
outro imposto de algum que possam faltar dos doze ou também de 1 dos 2 ajudantes
do procurador, tendo justo e reto motivo. O superior dos 12 zeladores deve
congregar seus companheiros em presença do povo em cima do cerro, averiguada a
negligencia, imperícia ou maldade do procurador ou um desses mesmos 12
zeladores ou 1 dos 2 ajudantes, ponham outro em seu lugar, o que Deus seja servido
em sua misericórdia. O Procurador tem de sua obrigação de ter limpo o lugar do
santo e o lugar das águas santas e o caminho da via-sacra, cuidar com esmero as
esmolas do santo, porque o que sobeja se deve repartir com os mais pobres enfermos
do lugar e dos mesmos concorrentes, deve vigiar pela maior tranquilidade e
santidade do povo, que estiver na ramada, como rezar o santo rosário a noite e de
madrugada, cantar os cânticos àquele Senhor, que faz tantas maravilhas em favor
dos pobres e arrependidos pecadores.
O Procurador, em caso de necessidade pode tomar para seu sustento uma ou duas
patacas cada dia, das esmolas do Santo; oxalá que tal necessidade não tivesse de
tomar nada, porque nenhum Procurador deve ser por interesse, deve trabalhar para
ganhar sua vida, porque a comida e o Paraíso não é feito para os preguiçosos.
Portanto, nenhum Procurador deve utilizar-se do que tem em depósito do Santuário,
e é certo que o negligente e mau Procurador que procurar para si mesmo e não pelo
Santo se faz a si mesmo um tesouro de maldição eterna, por haver dissipado o que
de isso chora e chorará eternamente; e por isso quisera que o Procurador do Santo
estivesse justo e vigilante e preparando-se para haver glória eterna no Céu, prêmio
da sua fiel vigilância. A capela se há de fazer em cima do cerro e embaixo de uma
ramada para concorrência do povo: 1ª Cruz podem fazer um cemitério. O Sr.
Marafiga ou o Sr. Isidoro seja o superior dos 12. Cada um dos 12 vigilantes deve
vigiar por sua parte sobre os malviventes, como os vagabundos, os ladrões de cavalo
ou outras coisas, etc. Também devem vigiar sobre malvados fabulosos negociantes
da água santa, que além de venderem injustamente desta dita água santa, em lugar
desta, dão outra de qualquer rio. Oxalá que os magistrados das províncias tomassem
a si mesmos e justo encargo um severo e público escarmento ao demais. A festa do

74
O documento foi publicado pela primeira vez no livro As Missões Orientais e seus antigos domínios (1909), de
Hemetério José Velloso da Silveira. Segundo o autor, “à margem desse amarelado papel de Holanda está o fac-
símile do solitário em letra quase indecifrável: joannes mã agostiniani, Solit. erem. de botucaraí” (SILVEIRA,
1979 apud KARSBURG, 2012, p. 130-133).
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Santo há de ser a 17 de janeiro com a pompa maior possível, com sua Missa e
Prática, podendo ser. Podem levar em procissão o Santo do melhor modo possível,
no mesmo dia. Se carneará a custa das esmolas para os pobres do lugar e
concorrentes e devotos empregados do mesmo Santo.
Bastante seja a comida e nenhuma bebida de licores. Depois dos justos e prudentes
gastos da festa, há necessidade cuidar da Capela honradamente, prudente e decente
do Santo. O demais deve-se repartir com os pobres do lugar e concorrentes. Os
vigiladores sejam muito exatos em observar os referidos nesta carta, e por isso que o
Procurador deve ter 3 chaves do cofre das esmolas, uma para cada um indivíduo,
que é uma para o Procurador, as outras para cada um dos 2 suplentes, abrindo-se o
dito cofre devem presenciar os ditos suplentes, e que público seja o gasto e a entrada
das mesmas esmolas. Portanto em Jesus Cristo vos rogo, que executeis o referido
fielmente para que Deus vos pague eternamente, e os contraventores assim mesmos
atribuir deverão o castigo merecido do Céu.
João Maria de Agostini, solitário eremita do cerro do Campestre de Santa Maria da
boca do Monte e do cerro de Botucaraí de 1849. (SILVEIRA, 1979 apud
KARSBURG, 2012, p. 130-133)

Trazer a reprodução da carta Aos dos Campestres, de João Maria de Agostini, é


propositadamente necessário ao processo de estranhamento e conjugação de temporalidades.
De imediato, algumas conexões surgem à medida que a leitura do documento é realizada. As
críticas de Paulo aos tessalonicenses acabam por estabelecer um horizonte de leitura para o
documento acima citado. Porém, o fluxo deve correr agora também em direção aos
tessalonicenses. Não necessariamente a confirmar a função exortativa presente nos textos,
mas para dotar a crítica realizada com rostos, carne e ossos, lembrando que a Primeira Carta
aos Tessalonicenses se destinava a sujeitos reais em sua origem, para somente em seguida
assumir funções litúrgicas.
Uma questão se prenuncia. Não existe movimento messiânico-milenarista no entorno
de João Maria de Agostini, o que não exclui que a mensagem escatológica, típica do
cristianismo, ressoe e encontre ambiente oportuno a operar numa tradição autônoma, sem
amarras teológicas e, consequentemente, passíveis de exaltação.
A carta Aos dos Campestres é claramente uma confirmação de autoridade conferida
aos nomes nela citados. Mas não simplesmente isso. A confirmação existente na figura do Sr.
Américo, citado como “Procurador do grande Santo Antônio Abade”, está vinculada ao
exercício de dois ajudantes diretos e doze zeladores que, na ocorrência de “negligência,
imperícia ou maldade do procurador ou um desses mesmos 12 zeladores ou 1 dos 2
ajudantes”, poderiam reunir o “povo em cima do cerro” e nomear outro ou outros que
ocupassem com melhor presteza as funções do cargo. Ficam patentes as noções democráticas

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e libertárias do referido escrito, pois colocam como conduta central uma observância diante
de toda a comunidade.
O conjunto dessas personagens “empossadas” e o controle mútuo exercido eram a
esperança de manter organizada a devoção, mas também é indício da necessidade originária
de poder alinhar minimamente algumas posturas, tendo em vista a grande quantidade de
práticas e de pessoas que, para a região de onde brotavam águas santas com poderes
curativos, acorriam causando desordem. Não parece haver dúvidas quanto ao caráter
normativo que ela expressa, tentando estimular deveres e conter excessos.
Para não se deixar ficar nos locais de devoção, abandonando a vida anterior e
cotidiana, o exemplo dado pelas lideranças locais precisa ser reafirmado; o Procurador deveria
“trabalhar para ganhar sua vida, porque a comida e o Paraíso não é feito para os preguiçosos”.
Agostini constrói argumentação a condenar o uso irresponsável das esmolas do Santo com
dizeres de “maldição eterna”.
Não se tem aqui fortes indícios de expectativa iminente, quanto ao Fim dos tempos
ou quanto à volta do Senhor, porém punições de maldição divina, associadas a
responsabilidades cotidianas, são uma fórmula que, em muito, lembra a tentativa de dissuasão
de Paulo na Primeira Carta aos Tessalonicenses.
“Nenhuma bebida de licores” deveria ser permitida – irrepreensíveis seriam os
homens que cuidam do Santo –, pois a “honra”, a “decência” e a “prudência” estavam em
primeiro plano. O zelo é permeado por noções comunitárias inspiradas em um cristianismo
primitivo, noções “democráticas” que se fundem aos encargos, afinal estavam investidos em
um cargo – o de zelador – e orientações dispunham para que públicos fossem os depósitos e
retiradas das esmolas. Azeitando as funções, estava o “castigo merecido do Céu”, caso não
fossem observados fielmente os dispostos na carta.
Na carta Aos dos Campestres, a menção a pontos balizados por cruzeiros não é auto-
explicativa, mas é sabido que, dentre as práticas de João Maria de Agostini, estava a ereção de
vários cruzeiros que demarcavam estações a serem seguidas em procissão, uma Via-Sacra,
que tinha função penitencial no complexo santo.
Já em outra localidade, durante o seu caminho missionário – na província de
Misiones, Argentina – Agostini deixa um outro escrito também com objetivo de organizar a
devoção.

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A carta Aos do Monte Palma (1852)75 é bem parecida com o documento Aos dos
Campestres (1849), mas demonstra certa concisão em comparação ao anterior. Também
confere autoridade a pessoas e família específica, como também institui doze protetores. As
festas são diferentes, enquanto no Campestre a devoção organizou-se em torno de Santo
Antão, no “Monte Palma” a devoção organizou-se em torno de Nosso Senhor do Deserto e da
Santa Cruz.
As questões práticas são as maiores preocupações presentes nas cartas de Agostini e
denota-se que as devoções instituídas são orientadas em práticas católicas reconhecidas. De
forma bastante interessante, a menção ao “inferno”, ao “pecado”, ao “mal”, ao “medo” ligam-
se à “pastoral do medo”76, recurso comum aos pregadores ligados à colonização. Contudo, tal
“pastoral do medo” aparece na carta Aos do Monte Palma de forma muito mais intensa. Esse é
um ponto importante na trajetória missionária do monge, pois evidencia o aumento do rigor
aos preceitos em questão.
Sabe-se que o eremita Agostini não buscava reelaborar os preceitos católicos, ao
contrário, o monge estava mais preocupado em não infringir regras e permanecer associado
aos ditames tradicionais do catolicismo.
Enxergar personagens tantas vezes idealizados por roteiros cristãos não é tarefa
simples. João Maria de Agostini era “sujeito complexo, e, como todo indivíduo histórico, não
seguia uma trajetória linear, antes permeada de ambiguidades e percalços” (KARSBURG,
2012, p. 261). Assim, Paulo – o apóstolo de tantas cartas cristãs – mesmo visualizado através
de um arquétipo que preza pela densidade histórica, também carece da realidade dos sujeitos
não lineares, ambíguos, vivos em suas respectivas documentações. A ideia aqui não foi
autorizar os modernos a partir dos antigos, ao contrário, o idealizado apóstolo de Jesus
distanciou-se muito do pregador itinerante, por isso a experiência palpável de outro pregador
expõe a condição humana e os percalços possíveis de alguém que trilhava caminho bastante
árduo na difusão e na confirmação de tão nova fé.

75
Infelizmente não é possível citar o documento na íntegra. A carta encontra-se disponível na tese de Alexandre
Karsburg (2012, p. 371-372), contendo a seguinte referência: BN, Setor de Periódicos. Jornal A República,
Curitiba, 14 de dezembro de 1912, n.292, p. 1.
76
“O céu, o inferno, o juízo final e a morte não eram objetos estranhos à espiritualidade dos habitantes
brasileiros do século XIX, mas não possuíam as características apavorantes como apresentados pela ‘pastoral do
medo’ levada adiante pelos capuchinhos italianos. As orientações passadas pelos frades em torno daqueles
quatro pontos eram repressivas e ameaçadoras (...).” (KARSBURG, 2012, p. 295)
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Referências Bibliográficas
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Brasiliense, 1985.

Bíblia Tradução Ecumênica (TEB). São Paulo: Edições Loyola, 1994.

BURKE, Peter. História e Teoria Social. São Paulo: Unesp, 2002.

CASSIRER, Ernst. Antropologia Filosófica: ensaio sobre o homem. Tradução de Vicente


Felix de Queiroz. São Paulo: Mestre Hou, 1972.

CROSSAN, John Dominic e REED, Jonathan L. e. Em busca de Paulo: como o apóstolo de


Jesus opôs o Reino de Deus ao Império Romano. Tradução de Jaci Maraschin. 2 ed., São
Paulo: Paulinas, 2007.

GINZBURG, Carlo. A micro-história e outros ensaios. Tradução de António Narino. Lisboa:


Difel; Rio de Janeiro: Bertrand, 1989.

KARSBURG, Alexandre. O eremita do Novo Mundo: a trajetória de um peregrino italiano na


América do século XIX. Tese de Doutorado apresentada ao programa de Pós-Graduação em
História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: UFRJ, 2012.

LORAUX, Nicole. A Tragédia de Atenas: a política entre as trevas e a utopia. São Paulo:
Edições Loyola, 2009.

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Frágua de amor: O silêncio de Lola nos recantos de São Manoel do Rio Pomba
Carlos Henrique Silva¹

Resumo: Um rio, uma cidade, uma mulher, um mistério espiritual: Floripes Dornellas de
Jesus, conhecida como “Lola”, é acometida por uma paraplegia ainda quando jovem na
década de 1930. Após algum tempo, passa a se alimentar unicamente de hóstia consagrada
oferecida pelos sacerdotes e ministros da sua paróquia. Sua história de vida conduz ao
renascimento espiritual da cidade de Rio Pomba, localizada na Zona da Mata mineira, uma
vez que esta mesma cidade é fundada por um padre e tem suas origens na ação evangelizadora
do catolicismo do século XVIII e XIX. O trabalho missionário de Lola, durante o século XX,
fortalece a fé local com uma devoção incomparável ao Sagrado Coração de Jesus.
Palavras-chave: Catolicismo, mistério, silêncio, contemplação, Sagrado Coração de Jesus.

Abstract: A river, a city, a woman, a spiritual mystery: Floripes Dornellas de Jesus, known as
“Lola”, was diagnosed as paraplegic when she was Young, in the 1930’s. After some time,
she was only fed with consecrated host offered by priests and ministers of her Parish. Her life
story leads to spiritual rebirth in the city of Rio Pomba, located at Minas Gerais’ Zona da
Mata, once this same city was founded by a priest and has its origins in the evangelizing
action of Catholicism of the 18th and 19th centuries. The missionary work of Lola, during the
20th century, strengthened the local faith with an incomparable devotion to the Sacred Heart
of Jesus.
Keywords: Catholicism, mystery, silence, contemplation, Sacred Heart of Jesus.

Introdução
Estudar a história local é relevante. É procurar através das fontes escritas, fatos
históricos, fontes materiais não escritas ou imateriais os caminhos a trilhar até chegar às
evidências. Não se trata de uma simples interpretação do pesquisador, mas uma tentativa de
capturar nas narrativas do passado respostas para transmitir na forma mais fiel os traços e
características herdadas para se explicar o presente e o futuro, e contribuir para que sejam
diferentes e não um ciclo onde tudo se repete.
Buscar numa manifestação religiosa particular a sua relação com o cotidiano e trazê-la
à luz da historiografia se faz um grande desafio. O homem, autor e protagonista da história, ao
longo dos tempos procurou uma resposta para a sua existência e de tudo o que lhe cerca tanto
no plano material quanto no plano espiritual. Resposta esta que seja convincente para explicar
os fenômenos e tudo o que transcende a sua existência e a leitura que ele faz da realidade.
______________________
1. Graduado em História pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Membro do NEPHIC/UERJ -
Núcleo de Estudos e Pesquisas da História da Igreja Católica. E-mail: carloshenriquedoihgbi@bol.com.br.

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Realizar uma pesquisa apoiada na história do lugar e na vida de uma pessoa que ali se
destaca, a fim de gerar um maior interesse da população pelo conhecimento em todos os
níveis para dialogar com a história das suas origens, é valorizar a identidade e a memória
local, o orgulho de pertencer na tentativa de uma possível aproximação entre a História como
ciência e a comunidade.
Então, por que não dialogar com um caso isolado dentro do cristianismo, suas
representações coletivas reais ou construídas, a força que move a fé de um determinado grupo
na “relação de identidades e de distinções simbólicas, com a finalidade de legitimar as suas
próprias escolhas e condutas”2, e trazê-lo para o contexto histórico?
Explorar a história do cristianismo sem ser tendencioso é muito complexo. É um
desafio para o historiador em abdicar de suas concepções religiosas ou de um forte ateísmo e
dar corpo à sua escrita. “Podemos conceber uma experiência religiosa que não deva nada à
História. Porque o cristianismo [já o disse] é por essência uma religião histórica: quero
dizer, uma religião cujos dogmas primordiais assentam em acontecimentos”3.
Fazer uma associação entre a história local com a história particular de uma pessoa
caracterizada por devoções singulares e invocações não é simples, porém, entre possíveis
distinções pode haver pontos convergentes o que provavelmente pode tornar a pesquisa mais
abrangente de acordo com as conexões entre um acontecimento e outro.
Este trabalho tem a intenção de buscar na origem do culto e devoção ao Sagrado
Coração de Jesus em fins do século XII, e na história da cidade mineira de Rio Pomba desde
sua fundação na segunda metade do século XVIII, o conhecimento da causa de Floripes
Dornellas de Jesus, apelidada de “Lola”, para contextualizá-lo ao teor da investigação
histórica como objeto de estudo no campo das Ciências Humanas e Religiosas,
principalmente em História Social e Cultural, e das Religiões e Religiosidades.
Acometida de uma queda em 1934 que lhe custou os movimentos dos membros
inferiores (paraplegia), Lola após dois anos recusou consumir alimentos em forma sólida ou
líquida e só ingeriu hóstia consagrada até o dia de sua morte em 1999.
Não dormia, não comia, não bebia. Passava curiosamente por completa ausência de
desassimilação. Numa vida reclusa de oração, silenciosa, contemplativa e de
aconselhamentos, permanecia em constante adoração diante do Sacrário que havia no seu
quarto, e mantinha uma devoção fervorosa ao Sagrado Coração de Jesus.

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______________________
2. CHARTIER, Roger. A história cultural entre práticas e representações. Trad. Lisboa: Difel, 1990. p. 17.
3. BLOCH, Marc. Introdução à História: A História, os Homens e o Tempo. Publicações Europa-América,
1998. p.92.

Frágua de amor, fé abrasadora. Essa devoção vai lhe render um trabalho árduo e
missionário em busca da salvação de muitas almas e uma fama incontestável. Seus restos
mortais repousam e são venerados por fiéis e seguidores no cemitério municipal de Rio
Pomba.

Rio Pomba: Cidade do sonho e da poesia. Atenas da Zona da Mata. Cidade Sedução

“Pelos seus filhos ilustres e ilustrados que demos em elevado número, à política, ao ensino,
comércio, artes, clero, justiça e demais classes e ramos sociais a Minas e ao Brasil”4.
A história da ocupação da Zona da Mata está intimamente relacionada com
esgotamento da região mineradora, pois “com a queda da produção aurífera em Minas
Gerais, a partir da segunda metade do século XVIII, os governadores passaram a incentivar
a ocupação do sertão do leste mineiro a fim de descobrir terras férteis para aumentar a
produção de gêneros alimentícios, a extração de ouro e, consequentemente, incrementar a
arrecadação de impostos devidos à metrópole”5.
Situada às margens de um dos rios mais importantes do estado de Minas Gerais, que
lhe garantiu o nome, Rio Pomba é uma cidade com características típicas do interior voltada à
produção agropecuária. Pacata e hospitaleira segue em passos curtos rumo ao progresso e ao
desenvolvimento. Possui uma relação de comércio fechado e uma economia bastante
centralizada. Quanto ao clima, apresenta um inverno rigoroso e um calor intenso, com fortes
chuvas entre os meses de setembro a março.
Localizada a cerca de 250 km de distância da capital Belo Horizonte, 73 km de Juiz de
Fora e 102 km de Mariana - sede da Arquidiocese da qual faz parte - é considerada pela
história da sua fundação e de várias cidades ao entorno o “Berço da Civilização da Zona da
Mata Mineira”. Sua população nativa tem orgulho de exaltá-la com os títulos de “Cidade do
Sonho e da Poesia, Atenas da Zona da Mata e Cidade Sedução”.
Sem qualquer atrativo turístico que se destaque, quer por parte natural ou
arquitetônica, a cidade e sua paisagem bucólica têm um poder de encantar naturalmente seus

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visitantes, provavelmente pelo carisma oferecido por seus habitantes na grande maioria gente
simples, educada, generosa e muito hospitaleira.
______________________
4. O Imparcial. Edição Especial. Rio Pomba, 15/08/1981.
5. ALVES, Romilda Oliveira. A conquista e a expansão da fronteira: Zona da Mata Mineira (1808-50). In: Zona
da Mata Mineira: fronteira, escravismo e riqueza. Rio de Janeiro: Apicuri, 2014. p. 14.

Da ocupação definitiva da região até sua emancipação recebe os nomes de Aldeia de


Pomba e Peixe, Arraial do Pomba, Pomba e Rio Pomba, sucessivamente. O aniversário da
cidade é festejado em 25 de agosto, dia da sua emancipação política em 1832 com as
instalações solenes da Câmara e do Fórum.

As raízes do catolicismo em Rio Pomba


A Freguesia do Mártir São Manoel do Rio Pomba e Peixe dos Índios Croatos e Cropós
é criada em 16 de fevereiro de 1718 subordinada ao bispado do Rio de Janeiro. Em 1831
passa ao termo de Mariana.
O mártir São Manoel, um santo de origem persa, conhecido em toda a Europa,
especialmente em Portugal onde muitas famílias durante centenas de anos adotam esse nome,
foi escolhido como padroeiro da freguesia e do novo aldeamento.
Coincidência ou não, um padre com o nome de Manoel (Manoel de Jesus Maria) foi
quem deu o pontapé inicial na colonização da região, assim como na fundação da cidade. Ora,
essa relação com a fé e a devoção vai fazer com que a localidade tenha um forte vínculo
espiritual e crie assim uma tradição cristã católica que vai atravessar os séculos precedentes.
“A instalação do Poder Régio nessa região, iniciou-se em 1767, quando o padre
Manoel de Jesus Maria lançou as bases de um grande aldeamento de índios e de um povoado
que constitui hoje, a cidade de Rio Pomba, pacificando indígenas e estabelecendo um
ambiente para a fundação de núcleos populacionais”6.
Em 1767, padre Manoel, presbítero secular do Hábito de São Pedro, foi nomeado
vigário colado e indicado para o cargo de diretor dos índios croatos, cropós (ou coropós),
botocudos e puris. Recebe autorização para aldear e civilizar os sertões e as matas da região
onde estava localizada a incipiente aldeia de Rio Pomba. No dia 25 de dezembro do mesmo
ano celebra a primeira missa local.

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Em 1770 começa o projeto da construção da Igreja Matriz. Após um ano, ao se


descobrir um erro, é feita uma petição do padre Manoel à diocese para poder autorizar o
arquiteto Antônio Francisco Lisboa (o Aleijadinho) a fazer acréscimos na planta original.
A igreja procurou manter sua função em catequisar, converter e educar os indígenas.
De início como fora um papel assumido pelos padres jesuítas, expulsos do Brasil durante o
governo do Marquês de Pombal (1750-1777) caberia às outras ordens religiosas e ao clero
secular cumprir essa missão.
______________________
6. Idem.
A relação entre os colonizadores e os indígenas foi tensa e conflituosa, apesar de que
as crônicas da época falam que padre Manoel tinha uma relação pacífica com os indígenas.
Além disso, a região era de difícil acesso, pois “além dos obstáculos oferecidos pela mata
espessa e pelos despenhadeiros, existiam outros perigos que a expansão da fronteira
destinava aos colonos”7.
“Alguns grupos indígenas, quilombolas e vadios deveriam ser controlados, por
impedirem o avanço da sociedade e da civilidade. Sucessivas expedições punitivas foram
organizadas e enviadas para várias regiões com o intuito de exterminar os índios mais
resistentes aos aldeamentos e ao domínio de suas terras, destruir os quilombolas e exercer o
controle sobre os grupos de vadios que viviam clandestinamente nessas fronteiras”8.
Nota-se aí um jogo de interesses entre a coroa portuguesa e o clero, uma vez que se
buscam outras possibilidades de manter a economia com a exploração de novos recursos e a
garantia da permanência e influência da igreja, no momento em que o ciclo minerador na
região de Vila Rica e Mariana estava em plena decadência.
A instalação da Corte Portuguesa no Rio de Janeiro, em 1808, vai ser um divisor de
águas na história administrativa, econômica, cultural e religiosa do Brasil. O então príncipe
regente d. João providenciou em fazer as mudanças e adaptações necessárias para que se
executasse um projeto metropolitano.
A ação catequética e doutrinária da Igreja Católica em Rio Pomba será intensificada
no século XIX pela grande influência de uma moral rigorista, cujas origens estão na religião
do medo, de escrúpulos e de uma mentalidade puritana, de acordo com o trabalho pastoral de
Dom Antônio Ferreira Viçoso, conde de Conceição, bispo de Mariana entre 1844 e 1875, que

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irá adotar uma moral jansenista na sua diocese, com o que se torna grande protagonista da
reforma tridentina no catolicismo brasileiro.
Graças a essa tradição jansenista “a centralização da moral no pecado, o rigor, o
medo da condenação, os escrúpulos da consciência, a dependência da confissão, a estreita
ligação entre a confissão e a eucaristia, [...]. O jansenismo como movimento reformador na
Igreja teve alguns aspectos positivos. No campo dogmático, destacou o senso mistérico
da fé, dando ênfase à onipotência divina, diante da qual o homem deve assumir uma
atitude de adoração respeitosa. No campo moral, reagiu contra a mentalidade laxista e
descompromissada; propôs uma autenticidade da vida cristã, com renovação de vida e
conversão interior“9.
______________________
7. Idem.
8. Ibidem.
9. MELO, Amarildo José de Jansenismo no Brasil: traços de uma moral rigorista. Aparecida, SP: Editora
Santuário, 2014.

Dom Antônio Viçoso além de tornar-se um missionário popular, tinha como


prioridades pastorais “a reforma do clero e a do povo”10. O que nos leva a crer, que seu
apostolado deixou marcas na religiosidade da população mineira, herdadas pela família de
Lola, o que fez dela uma católica obediente e fervorosa.

O século XX e o renascimento espiritual da Cidade de Rio Pomba


“Pois é graças aos símbolos que o homem sai de sua situação particular e se ‘abre’ para o
geral e o universal”. (Mircea Eliade)
“O comportamento religioso dos homens contribui para manter a santidade do
mundo. [...]. Seja qual for o contexto histórico em que se encontra, o homo religiosus
acredita sempre que existe uma realidade absoluta, o sagrado, que transcende este mundo,
que aqui se manifesta, santificando-o e tornando-o real. Crê, além disso, que a vida tem uma
origem sagrada e que a existência humana atualiza todas as suas potencialidades na medida
em que é religiosa, ou seja, participa da realidade”11.
Por sua peculiaridade religiosa a população da Zona da Mata chega ao século XX sob
as influências da reforma na diocese realizadas no tempo de Dom Antônio Viçoso, e o Brasil
vai sentir os efeitos das transformações políticas, socioculturais e econômicas.

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A cidade de Rio Pomba é marcada por um acontecimento espiritual e singular a partir


do exemplo de vida simples de uma mulher reclusa, que através do seu zelo pelo Sagrado
Coração de Jesus vai propagar uma forte devoção na região a serviço da evangelização.
Ao longo de uma vida de contemplação e abstinências, esse serviço evangelizador vai
ser conhecido no país inteiro graças às matérias em periódicos da região e das revistas e
jornais de grande circulação no país.
Floripes Dornellas de Jesus – Lola, “num fenômeno testemunhado por toda uma
cidade e que desafia a ciência [...] chamada de ‘Santa de Rio Pomba’ – pacata cidade
mineira – ela, a princípio, recebia a milhares de romeiros que iam buscar em seu exemplo
forças para suportar dores e fé, para conseguir graças”12.
Entre as décadas de 1940 e 1990, as notícias sobre Lola vão tomar proporções
maiores. Comparações com outros casos supostamente milagrosos, ao longo de séculos, vão
ser feitas para tentar explicar o fenômeno que desafia a ciência e recupera e dá consistência ao
catolicismo mineiro.
______________________
10. Idem.
11. ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano: a essência das religiões. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
12. O Dia. Edição 7855 de 04 de novembro de 1973. s. p. Acervo Museu Histórico de Rio Pomba.

“O fato mais admirável, porém, é o ocorrido em Rio Pomba. Muitos prelados,


sacerdotes e fiéis têm feito longas viagens a fim de presenciar “de visu” o fenômeno da
estigmatizada Teresa Neuman, da Baviera, na Alemanha, que não se alimenta desde 1921.
Entretanto, nas circunvizinhanças da cidade mineira de Rio Pomba, em menores proporções,
um fenômeno análogo apresentado por uma simples camponesa – Floripes Dornelas de Jesus
QUE NÃO SE ALIMENTA A MAIS DE 8 ANOS. [...] Não pretendemos proceder ao juízo da
Santa Igreja sôbre o caso; mas vemos [...], um fenômeno místico muito semelhante ao de
Santa Catarina de Sena, Santa Ludovina e outras que passaram anos e anos na mais
completa abstinência, não comendo nem bebendo cousa alguma, a não ser a Sagrada
Comunhão”13.
A educação também estará ligada à expressão da religiosidade. A cidade vai abrigar
unidades escolares com nome ligados ao catolicismo como, por exemplo, o Colégio São José,
a Escola Municipal Nossa Senhora das Graças, a Escola Estadual Padre Manoel de Jesus
Maria e o Colégio Regina Coeli.
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Colégio Regina Coeli

“Tudo se resolve em termos de ternura. E em termos de perdão. A compaixão é o segredo


último da condição humana”. (Antônio Carlos Vilaça)

Com grandiosa devoção, a Ordem das Irmãs Missionárias do Sagrado Coração de


Jesus, sob o olhar de sua fundadora madre Francisca Xavier Cabrini (1850-1917), “que queria
propagar a devoção ao Sagrado Coração pelo exercício das obras de misericórdia,
espirituais e corporais”14, chega ao Brasil no final do século XIX.
Madre Cabrini, beatificada em 1938 e canonizada em 1946, conservava grande
devoção pelo Coração de Jesus e o de sua mãe Maria Santíssima, e por Santa Margarida
Maria Alacoque, discípula do Sagrado Coração que recebeu a “Grande Promessa”15.
No início século XX as religiosas se instalam em Rio Pomba e em 19 de março de
1928, madre Rosário Marquesini funda a Escola Normal Regina Coeli, no alto do morro da
Bôa Vista. Madre Rita Copaloni é nomeada superiora da escola16. O colégio funciona até os
dias atuais e pode ser visto de diversos pontos da cidade.
______________________
13. FERREIRA, Roberto Nogueira. Cem anos-luz!: O imparcial, 1896-1996; Um jornal, um jornalista, uma
cidade. Brasília. R.N. Ferreira, 1996.
14. SÁ, André. O Sagrado Coração de Jesus: Esperança, solução e consolo para cada um de nós. 1 ed. São
Paulo: Petrus Editora, 2008. p. 96.
15. Idem
16. Ecos da Escola Normal “Regina Coeli”. Publicação anual, número 1. Acervo Museu Histórico de Rio
Pomba.

Frágua de Amor: Lola a “santa” de Rio Pomba


“No perfil que tantas pessoas já fizeram de Floripes Dornellas de Jesus, Lola de Rio Pomba,
ainda não vi nenhuma referência a ela como a Santa do Silêncio. Foi assim que a
conheci”(Marcio Deotti)17.

Nascida aos 09 de junho de 1913, no distrito do Bom Retiro – atual sítio Simão, cidade
de Mercês (numa distância aproximada de 26,6 km de Rio Pomba), Floripes Dornellas de
Jesus, a Lola, vai partilhar o mesmo espaço familiar junto com outros doze irmãos: seis
homens e seis mulheres. Ninguém sabe explicar ao certo, quando e porque Floripes recebeu
esse apelido.

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Ainda na sua adolescência, toda a família se muda para o sítio Lindo Vale, localizado
no atual bairro Experimental, em Rio Pomba. Embora com grande extensão de terras, o local
é humilde e a família dispõe de poucos recursos financeiros.
Seus pais conservadores e muito religiosos criaram os filhos de acordo com os
ensinamentos cristãos católicos, e Lola, como qualquer criança da sua época dividia seu
tempo entre escola, lazer e oração. Fez sua Primeira Comunhão na Matriz de São Manoel, e
logo ingressou no grupo da Pia União das Filhas de Maria e no Apostolado da Oração na
Paróquia. Assistia à missa diariamente e comungava.
É na adolescência que brota o silêncio de Lola. Desde então praticava com convicção
sua fé. Uma católica fervorosa: além de rezar o terço e assistir diariamente as missas na Igreja
matriz de São Manoel, ficava horas em adoração diante do Sacrário.
“Todos os domingos eu ia assistir à Santa Missa na Matriz. Saía de madrugada, a pé,
rezando o terço. No tempo do frio ou debaixo de chuva. Como era gostoso andar na frescura
da manhã, antes de o sol nascer, e ouvir a passarada cantar os louvores de Deus! Na cidade
encontrava poucos fiéis que iam em direção à Matriz. Antes da Missa eu fazia adoração ao
Santíssimo e outras orações. Durante a Missa comungava. Terminando o ofício, os fiéis iam-
se retirando, e eu ficava a sós na igreja. Como era gostoso ficar na igreja no silêncio.
Interessante: ninguém me importunou perguntando o que eu fazia tanto tempo na igreja. O
meu encontro com Jesus se estendia até às duas horas da tarde”18.
No ano de 1934, após subir em uma jabuticabeira, desobedecendo às ordens da mãe,
Lola cai sobre um cercado de bambus, perfura o baço e lesiona a coluna. Parecer médico após
dois anos de penoso tratamento em Juiz de Fora: paraplegia dos membros inferiores. Daí em
diante, sua vida muda bruscamente e vai transformar a fé de muitos dos seus futuros
seguidores.
______________________
17. IBRAHIM, Marcio Antônio Deotti. O Grande Tesouro de Lola. 2007. www.santalola.com.br.
18. Palavras de Lola. Revista O Cruzeiro. Edição de 23 de novembro de 1968. Acervo Museu Histórico de Rio
Pomba.

Diante de uma dose excessiva de medicamentos que danificou o seu estômago, após
algum tempo da enfermidade o organismo começa a rejeitá-los, assim como quase todos os
alimentos sólidos e líquidos oferecidos. Nesse tempo, segundo relato dos seus
acompanhantes, apenas conseguia beber um caldo feito de cidra ralada*.
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Aos poucos vai se abstendo por completo de tudo que é alimento, e como num
mistério, só consegue ingerir a hóstia consagrada oferecida pelo padre da sua paróquia.
Apesar de tudo, como toda mulher ela menstrua, porém, curiosamente, passa por um
fenômeno orgânico de completa ausência de desassimilação (funções orgânicas naturais).
“Desesperada de alcançar cura, Lôla decide-se, em 1936, a evitar qualquer
tratamento e adotar um novo tipo de vida. Ela declarou à família ter verificado que Deus não
queria a dedicação dos dias à Igreja, como freira, mas que sofresse pelos pecadores. Ela
começou por recusar remédios e alimentos. A princípio tomava um caldo de lima ralada,
laranja gelada e caldo de cidra. E nessa se manteve até 1943, quando decidiu abolir
completamente qualquer tipo de alimentação, até mesmo líquida, para se entregar a uma
abstinência completa”19.
Não ficou isenta de assistência espiritual porque ora um sacerdote, ora um diácono ou
ministro da Eucaristia, ia todos os dias ao sítio levar-lhe a comunhão. Sem sair da cama e de
seu quarto, Lola tornou-se uma missionária popular. Durante anos se entregará a um serviço
evangelizador, e seu modo de vida será conhecido no Brasil inteiro. Mergulha numa vida de
ascese, e abre um diálogo pessoal e profundo com o sagrado. É através da devoção ao
Sagrado Coração de Jesus que Lola vai procurar tocar no coração de Deus.
Lola dedicava horas de seu dia à oração e à confecção de fitas do Sagrado Coração de
Jesus. Também realizava alguns trabalhados manuais como confecção de terços e a renda
obtida destinava-se para a confecção de livros com a Devoção e a Novena do Sagrado
Coração de Jesus.
“Lola transmitia conforto, fortaleza e serenidade, deixando gravado nos corações dos
fiéis o traço vivo de fé inabalável ao Sagrado Coração de Jesus através da oferta de
santinhos, terços e novena”20.
Muitos vão atestar curas milagrosas, por isso sua fama cresce com intensidade assim
como a multidão que a procura. Passou a ser chamada de “santa” e o espaço se torna
pequeno, pois a fama ganha proporção nacional através das matérias sensacionalistas e
especulativas.

______________________
* O caldo de cidra era feito de um fruto da cidreira, que tem aparência de uma laranja, conhecido também como
toranja

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ou laranja– toranja.
19. Revista Manchete. Edição de 02 de novembro de 1957. Acervo Museu Histórico de Rio Pomba.
20. O Imparcial. Edição de 18 de abril de 1999.

“A casos que são conhecidos em uma área bem restrita e que, muitas vezes, têm
existência efêmera, caindo muito cedo no esquecimento. Outros aderem ao imaginário
religioso, folclórico e social, ganhando fama nacional e internacional”21.
Lola não comemorava o seu aniversário no próprio dia do seu nascimento conforme o
registro da Certidão - 9 de junho, mas sim o dia do seu batismo que era 27 do mesmo mês.
Além disso, respondia com três nomes distintos: Floripes Dornellas de Jesus - o mais usual,
Floripes Dornellas da Costa – o qual assinava nos documentos, e Floripes Maria de Jesus.
Na década de 1950 ela quase perde a posse das terras. Nesse período recebe a multidão
que acorre aos seus aposentos para buscar palavras de conforto e uma resposta de Deus aos
seus problemas. Ouvia silenciosamente cada um, e sempre havia uma solução favorável para
cada caso. Era o Sagrado coração que lhe respondia e ela passava as informações.
Lola jamais falou com alguém sobre sua intimidade com o divino. Silenciava no mais
profundo da sua alma a possibilidade de revelar ao mundo alguma provável visão da presença
ou audição da voz do próprio Deus. Ela somente afirmava que “sente”22 o que o Sagrado
Coração quer que se faça, quer o que seja dito.
A irmã mais nova, única ainda viva e que cuidava dela começou a se irritar com os
infortúnios constantes. O Bispo Diocesano proíbe que ela receba a multidão e jornalistas, a
fim de preservar sua imagem e sua saúde bastante debilitada. Passou a receber só os amigos
mais íntimos e membros da Igreja. Padres, seminaristas e religiosos são os únicos que
constantemente conversam com ela, contam suas dúvidas de vocação e ouvem conselhos.
Provavelmente querem partilhar a intimidade dela com o sagrado e entender o mistério que
cerca sua vida.
“Lôla, a donzela-prodígio de Rio Pomba: Diante da romaria diária que acorre ao
recanto da piedosa donzela, a três quilômetros desta cidade, onde uma multidão que dia a
dia mais aumenta vai buscar lenitivo para seus sofrimentos físicos e Moraes através das
valiosas orações de Floripes Dornelas de Jesus – a Lôla”23.
Nos últimos meses de vida Lola só recebia visitas cada vez mais restritas: um ministro
da eucaristia ou um sacerdote, o médico que acompanhava seu tratamento de saúde e os seus

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cuidadores. Esse grupo entrava e saia do interior da casa sem nada a dizer. Lá fora, não se
sabia ao certo como ela estava. Pairava um enorme silêncio.
______________________
21. PEREIRA, José Carlos. Interfaces do sagrado: catolicismo popular: o imaginário religioso nas devoções
marginais. Aparecida, SP: Editora Santuário, 2011.
22. Revista Manchete. Edição de 02 de novembro de 1957. Acervo Museu Histórico de Rio Pomba.
23. O Imparcial. Edição de 22 de junho de 1951.

Moradores não entendiam a causa do isolamento de Lola por mais de 40 anos e o


porquê de uma reclusão cercada de sigilos. Sua vida tornou-se um fator importante para a
história da cidade e de grande relevância para a população local. A falta de notícias levava
muitos a pensar que ela já tivesse morrido.
“Nem moradores entendem isolamento. Gerações mais novas pouco sabem sobre
Lola. Alguns acham que ela já morreu”. A matéria do jornal relata também que em Rio
Pomba, “os vestígios de Lola estão por toda parte”. E que os seus cuidadores mantinham
uma fidelidade “quase islâmica. Cega”. Como exemplo, a senhora Miriam Rodrigues Vieira,
uma entre tantos outros afilhados e afilhadas de Floripes na cidade, que afirmou na época
ser “Tudo para preservar a pessoa de Lola e impedir uma nova invasão de romeiros na
cidade”24.
Floripes Dornellas de Jesus, a “Lola” faleceu em 09 de abril de 1999 aos 86 anos de
idade. Seu corpo foi velado na Igreja Matriz de São Manoel. Exatamente no lugar onde o
caixão ficou está pregada no chão uma placa em bronze onde se lê: “TUDO POR VÓS, Ó
SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS!” AD PERPETUAM REI MEMORIAM . NESTE LOCAL
FOI VELADO O CORPO DE: FLORIPES DORNELLAS DE JESUS (LOLA) *27.6.1913 +
9.4.1999 RIO POMBA 9 E 10 DE ABRIL DE 1999”. Segundo estimativas do Jornal O
Imparcial e da polícia local 5.000 pessoas foram ao velório na igreja matriz para dar seu
último adeus à sua “santa”.
Está sepultada no jazigo da família, no cemitério municipal, local de constante visita e
veneração. O título de “santa” gerou conflitos, pois segundo um jovem chamado Gérson
Rodrigues, “pessoas contrárias à devoção e que não admitiam sua santidade tentaram
profanar o jazigo e destruí-lo”25.
A casa foi aberta definitivamente aos visitantes e curiosos. O quarto de Lola tornou-se
local de culto e peregrinação de fiéis e devotos. É possível que ali sempre houvesse alguma
energia sobrenatural durante todo o tempo em que ela viveu, e essa mesma energia possa
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permanecer até hoje em todo o ambiente. Acredita-se que o próprio clima e as orações
favorecem isso, como numa sinergia. O Sacrário, as imagens, as orações, os religiosos, tudo
provavelmente converge para um encontro com a presença divina.
Junto à casa principal do sítio foi construído um enorme salão, onde na entrada
principal se lê “Recanto Sítio da Lola”. Uma espécie de capela-santuário, na qual ao 3º
domingo de cada mês fiéis de diversas partes de Minas Gerais e do Brasil dirigem-se para
assistir à missa e rezar pela tão desejada canonização.

______________________
24. Jornal O Globo. Edição de 18 de janeiro de 1998.
25. Depoimento voluntário de Gérson Rodrigues durante uma conversa na porta da igreja matriz de Rio Pomba.
“O sagrado tem muitas faces. Uma delas se revela nas devoções marginais. Aquela
categoria de devoção que não é reconhecida pela Igreja Católica, mas que está por aí,
permeada nas práticas rituais dos fiéis, independentemente de ser considerada ou não pela
Igreja”26.
Há um bilhete muito divulgado onde Lola aconselha um amigo para que “Em suas
orações lembra sempre do Divino. Sagrado Coração de Jesus eu confio em Vós”27. Uma
prova essencial de todo o seu esforço em propagar a devoção e atestar o seu amor
incondicional pelo Coração de Jesus.

A Causa da Lola
Após a morte de Lola, parte do clero mineiro e um grupo de 50 pessoas composto por
membros da elite de Rio Pomba, que a acompanhou ao longo da sua vida, começou a mover
uma ação para a abertura de um processo de reconhecimento da sua santidade, com a intenção
de incentivar um processo de canonização.
A campanha começou a tomar força com correntes de orações, o reconhecimento do
Bispado de Mariana, lançamentos de alguns livros e criou-se a Associação dos Amigos da
Causa de Lola (AACL) com sede própria. Ao usar de uma Folha Informativa denominada O
Beija-flor, a Associação promoveu uma divulgação em larga escala para que pessoas
pudessem dar testemunho de possíveis graças alcançadas.
Os objetivos principais da Associação eram “poder acolher a todos que desejarem
conhecer mais a respeito da vida de Lola”, “fornecer subsídios a todos que desejarem

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trabalhar para a divulgação da vida singular da Lola, de total união com Deus” e “angariar
doações e reverter em benefícios da Causa da Lola”28.
O trabalho desse grupo ganhou energia no início da campanha pela canonização de
Lola, porém com o decorrer do processo a Associação se dissolveu. Muita gente na cidade já
não se lembra disso ou desconhece tal incentivo. No entanto, percebe-se certa precaução e as
pessoas evitam comentar.
A causa de Lola está em processo no Vaticano desde o ano de 2005. Seus seguidores e
devotos aguardam em oração e em silêncio sua beatificação. Acreditam, segundo parecer
favorável da Santa Sé, que sua imagem seja elevada aos altares da Igreja Católica.
______________________
26. PEREIRA, José Carlos. Interfaces do sagrado: catolicismo popular: o imaginário religioso nas devoções
marginais. Aparecida, SP: Editora Santuário, 2011.
27. O Imparcial. Edição de 18 de abril de 1999. p.5.
28. O Beija-Flor. Folha Informativa da Associação dos Amigos da Causa da Lola – AACL. Ano 1, n. 2. p.3.

Origem e propagação da devoção popular ao Sagrado Coração de Jesus


“Coração Santo, Tu reinarás, Tu nosso encanto sempre serás! Jesus amável, Jesus
piedoso, Deus amoroso, frágua de amor! (T. Mondin)

Desde a Idade Média se tem conhecimento das experiências pessoais e místicas de


homens e mulheres que revelaram uma profunda devoção e intimidade com o Sagrado
Coração de Jesus, o que lhes rendeu elevação aos altares da Igreja Católica e o título de
santos.
Houve também o incentivo de Papas que favoreceram a propagação da fé e a relação
de esperança e consolo entre os cristãos católicos do mundo inteiro. Seus escritos e
aprovações visam a fortalecer uma devoção que não se compara no âmbito da fé.
A devoção ao Sagrado Coração de Jesus surge entre os séculos XIII e XIV, na cidade
alemã de Helfta, região da Saxônia, com as monjas beneditinas Gertrudes “a Grande” (1256-
1303), considerada como um importante testemunho místico, e Matilde de Magdeburgo
(1212-1283). Místicas, as duas viveram na radicalidade a experiência do amor divino,
favorecidas “igualmente com visões do Sagrado Coração”29.
João Eudes (1601-1680) contribuiu para que a devoção deixasse de “ser
exclusivamente privada” e se tornasse “pública e oficial”30. Francisco de Sales (1567-
1622) e Joana de Chantal (1572-1641) fundaram a Ordem da Visitação, e “foi num convento

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dessa ordem religiosa que viveu a futura discípula do Sagrado Coração, santa Margarida
Maria”31.
Margarida Maria Alacoque (1647-1690), “recebeu graças de vida mística
extraordinária desde muito cedo [...], sobretudo aquelas graças conhecidas como As Quatro
Grandes Revelações” e A Grande Promessa, “ocorridas entre dezembro de 1673 e 1675,
enquanto a santa adorava o Santíssimo Sacramento. Não parece fortuita a circunstância de
essas revelações terem acontecido diante do Santíssimo Sacramento. Pois duas das práticas
de piedade muito ligadas à devoção ao Sagrado Coração são exatamente a adoração ao
Santíssimo Sacramento e a comunhão frequente”32.
Seguiram-se a estes exemplos de devoção e apostolado os de Cláudio La Colombière
(1641-1682), Luís Maria Grignion de Montfort (1673-1716), Afonso de Ligório (1696-1787),
João Bosco (1815-1888), a já citada neste trabalho madre Francisca Xavier Cabrini (1850-
1917), entre outros.
______________________
29. SÁ, André. O Sagrado Coração de Jesus: esperança, solução e consolo para cada um de nós. São Paulo:
Petrus, 2008. p.18.
30. Idem. p. 25.
31. Idem. p. 38.
32. Idem. p. 47.

Os Papas Pio IX (1846-1878), Leão XIII (1878-1903), Pio XI (1922-1939) e Bento


XVI (2005-2013) aprovaram e incentivaram “ex cathedra” à devoção de todo o povo cristão
católico ao Sagrado Coração de Jesus, baseados na crença de que Jesus Cristo é a “cabeça da
Igreja”.

Conclusão
A vida de Floripes Dornellas de Jesus (Floripes Maria de Jesus, Floripes Dorenellas da
Costa), a Lola, chama a atenção para uma pesquisa acadêmica atenta e cuidadosa, pois
cercada de mitos e mistérios construídos por seus seguidores, sua figura é modelada numa
imagem possível de várias especulações e investigações.
Pesquisar como sua história é construída e quais tendências abarca, é nosso objetivo.
História enraizada ou não numa fé religiosa devocional e mística tem fortalecido a construção
da deidade de Lola. Há muitos pretextos para negar as evidências. Para quem acredita no
poder da intercessão dos santos milagres não são explicados, são vividos. A verdadeira fé não

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precisa de folclore e não se mede pelos números de fiéis, é fato e transcende a compreensão
humana.
Este trabalho tem como foco pesquisar e entender as ações propagadoras de uma
devoção popular movida pelo ato evangelizador de uma mulher que viveu seu tempo como
membro de uma sociedade em transformação.
Estimular cada vez mais a procura por dados e informações que vão trazer o
conhecimento de aspectos até então desconhecidos, não só em ter a figura dessa personagem
como foco central da religiosidade e devoção popular, como o encontro dos diferentes níveis
da sociedade rio-pombense e mineira.
Em contrapartida, manter um diálogo com a história da cidade que tem suas origens no
catolicismo, e a continuidade dessa mesma história na figura de Lola como a força do
movimento e manutenção da religiosidade e fé católica na região, ainda que quase três séculos
depois de dominação e ocupação graças ao empenho do padre Manoel de Jesus Maria.
Acreditamos ser possível fazer uma conexão entre a história de Rio Pomba e a vida
espiritual de Lola, com o desejo de observar as outras vertentes religiosas existentes na
localidade e como se dá o diálogo inter-religioso.
Para isso, vimos à necessidade de estudar a história da cidade desde a sua fundação,
modos de ocupação, exploração e dominação, as influências do catolicismo, a cultura e a
religiosidade local entre os séculos XVIII e XX e, principalmente, a devoção popular que
moveu fé e diversos conflitos. O que os fatos, segundo testemunhos, da vida de Lola trazem
de novidade para a História do Cristianismo e da Igreja Católica, principalmente a Igreja
local, quais as contribuições para as discussões no campo das Ciências Humanas, quais
mudanças podem trazer para a luz espiritual da modernidade, numa época marcada pelo
ateísmo, ceticismo, hedonismo econômico e o acelerado crescimento do protestantismo no
Brasil? São indagações que incentivam a procura de respostas no silêncio.
Diante da profunda devoção ao Sagrado Coração de Jesus, sua frágua de amor estava
sob a luz do empenho em propagar a imagem de esperança que ela cultuava certamente e em
conformidade ao que segundo se atribui as palavras do apóstolo João na sua primeira epístola:
“Deus é Amor” (I Jo 4,8).

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A Congregação para as Causas dos Santos, no Vaticano, intitulou Floripes Dornellas


de Jesus – Lola, como Serva de Deus, com a declaração de NULA OSTA, em 30 de
novembro de 2005, sob o processo de número 2699.

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As manifestações religiosas espíritas no Paraná: a Casa Espírita Paulo de Tarso


Carolina Cleópatra da Silva Imediato77
Orientadora: Dra. Vanda F. Serafim
Universidade Estadual de Maringá

Resumo: O artigo tem por escopo apresentar o Projeto de Mestrado intitulado “As
manifestações religiosas espíritas no Paraná: a Casa Espírita Paulo de Tarso (Marialva /2006-
2016)”. A pesquisa proposta no projeto citado objetiva compreender as manifestações
religiosas espíritas na cidade de Marialva-PR, a partir da fundação da Casa Espírita Paulo de
Tarso em 2006. Para tanto, o estudo utiliza entrevistas, análise de biografia, pesquisa de
campo, e outros documentos fornecidos pela instituição. Na presente proposta, a história das
religiões é entendida como discurso histórico e culturalmente construída, conforme preconiza
Roger Chartier (2002). Nessa perspectiva, as visões de mundo dos colaboradores espíritas,
bem como suas práticas, são pensadas a partir da ideia de homo religiosus de Mircea Eliade
(1992) e as representações impostas compreendidas a partir do conceito de operações
“estratégicas” ou “táticas”, na definição de Michel de Certeau (1998).
Palavras-chave: História das religiões; Espiritismo; Marialva.

Abstract: The purpose of this article is to present the Master's Project entitled "Spiritist
religious manifestations in Paraná: the Spiritist Center Paulo de Tarso (Marialva / 2006-
2016)". The research proposed in the aforementioned project aims to understand the spiritist
religious manifestations in the city of Marialva-PR, since the founding of the Spiritist House
Paulo de Tarso in 2006. For this, the study uses interviews, biography analysis, field research,
and others Documents provided by the institution. In the present proposal, the history of
religions is understood as a historical and culturally constructed discourse, as advocated by
Roger Chartier (2002). In this perspective, the worldviews of the spiritist collaborators, as
well as their practices, are based on Mircea Eliade's idea of homo religiosus (1992) and the
imposed representations understood from the concept of "strategic" or "tactical" operations, In
the definition of Michel de Certeau (1998).
Key-words: History of religions; Spiritism; Marialva.

1. Introdução
O presente seminário tem por objetivo apresentar alguns resultados da pesquisa
desenvolvida no Projeto de Mestrado intitulado “As manifestações religiosas espíritas no
Paraná: a Casa Espírita Paulo de Tarso (Marialva /2006-2016)”, vinculado ao Programa de
Pós Graduação em História da Universidade Estadual de Maringá e ao Laboratório de Estudos

77
Graduada no curso de Direito pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). Mestranda em História pelo
Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual de Maringá (PPH-UEM). Integrante do
Laboratório de Estudos em Religiões e Religiosidades na Universidade Estadual de Maringá (LERR - UEM). E-
mail: carolinaimediato@hotmail.com
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em Religiões e Religiosidades (LERR/UEM). O objetivo da pesquisa consiste em


compreender as manifestações religiosas espíritas na cidade de Marialva-PR e, por
consequência, contribuir aos estudos da história das religiões no Paraná e História das crenças
religiosas brasileiras. A pesquisa parte da fundação da Casa Espírita Paulo de Tarso em 2006,
buscando perceber a historicidade da criação e manutenção da Casa.
Antes de adentrar à narrativa histórica das casas espíritas envolvidas na pesquisa,
necessário se faz uma breve contextualização da cidade de Marialva. A cidade de Marialva foi
fundada pela Companhia de Terras Norte do Paraná, conforme explica El-Khatib (1969). Na
década de 1940, a Companhia planejou o Patrimônio de Marialva entre Mandaguari e
Maringá, no trecho conhecido como caminho de Peabiru. Marialva foi elevada a Distrito de
Mandaguari através da Lei Estadual n º 2 de 01/10/1947. A emancipação sobreveio em 14 de
novembro de 1951 com a Lei Estadual nº 790/51. A origem do nome da cidade é uma
homenagem a D. Pedro de Alcântara Menezes, o Marques de Marialva (1711-1799).
O único livro histórico sobe a cidade foi encomendado pelo município e foi escrito
pela historiadora Maria Tereza Ricieri (2008) – Marialva: do café à uva fina. A autora
apresenta um breve relato da história da religiosidade marialvense, mencionando os seguintes
templos: Igreja Nossa Senhora de Fátima, Paróquia Bom Jesus de Aquidaban, Igreja
Presbiteriana do Brasil, Igreja Presbiteriana Independente, Congregação Cristã do Brasil,
Igreja Adventista do Sétimo Dia, Igreja Evangélica Assembléia de Deus, Igreja Presbiteriana
Renovada de Marialva, Igreja de Jesus Cristo, Igreja Evangélica Missionária Só o Senhor é
Deus, Igreja Metodista, Igreja do Evangelho Quadrangular, Igreja o Brasil para Jesus Cristo e
Igreja Batista Ebenézer.
O Espiritismo é citado por Ricieri (2008) no capítulo sobre “Assistência Social”. A
autora relata que a Casa da Sopa foi fundada com muita dificuldade pelo casal Silvério
Antonio Sozza e Carolina de Mathias Sozza, tendo em vista não haver centro espírita
kardecista em Marialva até aquele momento. Ricieri (2008) descreve que o casal Silvério e
Carolina precisou vender uma propriedade rural para adquirir o imóvel que posteriormente
serviu como Casa da Sopa. Voluntários como Geraldo Neves da Luz, representante da 7ª
União Regional Espírita (URE) e da Federação Espírita do Paraná, bem como Odeonel Lopes,
José Antônio Aurélio Zuffo, João Antonio de Mathias e Antonio Eugênio de Souza,
auxiliaram na edificação do prédio que se encontra hoje no terreno. A Casa da Sopa foi

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inaugurada em 15 de outubro de 1972. A propriedade adquirida por Silvério e Carolina é


hodiernamente a sede da Sociedade Espírita André Luiz, a qual teve como primeiro presidente
o Sr. Odeonel Lopes, conforme narra Ricieri (2008) e pode ser verificado pelo Diário Oficial
do Estado do Paraná78.
É relevante destacar o quão escassos são os estudos acerca da temática. Essa
assertiva se confirma ante os levantamentos realizados junto à Biblioteca Central da
Universidade Estadual de Maringá (UEM) e junto ao Banco de Teses da CAPES
(Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), bem como junto ao Banco
de Teses e Dissertações da Universidade de São Paulo (USP). Embora existam estudos sobre
a cidade de Marialva eles tendem a tratar de questões econômicas, biológicas ou voltadas a
viticultura.
Ao analisar as pesquisas desenvolvidas no PPGH-UFSC no decorrer de seus trinta e
cinco anos de existência (1975 - 2010), a historiadora Vanda Fortuna Serafim (2011)
constatou que:

Algumas características importantes sobre os trabalhos realizados são que, acerca


das dissertações de Mestrado, 79% delas trabalham com o Catolicismo, 15% com
Protestantismo (Presbiterianismo, Congregação Cristã do Brasil, Assembléia de
Deus, Igreja Luterana e Igreja Universal do reino de Deus) e 6% com Religiões
Afro-brasileiras, especificamente a Umbanda. Nas teses de Doutorado, o diferencial
está no surgimento de trabalhos sobre o espiritismo e a ausência de estudos sobre
Umbanda, assim, 70% das teses são sobre o Catolicismo, 20% sobre o Espiritismo e
10% sobre o protestantismo. Outro fator representativo evidenciado nesses trabalhos
é que aproximadamente 60% deles têm como recorte geográfico o estado ou cidades
de Santa Catarina, o segundo estado mais estudado é o Paraná em quase 12% das
produções relacionadas à temática das Religiões e Religiosidades. (SERAFIM,
2011, p. 149).

O caso da UFSC é decorrente da atuação do historiador Artur Cesar Isaia junto ao


Programa de Pós-Graduação em História, especialista em religiões mediúnicas e orientador de
doutorado da referida autora, esta quantidade não se repete nas outras universidades do país. É
nesse contexto que a pesquisa apresentada demonstra sua relevância.
No que tange aos aspectos metodológicos, a pesquisa parte do olhar da História
Cultural para compreender os fenômenos religiosos espíritas em Marialva. Roger Chartier
(2002) em À beira da falésia: a história entre incertezas e inquietude – A história entre

78
RESUMO DO ESTATUTO DO CENTRO ESPÍRITA “ANDRÉ LUIZ”. Diário Oficial do Estado, Curitiba,
PR, 26 out. 1972, p. 24.
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narrativa e conhecimento, explica que o surgimento da microhistória italiana é o exemplo


mais marcante da transformação do procedimento histórico.
Dessa forma, o objeto da história deixou de ser as estruturas que regulam as relações
sociais, a história passou a se preocupar com as racionalidades e as estratégias utilizadas pelas
comunidades, parentelas, famílias, indivíduos. É nesse contexto que a pesquisa pretende
pensar a história de fundação da Casa Espírita Paulo de Tarso e as relações desta com a
religião espírita em Marialva. Buscar-se-á reconhecer a forma como os trabalhadores da Casa
dão sentido a suas práticas e a seus discursos, o que, nas palavras de Chartier (2002) “parece
residir na tensão entre as capacidades inventivas dos indivíduos ou das comunidades e, de
outro lado, as restrições, as normas, as convenções que limitam [...] o que lhes é possível
pensar, enunciar, fazer” (CHARTIER, 2002, p. 91).
Para Chartier (2002) toda história deve pensar a diferença através da qual as
sociedades subtraíram do cotidiano, em figuras variáveis, um domínio particular da atividade
humana, bem como pensar as dependências que inscrevem variadamente a invenção estética e
intelectual. Segundo Chartier (2002), autores como Louis Marin, Bronislaw Geremek e Carlo
Ginzburg escreveram uma história das modalidades do fazer-crer e das formas de crenças,
trata-se de uma história das relações simbólicas, uma história da aceitação ou rejeição do
ideário inculcado.
Os únicos critérios que podem ser utilizados para uma diferenciação entre narrativas
históricas e narrativas imaginárias, segundo Chartier (2002), dizem respeito aos aspectos
formais do discurso: dependência em relação ao arquivo, portanto, em relação ao passado de
que este é parte; dependência em relação aos critérios de cientificidade e às operações
técnicas de seu oficio, reconhecendo suas variações. Assim, mesmo que o historiador escreva
de uma forma literária, não estará fazendo literatura. A pesquisa observará essa máxima e se
aterá aos dados colhidos através das fontes.
A pesquisa junto ao grupo pertencente à Casa Espírita Paulo de Tarso vem se
pautando também de acordo com o paradigma indiciário explicado por Ginzburg (1989), em
Mitos, emblemas e sinais – Sinais: raízes de um paradigma indiciário. Esse paradigma propõe
que se procure captar a realidade de forma mais profunda, através de pistas, sintomas,
indícios, signos pictóricos.

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Ginzburg (1989) explica que Sigmund Freud, Giovanni Morelli e Holmes, criação de
Conan Doyle, adotaram como método o modelo da semiótica médica. No final do séc. XIX,
as ciências humanas se apropriaram do paradigma indiciário, baseado justamente na
semiótica, a qual por sua vez possui raízes muito antigas. Trata-se de um saber caracterizado
por dados aparentemente insignificantes que conduzem a uma realidade complexa e não
passível de ser experimentada diretamente. Esses dados geram uma sequência narrativa.
Através do paradigma indiciário proposto por Ginzburg (1989) serão analisados os
arquivos colhidos no decorrer da pesquisa. A pesquisa proposta nesse projeto inclui como
fontes história oral, pesquisa de campo e a biografia da Sra. Maria Aparecida Maximiano.
Importa destacar que, para Mata (2010), a pesquisa no campo da história das
religiões deve seguir certo agnosticismo metodológico, isto é, “ela realiza um esforço
consciente de abster-se de construir suas análises a partir de juízos de valor (ou de fé).
Poderíamos falar aqui numa espécie de “dever de autocontrole científico” (p. 19).
Segundo Verena Alberti (2008), a história oral é uma metodologia de pesquisa e de
gênese de fontes. O método consiste em realização de entrevistas gravadas com indivíduos
“que participaram de, ou testemunharam, acontecimentos e conjunturas do passado e do
presente” (ALBERTI, 2008, p. 155). A história oral se tornou importante instrumento para se
realizar estudos historiográficos regionais e comunitários, que antes não possuía voz. Alberti
(2008) adverte, porém, que é um equívoco realizar distinções maniqueístas como história
democrática e história não-democrática, por exemplo. Outro equívoco a ser evitado é
considerar que a entrevista é a “História” em si, uma vez que na qualidade de fonte, necessita
de interpretação e análise.
A História oral será útil na presente pesquisa porque permite “o conhecimento de
experiências e modos de vida de diferentes grupos sociais” (ALBERTI, 2008, p. 166).
Essa metodologia é útil também no que concerne a história do cotidiano: “a
entrevista de história de vida pode conter descrições bastante fidedignas das ações cotidianas”
(ALBERTI, 2008, p. 166). A História oral será assim uma excelente fonte para essa pesquisa,
uma vez que buscará entender a religiosidade espírita através de um grupo específico, que
produz signos orais em larga escala e em riqueza de detalhes superior ao que é produzido de
forma manuscrita. Há ainda preciosas vantagens do uso desse método que podem ser citados:

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Ao mesmo tempo, o trabalho com a História oral pode mostrar como a constituição
da memória é objeto de contínua negociação. A memória é essencial a um grupo
porque está atrelada à construção de sua identidade. Ela [a memória] é resultado de
um trabalho de organização e de seleção do que é importante para o sentimento de
unidade, de continuidade e de coerência – isto é, de identidade. (ALBERTI, 2008, p.
167)
Em observância às orientações contidas em Histórias dentro da História, por Alberti
(2008), estão sendo realizadas entrevistas com o Sr. Roque Souzza, filho dos fundadores da
Sociedade Espírita André Luiz, bem como com a Sra. Maria Aparecida Maximiano, uma das
fundadoras da Casa Espírita Paulo de Tarso.
As entrevistas serão tanto do tipo temáticas como de história de vida, sendo que, a
priori, estão sendo realizadas entrevistas de história de vida com o Sr. Roque Souzza e com a
Sra. Maria Aparecida Maximiano.
As entrevistas temáticas estão em fase de elaboração de roteiro e serão realizadas
com os demais “trabalhadores” das duas instituições religiosas espíritas de Marialva.
A análise e interpretação da História oral obtida pelas entrevistas obedecerão às
ideias de “monumentos” e “documentos” de Le Goff. A crítica do documento como
monumento, conforme explica Alberti (2008), implica em ser capaz de desmontá-las, analisar
as condições de sua produção, para utilizá-las com pleno conhecimento de causa.
Buscar-se-á chegar a alguns padrões, isto é, “experiências que se repetem, trajetórias
semelhantes, usos das mesmas palavras ou expressões, etc. Os discursos serão comparados
com outros vestígios ou documentos, tais como publicações em redes sociais, campanhas, etc.
Alberti (2008) chama atenção também para a importância de se atentar a relatos e pontos de
vista “desviantes” e à necessidade de se tomar os fatos e suas representações
simultaneamente.
Importa ressaltar que a pesquisa aqui proposta pretende realizar a abordagem
científica sugerida por Carlos Henrique Brandão (1981), na obra Pesquisa Participante. Isto
é, o grupo constituinte da instituição religiosa objeto de estudo será analisado por meio da
pesquisa de campo. Tem-se buscado interagir com o movimento religioso, apreendendo sua
práxis. Sendo que foram realizadas pesquisas de campo iniciais na Casa Espírita Paulo de
Tarso e que, no momento, estão sendo realizadas também na Sociedade Espírita André Luiz.
Destaca-se que a “biografia é a narração oral, escrita ou visual dos fatos particulares
das várias fases da vida de uma pessoa ou personagem” (BORGES, 2008, p. 204). Será

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utilizada a biografia de Maria Aparecida Maximiano, a qual será analisada através do diálogo
com as demais fontes e será tratada como memória, isto é, a representação da história de um
indivíduo singular, o ser psicológico. A biografia da Sra. Maria Aparecida trata-se de um
testemunho e, como tal, é coerente admitir que há várias versões para cada fato narrado,
conforme explica Vavy Pacheco Borges (2008) em Grandezas e misérias da biografia.
Atualmente, na cidade de Marialva, existem dois centros espíritas, regularmente
registrados na Federação Espírita do Paraná (FEP): a “Casa Espírita Paulo de Tarso” e a
“Sociedade Espírita André Luiz” (ou “Centro Espírita André Luiz” como é conhecida),
conforme pode ser verificado pelo sítio79 oficial da federação. Nesse cenário, a pesquisa
pretende estudar a presença da religiosidade espírita em Marialva, partindo da experiência de
fundação da Casa Espírita Paulo de Tarso. A opção se deu pela maior facilidade em acesso a
fontes, como entrevistas autorizadas. A pesquisa almeja também discutir as visões de mundo
entre os trabalhadores da referida instituição e mapear fontes que contribuam à história das
religiões na região. Para tanto as fontes utilizadas consistem em pesquisas de campo,
entrevistas, biografia e demais vestígios da crença espírita em Marialva.

2. O Centro Espírita André Luiz (1972)


O Centro Espírita André Luiz ou “Casa da Sopa”, como é conhecido na cidade, foi
fundado pelo casal Silvério Antonio Sozza e Carolina de Mathias Sozza, ele natural do
interior de São Paulo e ela imigrante italiana, ambos nascidos em 1906.
Até a década de 70 não havia centro espírita kardecista em Marialva e o casal
precisou vender o sítio que possuíam em Mandaguari para adquirir o terreno onde a Casa da
Sopa seria construída em 1972. Houve ajuda de voluntários para levantar a casa. Dois dos
filhos do casal ajudaram a erguer a casa, eram eles João Antonio de Mathias Souzza e
Antônio Eugênio de Souzza. O casal conseguiu apoio da 7ª União Regional Espírita (URE),
representado na época por Geraldo Neves da Luz. Outras pessoas da cidade também
contribuíram com materiais de construção, tais como o comerciante, e membro da Loja
Maçônica Ciência e Justiça, Sr. José Antônio Aurélio Zuffo.

79
Disponível em: < http://www.feparana.com.br/ures/listagem/>. Acesso em 18 maio de 2016.
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A Casa da Sopa foi finalmente inaugurada em 15 de outubro de 1972. Recebeu esse


nome porque desde o início a intenção do casal era servir sopa para as crianças e necessitados
da cidade, segundo relatos de seu filho Sr. Roque.
A Sra. Carolina e o Sr. Silverio se dedicavam principalmente à manutenção da sopa,
servida por D. Carolina até 1988 quando faleceu. Sr. Silverio continuou a servir a sopa, com
auxílio de seus filhos Natalina, Rosa e João Antonio, ou Nico como era conhecido.
Sr. Silverio faleceu em 1996. Com sua partida, a manutenção da sopa foi
interrompida várias vezes e ficou a cargo de Nico, na medida que suas irmãs se afastaram do
auxílio. Nico já estava doente quando pediu para seu irmão Roque, residente à época na
cidade de Franca, que viesse para Marialva para reativar a sopa. Roque vendeu seus bens e
veio quase imediatamente.
Roque assumiu a Casa da Sopa em fevereiro de 2000. Seu irmão Nico faleceu pouco
tempo depois, em 2001.
Em 2009 o Sr. Roque perdeu a visão de um olho e teve redução sensível da visão de
outro, sendo necessário entregar a direção da Casa da Sopa para seu sobrinho Valdomiro, o
qual veio de Brasília para cumprir a promessa que fez a sua vó 4 dias antes dela falecer.
Atualmente a Casa da Sopa continua em funcionamento, sob a direção de Valdomiro
Prado, filho de Natalina e neto dos fundadores. O Centro Espírita e a assistência social
fundiram-se em um único CNPJ em 2015 e sua presidente é a Sra. Renata Mondadori. A
instituição oferece palestras públicas semanalmente e atendimentos do tipo fraterno e de
desobssessão duas vezes na semana. Há três grupos de estudo funcionando no Centro e há um
grupo de mesa mediúnica, dirigida pelo Sr. Roque.
Dentre as diversas promoções realizadas pela instituição, uma se tornou periódica e
anual: “A festa das crianças”, ocorrida no dia 12 de outubro em decorrência do aniversário
próximo da fundação da Casa e em homenagem a Sra. Carolina, que intitulava seu trabalho
como “Sopa das Crianças”.
Com a morte dos fundadores da Casa da Sopa houve a saída de muitos
colaboradores, sendo que um grande número deles se afastou da instituição em torno de 2004
e 2005.
Em 2005 um novo grupo de estudo kardecista começou a se formar. A princípio as
reuniões começaram a acontecer no bairro do Planalto, na casa da D. Cida. Esse grupo era

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bastante diversificado, mas se constituía principalmente de ex-trabalhadores do Centro


Espírita André Luiz, incluindo a D. Cida. Compreender essa dissidência é primordial para a
pesquisa.

3. A Casa Espírita Paulo de Tarso (2006)


O grupo que fundou a Casa Espírita Paulo de Tarso surgiu em um grupo de estudos
sobre “Evangelho segundo o espiritismo”, um livro do Pentateuco espírita codificado por
Allan Kardec. Como já citado, os encontros do grupo eram realizados na casa da D. Maria
Aparecida do Planalto.
Esse grupo cresceu e passou a realizar sessões mediúnicas, também na casa da D.
Cida e sob a supervisão desta. Como a procura de pessoas na casa da D. Cida aumentou
muito, foi necessário deslocar o grupo.
Em 2006 o grupo alugou uma casa no Jardim dos Nobres e fundaram oficialmente a
Casa Espírita Paulo de Tarso. O nome da casa foi escolhido pela espiritualidade, sobreveio em
uma sessão de mesa mediúnica através do mentor de um dos participantes do grupo. O nome
foi considerado apropriado pelo grupo, principalmente porque Paulo se tornara o mentor da
Casa em formação.
As reuniões mediúnicas eram dirigidas por D. Cida e por D. Edileuza (pseudônimo) e
as duas doutrinavam os espíritos atendidos. Após alguns meses, devido a desentendimentos,
D. Cida saiu da Casa Espírita e passou a atender as pessoas novamente em sua própria
residência.
Com a saída da D. Cida da Casa Espírita, os médiuns por ela treinados saíram
também, permanecendo a Sra. Monika e seu companheiro Sr. Marcos, os quais haviam
conhecido o espiritismo através da D. Cida, bem como alguns colaboradores remanescentes
do CEAL, que passaram a ser dirigidos então pela D. Edileuza, única médium ostensiva80 do
grupo. Como a D. Edileuza era a única médium psicofônica, Sr. Marcos aprendeu a doutrinar
para que as reuniões continuassem a ser realizadas.
Há divergências nos relatos fornecidos em relação ao motivo pelo qual D. Cida
deixou a Casa Espírita. A Sra. Monika e o Sr. Marcos afirmam que a D. Cida se desentendeu

80
A mediunidade ostensiva é aquela que se manifesta por meio da escrita, da palavra ou de outras manifestações
materiais, conforme explicitado no “Livro dos Espíritos” (KARDEC, p. 34-35), disponível em
<http://www.febnet.org.br/wp-content/uploads/2012/07/135.pdf>. Acesso em 4 set. 2016.
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com a D. Edileuza porque esta dizia que as práticas da D. Cida eram de “animismo81” e não
de “mediunismo”. A D. Cida, por sua vez, relata: que “as pessoas da Casa não me queriam lá”
(sic); que “a Lenita e a Edileuza estavam vendendo os livros que consegui para os estudos a
10 reais na Bezerra de Menezes em Maringá” (sic); que “Lenita disse que as doações da Casa
deveriam ir para os trabalhadores pobres da Casa e que eu era a mais pobre” (sic); que “me
desprezavam porque sou preta, pobre e analfabeta” (sic).
Antes da saída da D. Cida da Casa Espírita, a mesma era a responsável pelos
tratamentos espirituais de cura. Após seu afastamento, a D. Edileuza assumiu a função.
A Casa Espírita Paulo de Tarso se organizou da seguinte forma após a saída da D.
Cida do grupo: A D. Edileuza passou a ser a única dirigente dos trabalhos mediúnicos
(reuniões mediúnicas e reuniões de desobsessão) e a Presidente da Casa; a Sra. Monika
Domene assumiu a tesouraria da Casa e o atendimento fraterno, este último com o auxílio da
Sra. Vanessa Batista; o Sr. Marcos Silva passou a ser o doutrinador nos trabalhos mediúnicos.
Com o aumento de frequentadores da Casa, foram acrescentadas outras terapêuticas
ao atendimento, como a acupuntura e o reiki.
A acupuntura era aplicada por profissionais da cidade, mas o serviço, por ser
voluntário, trouxe alguns desconfortos para os trabalhadores, na medida em que muitas
pessoas que poderiam pagar pela terapêutica, procuravam o atendimento gratuito e assim
gerava um não ganho para esses colaboradores em sua profissão. Por essa razão, a acupuntura
não permaneceu na Casa.
O reiki continua sendo utilizado na Casa e a sua direção foi assumida pelo Sr. Ney,
trabalhador que não participou de sua fundação.
A Sra. Monika Domene registrou a Casa Espírita Paulo de Tarso junto à Federação
Espírita do Paraná, através da presidência da 7ª URE (União Regional Espírita) e comunicou
o presidente que, embora estivesse se filiando, “a Casa iria continuar a oferecer reiki aos
frequentadores” (sic).
A Casa Espírita Paulo de Tarso hodiernamente oferece aos frequentadores palestras
semanais, aplicação de reiki diariamente; atendimento fraterno, atendimento mediúnico,

81
O animismo para a doutrina espírita é um fenômeno em que “a comunicação é realizada pelo próprio
encarnado, quando este se encontra no estado de emancipação da alma, vulgarmente conhecido no meio
espírita como anímico ou, ainda, de desdobramento espiritual”. (Disponível em:
<http://www.febnet.org.br/blog/geral/colunistas/mediunismo-e-animismo/>. Acesso em 19 maio de 2016).
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grupo de estudo do “Evangelho segundo o espiritismo”, grupo de estudo do ESDE (Estudo


Sistematizado da Doutrina Espírita), grupo de estudo do livro “O Céu e o Inferno”, grupo de
estudo do livro “Nosso Lar” e grupo de apoio ao luto “Maria de Nazaré”.

4. Breve discussão teórica


A maneira como o grupo pesquisado se estruturou, a forma como seus integrantes se
relacionam com o mundo e com a religiosidade espírita estão sendo pensadas de acordo com
as noções de “táticas” e “estratégias” de Michel de Certeau (1998), constantes na obra A
Invenção do cotidiano – Fazer com: usos e táticas.
Para Certeau (1998), a diferença entre tática e estratégia reside nos tipos de
operações que as estratégias são capazes de produzir, mapear, impor, enquanto que as táticas
só podem utilizá-los, manipulando ou alterando. É importante frisar que os contextos de usos,
segundo Certeau (1998), remetem ao ato de falar. O enunciado supõe uma efetuação do
sistema linguístico, isto é, a língua só se torna real no ato de falar, bem como uma apropriação
da língua por quem age e a implantação de um interlocutor, real ou fictício, além da
instauração de um tempo presente. Esse modelo pode ser aplicado a operações não
linguísticas que dependam de consumo. Certeau (1998) alerta, entretanto, que se faz
necessário analisar a natureza dessas operações, considerando suas relações de forças (não só
os fortes empreendem “ações”).
Certeau (1998) denomina estratégia o cálculo das “relações de forças que se torna
possível a partir do momento em que um sujeito de querer e poder pode ser isolado” (p. 93).
A estratégia reclama um lugar “próprio” de ação, o que ocasiona efeitos, tais como: o domínio
do tempo pela fundação de um lugar autônomo; possibilidade de antecipar-se ao tempo pela
leitura de um espaço; o poder do saber. A estratégia utiliza do poder para elaborar lugares
teóricos (sistemas e discursos) que articulem um conjunto de lugares físicos onde as forças
possam se distribuir.
A tática, por sua vez, na conceituação de Certeau (1998), é a ação calculada, que é
determinada justamente pela ausência de um “próprio”. A tática não logra a autonomia, não
tem um lugar seu e, por isso, trabalha com aquilo que lhe é imposto. A tática não possui visão
global do adversário, sua operação se dá lance por lance. A tática se aproveita das ocasiões e
depende delas, não possui o controle dessas ocasiões, utiliza o tempo com astúcia. A tática é

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determinada pela ausência de poder, enquanto a estratégia é estabelecida pelo postulado de


um poder. Certeau (1998) sugere que as práticas cotidianas dos consumidores, tais como
habitar, falar, ler, comprar, ou cozinhar são tipos de táticas, isto é, são gestos astuciosos do
“fraco” na ordem estabelecida pelo “forte”. Dessa forma, as maneiras de fazer dos
“trabalhadores” da Casa Espírita Paulo de Tarso e as relações de força envolvidas serão
analisadas a partir das operações discutidas na obra de Certeau (1998).
Nesse contexto, o Centro Espírita André Luiz, com o apoio institucional já surgiu
possuindo um lugar próprio, sistematizado, isto é, desde a fundação utilizou operações
estratégicas.
Já o grupo “Paulo de Tarso” surgiu sem um lugar próprio, improvisado,
solucionando os problemas conforme iam aparecendo, lance por lance, e apenas depois logrou
êxito em edificar o seu lugar.
A D. Cida, por sua vez, não tendo encontrado meios de realizar suas práticas, tato no
Centro Espírita André Luiz como na recém fundada Casa Espírita Paulo de Tarso, retornou
para a sua residência e desde então tem praticado sua religiosidade de forma tática.
Em relação à religiosidade, a pesquisa adota o pensamento desenvolvido por Mircea
Eliade (1992) na obra “O sagrado e o profano”. O referido autor entende que compreender o
universo espiritual do homem leva o conhecimento mais avançado sobre esse mesmo homem.
As situações religiosas assumidas pelo homem contribuíram para que o homem se tornasse o
que é hoje.
Conforme Mircea Eliade (1992), o homo religiosus possui um modo de viver
específico, embora exista grande gama de formas histórico religiosas. Isto quer dizer que,
independentemente do contexto histórico, o homem religioso crê que exista uma realidade
absoluta, denominada aqui de “o sagrado” – aquilo que transcende este mundo, mas se
manifesta no campo terreno, santificando-o e tornando-o real. Sobre o homem religioso
Eliade acrescenta:
Crê, além disso, que a vida tem uma origem sagrada e que a existência humana
atualiza todas as suas potencialidades na medida em que é religiosa, ou seja,
participa da realidade. Os deuses criaram o homem e o Mundo, os Heróis
civilizadores acabaram a Criação, e a história de todas as obras divinas e semi-
divinas está conservada nos mitos. (ELIADE, 1992, p. 97)

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A compreensão da experiência religiosa espírita envolverá, portanto, esse homem


religioso que pauta sua existência e seu modo de vida, suas maneiras de fazer, a partir do
sagrado.
O espiritismo possui práticas que não se verificam apenas no seio institucional, trata-
se de um modo de vida, a conduta espírita. Justamente nesse sentido que a ideia de
experiência religiosa e a categoria de homo religiosus trabalhados por Eliade (1992) se
coadunam às práticas e discursos observados elos trabalhadores e colaboradores das casas
espíritas de Marialva.
Por fim, necessário se faz mencionar que esses são os dados iniciais da pesquisa,
obtidas através da pesquisa de campo e da análise da biografia. A pesquisa se encontra em
fase de coleta de documentos escritos e realização de entrevistas, tanto com integrantes da
Casa Espírita Paulo de Tarso, quanto com integrantes do Centro Espírita André Luiz.

Fontes:
GUIMARÃES, Tânia Braga. Os campos precisam florir: relatos de Dona Cida, uma
vencedora. Biografia. 2014.
IMEDIATO. C. C. da S. Pesquisa de Campo na Casa Espírita Paulo de Tarso. 1. 14/02/2016.
Horário 19h00min às 23h30min.
IMEDIATO. C. C. da S. Pesquisa de Campo na Casa Espírita Paulo de Tarso. 2. 05/04/2016.
Horário 20h00min às 23h15min.
IMEDIATO. C. C. da S. Pesquisa de Campo no Centro Espírita André Luiz. 1. 04/08/2016.
Horário 19h45min às 21h00min.
IMEDIATO. C. C. da S. Pesquisa de Campo no Centro Espírita André Luiz. 2. 11/08/2016.
Horário 20h00min às 21h00min.
IMEDIATO. C. C. da S. Pesquisa de Campo no Centro Espírita André Luiz. 3. 18/08/2016.
Horário 19h30min às 21h00min.
IMEDIATO. C. C. da S. Pesquisa de Campo no Centro Espírita André Luiz. 4. 25/08/2016.
Horário 19h30min às 21h10min.
IMEDIATO. C. C. da S. Pesquisa de Campo no Centro Espírita André Luiz. 5. 01/09/2016.
Horário 19h20min às 21h00min.
IMEDIATO. C. C. da S. Pesquisa de Campo no Centro Espírita André Luiz. 6. 08/09/2016.
Horário 19h40min às 21h15min.
IMEDIATO. C. C. da S. Pesquisa de Campo no Centro Espírita André Luiz. 7. 29/09/2016.
Horário 19h30min às 21h05min.
IMEDIATO. C. C. da S. Pesquisa de Campo no Centro Espírita André Luiz. 8. 03/10/2016.
Horário 15h00min às 16h00min.
IMEDIATO. C. C. da S. Pesquisa de Campo no Centro Espírita André Luiz. 9. 06/10/2016.
Horário 19h30min às 21h00min.

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IMEDIATO. C. C. da S. Pesquisa de Campo no Centro Espírita André Luiz. 10. 13/10/2016.


Horário 20h00min às 21h00min.
IMEDIATO. C. C. da S. Pesquisa de Campo no Centro Espírita André Luiz. 11. 20/10/2016.
Horário 19h30min às 21h00min.
IMEDIATO. C. C. da S. Pesquisa de Campo no Centro Espírita André Luiz. 12. 27/10/2016.
Horário 19h40min às 21h00min.
IMEDIATO. C. C. da S. Entrevista com Roque Souzza. 1.
IMEDIATO. C. C. da S. Entrevista com Roque Souzza. 2.
RESUMO DO ESTATUTO DO CENTRO ESPÍRITA “ANDRÉ LUIZ’. Diário Oficial do
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Uma catedral não construída e seu legado sobre o espaço urbano


Claudia Barbosa Teixeira82

Resumo: Desde meados do século XVII a ideia de construir uma nova catedral para a cidade
do Rio de Janeiro vinha sendo alimentada devido ao mau estado da igreja de São Sebastião no
alto do morro do Castelo. O sítio escolhido se localizava fora das muralhas da cidade, por
detrás da igreja de Nossa Senhora do Rosário. Mesmo sem ter sido concluída, o período de
execução das obras iniciais da catedral, de 1749 a 1754, foi um marco na vida urbana, pois
favoreceu a atenção da população sobre uma região adjacente à malha urbana já consolidada.
O objetivo do presente artigo é apontar que a implantação de um território religioso por
iniciativa dos poderes religioso, político e militar foi estratégia determinante para a ocupação
da região denominada Campo da Cidade.
Palavras-chave: Século XVIII. Catedral. Rio de Janeiro.

A non constructed cathedral and its legacy on the urban space


Abstract: Since the middle of XVII century the idea to construct a new cathedral for the city
of Rio de Janeiro had been fed because the bad state of the church of São Sebastião at the top
of Morro do Castelo. The chosen site was located outside of the walls of the city, behind of
Nossa Senhora do Rosario´s church. Even without having been concluded, the period of
execution of the initial civil works of the cathedral, from 1749 to 1754, was a landmark in the
urban life, therefore it favored the attention of the population on an adjacent region to the
consolidated urban mesh. The objective of the present article is to point that the implantation
of a religious territory for initiative of religious, political and military power was a
determinant strategy for the occupation of the region called Campo da Cidade.
Key-words: XVIII century. Cathedral. Rio de Janeiro.

Introdução

No ano de 1763, ao chegar ao Rio de Janeiro, o primeiro Vice-rei Conde da Cunha pôde
visualizar a urbe como o produto das realizações dos Governadores da Capitania, sendo o
último deles, o Conde de Bobadela, responsável por obras importantes. Dentre as suas ações
administrativas algumas se destacaram e influenciaram a formação da malha urbana na região
até então denominada Campo da Cidade, uma área pública, ainda inabitada que se estendia da
rua da Vala, atual rua Uruguaiana, até o mangue de São Diogo83. Foi o caso da construção da

82
Arquiteta e urbanista. Doutora em História Política pelo PPGH/UERJ. Mestre em Arquitetura e Urbanismo
pelo PPGAU/UFF. Integra o quadro de pesquisadores do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a História da
Igreja Católica no Brasil (NEPHIC) do GT Rio de História das Religiões e Religiosidades da Anpuh. Email:
claudiabarbosat14@gmail.com
83
O mangue de São Diogo ou Saco de São Diogo, como era denominado no século XVIII, se estendia das
proximidades do Campo de Santana até a Baía de Guanabara, cortando a atual rua Francisco Bicalho.

130
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nova catedral da cidade do Rio de Janeiro. O objetivo desse artigo é apontar que a escolha do
sítio para erguer o templo de maior importância para a Igreja Católica foi responsável por
induzir a ocupação dessa região.

1. A área urbana do centro da cidade no período do governo Bobadela


De 1733 a 1763, ou seja, os últimos 30 anos antes da elevação da cidade do Rio de
Janeiro a capital do Vice-reino foram governados por Antônio Gomes Freire de Andrada,
conhecido como Conde de Bobadela, título recebido em 1758. No início de sua
administração, o governador da capitania do Rio de Janeiro84, já encontrara construída a
muralha de pedra, projetada pelo engenheiro francês João Massé a partir de 1713, com o
objetivo de proteger a cidade do Rio de Janeiro contra possíveis novas invasões, como a que
ocorrera comandada pelo francês René Duguay-Trouin em 1711. A muralha, conforme
demonstra o Mapa 1, estabeleceu os limites da cidade que coincidiam com o espaço urbano
ocupado até o ano de 1763, que se delineava da seguinte maneira:

[...] faixa de terreno que corria junto ao mar, com início na ponta da Fortaleza de
São Tiago, localizada no sopé do morro do Castelo, e término no trapiche da Prainha
que ficava na base do morro da Conceição. Pelo interior, corria por sobre uma linha
imaginária que unia o morro do Castelo ao da Conceição, passando por detrás da
capela de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos [...]85

Mapa 1 – Limite da Muralha de pedra construída (1713/1730)

84
A Capitania do Rio de Janeiro incluía os estados de Minas Gerais, São Paulo, Goiás, Santa Catarina, Rio
Grande do Sul e Colônia do Sacramento.
85
CAVALCANTI, Nireu. O Rio de Janeiro Setecentista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. p. 49.
131
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Elaborado por Teixeira, C. a partir da base cartográfica de Barreiros86.

No ano de 1760, na área semi-urbanizada intra muros, de acordo com o levantamento


de Baltazar da Silva Lisboa, se concentravam 32.746 pessoas e 5.796 “fogos”87 ou unidades
domésticas. Dentre as construções destacavam-se as que foram executadas durante o período
do Conde de Bobadela que, em sua gestão no governo, executou uma série de melhoramentos
que rascunhavam certa ordenação urbana. Em muitas dessas obras o governador foi auxiliado
pelo engenheiro militar e brigadeiro José Fernandes Pinto Alpoim. Destacam-se entre elas a

86
BARREIROS, Eduardo Canabrava. Atlas da evolução urbana do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: IHGB, 1965.
87
CAVALCANTI, Nireu. O Rio de Janeiro Setecentista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004, p. 255.
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Casa dos Governadores, os Arcos da Carioca, o Convento da Ajuda, as Casas dos Teles de
Menezes e diversas fortificações.

Na Casa dos Governadores (1743)88, no Largo do Carmo (atual Praça XV), foi
instalada a Casa da Moeda no andar térreo. A Câmara de Vereadores transferiu-se para as
casas dos Teles de Menezes, em frente ao Largo do Carmo, cedendo suas instalações para o
Tribunal da Relação. Ainda no Largo do Carmo foi construído um chafariz cuja água
provinha do Chafariz da Carioca por um cano que deu nome à rua por onde passava, atual
Sete de Setembro. Com todas essas obras tão significativas no Largo o governador transferiu a
forca e a polé para a região do Campo da Cidade.

Dentre as edificações religiosas, além dos complexos dos Jesuítas, Beneditinos,


Carmelitas e Franciscanos, com seus respectivos templos, havia as Igrejas de São José, da
Candelária, Capela de Santa Cruz, entre outros templos localizados pelo núcleo central. Na
administração do Conde de Bobadela proliferaram Ordens Leigas, principalmente
Irmandades. Muitas delas iniciaram a construção de seus templos nesse período, destacando-
se as que se encontram na região de interesse dessa pesquisa: a Capela de Santana (1735) e a
igreja de Santa Efigênia e Santo Elesbão (1747). Em fase de construção encontravam-se as
igrejas de Nossa Senhora da Lampadosa, de São Jorge, a de São Gonçalo Garcia e a de São
Francisco de Paula.
Foram executadas outras construções religiosas, como por exemplo, em parceria com
o governo eclesiástico do bispo D. Frei Antônio de Guadalupe o seminário de São José (1739)
e com o bispo D. Frei Antônio do Desterro o seminário de Nossa Senhora da Lapa do
Desterro (1750). Além dos conventos da Ajuda (1750) e de Santa Teresa (1750), cuja
construção deve-se ao incentivo pessoal do próprio governador.

Porém, a obra mais significativa para este artigo é a da Sé Catedral, por estar
localizada na área de expansão do centro da cidade e ter sido uma das construções que
influenciaram diretamente a sua ocupação, conforme nossa análise. Embora muito citada por
diversos autores, não se poderia deixar de mencionar a peregrinação da sede do poder

88
A partir de 1763 serviu de Palácio dos Vice-reis. Com a chegada da Corte, em 1808, como sede do governo do
Reinado e, posteriormente, como Paço Imperial. Após a Proclamação da República serviu como sede dos
Correios e Telégrafos. Atualmente é conhecido como Centro Cultural Paço Imperial que proporciona exposições
e eventos com o objetivo de preservar a memória histórica. Em 1938, foi tombado pelo Instituto de Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional – IPHAN.
133
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eclesiástico pelas igrejas da cidade, tornando-se apropriado relatar os fatos que levaram a
cidade do Rio de Janeiro a ficar sem uma Catedral por tantos anos.

2. A imagem do padroeiro da cidade e a peregrinação da Sé


A história de construir uma nova catedral para a cidade vinha sendo desejada desde
meados do século XVII. Em 1676, quando o Rio de Janeiro é elevado à categoria de Diocese,
a segunda a ser criada no Brasil, a então paróquia de São Sebastião, no alto do Morro do
Castelo, construída em 1567, é elevada a categoria de catedral ou Sé, como ficou conhecida.
Na hierarquia territorial, depois do Vaticano, a Sé, abreviatura de Sedes Episcopalis, era a
sede do poder da Igreja Católica no Rio de Janeiro, o que fazia da igreja de São Sebastião a
principal igreja da cidade, onde ficava a imagem do padroeiro trazida de Portugal por Mem de
Sá.
Estando a matriz de São Sebastião em péssimo estado de conservação e considerando
a íngreme subida ao morro, em 1659 o então prelado Manuel de Souza e Almada decidiu
transferir a Sé para a igreja de São José, na várzea, que a esta época estava inteiramente
reformada. Depois de muitas pendengas com a Câmara, o prelado transfere apenas o sacrário
e a pia batismal para a igreja de São José. Depois foram para a Igreja da Candelária que era
matriz da segunda freguesia da cidade.

Temos depois, o então bispo D. Antônio de Guadalupe transferiu-se no meio da noite


para a igreja de Santa Vera Cruz (atual Santa Cruz dos Militares), levando consigo além dos
demais pertences relativos ao culto, a imagem de São Sebastião. Após quase quatro anos de
conflito com as duas irmandades ali instaladas, a de Santa Cruz dos Militares e a de São Pedro
Gonçalves, decidiu o bispo mudar a Sé para a igreja de Nossa Senhora do Rosário no ano de
1737, também a contragosto da irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos
Homens Pretos. De acordo com Coaracy89:
Não seduzia as diferentes irmandades a honraria de ter a sua igreja investida dos
foros de Sé episcopal. Não lhes sorria a instalação do cabido no seu templo, porque
a ninguém apraz a ideia de ter gente estranha mandando em sua casa. Opunham por
isso toda a sorte de obstáculos e empecilhos à duvidosa distinção, com as mais
variadas alegações.

89
COARACY, Vivaldo. Memórias da cidade do Rio de Janeiro: quatro séculos de histórias. 4. ed. Rio de
Janeiro: Documenta Histórica, 2008.
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A unificação das Irmandades de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos


Homens Pretos havia acontecido no de 1667. Ambas prestavam seu culto nas dependências da
igreja de São Sebastião. Após a elevação dessa Igreja à Catedral da cidade, em 1676, a
Irmandade resolveu abandonar as dependências daquele templo por conta de desavenças com
o bispo, embora não possuíssem uma Igreja para abrigá-los. Em 1708, Francisca Pontes, uma
devota de Nossa Senhora do Rosário, doou à Irmandade um terreno situado à Rua da Vala, em
frente à Rua André Dias (atual Rua do Rosário). Teve início a construção da Igreja de Nossa
Senhora do Rosário e São Benedito. Em 1737, suas obras já estavam praticamente concluídas.
Portanto, o recém-inaugurado templo construído por uma irmandade de negros com sacrifício
e determinação, é ocupado sumariamente pelo Cabido. Mesmo tendo recorrido ao rei, uma
provisão real de outubro de 1739 determinou que se mantivesse a catedral nas dependências
da Igreja do Rosário até que se construísse um templo para a Sé.

Com a chegada da família real portuguesa, em 1808, e por decisão do príncipe regente
D. João, a Sé Catedral foi transferida para a Igreja de Nossa Senhora do Carmo, de onde os
carmelitas foram convidados a se retirar. Essa igreja foi, portanto, elevada à condição de
Catedral da cidade e assim permaneceu por 168 anos90.

3. A construção da nova catedral


Após alguns anos, atendendo às solicitações dos bispos do Rio de Janeiro, o rei D.
João V finalmente permitiu a busca de um terreno para construção de uma Sé Catedral. O
poder político - Governador Conde de Bobadela, o poder religioso - bispo Dom Frei Antônio
do Desterro Malheiros e o poder militar - brigadeiro José Fernandes Pinto Alpoim acolheram
o pedido e escolheram um local para erguer a catedral. O sítio escolhido se localizava fora das
muralhas da cidade, por detrás da igreja do Rosário. Cavalcanti relata que “em 7 de maio de
1748 realizou-se a cerimônia de concorrência pública para a 1ª etapa da obra.”91 O projeto da
igreja previa uma base de 42,46 m de largura, 77,66 de comprimento e 25,00 m de altura na
fachada. Percebe-se que o templo que estava sendo construído apresentava as características

90
Somente no ano de 1976 foram concluídas as obras da Catedral Metropolitana do Rio de Janeiro localizada na
Av. Chile. O arcebispo da cidade exerce seu governo eclesiástico no prédio da Mitra Arquidiocesana, localizado
a Rua Benjamim Constant, na Glória. Atualmente a imagem de São Sebastião se encontra na Igreja de São
Sebastião do Rio de Janeiro, no bairro da Tijuca, sob a guarda dos frades capuchinhos, assim como o marco de
Fundação da Cidade e os restos mortais de seu fundador.
91
CAVALCANTI, Nireu. O Rio de Janeiro Setecentista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. p. 344
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físicas condizentes com seu status de catedral. Porém, a obra foi paralisada em 175492 por
falta de verbas, devido principalmente ao custeio das guerras no sul do país ocasionada pela
demarcação de fronteiras, conforme registram os documentos. O período de execução das
obras iniciais da Catedral, de 1749 a 1754, foi um marco na vida urbana, pois favoreceu a
atenção da população sobre uma região adjacente à malha urbana já consolidada. Esta recebeu
a denominação de Largo da Sé Nova, posteriormente Largo Real da Sé.
Uma das primeiras ações que efetivaram a ocupação desse Largo ocorreu pouco tempo
depois, no ano de 1756, quando se iniciaram as obras da igreja de São Francisco de Paula, por
iniciativa da Ordem Terceira dos Mínimos de São Francisco de Paula. Foi no período do
governo do Conde de Resende, no ano de 1801, que a obra inicial da igreja ficou concluída93.
Como parte da festa foi realizada procissão para trasladação da imagem da ermida para o
novo templo. Desde 1757 a prática religiosa do culto ao padroeiro da Ordem Terceira era
realizada em uma pequena ermida erguida no local. Desde então, com o incentivo do bispo
da cidade D. Antônio do Desterro Malheiros, membro da Ordem, as práticas religiosas eram
exercidas no largo, que recebeu o nome de São Francisco de Paula, atraindo um número
crescente de fiéis que iam aderindo à recém-criada Ordem Terceira.

Uma rua também saía do Largo com o mesmo nome do santo, no trecho entre a igreja
e a estrutura do prédio não concluído da catedral. Hoje a rua é conhecida como rua do Teatro.
Este prédio, por sua vez, foi finalmente ocupado pela Real Academia Militar, fundada pelo
Conde de Linhares em 1810. O largo foi calçado pela primeira vez em 1817 para as
comemorações da coroação de D. João VI, após a morte de sua mãe, D. Maria I. O Largo de
São Francisco de Paula figurou como o lugar da festa religiosa e política.

Em 1813, por iniciativa de um dos Irmãos da Ordem Terceira dos Mínimos se iniciou
a construção de um hospital no Largo para os membros mais necessitados da confraria. O
edifício, erigido em terreno contíguo à igreja, foi custeado por doações e esmolas. Tinha
janelas para o Largo e para uma travessa que foi aberta em terreno de propriedade da Ordem
dos Mínimos e pouco tempo depois se tornou de domínio público. Essa travessa se chamou

92
A estrutura da não concluída Sé Nova se tornou um prédio onde se instalou a Academia Militar, depois a
Escola Central e, por fim, a Escola Politécnica. Atualmente as instalações são ocupadas pelo Instituto de
Filosofia, História e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
93
A igreja viria a ser concluída no ano de 1865.

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inicialmente São Francisco de Paula, atual Rua Ramalho Ortigão, e ligava o Largo à rua do
Cano, atual Sete de Setembro, que nesse trecho era conhecida como rua Detrás de São
Francisco. O hospital foi inaugurado em 1828.

O que hoje é conhecida como rua do Teatro foi anteriormente um logradouro


denominado São Francisco de Paula, no trecho entre a igreja e a estrutura do prédio não
concluído da catedral. Esta estrutura da catedral não construída foi finalizada e ocupada pela
Real Academia Militar, fundada pelo Conde de Linhares em 1810. O largo foi calçado pela
primeira vez em 1817 para as comemorações da coroação de D. João VI, após a morte de sua
mãe, D. Maria I. Percebe-se, portanto, que o processo de ocupação dessa área foi permeado
pelo sentimento religioso do seu governador que aí permitiu serem implantadas duas igrejas
que foram as responsáveis pela apropriação desse espaço para manutenção da fé católica. O
Largo de São Francisco de Paula figurou e ainda figura como o lugar da festa religiosa e
política.

No mapa 2 encontram-se identificadas as primeiras e mais significativas construções


do Campo da Cidade que, em sua maioria, eram templos católicos que pertenciam às Ordens
Leigas - Ordens Terceiras e Irmandades.

Mapa 2 - Aspectos da forma urbana da região – 1808/1812

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94
Elaborado por Teixeira, C. a partir da base cartográfica de Barreiros.

94
BARREIROS, Eduardo Canabrava. Atlas da evolução urbana do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: IHGB, 1965.
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Considerações finais

A escolha para construir a Catedral da cidade numa região ainda inóspita, teria sido a
primeira obra do governo do Conde de Bobadela para além dos limites da cidade, a partir
da vala e do muro. O maior símbolo arquitetônico de expressão da fé católica seria erguido
em uma área de expansão do núcleo central, fora dos muros e dos limites fixados até então,
acarretando na visibilidade dessa região, incentivando demais iniciativas de construção
nessa localidade. Verificou-se que a partir do início das obras, alguns logradouros foram
implantados no entorno da futura catedral e o início da construção da igreja de São
Francisco de Paula no mesmo largo colaborou para que esses dois territórios religiosos se
transformassem em pólos centralizadores em torno dos quais essa nova região da cidade
foi se estruturando. De acordo com as análises apresentadas pode-se inferir que a escolha
desse sítio por iniciativa dos poderes religioso, político e militar foi estratégia determinante
para a ocupação do Campo da Cidade.

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A história de Israel no livro de Juízes: um sistema tribal-ideal em formação


Claudio Mota da Silva95
Resumo: Este trabalho pretende apresentar a organização do sistema tribal hebreu e o
processo de ocupação e distribuição das terras conquistadas em Canaã que ocorreram por
volta de 1000 a 1200 a.C. Textos do Antigo Testamento, como os citados no livro de Josué e
Juízes, demonstram que a instalação do povo de Israel foi complexa, gradual e orientada pela
mística da eleição, que exigia justiça e solidariedade entre as tribos. A divisão da terra entre as
doze tribos transcendeu a ideia de sobrevivência e escravidão, da experiência ruim pela qual
elas passaram no Egito e na peregrinação no deserto; ela norteou, sobretudo, a construção de
uma identidade própria numa sociedade ideal, com normas definidas e amparadas pela Lei
Mosaica, onde Iahweh é o libertador, e os juízes uma prefiguração da imagem do herói. A
concepção de uma estrutura política, econômica e religiosa, baseada no discurso de um
sistema confederativo tribal-ideal, contudo, não deu conta na prática, pois a distribuição
quantitativa e qualitativa da terra entre as tribos foi desigual.
Palavras-chave: Antigo Testamento; Tribo; Libertação; Monarquia.

The history of Israel in the book of Judges: an ideal-tribal system in formation

Abstract: This work intends to present the organization of the Hebrew tribal system and the
process of occupation and distribution of the lands conquered in Canaan that occurred around
1000 to 1200 BC Old Testament texts such as those quoted in the book of Joshua and Judges
demonstrate that the installation of the people of Israel was complex, gradual and guided by
the mystique of the election, which demanded justice and solidarity among the tribes. The
division of the land among the twelve tribes transcended the idea of survival and slavery, of
the bad experience in Egypt and the desert pilgrimage; It has guided, above all, the
construction of an identity of its own in an ideal society, with definite norms and supported by
the Mosaic Law, where Yahweh is the liberator and the judges prefiguring the image of the
hero. The conception of a political, economic, and religious structure, based on the discourse
of an ideal-tribal confederacy system, however, failed to account in practice, since the
quantitative and qualitative distribution of land among the tribes was uneven.
Key-words: Old Testament; Tribe; Release; Monarchy.

A história de Israel conforme narrada nos textos bíblicos tem proporcionado novos
diálogos entre pesquisadores de diversas áreas que estudam as religiões do mundo antigo no
Oriente. Neste trabalho propomos uma breve análise de alguns eventos que vicejaram na
formação do sistema de governo tribal israelita a partir de aspectos sociais, econômicos,
políticos e religiosos, constantes no livro de Juízes. O sistema de governo tribal israelita que
95
Possui graduação em Teologia pela Faculdade de Ciências, Educação e Teologia do Norte do Brasil (2009),
Licenciatura Plena em Filosofia pela Faculdade de Educação da Serra (2012), graduação em História pela
Fundação Educacional de Duque de Caxias (2015), especialização em Filosofia pela Universidade Gama Filho
(2013), especialização em História Antiga e Medieval: Cultura e Religião pela Faculdade de São Bento do Rio
de Janeiro (2016). Membro do Núcleo de Estudos de Cristianismos no Oriente (NECO, GT-HR/ANPUH-Rio).
E-mail: claudiomotadasilva@gmail.com
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se organizou em solo palestino exigiu uma construção paradigmática sócio-político-


econômica diferente da existente entre os autóctones cananeus. A princípio o paradigma
impulsionaria a ampliação do território ocupado, o desenvolvimento dos meios de produção e
o acesso ao produzido entre a comunidade. Não obstante, também serviria de mecanismo de
contenção para os problemas que emergiam na estrutura organizacional das tribos.
A ocupação dos territórios palestinenses ocorreu gradualmente com uma ideologia
igualitária de distribuição dos meios de produção; fundou-se na ocasião uma plataforma
política descentralizada, um sistema econômico isento do pagamento de impostos, e uma
religiosidade direcionada pela mística da eleição e da aliança com Iahweh. O sistema tribal-
ideal se deparou com uma realidade adversa, a das trocas de poder nada pacíficas entre os reis
cananeus e as tribos nos territórios conquistados, que conduziu ao surgimento dos juízes, tipos
de heróis e arquétipos messiânicos. Intui-se que a substituição do sistema tribal pela
monarquia na história de Israel resultou, junto às variáveis que serão apresentadas, de uma
nova hermenêutica da religiosidade através do ponto de vista de um poder político mais
centralizado e tipificado na figura do rei.
O método hipotético empregado nesse trabalho buscou tratar a hipótese referida
utilizando as narrativas bíblicas e as referências teóricas. Inicialmente abordamos a história
das tradições e das descobertas arqueológicas estabelecendo um contraponto com os livros de
Josué e Juízes, e consideramos a composição e a forma de análise do contexto bíblico através
das descobertas científicas em regiões conquistadas; em seguida, analisamos algumas teorias
da ocupação das tribos de Israel e o surgimento de um modelo de sociedade ideal em
formação na Palestina, pois a questão nuclear encaminhará a uma comparação entre os
segmentos israelitas e cananeu/egípcio; por último apresentamos uma dialética da história das
tribos de Israel considerando o sistema organizacional existente na consciência ideal e real da
comunidade tribal , também enfatizando o fator histórico cíclico através dos relatos da vida
dos juízes e do aparecimento de incidentes internos que aproximaram a boa utopia tribal de
seu fim, dando lugar à chegada da monarquia em Israel.

O livro de Juízes e a história das tradições e descobertas arqueológicas


O livro de Juízes é chamado na Septuaginta de Kritaí e na Bíblia Hebraica de
Shofetim; para a tradição talmúdica, Samuel é o seu autor, mas estudiosos do Antigo

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Testamento afirmam que sua autoria é anônima (SELLIN & FOHRER, 2007, p. 285). A obra
relata a continuação da história da ocupação dos territórios em Canaã, ou seja, acontecimentos
que ocorreram entre 1200 e 1000 a.C. Os relatos contidos neste livro, de fato, demonstram a
forma de subsistência das tribos de Israel durante, talvez, um dos períodos mais obscuros de
sua história antiga, e também o momento mais próximo em que aí se experimentou um
sistema social ideal (MAZZAROLO, 2014, p.1). Trata-se de uma história que começa com a
ocupação de Canaã e vai até o surgimento do sistema monárquico de Israel, período de
oscilações e contrastes político-sociais e político-religiosos. Segundo Storniolo, a decadência
progressiva entre as potências que disputavam o domínio do Oriente Médio – egípcia, assíria
e hitita – por volta de 1250 a.C., engendrou uma relativa liberdade entre as cidades-estados
cananeias; estes locais se submetiam a pagamentos de tributos ao Egito. Essa liberdade teria
resultado numa disputa entre os reis cananeus pela conquista de mais territórios nas regiões de
Canaã, e, ao mesmo tempo, na reação aversiva de camponeses, pastores e marginalizados aos
altos impostos cobrados pelas cortes cananeias. Esses grupos, vítimas da exploração
palaciana, refugiaram-se nas montanhas e organizaram-se de tal modo que criaram um
movimento de resistência e luta contra o sistema político vigente. Outro momento que teria
fortalecido a ideia de ocupação dos territórios, e que corroborou o plano real, foi a chegada do
grupo do êxodo pelo deserto a oeste; este trouxe consigo a história de libertação do Egito.
Essas duas motivações teriam sido suficientes para o surgimento de um tipo de aliança entre o
movimento das montanhas e o movimento do êxodo. Para Storniolo o modo de vida tribal
israelita teria atraído o grupo das montanhas para uma plataforma que se sustentava através
dos seguintes pilares: (a) a liderança religiosa composta pela tribo levítica e a mística do Deus
único, a quem se prestava o culto, em contraponto à multiplicidade de crenças e divindades
que geravam altos custos aos cananeus; (b) sistema de governo descentralizado e
participativo; e (c) a autonomia da produção por parte das tribos. Esses paradigmas de alguma
forma possuíam um fio de esperança para os montanheses, principalmente aquela referente ao
retorno a uma vida mais próxima das cidades-estados (STORNIOLO, 1992, pp.7-9).
O livro de Juízes pode ser dividido em três partes: a primeira, que vai dos capítulos 1
ao 2, descreve as condições que existiam na época em Israel; depois a segunda, dos capítulos
3 a 16, com os relatos das libertações por parte dos Juízes; e a terceira, que demonstra, nos
capítulos 17 a 21, as incidências ocasionadas pelas lutas internas em Israel. Sua composição

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também pode ser estudada a partir de três etapas: pré-exílica, exílica e pós-exílica. A primeira
através das tradições orais e depois escritas das tribos; a segunda, com o aparecimento da
narração deuteronomista; e a terceira, que busca tratar do ajustamento da vida religiosa e
social das tribos (idem, op. cit., p. 9).96
Os relatos da história apresentados em sua forma mais antiga no livro de Juízes
demonstram que o historiador tinha à sua disposição vários tipos de matérias97:
Para redigir este livro, o historiador tinha vários tipos de materiais à sua disposição.
Primeiro, as sagas de heróis locais, transmitidas em clima familiar ou em canções
populares de trovadores; são as estórias de líderes militares ocasionais, comumente
chamados de “juízes maiores”, que em tempos de aperto lideraram uma ou mais
tribos na luta contra os inimigos que as ameaçavam. Temos depois os anais sobre os
“juízes menores” (10,1-5;12,7-15), chefes civis que governavam uma ou duas tribos.
Temos também uma exposição histórica não-oficial sobre a pretensão monárquica
de Abimelec (9). Junto a esses materiais encontramos um hino ou cântico de vitória
(5), uma fábula (9,7-15) e um enigma (14,14.18). A tudo isso o historiador
deuteronomista acrescentou uma introdução em forma de discurso programático
(2,6-3,6), que dá o tom e fornece a costura para os materiais esparsos de que
dispunha (ibid., op. cit., p 10, grifo nosso).

John Brigth, escritor norte americano de origem protestante, na obra História de


Israel, afirmou que a documentação externa à disposição é considerável e importante, e que a
historicidade da conquista da terra dos cananeus por parte dos israelitas não poderia ser
negada (BRIGTH, 1970, p.135). Num primeiro momento destacou a importância da tradição
bíblica, daí então surgiu um diálogo entre duas formas de leitura e interpretação possíveis dos
textos bíblicos sobre a conquista da terra dos cananeus. A primeira forma ocorreria conforme
escrito no livro de Josué (1 ao 20), onde há um esforço em conjunto de todo Israel para
conquistar a terra através da guerra de forma repentina e total. A travessia do Jordão e a queda

96
Um dos grandes desafios a ser superado entre os pesquisadores da crítica das fontes está na datação das
mesmas, pois parece que uma cortina se interpõe entre o autor e o tempo da história que pretende escrever, como
no caso da fonte deuteronomista, que descreve narrações mais antigas que o tempo de seu autor. Malanaga, sobre
essa temática, ressaltou a importância da abordagem de De Wette, estudioso da fonte deuteronomista do início
do século XIX, que acreditou ter sido esta escrita antes da sua descoberta pelo sacerdote Hilquias, no reinado de
Josias (2Rs 22:12-20), de Martin Noth, que afirmou que a fonte mostraria uma estreita relação entre o
Deuteronômio e os livros de Josué e dos Juízes, Samuel e Reis, e de Friedmann, que sustentou que partes dos
livros citados por Noth usam termos que provém de um estilo específico utilizado no Deuteronômio. Já o
americano Frank Moore Cross, em 1973, alegou que houve duas edições da fonte deuteronomista: uma durante o
reinado de Josias, por volta de 609 a.C., e outra após o exílio babilônico. Friedmann acreditou que a composição
da segunda edição é posterior a 587 a.C., mas para Malanaga seria mais coerente pensar em uma data após 562
a.C. MALANAGA, Eliana Branco. A Bíblia Hebraica como obra aberta: uma proposta interdisciplinar para
uma semiologia bíblica. São Paulo: Associação Editorial Humanitas: Fapesp, 2005, pp.89-91.
97
Para um estudo mais acentuado sobre as fontes utilizadas no livro de Juízes é interessante a leitura da obra de
Norman K. Gottwald, As tribos de Iahweh: uma Sociologia da Religião de Israel liberto, 1250-1050 a.C. São
Paulo: Ed. Paulinas, 1986, pp. 60-74.
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das muralhas de Jericó inauguraria o início de campanhas militares que levaram Israel ao
centro de toda a Palestina. Essas campanhas chegaram ao norte (Js 11), sul (Js 10) e ao centro
de Canaã, dando aos israelitas o controle de toda a Palestina (Js 11, 6-23). Os nativos da terra
teriam sido exterminados e os seus territórios divididos entre as tribos (Js 13 ao 21). A
segunda forma apresenta um quadro bem diferente da ocupação da Palestina, pois a conquista
acontece dentro de um processo demorado que chega a seu fim por meio de intervenções mais
individuais do que coletivas, e, mesmo assim, alcançando resultados apenas parciais. Os
relatos no livro de Juízes (1, 1-36) e Josué (13, 2-6 ;13;15, 13-19, 63; 23, 7-13) atestariam esta
realidade (idem, op. cit.). Por outra parte, ressaltou a importância das provas arqueológicas,
mesmo reconhecendo as imprecisões nelas contidas em alguns pontos. Tendo em vista a
cidade de Jericó, trouxe à discussão as recentes escavações e descobertas aí realizadas.
Segundo Bright, a suposta muralha dupla de Jericó que desmoronou ante Israel, de acordo
com as descobertas arqueológicas, seria muito mais antiga do que o período da invasão
israelita, e os poucos objetos encontrados nessa região apontam para uma cidade-estado de
dimensão geográfica pequena. Também acreditou que as poucas provas de cerâmicas
encontradas, com datação por volta do século XIII a. C., não seriam incompatíveis com o
tempo da invasão israelita. (ibid., op. cit., p.136).
A pesquisa arqueológica contemporânea, de fato, tem proporcionado material para o
cotejamento de alguns eventos que ocorreram na Idade do Bronze, principalmente aqueles que
envolvem de alguma forma as narrativas dos resultados ocasionados por uma suposta
intervenção divina. Dentre tantos, escolheu-se aqui questões inerentes à queda das muralharas
e a destruição da cidade de Jericó, que são narradas no livro de Josué. Jericó tem sido
escavada por diversos grupos de pesquisadores, dos quais destacaremos alguns. Tem-se
notícia de um grupo de alemães que trabalhou na região entre 1908 e 1910, liderado por
Sellen e Ratzinger. Também uma expedição inglesa, sob a tutoria do Dr. John Garstang, entre
1930 e 1936, que supôs que a cidade de Jericó foi fundada no final da Idade da Pedra, antes da
invenção da cerâmica, o que faz dela, talvez, a cidade mais antiga da região da Palestina.
Encontraram-se provas sobre a destruição da cidade, e estas foram comparadas à narrativa
bíblica. Os pesquisadores ingleses argumentaram ter encontrado três cidades no mesmo local,
as quais foram identificadas com as possíveis datações: Cidade B, do século XXV a. C.;
Cidade C, dos séculos XVII e XVI; e a Cidade D, do século XV. Desde o século XV a

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Cidade D já estaria protegida por um forte muro duplo de tijolos que circuncidava o cume do
monte. O muro interior teria cerca de 3,50 m de largura e sido construído sobre um outro já
existente, o da Cidade B. A fortificação exterior teria cerca de 2 m de largura. Os dois muros
ligados às encostas do monte substituíam as fortificações de pedra, tornando-se um meio de
defesa da Cidade C no período da Idade do Bronze Recente. Os ladrilhos descobertos que
rolaram monte abaixo possuiriam evidências suficientes de que houve um grande incêndio,
pois uma boa parte do material encontrado estaria carbonizado; também, ao periciarem as
bases do muro interior, encontraram efeitos de um terremoto. Dentro da cidade as descobertas
evidenciaram resíduos de cinzas deixados pelo incêndio, que chegaram a 60 cm de espessura,
e vasilhas cheias de grãos, o que levantou a hipótese de a invasão ter ocorrido depois da
colheita. Os arqueólogos alemães encontraram um edifício que foi fortemente construído, uma
espécie de celeiro dos séculos X e IX; os pesquisadores ingleses escavaram abaixo desse
edifício e encontraram outros edifícios datados dos séculos XVII-XVI. Garstang, de acordo
com as peças de cerâmicas encontradas no edifício fortemente construído e em três sepulturas,
afirmou que a cidade de Jericó foi destruída por Josué por volta 1385 a. C. (WRIGHT, 1975,
pp.112-114). Já W. F. Albright e depois K. Kenyon concluíram que as cerâmicas do tempo
de Josué são da segunda metade do século XIV (idem, op. cit., p.114). A figura a seguir
apresenta uma cronologia utilizada por arqueólogos modernos que estudaram a tese de
Garstang. A linha pontilhada representa o período em que Jericó era apenas um acampamento,
a linha contínua uma cidade não murada, e os retângulos indicam uma cidade murada, a letra
A aponta para o período próximo de 1407 a. C., segundo a tradicional data bíblica para a
destruição de Jericó por Josué (AARDSMA, 1996, n.3).

Figura 1 – Fonte: The Biblical Chronologist Volume 2, Number 3.


Outra expedição na cidade de Jericó, capitaneada pela Bristish School Archeology e
realizada de 1952 a 1958, sob a direção de K. Kenyon, encontrou provas de uma ocupação

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muito antiga e de uma muralha que foi construída antes da invenção da cerâmica. O trabalho
realizado por esse grupo de arqueólogos chegou à conclusão de que não há resto algum na
região do monte do período entre 1500 e 1200 a. C. Os restos posteriores ao terceiro milênio
teriam desaparecido do cume do monte por causa de uma intensa erosão. Essa escola
contraditou as descobertas de Garstang, principalmente a da Cidade D; as descobertas feitas
por Kenyon apontariam para o terceiro milênio e não para o século XV a.C., como acreditava
Garstang. A posição das descobertas de Kenyon buscou superar o que se escreveu durante as
três décadas anteriores a seu tempo sobre a ocupação de Jericó por Josué; o que se mostrou
para determinar o estado da cidade conquistada ou da queda das muralhas foram algumas
peças de cerâmicas encontradas em três sepulturas, em uma região acima da fonte, e,
possivelmente, nas escavações do edifício fortemente construído, que podem ser atribuídas ao
período entre 1400 e 1200 a.C. (ibid., op. cit.). O gráfico abaixo mostra, através das duas
barras pretas, que os testes feitos por Hendrik J. Bruins e Johannes van der Plicht, a partir de
medidas de radiocarbono de alta precisão feitas em dezoito amostras de Jericó, coincidem
com a teoria de Kenyon da destruição da cidade em 1550 a.C., e não próximo de 1400 a.C.

Figura 2 – Fonte: The Biblical Chronologist Volume 2, Number 3.

De acordo com Wright, em sua obra Arqueologia Bíblica, nesse complexo de


descobertas em Jericó pode se chegar à seguinte conclusão:
De todo esto se puede deducir que en la época de la conquista no habría allí aquella
imponente ciudad que se buscaba en las primeras excavaciones. Si en tiempos de
Josué había algún muro de fortificación, no sería éste más que el bastión del siglo
XVI reconstruido, aunque, no hay pruebas de que fuera reutilizado. La Jericó de
tiempos de Josué apenas sería otra cosa que un fortín. Pero aquélla. fue la primera
victoria conseguida por los invasores en Palestina occidental, y el recuerdo de la
imponente ciudad que allí se alzó en otros tiempos debió de influir indudablemente
en la forma en que sería narrado más adelante el acontecimiento. Sin embargo, todas
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estas observaciones no pasan del nivel de las sugerencias, ya que por el momento
hemos de confesar que somos absolutamente incapaces de explicar el origen de la
tradición acerca de Jericó (WRIGHT., op. cit., pp.114-115).

Ora, não só Jericó foi alvo de escavações arqueológicas, mas também outras regiões
da Palestina. Segundo Brigth, após as escavações em et-Tell, local próximo de Betel,
descobriu-se que o lugar foi destruído no final do terceiro milênio, e que nos dias de sua
ocupação pelos israelitas não era habitado. Já em Betel, cidade vizinha de et-Tell, teria
ocorrido o confronto e a ocupação da região, segundo o relato de Josué 8 e Juízes 1, 22-26; a
distância entre as duas cidades era aproximadamente de um quilômetro e meio. Betel teria
sido destruída por volta da metade do século XIII, por um grande incêndio que deixou uma
camada de cinza e restos de objetos. As escavações demonstram que a cidade que precedeu ao
incêndio era bem construída, comparada à inferioridade arquitetônica da cidade posterior
construída nessa região e atribuída aos israelitas (BRIGTH, op. cit., p.137).
Junto a esto se sabe que varios lugares del sur de Palestina, de los que se nos dice
que fueron tomados por Israel, fueron destruídos a finales del siglo XIII. Entre ellos
están Debir, o Kiryat-séfer (Jos.10,38 ss.), y Lakís (vv. 31 ss). La primera
(probablemente Tell Beit Mirsim, en el suroeste de Judá) fue completamente
destruida por un gran incendio; la subsiguiente ocupación es típica de los primeiros
tiempos de Israel. La segunda (Teel ed-Duweir) fue igualmente saqueada y según
parece permaneció desierta durante dos siglos. Una fuente hallada en las ruinas lleva
anotaciones que datan del año cuarto de un faraón. Si este era Menefta — lo cual
ajustaría espléndidamente— Lakís debió caer poco después de 1220. En todo caso,
debe indicarse una fecha no muy alejada de este tiempo. Además de éstas, también
fue destruida en el siglo XIII Eglón (vv. 34 ss.) — si es que se identifica con Tell el-
Hesi, como parece probable —, pero en este caso es imposible una mayor precisión.
También se dice que Josué destruyó Jasor (11,10), ciudad importante de Galilea,
localizada en Tell el-Qedah, al norte del lago de Galilea. Recientes excavaciones han
mostrado que Jasor, que por entonces era una de las ciudades más grandes de
Palestina, fue igualmente destruida en la última parte del siglo XIII, y no hacia 1400,
como anteriormente se pensaba. El conjunto del relato, por consiguiente, debe ser
mirado como um auténtico reflejo de sucesos históricos. (ídem, op. cit.)

Noth afirma que o Antigo Testamento é um material histórico riquíssimo que fornece
informações sobre a história de Israel, as quais podem ser confirmadas pelas descobertas
arqueológicas na Palestina. Sua abordagem quanto à temática levou em consideração pelo
menos dois tipos de fontes: as bíblicas e as extrabíblicas (NOTH, 1966, p. 52). Ainda há
muito o que se fazer quanto ao diálogo entre as tradições e as descobertas arqueológicas,
também sobre os pontos não dados nessa costura de informações que ocorrem através da
ocupação da terra dos cananeus pelos israelitas nos livros de Josué e Juízes, no entanto,

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podemos inferir que o relato das narrações desses livros, quanto à existência e a ocupação das
cidades-Estado cananeias, de algum modo estão ligados às descobertas arqueológicas na
Palestina relativas ao tempo da ocupação do povo de Israel, o que denota a pertinência do
Antigo Testamento, ou a Bíblia Hebraica, como registro histórico confiável (FINKELSTEIN
& SILBERMAN, 2003, pp.29-36).

Tribos de Israel: um modelo de sociedade em formação na Palestina


A comunidade israelita que aos poucos foi se acomodando em territórios cananeus, ao
se organizar de modo familiar, começou a consolidar uma estrutura social, um modelo
político, e uma religiosidade bem diferente daquela a que os nativos de Canaã estavam
acostumados. Israel buscou se distinguir da experiência que teve no Egito dando impulso a
uma associação tribal que contrastou com o sistema monárquico existente. Apesar dos ideais
que deram vida a esse sistema, reconhecemos que eles são humanos e, por isso, passíveis de
mudanças e incoerências. Pois,
(...) o “plano” e correlação das partes num sistema social acham-se sujeitos tanto as
vicissitudes da evolução histórica quanto à resistência ou “incoerência” criadas pelo
fato de que o sistema é composto de pessoas, as quais são, elas mesmas, sistemas
separados, complexos, cujo significado total não pode ser reduzido ao desemprego
unívoco de funções num sistema social. E, além do mais, cada conjunto suplementar
de padrões, no meio do sistema social, apresenta resistência ou incoerência, que
nunca é totalmente superada mesmo num sistema otimamente integrado. Quando
muito, um modelo analítico de organização social será “típico ideal” e não
diretamente representacional, da série completa de variações e de contradições na
estrutura social real (GOTTWALD,1986, p.243).

A evolução social do Israel primitivo na terra de Canaã foi estudada e comparada ao


sistema político-social dos reis cananeus a partir da tradição javista e eloísta. Segundo
Gottwald, o javista dá sinais de um movimento social organizado, consciente e igualitário,
antiestadista e ameaçador da ideologia monárquica. Israel não só estava disposto a desafiar,
mas, sobretudo, também a enfrentar as potências egípcia e cananeia. Daí surge uma linha
tênue entre essas forças centrífugas no Oriente Próximo, a começar por Israel, que define um
plano social, econômico, político e religioso nessa região. A ordem cúltica e a fidelidade a
Iahweh estão de alguma forma entrelaçadas a uma rede, dentro do plano israelita, de
integração à ordem social e à uma cultura única. Nesse contexto o javismo valoriza o culto
religioso e seus símbolos, pois, isso potencializaria na comunidade a importância dos

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sacerdotes e das normatizações que constituíam um quadro onde as lideranças e a autonomia


dos entes sociais buscaram fundamentar o sentimento comum. Israel buscou se libertar
totalmente do sistema feudal, mas, ainda, tinha os ‘apiru (montanheses) que, apesar de
estarem ligados às tribos israelitas na ocupação do território cananeu, e mesmo como
movimento de menor proporção comparado a Israel, continuaram de algum modo
dependentes aos reis das cidades-estados e adaptáveis, ao mesmo tempo, ao sistema tribal-
ideal israelita. O movimento dos montanheses, na ocasião política e militar, não é absorvido
totalmente pelas ideias israelitas e, dada essa circunstância, teria colaborado na ampliação do
sistema antigo cananeu; ora, como antítese Israel, de fato, romperia com o sistema cananeu
fundando uma estrutura autônoma; daí percebe-se que a consolidação de um plano mais
amplo pelo primitivo Israel não ocorreu ligeiramente, mas de forma complexa e gradual com
a conquista dos territórios na Palestina (idem, op. cit., p.496).
Gottwald, após considerar a influência do javismo na formação do tecido social do
primitivo Israel, também supôs a hipótese de uma tradição pré-javista, a eloísta, inaugurada
no período dos Patriarcas Abraão, Isaque e Jacó (Gn 14,1-12; 26; 28,1-15), conservada e
utilizada como base para o Israel javista. Sua intuição segue a seguinte ordem: (a)
militarização: os protoisraelitas pré-javistas possuíam tradicionalmente habilidades
beligerantes, e isso contribuiu de alguma forma para o javismo israelita; (b) descentralização
sociopolítica: interesse comum entre os grupos e a exclusão de uma liderança monárquica,
com mútua articulação e cooperação militar entre os clãs, e o desenvolvimento de uma
plataforma socioeconômica crescente; (c) culto comum: o culto à divindade El(ohim) e o
surgimento de uma identidade religiosa comum, que foi preservada e utilizada
alternativamente a Iahweh pelo javista; (d) nome comum: o nome Israel não estaria restrito a
uma unidade social segmentada, pois cada unidade possuía seu nome próprio – na verdade, o
nome Israel passaria a englobar o todo, identificando assim um tipo de coalizão tribal. Essa
coalizão teria feito surgir elementos novos que foram apropriados no Israel javista (ibid., op
cit., pp.501-502).
O teólogo alemão Gerstenberger (2007, p.138) numa tentativa de reconstituir a história
do primitivo Israel deparou-se com o problema do silenciamento das fontes históricas. Então,
o que fazer quando isso acontece? Bom, na ocasião de sua pesquisa, analisou a hipótese de
Martin Noth sobre o surgimento das tribos de Israel em terras palestinenses, após sua saída do

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Egito; daí toda a ideia de formação das tribos israelitas em região egípcia seria descontruída,
já que para Noth o nome dado ao território ocupado em Canaã definiria o grupo da ocupação.
Se assim ocorreu, pode-se intuir que toda literatura, principalmente a teológica, que defende a
tese de um primitivo Israel que migrou inteiramente do Egito e conquistou a Palestina, e
mesmo que alguns textos bíblicos apontassem nessa direção, e biblicistas, teólogos e
cientistas das religiões atualmente defendessem essa ideia, ela estaria, por si só, superada,
uma vez que esses dados dificilmente seriam provados do ponto de vista histórico. Quanto a
esse problema, restou ao teólogo percorrer dois caminhos hipotéticos, numa tentativa de dar
uma explicação, amparado pelas literaturas.
A primeira hipótese sugere a teoria da imigração, ou infiltração, através da
observação feita em locais periféricos das regiões agrícolas da Palestina, onde se constatou
uma regular movimentação de nômades e seminômades. Observou-se que os clãs levavam
seus animais para pastagem nas estepes, ambientes que recebem poucas chuvas para o cultivo
de cereais e plantas frutíferas. Nas regiões agrícolas férteis, após a colheita, os campos
ficavam cheios de restolhos, enquanto as estepes secavam por causa do sol intenso. Essa
mudança natural levava os grupos pastoris a migrarem com seus animais, ainda que por um
curto período, aos campos férteis após a colheita. Com a autorização dos agricultores, os
nômades hibernam nessas localidades para retornarem às estepes na primavera. Partindo
dessas observações, supôs, como alguns defensores da teoria da imigração afirmam, que esse
regime de alternância teria levado os nômades ao sedentarismo permanente, o que os obrigou
a uma coligação tribal que garantisse sua subsistência perante as cidades-estados cananeias.
Evidente que para comprovar a imigração do clã pré-israelita recorreu-se ao texto bíblico de
Gn 26,12-36. Com a intuição de um paradigma, porém, surge de imediato a dúvida sobre a
identidade de Isaque. Ele foi um homem rico ou pobre? Pois, geralmente, os nômades eram
pessoas de poucos recursos, o que não caberia no relato sobre a vida de Isaque no período que
passou na terra dos filisteus. Ele possuía propriedades, animais diferenciados e tecnologia
para a escavações dos poços, recursos que os nômades ao seu tempo não possuíam. Deste
modo, Gerstenberger conclui que as fontes históricas, e mesmo comparando o texto bíblico
com as observações dos nômades atualmente nas regiões da Palestina, não são suficientes
para comprovar ou refutar a hipótese referida (GERSTENBERGER, 2007, pp.139-140).

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A segunda hipótese, por sua vez, propõe uma leitura da teoria da revolução de
Mendenhall, desenvolvida depois por Gottwald. Segundo esses autores, seria impossível que
o êxodo acontecesse como descrito nos textos bíblicos; as tribos de Israel formaram-se na
Palestina, onde já existia um Israel anterior à chegada do grupo de Moisés, de acordo com
uma estela que celebra a vitória do faraó Mernepta no final do século XIII a. C. A partir daí
desenvolveu-se uma abordagem sobre a ocupação dos territórios cananeus através do viés
sociológico. Tais considerações supõem que, por volta dos séculos XIV e XI, a região dos
cananeus estava pronta para uma mudança no seu interior, de modo que inauguraria uma nova
era na história mundial. O enfraquecimento da política egípcia entre as cidades-estados
engendrou um sistema social feudal inflexível e desigual, que obrigou os explorados a se
refugiarem nas montanhas, tornando-se fora-da-lei. Essas movimentações entre os grupos
sociais transformaram-se num sentimento de revolta em potencial. Segundo Gerstenberger,
pode-se levantar o seguinte questionamento: como os defensores dessa teoria acessaram essas
informações? Através da correspondência trocada entre faraó e os reis cananeus. O arquivo
egípcio na cidade de Amarna demonstrou que os reis cananeus se sentiam ameaçados com o
movimento dos ‘apiru e por isso recorreram ao governador egípcio pedindo-lhe ajuda; a
documentação aponta para cidades como Jerusalém, Megido, Gezer, Laquis, Filistéia e Síria.
Outra máxima dessa teoria é crença nos ‘apiru como iguais aos hebreus, portanto, diferentes
da intuição dos nômades pastores autóctones que se revoltaram contra o sistema monárquico.
Para essa ala de pesquisadores, a união entre o grupo de Moisés e dos‘apiru deu forma e
consolidou a sociedade tribal e depois a estatal israelita (ibid., op. cit., pp.140-141).
À medida que dados literários extrabiblicos são utilizados para esclarecer o modelo
da imigração, propendem a ser informes administrativos e descrições culturais dos
movimentos dos supostos “seminômades”, ou textos diplomáticos tais como as
cartas de Amarna que fala dos ‘apiru [...] Supõe-se, às vezes, que os mais antigos
israelitas a entrarem em Canaã pertenciam a este tipo nômade periódico e que,
somente muito mais tarde, talvez como se reflete no livro de Jz, os imigrantes se
tornaram de fato tão numerosos que constituíram uma ameaça para os habitantes
cananeus [...] Se os ‘apiru das cartas de Amarna entraram em Canaã, em parte pela
força, seus parentes israelitas no século XIII provavelmente não precisaram usar da
força, porque eles teriam sido bem acolhidos pelos invasores anteriores
(GOTTWALD, 1986, p. 215).

Gerstenberger intuiu que Gottwald conscientemente se deixou influenciar pelos


movimentos estudantis revolucionários do final de 1960 e início de 1970. Para o teólogo, as
evidências de uma liga tribal javista nos moldes teóricos da revolução são escassas e,

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sobretudo, contestáveis, pois o próprio teórico da revolução teria reconhecido isso: “Existe,
certo, massa considerável de provas relevantes, contudo, cumpre que as conexões entre os
dados sejam em grande parte completadas pela dedução e a especulação” (GOTTWALD,
1986, p. 219). O teólogo conclui a sua argumentação, afirmando que

Ainda que os supostos desenvolvimentos não possam ser comprovados, permanece a


grande pergunta: uma revolução camponesa em Canaã, a imigração de escravos
livres, adoradores de Javé provenientes do Egito, e uma fusão destes dois grupos
populacionais heterogêneos sob o signo do javismo são historicamente prováveis?
Tendo em vista os conhecimentos que temos daquela época e levando em conta as
fontes bíblicas, sua origem e mensagem, a resposta a esta pergunta é “não”
(GERSTENBERGER, 2007, p.142).

Andrade, ao abordar as estratégias de empoderamento que surgem através do


movimento de excluídos e alienados dos espaços principais numa sociedade, defendeu a tese
da negação do tribalismo israelita como um sistema de transição pré-estatal. Na verdade,
parece ter intuído um sistema anti-estado e diferente de muitas maneiras do estabelecido em
Canaã. Segundo ele, no período aproximadamente de 200 anos de duração do tribalismo
israelita houve uma intensa articulação entre as tribos, e os relatos bíblicos atestariam isso (Js
24; Jz 4 e 5). A organização social das tribos começaria com o surgimento da família, depois
do clã, uma extensão da família que está na base da sociedade, do mispahah (tribo), conjunto
de clãs, que deu origem a um tipo de associação protetora dos direitos sociais, até à coligação
entre as tribos de Israel, ampliando a mobilização dos relacionamentos intrafamiliares e
sociais (ANDRADE, 2009, p. 274). A figura abaixo demonstra a organização social tribal
esboçada por Andrade.
Figura 3. Modelo de organização do sistema tribal israelita
Tribos: ampliação e distribuição da terra e dos meios de produção

Mispahah: sistema que mantém o direito social tribal

Clã: união entre famílias e a org. econômica, religiosa e militar

Família: homem, mulher e filhos

A ideia de propriedade privada não existe no plano econômico tribal, a produção se dá


coletivamente num espírito comunitário; e para que as pessoas tenham acesso aos meios de
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produção e a tudo que era produzido, bastava somente pertencer à comunidade. A terra
pertencia à divindade e não aos aristocratas, e isso impulsionava Israel a desenvolver um
sistema econômico mais igualitário (DREHER, 1995, p.18, apud. ANDRADE, 2009, p.277).
As tribos não possuíam os mesmos recursos tecnológicos das cidades-estados para
produção, porém, ainda assim, surgiam excedentes que eram distribuídos ao povo e utilizados
no serviço religioso. Segundo Andrade, alguns personagens, de acordo com os relatos
bíblicos, também acumularam riquezas:
Sem nenhuma idealização, o próprio texto bíblico indicará que no decorrer dos 200
anos de experiência tribal houve até mesmo autoridades do povo que chegaram a
acumular riquezas. No livro dos Juízes são mencionados Gedeão (Jz 8,22-27), Ibsan
(Jz 12,8-10) e Abdon (Jz 12,13-15), que efetivamente tiveram em suas mãos ouro,
prata, jumentos e a possibilidade do controle de cidades e casamentos arranjados
para seus filhos e filhas (ANDRADE, 2009, p.278).

A estrutura política dos cananeus era sustentada por uma plataforma tributária rígida,
mais a corveia, e pela Lei que servia ao interesse dos reis. Já na estrutura tribal não há um
sistema tributário e a Lei torna-se a proteção do direito do povo. Na estrutura religiosa de
Canaã, os deuses cananeus aprovavam a exploração, os sacerdotes centralizavam a religião, o
conhecimento estava nas mãos dos aristocratas. Na religião israelita, Iahweh é o libertador, o
pai de família presidia o culto, o sacerdote possuía atividade específica, e o conhecimento era
compartilhado entre o povo. O teólogo Isidoro Mazzarolo ressaltou a importância da história
do Israel pré-monárquico para o estudo do Antigo Testamento, e comparou a organização dos
segmentos tribais aos segmentos egípcio e cananeu.

Tabela 1

EGITO E CANAÃ TRIBOS DE ISRAEL


Economia Economia
Agricultura, Pastoreio, tecnologia Agricultura, pastoreio,
avançada: irrigação, carros tecnologia menos avançada:
primitivos → O comércio arado, cisternas no solo, de
internacional se concentrava nas guerra, irrigação por terraços →
cidades-estados Comércio local à base de trocas
Terra Terra
Pertence ao Rei → Os Pertence às tribos e o uso era
camponeses tinham posse da terra, comum. Todo o produto ficava
mas pagavam impostos ao rei e nas tribos.
mais corveia
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Sociedade Sociedade
Acúmulo de riquezas → Poder Distribuição dos lucros →
nas mãos do rei ou do faraó Poder nas mãos dos Juízes
Política Política
A autoridade detida pelo rei ou Autoridade detida pelos
pelo faraó → Pequenos estados
independentes § A Lei defendia o
Juízes.→. Confederação das
Faraó ou o Rei, era a própria Tribos § A Lei defendia os
vontade do soberano interesses dos populares e
regulava o uso da terra, dos
Religião
bens e do trabalho.
Religião justificava a exploração;
Religião
Lendas e mitos de submissão;
Egito (Faraó) forte e divinizado; Javé é Libertador; História da
Poder do sacerdote centralizava a libertação e salvação; A
Religião; Saber nas mãos da profecia responsabilizava o
aristocracia povo e o pai de família presidia
o culto; A memória do Êxodo
era vida; Saber partilhado nas
assembleias
Fonte: MAZZAROLLO, 2014, p. 2.

Dialética da história das tribos israelitas: um sistema entre o ideal e o real


Apesar da utopia social concretizada no sistema tribal, fica evidente no livro de Juízes
que esse sistema não consegue dar conta dos problemas que emergiram na estrutura social;
daí, por causa da necessidade de libertação do sofrimento causado pelos monarcas cananeus,
surgiu a figura do herói, que será apresentada por um conjunto de sagas: os juízes. Bem, antes
de tudo, será importante ressaltar que ao leitor que está acostumado com uma leitura da Bíblia
superficial, ou de literaturas de escolas teológicas, subjetivamente fechadas em sua
interpretação dos textos bíblicos, possivelmente soará estranho a palavra saga; no entanto,
entende-se que a narração deuteronomista sugerida desde o início desse trabalho é de suma
importância para compreensão do tema referido. Também não há intenção de estabelecer um
contraponto ou contrapelo ao uso terminológico da palavra, pois seria necessário um exame
mais acurado; entretanto, pode-se afirmar que o teólogo que deseja se ocupar de tal tema que
não pode fugir à alçada do historiador. Talvez a definição de Schmidt possa ajudar na
compreensão do termo:

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No Pentateuco e, para além dele, até o Primeiro Livro de Samuel aproximadamente,


a lembrança do passado não se apresenta em forma de historiografia propriamente
dita, mas em forma de sagas que, antes de serem fixadas por escrito, foram
transmitidas por longo tempo oralmente, de pessoa em pessoa, sofrendo múltiplas
influências neste processo. "Saga" é um conceito genérico que precisa ser
diferenciado. Isso pode ser feito, classificando-a em diferentes categorias segundo
seu conteúdo, sua origem ou função (sagas locais, etiológicas, de heróis e outras).
Mas dificilmente se chega a uma definição inequívoca, de validade geral. H Gunkel
dividiu as sagas veterotestamentárias em três grupos: sagas da história dos
primórdios (Gn 1-11), em que se misturam material mítico e lendário na reflexão
sobre a humanidade (p. ex., a construção da torre de Babel), as sagas patriarcais dos
antepassados de Israel e do seu meio familiar, e as sagas de heróis tribais ou
populares como Moisés, Josué, os juízes, mas também profetas. Da mesma maneira
como se podem classificar as sagas segundo os diversos estágios da história de
Israel, também podemos dividi-las segundo a alteração da estrutura social a que se
referem: narrativas de clãs nômades, de uma sociedade pré-estatal agrícola ou do
mundo da corte (SCHMIDT, 1994, p.66).

Segundo Sellin e Fohrer, há duas categorias de juízes, os maiores e os menores


(SELLIN & FOHRER, 2007, p.285); para Storniolo, contudo, a designação juiz é complexa
quando aplicada aos líderes tribais, pois, o termo, a princípio, teria um sentido genérico,
intuindo também uma crítica à separação categórica dual que fazem alguns estudiosos;
portanto, sugere chamá-los de líderes militares ocasionais, no lugar de maiores, e juízes, ou
administradores permanentes da justiça, no lugar de menores (STORNIOLO, 1992, p.35).
Não pretendemos distinguir as categorias e nem abordá-las separadamente, mas apresentar de
modo geral as idas e vindas do processo de ocupação do território cananeu, considerando seus
sucessos e fracassos. Ora, as tribos estavam sendo ameaçadas pelas cidades-estados cananeias
em seus territórios, e tudo indica que o afastamento do povo de Israel da Lei de Moisés
resultou em sofrimento e opressão. Israel experimentou uma experiência cíclica no período
dos juízes como demonstra na figura abaixo:

Figura 4. O ciclo no período do Juízes

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A história escrita no livro de Juízes narra vários momentos nos quais Israel se
esqueceu dos mandamentos do Sinai e da fidelidade a Iahweh, e isso levou as tribos a cair nas
mãos de seus adversários por inúmeras vezes. A dialética contida na história de Israel no
período tribal mostra que um termômetro espiritual (Deus) media até que ponto as tribos
deixavam o ideal para viver o real, ou vice-versa. O rei Cusã-Rasataim da Mesopotâmia, ao
conquistar territórios ocupados pelas tribos, logo oprimiu, maculou o sistema religioso e
obrigou os hebreus ao serviço dos deuses cananeus por oito anos. O povo clamou a Iahweh e
recebeu um libertador, o juiz Otoniel, que derrotou o exército do rei e conquistou as cidades
cananeias. Por 40 anos Otoniel julgou em Israel (Jz 3,1-11). O rei Eglon de Moabe venceu
Israel e tomou a cidade das Palmeiras, mas Aod feriu o rei com uma espada caseira, levando-o
à morte. Aod julgou por 80 anos em Israel. Provavelmente em algum momento no período de
Aod, Samgar venceu 6oo filisteus com uma aguilhada de bois e julgou a Israel (Jz 3,31). O rei
Jabin e o seu comandante Sísera, juntamente com um exército que tinha a sua disposição 900
carros de ferro, oprimiu Israel por 20 anos. Surge nesse cenário a juíza Debora, uma mulher
engenhosa, tipificação da importância do papel da mulher na sociedade hebraica, uma
libertadora, que instruiu Barac e seu exército de dez mil homens contra o rei cananeu. Julgou
por 40 anos (Jz 4,1-5,31). Por oito anos o povo de Israel se viu subjugado pelos midianitas. A

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saga, tomada por uma linguagem teofânica, conta que o anjo de Iahweh chamou a Gideão, o
qual, cheio de dúvidas, questionou o seu chamado; no entanto tornou-se um grande guerreiro
após ser convencido pelo mensageiro. Derrubou o altar dos deuses cananeus e com 300
homens derrotou a 135 mil midianitas. Julgou em Israel por 40 anos (Jz 6,1-9,57). Nesse
período podemos constatar que há indícios de um declínio no sistema tribal, pois os anciãos
pediram a Gideão que criasse um sistema político centralizador, uma monarquia, mas ele
recusou a proposta (Jz 8,22-23). Depois da morte de Gideão surgiu uma trama familiar que
deu origem à ascensão de Abimeleque como primeiro rei em Israel. Abimeleque era filho de
Gideão com uma concubina e o criador do slogan “1 em vez de 70” (Jz 9,2). Matou seus 70
meios-irmãos e usurpou o poder, mas Jotão, o filho mais novo de Gideão, escapou para o
monte de Gerizim e proferiu uma parábola sobre o desejo de governar de seu irmão. O
reinado regional de Abimeleque durou um curto período, dando lugar ao sistema tribal
novamente (Jz 9,53; 2Sm 11,21).
E veio à casa de seu pai, a Ofra, e matou a seus irmãos, os filhos de Jerubaal, setenta
homens, sobre uma pedra. Porém Jotão, filho menor de Jerubaal, ficou, porque se
tinha escondido. Então se ajuntaram todos os cidadãos de Siquém, e toda a casa de
Milo; e foram, e constituíram a Abimeleque rei, junto ao carvalho alto que está perto
de Siquém. E, dizendo-o a Jotão, foi e pôs-se no cume do monte de Gerizim, e
levantou a sua voz, e clamou e disse-lhes: Ouvi-me, cidadãos de Siquém, e Deus vos
ouvirá a vós; Foram uma vez as árvores a ungir para si um rei, e disseram à oliveira:
Reina tu sobre nós. Porém a oliveira lhes disse: Deixaria eu a minha gordura, que
Deus e os homens em mim prezam, e iria pairar sobre as árvores? Então disseram as
árvores à figueira: Vem tu, e reina sobre nós. Porém a figueira lhes disse: Deixaria
eu a minha doçura, o meu bom fruto, e iria pairar sobre as árvores? Então disseram
as árvores à videira: Vem tu, e reina sobre nós. Porém a videira lhes disse: Deixaria
eu o meu mosto, que alegra a Deus e aos homens, e iria pairar sobre as árvores?
Então todas as árvores disseram ao espinheiro: Vem tu, e reina sobre nós. E disse o
espinheiro às árvores: Se, na verdade, me ungis por rei sobre vós, vinde, e confiai-
vos debaixo da minha sombra; mas, se não, saia fogo do espinheiro que consuma os
cedros do Líbano. Agora, pois, se é que em verdade e sinceridade agistes, fazendo
rei a Abimeleque, e se bem fizestes para com Jerubaal e para com a sua casa, e se
com ele usastes conforme ao merecimento das suas mãos (Porque meu pai pelejou
por vós, e desprezou a sua vida, e vos livrou da mão dos midianitas; Porém vós hoje
vos levantastes contra a casa de meu pai, e matastes a seus filhos, setenta homens,
sobre uma pedra; e a Abimeleque, filho da sua serva, fizestes reinar sobre os
cidadãos de Siquém, porque é vosso irmão); Pois, se em verdade e sinceridade
usastes com Jerubaal e com a sua casa hoje, alegrai-vos com Abimeleque, e também
ele se alegre convosco. Mas, se não, saia fogo de Abimeleque, e consuma aos
cidadãos de Siquém, e a casa de Milo; e saia fogo dos cidadãos de Siquém, e da casa
de Milo, que consuma a Abimeleque. Então partiu Jotão, e fugiu e foi para Beer; e
ali habitou por medo de Abimeleque, seu irmão (Jz 9:5-21).

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Há outros casos, como o de Sansão, que matou 1000 filisteus com uma queixada de
jumento, foi enganado por Dalila, destruiu um templo filisteu e julgou durante 20 anos (Jz
13,1-16,31), e o de Samuel, que dedicou a sua vida ao serviço sacerdotal em Israel, foi o
último dos juízes do período tribal, e o profeta que fez a transição para o sistema monárquico
ungindo o primeiro rei aceito pelas tribos. A tabela abaixo mostra um breve histórico dos
juízes de Israel.
Tabela 2

Nome Tribo Julgou Referências


Otoniel Judá 40 anos Jz 3,1-11
Aod/ Eúde Benjamim 80 anos Jz 3,12-30
Samgar Desconhecido ? Jz 3,31
Débora Efraim 40 anos Jz 4,1-5,31
Gedeão Manassés 40 anos Jz 8, 1- 28
Tola Issacar 23 anos Jz 10,1-2
Jair Manassés 22 anos Jz 10,3-5
Jefté Manassés 6 anos Jz 11-12,1-7
Ibsã Judá ou Zebulom 7 anos Jz 12:8-9
Elom Zebulom 10 anos Jz 12:11-12
Abdon Efraim 8 anos Jz 12:13-15
Sansão Dã 20 anos Jz. 13,1-16,31
Samuel Efraim 21 anos I Samuel 1-25

Mas o que levou Israel a escolher um sistema político centralizador ao invés do idílio
tribal? Por que um sistema clânico-tribal de quase 200 anos foi substituído pela monarquia?
Segundo Mazzarolo, na estrutura do sistema tribal observaram-se problemas econômicos,
sociais, políticos e religiosos, que colaboraram para uma transição. Com a inserção do carro
de boi, a produção aumentou de tal modo que uma tribo produzia mais e outra menos, os
excedentes passaram a ser comercializados dentro e fora de Canaã. Pretendeu-se a ampliação
do raio territorial para aumento da produção. A ocupação das tribos mais antigas nas melhores
terras teria ocasionado diferenças e disputas pelo poder político. O acúmulo de bens e a
necessidade de segurança fez surgir uma intensa preocupação com a propriedade e com as

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rotas comerciais (Jz 5), daí surgiu o tributo para a manutenção da segurança; líderes levavam
a sua parte em troca da proteção (Jz 8, 21-27). O desejo dos anciãos das tribos mais ricas por
um governo mais centralizado contra o princípio de igualdade amparado pela aliança com
Iahweh (Jz 9,8-15), e a ameaça dos inimigos, as guerras, a falta de armas e a perda da Arca da
Aliança, foram motivos suficientes para um processo de transição de governo na história de
Israel (1Sam 4,2-11) (MAZZAROLO, 2014, p.3).

Considerações Finais
O sistema tribal israelita fundado nos territórios da Palestina foi complexo, porque
exigiu do povo de Israel uma aliança com os grupos cananeus revoltados contra o sistema
monárquico, e, ao mesmo tempo, desafiador, uma vez que romper com um sistema sócio-
político-econômico já existente e iniciar outro com uma plataforma totalmente diferente
resultaria na quebra de paradigmas antigos e consolidados em território cananeu. A decisão de
um sistema mais igualitário e guiado pela mística da eleição, de fato, tornou-se a força
propulsora no processo de ocupação, pois a experiência do Egito e a peregrinação no deserto
levaram o povo de Moisés a uma jornada em busca de uma identidade, ou da criação de uma
pátria. O processo de ocupação não ocorreu ligeiramente; na verdade, ele foi exaustivo e
gradual, com vitórias e derrotas. A utopia de uma comunidade onde todos podiam produzir e
acessar o produzido, que funcionou por um período considerável entre as tribos, apesar dos
poucos recursos tecnológicos em comparação com os disponíveis aos reis de Canaã, a isenção
de tributos, um sistema de governo descentralizado e o culto a Iahweh, foram fundamentais
para a organização e normatização do sistema de governo tribal.
O aparecimento dos juízes nesse período demonstra que a intuição de um sistema
tribal-ideal começou a sofrer uma ruptura interna, pois o desejo dos anciãos das tribos mais
antigas e ricas em proclamar um rei, a ambição de Abimeleque em usurpar o poder político, e
as frequentes perdas dos territórios sinalizavam isso. O aumento da produção e da
comercialização fora dos territórios ocupados, a ideia de ampliação dos meios de produção,
que excluía a solidariedade confraternal entre a comunidade, e a necessidade de proteção, só
intensificou a mudança de paradigma na política israelita. Mas o que consolidou a chegada da
monarquia israelita foram, de fato, novas interpretações dadas através do sistema religioso; o
juiz Samuel se deparou com uma nova realidade religiosa em Israel: o Deus das tribos tornou-

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se o Deus dos reis. Após um sistema tribal-ideal em formação, sobreveio em Israel a era dos
reis.

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Chove nos campos de cachoeira: o sagrado através da cosmogonia do caroço de tucumã


Daniela dos Santos Brandão98
Resumo: Artigo apresentado com a finalidade de apontar as ambiguidades do símbolo
sagrado em relação à representação imagética do caroço de tucumã, elemento com o qual a
personagem Alfredo, do romance Chove nos campos de Cachoeira, do escritor paraense
Dalcídio Jurandir, dá vazão às suas fantasias e desejos, em meio à paisagem amazônica. A
leitura analítica desse elemento místico é contemplada pelo fato de a Literatura ser uma
manifestação propícia à exposição do imaginário humano, que resulta em uma linguagem
metafórica intrínseca desse gênero artístico, tornando possível falar de uma expressividade
simbólica do sagrado. Portanto, é importante notar cuidadosamente a existência de uma
simbólica sagrada dúbia dentro da região amazônica, lugar ora essencialmente místico,
durante o contexto histórico do Modernismo, propício às transformações culturais, científicas
e religiosas.
Palavras-chave: Símbolo. Sagrado. Caroço de tucumã.

Chove nos campos de cachoeira: the sacred through the cosmogony of the tucumã lump
Abstract: An article presented with the purpose of pointing out the ambiguities of the sacred
symbol in relation to the imaginary representation of the tucumã lode, element with which the
character Alfredo, of the novel Chove nos campos de Cachoeira, of the writer Dalcídio
Jurandir, gives vent to its fantasies and desires, in the midst of the Amazonian landscape. The
analytical reading of this mystical element is contemplated by the fact that Literature is a
propitious manifestation of the human imaginary, which results in an intrinsic metaphorical
language of this artistic genre, making it possible to speak of a symbolic expressiveness of the
sacred. Therefore, it is important to note carefully the existence of a sacred symbolic dubious
within the Amazon region, now essentially mystical place, during the historical context of
Modernism, conducive to cultural, scientific and religious transformations.
Keywords: Symbol. Sacred. Tucumã lump.

Introdução
Em 1941 surge no cenário literário nacional, ainda que timidamente, o romance Chove
nos campos de Cachoeira do escritor Dalcídio Jurandir. Produzido em meio aos turbilhões
culturais, econômicos e sociais que agitaram a década de 1920, Chove é uma narrativa densa e
revela o cenário da capital paraense após o declínio da economia gomífera, e desdobra-se em
outros nove romances, nos quais a figura da personagem Alfredo é constante. Segundo a
professora Marli Furtado:
Alfredo (...) é o elemento unificador da narrativa e o recurso do autor para
demonstrar seu projeto literário: a construção romanesca de uma certa Amazônia.
Uma Amazônia derruída, sem perspectivas, atônita após a derrocada de um ciclo
econômico que ergueu palácios, teatros, palacetes; que deu ares europeus às altas

98
Graduada em Letras pela UFPA, especialista em Estudos Linguísticos e Analise Literária pela UEPA,
mestranda em Ciências da Religião pelo PPGCR-UEPA e bolsista Capes. E-mail:
danibrandao2004@yahoo.com.br
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História das Religiões, Literatura, Conceitos e Identidades – Vol. VI – ISSN 2359-6988

temperaturas locais. Enfim, uma Amazônia nada misteriosa, uma região específica,
obviamente com suas singularidades, mas na qual se cumpriu um ciclo cuja queda
revelou-nos a fragilidade de nosso sistema de produção da borracha (FURTADO,
2002, p. 16).

Essa empreitada literária, chamada de Ciclo do Extremo Norte, apresenta a trajetória


dessa personagem em meio aos acontecimentos que antecedem sua partida do interior da
floresta amazônica para a capital do estado do Pará, bem como os caminhos que sua vida
tomará a partir do momento em que pisará no solo da cidade pela primeira vez.
Natural da Vila de Ponta de Pedras, mais tarde município de Ponta de Pedras, no
interior do arquipélago do Marajó, no estado do Pará, Dalcídio Jurandir conduz essa saga
romanesca com a maestria e a sensibilidade de quem conhece a fundo a realidade ribeirinha
local. Nesse sentido é interessante destacar a importância que esses textos representam para a
região amazônica. Durante muito tempo Amazônia fora descrita apenas através da ótica
determinista e pitoresca, pela qual se destacavam a exuberância natural e o imaginário comum
em relação a essas terras encharcadas, das quais não se consideravam os elementos humanos,
mas somente a mística de uma terra de encantarias, um fausto no meio da floresta.
Dessa maneira, à narrativa dalcidiana cabe destaque por enfocar nos aspectos humanos
e sociais da região amazônica. Vale notar que o período compreendido entre as décadas de
1920 e 1940 situa-se dentro do momento mais expressivo do Movimento Modernista,
segundo o qual o rompimento com cadeias tradicionais é constante, e nesse ponto as artes
atuam como disseminadoras desse novo pensar, regido pelo pensamento científico e
vanguardista – e até mesmo iconoclasta. Segundo a professora Marinilce Coelho:
A geração literária de 1920, em Belém, destacou-se pelo movimento da revista
Belém Nova e sua admirável recepção do movimento literário modernista nacional.
Essa revista paraense teve circulação quinzenal, por quase seis anos, precisamente
de 15 de setembro de 1923 a 15 de abril de 1929. Uma vida considerada bastante
longa para um periódico literário, daqueles tempos, chegando a uma tiragem de 5
mil exemplares. A impressão era feita na gráfica oficial do Estado e a redação
funcionava na Rua 28 de Setembro nº 6, em Belém (...). À frente da revista Belém
Nova, o poeta paraense Bruno de Menezes, juntamente com outros poetas e
escritores, movimentaram a literatura local quando publicaram, nas páginas deste
periódico, textos com idéias representativas da nova estética que, fermentava no
sudeste do país. A revista serviu como meio para que os próprios autores locais
compreendessem o que estava realmente acontecendo no universo literário, na arte e
no pensamento, pois o Modernismo abarcou mudanças decisivas na cultura nacional
(...). Tal acontecimento se deve em boa parte às aceleradas transformações culturais,
políticas e sociais que já vinham ocorrendo no Brasil e no mundo, desde a primeira
metade do século XIX. (COELHO, 2003, p. 51-52).

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Não que o elemento místico não esteja presente nas manifestações artísticas
modernistas, uma vez que a matéria prima desse pensamento é o homem, e este, ao longo de
sua existência (e para a sua sobrevivência/permanência em sociedade), criou sistemas
simbólicos de crença bastante sólidos sem os quais se julgaria impossível de se viver.
Entretanto, é na tentativa de (d)enunciar novas perspectivas de vida através da explicação
científica, pautada na lógica capitalista, que as artes se prevalecem do alcance simbólico que
lhes é intrínseco para apresentar esse novo pensar. Entretanto, é nesse particular que a
dubiedade desse comportamento emerge, uma vez que o momento em que o Modernismo se
desenvolvia no Brasil confirma os sentimentos tanto de revoluções e inovações, quanto os de
identificação genuína com a própria cultura local, conforme Nelson Werneck Sodré:
Balizado entre 1917 e 1945, o Modernismo está inserido entre as duas Guerras
Mundiais e acompanha a crise no Brasil, com seu capitalismo em lento crescimento,
de início, para acelerar-se com os dois conflitos e a crise de 29, que tão profundos
reflexos encontrou aqui. É uma fase tormentos, em escala mundial, e não apenas
pelas guerras, mas também pelas revoluções, pelas contradições em todos os níveis,
pelas inovações autênticas e pelas simulações. No Brasil, compreende o Tenentismo,
os movimentos da massa operária e o crescimento do Partido Comunista, a
derrocada da República Velha, marcada pela dominação oligárquica, a crise de 29, o
movimento de 30, os levantes de 32 e 35 (...) e a repressão política e cultural. De
qualquer maneira, o Modernismo assinala o extraordinário esforço pela
autenticidade da cultura, pelo sentido nacional dela. O Modernismo acaba por
definir, pois, não apenas o novo, o moderno, e daí o nome, mas o autêntico, o
nacional e até o popular (SODRÉ, 2002, p. 591).

Assim, podemos dizer que não há o abandono explícito desse imaginário místico, mas
a presença dele nas narrativas literárias, por exemplo, aponta para uma pretensa ausência; ao
revelar personagens nativas não mais caricatas, estereotipadas, opostas à beleza e à bondade
de Iracema, mas cruas, brutas, sobretudo humanas, submetidas ao poder simbólico da religião,
das lendas, compondo não mais uma paisagem estática, mas um mosaico no qual coexistem
forças místicas amalgamadas numa sociedade também diversa, híbrida em seu relevo
geográfico, que abriga enormes proporções de água e de terra firme, e híbrida também em
relação a seus habitantes, uma vez que a capital paraense experimentou tanto o apogeu
econômico através da extração do látex, uma espécie de seiva da Seringueira99, durante o
período da Belle Époque, o que contribuiu francamente para a modernização de Belém, que
fora urbanizada e modelada à semelhança de Paris, na tentativa de reproduzir elementos que

99
A Árvore (Hevea brasiliensis), nativa da região amazônica, produz o látex, também chamado de borracha
natural.
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representavam a modernidade europeia, quanto à derrocada econômica na primeira década de


1900. Nesse sentido, a definição desse período:
O que no léxico da História Cultural ficou configurado como belle époque indica um
complexo processo de relações culturais, sociais e mentais, mas também materiais e
políticas, desenvolvidas no interior de um corpus reconhecido historicamente como
o da cultura burguesa e da sua afirmação no interior dos quadros hegemônicos do
capitalismo industrial no final do século XIX. Em nome da identidade de um tempo
cujos sujeitos sociais emergiram das novas condições econômicas e sociais
dominantes no mundo do capital, a belle époque implica reconhecer linguagens,
gostos, atitudes, estéticas, sociabilidades que, construídos em escalas diferenciadas
nos espaços hegemônicos da cultura burguesa, reproduziram-se, em escala
planetária, também na condição das formas de ser e de agir em tempos que
abrigavam o proclamado triunfo do Progresso e da sua homologia, a Civilização
(COELHO, 2011, p. 141).

E foi nessa atmosfera que a vida citadina e urbana de Belém se desenvolveu, com a
criação de cinemas, teatros, praças e bosque; e se desenvolvia também a circulação de jornais,
com função de verdadeiras colunas sociais, onde eram veiculados os anúncios de espetáculos
e de comércios; anunciavam-se também aniversários e casamentos da classe abastada...
Não há dúvida a respeito da importância dos jornais para a memória mundana da
belle époque em Belém, principalmente pelos caminhos da crônica e dos registros
que factualizavam a sociabilidade urbana. Nas páginas dos periódicos A Província
do Pará e Folha do Norte, ambos já circulando na capital do Pará no final do século
XIX e, à época, jornais tecnicamente modelares dentre os poucos existentes na
imprensa brasileira, é possível flagrar frações do discurso dos sujeitos civilizacionais
da belle époque da borracha. Lojas, cafés, teatros, moda, tertúlias, conferências,
exposições, e mais, é claro, a exaltação da cidade urbanizada e saneada aparecem na
condição de grande quadro, de poderoso panorama do cotidiano de uma capital
tocada pelas várias representações de um novo tempo, como a história vem
reconhecendo. A imprensa periódica de Belém da época, e mais os jornais de
agremiações e de associações profissionais inventariavam, por assim dizer, os
lugares, as formas e os sujeitos que emprestavam uma dada visibilidade à belle
époque de Belém (COELHO, 2011, p. 150).

Surgiram então os suplementos literários, que circulavam juntos aos jornais, nos quais
grupos literatos (Vândalos do Apocalipse e Grupo de Peixe Frito, por exemplo) escreviam
poemas e crônicas. Dentre os colaboradores desses suplementos estava Dalcídio Jurandir, que
a esta altura já escrevia sobre a realidade da população local.

1 O mito da criação e o caroço de tucumã


Este trabalho tem a finalidade de apontar, dentro da narrativa dalcidiana, a
ambiguidade do símbolo, através de um elemento recorrente, a saber, o caroço de tucumã,
bem como o efeito que esse recurso expressivo causa na narrativa a bem de uma

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representação mística que legitime a identidade cultural e religiosa amazônida. Segundo a


professora Rosa Assis, que escreveu um artigo sobre a simbologia desse elemento:
No extenso texto dalcidiano, brota desde o começo do ciclo, e intencionalmente, um
curioso personagem, ou melhor, uma espécie de elemento mágico, ou meio mágico
meio mítico, proveniente ao mesmo tempo da mata marajoara, da língua nativa e da
cultura popular, que de imediato encanta o leitor: é um simples caroço de tucumã,
apanhado no chão da vida natural, interiorana, ribeirinha, dos habitantes do
Marajó… um elemento constante ao longo de toda a obra, mas que é sobremodo
frequente e importante no primeiro romance, Chove nos campos de Cachoeira, no
qual o caroço de tucumã domina do princípio ao fim e quase que produz toda a
narrativa (ASSIS, 2006, p. 26).

Primeiramente, é importante deixar claro que o elemento simbólico de que falamos é o


caroço de tucumã100, observado durante todo o romance Chove nos campos de Cachoeira.
Aliás, ainda conforme a professora, o caroço de tucumã é personificado, uma verdadeira
varinha de condão, sem o qual Alfredo não encontra evasão para suas fantasias:
Como se vê, o carocinho (...) foi a fórmula mágica, vinda da floresta amazônica e da
cultura indígena, do folclore regional, que o romancista marajoara recolheu e recriou
para servir como um tipo curioso, e quase personificado, de leitmotif do personagem
Alfredo, ao longo de todo o ciclo. Com efeito, as coisas começam a acontecer já na
primeira cena, na primeira página, na primeira linha do Chove, graças ao poder
mágico do carocinho que aí faz sua aparição e continua aparecendo e interferindo
por toda a narrativa, tornando-se desde aí para Alfredo (...) o seu singelo talismã
(tucumã) ou a sua tosca varinha de condão, conforme se lê no próprio texto do
romance, sempre pronta e apta a levá-lo onde quer que o empurrem os seus sonhos e
anseios, desejos e fantasias, imaginações ou devaneios (ASSIS, 2006, p. 24).

Existe na cultura dos índios Tupinambás um mito de criação no qual o tucumã figura
como o guardião da noite. Segue abaixo transcrição desse mito através dos escritos do
professor Silvio Romero, em edição lusitana de 1885, disponibilizada digitalmente no acervo
da UNESP:
Como a noite appareceu

Durante o principio não havia noite; dia sómente.


A noite está adormecida no fundo da água.
Não havia animaes; todas as cousas fallavam.
Da filha da Cobra-Grande, contam se casára com um joven.
Este joven tinha tres vassallos fieis.
Em um dia chamou os tres vassallos; disse-lhes:
— Ide passear; minha mulher não quer dormir commigo.

Os vassallos foram-se. Então elle chamou sua mulher para dormir com elle.
Sua mulher respondeu:

100
Amêndoa grande (Astrocaryum aculeatum) envolta pela polpa da fruta de mesmo nome. Abundante na região
amazônica, este fruto serve de alimento para a população da região, sobretudo os ribeirinhos, que aproveitam da
fruta desde a massa até a semente para fabricar artesanato e alimentar animais de criação.
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— « Ainda não é noite.


— Não ha noite; dia ha sómente.
— «Meu pai tem noite. Dormir se queres commigo, manda-a buscar pelo rio.
Elle chamou os tres vassallos; sua mulher mandou-os a casa de seu pai para irem
buscar um caroço de tucumã.

Quando elles chegaram à casa da Cobra-Grande, esta deu-lhes um caroço de tucumã,


fechado perfeitamente e disse: «Aqui está; levae; eia, não abraes! Se o abrirdes vos
perdereis.
Os vassallos foram-se; ouviram barulho dentro do caroço de tucumã: tenl ten! ten!
tenl ten, ten!
Era o barulho dos grillos, e dos sapinhos com elles,os quaes cantam durante a noite.
Quando os vassallos estavam já longe, um d'elles disse aos seus companheiros: «O
que é este barulho? Vamos vêr?
O piloto disse: — Não; de contrario nos perderemos.
Remae, vamos embora.
Elles se foram. Estavam ouvindo o barulho; não sabiam o que era aquelle barulho.
Elles estavam muitíssimo longe já, quando elles se ajuntaram no meio da canoa para
abrir o caroço da tucumã, para vêr o que estava dentro d'elle.
Um accendeu fogo; elles derreteram o breu que estava fechando a porta do caroço de
tucumã.
Quando elles abriram, eis repentinamente noite densa já.
Então o piloto disse: — Perdemo-nos! A moça em sua casa sabe já que nós abrimos
este caroço de tucumã.
Elles seguiram viagem.
A moça em sua casa disse a seu marido:
— «Eiles soltaram a noite. Agora vamos esperar a manhã.
Então todas as cousas, que estavam espalhadas pelo bosque, metamorphosearam-se
em animaes, em passaras.

Todas as cousas, que estavam espalhadas pelo rio metamorphosearam-se em patos,


em peixes; o paneiro virou-se em onça.
O pescador virou-se com sua canôa em pato; sua cabeça em cabeça de pato, seu
remo em pernas de pato; a canôa em corpo de pato.
Quando a filha da Cobra-Grande viu a estrella d'alva, disse a seu marido já:
— «Vem a manhã; eu vou dividir a noite do dia.
Então ella enrolou o fio, e disse:
—«T u Jucubim serás, para cantar quando vier a manhã.
Assim fez o Jucubim, branqueou a cabeça d'elle com tabatinga, avermelhou suas
pernas com urucú, e disse a elle:
—«Cantarás para todo o sempre, quando vier a manhã.
Depois ella enrolou o fio; disse:
— «Tu Inambú serás.
Tomou cinza, poz sobre elle; disse:
— «Tú Inambií serás, para cantar á tarde, á noite, á meia noite, noite alta e na
madrugada.
De então para cá os passaros cantaram em tempos proprios quando vem a manhã,
para alegrar o dia.
Quando os tres vassallos chegaram, disse-lhes o moço:
— Vós não fostes fieis! Vós soltastes a noite. Vós fizestes todas ás cousas perderem-
se; por isso vos mudareis em macaquinhos para todo o sempre; andareis pelos
galhos das arvores, trepados sobre elles (ROMERO, 1885, p. 167-169).

Nessa sociedade indígena, no que se refere à religião, o pajé era o detentor de


conhecimentos fundamentais para a sobrevivência da tribo. Conhecedor de ervas curandeiras,
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o seu papel também era de sacerdote, e era o responsável pela realização dos rituais
tradicionais da tribo. Era ele quem detinha a autoridade de estabelecer comunicação com o
plano espiritual e decifrar a vontade das divindades.
Podemos estabelecer um elo – e então a dubiedade – entre esse mito indígena do
tucumã e a representação desse fruto na obra dalcidiana: em ambos os casos, dentro do caroço
estão guardados mundos secretos, sob os cuidados de guardiões zelosos: um, é a cobra-
grande, no fundo do rio; o outro, o menino marajoara imerso em sonhos nos campos
queimados de Cachoeira. No primeiro, um vacilo de serviçais curiosos liberta todos os
elementos que darão origem à noite: a escuridão, os animais noturnos, como sapos e grilos,
além de, como por encanto, transformar em animais objetos, como o paneiro101 que torna-se
onça. No outro, é a imaginação de Alfredo a responsável por liberar do caroço de tucumã
cidades inteiras, com seus bondes e arranha-céus. É de dentro do carocinho que saem escolas
importantes, paisagens bonitas, cura para doenças e amores. Alfredo sonhava com elementos
disponíveis na cidade grande, e sonhava também com uma realidade política diferente
também:
Bolinha fiel e rica de sugestão! Ela sugeria tudo, ele achava desde a solução do
Brasil até uma caixa de charutos Palhaço para sua mãe. Sim, tinha idade para pensar
já que o Brasil andava errado. E sonhava com um presidente da República que fosse
o salvador do país (JURANDIR, 1995, pág. 144).

Marli Furtado arremata essa ideia em relação ao caroço de tucumã ao ratificar a


importância desse elemento para o romance, que chega, inclusive, a nomear o oitavo capítulo
da obra. A professora afirma também que o caroço de tucumã atua como mediação para um
mundo de fantasia:
Diante de tanto desconcerto e de acordo com sua puerilidade, a melhor pedida é a
evasão para a fantasia. O elemento de mediação é um caroço de tucumã, o
equivalente da varinha mágica das fadas, elo entre ele e o maravilhoso, mundo em
que as fronteiras são sempre transpostas sem punições e em que a realidade pode ser
mudada ara melhor, sem sofrimentos. Um caroço de tucumã, muito bem escolhido
entre muitos, sempre o companhia. Rolando na palma da mão, Alfredo ‘imagina
tudo’ (FURTADO, 2002, p. 85).

Para exemplificar a via de sentido duplo que o caroço de tucumã percorre, ora como
elemento telúrico e afirmador de uma identidade amazônida e ora elemento simbólico de uma
mística, segue trecho de Chove nos campos de Cachoeira, no qual o narrador se encarrega de
“definir claramente a natureza e os poderes mágicos do nosso pequenino e insólito
101
Cesto indígena feito de palha trançada
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personagem, capaz de operar maravilhas em favor do seu companheiro inseparável e


personagem principal e propriamente dito em toda a história” (ASSIS, 2006, p. 24):
Alfredo tinha ainda de buscar querosene. A garrafa presa no cordão, a bolinha no
bolso. Agora, com a noite, não pode jogar o carocinho. Mas é bom, quando no
escuro, dentro da rede, a bolinha sobe e desce na palma da mão. Assim dá um
encanto maior, varinha mágica, varinha de condão que as fadas invejariam. Os
meninos do mundo inteiro não conhecem o carocinho de tucumã de Alfredo. As
fadas morreram, o encanto vem dos tucumãzeiros da Amazônia. O carocinho tem a
magia, sabe dar o Universo a Alfredo. Tem um poder maior que os três Deuses
reunidos... (JURANDIR, 1995, p. 374).

2 Compartilhamento, ligação e identidade


Para melhor compreendermos essa relação do caroço de tucumã com uma simbólica
mística, vamos às definições de símbolo. De uma maneira geral, o símbolo é descrito por Paul
Tillich como a representação de tudo aquilo que comove o ser humano. Isto é, temos a
necessidade de sistematizar e de representar – e até mesmo de divinizar – a expressão de tudo
aquilo que nos afeta. Não obstante, o autor faz a distinção entre sinais e símbolos, e destaca
que se por um lado os sinais são arbitrários, os símbolos fazem parte do elemento que
representam:
Símbolos e sinais têm uma característica essencial em comum: eles indicam algo
que se encontra fora deles. (...) Às vezes sinais são chamados de símbolos e isso,
entretanto, é lamentável porque dificulta a diferenciação entre sinal e símbolo. De
importância capital nesse sentido é o fato de que os sinais não participam da
realidade daquilo que eles indicam, quanto aos símbolos, no entanto, esse é o caso.
Por isso os sinais podem ser substituídos em livre acordo por questões de
conveniência; com os símbolos não é assim. (TILLICH, 2001, p. 31).

Segundo o autor, o símbolo possui uma estrutura semântica muito mais complexa que
o sinal, uma vez que ele “faz parte daquilo que ele indica” (TILLICH, 2001, p. 31). Assim,
Tillich vai traçando uma sequência de definições acerca da generalidade do símbolo dentre as
quais está a ideia de que é nos transportar para níveis de realidade ora inatingíveis, uma vez
que, em se tratando de linguagem artística, é ela que consegue, através de representações
metafóricas, nos fazer compreender elementos que não se captam, segundo o autor,
cientificamente.
Interessante notar que, dentre todas as acepções que Paul Tillich faz acerca da noção
de símbolo, a noção mais relevante é a que observa sua não-arbitrariedade. Como foi dito
anteriormente, símbolo e sinais se diferem por este ser convencionado, e aquele, não:
Símbolos não podem ser inventados arbitrariamente. Eles provêm do inconsciente
individual ou coletivo e só tomam vida são se radicarem no inconsciente do nosso
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próprio ser. O último distintivo do símbolo é uma consequência do fato de


símbolos não poderem ser inventados. Eles surgem e desaparecem como seres
vivos (TILLICH, 2001, p. 31-32).

Em suma, para o autor, o símbolo surge a partir de um movimento de dentro para fora,
isto é, a partir das necessidades humanas em relação a diversas áreas, como a arte, a política, a
cultura e a religião.
Adentrado propriamente nas discussões acerca da representação simbólica da religião,
na concepção de Etiene Alfred Higuet, em relação à expressão religiosa através de imagens, a
linguagem visual é elemento fundamental para a existência de símbolos religiosos, uma vez
que estes, na forma de imagens, operam como ligação entre o homem com o seu mundo (real)
e com o sagrado (divino):
A linguagem visual constitui uma parte importante da expressão religiosa. Em
particular, as imagens contribuem na elaboração e apresentação dos símbolos
religiosos (...). Enquanto símbolos, as imagens exercem uma função de interseção
entre o humano e seu próprio mundo, o qual inclui o que ficaria além desse mundo,
como o divino ou o sagrado (HIGUET, apud NOGUEIRA, 2012, p. 84).

Higuet nos apresenta três desdobramentos de sentido a partir do termo símbolo, que se
distinguem notoriamente. O primeiro sentido que o símbolo pode assumir, segundo ele, é uma
analogia emblemática, isto é, uma correspondência abstrata para coisas concretas. Em
seguida, o autor apresenta, a partir da etimologia da palavra symbolom – derivada do verbo
siymbollô, que em grego quer dizer reunir – a ideia de identidade e pertencimento que reveste
este vocábulo: “Num sentido mais amplo, o símbolo é uma forma que permite aos membros
de uma comunidade reconhecer-se enquanto tal” (HIGUET apud NOGUEIRA, 2012, p. 84-
85). Finalmente, o terceiro sentido que o símbolo abrange, segundo o autor, é o sentido
lógico, em que signos gráficos representam grandezas matemáticas.
Contudo, o autor segue em seu artigo pontuando a função do símbolo:
Em primeiro lugar, o símbolo mostra, torna visível (...). Nesse sentido, o símbolo é
exclusivo, pois precisa ser reconhecido por todos, e assim possui um valor para o
grupo, para a comunidade, para a sociedade, ele tem poder de reunião, de consenso,
isto é, ele é social. Em segundo lugar, o símbolo reúne: além de sua função
consensual, ele indica a presença, ele “inclui e exclui”(...). Enfim, o símbolo obriga,
prescreve (HIGUET apud NOGUEIRA, 2012, p. 85).

Para além disso, Higuet nos coloca diante de confrontações entre símbolo, signo e
metáfora. Recorrendo a uma análise ricoeuriana, nos é apresentado que símbolo é signo e vice
versa, uma vez que ambos são dotados de semântica, todavia, o ponto de oposição entre eles é
que o símbolo existe através de um via dupla de sentidos, até extrapolarem os limites da
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concretude, do material e do não espiritual, ao ponto de terem a propriedade de não só


aproximar, mas reatar o homem, essa instância terrena, do etéreo, do sagrado.
Nesse sentido, esse apontamento corrobora para que afirmemos o papel do caroço de
tucumã em relação á personagem Alfredo, que é ligá-lo a um mundo diferente do real, um
mundo mágico e feliz, no qual as promessas de vida melhor se cumpririam. O garoto percorre
a narrativa através das descobertas que faz sobre as relações familiares e sociais circundantes
a ele. Embora o narrador não precise a idade de Alfredo, sabe-se que ele é uma criança e
aguarda ansiosamente a chegada do momento em que se mudará da Vila de Cachoeira para a
capital do estado. Enquanto esse dia não chega, o caroço de tucumã se encarrega de
materializar seus sonhos. Nesse caso, a fantasia é a estratégia encontrada por ele para tentar
contemplar as indagações perante o mundo, criando respostas para as lacunas existentes ao
seu redor e até criando uma cidade ideal (Belém):
Bolinha mágica e infatigável. Era mais poderosa que a Lâmpada de Aladino (...).
Com ela, desapareceriam as feridas, a pomada de boião, as palmadas de Gualdina na
cidade de Seu Ulisses. E assim, ia fazendo de conta, um passeio nos campos seria
uma viagem pelo mundo com a bolinha de tucumã pulando na palma da mão
(JURANDIR, 1995, p. 145).

Finalizando as considerações do professor Higuet sobre o símbolo, notamos que este


distingue-se da metáfora ao passo que ela, como recurso linguístico, está mais para
aproximação de atributos. Assim, segundo o autor, ao usarmos metáfora na verdade não
estamos representando uma coisa por outra, uma vez que estão em jogo dois elementos
distintos: um é a metáfora; o outro é o metaforizado.
Já o símbolo reivindica a substituição, a representação, e não requer necessariamente
uma aproximação ou semelhança entre os elementos do jogo simbólico: “O símbolo trans-
significa (...). No símbolo não podemos objetivar a relação analógica que une o segundo
sentido com o primeiro; o primeiro sentido nos leva além dele mesmo, enquanto nos
movemos no primeiro sentido” (HIGUET apud NOGUEIRA, 2012, p. 87).

3 Caroço de tucumã: objeto sagrado, símbolo e cosmogonia


Mircea Eliade nos coloca diante das dificuldades teóricas e práticas em classificar e
definir o que é o sagrado e o que é o profano. De acordo com ele, parte-se sempre da ideia
preliminar de que o primeiro é sempre oposto ao segundo, seja qual forem os conceitos que
preencham esses vocábulos. Segundo ele:
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Todas as definições do fenômeno religioso apresentadas até hoje mostram uma


característica comum: à sua maneira, cada uma delas opõe o sagrado e a vida
religiosa ao profano e à vida secular. É quando se trata de delimitar a esfera da
noção de sagrado que as dificuldades começam. Dificuldades de ordem teórica, mas
também de ordem prática. Pois antes de tentar uma definição do fenômeno religioso
convém saber de que lado será necessário procurar os fatos religiosos, e
principalmente, dentro desses fatos, o que se deixam observar em seu estado puro,
isto é, os que são simples e estão mais próximos de sua ordem (ELIADE, 2010, p.
07).

Nessa parte introdutória do primeiro capítulo do Tratado das Histórias das Religiões,
Eliade traça um breve paralelo entre essas duas categorias estruturais que encontram-se no
contorno da ideia de sacralidade, com a finalidade de desenvolver um estudo comparado
através do qual seria possível alcançar a morfologia do sagrado a partir – e não por acaso o
título dessa obra – de transformações históricas em religiões, sobretudo, as que receberam o
enfoque etnológico:
De fato, se quisermos delimitar e definir o sagrado, ser-nos-á necessário dispor de
uma quantidade conveniente de sacralidades, isto é, de fatos sagrados. Esta
heterogeneidade dos fatos sagrados começa por ser perturbante e acaba, pouco a
pouco, por se tornar paralisante, pois se trata de ritos, de mitos, de formas divinas,
de objetos sagrados e venerados, de símbolos, de cosmogonia, de telogúmenos, de
homens consagrados, de animais, de plantas, de lugares sagrados. E cada categoria
possui sua própria morfologia (ELIADE, 2010, p. 08).

Neste fragmento do texto eliadeano temos o panorama do que o Tratado aborda:


diversas categorias que servem para explicar, cada uma dentro de sua particularidade, o
sentido do sagrado através desses elementos considerados pelo autor como sacralidades,
dentre os quais destacamos, na perspectiva da análise a que se propõe esse artigo, os objetos
sagrados, os símbolos e a cosmogonia, todas relacionadas com o caroço de tucumã, que ao
mesmo tempo assume essas condições. Em O Sagrado e o Profano, Eliade nos dá a tônica da
sacralidade que reveste objetos:
Manifestando o sagrado, um objeto qualquer torna-se outra coisa e, contudo,
continua a ser ele mesmo, porque continua a participar do meio cósmico envolvente.
Uma pedra sagrada nem por isso é menos uma pedra; aparentemente (para sermos
mais exatos, de um ponto de vista profano) nada a distingue de todas as demais
pedras. Para aqueles a cujos olhos uma pedra se revela sagrada, sua realidade
imediata transmuda se numa realidade sobrenatural. Em outras palavras, para
aqueles que têm uma experiência religiosa, toda a Natureza é suscetível de revelar-se
como sacralidade cósmica. O Cosmos, na sua totalidade, pode tornar-se uma
hierofania (ELIADE, 1992, p. 13).

Nesses termos, consideramos o caroço de tucumã como esse objeto sagrado, que ora
elemento vegetal abundante na região amazônica, torna-se companheiro inseparável da

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personagem Alfredo. Para o garoto, o carocinho é especial, fora escolhido cuidadosamente,


“entre muitos no tanque embaixo do chalé” (JURANDIR, 1995, p. 13), assinalando sua
característica sagrada. Por conseguinte, o caroço de tucumã é símbolo e cosmogonia.
Símbolo porque sua semântica é capaz de, além de transformar esse objeto prosaico em outra
coisa que não mais uma simples amêndoa, revestir de significados os elementos ora profanos
e transcender do mundo material para o imaterial, através de sua função unificadora. Além
disso, a cosmogonia do caroço de tucumã é o traço mais relevante no que tange as discussões
que permeiam as relações entre esse objeto e uma expressão sagrada na Amazônia,
apresentada na obra Chove nos Campos de Cachoeira.

Considerações finais
A intenção até aqui era suscitar a observação acerca da ambivalência da representação
simbólica do caroço de tucumã na cultura amazônica em relação à cosmogonia. Partimos de
uma análise contextual do momento no qual o Modernismo se desenvolvia na Amazônia, que
em determinados vieses preconiza a ruptura com padrões estáticos, deterministas e
dogmáticos para firmar uma posição arrojada, consoante com as transformações científicas,
sociais e econômicas pelas quais o mundo passava.
Entretanto, a região amazônica, híbrida espacialmente e culturalmente, é o pano de
fundo para o desenvolvimento de manifestações literárias, como o ciclo romanesco escrito por
Dalcídio Jurandir, do qual destacamos para análise a obra Chove nos campos de Cachoeira
por ser oportuna a abordagem simbólica do caroço de tucumã, elemento recorrente na
cosmogonia mítica indígena em relação à criação da noite, ao encontro da representação desse
elemento na obra dalcidiana.
Nesse sentido, ratifica-se a correspondência simbólica nos dois contextos, sugerindo
que nas duas narrativas o caroço de tucumã se mantém enquanto cosmogonia, entretanto,
fazendo-se necessário considerar o contexto histórico de produção da obra, uma vez que
Dalcídio Jurandir fora responsável pelo olhar focado no homem Amazônia, e não mais na
exuberância da floresta, o que, contraditoriamente, não significa que a abordagem mística seja
abandonada completamente, mas que a diversidade humana em seus aspectos culturais,
religiosos e sociais ultrapasse as fronteiras generalistas e passem a considerar o homem

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amazônida em sua particularidade, pela via da autenticidade, e pela sua universalidade, pela
via de uma estética artística inovadora.

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TILLICH, Paul. Dinâmica da Fé. São Paulo: Sinodal, 2001, pp. 31-32.

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O ateísmo no espaço público: um estudo sobre as propagandas de outdoor da


ATEA
Danilo Monteiro Firmino102

Resumo: O ateísmo é um fenômeno ainda pouco estudado nas ciências humanas, sendo
geralmente relegado ao segundo plano em estudos que tratam de religião. O presente trabalho
tem como objetivo demonstrar que o ateísmo, tal como os outros fenômenos religiosos
modernos, pode ser interpretado sob diversos prismas. Nesse sentido, a Associação Brasileira
de Ateus e Agnósticos, a ATEA, torna-se central para as reflexões em relação ao ateísmo e
sua inserção no espaço público. Este artigo se propõe a debater ainda duas propagandas
vinculadas pela ATEA em outdoors, demonstrando uma mudança gradual de posicionamento:
enquanto uma denuncia, de forma provocativa, os supostos males da religião para a
sociedade; a outra intenciona defender a laicidade do Estado e promover uma reflexão,
mesmo que aparentemente superficial, da realidade ateísta no Brasil.
Palavras-Chave: Ateísmo, ATEA, Religião, Secularização, Laicidade

The atheism at the public space: an ATEA’s outdoor advertisings study


Abstract: The atheism is an understudied phenomenon in the humanities, usually placed in
the background of religion's attached subjects. This study aims to demonstrate that the
atheism, just like any other modern religious phenomenons, can be interpreted from several
prisms. Accordingly, the “Brazilian Atheistic and Agnostic Association (Associação
Brasileira de Ateus e Agnósticos)” also known as ATEA, becomes central in the public
reflexions related to atheism and the inclusion in public space. This article's proposition is to
debate two ATEA's advertisements showed in outdoors exposing some progressive gradual
positioning change: as one of them denounces, in a provocative way, the alleged religion's
harms; the other one intends a thinking promotion, even apparently superficial, of the atheist
Brazilian's reality.
Keywords: Atheism, ATEA, Religion, New Atheism, Secularization, Laity

AS RELAÇÕES ENTRE ATEÍSMO E LAICIDADE: O CASO ATEA


O ateísmo cresce de forma constante no Brasil e no mundo, conforme atestam
pesquisas do IBGE e de outras instituições.103 Embora seja difícil calcular o número de ateus
no mundo e seu crescimento, Autran ajuda nessa reflexão. Segundo o autor, nos últimos 100
anos a população da Europa “passou de cerca de 1,3 milhão para aproximadamente 130

102
Mestrando em História Social pelo Programa de Pós-Graduação em História Social do Território (PPGHS-
UERJ/FFP). E-mail: dmf.1184@gmail.com.
103
Os números do Censo 2000 evidenciam que os “sem religião” subiram de 4,8% em 1991 para 7,4% em 2000,
sendo o terceiro maior grupo religioso do Brasil. Outras informações sobre o crescimento do ateísmo no Brasil e
no mundo podem ser em http://www.paulopes.com.br/2016/04/crescimento-do-ateismo-no-brasil-preocupa-
igreja-catolica.html acesso em 17 de fevereiro de 2017 e https://noticias.gospelprime.com.br/ateismo-cresce-
mundo-aponta-pesquisa/, acesso em 17 de fevereiro de 2017.
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milhões de pessoas”104 que se dizem ateístas. No Brasil, existe uma grande dificuldade em
obter tais dados. Segundo Autran, isso se deve pelas categorias formuladas pelo IBGE, pois o
instituto classifica como “sem religião” o grupo composto por ateus, agnósticos, deístas e
pessoas que possuem uma espiritualidade que não pode ser classificada entre as outras
categorias. Mesmo que a definição de “sem religião” seja problemática, esses números
corresponderam a 7,4% dos entrevistados, ou seja, 12,4 milhões de pessoas.105 Para Novaes,
existem três principais mudanças no campo brasileiro da atualidade:
“diminuição percentual de católicos (de 83,76% em 1991 para 73,77% em 2000),
crescimento dos evangélicos (de 9,05% em 1991 para 15, 45% em 2000) e aumento
dos “sem religião” (de 4,8% em 1991 para 7,4 % em 2000) (...) em cinquenta anos
houve o crescimento na ordem de 52%”.106

De acordo com Rodrigues, tal crescimento tem relação direta com a garantia do estado
democrático de direito à liberdade religiosa;107 para Conceição, o crescimento do ateísmo tem
como principal fato o “grande estremecimento que o “terrorismo confessional” e as guerras
étnico-religiosas provocaram”.108 Diante da relevância dessa temática, o presente trabalho
pretende destacar o ateísmo como o seu principal objetivo de estudo, acreditando que poucos
estudiosos no Brasil debruçam sobre o tema.
Em relação às disputas de espaços públicos, muitas são as pesquisas que versam sobre
a ascensão de grupos protestantes e a reação de elementos católicos, em um embate com foco
religioso na disputa pelo controle de certos mecanismos para manutenção de poder. Tendo em
mente que as sociedades ateístas já ocupam seu espaço no debate em âmbito público,
notadamente a ATEA (Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos), essa pesquisa se dedica
a investigar suas estratégias, alcances e reações de outros setores da sociedade.
Antes de continuar o trabalho, cabe uma reflexão sobre o conceito de espaço público
proposto. Em Silva, vemos que para Habermas a “esfera pública” é burguesa, surgindo de
uma esfera pública literária que existia nas cidades, salões, cafés e outros espaços de
convivência. O autor vê na publicidade um elemento chave para a manutenção e difusão dessa
esfera, na medida em que o público começa a se interessar pelos assuntos privados. Habermas
traz para a discussão a crítica como instrumento de modernidade, sendo ela um dos principais

104
AUTRAN (2012, pp. 2)
105
Ibid (pp. 3).
106
NOVAES (2004, pp. 211)..
107
RODRIGUES (2011, pp. 50).
108
CONCEIÇÃO (2010, pp. 13).
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princípios do Iluminismo – essa afirmação se dá na razão em que a arte, para se estabelecer na


sociedade do século XVIII, necessitava de uma crítica, tornando assim a crítica uma
legitimação das manifestações culturais. A partir dessas críticas surge a imprensa de opinião,
na medida em que a imprensa passa a não ser apenas meramente informativa, passando a ser
também um canal de diálogo entre os jornais e a população. Para o autor, é nessa dinâmica
que se desenvolve uma consciência política pública baseada na família patriarcal burguesa –
essa esfera procura ser, então, universal e genérica. Porém, de acordo com Ortega, a visão de
Habermas foi alvo de muitas críticas, pois, entre outros, acreditava que a identidade já estava
formada antes da entrada do indivíduo na esfera pública, não levando assim em consideração
as ações e a formação de identidades que o espaço público permite. Ortega cita Arendt
quando a autora afirma não ser possível construir uma esfera pública única, pois ela é
múltipla:
“O espaço público se apresenta sempre sobre uma multiplicidade de aspetos, o qual
só com o triunfo das determinações biológicas ou dos processos econômicos aparece
como singular. Ou seja, o fim do mundo compartilhado, do espaço dos assuntos
humanos, aparece no momento em que ele é visto sob um aspecto particular e não na
sua multiplicidade (...) não existe nenhum local privilegiado para a ação política, isto
é, existem múltiplas possibilidades de ação, múltiplos espaços públicos que podem
ser criados e redefinidos constantemente, sem precisar de suporte institucional,
sempre que os indivíduos se liguem por meio do discurso e da ação (...)”.109

Nesse sentido, temos espaços públicos múltiplos, pois não existe mais um senso
comum – embora a ATEA utilize múltiplos espaços como a internet, propagandas em
outdoors e ônibus, ações judiciais para que suas ações sejam notadas, nesse trabalho a
propaganda em outdoor será privilegiada. Dentro desse contexto, o crescimento do ateísmo
atinge o espaço público e encontra eco no Brasil na ATEA. Criada por Daniel Sottomaior,
Alfredo Spínola e Maurício Palazzuoli em 31 de agosto de 2008, sendo presidida por
Sottomaior, reunindo cerca de 17000 associados (dados de janeiro de 2016), sendo seu
objetivo a “luta contra a discriminação que os ateus sofrem na sociedade brasileira e pela
verdadeira laicidade do estado”, afirmando ser a maior associação pela defesa do estado laico
da América Latina.110
Nesse sentido, a questão da laicidade do estado torna-se uma chave importante para
entender as estratégias da ATEA na defesa do ateísmo no espaço público. Porém, é necessário

109
ORTEGA (2001, pp. 227).
110
Ver https://www.atea.org.br/sobre/, acesso em 17 de fevereiro de 2017.
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estabelecer algumas diferenças e confluências entre secularização e laicidade, começando pela


clássica teoria weberiana. Conforme demonstra Araújo, a secularização e o desencantamento
do mundo são processos majoritariamente modernos e similares, embora não sejam
exatamente.111
Para Araújo, “O processo de desencantamento caracteriza-se pela racionalização das
atividades religiosas. Essa racionalização concretiza-se com a ética desenvolvida pelo
puritanismo ascético (...)”.112Isso ocorre, segundo Weber, conforme algumas seitas de origem
protestante, em especial as batistas e calvinistas, procuram desvalorizar os sacramentos,
impondo assim ao mundo e ao seu estilo de vida uma visão radicalmente racional,
desmistificando o mundo. Dessa maneira, “a ética puritana ascética acaba provocando
também o desencantamento e racionalização do mundo. As ações orientar-se-iam, a partir de
então, ainda que não plenamente, por uma instrumentalização moderna”.113 Para Ranquetat
Júnior, a secularização é um
“(....) fenômeno histórico-social da secularização está intimamente relacionado com
o avanço da modernidade. O direito, a arte, a cultura, a filosofia, a educação, a
medicina e outros campos da vida social moderna se baseiam em valores seculares,
ou seja, não religiosos. As bases filosóficas da modernidade ocidental revelam uma
concepção de mundo e de homem dessacralizadora, profana que contrasta com o
universo permeado de forças mágicas, divinas das sociedades tradicionais e
primitivas”. 114

Porém, para Berger, a ideia que o mundo moderno seja secularizado é um erro – o
autor vai além, afirmando que em alguns locais o encantamento é ainda mais forte que no
passado.115 O autor destaca existir na sociologia uma “teoria da secularização”, que recebeu
especial destaque entre os anos 50 e 60, onde as ideias principais são oriundas do Iluminismo.
Segundo Berger, o erro da “teoria da secularização” está justamente em sua base: a
modernidade, na concepção do autor, não levou ao declínio da religiosidade na mentalidade e
sociedade. Sua afirmação se baseia no fato de que, mesmo que algumas religiões
institucionais tenham perdido poder, a religião permanece atuante na sociedade e na vida
cotidiana, além de “ainda desempenhar um papel social ou político mesmo quando muito

111
ARAÚJO (2003, pp. 2).
112
Ibid.
113
Ibid (pp. 3).
114
RANQUETAT JÚNIOR (2008, pp. 2)..
115
BERGER (2000, pp. 10).
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poucas pessoas confessam ou praticam a religião que essas instituições representam”.116


Diante dessas questões, o processo de secularização parece ser melhor definido por Hervieu-
Lèger. Segundo a autora, a secularização não é apenas a restrição da religiosidade para a
esfera privada, já que
“ela combina (...) a perda de influência dos grandes sistemas religiosos sobre uma
sociedade que reivindica sua plena capacidade de orientar ela mesma seu destino, e a
recomposição, sob uma forma nova, das representações religiosas que permitiram a
esta sociedade pensar a si mesma autônomas”.117

Dessa maneira, a secularização não pode ser vista como o “fim da religião”, mas como
um processo onde o mundo, embora esteja racionalizado, ainda abre espaço para diversas
formas de religião. Nesse sentido, as religiões ainda têm seu espaço, mesmo que virtualmente
restrita ao espaço privado. A questão da religiosidade na modernidade será retomada em outro
momento, sendo importante agora colocar em pauta a questão da laicidade, demonstrando
como a mesma difere de forma importante da ideia de secularização.
Giumbelli destaca ainda a multiplicidade de possibilidades, sendo essa uma realidade
também entre os cientistas sociais. Segundo o autor, a laicidade
“A laicidade (...) ora é compreendida como uma ideologia (...) ou como um
posicionamento no âmbito de debates que envolvem o lugar da religião na esfera
pública (...) ora é compreendida como uma configuração por meio da qual se
definem as relações entre aparatos estatais ou espaços públicos e agentes religiosos,
bem como as relações entre os próprios agentes religiosos entre si e com outros
atores sociais (...) a laicidade é entendida basicamente como uma limitação”.118

Em Ranquetat Júnior, temos a afirmação que a laicidade “é sobretudo um fenômeno


político e não um problema religioso. É o Estado que se afirma e, em alguns casos, impõe a
laicidade (...) é uma noção que possui caráter negativo, restritivo (...)”.119 Dessa maneira,
podemos ver que a laicidade é basicamente uma “imposição” do Estado em relação a religião,
tendo como característica um caráter restritivo, conforme concordam Giumbelli e Ranquetat.
Continuando, segundo Ranquetat,
“pode ser compreendida como a exclusão ou ausência da religião da esfera pública.
A laicidade implica a neutralidade do Estado em matéria religiosa. Esta neutralidade
apresenta dois sentidos diferentes, o primeiro já destacado acima: exclusão da
religião do Estado e da esfera pública (...) O segundo sentido refere-se à

116
BERGER (2010, pp. 10).
117
HERVIEU-LÉGER (2015, pp. 37).
118
GIUMBELLI (2014, pp. 169).
119
RANQUETAT JÚNIOR (2008, pp. 3).
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imparcialidade do Estado com respeito às religiões, o que resulta na necessidade do


Estado em tratar com igualdade as religiões”. 120

Dessa maneira, é possível compreender que os conceitos de secularização e laicidade


têm diferenças fundamentais entre si. Enquanto secularização é um processo intimamente
ligado com a modernidade e com a ideia de “desencantamento” do mundo, embora também
tenha substanciais diferenças, a laicidade se coloca como um fenômeno onde o Estado toma
para si a questão da penetração da religião na esfera pública. Nesse sentido, se coloca em
debate se o estado laico seria aquele que toma uma atitude neutra em relação às religiões, ou
aquele que proíbe a exibição de símbolos e aparatos religiosos em locais públicos. Assim
sendo, a ausência total da religião no espaço público norteia o entendimento da ATEA sobre
laicidade e é nesse sentindo que a instituição age em sua militância. Em contrapartida, existe
um discurso que propõe a laicidade como multiplicidade, conforme todas as religiões podem
ter acesso ao espaço público, sendo assim legítima a presença de símbolos religiosos em
repartições públicas e políticos associados abertamente a uma confissão religiosa.
Nesse sentido, é possível verificar o conflito entre a perspectiva de laicidade defendida
pela ATEA e a defendida por grupos religiosos e, no caso específico deste exemplo, pelo
estado brasileiro. Em 2007, ainda antes de fundar a instituição, o atual presidente da ATEA
Daniel Sottomaior “moveu quatro pedidos de providência ao Conselho Nacional de Justiça
(CNJ) requerendo a retirada de crucifixos afixados em salas de tribunais”, sendo essa medida
direcionada mais especificamente nos “plenários e salas de tribunais de justiça do Ceará,
Minas Gerais, Santa Catarina e do Tribunal Regional Federal (TRF) da 4ª região”.121 Segundo
Sottomaior, a presença desses símbolos religiosos fere o artigo 19, inciso I, da Constituição
Federal de 1988, que versa sobre a laicidade do Estado. Diante disso, o conselheiro Oscar
Argollo e demais membros do CNJ indeferiram o pedido, baseados no seguinte argumento
“a presença do crucifixo nos tributos não representa uma forma de discriminação ou
constrangimento àqueles que seguem outras confissões religiosas (...) ouso discordar
da proposta (...) até porque, a meu juízo, inócua face à cultura cristã brasileira – para
votar no mérito, no sentido da total improcedência da pretensão”.122

Ainda nessa perspectiva, é possível notar grupos religiosos afirmando que “os
crucifixos (...) são a história e a formação da nação que estão ali representados (...)

120
RANQUETAT JÚNIOR (2008, pp. 3).
121
GIUMBELLI (2013, pp. 67).
122
Ibid. (pp. 68).
180
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arregimentam valores necessários à justiça e à legislatura (...)”,123 reduzindo assim seu


impacto religioso, afirmando assim o entendimento múltiplo da ideia de laicidade.124 Além
disso, uma atenção especial pode ser conferida ao termo “cultura cristã brasileira”, defendida
por Argollo para indeferir os pedidos de Sottomaior. É possível identificar através disso a
tentativa de estabelecer uma cultura ativamente influenciada pelo cristianismo, sendo essa
uma dinâmica inerente à formação do Brasil. Dessa maneira, é dever do estado laico permitir
e tolerar múltiplos símbolos religiosos, pois a obrigatoriedade de retirá-los seria entendida
como intolerância religiosa.125
Dessa maneira, é possível compreender a dificuldade de definição do conceito de
laicidade, além de evidenciar as diferentes interpretações que ocorrem entre a ATEA e as
forças do estado brasileiro, que parecem ir de acordo com o significado proposto por grupos e
instituições religiosas. Os casos judiciais onde a instituição teve seu pedido indeferido sob a
afirmação de uma cultura brasileira cristã e baseado na afirmativa que, em alguns casos, o
símbolo religioso é meramente uma representação cultural, parecem atestar essa afirmativa.

ATEÍSMO OU ATEÍSMOS? O ATEÍSMO COMO FENÔMENO DA


MODERNIDADE
Embora o debate sobre a questão do estado laico proposta acima seja de suma
importância, é necessário discutir o próprio ateísmo, iniciando por uma pergunta
aparentemente simples: o que é o ateísmo? Segundo Abbagnano, o ateísmo é “em geral, a
negação da casualidade de Deus”.126 Nessa afirmação, a palavra “casualidade” merece grande
destaque, pois posteriormente o autor afirma que é possível ser ateu e acreditar em Deus, “se
não incluir também o reconhecimento da causalidade específica de Deus”.127 Essa afirmação
já demonstra, por si só, as dificuldades em estabelecer um consenso sobre o assunto.
Segundo Hervieu-Lèger, a grande questão da modernidade e religião se funda na
seguinte situação: na contemporaneidade ocidental, a religião perdeu seu status de reguladora
inquestionável do indivíduo e da sociedade. Para a autora, as sociedades modernas encaram a
religião como um assunto pessoal, onde nenhuma autoridade, seja ela religiosa ou política,

123
GIUMBELLI (2013, pp. 49).
124
Ibid. (pp. 53).
125
Ibid. (2014, pp. 134).
126
ABBAGNANO (2007, pp. 88).
127
Ibid
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pode impor: “essa distinção dos domínios se insere na separação entre esfera pública e esfera
privada que é a pedra angular da concepção moderna de política”.128
Assim sendo, a religião se volta para o privado, mas Hervieu-Lèger destaca o que a
mesma chama de “o grande paradoxo das sociedades ocidentais” – embora a religião esteja
“renegada” à esfera privada, como visto anteriormente, as sociedades ocidentais extraem da
religião parte de suas “representações do mundo e seus princípios de ação”.129 Diante disso,
Hervieu-Léger propõe uma outra reflexão sobre o fenômeno religioso na modernidade:
“Falou-se, muito equivocadamente, de “retorno da religiosidade” (...) é necessário
ter entendido que a secularização não é, acima de tudo, a perda da religião no mundo
moderno. É o conjunto de processos de reconfiguração onde o motor é a não
satisfação das expectativas que ela suscita, e onde a condição cotidiana é a incerteza
ligada à busca interminável de meios de satisfazê-las (...) não é a indiferença com
relação à crença que caracteriza nossas sociedades. É o fato de que a crença escapa
totalmente ao controle das grandes igrejas e das instituições religiosas”.130

Dentro dessa perspectiva, Araújo demonstra que a concepção tradicional de religião


defendida por Durkheim não parece mais dar conta da religiosidade como se apresenta
atualmente. Segundo o autor, a religião para Durkheim está muito ligada com a ideia de
institucionalização e separação entre sagrado e profano,131 mas a própria configuração da
religião na modernidade, conforme demonstrou Hervieu-Lèrger, destoam dessa lógica. Assim
sendo, a própria definição de religião parece sofrer uma série de questionamentos e o ateísmo
não escapa dessa dinâmica, sendo mais adequado se referir a “ateísmos” que a “ateísmo”. O
ateísmo contemporâneo não adota uma forma monolítica, mas assume uma característica
multifacetada, plural, por vezes paradoxal, típico dos fenômenos religiosos modernos.
Assim, em um primeiro momento, o conceito de “neo-ateísmo” se torna relevante na
medida em que o ateísmo contemporâneo dito “militante”, passou a assim ser chamado. Além
disso, uma série de autores e grupos religiosos entendem essa como a única maneira de se
interpretar o fenômeno ateísta na atualidade, bem como seu crescimento. Assim sendo, o
“neo-ateísmo” será privilegiado em primeiro momento pelo fato da ATEA se enquadrar,
aparentemente, nessa lógica.
De acordo com Santos, autores como Richard Dawkins e Sam Harris, são líderes de
um movimento cultural que pode ser conhecido como “novo ateísmo”. Uma das

128
HERVIEU-LÉGER (2015, pp. 34).
129
Ibid. (pp. 35).
130
Ibid. (pp. 41-42)
131
ARAÚJO (2003, pp. 5).
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características desse fenômeno é sua militância pública e ativa, tendo como principais
objetivos a inserção do ateísmo no espaço público e o debate sobre a laicidade do Estado.
Santos afirma ainda que esse movimento cresce no Brasil de forma constante, citando as
traduções cada vez mais frequentes de livros ateus, além do fato de constantemente figurarem
nas listas dos livros mais vendidos em jornais e revistas de grande circulação no Brasil.132
Para alguns autores, esse fenômeno está longe de ser alguma doutrina filosófica ou propor
reflexões acerca do ateísmo ou religião. De acordo com Lopes, o “neo-ateísmo” é
caracterizado por um “evidente ímpeto evangelizador”, de caráter militante, que “vocifera”
contra a fé, religião e religiosos, onde tal militância ocorre principalmente na internet, através
de sites e mídias sociais.133 Nesse sentido, a instituição se insere na lógica “neo-ateísta”, não
sendo um esforço de caráter ou resposta de caráter individual, mas um empenho sistemático e
coletivo com o objetivo de propagar o ateísmo, utilizando como espaço privilegiado o virtual,
disputando assim o espaço público de forma ativa com grupos e pessoas religiosas no geral.
Porém, longe de atuar apenas no espaço virtual, a ATEA tem uma série de outros
mecanismos. Para Mota,
“o importante dessa nova linha de raciocínio não é a elaboração de argumentos
sofisticados contra o pensamento teísta, mas sim algo de militante que se vale dos
modernos meios de comunicação (...) visa aos indivíduos partidários da fé comum,
onde ocorre uma reciclagem de argumentos clássicos contrários à religião (...) o
campo privilegiado é a experiência, particularmente os lugares onde a religião, de
algum modo, produziu ou fomentou certos tipos de disputa e de violência (...)
combate a religião em duas frentes (...) aponta para os erros comuns de atribuição da
origem e governo do mundo a um ser superior; e, em perspectiva para os males
históricos e atuais causados pela fé, alterando o processo natural da evolução
política”. 134

A ATEA E AS CAMPANHAS DE OUTDOOR


A Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos, ATEA, apareceu na mídia com algum
destaque em 2010. Nessa ocasião, a associação vinculou em ônibus de algumas das principais
capitais no Brasil quatro mensagens de cunho ateu, cujo o mote era "Diga não ao preconceito
contra ateus". Segundo o site da associação
“campanha dos ônibus não procura fazer desconversões em massa. Nossos objetivos
são conseguir um espaço na sociedade que seja proporcional aos nossos números,
diminuindo o enorme preconceito que existe contra ateus, e caminhar rumo à

132
SANTOS (2015, pp. 10-11).
133
LOPES (2014, pp. 14).
134
MOTA (2010, pp.7-8).
183
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igualdade plena entre ateus e teístas, que só existe quando o Estado é


verdadeiramente laico – o que está muito, muito longe de acontecer”. 135

A ideia foi inspirada em uma iniciativa da British Humanist Association,136 que no ano
de 2008 lançou uma campanha com intenção de arrecadar fundos para vincular uma série de
propagandas com mensagens ateístas em ônibus, outdoors e metrôs. Segundo o site da ATEA,
a campanha foi um grande sucesso, arrecadando muito mais do que o previsto.137 Tamanho
foi o sucesso, que a iniciativa foi adotada por associações nos EUA e Espanha, sendo proibida
em países como Itália e Austrália.138
No Brasil, a campanha começou a arrecadar fundos em 2009, conseguindo o valor de
R$ 10.000 no fim de 2010, sendo que metade desse valor foi doado por uma pessoa anônima.
A ideia inicial, conforme pode ser vista no site, era vincular tal campanha no metrô de São
Paulo, porém a ideia foi vetada pelo seu conteúdo ser considerado polêmico. Posteriormente,
tentou-se lançar a campanha em outdoors de São Paulo, mas a companhia de mídia também
vetou a ideia, pela mesma razão. A mesma situação ocorreu também em Salvador, Porto
Alegre e Florianópolis. Segundo Sottomaior,
“as seguidas recusas de prestação de serviço são uma confirmação contundente da
força o preconceito contra os ateus, e da necessidade de acabar com ele. Nossas
peças nada têm de ofensivas, e o teor de suas críticas empalidece frente às copiosas
afirmações dos livros sagrados de que ateus são odiosos, cruéis, maus e devem ser
eliminados. Existe um duplo padrão em ação aqui”.139

Em sua defesa, a empresa de Salvador afirmou que vincular a propaganda seria um


descumprimento do decreto municipal Nº 12.642 de 28 de abril de 2000. Em Porto Alegre, a
Agência de Transportes Públicos informou que a ex53ibição violaria o decreto municipal
11.460, de 1996. 140
Veja as imagens da campanha:

135
http://www.atea.org.br/campanhas-de-outdoors/, acesso em 17 de fevereiro de 2017.
136
Para maiores informações, consultar https://humanism.org.uk, acesso em 17 de fevereiro de 2017.
137
Segundo o site da ATEA, a campanha pretendia inicialmente arrecadar £5.500, mas conseguiu arrecadar o
valor de £135.000. Disponível em:
http://www.atea.org.br/campanhas-de-outdoors/, acesso em 17 de fevereiro de 2017.
138
Para maiores informações, consultar http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2010/12/844028-empresas-
barram-campanha-publicitaria-que-questiona-existencia-de-deus.shtml, acesso em 17 de fevereiro de 2017.
139
Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2010/12/844028-empresas-barram-campanha-
publicitaria-que-questiona-existencia-de-deus.shtml, acesso em 17 de fevereiro de 2017
140
Ambos os decretos podem ser vistos no site da ATEA. Disponível em: http://www.atea.org.br/campanhas-de-
outdoors/, acesso em: 17 de fevereiro de 2017.
184
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Figura 1

Em 2014, a ATEA vinculou novamente em outdoors outra campanha. Lançada em 05


de setembro, essa iniciativa demonstra uma mudança de foco importante: abandonando

185
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imagens e mensagens que evidenciam as experiências negativas religiosas, a campanha


concentrou-se ainda mais na defesa do estado laico. As quatro mensagens podem ser vistas:

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Figura 2.
Torna-se evidente a mudança de estratégia da ATEA em suas campanhas publicitárias:
abandonando o tom “belicoso”, a associação se coloca como uma defensora do estado laico.
Diferente do que ocorreu em 2009, a ATEA não teve maiores problemas com as agências
publicitárias, conseguindo exibir as peças em Porto Alegre, Florianópolis, Santo André, São
Bernardo do Campo, Belo Horizonte, São Luís e Rio de Janeiro. De acordo com o site da
associação, a iniciativa foi realizada com dinheiro de doações, contemplando os dois focos da
ATEA: o fim do preconceito contra Ateus e agnósticos e a defesa da laicidade do Estado.
A escolha da data, 05 de setembro de 2014, teve um objetivo, conforme o site indica.
Lançada em período eleitoral, tal campanha se justifica, de acordo com a instituição, pelo fato
de que em épocas de eleição ficar “ainda mais clara a mistura entre política e religião”. Em
relação ao preconceito, a instituição mostra dados de uma pesquisa de opinião.141 Tal pesquisa
afirma que os ateus estão no “no topo da escala de rejeição no país, despertando repulsa ou
ódio em 17% da população e antipatia em outros 25%. O preconceito tem importante reflexo
eleitoral (...) barra qualquer representação política do ateísmo”. Ainda no mesmo texto, a
ATEA faz uma reflexão sobre o preconceito:
Com relação ao preconceito, sabemos que ele está intimamente ligado à
desumanização do outro. A discriminação sempre se baseia na ideia da inferioridade
do outro, e por isso é vital mostrar o que o discriminador tem em comum com o
discriminado. Para o preconceito étnico, são usuais as mensagens do tipo “somos
todos humanos”. Inspirados nessa ideia, utilizamos a clássica frase “Somos todos
ateus com os deuses dos outros”, com destaque na primeira sentença. Mostrar que
somos iguais quebra a lógica do preconceito – e de quebra, faz uma importante
crítica ao teísmo. A campanha não estaria completa sem uma breve explicação sobre
quem somos, e para esse fim foi escolhido o slogan “Ateísmo: uma relação pessoal
com a realidade”.142

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Conforme pode ser visto, o ateísmo moderno é um fenômeno de definição
problemática, assim como a própria concepção de religião. Imerso na modernidade, pode ser
visto sob diversos prismas. O “neo-ateísmo”, termo cunhado de forma pejorativa e geralmente
empregado para diminuir as experiências e mobilizações em prol do ateísmo, pode ser
considerado apenas um entre muitas “outras formas” de ateísmo. Apenas como exemplo,

141
Embora a fonte não seja citada, tal pesquisa pode ser encontrada no site
http://www.paulopes.com.br/2009/05/ateus-e-usuarios-de-drogas-sao-os-mais.html, acesso em 17 de fevereiro de
2017.
142
Disponível em: http://www.atea.org.br/campanhas-de-outdoors/, acesso em 17 de fevereiro de 2017.
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existem grupos que afirmam ser ateus, mas mesmo assim pertencem a alguns sistemas
religiosos como hinduísmo e budismo;143 em Portugal e Costa, e possível encontrar outro
exemplo bastante esclarecedor. Analisando as teorias de Michel Onfray e André Comte-
Sponville, dois escritores ateus franceses, é possível perceber a multiplicidade das definições
de ateismo:
“[Onfray] entende que a religião é, ao mesmo tempo, um atentado à inteligência, um
sinal de imaturidade psicológica e uma falta de coragem de enfrentar a realidade (...)
[Comte-Sponville] se declara ateu porque entende que as religiões são
desnecessárias e que Deus não existe [no entanto] declara serem imprescindíveis a
comunhão e a fidelidade, historicamente possibilitadas pela religião, e sustenta que o
ateísmo não implica deixar de viver uma espiritualidade (...)”.144

Esses três rápidos exemplos já demonstram que o fenômeno ateu não é unívoco e,
enquadrá-lo em uma lógica “neo-ateísta”, pelo que parece, não contempla a experiência
ateísta moderna como ela se demonstra: plural, paradoxal, dinâmica, como se desenha a
própria religiosidade contemporânea. Além disso, afirmar que a realidade ateísta se baseia
apenas em uma concepção pautada pela experiência e que “vocifera” contra as religiões,
parece ser insuficiente para entender o próprio fenômeno “neo-ateísta”: a própria ATEA
demonstra em sua campanha pública de 2014 uma abordagem menos agressiva, tanto no
sentido que recrutar mais seguidores utilizando o discurso da razão e da defesa do Estado
laico, quanto na tentativa de uma reflexão sobre o papel do “outro” na sociedade. Defendendo
uma concepção estrita o Estado laico, lutando em prol das minorias ateístas, vinculando
campanhas e propagandas em seus canais virtuais, a associação cresce a cada dia – sua página
no Facebook possui mais de 600.000 curtidas, com postagens diárias e uma intensa
movimentação dos internautas.

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143
AUTRAN (2012, pp.2).
144
PORTUGAL, Agnaldo; COSTA, Abraão. O Ateísmo Francês Contemporâneo: uma comparação crítica entre
Michel Onfray e André Comte-Sponville. (2010, pp. 129 e 133).
188
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O Shinto como Obstáculo: Notas de Lafcadio Hearn sobre as Missões Cristãs no Japão
da Era Meiji
Edelson Geraldo Gonçalves145
Resumo: Essa comunicação tem como objetivo apresentar as opiniões de Lafcadio Hearn
sobre as chances de cristianização do Japão no final do século XIX e início do século XX.
Esse escritor que também trabalhou como professor no Japão da Era Meiji apresenta em seus
escritos (principalmente nos livros Kokoro e Japan: An Attempt at Interpretation) uma
opinião heterodoxa sobre as tentativas de missionários de ganharem terreno para o
Cristianismo no Japão. Segundo seu ponto de vista, a religião Shinto (ou xintoísmo); que era
considerada pela maioria dos missionários e estudiosos como uma forma de paganismo
incompatível com uma nação moderna, e por isso em vias de desaparecer; seria na verdade o
maior obstáculo para a cristianização do Japão. Em sua opinião o exclusivismo do
Cristianismo inviabilizaria seu sucesso entre o povo japonês, uma vez que o Shinto estaria na
base da organização familiar e política do Japão, e abrir mão dessa religião significaria minar
as bases de toda uma civilização.
Palavras chave: Lafcadio Hearn, Shinto, Missões Cristãs, Japão, Era Meiji.

The Shinto as Obstacle: Lafcadio Hearn Notes on the Christian Missions in Meiji Era
Japan
Abstract: This communication aims to present the views of Lafcadio Hearn on the chances
for Christianization of Japan in the late nineteenth and early twentieth century. This writer
who also worked as a teacher in Japan of the Meiji Era presents in his writings (especially in
the books Kokoro and Japan: An Attempt at Interpretation) a heterodox opinion on the
attempts of missionaries to gain ground for Christianity in Japan. In his view, religion Shinto;
which was considered by most missionaries and scholars as a form of paganism incompatible
with a modern nation, and thus on the way to disappearing; was in fact the greatest obstacle to
the Christianization of Japan. In his opinion, the exclusiveness of Christianity would make it
unfeasible for the Japanese people, since Shinto would be the basis of Japan's family and
political organization, and giving up that religion would mean undermining the basis of a
whole civilization.
Keywords: Lafcadio Hearn, Shinto, Christian Missions, Japan, Meiji Era.

Introdução
Esta comunicação tem como objetivo analisar a percepção do escritor greco-irlandês
Lafcadio Hearn sobre as tentativas de cristianização levadas a frente por missões organizadas
pelas mais variadas vertentes cristãs, assim como por iniciativas individuais no Japão do
período Meiji (1868-1912).

145
Mestre e doutorando em História Social das Relações Políticas pela Universidade Federal do Espírito Santo
(UFES). Bolsista pela Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Espírito Santo (FAPES). E-mail:
edelsongeraldo@yahoo.com.br
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As questões norteadoras desse texto são: Quais são as opiniões de Hearn sobre as
missões cristãs no Japão? Quais foram as conclusões que o autor registrou em seus escritos
após observar tal cenário, e porque chegou a tais conclusões?
A relevância das observações de Lafcadio Hearn se deve não apenas ao fato de ser
uma testemunha de época, mas também pelo fato de ser um renomado autor do campo dos
estudos japoneses, ou japonologia, ramo do orientalismo que estuda a cultura japonesa.
As fontes principais dessa comunicação são os ensaios Some Thoughts About Ancestor-
Worship (Alguns Pensamentos sobre o Culto aos Ancestrais) contido no livro Kokoro
(Coração) (1896), e o livro Japan: An Attempt at Interpretation (Japão: Uma Tentativa de
Interpretação) (1904). O primeiro texto contém, como sugere o título, observações de Hearn
sobre o culto aos ancestrais no Japão, ou mais especificamente, o Shinto ou Xintoísmo,
abordando suas características; então um tópico pouco conhecido pelo público ocidental, e
comentando suas chances de sobrevivência no mundo moderno, um cenário que o senso
comum acreditava favorecer o Cristianismo. O segundo texto é o livro que sintetizou a
erudição e as interpretações de Hearn sobre a cultura japonesa, sendo essa obra fortuitamente
concluída pouco antes de sua morte. Nesse texto entre outros assuntos Hearn dá ênfase a
importância do Shinto para a organização social japonesa, e também comenta sobre as
chances do Cristianismo no país, no passado e no momento em que o livro foi escrito.

Lafcadio Hearn e a Era Meiji


O escritor greco-irlandês Lafcadio Hearn (1850-1904), um intelectual leigo de
educação jesuíta, que fez carreira como jornalista, tradutor e escritor nos EUA. Em 1890
partiu para o Japão com o projeto de fazer estudos sobre a cultura japonesa.
Uma vez no Japão Hearn adquiriu a cidadania do país, constituiu família e trabalhou
como professor (nos níveis médio e superior) e jornalista, enquanto conduzia suas pesquisas
sobre a cultura japonesa, que renderam quatorze livros, compostos de ensaios, relatos de
viagem e contos.
Lafcadio Hearn chegou ao Japão em 1890, o ano 22 da Era Meiji, período histórico
iniciado em 1868, com o fim do regime político anterior, o Shogunato Tokugawa, e a
restauração do poder do Imperador, figura afastada do governo efetivo do império desde
1185, quando iniciou-se o Shogunato, que teve a família Minamoto como primeira dinastia.

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Esse processo foi chamado de Restauração Meiji, que iniciou um novo modelo de governo,
que veio acompanhado de medidas modernizantes que visavam tornar o Japão “civilizado”,
aos olhos das potências industriais do século XIX.
Essas medidas modernizantes (igualdade legal, educação universal, conscrição,
sistema de saúde, voto censitário, etc.) visavam reverter a situação na qual o Japão se
encontrava desde 1854, ano da abertura dos portos japoneses às nações estrangeiras, em que o
Shogunato; ameaçado pelo poderio militar moderno dos EUA e outros países, foi sujeitado à
uma série de tratados desiguais, sendo obrigado a conceder direito de extraterritorialidade a
estrangeiros e abrir mão do controle das taxas tarifárias (GORDON, 2003, p. 50).
Herdeiro da situação do Shogunato Tokugawa, o governo Meiji buscou fazer o
possível para reverter esse cenário, adotando para isso as medidas modernizantes já
mencionadas, tentando também a ocidentalização dos costumes, com ações como o
encorajamento do individualismo, liberalismo e cristianismo, mudanças na aparência
(vestuários e cortes de cabelo ocidentais) e na alimentação (consumo de carne) (SANSOM,
1951, p. 378). Essas atitudes buscavam fazer o Japão ser visto como civilizado pelas potências
ocidentais, na esperança que isso viabilizasse a revisão dos tratados desiguais (BURUMA,
2003, p. 33-34).
No entanto tal objetivo não foi alcançado, e a modernização de tipo ocidentalizante
que se projetara no início da era Meiji começou a perder fôlego a partir da década de 1880,
dando lugar na década de 1890 a um projeto de modernização conservadora, com ênfase no
nacionalismo e na valorização das tradições (BURUMA, 2003, p. 34).

O Cristianismo no Japão
O processo de abertura do final do Shogunato dava fim a um longo período de
isolamento do Japão em relação ao ocidente, desde que em 1639 toda a presença europeia
(com exceção dos holandeses) foi banida do Império, em virtude do temor que o Shogunato
tinha de perder sua soberania em meio às interferências de disputas estrangeiras, como as
querelas comerciais entre portugueses, espanhóis, holandeses e britânicos; ou as disputas
religiosas entre católicos e protestantes, ou mesmo entre diferentes ordens católicas (jesuítas e
franciscanos) (SAKURAI, 2008, p. 123). Somava-se a isso também o conhecimento do
alcance não apenas religioso, mas também político da igreja católica, e seu papel nas

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colonizações ao redor do mundo, o que levava a suspeita de que as missões religiosas


poderiam ser também a ponta de lança para uma invasão estrangeira (YAMASHIRO, 1989, p.
69). Esse temor foi despertado principalmente pela grande adesão ao cristianismo dos
japoneses que tiveram contato com missionários estrangeiros, levando ao receio pelos
governantes de que os convertidos japoneses escolhessem priorizar sua lealdade à nova
religião, ao invés do Shogunato (YAMASHIRO, 1989, p. 74). Esses temores, apoiados em
pretextos de desordem social, levaram à proibição das missões cristãs e finalmente ao
fechamento do Império não apenas proibindo a presença de europeus e seus produtos, como
também proibindo a saída de japoneses e interditando o retorno daqueles que já estavam no
exterior (SAKURAI, 2008, p. 123-124).
O processo de repressão ao cristianismo e exclusão dos europeus, assim como a
manutenção dessas medidas levaram as autoridades japonesas a atos de notável violência,
como a execução de 26 cristãos (entre eles nove europeus) em Nagasaki, em 1597, e o
bombardeio do navio americano Morrison (que buscava negociações com os japoneses) em
1837 (GORDON, 2003, p. 48; YAMASHIRO, 1989, p. 73).
O Cristianismo retornou formalmente ao Japão apenas após a Restauração Meiji.
Proibido desde o século XVII por ser considerado “uma seita corrupta” (CHAMBERLAIN,
2014, p. 241), foi legalizado em 1873 e ganhou adeptos entre a população urbana,
principalmente entre as elites, e embora estes cristãos fossem poucos (menos de 1% da
população), exerceram um papel de importância desproporcional a seu número no cenário
cultural e político do período Meiji, como apologistas do individualismo ou mesmo líderes de
movimentos trabalhistas e socialistas quando estes se iniciaram (GORDON, 2003, p. 110).
O cristianismo também foi objeto de propostas radicais para a modernização, como
por exemplo os argumentos de Tsuda Mamichi (1829-1903) em 1873 e de Fukuzawa Yukichi
em 1883 para a adoção do cristianismo como religião oficial do Estado japonês (o primeiro
por acreditar que esse era a chave para o “esclarecimento” da civilização ocidental, e o
segundo por considerar que isso tiraria o Japão da posição de elemento estranho entre as
potências industriais) (AKI, 2005, p. 306-307; REITAN, 2010, p. 69-70).
Até o início da década de 1880 a maior abertura às ideias estrangeiras entre os
japoneses favoreceu a expansão do Cristianismo, contudo mesmo assim seu alcance foi
limitado. Isso pode ser atribuído a persistência de antigas opiniões e preconceitos sobre o

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cristianismo que vinham desde o período Tokugawa, sobretudo a de que essa religião seria
causadora de discórdia (BALLHATCHET, 2010, p. 36).
Com o fortalecimento do nacionalismo na década de 1890; apesar do Cristianismo ter
sido admitido formalmente pelo Estado como uma das principais religiões nacionais, também
foi identificado como potencial fonte de deslealdade ao país, gerando inclusive surtos de
perseguição a cristãos em ocasiões de tensão com o Ocidente, como o fim da Guerra Sino-
Japonesa (1895) e o período da Guerra Russo-Japonesa (1904-1905) (BALLHATCHET,
2010, p. 36).
Esses momentos geraram reações variadas por parte dos cristãos japoneses, como por
exemplo o caso do metodista Uchimura Kanzo (1861-1930) ocorrido em 1891 que, como
professor da prestigiada Daiichi Koto Chugakko (Primeira Escola Avançada) de Tóquio, se
negou a curvar-se frente a uma cópia do Rescrito Imperial para Educação146, episódio que
gerou grande polêmica, não apenas custando ao professor sua carreira como funcionário
público, como também iniciou uma onda de hostilidades entre nacionalistas e cristãos
(VARLEY, 2000, p. 254). Por sua vez outro cristão notável, o quaker Nitobe Inazo (1862-
1933), criticando aqueles que duvidam da lealdade dos cristãos escreve em seu livro Bushido:
“Pouco sabiam eles que podemos, num sentido, “servir a dois mestres, sem sermos fiéis a um,
ou menosprezar o outro, “dando a César o que é de César e a Deus o que é de Deus””
(NITOBE, 2005, p. 66).

Lafcadio Hearn e as Missões Cristãs


No Japão, enquanto desenvolvia seus estudos sobre a cultura local, Lafcadio Hearn
trabalhou como professor dos níveis médio e superior nas cidades de Matsue, Kumamoto e
Tóquio, e como jornalista na cidade de Kobe.
Em suas atividades profissionais no Japão Hearn sempre esteve em contato com
missionários (que atuavam como professores e jornalistas), especialmente os jesuítas, pelos
quais tinha um especial desprezo em função de toda sua educação durante a juventude ter se
dado em colégios internos jesuítas na Inglaterra e na França; ambientes que lhe causaram
muito sofrimento.

146
Documento que seria a transcrição dos desejos do Imperador em relação ao seu povo. Publicado em 1890 esse
documento “serve, desde então até o fim da II Guerra Mundial [...], de guia a formação intelectual, moral e
cívica dos súditos de sua majestade” (YAMASHIRO, 1986, p. 187).
195
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Os missionários compunham um dos grupos mais notáveis na ampla presença


estrangeira no Japão do século XIX, sendo também o grupo mais coeso nas comunidades
estrangeiras no país (BALLHATCHET, 2003, p. 35). Esses missionários, assim como muitos
ocidentais que residiam no Japão da Era Meiji, predominantemente criam não apenas que a
cristianização do Japão era possível, como que com o processo de modernização e o avanço
da educação moderna o Shinto, em todo seu primitivismo pareceria anacrônico e logo deixaria
de existir (HEARN, 1910, p. 267). Um notável exemplo desse pensamento é o do
japonologista William George Aston (p. 377), que em 1905 acreditava que “como uma
religião nacional, o Shinto está quase extinto”.
Contudo Hearn (1910, p. 267) discordava dessa possibilidade, pois julga que o
argumento do primitivismo de determinado pensamento religioso se aplica a qualquer
religião, e o Shinto e o Budismo inclusive teriam menos conflitos com as recentes descobertas
da ciência do que o Cristianismo.
Em seus estudos sobre a cultura japonesa os principais campos de interesse de Hearn
eram a religião e o folclore, e seu trabalho analítico principal, o livro Japan: An Attempt at
Interpretation, se vale de uma abordagem antropológica evolucionista, tendo a religião e o
parentesco como temas principais, sendo sua forma e conteúdo fortemente influenciados pelo
livro Cidade Antiga de Fustel de Coulanges.
Logo, assim como no mundo greco-romano analisado por Coulanges, a sociedade
japonesa na abordagem de Hearn tem suas leis e instituições políticas e sociais derivadas da
religião, mais propriamente no culto aos ancestrais do clã, que posteriormente teria evoluído
para formas mais complexas de religiosidade147 (HEARN, 1906).
Hearn (1906, p. 516) acreditava que um elemento central para uma pretensa
ocidentalização da cultura japonesa, a cristianização do país, seria improvável, pois o Shinto
estaria na base de toda a moralidade e organização social japonesa, portanto substituí-lo seria
condenar essas estruturas ao colapso, tal feito de engenharia social seria imprudente e
perigoso. E outra razão para as poucas chances do Cristianismo no Japão moderno, seria o seu
exclusivismo, uma vez que seus missionários se recusavam a dialogar com as crenças locais
(consideradas paganismo), não dando espaço então ao culto aos ancestrais, ao contrário do

147
Devemos ressaltar ainda que nas pesquisas que Hearn conduziu entre 1890 e 1904 a hipótese inicial era de
que o Budismo seria a chave para a compreensão da cultura japonesa, mas durante suas observações chegou à
conclusão de que a religião Shinto seria a verdadeira detentora desse papel.
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que fizeram os budistas para conseguir espaço nesse país, incorporando o culto aos ancestrais
e considerando que os espíritos reverenciados pelo Shinto seriam manifestações dos budas
(HEARN, 1906, p. 203-205).
De fato, as opiniões de Hearn não apenas sobre religiosidade japonesa mas sobre o
processo de modernização do país como um todo era de que essas seguiriam um rumo
próprio, sendo que o Japão não iria meramente se ocidentalizar148, e tampouco iria
permanecer apegado à pré-modernidade, em outras palavras, essa nação estaria seguindo um
rumo próprio para sua modernização, e a resistência a cristianização seria uma das
características desse caminho particular.

Considerações Finais
Por fim, respondendo diretamente às questões norteadoras dessa comunicação,
podemos chegar a conclusão de que Lafcadio Hearn tinha uma opinião negativa a respeito das
missões cristãs no Japão, não apenas por sua simpatia particular pela cultura japonesa
tradicional, mas também pelo fato de interpretar o culto aos ancestrais contido na religião
Shinto como a base de toda a organização social japonesa, julgando assim que o objetivo de
uma cristianização do Japão seria inalcançável, uma vez que por sua importância na vida
social desse país o Shinto seria um obstáculo intransponível para os missionários cristãos, e
não uma característica cultural primitiva em vias de dissolução como muitos acreditavam.
Contudo, para Hearn, mesmo que o objetivo da cristianização proposta pelos
missionários fosse alcançável, ele não seria desejável, uma vez que poderia levar ao colapso a
coesão das estruturas sociais existentes, assim como da moralidade nacional, em outras
palavras, tal mudança brusca seria extremamente perigosa.

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Intellectuals and the West. Japanese Journal of Religious Studies, Nagoia, VOL 32, Nº 2,
2005, p. 305-318.

148
O sociólogo Shmuel Noah Eisenstadt (2000, p. 1) chama de “programa cultural de modernidade” a
perspectiva dominante na segunda metade do século XIX, segundo a qual a ocidentalização seria o único
caminho para a modernização, perspectiva que contrapõe a seu próprio conceito de múltiplas modernidades, ou
seja, a ideia de que a modernidade é alcançável por vários caminhos (EISENSTADT, 2000).
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As crenças religiosas e a figura materna: uma análise de Carrie, a Estranha (EUA, 1976)

Fernanda da Silveira149
Orientadora: Dra. Solange Ramos de Andrade150

Resumo: O presente trabalho tem como objetivo analisar as crenças religiosas e a figura
materna por meio da adaptação cinematográfica norte-americana Carrie, a Estranha (1976),
produzida pela Metro-Goldwyn-Mayer Inc., sob direção de Brian De Palma e roteiro de
Lawrence D. Cohen. A fonte cinematográfica traz Carrie White (Sissy Spacek), uma garota
alvo de chacotas oriundas de outras adolescentes, que vive com sua mãe Margaret White
(Piper Laurie), uma religiosa que lhe impõe hábitos rigorosos. É a partir desta última
personagem que buscaremos identificar as crenças religiosas representadas no filme,
articulando o conceito de representação de Roger Chartier (2002) ao campo de estudo da
História das Religiões e Religiosidades, com base em Roger Caillois (1950), Mircea Eliade
(1992) e Michel de Certeau (1982). Em função da problematização metodológica do filme
enquanto documento histórico, utiliza-se Marcel Martin (2005) e Marcos Napolitano (2008).
Palavras-chave: adaptação, filme, crenças, representação.

Religious beliefs and the maternal figure: an analysis on Carrie (EUA, 1976)
Abstract: The present work has as objective, the analysis of the religious beliefs and the
maternal figure through the north-american cinematographic adaptation Carrie (1976),
produced by Metro-Goldwyn Mayer Inc., under the direction of Brian de Palma and
screenplay of Lawrence D. Cohen. The cinematographic source brings Carrie White (Sissy
Spacek), a girl victim of mockery by other teenagers, who lives with her mother Margareth
White (Piper Laurie), a very religious woman who imposes strict habits towards her
daughter. It is from this latter character that we'll seek to identify the religious beliefs
represented in the film, articulating the concept of representation of Roger Chartier (2002) to
the field of study of History of Religion and Religiosity, based on Roger Caillois (1950),
Mircea Eliade (1992) and Michel de Certeau (1982). Towards the methodological
problematization of the film as a historical document, it is used Marcel Martin (2005) and
Marcos Napolitano (2008).
Key-words: adaptation, film, beliefs, representation.

Introdução
Carrie, a Estranha é a primeira adaptação cinematográfica do romance homônimo de
Stephen King (2001)151, publicado em 1974. Produzida pela Metro-Goldwyn-Mayer Inc., sob

149
Graduanda do Curso de História da Universidade Estadual de Maringá – PR. Membro do Laboratório de
Estudos em Religiões e Religiosidades – UEM. E-mail: fernanda.silveira014@gmail.com
150
Doutorado em História. Professora Associada do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação
em História da Universidade Estadual de Maringá – PR. Coordenadora Nacional do GT História das Religiões e
das Religiosidades – ANPUH. Bolsista de Produtividade em Pesquisa da Fundação Araucária – PR. E-mail:
sramosdeandrade@gmail.com
151
KING, Stephen. Carrie, A estranha. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001
199
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direção de Brian de Palma152 e roteiro de Lawrence D. Cohen, a versão fílmica norte


americana, por sua vez, estreou mundialmente no dia 3 de novembro de 1976, chegando ao
Brasil um ano depois, no dia 8 de agosto. O longa-metragem de 98 minutos foi distribuído
pela companhia United Artists Corporation e recebeu duas indicações ao Oscar de 1977, de
melhor atriz para Sissy Spacek e melhor atriz coadjuvante para Piper Laurie, sendo visto
como um dos maiores sucessos de bilheteria da época, rendendo mais de $33 milhões de
dólares153.
A fonte cinematográfica traz Carrie White (Sissy Spacek), uma garota tímida que vive
com sua mãe Margaret White (Piper Laurie), uma religiosa que lhe impõe hábitos rigorosos.
Os poderes paranormais de Carrie são incitados a partir de um sentimento de humilhação, no
momento em que é surpreendida por sua menarca, sendo alvo de chacotas e perversidades
oriundas de outras adolescentes. Sue Snell (Amy Irving), umas das meninas que a hostilizou,
arrepende-se e pede a seu namorado Tommy Ross (William Katt), capitão do time de futebol,
que convide Carrie para o baile de formatura. Contudo, Chris Hargenson (Nancy Allen), uma
das meninas que caçoou de Carrie, e seu namorado Billy Nolan (John Travolta), armam um
plano maquiavélico para a garota na noite do baile, despertando seus poderes paranormais e
destrutivos.
Dado isso, buscaremos identificar a personagem Margaret White enquanto figura
materna, descrevendo sua relação conflituosa com a filha, Carrie White, resultado de uma
imposição severa para com a mesma, expressa por suas crenças e hábitos religiosos.

Representação da figura feminina e materna


A produção cinematográfica é uma das maneiras de representar uma realidade social e
historicamente construída, que pode ser pensada a partir do conceito de representação de
Roger Chartier (2002). Por representação, Chartier, ao mesmo tempo que abarca uma
ausência testifica também uma presença, isso porque uma produção fílmica, por exemplo,
constrói sua narrativa a partir de referências do cotidiano, ou seja, modos de conduta
socialmente compartilhados. Contudo, há uma ausência na medida em que se constrói uma
nova representação daquela dada realidade (CHARTIER, 2002).

152
Posteriormente o diretor também dirigiu filmes como Vestida para Matar (1983), Scarface (1983) e Os
intocáveis (1987).
153
Disponível em: http://www.imdb.com/title/tt0074285/awards?ref_=tt_awd Acesso: 31/01/2017.
200
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A partir dessa concepção, o historiador francês elucida as tentativas de decifrar de


outro modo as sociedades, considerando não haver prática ou estrutura que não seja produzida
por meio das representações pelas quais os indivíduos e os grupos dão sentido ao mundo em
que vivem (CHARTIER, 2002).
Embora suas reflexões se insiram no contexto da disciplina histórica, Roger Chartier
propõe um diálogo da história com outras disciplinas, sendo necessária a emergência de novos
objetos em seu questionário. Ao seu ver, a história cultural tem como principal objetivo
identificar como uma determinada realidade social é construída, pensada e dada a ler em
diferentes lugares e momentos. (CHARTIER, 1991, p. 174)
A partir do terreno de trabalho em que se enredam as representações coletivas e
identidades sociais, o autor formula proposições que articulam de maneira nova os recortes
sociais e as práticas culturais:

A primeira alimenta a esperança de levantar os falsos debates em torno da divisão,


dada como universal, entre as objetividades das estruturas (que seria o território da
história mais segura, que, ao manipular documentos maciços, seriais, quantificáveis,
reconstrói as sociedades tais como verdadeiramente eram) e a subjetividade das
representações (a que se ligaria uma outra história dedicada aos discursos e situada à
distância do real). (CHARTIER, 1991, p. 182-183)

Chartier propõe uma história na qual as representações se apresentam enquanto uma


nova forma de recorte historiográfica. Com isso, as representações do mundo social são
sempre determinadas pelo grupo que as forjam. De tal forma, a noção desse conceito permite
proferir três registros de realidade, sendo estes as representações coletivas que incorporam nos
indivíduos as divisões do mundo social e organizam os esquemas de percepção; as formas de
exibição e de estilização da identidade que pretendem reconhecer; e, por fim, a delegação a
representantes, sejam indivíduos particulares ou instituições, da coerência e da estabilidade da
identidade firmada. (CHARTIER, 2002, p. 11, 17)
Nesta comunicação o conceito de representação é considerado como produtor de uma
realidade social, que ocorre por meio da linguagem, envolvendo práticas e sistemas
simbólicos capazes de proporcionar diversos significados. Cabe ao historiador compreender
essas significações e esses significados que são dados aos objetos.
A construção de Margaret White está envolta por uma esfera religiosa compreendida
por tais significações e significados, na qual a mãe é caracterizada como uma crente que

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segue à risca os preceitos de sua fé. A personagem apresenta-se na maioria das vezes trajando
vestes pretas, realizando preces, invocando o nome de Deus e recitando versículos da bíblia.
Em uma das cenas, a personagem desloca-se até a casa da Sra. Snell (mãe de Sue),
onde deseja divulgar “O evangelho da Salvação de Deus pelo Sangue de Cristo” (CARRIE,
10min48s, 1976). Ela é recebida pela mãe da colega de Carrie, que claramente a evita,
mantendo distância da porta enquanto Margaret permanece do lado de fora, como se sua
presença na casa fosse indesejada. Após as devidas cordialidades, Sra. Snell cede finalmente à
insistência de Margaret, que retira suas luvas e adentra a casa, abrindo a porta e se inserindo
no antro pessoal daquela família.
Torna-se importante ressaltar o decurso de ação de Margaret, uma vez que as duas
personagens não se cumprimentam fisicamente, ao passo que a Sra. White caminha em
direção ao interior da residência, colocando seus aparatos em cima de uma bancada e
começando a verbalizar o propósito de sua visita que consiste em propagar o “Evangelho da
Salvação de Deus pelo Sangue de Cristo”, dando ênfase naquilo que considera a maneira
correta de direcionar os jovens rumo à “salvação”. Vale mencionar também o juízo de valor
exposto por Margaret em relação a filha da Sra. Snell (Sue), dizendo que “os jovens estão
vagando sem rumo pela selva do pecado”, devido aos tempos “ímpios” que os mesmos se
encontram.
O contraste entre as duas personagens torna-se então mais evidente, visto a
exclamação de contentamento da mãe de Sue em relação à esses mesmos tempos, defendendo
a moral de sua filha. É possível perceber a mesma discrepância em outras características,
como no figurino das personagens, que apresentam colorações opostas.
Conforme o incômodo da Sra. Snell em relação à presença de Margaret cresce, essa
lhe oferece um valor monetário inferindo o desejo de que a Sra. White se retire de sua casa.
Por sua vez, Margaret guarda o dinheiro e caminha em direção a porta. Parando de súbito e
voltando-se contra a outra personagem, levanta a mão em sinal de prece, proferindo as
palavras “Oro para que você encontre Jesus” (CARRIE, 12min13s, 1976), como pode ser
observado na seguinte imagem:

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Imagem 01: Cena do filme Carrie, A Estranha. 12min14s. Disponível: CARRIE, a estranha. Direção e Roteiro:
Brian de Palma e Lawrence D. Cowen. USA. Produzido por Metro-Goldwyn-Mayer Inc. Dist. United Artists
Corporation, 1976. Título original: Carrie.

Já em outro quadro pode-se evidenciar por meio da sequência de cenas que o


compõem a relação de Margaret com a filha, mostrada em um primeiro momento no filme. O
quadro inicia-se com a mencionada personagem caminhando até a entrada de sua casa, no
mesmo instante em que a câmera enquadra Carrie White situada no parapeito da janela,
observando a chegada da mãe.
Quando o interior da residência das White é revelado, nota-se o forte contraste
existente entre esta e a casa da família Snell, previamente apresentada. Essa discrepância é
primeiramente percebida pela iluminação escassa que permeia toda a atmosfera, apresentando
um ambiente predominantemente escuro, sustentado por velas. O plano conjunto (MARTIN,
2005, p.48) estrutura-se por objetos religiosos, como o quadro “A Última Ceia” de Leonardo
da Vinci e imagens da Virgem Maria.
A sequência de cenas permite notar o medo que Carrie possui em relação à mãe, dado
que após o telefone tocar, a garota troca suas roupas e fica sentada na escada. Depois que
Margaret ordena que a filha desça, as duas finalmente encontram-se no mesmo plano,
juntamente com os objetos já apresentados. Esta vira-se contra a garota e diz: “Você é uma
mulher agora” (CARRIE, 14min17s, 1976), e Carrie, por sua vez, questiona a mãe por não ter
lhe contado sobre sua menarca. Cabe ressaltar que a cena da menarca de Carrie é de suma
importância para compreensão do diálogo que se estenderá, uma vez que é a partir dela que os
poderes da garota são fomentados.

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Margaret lança-se em direção à filha, batendo-lhe com um livro em seu rosto, em


seguida abre-o no capítulo “Os pecados da mulher” (CARRIE, 14min27s, 1976), proferindo
algumas passagens que remetem ao Gênesis, primeiro Livro da Bíblia: “E Deus fez Eva de
uma costela de Adão. E Eva era fraca e soltou o corvo pelo mundo. O corvo chamava-se
pecado” (CARRIE, 14min27s, 1976). Carrie continuava indagando a mãe, ao passo que esta
forçava a filha a repetir a última frase, exaltando-se e continuando a bater no rosto da garota
com o livro. Por fim, em meio à essa sequência, Margaret insiste para que a filha repita “O
primeiro pecado foi o coito” (CARRIE, 14min40s, 1976), enquanto Carrie continua a
questionando acerca da menstruação: “Fiquei com tanto medo. Pensei que eu estava
morrendo” (CARRIE, 14min59s, 1976). Margaret desconsidera a fala da filha, e segue
recitando o livro “E Eva era fraca” (CARRIE, 15min05s, 1976), obrigando a garota repetir o
trecho.

Imagem 02: Cena do filme Carrie, A Estranha. 14min27s. Disponível: CARRIE, a estranha. Direção e Roteiro:
Brian de Palma e Lawrence D. Cowen. USA. Produzido por Metro-Goldwyn-Mayer Inc. Dist. United Artists
Corporation, 1976. Título original: Carrie.

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Imagem 03: Cena do filme Carrie, A Estranha. 14min29s. Disponível: CARRIE, a estranha. Direção e Roteiro:
Brian de Palma e Lawrence D. Cowen. USA. Produzido por Metro-Goldwyn-Mayer Inc. Dist. United Artists
Corporation, 1976. Título original: Carrie.

Modalidades de crença e os Estados Unidos na década de 1970


Tomando como exemplo a cena acima, a qual coloca em relevância a “fragilidade
feminina”, podemos perceber que o contexto em que se insere a fonte audiovisual foi repleto
de incursões feministas, característicos das décadas de 1960 e início da de 1970. De acordo
com Leandro Karnal (2007), estas décadas são marcadas pelo encorajamento de uma
consciência crítica nos Estados Unidos, caracterizado pelo fortalecimento do movimento
feminista, que questionava publicamente os valores sexuais dominantes e direcionava suas
críticas às instituições tradicionais do casamento e da família, atingindo visibilidade pública; e
pelo crescimento das manifestações de outros grupos oprimidos, como o movimento negro.
Essas décadas presenciaram uma série de greves e rebeliões direcionadas à empresas privadas
e um aumento dos movimentos dos jovens em relação ao seu protagonismo político, expresso
pelo surgimento da “Nova Esquerda”, que pregava a valorização da juventude e de ideias
antielitistas (KARNAL, 2007).
Segundo o autor, os movimentos de liberdade cultural e política nos Estados Unidos
começaram a perder importância ao longo dos anos 1970, e a opinião pública influenciou-se
pelo progresso de uma força política e religiosa, que defendia uma autonomia local e uma
economia livre, ao passo que os movimentos sociais eram desmobilizados pela retomada da
repressão por parte das autoridades (KARNAL, 2007).
Retomando as cenas, em várias delas comprova-se o caráter religioso da figura
materna. Tratando-se de “crenças”, é possível perceber a partir de Michel de Certeau (1982),
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que as práticas religiosas podem ser inerentes ao cotidiano. Versa-se, necessariamente, a


diferenciação entre crenças e doutrinas ou experiência e instituições. De acordo com o autor,
as práticas transformaram-se em um elemento social de diferenciação religiosa: “O
esboroamento das crenças em sociedades que deixam de ser religiosamente homogêneas torna
ainda mais necessárias as referências objetivas: o crente se diferencia do incréu – ou o
católico do protestante – pelas práticas” (CERTEAU, 1982, p.35).
Para Certeau (2006), o que define a vida religiosa é o ato de crer. Esta, por sua vez,
não recebe sua justificação do exterior, assim como também não limita-se à simples
consequência de uma doutrina. De tal maneira, o religioso descobriu a impossibilidade de
viver sem a crença e sem o ato de crer:
El religioso no puede vivir sin eso, cualesquiera que sean los riesgos o los modos de
vida que dicho reconocimiento acarreará, cualesquiera que sean también las formas
necessariamenre particulares – psicológicas, intelectuales, socioculturales –
adotaptadas por dicha urgência. (CERTEAU, 2006, p. 27-28)

Ao fazer uma discussão bibliográfica acerca do conceito de “crenças”, Carlo Prandi


(1997) aponta que a mesma pode ser entendida como um deslocamento institucional. No
contexto italiano, o termo refere-se a comportamentos não ligados por uma concepção
religiosa, neste sentido, assemelha-se ao de superstição, assumindo o caráter de uma
“degeneração mágica”, como aborda o autor. Contudo, esse caráter só é assumido por não
coincidirem com as práticas institucionalizadas, ainda que sejam aceitos e tolerados pelo
sistema eclesiástico preponderante (PRANDI, 1997).
Mircea Eliade (1992), ao tentar abarcar o “sagrado em sua totalidade”, conceitua o
homo religiosus afim de compreender e tornar compreensível seu comportamento. O
historiador das religiões afirma que a situação existencial para estes, são experiências vividas
e não apenas ideias que se limitam ao modo de ser do homem (ELIADE, 1992).
O homem religioso acredita sempre na existência de uma realidade absoluta, crendo na
origem sagrada da vida e na capacidade atribuída à existência humana em atualizar essas
“potencialidades na medida em que é religiosa”, assumindo um modo de ser no mundo
reconhecível (ELIADE, 1992, p.164).
Tendo em vista essas discussões a respeito dos conceitos de “crenças” e homo
religiosus, podemos observar, mediante as cenas transcritas que estruturam dois momentos
específicos da fonte e do objeto, que Margaret White não frequenta nenhuma instituição

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eclesiástica, uma vez que suas práticas religiosas acontecem no âmbito doméstico. Seu modo
de existência no mundo assume o comportamento do “homem religioso”, constatado em sua
relação dominante com a filha.
Partindo das descrições dos quadros supracitados e da relação de poder para com a
filha, constata-se que a figura materna adota uma série de hábitos religiosos incisivos. Na
referida cena em que Margaret repudia a menarca de Carrie, fazendo alusão ao pecado de Eva,
é evidente que suas crenças e práticas vão de encontro à discussão elucidada por Roger
Caillois (1950), que diz respeito aos conceitos de puro e impuro.
Antes de conceituar esses termos, torna-se necessário o entendimento da função dos
ritos que, segundo o autor, podem assumir caráter positivo ou negativo. Sendo, portanto,
compreendidos em “ritos de consagração, que introduzem no mundo do sagrado um ser ou
uma coisa, e os ritos de dessacralização, ou de expiação, que, inversamente, restituem uma
pessoa ou um objecto puro ou impuro ao mundo profano.” (CAILLOIS, 1950, p.23). Tratando
destes últimos, o que os instituem são as proibições que se elevam entre o profano e o
sagrado, a fim de protege-los de infortúnios gerados pelo encontro desses dois domínios.
Conforme Caillois, tais proibições expressam-se mediante o conceito de Tabu proposto por
Durkheim como:

[...] um conjunto de interdições rituais que produzem o efeito de evitar as perigosas


consequências de um contágio mágico ao impedirem todo o contacto entre uma
coisa ou uma categoria de coisas, onde se supõe residir um princípio sobrenatural, e
outras que não têm este mesmo carácter ou que o não têm no mesmo grau.
(CAILLOIS, 1950, p.24)

As categorias do “puro” e “impuro” compreendem os sistemas religiosos,


desempenhando um papel fundamental. Entende-se por “puro”, aquilo que não está infectado
por algo que possa alterar sua essência; logo, o “impuro” apresenta-se como uma situação
adversa. Neste sentido, os “focos de impureza” que evidenciam a mácula são facilmente
identificáveis, manifestando-se de acordo com as sociedades ou beneficiando-se da difusão
que podem assumir. A exemplo disso, o autor cita algumas situações de contágio, dentre as
quais, destaca: “[...] a mulher nos instantes críticos da sua vida, quando ela se apresenta como
um ser sangrento e ferido, na altura das suas regras (e sobretudo do seu primeiro sangue) [...]”
(CAILLOIS, 1950, p. 40).

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Análogo à cena anteriormente descrita, nota-se o repúdio de Margaret em relação à


menstruação de Carrie, como se o sangue – lançado à Eva enquanto punição por ter soltado ao
mundo o pecado – torna-se sua filha pecadora, portanto impura.

O cinema enquanto fonte histórica


Todas essas representações presentes no filme devem ser analisadas por meio de uma
metodologia específica que dê conta de seu estabelecimento enquanto documento histórico.
Em função dessa problematização, Marcel Martin (2005), ensaísta crítico e historiador de
cinema, ressalta em sua obra que a matéria-prima fílmica é a imagem, – elemento base da
linguagem cinematográfica – que se apresenta em três níveis da realidade, sendo estes:
realidade material de valor afetivo, compreendido pela capacidade da imagem fílmica em
suscitar, no espectador, um sentimento de realidade que o faz, em alguns casos, crer na
existência objetiva do que aparece na tela; realidade estética de valor afetivo, que após ser
escolhida e composta, aparece na imagem como resultado de uma percepção subjetiva do
mundo; e, por fim, uma realidade intelectual de valor significante, na qual a imagem é
carregada de ambiguidade (MARTIN, 2005).
Após estabelecer os caracteres gerais da imagem, Martin expõe as modalidades de sua
criação, definindo o papel da câmera e sua função de agente ativo no que diz respeito ao
registro da realidade material, apresentando seus aspectos constituintes: os enquadramentos,
os diversos tipos de planos, os ângulos e os movimentos; além de analisar os elementos
fílmicos não específicos, como as iluminações, cores e o figurino. O cinema, segundo o autor,
dispõe de uma linguagem complexa e variada, capaz de transcrever não só os acontecimentos,
mas também os sentidos e ideias. (MARTIN, 2005)
Em contrapartida, Marcos Napolitano (2008) ressalta a necessidade em considerar a
especificidade técnica de linguagem e os gêneros narrativos insinuados nos documentos
audiovisuais. Desta maneira, propõe que:

Todo documento, incluindo os documentos de natureza audiovisual, deve ser


analisado a partir de uma crítica sistemática que dê conta de seu estabelecimento
como fonte histórica (datação, autoria, condições de elaboração, coerência histórica
do seu “testemunho”) e do seu conteúdo (potencial informativo sobre um evento ou
um processo histórico. (NAPOLITANO, 2008, p.266)

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Cabe ao historiador “partir dos próprios filmes” e de sua significação interna,


buscando elementos narrativos que comportem a dupla pergunta: “o que um filme diz e como
o diz?” (NAPOLITANO, 2008, p.245).

Considerações finais
Este trabalho consiste em uma primeira visão acerca das crenças representadas na
adaptação cinematográfica Carrie, a Estranha (1976), partindo do campo da História das
Religiões e Religiosidades a fim de compreender e elucidar esse conceito. De tal maneira, a
discussão proposta, utiliza-se, antes de mais nada, da noção de “representação” de Roger
Chartier, que permite pensar a produção fílmica como uma das maneiras de representar uma
realidade histórica inserida em um recorte temporal.
Suscitado pelo diálogo entre Certeau (1986) e Carlo Prandi, o conceito crenças foi
compreendido como um deslocamento institucional, uma vez que todas as práticas religiosas
da personagem Margaret White acontecem fora de uma instituição eclesiástica. Ainda
partindo desse conceito, conseguimos propor a definição de homo religiosus de Mircea Eliade
(1992), a qual busca elucidar a crença em uma origem da vida sagrada e em uma realidade
absoluta por meio de experiências vividas.
Em uma das cenas escolhidas para retratar o comportamento da figura materna,
evidencia-se sua rejeição à primeira menstruação da filha, aludindo ao “pecado de Eva”.
Tendo em vista essa exposição, partiu-se do conceito de “puro” e “impuro” sistematizado por
Roger Caillois (1950), com a finalidade de interpretar o sangue como “foco de impureza”.
Torna-se necessário ressaltar a perspectiva predominantemente historiográfica que
permeia toda essa comunicação. Com o intuito de pensar o filme enquanto documento
histórico, as problematizações metodológicas fundamentaram-se em Martin e Marcos
Napolitano (2008). Cabe, por fim, enfatizar que todas essas discussões ofertam a possibilidade
de um estudo mais aprofundado dentro desta e de outras áreas do conhecimento.

Referências Bibliográficas

CAILLOIS, Roger. O homem e o sagrado. Trad. Geminiano Cascais Franco. Lisboa: Edições
70, 1950.

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THE UNTOUCHABLES (Os intocáveis). Direção de Brian de Palma e roteiro de David
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Hibridismo e Modernidade: documentário Santo Forte (1999) sob as preposições


teóricas de P. Burke e D. Hervieu-Léger

Gabriella Bertrami Vieira154

Resumo: O presente trabalho pretende analisar o documentário Santo Forte, de 1999, dirigido
por Eduardo Coutinho. A obra teve como local de gravação a comunidade Vila Parque da
Cidade, localizada na Zona Sul do município do Rio de Janeiro e é composta, basicamente,
por relatos de moradores da comunidade, nos quais estes descrevem suas diversas
experiências religiosas. Metodologicamente elegeu-se trabalhar com Marcos Napolitano
(2008) a fim de pensar a obra de Coutinho como documento histórico, dotado de mecanismos
próprios, entendendo a necessidade de articulação entre os elementos que constroem o
documentário e a realidade histórica retratada. Utilizar-se-á como referencial teórico os
apontamentos conceituais de Peter Burke (2003) sobre “hibridismo” e Danièle Hervieu-Léger
(2008) com as noções de “peregrino” e “convertido”, pensando como as formas de identidade
religiosa modernas possuem caráter de mobilidade.
Palavras-chave: Hibridismo; Documentário; Modernidade;

Hybridism and Modernity: documentary Santo Forte (1999) under the theoretical
prepositions of P. Burke and D. Hervieu Léger
Abstract: The present work intends to analyze the documentary Santo Forte, of 1999,
directed by Eduardo Coutinho. The documentary work was recorded at Vila Parque da Cidade
community, located in the southern zone of the city of Rio de Janeiro, and is basically
composed of reports of community residents, in which they describe their diverse religious
experiences. Methodologically, it was decided to work with Marcos Napolitano (2008) in
order to think of Coutinho's work as a historical document, endowed with its own
mechanisms, understanding the need for articulation between the elements that construct the
documentary and the historical reality portrayed. Conceptual Considerations of Peter Burke
(2003) on "hybridism" and Danièle Hervieu-Léger (2008) with the notions of "pilgrim" and
"converted" will be used as a theoretical reference, thinking how modern forms of religious
identity possess mobility
Key-words: Hybridism; Documentary; Modernity;

Introdução
A ideia de obra documentária, tende a conduzir o espectador a um “efeito de
realidade” (NAPOLITANO, 2005, p. 236) uma vez que passa a impressão de abrangência
verídica e total da realidade na qual se insere. Porém, essa interpretação objetiva,

154
Orientanda da Prof.ª Dra. Vanda Fortuna Serafim (DHI/PPH/LERR-UEM). Graduanda do curso de
Licenciatura em História da Universidade Estadual de Maringá. Membro do Laboratório de Estudos em
Religiões e Religiosidades (LERR-UEM). gabriella.bertrami@hotmail.com

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desconsidera todo o processo de construção da obra, a intencionalidade, os mecanismos e


códigos de funcionamento que lhe são próprios.
Essas considerações são importantes, uma vez que, este artigo é desdobramento de
nosso projeto de iniciação científica, intitulado “Práticas híbridas religiosas no documentário
Santo Forte (1999), de Eduardo Coutinho”. A obra é composta, basicamente, por relatos de
moradores da comunidade, nos quais estes narram suas diversas experiências religiosas. As
filmagens se deram em 1997 e a obra foi lançada em 1999, tendo como local de gravação a
comunidade Vila Parque da Cidade, localizada na Zona Sul do município do Rio de Janeiro.
Nesse sentido, quando temos o documentário como fonte de uma análise histórica, como é o
caso deste trabalho, precisamos atentar à articulação entre todos esses elementos e a realidade
histórica representada.
Lins e Mesquita em Filmar o real: sobre o documentário brasileiro contemporâneo
(2008), tratam da situação da produção documentária brasileira na década de 1990, e
destacam que, nesse período, a prática documental passa por marcantes mudanças. Esta,
começa ter maior impulso pelo crescimento razoável do interesse do público, pelo estímulo,
por meio de políticas de incentivo como a Lei Rouanet, e pela presença de novas abordagens
nas obras.
É, então nesse contexto, e influenciado por novas tendências, que se dá a gravação e o
lançamento de Santo Forte. Conforme indicado anteriormente, o documentário é constituído
essencialmente por relatos de moradores de uma comunidade, da cidade do Rio de Janeiro. O
conteúdo dessas narrativas é de caráter pessoal e, portanto, subjetivo, uma vez que remete à
experiências vividas por cada um, bem como à trajetórias religiosas individuais percorridas.
Demonstrando, nesse sentido, a constante presença da religiosidade no cotidiano dos
moradores.
A comunidade, localidade única escolhida para a gravação do documentário, é a Vila
Parque da Cidade, localizada na Gávea, Zona Sul do Rio de Janeiro. Coutinho se interessou
pelo local ao ter tido acesso à pesquisa de campo, feita pela antropóloga Patrícia Birman na
comunidade. (LINS, 2004).
Podemos perceber também, ainda em relação ao espaço, o contraste social que se dá
entre a comunidade e suas adjacências, apresentado em algumas cenas do documentário. Logo
no início, temos imagens aéreas que partem de outras dependências da cidade, aparentemente

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mais abastadas e vão, gradualmente, se encaminhando para a comunidade. À vista disso, é


possível compreender que Coutinho intenciona “filmar em um espaço delimitado e, dali,
extrair uma visão que evoca o ‘geral’, mas não o representa nem o exemplifica”. (LINS,
MESQUITA, 2008, p.19)
Vale ressaltar que, além dos relatos, a fonte audiovisual apresenta cenas de outros
elementos que também podem ser analisados. Os espaços vazios, por exemplo, apresentados
com a ausência de áudio, fazem referência a lugares da habitação do entrevistado, no qual este
conta sua experiência, ou, com mais frequência, ao local em que a hierofania155 acontece.
Como por exemplo na fala de André, o primeiro participante que aparece na obra. André
relata o momento em que sua esposa recebe a entidade de sua mãe, ou seja, o momento em
que o sagrado se faz presente.
Há também cenas fixas em estátuas de entidades, pertencentes às crenças afro-
brasileiras, no momento em que estas são citadas no decorrer de alguma narrativa. Na
entrevista de Carla, por exemplo, enquanto fala sobre sua pomba-gira, chamada Maria
Padilha, e alguns ocorridos com esta, em um determinado momento há um corte, e é
apresentada, por cerca de cinco segundos, geralmente, somente a estátua de Maria Padilha,
com o som da fala de Carla ao fundo. Isso se dará em vários relatos no documentário, e está
vinculado ao estilo que Coutinho adota no mesmo. Tais imagens, segundo Lins (2004), foram
gravadas em um momento posterior às filmagens na comunidade, e, não são consideradas
pelo diretor como meramente ilustrativas mas sim como um modo de dar uma maior
concretude e enriquecimento ao que foi dito.
No início do documentário, temos cenas, da missa papal, que fora celebrada no Aterro
do Flamengo, pelo Papa João Paulo II, ao visitar o Brasil, em 1997. A cerimônia reaparece no
decorrer da narrativa documentária quando alguns participantes, no momento da entrevista,
estão assistindo à missa. Segundo Lins (2004), a ideia era perceber a repercussão da
cerimônia no espaço da comunidade. Em Santo Forte, Eduardo Coutinho
[...] inaugura um minimalismo estético que será a marca do diretor nos filmes
posteriores: sincronismo entre imagem e som, ausência de narração over, de trilha
sonora, de imagens de cobertura (LINS, MESQUITA, 2008, p.18)

155
Partindo da concepção de Mircea Eliade (1992), em O Sagrado e o Profano, o termo refere-se à manifestação
do sagrado, ao momento em que o sagrado se faz presente de alguma forma.

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O diretor disponibiliza ao entrevistado um momento em que este pode construir sua


própria rota de identificação sobre a vivência que irá ser relatada. Deste modo, assume uma
postura, digamos, receptiva, sem julgamentos, em relação ao participante e à sua singular
religiosidade, partindo da concepção de “dar voz aos sujeitos da experiência” (LINS,
MESQUITA, 2008, p.27). Dessa maneira, Eduardo Coutinho
[...] radicaliza em Santo Forte a aposta de filmar a palavra do outro e concentra-se
no encontro, na fala e na transformação de seus personagens diante da câmera. O
momento da filmagem tem para o diretor uma dimensão quase mística. Ali no
encontro com o outro, é tudo ou nada. (LINS, MESQUITA, 2008, p.18)

Essa postura, remete a traços da sociedade atual, uma vez que podemos observar a,
cada vez mais frequente, individualização e autonomia dos sujeitos, a diversificação das
identidades religiosas assumidas por estes últimos, bem como de suas trajetórias religiosas,
que lhe dão caráter de movimento. (HERVIEU-LÉGER,2008)
Este trabalho, de modo algum, intenciona dar conta da totalidade da obra
documentária, tampouco esvaziar as possibilidades de interpretações e abordagens. A
proposta consiste em analisar algumas possíveis inserções de conceitos, e portanto, de
interpretações, em Santo Forte, partindo do viés da História Cultural.
Para tanto, o respaldo teórico se dará nos apontamentos do historiador Peter Burke
(2003) sobre “hibridismo”, que procura analisar os processos de hibridização que se dão,
especificamente, no âmbito das tendências culturais. E que, se apresentam, segundo o autor,
de maneira cada vez mais presente, na sociedade.
As considerações da socióloga francesa da religião, Danièle Hervieu-Léger (2008),
sobre as figuras do “peregrino” e do “convertido”, também dão embasamento a este trabalho.
Utilizando suas categorias a fim de pensar como as formas de identidade religiosa modernas
possuem caráter de mobilidade.

Hibridismo e Mobilidade: traços da Modernidade Religiosa


A socióloga francesa Danièle Hervieu-Léger, em sua obra O peregrino e o convertido:
a religião em movimento (2008), traça reflexões acerca da configuração do cenário religioso
compreendido como ‘Moderno’, uma vez que, para a autora a Modernidade religiosa remete
ao período compreendido pelo século XX e início do XXI.

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A autora aludida, afirma que “o que caracteriza a religiosidade das sociedades


modernas é a dinâmica do movimento, mobilidade e dispersão de crenças” (HERVIEU-
LÉGER, 2008, p.10). Essa modernidade se constitui, principalmente pelo processo de
“autonomia do indivíduo-sujeito” (HERVIEU-LÉGER, 2008, p.32), no qual cada um se
coloca como produtor de seu próprio universo de sentido. Como também, pela diferenciação
das instituições, que está ligada à separação entre a Igreja e o Estado.
Perante esse quadro, temos como uma das consequências mais marcantes, a perda de
regulamentação, por parte das instituições tradicionais produtoras de sentido, principalmente
no âmbito religioso. Visto que, é o indivíduo, dotado de liberdade, quem, agora, traça, de
acordo com seus interesses e recursos disponíveis, sua própria trajetória religiosa, sendo ela
ligada à uma doutrina específica ou não (HERVIEU-LÉGER, 2008).
Outra consequência é a pluralidade e a mobilidade das identidades religiosas, pois na
mesma proporção em que as sociedades modernas são cada vez mais sociedades regidas pelo
“paradigma da imediatez”, em que a inovação e as modificações constantes são tidas como
regra geral, estas são também, cada vez mais “sociedades amnésicas”, já que infringiram o
“elo da memória obrigatória da tradição” (HERVIEU-LÉGER, 2008, p.62-63)
Posto isso, não podemos mais considerar que as identidades religiosas são
exclusivamente, herdadas, mas sim que
Os indivíduos constroem sua própria identidade sociorreligiosa a partir dos diversos
recursos simbólicos colocados à sua disposição e/ou aos quais eles podem ter acesso
em função das diferentes experiências em que estão implicados. A identidade é
analisada como resultado, sempre precário e suscetível de ser questionado, de uma
trajetória de identificação que se realiza ao longo do tempo (HERVIEU-LÉGER,
2008, p.64)

Diante disso, o que temos, segundo a autora, é uma tendência à “bricolagem de


crenças” (HERVIEU-LÉGER, p.41), bem como a uma individualização e liberdade na
dinâmica de construção dos sistemas de fé.
Os indivíduos fazem valer de sua liberdade de escolha incorporando as práticas e
crenças que lhe convém. Sendo que os significados destas, para cada um, tende a ser diferente
de sua “definição doutrinal”. As crenças são “triadas, remanejadas e, geralmente livremente
combinadas a temas emprestados de outras religiões” (HERVIEU-LÉGER,2008, p.43)
Nesse mesmo sentido, o historiador Peter Burke, em hibridismo cultural (2003),
respalda sua reflexão na afirmativa de que “todas as tradições culturais hoje estão em contato
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mais ou menos direto com tradições alternativas”. Sendo que essas tradições se apresentam
como “áreas de construção” que estão em constante processo de elaboração e reelaboração,
tanto de forma consciente, como também inconsciente para os sujeitos. (BURKE, 2003,
p.102)
O referido autor, ao tratar das práticas híbridas, considera que estas podem ser
encontradas em vários âmbitos da cultura, e, particularmente na religião. Para o autor, os
processos de hibridização nas religiões relativamente novas são notoriamente identificados,
uma vez que por mais que as reações à esses processos sejam variadas, eles estão cada vez
mais presentes na sociedade atual, e, essa tendência, torna-se, de certa forma, inevitável. Tais
processos, são tidos para ele, como produtos de encontros múltiplos entre culturas, e não de
um único. Sendo que estes, podem tanto adicionar novos elementos à mistura quanto reforçar
antigos (BURKE,2003)
Porém, de que maneira, como historiadores, podemos identificar esses processos de
hibridização e suas consequências no contexto de uma religiosidade moderna, em que a
mudança, a diversidade e a mobilidade são cada vez mais frequentes? Ou ainda, como fica a
situação do campo religioso e das identidades religiosas, em um cenário tão híbrido, móvel e
distinto?
Burke (2003) propõe uma abordagem amparada pela variedade de conceitos, por vezes
metafóricos, uma vez que essa se faz necessária para tentar abarcar tanto “o agente humano
quanto às modificações das quais os agentes não tem consciência” (BURKE,2003, p.41).
Porém, essa variedade de terminologias para fazer referência aos diversos tipos de
hibridização acaba criando problemas conceituais próprios, que estão sendo considerados
nesse trabalho, e expostos à medida de sua utilidade para as reflexões. Evidenciamos então,
três conceitos definidos por Burke (2003) que parecem ser interessantes para nossa proposta:
apropriação, negociação e hibridismo.
Ao abordar o conceito de apropriação, o supracitado autor, exemplifica Basil de
Cesarea. Este último, ao tratar dos “usos da cultura pagã que eram permitidos aos cristãos”,
metaforiza a apropriação, pelo comportamento das abelhas: “nem abordam igualmente todas
as flores, nem tentam carregar por inteiro aquelas que escolhem, mas pegam apenas aquilo
que é adequado a seu trabalho e deixam o resto intocado” (BURKE, 2003, p.42)

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A partir dessa metáfora, mais uma vez é possível observar os processos nos quais os
sujeitos, diante do que lhes é culturalmente oferecido, no decorrer de seus itinerários, fazem
uso dos elementos que lhes são compatíveis.
Já o termo negociação, que se coloca como alternativo à acomodação,”[..] expressa
consciência da multiplicidade e da fluidez da identidade e o modo como ela pode ser
modificada ou pelo menos apresentada de diferentes modos em diferentes situações”
(BURKE,2003, p.48).
Quando discorre sobre hibridismo, Peter Burke o define como um “termo
escorregadio, ambíguo, ao mesmo tempo literal e metafórico, descritivo e explicativo”
(BURKE, 2003, p.54). Tendo em vista tais considerações, verificamos traços dos três
conceitos, cada um de acordo com sua particularidade, que podem ser articulados entre si, e
elencados na obra documentária.
O primeiro faz alusão à busca, ressaltada por Hervieu-Léger (2008) do indivíduo,
através de seu caminho religioso, por elementos os quais auxiliem na construção de sua
identidade religiosa. O segundo, remete justamente ao caráter diverso e móvel dessas
identidades religiosas, e o terceiro, por sua vez, demonstra o cuidado que devemos ter ao
tratar dessas construções ao mesmo tempo diversas e singulares.
As narrativas de Santo Forte, salvo suas especificidades, de modo geral, transmitem
essa natureza ambígua, “escorregadia”, fluida, e móvel de que tratam tais noções.
Para Hervieu-Léger (2008), esse panorama religioso exposto, o qual é construído a
partir de experiências individuais diversas, tenciona com a figura modelo tipicamente aderida
de homem-religioso, que é a do praticante. Sendo esta, caracterizada por sua estabilidade e
identidade religiosa bem definida e identificável, encontra-se em estado de insuficiência
quando queremos expressar a dinâmica do movimento e da diversidade que marca a
modernidade.
Dessa forma, a socióloga francesa conceitua duas novas figuras que, podem cristalizar
melhor a mobilidade percebida: o peregrino e o convertido (HERVIEU-LÉGER,2008)
A primeira delas é estruturada como “típica do religioso em movimento” em dois
sentidos. Primeiramente, porque remete, de maneira metafórica, à fluência dos percursos
espirituais individuais, [...] que podem, em certas condições, organizar-se como trajetória de
identificação religiosa”. Bem como, pelo fato de se constituir como uma “forma de

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sociabilidade religiosa”, que se encontra emergente, sendo marcada pela mobilidade e pela
associação temporária (HERVIEU-LÉGER, 2008, p.89).
O convertido, por sua vez, revela-se como a segunda figura apresentada por Hervieu-
Léger (2008), à medida em que auxilia no reconhecimento dos “processos da formação das
identidades religiosas nesse contexto de mobilidade” (HERVIEU-LÉGER, 2008, p.107).
As conversões, para referida autora, estão associadas a dimensão de uma escolha
individual, presente na modernidade, e se fazem cada vez mais recorrentes. Diante disso,
Hervieu-Léger (2008) caracteriza a figura do convertido a partir de três modalidades
principais.
Essas três modalidades correspondem, respectivamente ao indivíduo que muda de
religião, com a rejeição de uma identidade herdada, procurando outra que lhe é interessante;
ao que adere à uma religião por suas trajetórias e escolhas pessoais, sem que tivesse
pertencido à alguma tradição religiosa; e ainda, ao que “(re)descobre” sua religião de origem
(HERVIEU-LÉGER,2008, p.108).
Desse modo, os conceitos de “peregrino e de “convertido” parecem ser interessantes
para a problemática da situação das identidades religiosas modernas e para a análise de alguns
discursos da fonte audiovisual.
O relato de Vera, moradora que auxilia e orienta o trabalho da equipe de Santo Forte
na comunidade, pode ser pensado, tanto nessas figuras que ajudam a compreender a
configuração moderna da religiosidade, como também nos traços dessa Modernidade
apresentados por Hervieu-Léger (2008) e por Peter Burke (2003).
Ao longo de sua narrativa, a moradora vai apresentando situações vividas,
primeiramente, no espiritismo e, mais tarde no protestantismo, principalmente na Igreja
Universal do Reino de Deus. A entrevistada conta que “herdou”, de sua tradição familiar, a
identidade religiosa espírita, porém, ela afirma que passou por conflitos com esta religião,
exemplificando o caso do rompimento de uma relação, que, segundo ela, se deu devido à
interferência de sua pomba-gira.
A partir do ocorrido, a personagem conta que começou a procurar outras formas de
religiosidade, até que “encontra” a Universal, e passa a frequentá-la. Porém, nesta, também
passa por alguns desentendimentos, fazendo com que a moradora “saísse da religião”.
Pensando que essa “saída”, para Hervieu-Léger (2008) remete ao abandono da identidade

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religiosa pelo indivíduo para, possivelmente, adotar outra que lhe interessa. (HERVIEU-
LÉGER, 2008, p.72),
Por fim, ao ser questionada por Coutinho sobre sua frequência ou pertencimento à
alguma Igreja, ela cita várias e diz: “eu faço visitas pra congregar” (SANTO FORTE, 15:32,
1999)
Com a narrativa de Vera, vemos, primeiramente, quando ela deixa o espiritismo e vai
em busca de outra religião, uma das modalidades da figura do convertido. Essa modalidade,
remete ao indivíduo que “muda de religião” (HERVIEU-LÉGER,2008, p.111), rejeitando
alguma identidade religiosa herdada e assumida para adotar uma nova.
Outro aspecto que pode ser inserido é sobre a figura do peregrino. Ao passo que a
moradora diz fazer visitas em várias Igrejas, ela corresponde à concepção de “religiosidade
peregrina” (HERVIEU-LÉGER, 2008, p.89) no que diz respeito à fluidez e à mobilidade da
mesma.
Podemos perceber ainda, em seu relato, que ao passar de uma religião à outra, a
personagem tece críticas à religiosidade deixada, que de certa forma justificam sua saída, o
que Hervieu-Léger chama de “protesto sociorreligioso apresentado pelas conversões” (p.109)
A passagem de uma religião a outra chama a atenção, sobretudo, porque dá lugar, ao
mesmo tempo, à opção de uma nova adesão e à expressão desenvolvida de um
refuto (ou crítica) de uma experiência anterior. Quando eles contam sua trajetória
espiritual, os indivíduos em questão, citam, de fato, muitas vezes, as condições nas
quais eles se afastaram de sua religião de origem, considerada “decepcionante”, por
ser alheia aos verdadeiros problemas do indivíduo de hoje, incapaz de oferecer
resposta a suas angústias reais e de lhe fornecer o apoio eficaz de uma comunidade
(HERVIEU-LÉGER, 2008, p.109)

Sandra Pesavento (2008), historiadora brasileira da Cultura, evidencia que as imagens


possuem uma condição de ambivalência:

[...] De ser e não ser a coisa representada, portando, em si mesmas, o fato de serem
mímesis – o que permite a identificação – e o de serem fictio, constituindo um
significado revelador de uma interpretação do mundo. Assim, em virtude da
ambivalência que faz da imagem uma espécie de oxímoro, figura portadora de
contrários, ela é, também, ambígua. A imagem é e não é, ao mesmo tempo, o real
representado, mas traz a presença de um plus, de um outro sentido que se insinua,
mostrando a essência do fenômeno da representação. (PESAVENTO, 2008, p.104)

A partir disso, temos a importância das imagens neste trabalho, tanto pelo fato da
análise se pautar em uma fonte audiovisual, como também pela mesma apresentar imagens
passíveis de análise.
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Segundo Peter Burke (2003), as “imagens híbridas”, mostram, de maneira geral, dois
pontos que se fazem interessantes ressaltar:
Em primeiro lugar, há a importância dos estereótipos ou esquemas culturais na
estruturação da percepção e da interpretação do mundo. No nível microcósmico, o
esquema tem uma função semelhante à visão de mundo ou ao estado de coisas
característico de uma determinada cultura. Em segundo lugar, há a importância do
que poderiam ser chamadas de “afinidades” ou “convergências” entre imagens
oriundas de diferentes tradições. (BURKE,2003, p.26-27)

Podemos inferir tal reflexão no documentário pensando na entrevistada, Carla, que em


um determinado momento da descrição de sua trajetória – que por sinal, também se
caracteriza pela já assinalada busca por uma religiosidade na qual se identifique – esta fala
sobreas relações entre os Santos católicos e os Orixás:
“Eu vejo os orixás da Igreja Católica”, Carla corrige: ”Os santos da Igreja Católica:
Nossa senhora, na Umbanda ela é Oxum. São Jorge, na Umbanda ele é Ogum. Então
quer dizer, acho que é tudo um pouco né... É uma bola de neve... Umbanda,
Candomblé, Catolicismo, tudo é uma bola de neve... quanto mais você sabe, mais
você não sabe.” (SANTO FORTE, 31:09, 1999)

A partir do relato, observamos a percepção da moradora em relação aos processos de


hibridização. Quando Carla faz o diálogo compensativo entre as Religiões Afro-brasileiras e o
Catolicismo, e chega à conclusão de que “tudo é uma bola de neve” (SANTO FORTE, 31:32,
1999), é como se a mesma, reconhecesse os contatos e as trocas culturais que se
estabeleceram. E, que em decorrência destes, e possivelmente de outros fatores, não se
pudesse delimitar exatamente a situação das religiões na sociedade atual.
Porém, ainda que diante desse quadro de indefinição e de incerteza, tanto em relação à
configuração religiosa, como também ao porvir, característico das sociedades modernas;
(HERVIEU-LÉGER, 2008), o fato que pode ser constatado é que essa não-delimitação,
anteriormente colocada e controlada por uma instituição religiosa que, hoje perdeu, em parte,
essa capacidade, significa a inserção do indivíduo como sujeito que escolhe e busca pela
religiosidade que lhe convém.
Ou seja, é justamente pela inexatidão, ou pela não-delimitação exata de uma religião e
de outra, por esse caráter de diálogo entre elas, que é percebido os traços mais marcantes das
religiosidades de nossas sociedades: o da mobilidade, da individualização e dos processos de
hibridização.

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Os apontamentos conceituais sobre hibridismo (BURKE, 2003) também podem ser


identificados na obra documentária em outros relatos, notando-se um certo padrão de
comportamento religioso, pensando que, vários dos participantes dizem “ser” de uma
determinada religião e, logo em seguida, acrescentam outra, que também faz parte de sua
identidade religiosa.
A última cena de Santo Forte, se dá quando, ao visitar Thereza, uma das entrevistadas,
no Natal de 1997, Coutinho visita um cômodo da casa da moradora, no qual crianças se
encontram dormindo, e a imagem é, então, fixada em um altar, montado no local. Neste altar,
encontramos “duas imagens de Nossa Senhora Aparecida e uma de Vovó Cambinda” sua
guia, “com alguns ramos e oferendas”, (SCARELLI, 2009, p.114).
Nesta cena final, podemos constatar, mais uma vez a presença de práticas híbridas,
existentes nas religiões e na sociedade atual, visto que as três imagens, de duas religiões
distintas estão juntas, no mesmo altar.
Assim como, constatamos também, segundo Scarelli (2009), o movimento que o
diretor possivelmente intencionou fazer: “de fora para dentro, do público para o privado”
(SCARELLI, 2009, p. 116), considerando que as cenas iniciais da obra são da missa papal, no
Aterro do Flamengo, e as finais na intimidade do lar de Thereza, na comunidade.

Considerações Finais
No presente artigo, buscamos analisar o documentário Santo Forte (1999), sob as
preposições teóricas de Peter Burke (2003) acerca dos processos de hibridização, e de Danièle
Hervieu-Léger com as noções de “peregrino” e “convertido”, bem como suas reflexões acerca
da modernidade religiosa.
Nossos objetivos estavam traçados, basicamente, em perceber de que forma se dá a
inserção das práticas de hibridismo na obra documentária, e como as identidades religiosas
modernas apresentam caráter de mobilidade, por meio das figuras apresentadas por Hervieu-
Léger, configurando-as também nos relatos da fonte.
Dessa forma, vemos um cenário religioso do final do século XX marcado pela crise
das instituições tradicionais, “pela difusão do crer individualista, pela disjunção das crenças e
pertenças confessionais e pela diversificação das trajetórias percorridas por ‘crentes
passeadores’” (HERVIEU-LÉGER, 2008, p.25)

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Também temos a questão da relação da “bricolagem de crenças” e dos processos de


hibridização, que segundo ambos os autores referidos, estão presentes na sociedade atual.
Além disso, pautamo-nos nos relatos de Vera e Carla, duas moradoras entrevistadas no
documentário, para abordar possíveis relações de análise entre os apontamentos teorizados e a
obra documentária.
À luz do exposto, é necessário ressaltar, novamente, que este trabalho é uma possível
visão sobre Santo Forte, que não intenciona condensar a totalidade da obra, nem saturá-la de
reflexão. Mas sim, pensar alguns conceitos, que remetem à História Cultural e à História das
Religiões, suas problemáticas e o modo que estes podem ser observados na obra.

Referências Bibliográficas
BURKE, Peter. Hibridismo Cultural. RS: UNISINOS, 2003.

ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. Tradução Rogério Fernandez. São Paulo: Martins
Fontes, 1992.

HERVIEU-LÉGER, Danièle. O peregrino e o convertido: a religião em movimento.


Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.

LINS, Consuelo. O documentário de Eduardo Coutinho: televisão, cinema e vídeo. Rio de


Janeiro: Jorge Zahar, 2004

LINS, Consuelo; MESQUITA, Cláudia. Filmar o Real: sobre o documentário brasileiro


contemporâneo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.

NAPOLITANO, M. Fontes audiovisuais: a história depois do papel. In: Carla Bassanezi


Pinsky. (Org.). Fontes Históricas. 1 ed. São Paulo: Editora Contexto, 2005, v. 1, p. 235-290.

PESAVENTO, S. J. O mundo da imagem: território da história cultural. (In) Narrativas,


imagens e práticas sociais: percursos em História Cultural. PESAVENTO, S. J.; SANTOS,
N. W.; ROSSINI, M. (Orgs.). 1. ed. Porto Alegre: Asterisco, 2008. v. 1. p.99-122

SANTO forte. Direção: Eduardo Coutinho. Rio de Janeiro: CECIP; RioFilme, 1999. 84min.
Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=CsoHSrxtjvo. Acesso em: 09 de setembro
de 2016.

SCARELI, G. Santo Forte: a entrevista no cinema de Eduardo Coutinho. Campinas:


Universidade Estadual de Campinas, 2009 (Tese de Doutorado).

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O uso do discurso hagiográfico na Crônica dos Anos Passados: O funeral de Iziaslav


(1078)
Leandro César Santana Neves 156

Resumo: Este trabalho visa propor uma maneira alternativa de análise da narrativa sobre o
funeral do príncipe Iziaslav Iaroslavitch de Kiev, sendo tal narrativa sendo uma passagem da
fonte rusa conhecida como Crônica dos Anos Passados, inserindo-a dentro da categoria de
texto hagiográfico. Em um primeiro momento, será discutido o aparato teórico que justifica a
noção de que a hagiografia não consiste um gênero literário e puramente festivo, mas em um
discurso construído por um autor ou por autores tentando legitimar determinado projeto
político. Após tal explicação, será mostrado como a fonte fez uso do discurso hagiográfico
para satisfazer a necessidade de seus autores, neste caso a redenção da memória de Iziaslav
com Rus de Kiev.
Palavras-chave: Iziaslav Iaroslavitch de Kiev; Crônica dos Anos Passados; Hagiografia.

The use of hagiographic discourse in the Russian Primary Chronicle: Iziaslav's funeral
(1078)
Abstract: This paper proposes an alternate analysis of the tale of Prince Iziaslav Iaroslavitch
of Kiev's funeral, present in the Rusian source known as Russian Primary Chronicle,
characterizing it as an hagiographical text. At first, the theoretical apparatus that justifies the
notion of an hagiography being not a festive literary genre, but a discourse constructed by
author or authors trying to legitimate a particular political project, will be discussed. After
such explanation, it will be shown how the text made use of the hagiographic discourse to
satisfy the needs of its authors; in this case the redemption of Iziaslav's image within Kievan
Rus.
Key-words: Iziaslav Iaroslavitch of Kiev; Russian Primary Chronicle; Hagiography.

Este artigo visa propor uma leitura alternativa da fonte conhecida como Crônica dos
157
Anos Passados ou Povest Vremmenykh Let , principal fonte para o estudo do período
conhecido como Rus de Kiev na Rússia, Ucrânia e Belarus. Tal leitura será baseada no
conceito, ou melhor, na noção de hagiografia, entendida neste trabalho não como mero gênero
literário mas como um discurso surreal que articula memória e História.

156
Mestrando em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Rural do Rio
de Janeiro (PPHR), sob a orientação do professor Dr. Marcelo Santiago Berriel. Membro do PLURALITAS -
Núcleo Interdisciplinar de Estudos Históricos. Link para o currículo Lattes:
http://lattes.cnpq.br/1647296759249155
157
Sempre que possível, abreviada no corpo do texto como PVL. Nas citações a abreviatura refere-se à tradução
ao russo por Dmitri Likhatchov e Varvara Adrianova-Peretts.
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Para tanto, o artigo é composto por três partes. A primeira parte consiste em uma análise
da própria concepção de hagiografia desde aqueles cuja definição aparentemente teria sido o
significado de documento hagiográfico: a Sociedade dos Bolandistas. Será discutido também
nesta parte a concepção de Michel de Certeau acerca do que ele pensava que seria a real
contribuição dos Bolandistas, opinião fortemente presente na academia brasileira nos dias
atuais, e como esta opinião resiste a uma análise contra uma historiografia renovada sobre os
estudos hagiográficos, sobretudo por Anneke Mulder-Bakker e Guy Philippart. Na segunda
parte será feita uma análise do documento, primeiro mencionando sua origem, sua autoria,
suas versões e sua temática. Veremos que a fonte em si é tão controversa quanto os fatos que
nela estão contidos, e que seu enquadramento enquanto crônica universal não impede uma
análise de seu discurso utilizando os pressupostos sobre hagiografia contidos no capítulo
anterior. Após esta breve apresentação, na terceira e última parte será feita uma análise mais
detalhada do trecho selecionado da PVL, utilizando-se dos referenciais presentes na primeira
parte para atribuir uma nova maneira de enxergar os eventos descritos, o funeral de Iziaslav
Iaroslavitch, Príncipe de Kiev durante o terceiro quartel do século XI, no ano de 1078.

A trajetória da noção de hagiografia


Como este artigo tenta demonstrar a possibilidade de entrelaçar memória e imaginário
social em uma análise de fontes hagiográficas, explicaremos nesta parte o que seria o
"conceito" de hagiografia para nós. O sentido "moderno" da palavra vem da interpretação das
obras sobre santidade e hagiografia dos jesuítas da Sociedade dos Bolandistas, considerados
pelo o historiador belga Guy Philippart como os primeiros "especialistas sobre santidade"
(PHILIPPART, 1998, p. 17). E para entender tal sentido, devemos adentrar brevemente sobre
a história desta ordem e seu "pioneirismo" nos estudos sobre hagiografia.
A Sociedade dos Bolandistas consiste em uma ordem jesuíta holandesa fundada durante
a Contrarreforma, que foi nomeada em homenagem ao jesuíta flamenco Jean Bolland (1596 –
1665). O próprio Bolland é famoso por ter começado a compilar e escrever diversas vidas de
santo para a Acta Sanctorum, indubitavelmente seu magnum opus com várias semelhanças à
compilação que seu mestre Heribert Rosweyde (1569 – 1629) tentou realizar enquanto vivo
com sua Fasti Sanctorum (MACHIELSEN, 2013, p. 106). Embora ambas as obras tivessem

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diferenças de apresentação e de razão de ser escrita 158, sua metodologia de análise dos santos
são consideradas como as pioneiras no campo de estudo de hagiografia e santidade. Bolland
em especial teve maior cuidado com suas fontes após revisar cuidadosamente o material feito
por Rosweyde, e seu método de compilação da Acta Sanctorum foi celebrado pelos
historiadores, principalmente pelos ligados à Igreja.
O método de Bolland para a construção da Acta Sanctorum fora durante muito tempo,
teoricamente, conhecido. Historiadores afirmavam com frequência que a noção de hagiografia
derivaria do modo em que a Acta fora organizada (PHILIPPART, 2012, p. 11). Com base na
metodologia e nas pesquisas dos Bolandistas, o historiador jesuíta francês Michel de Certeau
formulou considerações sobre a hagiografia tentando conceituá-la, em uma definição que
pode ser considerada como clássica devido ao constante acesso à esta pela historiografia sobre
o tema.
Certeau, no livro A Escrita da História, afirma que a hagiografia seria um gênero
literário de cunho edificatório (CERTEAU, 2007, p. 266), cuja principal função seria festiva
devido ao grande número de figuras retóricas que compõe o texto hagiográfico (CERTEAU,
2007, p. 270). O seu vocabulário ocasionaria não em um texto historiográfico mas sim lúdico,
um verdadeiro "discurso de virtudes" (CERTEAU, 2007, p. 266), onde as camadas mais
populares poderiam distrair-se das obrigações e ter um sentido maior de pertencimento. Nas
palavras do próprio autor, "A hagiografia seria a região onde, localizados no mesmo lugar e
condenados juntos, pululam o falso, o popular, e o arcaico" (CERTEAU, 2007, p. 271), o que
causava a constante censura e intervenção clerical em sua escrita e divulgação.
Michel de Certeau chegou às conclusões acima na década de 1970, analisando a obra
dos Bolandistas e interpretações de historiadores e outros pesquisadores ligados à Igreja como
Hippolyte Delehaye. A partir da década de 1960 porém, segundo Maria de Lourdes Rosa,
temas relacionados à religiosidade no medievo vêm sido estudados por historiadores com
pressupostos da ciência da História de modo laico (ROSA, 2012, p. 25-28). De certo modo, as
novas tendências proporcionaram aos historiadores a possibilidade de questionar, entre outros
assuntos recorrentes na temática, se de fato houve religião na Idade Média, visto que religião
se trata de um conceito moderno (ROSA, 2012, p. 34). O olhar historiocêntrico sobre temas

158
Jan Machielsen argumenta que Rosweyde estava mais preocupado com a filologia e tinha como intenção
combater as heresias, enquanto Bolland pretendia comprovar os milagres dos santos em sua compilação, e se
estes eram por influência divina ou demoníaca, cf. MACHIELSEN, 2013, p. 108; 124-125.
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antes restritos à teologia ou a historiadores ligados a uma ordem religiosa proporcionou novas
análises mais críticas, e como exemplo temos a rediscussão sobre o "verdadeiro" legado dos
Bolandistas para o estudo das hagiografias.
Philippart, ao tentar analisar as legendas presentes na Acta, chegou à conclusão que não
há necessariamente um ponto em comum entre as hagiografias que garanta uma definição
comum. De fato, Philippart argumenta que a única característica em comum dos textos seria
seu discurso. Além disso, Jan Machielsen afirma que a Acta Sanctorum, além da Fasti
Sanctorum de Rosweyde, tiveram motivos para serem escritos: em plena Contrarreforma e em
meio à controvérsia Jansenista, ambos tinham como principal função a legitimação do santos
(MACHIELSEN, 2013, p. 141). Mesmo a seleção dos textos que seriam considerados como
hagiografia pelos Bolandistas eram excludentes. Os jesuítas somente consideravam textos em
latim ou grego para a Acta Sanctorum cujo culto fora comprovado (MULDER-BAKKER,
2002, p. 12) 159.
Assim, contrariando a "conceituação" de usual que a hagiografia seria apenas um
gênero literário, concordamos como uma historiografia relativamente recente sobre que
hagiografia seria um discurso 160. Citando a historiadora holandesa Anneke Mulder-Bakker:
"Todo texto, não importando o gênero, que lida com santos é um texto
hagiográfico, e merece um estudo; ou, para expor ainda mais enfaticamente, toda
fonte que diz algo sobre um santo, e também uma imagem ou objeto material, é uma
fonte hagiográfica (MULDER-BAKKER, 2002, p. 13) 161.

Podemos ir mais além e concordar com Philippart ao afirmar que o modo mais prático
de definir o que é uma hagiografia seria como um discurso de narrativa surreal
(PHILIPPART, 2012, p. 13). Tal discurso não está isento de topoi, mas não existe nem nunca
existiu um manual de como escrever uma hagiografia, contrário às afirmações dos estudos
anteriores sobre o tema. Logo, há margem de discussão sobre o que seria um possível
conceito de hagiografia (PHILIPPART, 2012, p. 35).

159
Vale ressaltar que as vitae em latim e grego não poderiam ser na variante vernácula destes idiomas.
160
O texto fundador da noção de hagiografia enquanto discurso consiste em L'hagiographie: un «genre»
chrétien ou antique tardif?, de Marc van Uytfanghe (surpreendentemente publicado na Analecta Bollandiana),
citado tanto por Philippart quanto Mulder-Bakker. Infelizmente, ainda não temos acesso ao artigo.
161
Every text, in whatever genre, that deals with saints is a hagiographic text, and is deserving of study; or, to
state it even more emphatically, every source that says something about a saint, also an image or a material
object, is a hagiographic source. (Tradução livre)
226
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Como não se trata de um gênero literário, o discurso hagiográfico não está preso somente a
textos considerados pelo senso comum como "hagiografia", sendo possível encontrar tal
discurso até mesmo em fontes não-textuais como relógios, afrescos, pinturas, entre outras.
Mais uma vez apoiando-se em Philippart, é importante lembrar que hagiografia não significa
somente uma "vida de santo" (PHILIPPART, 1998, p. 36). Hagiografia seria então um
discurso surreal proveniente de qualquer meio capaz de produzi-lo, que procura em um tipo
de topos enfatizar as qualidades de herói do protagonista (GOULLET, 2004, p. 10 ‒ 12),
sento ou não tal protagonista um santo. Com a hagiografia sendo um discurso e não um
gênero é possível considerar uma fonte cronística como um texto hagiográfico, o que será
demonstrado mais tarde neste artigo.
Analisar uma fonte utilizando as concepções supracitadas implica em dizer que a
hagiografia pode ser, ao contrário do que afirma Certeau, um exemplo de escrita da História;
algo que a historiografia vem recentemente tentando entender. Por exemplo, a historiadora
brasileira Néri Almeida, ao pesquisar sobre a Legenda Aurea, consegue demonstrar que a
compilação foi realizada com um propósito externo à edificação: Jacopo de Varazze tenta
recontar os grandes feitos dos dominicanos a partir de santos exemplares associados à ordem
(ALMEIDA, 2014, p. 107-108). Assim, é possível perceber uma intencionalidade por parte do
autor/compilador 162 em sua escrita, e a autora consegue a partir desta observação concluir que
a Legenda Aurea, utilizando-se do maravilhoso, cria um "tripé" contendo a hagiografia,
propaganda e memória histórica, produzindo assim sentido para a audiência inicial do texto
(ALMEIDA, 2014, p. 111).
É importante então frisar a relação entre hagiografia e memória. Sobretudo nas
sociedades "medievais", onde o domínio da escrita e da leitura era restrito e a tradição oral
vigorava, os responsáveis pela escrita hagiográfica geralmente utilizavam-se da oralidade
como matéria-prima de seus escritos (FENTRESS e WICKHAM, 1992, p. 145). A memória
social presente nesta oralidade era então ressignificada no documento, sempre ecoando temas
do contexto histórico em que está sendo escrito (FENTRESS e WICKHAM, 1992, p. 171 ‒
172), dando assim uma familiaridade temática ao público-alvo.
O discurso hagiográfico possui portanto uma memória social forte de seu público leitor.
Mas essa memória sempre é "articulada" (FENTRESS e WICKHAM, 1992, p.48) de acordo

162
Para a opinião da autora acerca de Jacopo e sua relação com a fonte, ver ALMEIDA, 2014, p. 100.
227
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com a intenção de seu articulador. Retornando ao exemplo da Legenda Aurea, Jacopo de


Varazze compilou/escreveu a fonte em um período de crise da ordem dos Dominicanos, e
com o intuito de legitimá-la, apresentou por exemplo santos como Domingos e Pedro Mártir,
tais frequentemente associados à ordem, como uma "ascensão positiva", sendo assim um dos
modos de consolidação fazendo-se uso da função pedagógica da hagiografia (ALMEIDA,
2014, p. 111).
Com as considerações teóricas sobre hagiografia explicitadas acima, discutiremos agora
nossa fonte cujo discurso será analisado nesse trabalho: a Crônica dos Anos Passados.

A Crônica dos Anos Passados


Dados nossos pressupostos teóricos mencionados na primeira parte, começaremos essa
segunda parte pela análise da fonte para tentar demonstrar nossa proposta de leitura e
interpretação da narrativa do funeral do príncipe Iziaslav de Kiev. É válido porém, antes da
análise do conteúdo da fonte, falar um pouco mais sobre esta, possibilitando assim um melhor
entendimento de sua narrativa.
O documento a ser analisada neste trabalho consiste na fonte mais importante para o
estudo de Rus de Kiev: a Povest Vremmenykh Let, também conhecida como "Crônica dos
Anos Passados", "Crônica Primária" ou "Crônica de Nestor". Devido à natureza material da
fonte, uma análise meramente superficial baseada em seu gênero literário pode ocasionar na
percepção de passagens com discurso hagiográfico sejam largamente ignoradas em favor de
passagens diretamente retiradas de textos considerados como hagiografias 163.
De fato, ao analisarmos a estrutura da PVL, pode-se perceber que a fonte se encaixa no
tipo de documentação conhecida como "Crônica Universal". Tal estilo consistia, conforme
afirma José Miguel de Toro Vial, em "[...] narrar a história da humanidade, desde a criação,
em uma perspectiva cristã, até o presente do autor" (TORO VIAL, 2015, p. 158). Sobre suas
especificidades enquanto uma crônica universal, a PVL transita pelas classificações de A. D.
van den Brincken tanto como uma series temporum, com seu relato em primeiro momento
marcado por uma cronologia abrangente e sem margem para a reflexão do(s) cronista(s) sobre

163
Como exemplo temos Serge Zenkovsky, que em sua compilação de fontes medievais divide as "vidas de
santos" presentes na PVL das "histórias e épicos" presentes na mesma, aparentemente ignorando o caráter surreal
e litúrgico de certas narrativas como a morte de Oleg e o batismo de Olga. Ver ZENKOVSKY, 1974, p. 101-116
(vidas de santos); e p. 43-77 (narrativas consideradas como "épicos" e "histórias").
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os acontecimentos (TORO VIAL, 2015, p. 166-167); como também uma crônica do tipo mare
historiarum, forte a partir de um certo momento da crônica onde o(s) cronista(s) apresenta sua
164
reflexão histórica sobre os acontecimentos . A PVL consiste em um tipo híbrido dessas
classificações contemporâneas, e isto se deve ao problema de sua autoria.
Não se sabe, entre os historiadores e filólogos que estudam a PVL, quando a fonte
começou a ser escrita ou compilada. Donald Ostrowski acredita na hipótese originalmente
proposta por Aleksandr Chakhmatov de uma crônica original que antecedeu à compilação da
PVL e serviu como base para a criação desta, denominada Natchalnii svod e cujo cronista é
desconhecido (OSTROWSKI, 2004, p. xxxiv). A Natchalnii svod teria também sido base para
a Crônica de Novgorod, esta sendo datada de aproximadamente 1036, a qual Chakhmatov
acredita ser mais próxima do manuscrito original que a própria PVL. Assim, para o filólogo
russo, a Crônica de Novgorod poderia ser uma das bases da fonte (CHAKHMATOV apud
OSTROWSKI, 2004, p. xxxiii).
Samuel Cross e Olgerd Sherbowitz-Wetzor também acreditam na hipótese de uma
versão original, mas afirmam que a Natchalnii svod pode ser datada do final do século XI
(RPC, 1953, p. 225). Serge Zenkovsky concorda com Chakhmatov sobre a datação da PVL e
diz que esta começou a ser escrita por volta de 1040, e contou com pelo menos seis diferentes
escritores, incluindo Nikon e Nestor, o Cronista (ZENKOVSKY, 1974, p. 11). Aceitando a
hipótese de Chakhmatov, pode-se dizer que a PVL começou a ser escrita durante o governo
absoluto de Iaroslav Vladimirovitch, o Sábio (1016 ‒ 1017; 1018 ‒ 1054), geralmente
conhecido pelos historiadores como "Era Dourada" devido ao seu ápice cultural, econômico e
intelectual, sobretudo neste último campo com ênfase no direito e na literatura eclesiástica,
além de estabilidade política jamais vista antes ou depois 165.
As principais e mais antigas versões completas e encontradas da PVL consistem na
versão Laurentiniana datada do século XIV, tendo esse nome por ser de autoria do monge
Lavrentii; e na versão Ipatiana do século XV encontrada no monastério de Ipatiev (GRIFFIN,
2014, p. 4). Ambas as variantes possuem diferenças quanto à linguagem, grafia e sobretudo

164
É importante frisar que embora haja a reflexão autoral na PVL, esta encontra-se ainda presente no formato
cronológico sujeito às datas, enquanto de acordo com Toro Vial, as crônicas desse tipo geralmente não possuem
tal ênfase em sua datação. Ver TORO VIAL, 2015, p. 167
165
Por absoluto entende-se como Iaroslav sendo o único príncipe de Rus de Kiev, tal feito sendo somente
possível a partir de 1035 quando o co-príncipe Mstislav de Tmutorokan, que governava junto de Iaroslav desde
1024, faleceu. Ver FRANKLIN e SHEPARD, 1996, p. 187-188.
229
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inspiração, com a cronologia do texto Ipatiano se estendendo até o século XIV, com
inspiração das crônicas da Galícia ucraniana (RPC, 1953, p. 220). Outras versões são
posteriores e geralmente acrescentam outras passagens e/ou palavras. Como exemplo pode-se
citar as versões de Radzwiłł, datada do final do século XV e de Khlebnikov, de meados do
século XVI. Todas repetindo a mesma base narrativa mas com palavras diferentes que
dificultam saber qual seria a versão mais fidedigna à original (OSTROWSKI, 2004, p. xxv ‒
xxvi). Como é a versão mais antiga, será utilizada neste trabalho a versão laurentiniana da
PVL, serão utilizada a tradução para o russo feita por Dmitri Likhatchov e Varvara
Adrianova-Peretts e a para inglês por Samuel Cross e Olgerd Sherbowitz-Wetzor 166.
A autoria da PVL também é uma questão complexa. A Crônica foi conhecida por
muito tempo como "Crônica de Nestor" pois sua autoria era atribuída à São Nestor, o
Cronista, devido à um erro de interpolação de uma versão do século XVI. De acordo com o
historiador ucraniano Oleksiy Tolochko, duvidar da autoria de Nestor no século XIX era
equiparado ao "antipatriotismo", mesmo com a ideia de Nestor como autor da fonte sendo
datada do século XVIII e invenção do celebrado historiador russo Vasili Tatichtchev
(TOLOCHKO , 2007, p. 35). Mas ao compararmos com outros trabalhos de Nestor como
Vida de Feodosii de Kiev e Lição sobre Boris e Gleb, a PVL não se mantém fiel aos próprios
escritos que supostamente são do santo cronista, sobretudo as entradas de 1015 à 1019 e a
Lição (TOLOCHKO , 2007, p. 33). O hegúmeno Silvestre também é candidato a escritor da
PVL devido à uma assinatura presente na versão laurentiniana, e há grande possibilidade dele
ser o último compilador.
Embora a historiografia não saiba quem escreveu, ou compilou, a PVL, é consenso que
mais de um cronista fez parte da redação da PVL devido aos estilos de escrita conflitantes
presentes ao longo da fonte e também de informações muitas das vezes. Outro consenso é o
fato de, quem quer que seja o(s) cronista(s), era(m) certamente membro(s) do clero, pois fora
escrita em eslavo eclesiástico, língua literária quase exclusivamente de uso clerical e, de
acordo com Samuel Cross, parece sofrer influência de outras crônicas, sobretudo a
Chronographia de George Hamartolus (RPC, 1953, p. 23-30), além de constantemente citar a
Bíblia em suas passagens. O conhecimento da Bíblia e de crônicas gregas por parte de quem

166
Para comodidade do leitor brasileiro, a versão em inglês será citada primeiro.
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escreveu serviram de inspiração para a redação final, e somente um clérigo teria acesso às
fontes supracitadas.
Escrita em formato anno mundi, isto é, com o primeiro ano começando na Criação, a
cronologia da PVL começa com as consequências do Dilúvio e a enumeração dos povos
descendentes dos filhos de Noé, sendo os eslavos descendentes de Jafé para o cronista. Várias
167
descrições étnicas e geográficas aparecem na fonte até a introdução do varego lendário
Rurik, fundador da dinastia Ruríquida que governou Rus de Kiev, Rus de Muscóvia e a
Rússia por mais de sete séculos 168.
Não é original deste trabalho a ideia de que a PVL é muito mais do que um simples
texto cronístico. Sean Griffin já chamou atenção ao caráter litúrgico da fonte, embora focando
em somente nas passagens sobre os santos de Rus, afirma em um pano de fundo litúrgico por
trás da PVL com base no calendário litúrgico vigente em Rus para criar um passado cristão
comum (GRIFFIN, 2014, p. ii; 146-147), de certo modo, uma memória cristã do passado. O
pensamento de Griffin corrobora com as conclusões estabelecidas sobre a natureza da
hagiografia na primeira parte, e a PVL, sendo um tipo de "escrita da História" por natureza,
não está imune ao discurso hagiográfico, assim como fontes medievais que devido a
classificação sobre o gênero deveriam ser classificadas como hagiografias podem ser
demonstrações de uma escrita da História (TEIXEIRA, 2015, p. 144-157). De acordo com
Jacques Le Goff, a noção de História no período caracterizado pelos historiadores de hoje
como "medievo" era caracterizada por, entre outros fatores, uma estrutura providencialista e a
lógica de um povo privilegiado (LE GOFF, 1990, p. 67). Os apontamentos anteriores
corroboram com nossa hipótese de que a PVL faz-se uso do discurso hagiográfico em diversos
momentos dentro de sua narrativa com propósitos memorialísticos e pedagógicos por meio de
episódios de grandeza política os quais foram providenciados por Deus desde a promessa de
André, o Apóstolo.

167
Varegos, varegues ou varângios é a denominação dada a mercenários escandinavos pelos gregos e russos.
Estes também eram conhecidos como rus em algumas fontes, mas adentrando neste aspecto entra na famosa
"Controvérsia Normanista" sobre se de fato o povo russo e quem fundou Rus de Kiev era eslavo ou escandinavo.
Como este não é o objetivo deste trabalho, ver FRANKLIN e SHEPARD, 1996, p. 28 – 30.
168
O primeiro governante ruríquida cuja existência é comprovada por fontes estrangeiras é Igor (†944/5). O
último governante ruríquida consiste em Fiodor I Ivanovitch (1584 – 1598), que faleceu sem ter filhos e por
conseguinte seu cunhado Boris Godunov (1598 – 1605) assumiu a posição de Tsar.
231
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Entretanto, propomos ir além da interpretação de Griffin como pura liturgia ao destacar


seu caráter historiográfico, e também observar como se dá a tentativa de legitimação de uma
verdade oficial e instauração de uma "boa memória" por parte dos autores. Dado que o
princípio de que hagiografia trata-se de um discurso norteia este artigo, são válidas as palavras
do historiador contextualista inglês John Pocock quando este afirma na necessidade do
historiador compreender tanto o agente do discurso quanto sua visão de mundo, e também as
razões pela qual tal discurso existe em uma determinada época (POCOCK, 2003, p. 40).

O funeral de Iziaslav Iaroslavitch


Para comodidade do leitor, optamos em apresentar a pequena narrativa a ser analisada
por completo:
6586 169 [...] O Príncipe Iziaslav foi assassinado no dia 3 de outubro. Seu corpo foi
recolhido e, depois deste ser transportado por um barco, foi posto em Gorodets. A
cidade de Kiev inteira foi se encontrar com o corpo. Este fora colocado sob um
trenó, e escoltaram-no os clérigos e os monges com seus cantos pela cidade. Mas
seus cantares não puderam ser escutados por causa das lamentações e do choro, já
que toda cidade de Kiev estava de luto. Iaropolk seguiu o corpo: “Pai, meu pai,” ele
lamentava “tu viveste sem tristeza neste mundo, enquanto tu sofreste muitos ataques
de teu povo e de teus irmãos? Ele faleceu não pelas mãos de um irmão, mas ele deu
sua vida por seu irmão.” Seu corpo foi trago para a Igreja da Virgem Sagrada, e
colocado em um caixão de mármore.
O Senhor falou sobre tais homens: “Ninguém tem mais amor do que aquele que dá a
vida por seus amigos.” Salomão também disse: “Em toda ocasião ama o amigo, um
irmão nasce para o perigo.” Pois o amor está acima de todas as coisas, assim como
João disse: “E nós temos reconhecido o amor de Deus por nós, e nele cremos. Deus
é Amor: aquele que permanece no amor permanece em Deus e Deus permanece
nele. Nisto consiste a perfeição do amor em nós: que tenhamos plena confiança no
dia do Julgamento, porque tal como ele é também somos nós neste mundo. Não há
temor no amor: ao contrário: o perfeito amor lança fora o temor. porque o temor
implica castigo, e o que teme não chegou à perfeição do amor. Se alguém disse:
‘Amo a Deus,’ mas odeia o seu irmão é um mentiroso, pois quem não ama seu
irmão, a quem vê, a Deus, não poderá amar. E este é o mandamento que dele
recebemos: aquele que ama a Deus, ame também seu irmão.” Pois tudo é perfeito
com amor. Através do amor os pecados são lavados, por amor o Senhor desceu à
terra e foi crucificado por nós pecadores, e depois de tomar os nossos pecados, ele
foi pregado na cruz, dando-nos assim a sua Cruz para a eliminação do ódio dos
demônios. Por amor este príncipe derramou seu sangue por seu irmão, cumprindo
assim o mandamento do Senhor. (RPC, 1953, p. 166-167; PVL, 1996, p. 224-225)

A passagem acima refere-se ao funeral do Príncipe Iziaslav Iaroslavitch, que governou


Kiev em três ocasiões diferentes desde a morte de seu pai em 1054 até sua própria em 1078.

169
Corresponde ao ano de 1078.
232
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Na passagem, Iziaslav é reverenciado após sua morte trágica 170 por toda a cidade de Kiev, e o
texto segue com um pequeno eulógio, representando o príncipe como justo e correto, embora
tanto o povo kievano quanto seu irmão Sviatoslav II tenham sido responsáveis por tribulações
enquanto Iziaslav estava vivo.
Iaroslav o Sábio faleceu em 1055, e deixou a posição de Príncipe de Kiev para
Iziaslav, seu filho mais velho. Ao mesmo tempo, instituiu uma sucessão entre seus numerosos
filhos, com o primogênito como primeiro na linha de sucessão e seus irmãos seguindo a
ordem em que nasceram, com o filho do primogênito podendo tornar-se príncipe de Kiev
apenas quando seu último tio falecesse. Enquanto o primeiro filho governava Kiev, seus
irmãos governariam territórios menores em Rus, mas com importância diretamente
proporcional a sua ordem na linha sucessória (FRANKLIN e SHEPARD, 1996, p. 246-249)
171
. Os três sobreviventes, Iaroslav e seus irmãos Sviatoslav II de Chernigov e Vsevolod de
Pereiaslavl, formaram um "triunvirato" que durou até Sviatoslav II rebelar-se contra seus
irmãos em 1073 e assumir Kiev.
Dentro desta conjuntura, Iziaslav governou por três ocasiões, com a mais notória
sendo entre 1055 e 1068. Neste ano, após dois anos de invasões de seu primo Vseslav
Briatchislavitch de Polotsk e uma violenta incursão dos Cumanos 172, o conselho da cidade 173
de Kiev depõe Iziaslav e indica Vseslav, que estava preso, como novo Príncipe de Kiev.
Estranhamente, ao contrário do que a passagem de seu funeral diz, a PVL condenou Iziaslav e
disse que esses eventos foram de sua responsabilidade (e do povo por não ser fiel o bastante),
sendo representado como um líder que não ouve a população e nem seu séquito, e que
também desobedeceu ao Senhor por prender Vseslav, libertado pela própria população.
Iziaslav consegue somente voltar ao poder um ano depois, após Vseslav voltar para Polotsk e

170
Na passagem anterior, Iaroslav estava em batalha contra o exército de seu irmão e sucessor Sviatoslav II.
Iziaslav faleceu em decorrência de uma lança que atravessou seu ombro. Ver RPC, 1953, p. 165-166; PVL, 1996,
p. 223-224.
171
O testamento está presente na PVL mas não há provas se houve versão escrita, ou se foi realmente um
testamento de Iaroslav ou um acordo entre seus filhos após sua morte.
172
Povos nômades provenientes das estepes russas que, ao menos conforme a PVL, atacam a região de Rus desde
1061. Os Cumanos, também conhecidos como Polovtsy ou Pechenegues, aparecem em menções comparativas
nas primeiras páginas da PVL, e em 1054 o cronista diz que Vsevolod conseguiu fazer as pazes com eles após
um ataque frustrado de seu líder, Boluch.
173
Chamados de vetche. Ver VERNADSKY, 1972, p. 183; embora Vernadsky faça uma comparação um pouco
anacrônica com o parliament francês nos tempos da Revolução Francesa.
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seus irmãos convidarem Iziaslav de seu exílio na Polônia de volta para ser príncipe
novamente 174.
Em 1073 Iziaslav é retirado do governo de Kiev novamente, embora desta vez sendo
por seus irmãos. Por causa das armações do diabo, que facilmente seduziu Sviatoslav II
devido à sua sede por poder (RPC, 1953, p. 155; PVL, 1996, p. 216), Iziaslav mais uma vez
fugiu para a Polônia enquanto Sviatoslav assumira o trono de Kiev, e só voltaria em 1077, um
ano após a morte de Sviatoslav II por uma infecção e da rendição de Vsevolod, com quem
entrou em trégua e governaram Kiev juntos. Iziaslav finalmente faleceu em 1078 após ser
ferido em uma batalha contra Oleg Sviatoslavitch, que juntamente com seu primo Boris
Viatcheslavitch, "reuniram os pagãos" e tomaram Chernigov. Iziaslav sentiu a necessidade de
prevenir outro conflito entre irmãos e organizou uma campanha contra Oleg e Boris, somente
para falecer após receber uma flecha em seu ombro.
Na passagem, Iziaslav é representado como um governante justo que conhecera o
perdão como ninguém, já que foi expulso pelos Kievanos (com seu palácio sendo pilhado
pelos mesmos) e por Vsevolod, mas perdoou-os, até mesmo falando em sacrificar-se em prol
de seu irmão. A narrativa de Iziaslav tem um paralelo perceptível com a figura de Jesus.
175
Traído pelo povo e seus subordinados, Sviatoslav II e Vsevolod sendo seus irmãos mais
novos, Iziaslav mesmo assim deu seu perdão aos pares. Assim como Jesus, Iziaslav sofreu por
ignorância externa, e acabou morrendo para salvar aqueles que o traíram. Na passagem
imediatamente após o funeral, o cronista debate o amor, uma das características essenciais de
Jesus, obviamente fazendo paralelo com Iziaslav e seu amor incondicional por seu povo e sua
família. Iziaslav também possui a data exata de sua morte presente na PVL, exclusividade de
seu avô São Vladimir e de passagens após 1100. As evidências apontam para um santo
fabricado, embora Iziaslav jamais fora um santo 176.
Não parece ser surpreendente que Iziaslav não tenha sido cultuado pois ser expulso do
trono duas vezes, sendo uma por "democracia" popular, pode significar que Iziaslav nunca
fora o príncipe mais popular, contradizendo o luto coletivo da cidade de Kiev antes de seu

174
Simon Franklin diz que Vseslav foi uma "anomalia" e um exemplo de "desvio político", devido ao modo
como a PVL trata o incidente, cf. FRANKLIN e SHEPARD, 1996, p. 254.
175
Podemos ir mais longe e traçar paralelos entre Vseslav em 968 e o ladrão solto por Pilatos, mas este será um
estudo para o futuro.
176
Até a redação deste artigo, não conseguimos encontrar nenhum trabalho que sequer ateste a possibilidade de
uma santidade de Iziaslav, ou deste ser tratado como um santo.
234
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funeral. Então a questão principal seria por que Iziaslav fora tratado como um santo pela PVL.
Além de ter sido deposto várias vezes, Iziaslav também é famoso por ceder uma grande área
de terra para a fundação do Monastério das Cavernas de Kiev, um dos primeiros monastérios
e sem dúvida o mais poderoso em Rus ao menos até a conquista mongol. Argumentamos
anteriormente que embora seja impossível discernir o autor da PVL, é quase impossível que
ele não tenha sido um clérigo ou monge. E a probabilidade do autor fazer parte do Monastério
das Cavernas é bastante grande devido à menções muito longas à instituição ao longo da PVL,
incluindo um longo texto sobre a razão do monastério ter esse nome (RPC, 1953, p. 139-142;
205-207). Seria desvantajoso para o Monastério das Cavernas e seu projeto de cristianização
de Rus, que produziu um dos santos mais populares durante o período kievano na figura de
São Feodosii, ser associado a um Príncipe fraco e covarde 177.
É possível que somado à reputação do Monastério das Cavernas, uma das razões pelas
quais Iziaslav é representado como um santo na PVL seria seu sobrinho Vladimir
Vsevolodovitch, também conhecido como Vladimir Monômaco, que foi príncipe de Kiev
entre 1113 e 1126. Não só a narrativa de Iziaslav faz mais sentido se supormos que o príncipe
influenciou na escrita para "limpar" o nome de seu pai Vsevolod, que participou diretamente
da segunda expulsão de Iziaslav mas foi perdoado pelo mesmo, mas o governo de Vladimir
Monômaco fora marcado por sua intensa rivalidade política com Oleg Sviatoslavitch 178, filho
de Sviatoslav II e o mesmo Oleg cuja batalha resultou na morte de Iziaslav.
Ao construir uma memória positiva de Iziaslav (e de seu pai) ao mesmo tempo em que
denegria a imagem de Sviatoslav II e de Oleg, Vladimir Monômaco conseguiria uma
legitimação de seu governo e o seguro de que seus filhos poderiam controlar Kiev e os outros
principados mais importantes, ao contar pelo menos com o apoio do clero e do povo. E dada a
importância atribuída a Vladimir Monômaco na PVL, pode-se dizer que o poder central e a
Igreja tinham uma relação pacífica de mútua ajuda com aquele sendo também responsável
pela evangelização do povo de Rus (VERNADSKY, 1972, p. 247).
A figura de Iziaslav portanto pode ter conseguido atributos de santidade típicos do
discurso hagiográfico para legitimar a política de Vladimir Monômaco e o mesmo tempo
177
A passagem que diz que Iziaslav não ouviu o povo nem seu séquito ainda está presente nas entradas de 1068.
178
Tão importante e sangrento fora o conflito entre os dois primos que basicamente até a conquista mongol
houveram guerras pela conquista de Kiev (e também dos principados mais importantes como Novgorod e
Vladimir-Suzdal eventualmente) entre os descendentes de Vladimir Monômaco e de Oleg, com recepções de
governante variando de local a local conforme a dinastia pertencente (FRANKLIN e SHEPARD, 1996, p. 277).
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deslegitimar a linhagem de Oleg Sviatoslavitch. Suas ações anteriores foram redimidas no


curso da narrativa ao ser apresentado como um homem justo e capaz de perdoar seu irmão e
seu povo, implicando que este deve agir da mesma maneira que Iziaslav e perdoá-lo.

Considerações finais
Tentamos neste artigo não só a articulação entre a noção de hagiografia enquanto
discurso surreal aos conceitos de memória social e imaginário social em uma perspectiva
teórica, mas também sua aplicação em uma fonte que, na perspectiva de Michel de Certeau
não poderia ser qualificada como uma hagiografia, propondo assim uma leitura alternativa da
Crônica dos Anos Passados baseada em seu conteúdo discursivo.
Mesmo sendo uma hagiografia, é de suma importância ler a PVL, ou de fato qualquer
179
fonte textual , levando em consideração as condições na qual fora escrita. A PVL, escrita
pelo clero apoiado pelo príncipe de uma dinastia rival, propunha criar uma nova memória
oficial de um personagem não muito amistoso aos olhos locais, tentando assim impor uma
nova representação de Iziaslav. Pela ausência de sua canonização, podemos dizer que a
ideologia proposta pela hagiografia não deu muito certo, e Iziaslav não conseguiu se juntar
aos santos de Rus de Kiev popularizados pela PVL paradoxais ao próprio conceito de
hagiografia aqui debatido, como Olga (conduta feminina muito diferente da proposta pela
Igreja) e Vladimir (ausência de milagres).

Documentação
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2, jul.-dez., 2014, p. 94-111.

179
A noção de hagiografia presente neste artigo não se resume porém às fontes textuais, podendo ser utilizadas
por exemplo em fontes imagéticas e arquitetônicas.
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Os carmelitas alemães e a identidade católica em Paranavaí-PR (1951-1971)


Leide Barbosa Rocha Schuelter180
PPH UEM/LERR

Resumo: Este trabalho é um desdobramento do projeto de doutorado em andamento,


intitulado Os carmelitas alemães e a identidade católica em Paranavaí-PR (1951-1971). A
cidade de Paranavaí-PR, no início da década de 1950 se caracterizava como um território em
processo de ocupação, para o qual advinham colonos que almejavam melhores condições
materiais. Sendo o catolicismo a religião da maioria dos imigrantes, o fator religioso foi
primordial para promover a identidade entre pessoas tão diferentes. Nesse sentido, a
finalidade deste trabalho é apresentar a pesquisa em desenvolvimento, que versa acerca da
institucionalização do catolicismo na região de Paranavaí-PR, relacionando-o com a tentativa
de inserção de modelos de civilidade católica, pautados nas concepções de catolicismo
concebidos por frades carmelitas alemães. Nossas fontes de pesquisa são cartas e artigos que
foram produzidos pelos religiosos e publicados na revista alemã Karmelstimmen. Para
analisarmos essas narrativas elencamos enquanto aportes teóricos as categorias de
religiosidade católica (ANDRADE, 2008) e estratégias (CERTEAU, 1994).
Palavras-chave: carmelitas; catolicismo; Paranavaí-PR.

The german carmelites and the catholic identy in Paranavaí-PR (1951-1971)


Abstract: This work is an unfolding of the doctoral project titled The German Carmelites and
the Catholic Identity in Paranavaí-PR (1951-1971). The city of Paranavaí-PR, in the early
1950s, was characterized as a territory in the process of occupation, to which settlers who
sought better material conditions were attracted. Catholicism being the religion of most
immigrants, the religious factor was paramount in promoting identity among such different
people. In this sense, the purpose of this work is to presente the research in development,
which deals with the institutionalization of Catholicism in the region of Paranavaí-PR,
relating it to the attempt to insert models of Catholic civility, based on the conceptions of
Catholicism conceived by Carmelite friars Germans. Our sources of research are letters and
articles that were produced by religious and published in the German magazine
Karmelstimmen. In order to analyze these narratives, we cite as theoretical contributions the
categories of Catholic religiosity (ANDRADE, 2008) and strategies (CERTEAU, 1994).
Keywords: Carmelites; Catholicism; Paranavaí-PR.

Introdução:
Este trabalho181 tem por intuito apresentar a pesquisa em andamento que versa acerca
do processo de institucionalização do catolicismo em Paranavaí-PR182, que atrelado a esse

180
Graduada em História pela Universidade Estadual de Maringá (2002). Especialista em História das Religiões
DHI/UEM (2012). Mestre em História PPH/ UEM (2015). Doutoranda em História do curso de Pós-Graduação
em História da Universidade Estadual de Maringá. E-mail: leideschuelter@hotmail.com.
181
Para maiores informações consultar: SCHUELTER, Leide Barbosa Rocha. As aventuras de 3 missionários
alemães em Paranavaí enquanto possibilidade de fonte histórica para o estudo da religiosidade católica no
município de Paranavaí-PR (1950-1960). 2012. 23f. Trabalho de Conclusão de Curso (Especialização) –
Departamento de História da Universidade Estadual de Maringá, Maringá,(2012). O trabalho teve como
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fator, instituiu normas de civilidade. Esse projeto foi desenvolvido pela Ordem dos Irmãos da
Bem-Aventurada Virgem Maria do Monte Carmelo ou Ordem do Carmo (1951-1971).
No final da década de 1930 a Oberdeutsche Provinz der Karmeliten –Província
Carmelita de Bamberg-, região da Baviera, envia um membro de sua Ordem ao Brasil em uma
tentativa de expansão, que seria materializado com a abertura de uma região missionária.
Paranavaí e região no momento histórico estudado, se caracterizavam como território
em processo de ocupação e existia uma confluência de pessoas vindas de vários lugares do
Brasil, o que possibilitou aos frades alemães um relevante poder de decisão frente as situações
que ocorriam.
Distante da Alemanha e, em virtude dos escassos meios de comunicação, a troca de
informações entre os freis e a Província Carmelita de Bamberg era realizada por meio de
cartas, algumas das quais foram publicadas, posteriormente, sob a forma de artigos na revista
católica alemã “Karmelstimmen”183.
Publicadas em alemão, foram posteriormente traduzidas para o português e publicadas
de maneira impressa ou digital, por Frei Wilmar Santin184: “Os 25 anos dos carmelitas da
Província Germaniae Superioris no Brasil185 (1976) ”, “História e memórias de Paranavaí
(1992) ”, “Minha viagem missionária à cidade de Paranavaí (1992) ”, “As aventuras de 3
missionários alemães em Paranavaí (2001) ” e, “Erinnerungen eines Brasilienmissionars
(2012) ”186.
O primeiro texto Os 25 anos dos Carmelitas da Província Germaniae Superioris no
Brasil, (1976), escrito por Frei Joaquim Knoblauch é composto por biografias, o religioso
apresenta os missionários que vieram a Paranavaí, centrando sua narrativa nos primeiros anos.

orientadora a Professora Doutora Vanda Fortuna. SCHUELTER, Leide Barbosa Rocha. Do Paraná à Baviera:
cartas e artigos da ordem do Carmo acerca da implantação do catolicismo em Paranavaí-PR (1952-1958). 2015.
121 f. Dissertação (Mestrado). Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Estadual de Maringá,
Maringá, 2015.
182
Paranavaí é um município localizado na região Noroeste do estado do Paraná.
183
A revista Karmelstimmen mudou de nome, e na atualidade chama-se Karmel-Kontakt. . O periódico esta
Disponível no endereço eletrônico:
http://www.karmeliten.de/aktuelles/karmelkontakt/index.html. Acesso 31/01/2017.
184
Frei de nacionalidade brasileira, pertence a Ordem dos Carmelitas da Antiga Observância. Nasceu na cidade
de Nova Londrina-PR e foi nomeado bispo da Prelazia de Itaituba-PA no dia 08/12/2010, sua ordenação
episcopal ocorreu no dia 19 de março de 2011, em Paranavaí.
185
Esse documento foi publicado na Revista Karmelstimmen no ano de 1976.
186
Essa obra publicada na Alemanha, não foi editada em português.
240
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Acrescentemos que o carmelita em questão chegou a Paranavaí em 1962, portanto, 11 anos


depois do início do trabalho missionário na região. (KNOBLAUCH, 1976, p. 06).
O segundo livro História e memórias de Paranavaí (1992), de autoria de Frei Ulrico,
faz referências aos fatos ocorridos desde sua chegada à Recife em 1936 e posteriormente a
Paranavaí em 1951. Os fatos narrados pelo religioso, serão analisados enquanto “ memórias
missionárias”, pois abordam acontecimentos de sua trajetória enquanto homem religioso.
Ainda que não sejam artigos científicos, foram produzidos para serem publicados em uma
revista católica.
Minha viagem missionária à cidade de Paranavaí (1992) é um livro composto por
relatos de viagem escritos em 1952, divididos em quatro textos e publicados, respectivamente,
em maio, julho, agosto e setembro de 1952, na Revista Karmelstimmen.
O quarto documento apresenta as cartas e os artigos escritos por cinco freis carmelitas
alemães, entre os anos de 1952 e 1958 e publicados na Revista Karmelstimmen,
periodicamente ao longo desses anos. Posteriormente foram reunidos em um compêndio
intitulado: “As aventuras de 3 missionários alemães em Paranavaí”. Os autores são: Frei
Alberto Foerst, Frei Burcardo Lippert, Frei Henrique Wunderlich, Adalbert Deckert e Frei
Bruno Doepgen.
O último documento “Erinnerungen eines Brasilien-missionars”, publicado em 2012
na Alemanha, apresenta a trajetória de Frei Alberto Foerst, perpassando os motivos de seu
envio a Paranavaí (1954), até sua transferência para a cidade de Dourados-MS (1985). Ao
descrever sua trajetória, o religioso agrega a sua narrativa os fatos que ocorreram ao longo de
seus 55 anos de estadia no Brasil.
Escrever acerca do que ocorria na região missionária de Paranavaí era uma exigência
que tinha uma dupla função: em primeiro momento informar aos leitores da revista católica os
avanços e dificuldades pelos quais passávamos alemães missionários, além de angariar
fundos. E a segunda função era informar aos superiores da Ordem Carmelita os detalhes do
que ocorria na região missionária, para dessa maneira traçarem estratégias de ação.
A narrativa produzida pelos freis carmelitas apresenta relatos do cotidiano vivenciado
nesse território e constitui rico material ao nos apresentar o trabalho realizado de transpor em
forma de texto aquilo que vivenciaram. Analisaremos essas fontes a partir do olhar da
biografia e autobiografia, o que nos possibilitará pensar as fontes a partir de trajetórias únicas,

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mas que, todavia, são influenciadas por seu contexto. (LEVI, 2006; BOURDIEU, 2006;
LEJEUNE, 2008).
Outra perspectiva será pensar as narrativas a partir de memórias, pois as obras
“Histórias e memórias de Paranavaí” (1992) e “Erinnerungen eines Brasilien-missionars”
(2012), foram publicadas posteriormente aos fatos narrados. As obras de Viñao (1998), Frago
(1999) e Portelli (2000), serão fundamentais pela possibilidade que oferecem de pensar a
memória.
[…] os indivíduos e os grupos evidenciam a relevância de dotar o mundo que os
rodeia de significados especiais, relacionados com suas próprias vidas, que de forma
alguma precisam ter qualquer característica excepcional para serem dignas de ser
lembradas (GOMES, 2004, p. 11).

Ao trabalharmos com a institucionalização do catolicismo em Paranavaí, a partir das


narrativas de seus agentes, acreditamos que somente as categorias de biografia/autobiografia,
memórias, relatos de viagem, não são suficientes para abarcar toda a complexidade da sua
produção. O conceito de escrita hagiográfica de Michel de Certeau, será nosso fio condutor,
pois essa escrita dá sentido a documentação produzida pelos freis alemães, no sentido de
edificação do trabalho que estava sendo realizado pelos mesmos. A hagiografia é uma forma
de escrita que tem por intuito a edificação de seus personagens, portanto, se colocando como
uma variação dentro da historiografia, já que não almeja ser um discurso do real, mas sim
uma exemplaridade (CERTEAU, 1982).

Contexto religioso
A vinda desses religiosos ocorreu no contexto do catolicismo ultramontano, cuja
origem está relacionada a uma expressão usada no início do século XIX, na França e na
Alemanha para fazer referência a Roma, que estava além das montanhas. O período chamado
de ultramontano inicia-se com o papa Pio VII (1800-1823) e tem seu declínio com Pio XII
(1939-1958), caracterizando-se como um período marcado por práticas conservadores e um
crescente projeto centralizador dos atos da igreja em Roma, além de decretar a infalibilidade
do papa (MANOEL, 2004).
No Brasil, em função do Regime do Padroado, a romanização passou por dificuldades
para se estabelecer como hegemônica, o que somente aconteceria com a separação entre
Igreja e Estado, em fins do século XIX. Em linhas gerais, o catolicismo ultramontano se

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assenta “nos seguintes fundamentos: 1) condenação do mundo moderno; 2) centralização


política e doutrinária na Cúria Romana e 3) adoção da medievalidade como paradigma sócio-
político.” (MANOEL, 2004, p.9)
A história dos carmelitas alemães em Paranavaí teve início com a vinda do Frei Ulrico
Goevert, pertencente a Oberdeutsche Provinz der Karmeliten, isto é, a Província Carmelita de
Bamberg, região da Baviera, na Alemanha. Chegou a Recife - PE no ano de 1936 e se
estabeleceu em Paranavaí no ano de 1951. Frei Ulrico chegou com a incumbência de assumir
a paróquia da incipiente cidade e em função de sua extensão territorial, outros freis alemães
foram enviados para auxiliarem na edificação do projeto missionário na região. De 1951 a
1971, a administração da Província Carmelita de Bamberg enviou 15 religiosos para atuarem
no Comissariado Carmelita do Paraná: Frei Ulrico (1951), Frei Henrique (1952), Frei
Boaventura Einberger (1953), Frei Burcardo Lippert (1954), Frei Alberto Foerst (1954), Frei
Bruno Doepgen (1956), Frei Matias Warneke (1958), Frei Rafael Mainka (1961), Frei
Joaquim Knoblauch (1962), Frei Jerônimo Brodka (1963), Frei Justino Stampfer (1965), Frei
Afonso Pflaum (1966), Timóteo Schorn (1967), Frei Agostinho Wolf (1968) e Frei Paulo
Pollmann (1971) (KNOBLAUCH, 1976, p.05-06).

Estratégias para a construção de uma comunidade:


Paranavaí foi o espaço no qual os fatos ganharam vida, em que os vários sujeitos,
homens ordinários, deram sentido ao lugar, a partir de suas práticas cotidianas (CERTEAU,
1994). Paranavaí, município localizado na região noroeste do Estado do Paraná, é a 24ᵃ maior
cidade do Estado em número de habitantes com uma população de 81.590187.
Para Certeau o lugar “é a ordem (seja qual for) segundo a qual se distribui elementos
nas relações de coexistência” (CERTEAU, 1994, p. 201). Já o espaço é o lugar praticado pelo
sujeito, ou seja, é a presença do homem e principalmente as ações que transforma o lugar em
espaço (CERTEAU, 1994, p. 202).
Segundo Elias, o comportamento humano não é algo natural, ele é condicionado por
circunstâncias culturais, e quando ocorre o encontro de pessoas pautadas em modelos
comportamentais distintos, as mudanças não podem ser facilmente mensuradas (ELIAS,

187
Disponível em: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. IBGE, Cidades. Disponível em:
http://cidades.ibge.gov.br/xtras/perfil.php?lang=&codmun=411840&search=parana|paranavai. Acesso em:
31/01/2017.
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1994, p. 39). Assim, nosso trabalho se propõe a analisar a documentação escrita pelos freis
carmelitas alemães para determinar a partir da documentação qual o modelo de identidade
católica almejada pelos religiosos.
Os freis alemães, formados de acordo com as propostas religiosas da Igreja Católica
Romana, ao chegaram a Paranavaí encontraram o ambiente propício para executarem suas
aspirações, em um contexto de processo de ocupação efetiva daquele território.
Frei Ulrico Goevert, ao receber a missão de encontrar uma região que ficasse sob a
tutela da Ordem Carmelita, intencionava que isso ocorresse nos estados sulinos do Brasil,
possivelmente devido ao fato de ser uma região com grande número de alemães e
descendentes.
Ao analisar os Congressos Católicos realizados na Alemanha e no sul do Brasil, Werle
(2006) afirma que a emigração de alemães para a América Latina não era recomendada, a não
ser que o destino fosse o sul do Brasil, no qual a vida religiosa do emigrante estaria
assegurada: “A emigração para o Brasil passou a ser recomendada no final dos anos de 1870,
depois que os jesuítas alemães se instalaram em maior número no sul. A presença de
religiosos alemães era fundamental para uma avaliação positiva da região” (WERLE, 2006, p.
92).
O trabalho de Werle coloca em evidência que já existia um diálogo entre o Brasil e a
Alemanha para enviar ordens religiosas para o sul do país, o que podemos relacionar ao
desejo da Ordem Carmelita em privilegiar o sul do Brasil para a abertura de um posto
missionário. Podemos conjecturar que esta estratégia foi empregada na escolha do lugar de
abertura da frente missionária na região de Paranavaí, pois a cidade acopla um distrito
chamado Graciosa, localizado a 15 km da zona urbana que, entre as décadas de 1950-1980,
concentrava uma população majoritariamente composta por alemães e teuto-catarinenses.
Um projeto missionário tem por finalidade a evangelização dos homens, mas para
alcançar essa finalidade os envolvidos fizeram uso das mais variadas estratégias (CERTEAU,
1994), como a construção de escolas, para ensinar as crianças, futuros adultos, os
“verdadeiros preceitos cristãos” e a construção de capelas para tornar a Igreja mais próxima
da população. Em 1951 a Igreja de Paranavaí era o centro religioso para o qual as pessoas da
região acorriam: “Como só havia em Paranavaí essa Igreja e uma pequena capela, em

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Graciosa, uma das primeiras preocupações foi construir capelas nos povoados que estavam
surgindo”. (MARINHO, 2008, p.28)
Os missionários vislumbraram a possibilidade de inserir os modelos de civilidade
católica, a partir das “situações históricas” (ELIAS, 1994, p. 25) existentes em função do
processo de ocupação da região, que ainda não possuía padrões comportamentais definidos
oportunizando aos carmelitas alemães, a tentativa de inserção de seus modelos
comportamentais. Na década de 1950, Paranavaí recebia uma infinidade de pessoas vindas
das mais variadas regiões do Brasil e do mundo: Pernambuco, Ceará, São Paulo, Santa
Catarina e Rio Grande do Sul, além de estrangeiros e seus descendentes, alemães, japoneses,
italianos, árabes, turcos, libaneses, portugueses e espanhóis (PREFEITURA, 2013, p. 20).
Diante de tais considerações, nossa tese é a seguinte: de 1951 a 1971, o catolicismo
missionário exercido pelos carmelitas alemães forjou uma identidade predominantemente
católica em Paranavaí que, devido ao seu processo de ocupação, ao povoamento composto por
diferentes etnias e a carência de um projeto político, careciam de qualquer outro elemento
identitário. O caráter nacional, estadual ou mesmo regional, não seria forte o bastante para
dar-lhes o sentimento de união. Sendo o catolicismo a religião da maioria dos imigrantes, o
fator religioso foi primordial para promover a identidade entre pessoas tão diferentes.
De acordo com Elias: “Os destinos de uma nação cristalizam-se em instituições que
têm a responsabilidade de assegurar que as pessoas mais diferentes de uma sociedade
adquiram as mesmas características, possuam o mesmo habitus nacional.” (ELIAS, 1997, p.
29).

Referenciais Teóricos:
É imprescindível ao analisarmos as fontes, que elas sejam interpretadas e
problematizadas. No entanto, não é uma escolha aleatória, ela deve estar embasada de acordo
com o que se pretende estudar. Neste caso específico, independente de quais sejam os outros
ângulos, que outros olharão para a pesquisa, nossa escolha estará embasada nos referenciais
abaixo relacionados. 188

188
Na intenção de situarmos nosso objeto pesquisa efetuamos uma busca nas bibliotecas da Universidade
Estadual de Maringá e UNESPAR (Universidade Estadual do Paraná) Campus Paranavaí, no entanto, nessas
instituições não encontramos trabalhos que façam referências a nosso objeto de estudo. Correlativamente
também realizamos essa busca em bibliotecas virtuais, no qual encontramos apenas uma referência ao tema: a
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Os freis alemães nasceram, cresceram e foram educados a partir de referenciais


diferentes dos encontrados no Brasil. Dessa maneira, consideravam os costumes e as práticas
da comunidade de Paranavaí como inadequados, ou incivilizados, se pensarmos a partir de
Elias (1994). Nesse sentido, a Segunda Guerra Mundial, e o pós-guerra, marcaram
sobremaneira os freis alemães.189 Acreditamos que análise de Elias, ao afirmar que o processo
civilizador tem estreita relação com as mudanças históricas, inerentes às sociedades, nos dará
suporte para analisarmos a sociedade de Paranavaí em formação.
Uma das características do processo civilizador que marcou os países europeus foi
entre outras coisas, um aumento no número de regras e proibições. Esse processo foi
paulatinamente introjetado pelas pessoas, levando essas regras e modelos de condutas a
tornarem-se “normais” e, consequentemente, integrados a personalidade do homem (ELIAS,
1994). Nesse sentido, analisaremos como as normas que os missionários alemães iam
introduzindo na população local, foram sendo internalizadas gradualmente pelos mesmos.
Nossa análise também estará pautada no conceito de corpo de especialistas e leigos
(BOURDIEU, 2011) para evidenciarmos como, a partir de um determinado lugar social, foi
construída uma argumentação acerca das práticas religiosas dos fiéis exaltando a importância
e a necessidade da presença missionária dos religiosos na cidade de Paranavaí.
Atrelado ao conceito de corpo de especialistas está o conceito de linguagem autorizada
(BOURDIEU, 1983). Nesse sentido: “O discurso supõe um emissor legítimo dirigindo-se a
um destinatário legítimo, reconhecido e reconhecedor” (BOURDIEU, 1983, p.06). As práticas
instituídas pelos missionários tiveram ressonância pelo fato de serem reconhecidos como
especialistas legítimos, porta-vozes de uma determinada instituição: a Ordem Carmelita
(BOURDIEU, 2011).
Os missionários alemães se apresentavam como mediadores da salvação, como
religiosos encarregados de oferecer à população local a possibilidade da salvação. Ao
analisarmos a documentação encontramos o discurso recorrente pela busca da população local

monografia de especialização de Marcelo Silveira Siqueira com o título: “Comissariado do Paraná: início das
missões evangelizadoras dos frades carmelitas na cidade de Paranavaí, baseado no livro História e Memórias de
Paranavaí”, da Universidade Tecnológica Federal do Paraná, de Curitiba, 2011. Disponível em:
http://repositorio.roca.utfpr.edu.br/jspui/bitstream/1/1240/1/CT_LBHN_VII_2012_14.pdf.
Acesso em 31/01/2017.
189
Dois carmelitas participaram da Segunda Guerra Mundial: Frei Henrique e Frei Alberto Foerst e, ainda que
não tenhamos dados precisos da participação dos demais, podemos conjecturar que eles vivenciaram as penúrias
que esse acontecimento acarretou a população alemã.
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por conselhos para amenizar seu sofrimento. Dessa maneira, fazendo uso dos referenciais de
Certeau, o que dá sentido à vida dos missionários e da maioria da população de Paranavaí é o
ato de crer; sem esse sentimento todo o trabalho missionário empreendido em Paranavaí não
teria sentido.
O ato do crer é o “investimento das pessoas em uma proposição, o ato de enunciá-la
considerando-a verdadeira – noutros termos, uma ῾modalidade᾿ da afirmação e não seu
conteúdo.” (CERTEAU, 1994, p. 278). Nesse sentido, partimos deste conceito para
pensarmos o discurso dos missionários que articulam práticas em torno dele, ou seja, o ato de
crer é a modalidade de afirmação não o objeto do crer.
Um outro conceito de grande importância para o desenvolvimento desse trabalho é o
conceito de estratégia (CERTEAU, 1994):
Chamo de estratégias o cálculo (ou a manipulação) das relações de forças que se
torna possível a partir do momento em que um sujeito de querer e poder (uma
empresa, um exército, uma cidade, uma instituição científica) pode ser isolado. A
estratégia postula um lugar suscetível de ser circunscrito como algo próprio e ser a
base de onde se podem gerir as relações com uma exterioridade de alvos ou ameaças
(CERTEAU, 1994, p. 99).

Os Carmelitas ao chegarem a Paranavaí, conheceram suas particularidades e


potencialidades e se impuseram como legítimos propagadores de uma doutrina espiritual. Para
serem aceitos e legitimados enquanto propagadores, esses missionários adotaram algumas
estratégias. As estratégias são as atitudes, tomadas de decisões com a finalidade de conquistar
ou manter determinado poder em relação a um cenário próprio.
Os freis alemães, a partir da documentação em análise, avaliavam a maneira de
vivenciar o catolicismo em Paranavaí, no entanto, a apreciação não se restringia apenas a
“religiosidade católica” (ANDRADE, 2008), perpassava esse âmbito e adentrava em questões
sociais e comportamentais. No entanto, notamos que o teor dessas críticas não se aplicava
quando faziam referência ao distrito de Graciosa.
Andrade (2008), define a religiosidade católica:
[...] conceituo como religiosidade católica, as manifestações que envolvem o culto
aos santos católicos, reconhecidos ou não pela Igreja. Parto da constatação de que,
nessas manifestações é difícil detectar o limite entre o institucional e o não
institucional por se tratarem de expressões complexas nas quais o devoto acredita
estar vivenciando sua religião, sem a preocupação dela estar ou não sancionada pela
instituição (ANDRADE, 2008, p. 238).

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A definição da autora acerca do conceito de religiosidade católica agrega valor a nosso


trabalho, pois a prática de culto aos santos era praticada por parte da comunidade católica da
região de Paranavaí-PR. A partir de nossas fontes encontramos inúmeras passagens de
estranhamento em relação a essa prática. Dessa maneira, o conceito em questão permitirá,
pensarmos o conteúdo dessas críticas a partir de um viés que abarque toda a complexidade
existente na documentação.
O fato histórico analisado a partir da perspectiva da História Cultural, oportuniza ao
historiador muitas possibilidades de interpretação e trabalho, além de possibilitar que o
historiador dialogue com outras áreas de conhecimento. De acordo com Chartier, a História
Cultural, busca “identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma determinada
realidade social é construída, pensada, dada a ler” (CHARTIER, 1990, p.16-17).
O passado é, também ficção do presente. O mesmo ocorre em todo verdadeiro
trabalho historiográfico. A explicação do passado não deixa de marcar distinção
entre o aparelho explicativo, que está presente, e o material explicado, documentos
relativos a curiosidades que concernem aos mortos. (CERTEAU, 1982, p. 21)

Assim, um ponto importante dentro do discurso de Certeau, diz respeito ao fato de


todo trabalho historiográfico ser relativo ao “morto”, contudo as perguntas que se faz, são
enunciadas a partir do presente. Nesse sentido, o historiador trabalha com o passado, no
entanto, o que será demonstrado deste passado, é condicionado pela temporalidade e ao lugar
sócio institucional ao qual o historiador pertence.

Considerações finais:
Este trabalho se justifica, por retomar a constituição e expansão da cidade de
Paranavaí-PR, associando a institucionalização do catolicismo com o processo de crescimento
e desenvolvimento da cidade.
A pesquisa em andamento visa a partir da documentação entender como o processo de
institucionalização do catolicismo em Paranavaí-PR, perpassou o âmbito religioso, instituindo
modelos de conduta que levaram a comunidade a estabelecerem laços de pertencimento que
tinham como núcleo o sentimento de pertença a religião católica. Os frades alemães foram os
estrategistas dessa ação.
Os apontamentos realizados nesse trabalho não são conclusivos, estão em processo de
amadurecimento, no entanto, espera-se que o mesmo possa contribuir de maneira significativa

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para outros pesquisadores, que tenham interesse em trabalhar com história das religiões, ou de
maneira mais detalhada com a história religiosa católica de Paranavaí-PR.

Referências Bibliográficas
DOCUMENTAIS
BECK, Pe Jacobus. Minha viagem à região missionária de Paranavaí. Trad. Frei Wilmar
Santin. Paranavaí: Livraria Nossa Senhora do Carmo, 1990.

FOERST, Alberto, et al. As aventuras de 3 missionários alemães em Paranavaí. Trad. e notas


Frei Wilmar Santin. Paranavaí, 2001.
Disponível em: http://ocarmelo.blogspot.com.br/ Acesso em: 31/01/ 2017.

FÖRST, Albert. Erinnerungen eines Brasilien-missionars. Herausgeber: Provinzialat der


Karmeliten Bamberg, [s.l.], 2012.

GOEVERT, Frei Ulrico. História e memórias de Paranavaí. Trad. e notas: Frei Wilmar
Santin. 1ª Ed. Paranavaí: Livraria Nossa Senhora do Carmo, 1992.

KNOBLAUCH, Frei Joaquim. Os vinte cinco anos dos carmelitas da Província Germaniae
Superioris no Brasil. Trad. Frei Wilmar Santin. Disponível
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BIBLIOGRÁFICAS
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BARROS, José D᾿Assunção. O campo da história: especialidades e abordagens. Petrópolis,
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Orientalismo e suas implicações nos estudos históricos dos Cristianismos


Orientais
Luiz Felipe Urbieta Rego190
Resumo: Este trabalho procurará apresentar um debate do conceito de Orientalismo originado
na obra homônima de Edward Said e como ele pode contribuir para uma abordagem do
conceito de Oriente no estudo dos Cristianismos Orientais. Isso será feito analisando a obra de
Said sob a luz dos livros Defending the West de Ibn Warraq, e Pelo Amor ao Saber de Robert
Erwin obras criadas justamente para criticar seu conceito de orientalismo e as consequências
de sua difusão. Com isso também busco demonstrar que a tese central de Said reflete tanto
realidades quanto deformações intelectuais dignas de crítica, sendo a própria tradição interna
do estudo dos Cristianismos Orientais dentro da História da Igreja uma delas.
Palavras-chave: Orientalismo; Cristianismos Orientais; História dos Conceitos;
Historiografia.

Orientalism and its implications on the studies of Oriental Christianity.


Abstract: This article seeks to debate the concept of Orientalism as defended in the
homonymous work of Edward Said as means to assert its possible contribution on the
analysis of the concept of Orient in the studies of Oriental Christianity. It will be done by
analyzing the work of Said in the light of the books Defending the West by Ibn Warraq and
For Lust of Knowing by Robert Erwin. These books were written specifically to criticize
Said’s Orientalism and the consequences of its diffusion. In this way I seek to show that
Said’s thesis reflect both intellectual realities and deformations worth of praise and critique,
being the very on internal tradition of the study of Oriental Christianity one of them.
Keywords: Orientalism;Oriental Christianity;Historiagraph.

O presente texto tem como intuito revisar o papel do livro e do conceito do


Orientalismo tal como concebido por Edward Said em 1978 perante a luz de dois críticos
contemporâneos da obra: Ibn Warraq(2007) e Robert Irwin(2006). Estes autores foram
escolhidos pois as obras aqui analisadas para este artigo foram escritas exatamente para
refutar diversos aspectos da concepção de orientalismo defendida por Said e lutar contra
conseqüências de sua popularização. Embasados pela abordagem de história de conceitos
alemã tal como descrita por Kosseleck191 iremos então também problematizar os conceitos de
Orientalismo, Oriente e os Cristianismos Orientais.

190
Graduado em História pela PUC-RIO 2009.Mestre em Historia pela PUC-Rio 2012. Membro do Núcleo de
Estudos de Cristianismos Orientais (NECO, GT-HR/ANPUH) email:pelifzuilraubiet@gmail.com
191
KOSELLECK, Reinhardt. Uma história dos conceitos: problemas teóricos e práticos.
Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5, n. 10, 1992, pp. 134-46.
252
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A hipótese central deste artigo é que seguindo a proposta de estudo de história de


conceitos de Kosseleck pode-se perceber como a obra de Said infundiu uma nova
significância ao conceito de Orientalismo e com isso revisou todos os termos e palavras
associados a ele gerando uma hierarquização de sentido onde a definição original de
orientalismo ainda subsiste, mas coloca-se em uma posição de menor centralidade porque o
estudo de Said teria revelado sua “verdadeira” intenção. O Orientalismo então originalmente
concebido como o estudo do Oriente pelo Ocidente, agora também é percebido como um
estudo voltado para a construção de uma concepção ideologicamente orientada do Oriente
associado a um juízo de valor que o reduz e o inferioriza em relação ao Ocidente.

A nova concepção de Said causou um grande impacto no meio acadêmico por ter se
popularizado rapidamente colocando em xeque o trabalho de orientalistas contemporâneos e
intelectuais ligados ao estudo do Oriente, mais especificamente do Oriente Médio e do Islã.

A partir destas críticas buscarei articular sua implicação nos estudos dos Cristianismos
Orientais e da própria concepção de Oriente desenvolvida pela História da Igreja. Embora não
seja um tema abordado diretamente pelos autores, as disciplinas de História da Igreja e
Teologia, tendo como bases a referência da Igreja Católica Apostólica Romana, estaria
inserida dentro da tradição orientalista proposta por Said no sentido de “calar” o Oriente
Cristão e projetar uma origem do Cristianismo que começaria em Roma e então se projetaria
para o restante do mundo.

Isso decorre porque a historiografia eclesiástica tradicional192 tende a se concentrar nas


fontes romanas e gregas que tendem a reduzir a importância dos primeiros anos da Igreja,
como os primeiros concílios ecumênicos que ocorreram em território oriental, como o
Concílio de Éfeso (431) e Calcedônia (451), e tendem a se concentrar nos estudos e
narrativas posteriores, escritos em Roma e portanto, com a perspectiva da Santa Sé. Um vez
estabelecidos estes estudos devido a sua inerência religiosa, tendem a ser abordados de
maneira hermética, isto é, pelo estudo da religião e religiosidade como fim em si caindo em
um debate essencialmente teológico.

Com isso silencia-se todo o processo de transição do Cristianismo de uma religião que
nasce no Oriente e se espalha em direção ao Ocidente, passando por múltiplos processos de

192
GONZALES, Justo. Uma breve história das doutrinas cristãs. Editora Hagnos. 2015.
253
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transformação muitos dos quais não se encaixam na concepção romana latina. E mesmo
tendo se estabelecido como religião imperial e procurado controlar e alinhar os inúmeros
movimentos divergentes, em especial aqueles denominados como heresias cristológicas, teve
um sucesso limitado geograficamente. Roma não conseguiu impedir a formação de Igrejas
Cristãs independentes que se voltaram para o espaço que originou o Cristianismo: o Oriente.
No intervalo de III a IV D.C. e depois do VII até o século XI observamos no horizonte dos
espaços hoje convencionados como a Rota da Seda, o Oriente Médio e a Ásia Central uma
rica trajetória de desenvolvimento, expansão e decadência de diversas vertentes cristãs que
não apenas deixaram um rico legado arqueológico como até hoje se mantém como instituições
ativas e independentes nestes espaços.

Logo, o Oriente vem sendo um conceito desenvolvido dentro da História da Igreja


como um local de dissensão reforçado por uma tradição historiográfica que, colocando a
Roma/Europa como centro da civilização cristã, teria então o dever não apenas de converter o
infiel mas de reunificar estes elementos dissidentes conscientemente silenciados e reduzidos
no discurso católico apostólico romano. Em uma perspectiva panorâmica do ideal
civilizatório iluminista particularmente comtiano, o Catolicismo e mesmo o Protestantismo
seriam as fases nas quais toda civilização deveria passar até chegar no ideal positivista na qual
a Europa seria a pioneira e portanto, justificadamente, a dominadora do restante do globo.

Eis então o aspecto mais pungente do argumento de Said: o Orientalismo, para além
do estudo do Oriente pelo Ocidente, é um sistema de produção de conhecimento que estaria
voltado para projetar uma versão deformada e reducionista do oriental e justificar sua
dominação.

Historicamente o Oriente é visto como um lugar de exotismo e receio.A invasão das


hordas mongóis que parou nos portões de Viena em 1241 e a ocupação islâmica de Espanha e
Portugal até durante parte da Idade Média são marcos que estão profundamente inscritos no
pensamento europeu. Entretanto, também é necessário lembrar que esses contatos também
trouxeram uma riqueza material e cultural:
“O Ocidente reagiu de uma dupla forma: resistindo e assimilando. Se o sarraceno foi
inimigo, também é certo que se converteu num modelo de civilização que instruiu e
educou o europeu bárbaro. Ensinou-lhe o fabrico de tapetes, de brocados, tecelagem,
da seda; os cavaleiros ocidentais cobriram-se com armaduras e cotas de malha de
estilo sarraceno e utilizaram as espadas árabes de Damasco e de Toledo. A saia
árabe, a tiara persa, os perfumes, a gaze, a mousseline, o pano de Trípoli, o cetim, o
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tafetá e o damasco, pelo seu exotismo, cativaram as mulheres européias. Os


camponeses aprenderam os métodos de rega e as delicadas técnicas da cultura
agrícola asiática.
Constantinopla serviu de elo de ligação entre o Oriente e o Ocidente, durante mil
anos; os mercadores judeus, levantinos e sírios levaram aos grandes proprietários,
aos bispos, aos reis e aos príncipes da Europa, jóias, tecidos, especiarias e relíquias,
mais ou menos autênticas, de santos mártires.”193

O intercâmbio cultural entre Oriente e Ocidente, visto da perspectiva de um


orientalista contemporâneo da primeira edição da obra de Said,Jean Riviere, enfoca uma
riqueza trazida pelo Oriente que não aparece no texto de Said exatamente porque ele se
concentra em um período posterior a estes eventos, o final do século XVIII da perspectiva do
Império Britânico. Este é o ponto de partida de Said que então se irradia para explicar a
concepção do Oriente no seus passado e presente.

A forma como Said escreve sua obra não segue nenhuma sequência cronológica.Pelo
contrário, ele parte para o XVIII focando-se no projeto imperialista inglês como exemplar de
como o ambiente acadêmico e intelectual europeu,voltado para o estudo do Oriente, forneceu
os elementos ideológicos justificadores da dominação imperialista porque, simplesmente, os
eruditos europeus não eram capazes de compreender de maneira plena o pensamento oriental.
Said então explica que a visão e projeção do Oriente como inferior a Europa já vinha sendo
desenvolvido mesmo na Antiguidade nas peças gregas como Os Persas de Ésquilo194 e na
própria definição de bárbaro como não-grego.Alegando uma abordagem humanista,sua
metodologia está centrada em um análise aprofundada de generalizações históricas a respeito
do Oriente195presentes na literatura e arte. Isso pode ajudar a explicar as escolhas
aparentemente arbitrárias de autores que vão de Ésquilo até Dante finalmente chegando a
Massignon e Lord Cromer. Para ele estes autores e suas obras constituem uma massa
determinante de escritores individuais que produzem o “sistema” definido como
Orientalismo196.

Robert Irwin, historiador orientalista inglês é um dos primeiros a escrever um livro em


réplica a Said. Em seu livro Pelo Amor ao Saber, cujo título é baseado em uma famoso poema

193
RIVIERE,Jean Paul. Oriente e Ocidente.Editora Salvat, Rio de Janeiro.1979.
194
Said np,31
195
SAID.Edward.Orientalismo. p.31
196
IDEM.p.53
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orientalista escrito por um ex-agente da CIA197, Erwin se aproveita da atenção gerada pela
obra de Said para produzir uma historização da disciplina. Ele retorna até o século XII , XIII
e XVI para destacar que as raízes dos orientalismo estão fincadas nos estudos biblicos. Foi o
interesse de monges e religiosos europeus em sua busca pelos vestígios de referências
bíblicas que levou aos primeiros estudos do árabe, aramaico,hebraico e siríaco, as línguas
faladas no tempo de Jesus.

Com isso ele desconstrói principalmente o argumento imperialista e colonialista de


Said que apesar de reconhecer a importância dos estudos medievais e cristãos, também os
considera como obras voltadas para reforçar o estereótipo do Oriente como atrasado e
bárbaro. Este inclusive é um das lutas centrais dos Cristianismos Orientais que tem como um
de suas bases para defender sua importância no fato do Cristianismo ter nascido no Oriente.
Mesmo dentre os orientalistas que que durante as Cruzadas atacavam o Islã assim o faziam
embasados em uma ampla literatura e em um ambiente intelectual efervescente, muitos dos
quais chegavam mesmo a admirar a aspectos da doutrina de Maomé198.

Irwin também faz um breve menção ao fato do Orientalismo não se referir apenas a
um estudo do Oriente em termos históricos e filológicos mas ao estabelecimento de um estilo
de escrita próprio da literatura europeia que ao procurar emular elementos orientais como os
poemas sufis ou haikais japoneses, criando assim uma estética própria, algo considerado
positivo por Erwin mas visto como um “subproduto” do orientalismo por Said. Seguindo uma
sequência cronológica bem organizada chegamos aos séculos XVI,XVII e XVIII com uma
bagagem de referências, fontes e dados invejáveis Erwin realiza sempre uma articulação entre
autores individuais e o contexto da época em que escreve.

Abordando o establishment acadêmico da Europa como um todo, ele destaca em


especial as interações entre Inglaterra, França e Alemanha com especial ênfase no papel desta
última como centro de referência para os demais. Com isso ele apresenta de forma embasada
e organizada algo que Said faz de maneira ensaística e absoluta. Um das principais críticas do

197
Miles,Oliver. The fossils bite back. Acessado em
https://www.theguardian.com/books/2006/feb/04/highereducation.news em 15/11/2016.
198
ERWIN,Robert. Pelo amor ao saber: os orientalistas e seus inimigos. Rio de Janeiro: Record,2008. O erudito
poliglota francês Guillaume Postel (1510-1581), elencado por Erwin como o “louco pai do orientalismo”
acreditava que Maomé era um verdadeiro profeta e que os muçulmanos deveriam ser considerados meio cristãos
p.85.
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Orientalismo está no fato de muitos fatos e argumentos históricos de Said estarem


completamente errôneos ou deslocados e mesmo sabendo disso, no prefácio de uma reedição
em 2003 seu autor se recusa a fazer correções ou admitir tais falhas. Ao invés disso ele
atualiza seu discurso para atacar a mídia e o governo norte americano por sua demonização do
Oriente Médio e do Islã199.

Erwin não renega que o meio acadêmico e intelectual estava profundamente envolvido
na empresa imperialista, em especial a britânica, e também não faz ataques ao fato de
existirem intelectuais que usam de sua posição para defender posturas políticas. Mas ao fazer
o levantamento aprofundado dos orientalistas, seus posicionamentos, especialidades e
proposições distintas ele desfaz a visão monolítica e confusa criada por Said dos mesmos. O
livro de Erwin só dedica um capítulo a crítica propriamente dita do livro Orientalismo, Ele é o
penúltimo capítulo e dedica-se fazer um breve levantamento biográfico de Edward Said,
analisar a recepção do Orientalismo, suas outras obras, seus interlocutores intelectuais e os
problemas da obra. Destaca-se aqui a citação aos debates dos primeiros críticos do
Orientalismo, Ernest Gellner e Bernard Lewis. Lewis que foi mentor de Erwin no SOAS
(School of Oriental and African Studies), foi um dos poucos críticos a debater pessoalmente
com Said. Sua principal crítica com relação ao Orientalismo foi o fato de Said parece
esquecer que dentro do próprio ambiente intelectual a autocrítica constitui-se como um
elemento inerente e constante, e que acadêmicos e intelectuais não trabalham de maneira
unívoca para construir um pensamento absoluto e definitivo.

O próprio Erwin considera a crítica de Lewis uma “ atitude defensiva da “corporação”


dos orientalistas”200. Nem por isso ela não se torna menos válida. Mas uma breve pesquisa
sobre Bernard Lewis o revela não apenas como um acadêmico judeu, orientalista e britânico.
Especializado no Oriente Médio, Lewis foi parte de um grupo de historiadores revisionistas
que durante a Guerra Fria lutaram para que a matança de mais de um milhão armênios
engendrada pelo império Turco Otomano em 1915 não pudesse ser categorizada como
“genocídio” ou “limpeza étnica” por ser considerada anacrônica e ofensiva diante do

199
Said.O Orientalismo.Posfácio. p.4.
200
Lewis .pelo Amor ao Saber p.348.
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Holocausto, como também servir de base para aproximação política entre Turquia e Estados
Unidos contra a expansão de influência soviética201.

De fato, o termo “inimigos” presente no subtítulo da obra se refere a autores e eruditos


muçulmanos e árabes tanto dentro quanto fora da esfera acadêmica ocidental que criticam o
orientalismo como um todo, inclusive a obra de Said. Desta forma Erwin busca desconstruir
a obra de Said partindo não apenas da perspectiva de intelectuais ocidentais como, mas
também orientais, pois um dos argumentos frequentes de Said é que o ocidental é incapaz de
compreender o oriental. Vale destacar que Edward Said é um palestino com cidadania
americana, cujo pai era um oficial do exército americano e o enviou para estudar nos Estados
Unidos na prestigiada Universidade de Columbia,

Enquanto que Irwin constrói sua obra fazendo críticas aos escritos de Said, mas
buscando, em última instância, corrigir e destacar a importância do Orientalismo e dos
orientalistas como uma ponte cada vez mais necessária entre Oriente e Ocidente, tem por
outro lado a obra de Ibn Warraq que ataca de maneira mais contundente a obra de Said.

Warraq faz parte de uma leva de refugiados intelectuais que vai para o Ocidente
exatamente porque dentro do ambiente teocrático islâmico seus estudos e críticas engendram
literalmente sentenças de morte. Ele saiu do Paquistão por insistência do seu pai para evitar
que sua educação formal fosse religiosamente orientada devido a pressão de sua avó em
inscrevê-lo na escola islâmica local. Ele se formou na Inglaterra e tornou-se professor na
França.

Ibn Warraq é um pseudônimo utilizado pelo escritor que permanece anônimo para
poder visitar sua família no Paquistão e devido a observação do tratamento dado a Salman
Rushdie, devido a sua controversa engendrada pela obra Versos Satânicos e a subsequente
sentença de morte islâmica, fatwa, decretada pelo aiatolá Khoeimini em 1989.

Sendo Ibn Warraq um “oriental” de origem paquistanesa, apóstata do Islã e seu


profundo estudioso e crítico ele inverte o papel do oriental vitmizado construído por Said e

201
Charny, Israel (17 July 2001). "The Psychological Satisfaction of Denials of the Holocaust or Other
Genocides by Non-Extremists or Bigots, and Even by Known Scholars". IDEA. Retrieved 21 February
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defende a importância dos estudos orientalistas em preservar diversos aspectos da cultura e


civilização árabe que de outra forma seriam destruídos pelo crescente fundamentalismo
islâmico. Ele destaca que o ambiente de debate intelectual promovido na Europa nunca seria
possível no meio intelectual árabe devido a natureza teocrática do Islã.

Warraq dedica um capítulo inteiro de sua obra em apresentar o que considera os três
valores definidores do Ocidente: racionalismo, universalismo e autocriticismo. Ele parte então
para uma análise comparativa da civilização ocidental com a civilização islâmica, destacando
o imperialismo islâmico e sua participação no tráfico de escravos em contraste com as
instituições ocidentais. Além disso, ele faz questão de apresentar e comparar os demais
imperialismos ocidentais, a dizer, o português e o holandês para , assim como Erwin,
demonstrar a diversidade das experiências orientalistas.

Em termos de estilo de escrita Warraq é bastante semelhante ao próprio estilo de Said,


exceto que ele segue uma proposta mais clara uma vez que os dois primeiros capítulos de sua
obra tem um objetivo específico : atacar e destruir os argumentos e metodologia de Edward
Said. E isso ele o faz de maneira bastante detalhada de modo a demonstrar os diversos
problemas de interpretação, metodologia e mal uso das fontes usadas por Said. Vejamos por
exemplo sua crítica da apropriação dos escritos de R.W. Southern referentes ao entendimento
cristão do Islã durante a Idade Média. Segundo a acusação de Warraq, Said teria interpretado
erroneamente o comentário de Southern no qual este afirma que embora os pensadores
medievais tenham fracassado em compreender o Islã em sua época eles desenvolveram os
meios para que as futuras gerações o fizessem. A interpretação de Said sobre este trecho seria
que a análise de Southern admitiria que a ignorância ocidental teria se tornado mais complexa
e não o aumento do conhecimento positivo:
“Said quotes with approval and admiration some of the conclusions of R. W.
Southern's Western Views of Islam in the Middle Ages: Most conspicuous to us is
the inability of any of these systems of thought [European Christianity] to provide a
fully satisfying explanation of the phenomenon they had set out to explain [Islam]-
still less to influence the course of practical events in a decisive way. At a practical
level, events never turned out either so well or so ill as the most intelligent observers
predicted; and it is perhaps worth noticing that they never turned out better than
when the best judges confidently expected a happy ending. Was there any progress
[in Christian knowledge of Islam]? I must express my conviction that there was.
Even if the solution of the problem remained obstinately hidden from sight, the
statement of the problem became more complex, more rational, and more related to
experience.... The scholars who labored at the problem of Islam in the Middle Ages
failed to find the solution they sought and desired; but they developed habits of mind

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and powers of comprehension which, in other men and in other fields, may yet de-
serve success." Now here is Said's extraordinary misinterpretation of the quote from
Southern: "The best part of Southern's analysis ... is his demonstration that it is
finally Western ignorance which becomes more refined and complex, not some body
of positive Western knowledge which increases in size and accuracy" (p. 62).
According to Said, Southern says that positive Western knowledge of the Orient did
notincrease. This is not what Southern is saying. Southern asks a question and
replies: "Was there any progress [in Christian knowledge of Islam]? I must express
my conviction that there was." Yes, I am firmly convinced that Western knowledge
did progress; that is what Southern states. Southern adds that the medieval scholars'
methodology became more and more sophisticated; they were more mature
intellectually, since they developed habits of mind and powers of comprehension
that would pay dividends later. How Said can speak, with his usual pretentious
vocabulary, of "Western ignorance which becomes more refined" is a mystery, but it
is in keeping with his method and his goal of painting the West as negatively as
possible. Incidentally, the same passage from Southern contradicts one of Said's
principal theses, about Oriental studies being a cause of imperialism. All this
thinking about the Orient failed, Southern says, "to influence the course of practical
events in a decisive way."”202

Este trecho é válido também para demonstrar uma questão problemática na análise de
obras que trabalham com fontes tão amplas e variadas, cujo domínio por parte do público
leitor, e mesmo dos eruditos, torna difícil precisar a veracidade das avaliações. Por exemplo,
enquanto seja verdade, que Said menciona Southern, na edição brasileira isto se resume a uma
citação menor de pé de página referente ao início dos estudos das línguas orientais no
Ocidente como parte da iniciativa proposta pelo Concílio de Viena em 1312203, Esse é um
dos problemas de lidar com uma obra com tantas edições como o Orientalismo de Edward
Said. A versão comentada nas críticas de Ibn Warraq se refere a edição de 1978 da editora
Pantheon.

Logo, um dos aspectos mais fortes da crítica de Ibn Warraq referente a interpretações
errôneas de Said pode ser confirmado apenas se for utilizada a versão de 1978. O que de
nenhuma forma invalida a crítica e até mesmo reforça os ataques quanto ao próprio caráter
pessoal de Said que afirma em seu prefácio de 2003 não ter realizado modificações na obra
original mesmo com todas as críticas e ataques externos.

Outro ponto importante levantado por este trecho está no tratamento dado pelos
autores orientalistas contemporâneos sobre a importância dos estudos lingüísticos
engendrados pela Igreja Católica na Idade Média. Dentro desta perspectiva o estudo do árabe

202
WARRAQ, Ibn. Defending the West. p.36.
203
SAID, Edward. Orientalismo: O Oriente como invenção do Ocidente. Companhia das Letras.p.62
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e mesmo do Islã era visto como uma forma acessar as origens do Cristianismo, pois era
necessário entender cultura e história deste “Outro” não apenas como inimigo da
Cristandade, mas habitante da região e testemunha da trajetória dos ensinamentos de Cristo.

Dentro do campo do estudo de História da Igreja e da Teologia os Cristianismos


Orientais vem ganhando nova atenção. Questões como a comparação de teologias e práticas
ecumênicas ocidentais e orientais, o nestorianismo, e as igrejas orientais autónomas da Ásia
Central,África,Índia,China e Japão vem gerando novas pesquisas assim como temas mais
polêmicos como a perseguição e massacre dos cristãos armênios e árabes. Autores como Phil
Jenkins204 e sua as obras como Guerras Santas e Como Jesus se tornou Deus205 de Bart
Ehrman vem lançando uma nova luz sobre a forma como a História da Igreja é abordada.

Conclusões
Uma das principais críticas de Said é que o estudo desse Outro, essa alteridade oriental
por parte de um ocidental206 estaria inevitavelmente atrelada por uma perspectiva imperialista
e de uma posição de superioridade exatamente porque os estudos dos intelectuais ocidentais
reproduziram essa superioridade tanto por serem incapazes de compreender plenamente a
cultura e pensamento oriental, como também parte de um projeto colonialista que justificaria
a dominação desses povos. Embora o centro de seu argumento seja irrefutável, a sua
generalização também não é condizente com a realidade. O orientalismo é e continua a ser o
estudo do Oriente pelo Ocidente tanto por eruditos e intelectuais com uma agenda política e
ideológica própria como por aqueles que simplesmente amam o saber oriental.
As críticas contemporâneas de Said despontam então em nosso contexto brasileiro
como um filtro acadêmico que todo uma nova geração de historiadores, intelectuais e
orientalistas, que,falando a partir de uma ambiente com um histórico de colonização político,
cultural e intelectual, se voltam para estudar o Oriente e se guiam por sua visão para estudá-
lo. Mas ao invés de reproduzir sua ideologia cegamente devemos nos apropriar dos elementos
relevantes e descartar seus aspectos errôneos.

204
JENKINS,Phillip.Guerras Santas.Editora Leya 2013.
205
EHRMAN,Bart D. Como Jesus se tornou Deus. Editora Leya 2014.
206
O que em última instância nos faz questionar nossa própria identidade brasileira como herdeiros de uma
cultura de base latina mas com forte influência africana e indígena. Em última instância gostamos de nos ver
como ocidentais e civilizados renegando a presença dos elementos indígenas, negros e árabes.
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A crítica do orientalismo como uma parte do imperialismo e colonialismo tem até


hoje uma relevância ímpar para entendermos o panorama geopolitico contemporâneo e nosso
lugar nele. As fontes levantadas por Said também são válidas, mas como vemos nas críticas
dos orientalistas de Robert Erwin e Ibn Warraq tendo elas sido abordadas de uma maneira
rasa e com um embasamento teórico errôneo devemos tomá-las como uma lição de como não
proceder em uma abordagem teórico-metodológica.
Ao mesmo tempo o debate engendrado pela obra de Said teve impacto profundo no
meio intelectual para a conscientização do uso do saber acadêmico para fins políticos e
ideológicos. Não existem conceitos neutros, mas novamente, como Kosseleck os aponta como
as lentes de uma câmera fotográfica, podendo ser ajustados de acordo com o foco. A
contextualização e o lugar de fala mudam o conhecimento do passado.
No Brasil a leitura da obra de Said teve como resultado estudos históricos e
antropológicos que destacam a presença de elementos orientais em nossa cultura enquanto
herança das navegações lusas. A obra China Tropical de Gilberto Freyre, enquanto coletânea
de textos sobre o Oriente faz uma levantamento desses costumes e características e
desenvolve o conceito de lusotropical207. Mais adiante temos o trabalho do filósofo e
historiador André Bueno que busca concentrar-se no orientalismo em sua concepção essencial
de estudo do Ocidente pelo Oriente e se aprofunda no estudo da Índia e em especial da China,
chegando mesmo a cunhar um termo específico para caracterizar o seu trabalho enquanto
sinologista brasileiro: ele é um “sínico”208.
O que podemos tirar desta análise comparativa é a identificação do problema de Said
ser colocado freqüentemente em bibliografias e abordado muito na graduação como sinônimo
de Orientalismo e por sua vez da naturalização de sua teoria que todos os estudos ocidentais
sobre o Oriente são etnocêntricos e servidores de um projeto imperialista. Embora sua crítica
do uso do meio erudito como "braço" do imperialismo seja inegável, sua metodologia e uso
de fontes revela um total despreparo e desconhecimento de fontes orientalistas. Em muitos

207
JUNIOR,Gilson Brandão de Oliveira. A noção de nação em ação: lusotropicalismo e cultura institucional na
província ultramarina de Angola (1953-1973).Artigo apresentado no XXVII Simpósio Nacional de
História.Conhecimento histórico e diálogo social.Natal-RN-22 A 26 de julho de 2013. Acessado em
http://www.snh2013.anpuh.org/resources/anais/27/1371317354_ARQUIVO_Lusotropicalismo,lusotropicol
ogiaecivilizacaoculturalusotropical_entreaconstrucao,aapropriacaoeacriticaconceitual.pdf. Em 15 de novembro
de 2016.
208
BUENO,André.http://sinografia.blogspot.com.br/2013/07/o-problema-de-se-escrever-sobre-o.html.Acessado
em 22 de novembro de 2016.
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aspectos sua visibilidade e sucesso se devem justamente a apropriação de sua critica para fins
políticos. Questões importantes a serem consideradas quanto a abordagem dos Cristianismos
Orientais. Pois enquanto um campo relativamente novo em especial para historiadores
brasileiros fora da esfera da Teologia e da História da Igreja. Da mesma forma como Edward
Said produziu uma obra de profundo impacto para os orientalistas mesmo sendo ele um
crítico literário de formação, devemos enquanto historiadores articular uma abordagem crtica,
porém respeitosa das obras teológicas, sempre cientes de contextualizar e reconhecer as
particularidades do seu discurso.
Neste ponto vale lembrar-se das relações cordiais da terceira geração dos Annales com
historiadores eclesiásticos como Gabriel Lebras que publicou artigos sobre o uso de
estatísticas nas práticas religiosas (comunhão,vocação,batizado etc.). Companheiro de
Lefebvre e Marc Bloch em Estraburgo, ele estava preocupado com o processo de
descristianização na França do XVIII e seus trabalhos tanto inspiraram como foram inspirados
pelas pesquisas de Jacques LeGoff e Febvre209. Este seria o clima ideal e esperado de
inspiração e contribuição mútua que tem o potencial para lançar uma nova luz a um tema
pouco discutido fora de suas esferas de especialização.

Referências Bibliográficas
BUENO, André.http://sinografia.blogspot.com.br/2013/07/o-problema-de-se-escrever-sobre-
o.html.Acessado em 22 de novembro de 2016.

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or Other Genocides by Non-Extremists or Bigots, and Even by Known Scholars". IDEA.
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Associations. 14 April 2002. Archived (PDF) from the original on 15 July 2006. Retrieved 21
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DECERTAU, Michel. A Escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982.

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ERWIN,Robert. Pelo amor ao saber: os orientalistas e seus inimigos. Rio de Janeiro:


Record,2008.

209
DECERTAU, Michel. A Escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982. PP.109-110.

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GONZALES, Justo. Uma breve história das doutrinas cristãs. Editora Hagnos. 2015.

JUNIOR,Gilson Brandão de Oliveira. A noção de nação em ação: lusotropicalismo e cultura


institucional na província ultramarina de Angola (1953-1973).Artigo apresentado no XXVII
Simpósio Nacional de História.Conhecimento histórico e diálogo social.Natal-RN-22 A 26 de
julhode2013.Acessado em
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mo,lusotropicologiaecivilizacaoculturalusotropical_entreaconstrucao,aapropriacaoeacriticaco
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MILES,Oliver. The fossils bite back. Acessado em


https://www.theguardian.com/books/2006/feb/04/highereducation.news em 15/11/2016.

KOSELLECK, Reinhardt. Uma história dos conceitos: problemas teóricos e práticos. Estudos
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RIVIERE,Jean Paul. Oriente e Ocidente.Editora Salvat, Rio de Janeiro.1979.

WARRAQ,Ibn. Defending the West: A Critque of Edward Said’s Orientalism. Prometheus


Bookd:2007.

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Práticas Islâmicas na Periferia de São Paulo: Um olhar sobre a comunidade muçulmana


de Embu das Artes

Luiz Henrique Souza da Silva210

Resumo: Este estudo procura refletir sobre a presença da religião islâmica e de adeptos desta
religião na periferia de São Paulo, mais especificamente na cidade de Embu das Artes. Este
trabalho considera o referencial teórico da geografia humanista que entende a religião como
prática social dos seres humanos, prática esta impulsionada pela percepção que o homem traz
acerca do meio em que vive, no qual a antropologia social faz aportes importantes sobre
categorias de entendimento como tempo e espaço, assim como, dos significados atribuídos a
esta experiência. A partir da permanência histórica da religiosidade em espaços entendidos
como profanos, este trabalho reflete sobre a experiência religiosa dos muçulmanos da/na
periferia e em que medida esta experiência sacraliza o espaço urbano e periférico. Tomamos
como ponto de partida um trabalho de mestrado defendido em 2011 por Tomassi, no qual sua
etnografia delineia alguns aspectos que podem ser retomados após 5 anos.
Palavras-chave: Islã; Embu das Artes; sagrado; profano.

Islamic Practices in the Periphery of São Paulo: A look at the Muslim community of
Embu das Artes

Abstract: This study tries to reflect on the presence of the Islamic religion and of adherents
of this religion in the outskirts of São Paulo, more specifically in the city of Embu das Artes.
This work considers the theoretical reference of the humanist geography that understands
religion as a social practice of human beings, a practice that is driven by the perception that a
person brings about the environment in which he lives, in which social anthropology makes
important contributions on categories of understanding such as time And space, as well as the
meanings attributed to this experience. From the historical permanence of religiosity in spaces
considered as profane, this work reflects on the religious experience of the Muslims in the
periphery and to what extent this experience sacralizes the urban and peripheral space. We
take as a starting point a master's work defended in 2011 by Tomassi, in which his
ethnography delineates some aspects that can be resumed after 5 years.
Keywords: Islam; Embu das Artes; sacred; profane.

210
Graduando do curso de História pela Universidade Estadual Paulista ‘Júlio de Mesquita Filho’. É bolsista do
Programa de Iniciação a Docência financiado – PIBID- financiado pela Fundação Capes. É pesquisador do
GRACIAS-Grupo de Antropologia em Contextos Islâmicos e Árabes e membro do Núcleo de Acadêmicos
Islâmicos (NAI).
luizstencil@gmail.com

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Islã no Brasil - Uma abordagem historiográfica


A presença islâmica no Brasil não é um elemento da história recente. Na narrativa que
compõe a memória dos primeiros muçulmanos nos trópicos, encontra-se neste enredo o
contexto das navegações e da história colonial. No entanto, a historiografia brasileira referente
a este período ainda é pouco explorada, talvez isso ocorra pela escassez de fontes
documentais, e portanto, de análises amplamente difundidas.
A presença islâmica nas Américas e no Brasil ocorre no contexto das navegações a
partir do século XV. Essa presença islâmica se deu principalmente pela necessidade em que
os ibéricos tinham de estabelecer, em certa medida, relações comercias e trocas de
conhecimentos marítimos e/ou de navegação com os árabes. (FONSECA, 1934, p.56).
Lyons (2009) que estuda as contribuições árabes e islâmicas para a sociedade ocidental a
partir do século VII, evidencia que em aspectos marítimos, por exemplo, existe uma
importante contribuição proveniente dos árabes e muçulmanos.
Vasco da Gama, por exemplo que já havia feito sua ultrapassagem no Cabo da Boa
Esperança, extremo sul do continente africano, em 1497, foi depois guiado para a
Índia por um mapa muçulmano e, talvez até por um piloto muçulmano. (LYONS,
2009, p. 128).

No entanto, antes de dar continuidade neste artigo, é importante delinear a


universalidade da religião islâmica e a partir disso, expor a diferenciação didática e conceitual
dos termos árabe e muçulmano. Isto torna-se necessário para evitar corriqueiros anacronismos
e equívocos teóricos referentes a assuntos islâmicos. Para dar início a esta questão, é
necessário ter em vista o caráter universalista da religião islâmica:
(...) embora o Islã, como religião, seja universal, cada comunidade possui a
sua particularidade, por conta das diferenças étnicas e culturais que
constituem as diversas comunidades muçulmanas disseminadas mundo a
fora. (MARQUES, 2008, p. 4)

Tendo em vista a universalidade da religião islâmica em seus aspectos fundamentais


da prática religiosa – testemunho na unicidade divina, oração, caridade, jejum e peregrinação
– (PINTO, 2010) e também as particularidades étnicas e culturais de cada comunidade que
partilha da crença no Islã, é importante reproduzir aqui uma máxima presente no discurso dos
estudiosos mais coerentes do Islã e dos muçulmanos na atualidade: “nem todo árabe é
muçulmano e nem todo muçulmano é árabe”. Ou seja, embora os árabes sejam oriundos de
uma região onde a presença islâmica fora predominante no processo histórico, isto não quer
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dizer que este indivíduo tenha o Islã como sua religião. O termo árabe traz alguns
significados que podem corresponder à questão linguística, do idioma propriamente dito, e
também refere-se a uma construção conceitual de nacionalidade das pessoas oriundas das
regiões do Oriente Médio e da África setentrional. Já o termo muçulmano corresponde ao
indivíduo que adota para si o Islã como religião; isso em qualquer lugar do mundo.
Pinto apresenta dados estatísticos indicando que a maioria das populações
muçulmanas estão fora dos países árabes. Num total de 1,3 bilhão de muçulmanos no mundo,
a maior parte deste encontra-se na região do subcontinente indiano, sendo aproximadamente
400 milhões de muçulmanos. (PINTO, 2010, p. 24).
Retomando a discussão, vemos que na realidade a troca de elementos culturais entre o
ocidente cristão com o oriente islâmico ocorrera num processo de longa duração desde o
século VII, período em que os muçulmanos conhecidos como mouros, oriundos do Norte da
África adentraram na Península Ibérica, principalmente em Espanha e Portugal, como bem
registra Lyons (2009). Essa contribuição árabe e muçulmana ao ocidente ocupa áreas como a
trigonometria, álgebra, estudos de anatomia, navegação astronômica, confecção de mapas e
muitos outros. Lyons destaca que a ciência ao ser manuseada por estes árabes e muçulmanos
não entrou em choque direto com a religião, pois a própria ciência foi desenvolvida para
atender a necessidades relacionadas com as práticas religiosas (LYONS, 2009).
Na historiografia brasileira a presença de muçulmanos no contexto colonial é citada
por alguns historiadores. Freyre (1998), por exemplo, ao estudar os aspectos da formação da
sociedade colonial brasileira, a partir de uma perspectiva familiar, aborda alguns aspectos de
caráter religioso.
Na formação colonial do Brasil, Freyre (1998) registra que o catolicismo luso-
brasileiro traz influencias medievalistas oriundas do processo de ocupação dos mouros na
península Ibérica e do próprio processo histórico de Portugal. O que Freyre chama de
influências maometanas de “mouros” e “moçárabes” na vida social e religiosa do colonizador
português (FREYRE, 1998, p. 311), refere-se justamente a estas trocas e permanências entre o
Islã, catolicismo e seus diferentes meios de sociabilidade. Na visão do autor, foi em Portugal,
que estas populações de moçárabes conseguiram se constituir no fundo e no nervo da própria
nacionalidade portuguesa. (FREYRE, 1998, p,286).

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Em aspectos de cultura material, constata-se no Brasil uma considerável herança


destes povos durante a colônia. Freyre expõe do seguinte modo:
Os artífices coloniais, a quem deve o Brasil o traçado de suas primeiras habitações,
igrejas, fontes e portões de interesse artísticos, foram homens criados dentro da
tradição mourisca. De suas mãos recolhemos a herança preciosa do azulejo, traço de
cultura em insistimos devido a sua intima ligação com a higiene e a vida de família
em Portugal e no Brasil. Mais que simples decoração mural em rivalidade com o
pano-de-rás, o azulejo mourisco representou na vida doméstica do português e na de
seu descendente brasileiro dos tempos coloniais a sobrevivência daquele gosto pelo
asseio, pela limpeza, pela claridade, pela água, daquele quase instinto ou senso de
higiene tropical, tão vivo no mouro. (FREYRE, 1998, p.300)

Algumas narrativas também apontam a possível presença destes mouriscos211 nos


primeiros anos da colonização a partir dos documentos da Inquisição (VANOLI, 2013).
Apesar da Inquisição instalada em Portugal desde 1536, por exemplo, tivesse como objetivo
declarado investigar a heresia judaica (GORESTEIN, 2015), percebe-se a partir destes
documentos inquisitoriais, como por exemplo, a Primeira Visitação do Santo Oficio traços de
uma religiosidade anterior que ainda permanecia indelével do ponto de vista dos inquisidores
(TAVIM, 2013).
Outras narrativas apontam que devido a Inquisição espanhola, alguns muçulmanos
possuidores de conhecimentos marítimos, envolviam-se nas navegações ibéricas e fingiam ser
cristãos para assim escapar dos tribunais da Inquisição, mas ao chegarem nas Américas, logo
evidenciavam suas práticas islâmicas. (ELDIN, 2016)
No contexto brasílico certas fontes sugerem que algumas pessoas também sofreram
processos inquisitoriais por apresentarem características islâmicas dentro do território
brasileiro. Nos primeiros anos do Brasil colônia, a forte influência causada pela produção de
açúcar na Bahia proporcionou a formação de uma sociedade complexa devido ao fluxo de
pessoas e trocas culturais que as pessoas estabeleceram (SCHWARTZ, 2009, p.186). Não
obstante certo hibridismo cultural (BURKE, 2016) também se formaria neste cenário.
Vanoli, nos apresenta evidências a partir de fontes inquisitoriais presentes no Arquivo
Nacional da Torre do Tombo que denunciam a presença de indivíduos com supostas práticas
islâmicas na Bahia no ano de 1591 (VANOLI, 2013). A título de exemplo, Vanoli recorre a
Primeira Visitação do Santo Oficio212 e nos apresenta a confissão de Roxas Moralles, um
castelhano e cristão velho. Este confessional nos apresenta o diálogo entre Roxas e Antonio
211
Muçulmanos convertidos ao cristianismo.
212
Primeira Visitação do Santo Ofício, 115-16.
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da Costa Castanheiro. Nesse diálogo, Castanheiro é acusado de ter dito que é “melhor ser
mouro do que castelhano”; deste modo, os inquisidores o questionam sobre sua vida
precedente, se de alguma maneira “ele já esteve presente em meio a luteranos ou mouros”, ou
se já havia tido contato com a sua literatura. Ele responde de maneira negativa e afirma que
apesar de ter vivido em Granada em meio a muitos mouriscos, ele não fora informado sobre
seus costumes (VANOLI, 2013, p. 236).
Na historiografia brasileira, Reis (2003) apresenta um panorama histórico da presença
de muçulmanos no Brasil a partir do tráfico negreiro. No entanto, ele afirma que antes do
tráfico de escravos é incerto saber como se deu e quando ocorreu de maneira significativa a
presença de muçulmanos no Brasil:
(...) Resta pouca dúvida, no entanto, de que a maior concentração destes adeptos de
Alá escravizados no Novo Mundo terminaria por ser na Bahia da primeira metade
do século XIX. Não se sabe exatamente quando os primeiros muçulmanos aqui
chegaram. Antes do século XIX, entre os africanos vindos da África Ocidental,
alguns provavelmente eram islamizados, entre eles os malinkes aqui chamados
mandingos. (REIS, 2003, p.111)

Foram estes “adeptos de Alá” responsáveis por um levante de escravos ocorrido em


Salvador no ano de 1835, conhecido como o Levante dos Malês, tema amplamente estudado
por Reis (2003).
Narrativas de viagem também compõem importantes registros da presença muçulmana
em território brasileiro. Um manuscrito produzido no século XIX por um imã viajante nascido
em Bagdá, talvez seja um dos registros mais preciosos da presença muçulmana no Brasil
(FARAH,2007). Abdurrahman al-Baghdádi era um súdito do Império Otomano e havia sido
designado para o trato espiritual da tripulação, tendo de cumprir sua função como imã em
uma viagem de Istambul para Basra. No entanto, uma tempestade direcionou a embarcação
para a costa brasileira, fazendo com que al-Baghdádi desembarcasse no Rio de Janeiro em
1866. (RIBEIRO, 2011, p.7). Ao desembarcar, al-Baghdádi surpreendeu-se ao ser
cumprimentado com a tradicional saudação islâmica, às-salamu alaykum213. Aos poucos o
imã certifica-se da existência de uma comunidade muçulmana no Império, e então decide
permanecer no Brasil por um período de três anos. No tempo em que ficou no Brasil, nas
cidades do Rio de Janeiro, Salvador e Recife o imã se esforçou na elaboração de um
manuscrito intitulado “Deleite do Estrangeiro em Tudo o que É Espantoso e Maravilhoso”, no

213
Tradicional saudação islâmica que significa “Que a paz esteja contigo!”.
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qual estão relatados aspectos da fauna e da flora brasileira, e principalmente costumes


culturais e religiosos da população muçulmana local, composta majoritariamente por negros
escravos e libertos. (FARAH, 2007). Recentemente este mesmo manuscrito foi estudado com
ênfase maior em aspectos da prática religiosa islâmica por Eldin (2016). Nas palavras do
estudioso:
Este manuscrito é considerado, sem dúvida, um pilar dos estudiosos e observadores
dos estudos da história dos muçulmanos no Brasil, porque ele é escrito por um sábio
magnífico e mestre ávido, foi capaz de descrever tudo o que viu, e colocar seus
pontos de vista para salvar a comunidade muçulmana na época. O manuscrito
acrescentou outra dimensão à história do Islam e dos muçulmanos no Brasil.
(ELDIN, 2016, p.111)

Embu das Artes – uma cidade cristã

Embu das Artes no decorrer da história, é uma cidade permeada por forte religiosidade
cristã assim como muitas cidades brasileiras. Segundo algumas narrativas, sua história está
configurada desde o período colonial juntamente com a presença da Companhia de Jesus a
partir de 1554, que posteriormente construíram na cidade – antigamente denominada como
aldeia M’boy –, durante a virada do século XVII para o XVIII, a Igreja de Nossa Senhora do
Rosário, e anexa a essa construção, a residência dos padres jesuítas. (JORDÃO, 1964). Mais
tarde, na primeira metade do século XX, essa construção arquitetônica recebeu o tombamento
do Patrimônio Histórico Artístico e Nacional (IPHAN). Atualmente, essa igreja e o acervo
contido nela remetem ao imaginário barroco paulista e estão agregados ao roteiro turístico da
cidade de Embu das Artes, compondo em seu espaço físico o Museu de Arte Sacra dos
Jesuítas.
É importante delinear a importância deste patrimônio histórico enquanto símbolo de
afirmação da hegemonia da Igreja e do cristianismo em Embu desde o período colonial. Duby
(1979), por exemplo, em seu estudo sobre a arquitetura gótica das catedrais da Europa dos
séculos XII e XIII, relata que estas suntuosas obras arquitetônicas representavam a afirmação
e o poder da instituição cristã. Claramente que a Igreja de Nossa Senhora da Conceição, em
Embu, não corresponde a uma obra de arquitetura gótica. No entanto, a sua função pode ser
delineada como uma representação do poder da Companhia de Jesus naquele espaço
geográfico; não somente da Companhia fundada por Loyola, mas também uma representação
do poder da Coroa na colônia (MARTINS, 2011). No período colonial, a ocupação jesuítica

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na aldeia M’Boy a partir do século XVI representava a união entre Igreja e Estado, sendo este
responsável pela colonização e ela, a Igreja, responsável pela colonização catequética, ou seja,
expansão da fé católica (MARTINS, 2011, p.12).
Sobre a presença dos jesuítas em Embu das Artes, Jordão afirma que:
(...) escrever a história de Embu é escrever sobre a própria história da Companhia de
Jesus na América Meridional, uma vez que a atuação dessa célebre Ordem fundada
por Inácio de Loiola, da Capitania de São Vicente de Martim Afonso de Sousa, foi
que surgiu o primitivo Embu. (JORDÃO, 2004, p.9)

Deste modo, assim como foi citado acima, a configuração histórica de Embu das Artes
no que se refere à religião não difere-se muito de outras cidades brasileiras. Encontramos
nesta região, até o século XIX, a significativa presença do catolicismo na configuração social.
Posteriormente, essa religiosidade incorpora variantes, principalmente no século XX, onde
podemos notar que outras religiões de raízes cristãs, como o protestantismo, que passa a atuar
nos mais variados espaços geográficos, inclusive no meio rural (MENDONÇA, 2008). Essa
atuação acontece a partir da perspectiva missionária de grupos protestantes norte-americanos,
que aos poucos entraram no Brasil novecentista em caráter de missão religiosa
(MENDONÇA, 2008).
É importante também citar a presença marcante das religiões de matriz africana que
compõem o seio da história do povo brasileiro e suas hibridas identidades religiosas, desde
sua configuração colonial a partir do tráfico negreiro. Autores como Bastide (1971) registram
que africanos trazidos como escravos para o Brasil, traziam consigo também a sua religião.
No entanto, com a configuração social da sociedade escravocrata, os escravos percebiam que
as representações simbólicas do cristianismo eram mais aceitas, deste modo, forma-se um
determinado sincretismo religioso. Por fim, Bastide (1973) indica que não existe somente uma
religião afro-brasileira, mas várias, que são o resultado da incorporação de elementos
religiosos indígenas, cristãos e africanos.
Sendo assim, observamos atualmente no Brasil uma grande diversidade no que se
refere às religiões, religiões estas que se manifestam das mais variadas formas e estabelecem
conexões como os mais variados espaços geográficos. Estes espaços, por sua vez, precisam
ser vistos e compreendidos como sagrados pelos adeptos de sua religião, precisam ser
compreendidos como geossímbolos (MENESES, 2015). Ou seja, o templo religioso, seja ele

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qual for, é um espaço simbólico construído coletivamente indispensável para a identidade


religiosa (MENESES,2015, p.57).

A comunidade muçulmana de Embu das Artes: entre o sagrado e o profano


A comunidade muçulmana no Brasil é majoritariamente urbana, sendo localizada
principalmente na cidade de São Paulo e na região metropolitana (PINTO, 2005). Um dos
fatores que explica este fenômeno é a forte onda de imigração árabe, predominantemente de
libaneses, palestinos e sírios, ocorrida no Brasil e principalmente para Estado de São Paulo
desde o século XIX.
A existência de uma mesquita na periferia de Embu das Artes não se trata de algo
comum nesse contexto, pois em sua fundação não existem conexões com estes imigrantes
árabes. Essa mesquita, apesar de ser singular, representa um fenômeno social bastante
interessante no Brasil atual que é o crescente número de conversões de brasileiros não-árabes
à religião islâmica (PINTO,2005).
Segundo Tomassi a ascensão da religião islâmica nas periferias e a adesão de
brasileiros sem descendência árabe ao Islã passou a ser percebida a partir da publicação de
alguns trabalhos jornalísticos (TOMASSI, 2011, p.33). A partir destes trabalhos na mídia e
em trabalhos acadêmicos posteriores, como o de Ferreira (2009), por exemplo, percebemos
alguns pontos em comum nesses novos adeptos revertidos214 à religião islâmica. Estes
aspectos são: 1) o distanciamento étnico e cultural com relação à comunidade árabe, o que
resulta em algumas especificidades em suas maneiras de sociabilidade e visões sobre o Islã; 2)
a necessidade de estabelecerem a sua prática religiosa em alguma comunidade/ mesquita, em
algum espaço compreendido como sagrado.
Este último aspecto está relacionado com a necessidade de estabelecer uma identidade
islâmica totalmente relacionada com um local sagrado, local este destinado para a
manifestação das hierofanias215, característica comum de variadas religiões e suas práticas.
Com relação ao conceito de hierofanias, Eliade (1995) registra que: “(...) a história das religiões

214
Francirosy Campos Ferreira (2009) relata que o termo “revertido” é adotado por indivíduos que não nasceram
muçulmanos e que, num determinado momento, passaram a assumir o Islã como religião. Para os muçulmanos, a
reversão “(...) evidencia o fato de que houve um retorno, uma volta ao ponto de partida” (FERREIRA,2009 p.2);
pois na crença islâmica todo individuo já nasce muçulmano. Eis a razão para a substituição do termo conversão,
que implica na ideia de mudança e não de retorno.
215
Mirce Eliade explica que o termo “hierofania” corresponde a um “ato de manifestação do sagrado” (ELIADE,
1995 p. 17).
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– desde as mais primitivas às mais elaboradas – é constituída por um número considerável de


hierofanias, pelas manifestações das realidades sagradas.” (ELIADE, 1995, p. 17).
Sendo as hierofanias manifestações do sagrado, na prática islâmica, podemos dizer
que estas manifestações configuram-se em alguns dos elementos mais fundamentais da prática
religiosa, por exemplo a oração e o hajj216, que são elementos da religiosidade islâmica fáceis
de serem identificados.
O entendimento do espaço sagrado no imaginário do homem religioso, a partir da
concepção de Eliade (1995), não corresponde a uma compreensão homogênea, ou seja, a
noção de espaço para o homem religioso é dual:
Há, portanto, um espaço sagrado, e por consequência “forte”, significativo, e há
outros espaços não sagrados, e por consequência sem estrutura nem consistência, em
suma, amorfos. (...) Quando o sagrado se manifesta por uma hierofania qualquer,
não há só rotura na homogeneidade do espaço, como também revelação de uma
realidade absoluta, que se opõe à não-realidade da imensa extensão envolvente.
(ELIADE, 1995, p. 25)

Deste modo, o espaço religioso possui um significado de extrema importância para o


estudo das religiões e para o estudo do sujeito religioso, dado que a visão deste espaço
classifica, no imaginário do indivíduo, um determinado local como um “centro”, um “ponto
fixo” para a vivência de sua religiosidade. É neste espaço que acontecerão as hierofanias. Para
os muçulmanos, sem dúvidas este “ponto fixo” -além de suas convencionais mesquitas- é a
Caaba217, pois é na direção deste templo que todos os muçulmanos realizam suas orações
diárias, individuais ou coletivas.
A noção de religião está diretamente conectada com a ideia da existência de um
espaço sagrado e ambos se manifestam no espaço geográfico (ROSENDAHL, 1996, p.26).
Nesse sentido, cada religião concebe e vivencia seu espaço sagrado. Essa vivência entre o
espaço sagrado e profano também contribui para as visões de mundo que homem religioso

216
Na religião islâmica existem práticas específicas que são consideradas pilares da religião. Testemundo de fé
que consiste no momento da reversão com os dizeres “'Testemunho que não há outra Divindade além de Deus e
“testemunho que Muhammad é o Seu Mensageiro”; as cinco orações diárias, que são estabelecidas como forma
fundamental de adoração a Deus; o zakat que consiste na distribuição dos bens de parte dos bens materiais para
os mais necessitados; jejum no mês de ramadã, que consiste na abstenção de qualquer tipo de alimento, bebida e
relações sexuais do amanhecer ao pôr do sol; e o hajj, que consiste no cumprimento de determinados rituais em
locais e épocas específicas. Se o muçulmano possuir condições financeiras, físicas e mentais, este pilar da
religião deve ser realizado ao menos uma vez na vida do indivíduo.
217
A Caaba é um grande cubo que mede 50 cm de diâmetros, e de acordo com a tradição islâmica ela é uma das
relíquias mais sagradas do Islam. Ela fica localizada na mesquita Al- Haram, na cidade de Makah, na Arábia
Saudita. Segundo a tradição profética a Caaba foi recebida pelo Profeta Abraaão através do anjo Jibril. Sua
função era de ser o primeiro altar para adoração. (SUBHANI,2006).
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nos traz; visões que, para ele, definem o que é real-sagrado e o que é irreal-profano (ELIADE,
1995).
Há no entanto, a necessidade de traçar uma narrativa sobre esta concepção do que é
real e irreal para o homem religioso e não-religioso, respectivamente. Tal concepção
relacionar-se-á necessariamente ao espaço profano. Para Eliade, na experiência profana o
espaço é considerado homogêneo e neutro, nenhuma ruptura diferencia qualitativamente as
diversas partes que o compõem (ELIADE, 1995, p.26).
Sendo assim, para que haja a existência deste espaço profano, o homem não religioso
precisa assumir a existência do “real”, ou seja, do que é sagrado. E tudo que está fora dessa
ordem, configura o “caos” da homogeneidade, a experiência e o espaço profanos. Ou seja,
mesmo assumindo viver em um espaço dessacralizado, este homem não-religioso, em certa
medida, assume para si um comportamento de ordem religiosa (ELIADE, 1995, p.27). Em
outras palavras, para Eliade o homem profano é herdeiro dos símbolos, imagens e mitos
provenientes do homem religioso.
***

Em Tomassi (2011), podemos perceber de maneira significativa através de seus


interlocutores o quanto as concepções de sagrado e profano fazem parte do imaginário dos
muçulmanos da comunidade de Embu das Artes.
Em sua etnografia, Tomassi (2011) debruçou-se no estudo da performance islâmica
entre agentes do movimento Hip Hop nas periferias de São Paulo e do ABCD. Em alguns
relatos é possível perceber uma espécie de conflito entre os próprios muçulmanos. Tomassi
nos aponta que estes agentes do movimento Hip Hop quando relacionam aspectos de sua
religiosidade islâmica com elementos externos, como por exemplo, a música rap e demais
elementos do Hip Hop, em certa medida causam desconforto e questionamentos dentro da
própria comunidade islâmica.
No decorrer de sua etnografia, Tomassi (2011) acompanhou a apresentação musical de
um grupo de rap fundado por muçulmanos da comunidade de Embu das Artes. O grupo se
chamava Organização Jihad Racional. Segundo Tomassi, nesta apresentação alguns
elementos da religião islâmica eram performatizados durante o show deste grupo, como por
exemplo, vestimentas próprias dos muçulmanos foram aderidas pelos músicos, expressões em
árabe que geralmente fazem parte das orações também foram acrescentadas nas letras de
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música, entre outros. De certo, o fator mais conflituoso para alguns muçulmanos, conforme
apontado por Tomassi foi o fato de mulheres seminuas dançarem no palco durante a
apresentação.
Este conflito fica explícito no fragmento abaixo:
(...) Para os integrantes do grupo Organização Jihad R., colocar mulheres negras no
palco vestidas de branco, com turbantes brancos na cabeça, tops cobrindo os seios,
foi uma tentativa de “reverenciar” o Islã no palco e apresentar a religiosidade
islâmica para o espectador (...)Mas a repercussão não foi bem vista por quase todos
os muçulmanos que entrevistei (...)Para muitos muçulmanos que entrevistei, a
atitude do grupo em usar roupas brancas, entrar descalços no palco e colocar
mulheres negras dançando de top e saia eram atitudes desrespeitosas para com o
Islã. (TOMASSI, 2011, p.94)

Sendo assim, é possível perceber que noções do que é sagrado e profano, estão
constantemente em diálogo a partir das ações estabelecidas pelo indivíduo religioso.
O que separa a ideia de sagrado ou profano em determinadas situações, é o que lhes
caracteriza como ritos. Em Durkheim (1989) vemos que são os ritos fatores elementares que
permitem o homem religioso acessar ao sagrado, ou seja, os ritos fazem parte do escopo das
crenças, pois eles permitem vivenciar o sagrado.
Durkheim (1989) revela que as crenças são “representações que exprimem a natureza
das coisas sagradas e a relação que elas mantêm, seja entre si, seja com as coisas profanas”.
Deste modo, as crenças do indivíduo religioso é que são responsáveis pela concepção do que
é sagrado ou profano; elas contribuem para uma visão dual da realidade.
Portanto, se as ações tomadas pelos indivíduos muçulmanos -conforme exposto por
Tomassi (2011) - não fizerem parte do bojo de ritos e crenças,-que articulados de forma
sistemática constituem uma religião- muito provavelmente serão entendidas como profanas no
imaginário de muitos crentes. Talvez seja esta a razão para o conflito exposto por Tomassi.
No entanto, desde a realização da etnografia de Tomassi (2011), muitos aspectos desta
comunidade em Embu, se alteraram. Como citado anteriormente, o espaço que antes era
destinado para as orações era uma mussala, uma pequena sala de oração. Atualmente o espaço
funciona como uma mesquita. Mesquita que leva o nome de Sumayyah Bint Khayyat218.

218
Sumayyah Bint Khayyat foi uma escrava que se reverteu ao Islã na época em que a primeira comunidade
muçulmana se formava no século VI na cidade de Meca. Após sua reversão, Summayyah foi torturada por
líderes tribais até a morte, no intuito de que ele pudesse abandonar a sua fé no Islã.
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Nos últimos seis anos foram feitas mudanças de infra estrutura para uma melhor
realização dos ritos islâmicos, como por exemplo, a construção de um espaço de ablução e a
instalação de um setor dentro desta mesquita destinado para a oração das mulheres219.
Alterações estas que podem contribuir para um reconhecimento maior do espaço sagrado por
parte de quem o frequenta.
Estas transformações no espaço físico decorrem da necessidade que o homem
religioso sente de viver numa atmosfera impregnada do sagrado (ROSENDAHL, 1996, p.30).
Além destas mudanças físicas, percebemos algumas mudanças nos próprios interlocutores de
Tomassi (2011) mesmo após 5 anos. Todo os membros do grupo Organização Jihad
Racional, por exemplo, não possuem mais vínculo com a música, pois na visão deles, como
bem indica a autora, isso descaracteriza a religiosidade islâmica.
Berman (1986) em seu estudo sobre a modernidade nos abre caminho para uma
possível compreensão para estas mudanças. Para ele a atmosfera atual – a modernidade- é
“caracterizada por agitação e turbulência, aturdimento psíquico e embriaguez, expansão das
possibilidades de experiência e destruição das barreiras morais e dos compromissos pessoais”,
valores alheios à religiosidade islâmica. Por sua vez, o homem religioso inserido nesta
modernidade busca incessantemente contornar toda esta agitação, que para ele, insiste em
profanar o que é sagrado (ELIADE, 1995, p.165). Nesse sentido, a adequação do espaço físico
das mesquita se fez oportuno.
Atualmente, essa mesquita na periferia de Embu das Artes tem atraído cada vez mais
pessoas interessadas no Islã propriamente dito e na própria comunidade também, pois a
mesma trata-se de algo singular no Estado de São Paulo. Talvez um dos motivos que mais
leve ao interesse de muitas pessoas em conhece-la, é o fato desta mesquita estar instalada
dentro de uma favela.
Atualmente esta comunidade abarca cerca de 50 muçulmanos e a grande maioria deles
são muçulmanos reversos. De acordo com Ferreira (2009), a reversão na maioria das vezes
exige algumas mudanças de comportamento, requer um grande esforço por parte do reverso.
Deste modo, se faz importante refletir se estas mudanças de vida de homens e
mulheres, muçulmanos da periferia, os levou a uma nova compreensão do meio em que
vivem, e principalmente se a religião islâmica contribui para uma nova compreensão do que é

219
Informações coletadas com o presidente da mesquita, César Kaab Abdul.
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sagrado e do que é profano. Para compreender melhor estes aspectos se fez necessária visitas
regulares a esta mesquita para observar as maneiras sociabilidade adotadas pelos muçulmanos
e muçulmanas da/na periferia.
Além de suas práticas religiosas direcionada ao espaço físico da mesquita como as
orações diárias e os sermões de sexta-feira, existe na mesquita de Embu, extensões de
atividades religiosas para não-muçulmanos, como por exemplo a leitura do Alcorão Sagrado
em português e em árabe. Esta atividade em especial, geralmente ocorre em dias alternados
durante a semana, sempre no período noturno, para que deste modo, as pessoas da
comunidade e demais interessados possam ter acesso a essa prática fundamental da religião
islâmica, que é a leitura do Alcorão. Isso de alguma maneira, demonstra que há um esforço
por parte dos muçulmanos para mostrar a religião islâmica para as demais pessoas, ou
permitir que elas tenham acesso e conheçam seus costumes, suas hierofanias.
Outro fator significativo nesta comunidade muçulmana é a interatividade que eles
estabelecem com boa parte da comunidade não-muçulmana que está ao redor. Esta interação
ocorre a partir de variados eventos relacionados a caridade. Regularmente são realizadas
distribuições de alimentos, roupas e até cobertores para famílias carentes, que em sua maioria
não são muçulmanas. Consequentemente, após a realização destas atividades os próprios
muçulmanos ali reunidos promovem palestras com variados temas para as pessoas do bairro,
no intuito de apresentar e responder dúvidas sobre a religião, e principalmente para
demonstrar a permanência deles e de sua religiosidade naquela região220.
De certo, é possível registrar que estes muçulmanos da mesquita de Embu se
esforçam, constantemente na busca por um ambiente mais sacralizado. Ambiente que vai
além do espaço físico da mesquita. Na medida em que eles compreendem a realidade que os
circunda, mais eles se esforçam em ampliar determinadas manifestações que demonstrem sua
identidade religiosa.
A compreensão desta realidade, implica no reconhecimento de uma esfera profana ao
redor da mesquita. Se a partir de uma visão simplista levarmos em conta o cotidiano de um
bairro periférico paulistano, vamos constatar elementos antagônicos à vida religiosa, como
por exemplo, criminalidade, entre outros fatores. Rosendahl (1996) indica que o homem
religioso sente a necessidade de viver numa atmosfera impregnada do sagrado. Nesse sentido,

220
Informações que foram percebidas através de visitas feitas à Mesquita de Embu das Artes, no ano de 2016.
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existe nos muçulmanos de Embu das Artes o sentimento contínuo de mudança de sua
realidade e de mudança do espaço em que vivem.
Por fim, é possível identificar que, apesar dos muçulmanos da periferia de Embu das
Artes serem pouco numerosos, há neles determinado esforço cotidiano em sacralizar o meio
em que vivem. Através da vivência destes adeptos do Islã, ocorre uma extensão do espaço
sagrado e a manifestação de uma identidade religiosa, para além do local das orações, desde
mulheres que utilizam o véu islâmico em locais público, até os homens que adotam a barba
comprida, por exemplo.
De fato, numa sociedade moderna extremamente heterogênea a diversidade religiosa é
uma realidade. Porém, ser muçulmano no Brasil e ser muçulmano na periferia, ainda assim é
conflituoso, pois ocorre no imaginário social uma constante associação do Islã e dos
muçulmanos a valores “extremistas” e “violentos” (PINTO,2010) Em outras palavras, o Islã
no imaginário social de muitos brasileiros ainda é um “corpo estranho”.
No entanto, conhecer a realidade assumida pelo indivíduo religioso, compreender suas
práticas religiosas, suas crenças é, em suma fazer avançar o conhecimento a respeito do
homem. (ELIADE, 1995, p.164). Nesse sentido, a existência de uma mesquita em uma favela
fundada por muçulmanos brasileiros, em Embu das Artes, ou em qualquer outra periferia do
Brasil é um ótimo alicerce para a aproximação entre religiosos e não religiosos, entre o Islã e
a sociedade em geral, pois é a partir da construção e na permanência destas novas identidades
religiosas que a sociedade moderna irá se estabelecer de maneira coesa e tolerante.

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Uma casa para celebrar e gritar: resistência e fé na luta pelo direito de morar

Marcos Alexandre Araújo Ribeiro221

Resumo: Este artigo apresenta o panorama da luta pelo direito de morar, durante o final da
década de 1970, momento em que a população brasileira encontrava enormes dificuldades
socioeconômicas. Na região amazônica, as diferenças sociais se sobressaiam de tal modo que
parte significativa da população não tinha acesso à educação, à saúde, à segurança pública,
nem a bens culturais, saneamento e moradia, levando essas pessoas a habitarem áreas
alagadas e sem qualquer melhoria urbana, os colocando em condições de plena
vulnerabilidade social. É neste cenário que a Paróquia de São Sebastião, localizada no Bairro
da Sacramenta, em Belém do Pará, e teologicamente alinhada à Teologia da Libertação, irá se
colocar de forma contundente pela defesa da cidadania dos moradores mais pobres desse
bairro, e na luta pela garantia da ocupação e permanência da área conhecida como
“Malvinas”, enfrentando o Ministério da Aeronáutica e demais forças conservadoras.
Palavras-chave: Libertação. Resistência. Celebração

A house to celebrate and shout: resistance and faith in the fight for the right to live

Abstract: This article presents the moment of the struggle for the right to live, during the late
1970s, when the Brazilian population encountered enormous socioeconomic difficulties. In
the Amazon region, social differences stand out in such a way that a significant part of the
population did not have access to education, health, public safety, cultural assets, sanitation
and housing, causing these people to live in flooded areas and without any improvement
Urban, placing them in conditions of full social vulnerability. It is in this scenario that the
parish of São Sebastião, located in the neighborhood of the Sacramenta, in Belém do Pará,
and theologically aligned with Liberation Theology, will strive strongly for the defense of the
citizenship of the poorest residents of this neighborhood, and the struggle for Guarantee of
occupation and permanence of the area known as "Malvinas", facing the Ministry of
Aeronautics and other conservative forces.
Keywords: Liberation. Resistance. Celebration

INTRODUÇÃO

No decorrer da história da humanidade, a crença em um ser superior sempre foi


importante e até vital para o desenrolar positivo das atividades que desenvolviam em
comunidade, seja na guerra, na alimentação, na relação com a natureza ou nas inter-relações
humanas. E no passar dos séculos e impérios, mesmo com um constante reordenamento
geopolítico da terra e inúmeras ressignificações das divindades, das religiões e de seus

221
Graduado em História pela Universidade Federal do Pará, Mestre em Ciências da Religião pelo
PPGCR/Universidade do Estado do Para, Docente colaborador do Departamento de Filosofia e Ciências Sociais
da Universidade do Estado do Pará. E-mail: marcospipok@hotmail.com
281
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dogmas, essa relação com o sagrado teve e continua tendo um fundamental papel social na
vida do homem.
Durante toda a história do cristianismo, observa-se que a sua relação com seus
seguidores sofreu muitas modificações, oscilando sua ação em períodos de diálogo e
colaboração popular, passando por repressão e censura, mortes, torturas, e retomadas de
diálogo com o povo de Deus, sempre na busca dialética de expansão e consolidação de seu
império de fé, na tentativa de reproduzir as práticas de seu profeta, salvador e líder maior, o
hebreu Jesus da Galiléia.
A Igreja Católica Apostólica Romana – ICAR, que segundo dados do Anuário
Pontifício 2013 possui 01 bilhão e 214 milhões de fiéis222, sempre exerceu importante papel
nas questões táticas e estratégicas do mundo, em especial no espaço ocidental, apoiando e
“abençoando”. Como nas grandes navegações que viriam colonizar e catequizar parte
significativa do novo mundo (América), também neste caso, em especial o da América Latina,
promovendo e/ou apoiando inúmeros casos de agressões ao homem (como no caso dos
escravos negros trazidos da África), ou em outros casos, defendendo os nativos latino-
americanos dos desmandos das coroas espânico-luzitanas.
Mais de cinco séculos depois, na América do Sul, no contexto da Guerra Fria223 se
percebia como área de influencia dos Estados Unidos da América – EUA, as elites deste
continente, aliadas aos militares, à classe média e a setores conservadores da Igreja Católica,
tomaram o poder em países como Paraguai, Argentina, Chile, Uruguai e Brasil, onde
implantaram ditaduras militares, golpes de estado esses que tiveram indireta e (no caso
Chileno da deposição do Presidente Salvador Allende), direta participação do governo
estadunidense (SADER, 1981).
No Brasil, a ditadura militar perdurou de 1964 até 1985, deixando um rastro de
violência com todo tipo de censura, torturas, mortes, prisões, exílios e perseguições, onde o
governo e sua política econômica privilegiavam as classes dominantes em detrimento das

222
Informação extraída do site oficial da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), disponível em:
<http://www.cnbb.org.br/imprensa/internacional/11978-apresentado-ao-papa-o-anuario-pontificio-2013-a-igreja-
cresce-no-mundo-sobretudo-na-africa-e-asia>, acesso em 23/04/2014.
223
Período compreendido entre Pós-Segunda Guerra Mundial e a virada das décadas de 1980-1990, em que o
mundo se encontrava divido em duas áreas de influência político-militar e ideológica, entre as duas grandes
potências mundiais: o leste europeu, alguns países asiáticos e africanos e Cuba, sob a liderança e a orientação
socialista da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas – URSS; e a Europa Ocidental, os países africanos e
asiáticos e a América Latina, sob a influência e a orientação capitalista dos Estados Unidos da América – EUA.
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camadas populares. É neste preocupante cenário de exclusão e exploração que a Igreja


Católica Romana e outras igrejas cristãs, como as igrejas Presbiteriana e Luterana, além de
alguns teólogos, como Betto (2012, 2009, 1985), Boff (1999) e Gutierrez (1971), discutem e
formulam uma eclesiologia que busque caminhos a para a diminuição ou extinção do flagelo
dos oprimidos pelo sistema capitalista, uma vez que para estudiosos da religião o sistema
capitalista, em sua gênese, se caracteriza como segregador.
Teólogos propunham que a Igreja Católica deveria fazer a opção pelos pobres, como
podemos observar nos documentos de Medelín224 (1967), e mais tarde reafirmados em
Puebla225 (1979). A Teologia da Libertação226 através de seu método Ver, Julgar e Agir,
proporia um novo papel ao cristão que, animado pelo evangelho de Cristo, seria o fermento de
libertação das massas oprimidas da América Latina, entendendo sua missão revolucionária
naquele contexto sócio-político. Nesse momento, esta postura da ICAR possibilitou uma
maior aproximação com as chamadas bases sociais, criando as Comunidades Eclesiais de
Base – CEBS, assim como fortalecendo e ampliando as já existentes. Essas CEBS são
espécies de núcleos litúrgicos, culturais e políticos das paróquias da Igreja Católica. As
CEBS, através de debates orientados pela Teologia da Libertação e por todo o seu arcabouço
teórico, possibilitariam uma aproximação da Igreja com militantes de partidos de esquerda,
com estudantes e com populações em situação de vulnerabilidade social, como indígenas e
movimento negro. Essa articulação se dava nos espaços urbano e rural, como podemos
observar na tese de doutoramento de Airton dos Reis Pereira (2013, p. 172), professor da
Universidade do Estado do Pará:
Nesse período, também os espaços da igreja (capelas, salões, barracões, casas
paroquiais e a casa episcopal) foram utilizados para reuniões, cursos e treinamento

224
Segunda Conferência Geral do Episcopado Latino-americano realizada em Medelin, na Colômbia, no ano de
1968, que fora convocada e aberta pelo Papa PauloVI, tendo como tema orientador “a igreja na presente
transformação da América Latina à luz do Concílio Vaticano II”, refletindo sobre a “libertação” do povo de Deus
e afirmando que a igreja latino-americana trazia para o centro do debate o homem desse continente, que vive em
um momento decisivo de seu processo histórico. Participaram da conferencia 86 Bispos, 45 Arcebispos, 70
sacerdotes, 6 religiosas, 19 leigos e 9 observadores não católicos.
225
Terceira Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano, realizada em Puebla de Los Angeles, no
México, em 1979, e que teve a honra de ser aberta pelo então recém empossado Sumo-pontífice João Paulo II,
em sua primeira visita as Américas, quando fez um chamado a fidelidade a igreja e ao evangelho, buscando a
unidade e dignidade humanas, priorizando vocações sacerdotais e a família. Propondo uma igreja latino
americana que evangelize no hoje com um olhar para o amanhã. Tendo participado da Conferencia 356
delegados, sendo 221 Bispos.
226
Teologia da Libertação: orientação teológica cristã de caráter ecumênico surgida na segunda metade do
século XX nos países periféricos do mundo, em especial na América Latina e que propunha a opção preferencial
pelos pobres.
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sindical, numa re-apropriação e redefinição dos espaços sagrados. Os seus veículos


contribuíam para o deslocamento de trabalhadores das áreas em litígio para
acompanhar o desdobramento jurídico em questão nas cidades e transportar
sindicalistas para reuniões nas regiões de conflito. E foi nesse contexto que surgiram
e se estruturaram as Comunidades Eclesiais de Base, particularmente em áreas
litigiosas. Nessas comunidades, a leitura e a reflexão bíblico-religiosa, com base na
realidade ali vivenciada e por meio das celebrações, dos terços, das novenas e das
festas, encorajavam os posseiros a resistirem em suas terras, além de animar outros a
ocupar alguns imóveis improdutivos. A compreensão que passaram a ter, sobretudo,
era que a terra havia sido criada por Deus, portanto para todos e não somente para
algumas pessoas. Por isso precisavam dividi-la. Mas por outro lado os posseiros
sabiam que contavam com o apoio da igreja católica, nas lutas, talvez a única
instituição da sociedade civil, naquele momento, com projeção política nacional,
envolvida nas questões da terra.

Nesse sentido, buscamos analisar especificamente o movimento litúrgico, político e


social, focando na Paróquia de São Sebastião, no bairro da Sacramenta, em Belém, onde a
Paróquia, a sua Pastoral da Juventude e as suas CEBS foram atores fundamentais em lutas
populares, como a luta pelo direito de morar, travada entre os moradores da área das Malvinas
e o Ministério da Aeronáutica e os moradores da área Ferro Costa com os latifundiários
urbanos reclamantes da mesma área. Além disso, busca-se analisar muitos dos processos
litúrgicos, sociais e políticos, verificando e classificando a recepção da comunidade do bairro
da Sacramenta, adentrando em um debate em torno das heranças sociais, políticas e culturais
deste período histórico. A partir dessa pesquisa constatou-se que as ações empreendidas pelas
CEBS ligadas à Paróquia de São Sebastião projetaram um considerável raio de influência na
comunidade do bairro, assim como no entorno dela.
A dialética em torno dessa reverberação das práticas irradiadas a partir da Paróquia de
São Sebastião e de suas CEBS consistem em campos distintos, a pesquisa garante a audição
da camada da sociedade do bairro e adjacências que percebia e entendia toda aquela
movimentação como necessária para a atual conjuntura de final do regime militar e início da
década de 1980, na qual o bairro da Sacramenta, como a grande maioria dos bairros
periféricos da cidade de Belém e da Amazônia, careciam de grande e urgente intervenção do
poder público, para sanar deficiências em áreas de atendimento ao cidadão, como a saúde, a
educação, a geração de emprego e fundamentalmente saneamento e habitação. Todavia,
garantiria também atenção para uma demanda significativa da população do bairro, que
percebia “aquelas lutas” com certa desconfiança, pois acreditava que a igreja, que é um
campo santo, não era lugar para se brigar ou se fazer política. E analisando ambos os cenários

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buscou-se compreender o tamanho e a policromia resultante destas ações em prol da


população do bairro da Sacramenta e área de influência.

1 CONQUISTAS E AVANÇOS DA LUTA PELO DIREITO DE MORAR NA


CHAMADA ÁREA II

Em um bairro como o da Sacramenta na cidade de Belém do Para, no início dos anos


1980, a situação era bastante difícil para grande parcela da população que habitava em área de
precárias condições sanitárias e urbanas. Muitos desses habitantes sequer eram proprietários
de suas moradias, mesmo em péssimas condições, e nesse contexto era praticamente
inevitável o surgimento e o acirramento das práticas de invasões de terra, em especial das que
pertenciam a Aeronáutica, que através de votação popular passou a chamar-se “Área II”.

O Centro Comunitário 1º de Setembro, que ficava localizado na passagem de mesmo


nome, entre as avenidas Pedro Álvares Cabral e Senador Lemos, tinha a sua frente o Sr.
Carlito Moura, grande liderança da área, então, muito respeitado e prestigiado pelos
moradores. Durante o processo de invasão dessa área, localizada entre as Avenidas Júlio
Cesar, Dr. Freitas, Senador Lemos e as indústrias da FACEPA (Fábrica de Celulose e Papel
da Amazônia) e o canal São Joaquim, várias benfeitorias começaram a ser efetuadas pelos
próprios atores do movimento. Havia, em verdade, um grande processo de articulação e
engajamento de todos, pois os mesmos ou não tinham onde morar, ou pagavam aluguel.

2 “O ALUGUEL COME NA MESA COM A GENTE”

Não vou fazer ponte para sapo e rato andar (Almir Gabriel)

Segundo relatos de antigos moradores da área, os mutirões organizados pelo Centro


Comunitário 1º de Setembro envolviam toda a família: enquanto os homens desciam para o
desmatamento da área nativa, as mulheres se ocupavam em preparar o “sopão”, o qual até os
ingredientes chegavam de forma coletiva; havia também o grupo de mulheres que levava água
e material de primeiros socorros mata adentro para os homens empenhados em meio a igapós

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e grandes árvores; caças como capivaras e pacas e, constantemente, sofrendo ataque de


sanguessugas. Há também relato de moradores atacados por sucuri227:

Teve um dia que o pessoal tava ali pra dentro (sic), onde é o colégio agora (Escola
estadual Esther Bandeira). Já era final da tarde e eu vi o pessoal gritando: era na
verdade uma imensa cobra que tava dando um bote na minha filha, essa
pequenazinha que tá grande aí... (sic).

Conforme já supracitamos, as primeiras benfeitorias foram realizadas pela própria


comunidade, que bem articulada desenvolvia as ações sempre coordenada pelo centro
comunitário 1º de Setembro e o Sr. Carlito Moura, contando ainda com o apoio da Paróquia
de São Sebastião, de Padre João e de seus grupos ligados à Pastoral da Juventude.
No ano de 1983, muitos ocupantes já se encontravam morando no novo espaço, como
relata a informante D. Graça Pereira: “Nós viemos tudo pra cá, era tudo sem muita condição.
Minha casa só tinha as paredes do lado e o encerado em cima. A maioria das casas era assim,
mas ninguém mexia com ninguém”.
Como a área em questão era reclamada pelo I COMAR, ou seja, pertencia à União,
gerando, assim, um conflito de interesses, o poder público vigente à época muito se omitia em
intervir com ações de saneamento e urbanização.
No ano de 1983, o Governo do Estado tinha à frente o Sr. Jader Barbalho, do
PMDB228, proeminente político que havia se destacado como Deputado Estadual, e como

227
Entrevista concedida pela informante Graça Pereira, antiga moradora do local, em Belém, mediante termo de
livre consentimento esclarecido, em 17/04/2014.
228
O primeiro Governo de Jader Barbalho (1983 – 1986), eleito democraticamente com 501.605 votos, no final
do período da ditadura militar no Brasil, foi caracterizado pelos investimentos prioritários em órgãos da
administração direta e indireta e em setores estratégicos, como IPASEP, onde expandiu seu raio de ação de 36
para 54 municípios; CELPA, onde implantou 1.220 Km de linhas de transmissão, construindo 19 subestações
rebaixadoras, beneficiando as regiões sudeste e leste do estado; transportes, onde fez a recuperação e a
pavimentação da rodovia PA 150, que se estende da cidade de Moju até Santana do Araguaia, em um total de
1.150 Km; no setor das comunicações modernizou a Rádio Cultura OT, e implantou a FM, além de ter
expandido de 28 para 66 o número de retransmissoras de televisão, passando a cobrir 81 localidades entre sedes,
distritos e vilas; no saneamento básico, dando início ao Projeto Belém 2000 e ao Sistema de Drenagem de
Belém; na saúde, começou a construção do Hospital das Clínicas de Belém e na educação elaborou o Novo
Estatuto do Magistério, e no ensino superior propiciou a implantação da Universidade do Estado do Pará. No
setor de habitação desapropriou 22 áreas urbanas e legitimou a posse de 22.237 lotes urbanos, beneficiando um
total de 30 mil famílias. A Cohab construiu 7.213 unidades habitacionais que, somados aos lotes urbanos
viabilizados mediante desapropriações, atingiram o total de 29.450 moradias colocadas à disposição da
população de baixa renda . Outra atuação importante foi na área da ação social, sob direção da primeira-dama
Elcione Barbalho, onde implantou diversos programas sociais, como o “Alimentação do Menor” e “Plantão
Social”; na cultura e no turismo construiu o Memorial da Cabanagem, projetado e assinado por Oscar
Niemeyer. Ademais, concluiu as obras do Centro Cultural Tancredo Neves – CENTUR, a ponte do Outeiro,
ligando Belém à ilha de Caratateua e quadras polivalentes em diversas praças na capital e interior. Todavia, este
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prefeito biônico da cidade de Belém o Dr. Almir Gabriel, que fora indicado pelo governador
do Pará.
As lideranças, então, buscaram na gestão municipal o apoio para a resolução de
problemas estruturais da área, tendo sido recebidas pelo prefeito Almir Gabriel que, segundo
relatos das lideranças, em público dissera que não investiria recursos nas melhorias sanitárias
e urbanísticas da área, ou em suas palavras, que não iria “fazer ponte para sapo e rato andar”,
conforme relato de nossa informante.
Mesmo com essa negativa, as lideranças foram em busca de alternativas, chegando ao
Palácio Lauro Sodré, sede do poder estadual, onde foram recebidos pelo governador, que lhes
assegurou apoio e material necessário para a construção das pontes em madeira, segundo os
relatos de nossa informante. Ainda de acordo com ela, a única pergunta que Jader Barbalho
fizera teria sido se havia braços masculinos suficientes para empreender a obra. Na semana
seguinte, em uma terça-feira, para alegria e espanto da comunidade, na esquina das Passagens,
São Pedro e Cláudio Bordalo, fora descarregada uma grande remessa de materiais de
construção para a edificação das pontes sobre os igapós garantindo assim, junto a esta
comunidade, a confiança e o respeito frente à sua palavra de estadista.
Em virtude da participação de lideranças, como o professor Jorge, Cláudio Bordalo e
Carlos Augusto, que eram ligados à Paróquia de São Sebastião e ao PT, era natural que muitas
das ações e discussões acabassem tendo uma conotação político - partiária, o que gerava
desconforto em alguns participantes, pois não queriam estar fazendo discussão partidária, e
sim apenas conseguir um lugar para morar. Esses debates acalorados muitas vezes geravam
atritos de toda ordem (ideológica, política e metodológica), pois, enquanto havia uma turma
mais afinada com a Paróquia de São Sebastião e o PT, havia outras lideradas pelo Sr. Carlito
Moura, que se encontravam alinhada ao PMDB. Essas diferenças também iriam reverberar em
processos eleitorais posteriores, como as eleições municipais de 1985 e 1988, nas quais os
militantes do PT apoiariam para Seu Vavá (liderança popular do bairro da Sacramenta) e
Alberdan (ex-lider sindical e atualmente servidor do Ministério da Cultura) e para o cargo
majoritário Humberto Cunha, ex-vereador de Belém e membro da SDDH; e o grupo oponente

governo, eleito com o apoio da esquerda do Pará, até então representante do novo, gozando, assim, de
popularidade no início do mandato, não manteve coesão de governabilidade e não cumpriu promessas de
campanha, o que culminou em um fim de mandato desgastado por conta de denúncias de corrupção, ocasionando
sua baixa popularidade.

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lançaria o nome de Carlito Moura para vereador que, apesar da boa votação, não logrou êxito
em ambos os pleitos, assim como apoiavam, em 1985, Coutinho Jorge, do PMDB. Este foi
Secretário de Planejamento no governo Aloísio Chaves e no segundo governo Alacid Nunes.
Eleito deputado federal pelo PMDB em 1982, foi Secretário de Educação por um breve
período no primeiro governo Jader Barbalho, até ser escolhido candidato a prefeito de Belém,
sendo eleito em 1985. Em 1990 derrotou Ademir Andrade na disputa pelo Senado,
licenciando-se do mandato para ocupar (1992-1993) o Ministério do Meio Ambiente no
governo Itamar Franco. Retornou ao Senado em dezembro de 1993 e exerceu o mandato por
mais um quinquênio, até renunciar e assumir uma cadeira no Tribunal de Contas do Estado do
Pará (1998-2009), corte da qual foi presidente; e em 1988 o candidato Fernando Velasco,
também PMDB, para prefeito. Velasco foi militante do MDB e do PMDB e foi eleito
vereador em Belém, em 1968 e 1972, afastando-se da vida pública ao final do mandato.
Presidente do Instituto de Terras do Pará (1983-1985) no primeiro governo Jader Barbalho,
renunciou e foi eleito vice-prefeito de Belém, em 1985, na chapa de Coutinho Jorge e
deputado federal, em 1981, participando da Assembleia Nacional Constituinte que elaborou a
Constituição de 1988. Em novembro daquele ano foi candidato a prefeito de Belém sendo
derrotado por Sahid Xerfan. Não se reelegeu deputado federal, em 1990, mas ocupou
novamente a presidência do Instituto de Terras do Pará (1991-1995) no período
correspondente ao segundo governo Jader Barbalho e o governo Carlos Santos. As eleições de
1988 seriam vencidas pelo empresário atacadista Said Xerfan, do PTB, que já havia assumido
o cargo como “prefeito tampão”, entre o período de 13 de Abril de 1983 a 28 de agosto de
1983, tendo como vice Augusto Resende, político e empresário local que já havia exercido o
cargo de vice-prefeito de Belém entre os meses de Abril a Agosto de 1983, também com
Xerfan, só que como candidato biônico, e que em 1990 assumiria a prefeitura após a saída de
Xerfan para concorrer ao governo do Estado com o ex-governador Jader Barbalho, sendo este
o vencedor destas eleições, além de ter tentado se reeleger prefeito para o cargo nas eleições
de 1996 pelo PRP e 2000, concorrendo pelo PMDB.
Entendemos que essa disputa localizada na Área II na verdade refletia a nova realidade
da redemocratização do país, estando a pleno vigor o pluripartidarismo e caminhando a passos
largos e firmes para uma democracia plena, na qual, entre derrotas e vitórias, como o
movimento “Diretas Já” (derrota no congresso e vitória nas ruas), e mais tarde, em 1988, com

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a nova constituição brasileira e em 1889 com o direito ao voto direto para presidente da
república, se consolidaria o processo de reabertura política.

3 UMA CASA PARA CELEBRAR E GRITAR

Muitos daqueles que chegaram para ocupar a área vieram do próprio bairro da
Sacramenta, onde viviam em quartos alugados. Havia também pessoas oriundas de outros
bairros, como Pedreira, Souza, Val-de-Cães e Telégrafo, como Dona Anete, nossa informante.
Ela nos relatou que ocupar a área não foi nada fácil. Fizera parte da ocupação por ter muita
necessidade de ter uma casa para morar com suas três filhas. Na ocasião, fora informada por
terceiros sobre as reuniões que ocorriam no Centro Comunitário 1º de Setembro, sob a
coordenação do Sr. Carlito Moura, e que lá, após a participação em várias reuniões e mutirões
organizados pelo centro, haveria a possibilidade de adquirir um terreno de proporções que
mediam 5mX20m.
Como nos demais relatos, o mutirão era organizado da seguinte maneira: os homens
desmatavam a área e as mulheres se ocupavam em preparar o “sopão” e em cuidar dos que se
acidentassem ocasionalmente, sempre a postos com suas valises, contendo artigos de
primeiros socorros. O trabalho era extremamente árduo, pois a mata que recobria a área
(pertencente a Aeronáutica) era fechada, com árvores de grande porte e com grandes
quantidades de animais peçonhentos e bastante alagada, pois era banhada pelo Igarapé de São
Joaquim.
Os mutirões aconteciam aos domingos, e com o tempo, foram conseguindo melhorar a
área, tanto que, em um período de menos de dois anos, algumas famílias se mudaram para lá,
mesmo com várias necessidades ainda por ser atendias, como moradias adequadas,
saneamento básico, luz elétrica e atendimento escolar e médico, tanto que D. Anete, em dado
momento de sua fala, nos relatou um episódio em que, enquanto armava o mosquiteiro de sua
filha, fora atacada por um escorpião, o que lhe causou grande mal-estar. No entanto, por não
haver atendimento médico no local, D. Anete relembrou que, orientada por outros moradores,
recorreu ao remédio caseiro feito da imersão em formol do próprio artrópode, cujo sumo foi o
antídoto para aliviar sua dor. Isso nos mostra o quanto era recorrente a presença da medicina
popular como única alternativa – e perigosa – frente à ausência da assistência por parte do
poder público.
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História das Religiões, Literatura, Conceitos e Identidades – Vol. VI – ISSN 2359-6988

Nossa informante relata também que, devido às casas serem construídas sobre o
Igarapé de São Joaquim, não era raro o aparecimento de animais, como peixes, inclusive de
poraquês, e jacarés. Não era raro, também, que esses animais servissem de alimento para
aquelas pessoas.
Diante de todas essas dificuldades, surgiram outros colaboradores, como os jovens
ligados à Paróquia de São Sebastião e os próprios Padres Crúzios, dos quais a presença era
comumente notada nas ações coletivas. A seguir, temos a fala de D. Anete229:
Eu lembro que o pessoal da Igreja, lá da catequese, vinha pra cá e ficava ali na beira
da ponte; um tocava um tamborim, outro, com violão. Outro, ajudando na sopa...
Lembro até do Padre Francisco ajudando a carregar as toras. Eu lembro que quem
estava sempre por aqui era o menino... (sic) o Jorge, o Augusto, O Cláudio Bordalo,
o Guto... Essa turma toda estava sempre ai, o próprio Padre João... Tanto que tem
ruas aí com o nome deles.

Após o primeiro momento do processo de ocupação da área, houve um período de


tensão ocasionada pela Aeronáutica, que procurou reclamar a área. Foi quando várias
lideranças, sob a coordenação do Sr. Carlito Moura e do advogado João Marques, tentaram
dialogar com o Ministério da Aeronáutica, mas não obtiveram êxito. Todavia, em outra
investida, dessa vez em Brasília, e com o apoio do Governador Jader Barbalho, a área fora
liberada provisoriamente. Após essa conquista, se faziam necessários outros melhoramentos
na área, como a construção de estivas e a construção de rede de distribuição de água potável,
pois até então, a água que os moradores consumiam era coletada na Avenida Júlio César.
Segundo informação de D. Anete, após conversas e visitas do então prefeito de Belém
Coutinho Jorge, sua esposa, a Primeira Dama do município, e Elcione Barbalho, Primeira
Dama Estadual, fora instalada uma rede provisória de distribuição de água, em uma proporção
de 01 torneira para cada 04 casas, assim como também foram implantados os pontos de
energia elétrica.
Imagem 18: Início do Processo de Urbanização da Área das Malvinas

(Governo de Jader Barbalho)

229
Entrevista realizada em Belém, mediante termo de livre consentimento esclarecido, em 10/04/2014.
290
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Fonte: Acervo pessoal de Jorge Bastos.

Nossa informante reafirmou que todas as conquistas para a área se deram de forma
coletiva, contando com o apoio de setores políticos, de membros do PT, do PMDB e da
Paróquia de São Sebastião. Sua casa uma espécie de base de apoio para essas lideranças
ligadas à Igreja, inclusive tendo ocorrido em sua casa à celebração da 1º missa proferida pelo
Padre João Antônio Beukeboom, conforme relato abaixo:

Lembro muito bem. Naquela época, eu vendia verduras. Havia ido cedo para a
Ceasa e, quando desci do ônibus na Júlio César, de lá já vi aquele alvoroço e aquele
vozeirão do Padre João, que nem precisava de microfone. Minhas filhas já tinham
organizado tudo e, quando cheguei ali na esquina, tinha tanta gente, tanta gente em
cimas das pontes... Dava gosto de ver! Foi um dia muito bonito.

A Igreja e seus membros da Pastoral da Juventude também entendiam aquele espaço


como uma estratégia de expansão política e religiosa. Percebemos isso ao descobrir que na
casa de D. Anete funcionava uma espécie de rádio comunitária, equipada com 04
autofalantes. Assim, aos domingos, pela manhã, a casa de D. Anete recebia 04 jovens da

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Igreja que, através do “boca de ferro”230, transmitiam informações de cunho pastorais e


sociais à comunidade. Com isso, percebemos que era comum, naquele momento histórico,
que muitas dessas lideranças e atores sociais fossem ligados organicamente ou somente
apoiassem o PT, participando de reuniões encontro e campanhas eleitorais, em diferentes
proporções.

Imagem 19: Panfletos Convocatórios para Assembleias Populares, ocorrer em 05 de julho de 1983.

Fonte: Acervo da FASE.

Com o decorrer do tempo, fora erguida em madeira a capela de Nossa Senhora de


Guadalupe, ligada à Paróquia de São Sebastião e que, durante toda a semana, realizava um
importante trabalho de conscientização social, além de atuar na alfabetização de crianças,
jovens e adultos da comunidade. Com a transferência da direção da Paróquia de São Sebastião
dos Padres Crúzios para os Padres Diocesanos, em 1998, sob a Coordenação do Padre
Napoleão Jubel, houve certo atrito, pois o novo pároco não aceitava a gestão autônoma da
capela e, tampouco, os frequentadores se identificavam com a nova forma de evangelizar
daquela Paróquia, gerando resistência ao Movimento Carismático, causando
descontentamento em ambos os lados. Hoje, a capela já é em alvenaria e continua seu trabalho

230
Nome popularmente dado ao autofalante, aparelho eletrônico muito utilizado para propagar sons com a
finalidade de abranger o maior de ouvintes. Neste caso, em especial, eram instalados e suportes de madeira
elevados, o que facilitava a comunicação daquela comunidade.
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social em parceria com as Pastorais da Criança e da Família, e reafirma sua identidade de


CEB, inclusive com características de autonomia coletiva e de liderança dos leigos, sofrendo,
ainda, no entanto, certa resistência por parte da atual direção da Paróquia de São Sebastião.
No dia das Mães de 2014, a capela de Nossa Senhora de Guadalupe recebeu a honrosa
visita do Arcebispo Metropolitano de Belém, D. Alberto Taveira, para uma celebração festiva.
Foi quando Taveira sagrou aquele espaço de oração não mais como capela, e sim como Igreja
de Guadalupe.
Dona Anete, com alegria de animadora pastoral, termina seu relato nos afirmando:
tudo valeu à pena, e se despede cantando a canção, “Momento Novo”, canto muito entoado
nas Comunidades Eclesiais de Base de todo País: “Deus chama a gente para um momento
novo/de caminhar junto com seu povo/é hora de transformar o que não dá mais/sozinho,
isolado, ninguém é capaz (...)”.

CONCLUSÃO
Concluímos, ao final dessa explanação, que mesmo enfrentando diversas dificuldades
advindas de vários organismos governamentais e não governamntais e até da mídia
conservadora, esse processo de mobilização e resistência popular mostrou o quanto a práxis
de uma organização religiosa como a ICAR pode exercer um papel fundamental na
construção da identidade, da dignidade e da resistência dos menos favorecidos.

Referências Bibliográficas

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BOFF, Waldemar. Morreste cedo. In: BOFF, Clodovis. Como trabalhar com excluídos.
Paulinas: Petrópolis, 1998.

CONFERÊNCIA DO EPISCOPADO LATINO - AMERICANO II. A evangelização no


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As Capelas da Freguesia de Irajá Entre os Séculos XVII e XVIII

Maria Celeste Ferreira231

Resumo: O presente trabalho procura reunir informações sobre a rede de capelas católicas,
ligadas à Igreja Nossa Senhora da Apresentação de Irajá, na atual Zona Norte da cidade do
Rio de Janeiro. Essa paróquia foi fundada em 1644, com licença real de 1647, consolidando-
se como igreja sede da administração secular e eclesiástica de uma grande região, ainda pouco
estudada. Utilizaremos algumas fontes básicas: O Santuário Mariano e as publicações de
Monsenhor Pizarro para mapear as capelas sob a jurisdição da matriz de Irajá nos séculos
XVII e XVIII. O objetivo é ampliar a reflexão sobre as construções históricas que envolvem a
religião Católica nos arredores da cidade colonial.
Palavras-chave: Rio de Janeiro- Freguesias coloniais - Capelas católicas

Abstract: The present work searchs to congregate information about the net of catholic
chapels, connected to the Nossa Senhora da Apresentação de Irajá church in the North zone
of Rio de Janeiro city. This parish was established in 1644, with real license of 1647,
consolidating this church as headquarters of the secular and ecclesiastical administration of a
great region, still little studied. We will use some basic sources: The Marian shrine and the
publications of Monsignor Pizarro to map the chapels under the jurisdiction of Irajá´s matrix
in the XVII and XVIII centuries. The objective is to extend the reflection on the historical
constructions that involve the catholic religion in the outskirts of the colonial city.
Rio de Janeiro - colonial parishes - catholic chapels

Introdução
A cidade do Rio de Janeiro, fruto da colonização do século XVII, possui
características singulares: Foi cidade colonial estratégica ao Império Luso, através da posição
geográfica privilegiada da Baía de Guanabara, com construções de fortalezas, portos fluviais e
marítimos, consolidando-se como cidade mercantil. A participação da Igreja foi fundamental
no contexto colonial, com destaque ao povoamento e administração do espaço religioso
representado na construção de capelas, igrejas e matrizes católicas.
O termo “Baixada de Irajá” é geográfico, retirado do Atlas Escolar da Cidade do Rio
de Janeiro de 2000, no qual, localiza-se essa região como de pouca altitude, delimitada ao sul
pela Serra da Misericórdia, ao norte pelos municípios de São João de Meriti e Duque de
Caxias (Baixada Fluminense), a leste pela Baía de Guanabara e a oeste pela Baixada de

231
Possui graduação em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Lato Sensu (UFF) em
História contemporânea e Especialização em História, Patrimônio e Cidades(UNICAM/IUPERJ). Atualmente
ligada ao Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a História da Igreja Católica – NEPHIC/UERJ. Contato:
celestehugferreira@gmail.com

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Bangu e Jacarepaguá. A esse conceito geográfico, soma-se sua importância histórica,


destacada pela presença da Igreja Nossa Senhora da Apresentação de Irajá, construída nessa
área anteriormente rural da cidade carioca, envolvida no processo da colonização portuguesa
desde a criação da cidade, em 1565, marcada posteriormente pela economia açucareira.
A capela inicial provavelmente foi fundada por volta de 1613, mas será feita “igreja”,
isto é paróquia, a partir de 30 de dezembro de 1644, como consta em documento do acervo
do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro232.
A freguesia de Irajá foi criada após as duas primeiras igrejas matrizes de freguesias,
ambas dentro do termo da cidade: a primeira igreja foi a de São Sebastião (1569), ao lado do
Colégio dos Jesuítas e a segunda igreja foi a de Nossa Senhora da Candelária (1634). Deste
modo, podemos nomear a igreja de Irajá como a primeira matriz de freguesia rural, dentro
dos limites que correspondem o município do Rio de Janeiro ou de terceira matriz de
freguesia da cidade carioca.
A igreja foi confirmada como matriz da freguesia de Irajá pelo alvará real em 1647,
no século XVII. Nesse mesmo ano, também foram confirmadas outras matrizes como
freguesias permanentes, mas todas localizadas além dos limites do que chamamos hoje de
município do Rio de Janeiro: a de Santo Antônio de Cacerebu (1624), São João de
Trairaponga (1645) e São Gonçalo de Amarante (1645). Veja que “as freguesias fluminenses
do Seiscentos tiveram inicialmente o estatuto de curatos, isto é, estiveram sediadas em
capelas curadas, de visitação; poucas foram aquelas que se transformaram em ‘freguesias
coladas’ com sede em igrejas matrizes, (...)” (ABREU, 2010, tomo.1, p.348).
Foi padre Gaspar da Costa, seu primeiro pároco, de 1644 até 1673, seus rendimentos
eram pagos pelo poder real: “Tem, vigário pago por El Rei, por serem dele os dízimos”.(Santa
Maria, 1723). Sua madrasta foi Isabel de Mariz, desde 1620, aparentada do Administrador da
Prelazia do Rio de Janeiro233, Antônio de Mariz Loureiro, o mesmo que assina em 1644 o
documento parao cargo de primeiro vigário de Irajá, reforçando seu poder neste cargo: “(...)

232
AGCRJ – Notação 45.2.4 – Data 1644/47 – Título :Criação da Freguesia do Irajá - Provisão do padre
Gaspar da Costa a vigário da igreja Nossa Senhora da “Presentação” no Distrito de Irajá.
233
“Fundada a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro no ano de 1565, seu território continuou sujeito à
jurisdição espiritual do Bispo da Bahia até(...) 19 de julho de 1575, foi criada a Prelazia.Desmembrada do
Bispado da Bahia, o território da nova Prelazia estendia-se desde a Capitania de Porto Seguro, até o Rio da Prata.
Administraram-na os seguintes Prelados (...) 5º) Pe. Doutor Antônio de Mariz Loureiro (1643-1657) por carta régia de
08 de outubro de 1643.”: http://arqrio.org/curia/anuario/historico_da_arquidioceseAcesso 2.02.2017.
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mandamos a todos os seus fregueses em geral e a cada um em particular sob pena de


excomunhão conheçam ao dito padre Gaspar da Costa por seu vigário e pároco (...)”(AGCRJ,
notação: 45.2.4)
Retiramos esse fragmento, do Santuário Mariano, destacando a opulência dos Campos
de Irajá: “O lugar, ou povoação de Irayá he muyto grande, e vivem nella muytos moradores
ricos (...)” (SANTA MARIA,1723, p.51) apenas para marcar a igreja Nossa Senhora da
Apresentação de Irajá como sede de sociabilidades, eclesiásticas e leigas, como sede de uma
matrizde freguesia rural que fazia parte de uma rede administrativa, política e econômica
ligada ao centro da cidade.Trilhamos a construção desse espaço, na fase colonial, através das
referências sobre as capelas da matriz Nossa Senhora da Apresentação de Irajá.
A igreja é um marco da história colonial da cidade, em especial sobre a formação dos
arredores rurais da cidade. Pouco estudada ainda, foi uma centralidade espacial de outrora e
está ligada a gênese dos inúmeros bairros234 e localidades que surgiram após um longo
processo de fracionamento desta primeira freguesia rural do Rio de Janeiro.

A Freguesia Nossa Senhora da Apresentação de Irajá


A posição estratégica da Baía de Guanabara para a “construção” da cidade do Rio de
Janeiro é reafirmada pela historiografia como lugar de grande interesse ao colonizador
europeu, por sua pequena embocadura capaz de assegurar boa vigilância, lugares de
atracação e navegação de cabotagem. Chegava-se de canoas ao fundo da baía, dando acesso a
um vasto território, formando um conjunto de possibilidades para a interiorização em busca
das riquezas da época. À ideia de “Cidade Flutuante”, acrescentou-se o peso histórico que
representa os portos marítimos e fluviais na constituição de um território específico chamado
de “hiterlândia carioca”:
“Antes mesmos do final do século XVI, parte da hiterlândia carioca, definida pelas
localidades às margens dos trinta e três rios que deságuam na Baía de Guanabara e
por aqueles pertencentes às demais zonas rurais, já se dedicava à produção
açucareira e a extração de madeira.”(FRIDMAN, 1999, p.87).

234
Da antiga Freguesia rural destacamos o espaço da baixada de Irajá, que contém os seguintes bairros
atualmente: Acari, Anchieta, Barros Filho, Bento Ribeiro, Brás de Pina, Campinho, Campos dos Afonsos,
Coelho Neto, Colégio, Cordovil, Costa Barros, Deodoro, Guadalupe, Honório Gurgel, Irajá, Jardim América,
Sulacap, Madureira, Marechal Hermes, Olaria, Oswaldo Cruz, Parada de Lucas, Parque Anchieta, Parque
Columbia, Pavuna, Penha, Penha circular, Ricardo de Albuquerque, Ramos, Rocha Miranda, Turiaçu, Vaz Lobo,
Vicente Carvalho, Vigário Geral, Vila da Penha, Vila Kosmos, Vila Valqueire e Vista Alegre.
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Foram muitas as mudanças administrativas que alteram as denominações e formações


espaciais. Irajá era essencialmente rural e fora da inicial “urbe”, isto é, do centro da cidade
colonial, mas esteve ligado ao centro como área rural e de abastecimento da cidade. Após o
Concílio de Trento, sob o regime do padroado, as matrizes de freguesia exerciam um duplo
papel: o eclesiástico e o de administrar as populações locais em nome do rei de Portugal.
Encontramos o significado de paróquia :

“A palavra paróquia vem do grego parochos (aquele que fornece as coisas


necessárias) ou paroikia (vizinhança; para, perto e oikos, casa). Trata-se de uma
circunscrição eclesial em que se divide a diocese, palavra igualmente de origem
grega e utilizada no império romano, que tem o sentido de governo.” (FRIDMAN,
2008, p.2-3).

Abreu (2010) acrescenta que não é apenas o número de almas para socorrer com os
sacramentos da fé católica que importa, mas também a “posição geográfica” da
paróquia.Não há datação precisa do primeiro núcleo colonial na Baixada de Irajá, a marcação
da data - 1613 - é visível no frontispício da igreja, construída de pedra e cal, que guarda essa
marca abaixo da janela do meio. É possível relacionar a igreja com as referências da
sesmaria inicial de Irajá, sendo possível a data de 1613, pelo processo de colonização e
povoamento da região, vale o registro:

“A Freguesia de Irajá, fora da área pertencente aos jesuítas, a qual terminava na


Tapera de Inhaúma, foi retalhada em diversas sesmarias dadas pelos primeiros
governadores do Rio de Janeiro. Já em 14 de julho de 1568, Salvador Correa de Sá
(o Velho) concedia a Antonio de França, além de terras no trasto da cidade 4.500
braças em Irajá.” (Fazenda, 1923, p. 530-531).

Maurício de Almeida Abreu indica-nos a necessidade de ampliar diversas frentes de


pesquisa sobre o papel da freguesia rural de Nossa Senhora de Irajá, pois em sua descrição
sobre o ambiente açucareiro, o autor depara-se com o entreposto colonial muito desenvolvido
no final do século XVII e início do XVIII, o que merece grande destaque em suas notas de
rodapé. Faz então uma pequena descrição detalhada, que envolve os anos de 1667, 1686, 1695
e 1711 a partir de quatro informações encontradas sobre o “Paço de Irajá”. São “recibos” do
Mosteiro de São Bento e documentos cartoriais de arrendamento e doações de herdeiros
dessa localidade. “(...) E por possuir um depósito imponente, com – altos e baixos e casa de
vivenda adjacente, então conhecido como Paço de Irajá.”(ABREU, 2010. Grifo meu).

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Sabemos então da existência desse espaço de grande importância para o estoque e embarque
das caixas de açúcar, no porto fluvial de Irajá, em direção ao porto da cidade pela Baia de
Guanabara:
(...) sabemos também que as caixas eram enviadas ao Paço tão logo ficavam prontas
para o transporte, o que indica que o movimento de carros de bois se deslocando na
estrada que demandava o porto era contínuo ao tempo da safra a safra. (...) Sabe-se
assim que em 1686, Manuel arrendou‘o paço de receber açúcar de Irajá’ por três
anos a Domingos Duarte de Carvalho, ‘desde a casa de vivenda de sobrado até o
mar e os baixos da dita casa’ pelo valor de 80$000 anuais. (...)”(ABREU, 2010,
tomo 2,p.135. Grifo meu).

Podemos deduzir que a fundação ou escolha sobre o papel da matriz de Irajá, como
sede da freguesia rural de Nossa Senhora da Apresentação de Irajá, era também fruto do
desenvolvimento econômico de uma região, servida de porto fluvial, com fluxos comerciais
de grande expressão.
A Freguesia de Irajá, sofreu várias divisões, entre elas as duas primeiras em 1661 e
1673 no contexto do século XVII. Entre 1644 e 1661, aproximadamente todas as extensões
marcadas pertenciam à administração da matriz de Irajá, então sede da freguesia.

Foto 1 -Divisões da freguesia de Irajá:


1ª Criação da Freguesia de Jacarepaguá (N.S. Loreto – 1661)
2ª Criação da Freguesia de Campo Grande ( Nª. Sª do Desterro- 1673)
3ª Criação da Freguesia de Inhaúma ( São Thiago – 1743)
4ª Criação da Freguesia de Guaratiba( 1775)
Mapa: Cedido por Ronaldo Luiz-Martins.

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As Fontes Eclesiásticas Como Registros Espaciais: Rede de Capelas e Oratórios


As capelas eram templos católicos, capacitados para rezar missas, com o
consentimento das autoridades eclesiásticas, ligadas diretamente a jurisdição da matriz.
Chaon(2008) mostra o desenvolvimento da fé Católica ligada aos espaços de usos privados,
mas com função de convívio coletivo, mesmo que reduzido aos frequentadores de um
determinado engenho ou fazenda. O mesmo ocorria com os oratórios ainda menores, mas que
também promovia a disciplina e a fé Católica no espaço da colônia. Marcílio (2004) enfatiza
a importância dos “Registros Paroquiais”, como fonte primária da demografia e da história
social. Aqui usaremos, apenas publicações de membros do clero.
O Santuário Mariano de 1723: Consultando o acervo do Santuário Mariano, no
Instituto Histórico e Geográfico do Brasil, de autoria de Agostinho de Santa Maria, sobre as
diferentes invocações da Virgem Maria, aponta indicações espaciais das devoções, já
consolidadas na província do Rio de Janeiro no século XVIII. Importante lembrar que em
vários títulos das devoções, encontra-se a observação do próprio autor de que “ (...)fez meção
o padre Mestre Frey Miguel de S. Francisco, na sua relação.”( SANTA MARIA ,1942,p.51) o
que corrobora para notas de rodapé, do livro “Círculo de Fogo”, de Alberto Dines,
esclarecendo que o livro é de 1713 e o Frei Agostinho de Santa Maria não veio ao Rio de
Janeiro, ele era natural da Espanha, o que poderia explicar a forma de escrever "Irayá" , além
de nova informação sobre tê-lo escrito através de relatos de outros: “ Jamais esteve no Brasil,
seu informante foi frei Miguel de São Francisco”(DINES, 1992, p.240).
São muitos os títulos de referência a Nossa Senhora; destaca-se, em especial, as
algumas devoções ligadas aos bairros da Baixada de Irajá. Ressaltamos as capelas ou
oratórios com devoções marianas, localizadas pelo uso da palavra “Irayá”:
1-Nossa Senhora da Conceição de Irayá. Fundador Ignácio Rangel Cardoso, ecuidada por
Joseph Pacheco, com festa em oito de dezembro.

2-Nossa Senhora do Rosário do Caminho de Irayá. Situada no Engenho de Antônio Machado.

3- A matriz da freguesia , aparece sem a letra “A”: “Nossa Senhora da Presentação do Bayrro
de Irayá”.

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Na descrição da Fé Mariana, em 1723, o autor limita-se as localizações do lugar onde


está cada templo, quais são seus fundadores, doações, festas e às vezes como surgiu a
devoção. Encontramos, especificado para a matriz de Irajá a frase, que confirma sua
importância: “Tem, vigário pago por El Rei, por serem dele os dízimos(...)”.(SANTA
MARIA,1723, p.51). Sabemos ser a mesma Igreja de Irajá pelas relações que estão explícitas
no livro mariano, que usa também a mesma Igreja – do “Bayrro de Irayá” para localizar
outras, com nomes conhecidos de lugares e oragos confirmados também na leitura de
Monsenhor Pizarro. Chama atenção a ênfase dada a riqueza do lugar, reinterada na descrição
das irmandades na primeira metade do século XVIII :
“Há nesta Igreja muitas Irmandades, e entre elas duas do Rosário, uma dos brancos
outra dos pretos, e cada uma destas Irmandades faz sua festa particular com muita grandeza
e fervorosa devoção” (SANTA MARIA, 1723, volume 10, p.51). As capelas e oratórios
podem ser comparados com a descrição das devoções marianas, abrindo caminho para
novas reflexões.
Os Registros de Monsenhor Pizarro: Segundo Gualdames (2007), Pizarro possuia
postura regalista, e viveu o seu tempo “entre a cruz e a coroa”, isto é, pertencia a Igreja, mas
servia com lealdade ao governador de Portugal. José de Souza Azevedo Pizarro e Araújo,
nasceu na cidade do Rio de Janeiro em 12 de outubro de 1753, não sendo nobre, mas filho de
família tradicional da cidade. O pai era coronel e a mãe natural da Vila de Santos, tornando-se
moradora da cidade carioca. Formou-se em Cânones pela Universidade de Coimbra, após o
falecimento dos pais dedicou-se a vida religiosa. Ocupou a 6ª cadeira do Cabido do Rio de
Janeiro em 1780. Representou o Bispo em 1794, nas visitas pastorais, para inventariar o
patrimônio da Igreja em cada paróquia, relatar as posturas do clero, mapear as freguesias.
Entre outros deveres sob as ordens da Igreja e da Coroa portuguesa, estava o de registrar o
número de “almas”a serem assistidas pelos religiosos.
Neste trabalho usaremos duas fontes de autoria de Monsenhor Pizarro - As Visitas
Pastorais de 1794 à 1795 - a qual uso de edição do INEPAC/2008; e As Memórias Históricas
do Rio de Janeiro – Tomo III, da Imprensa Régia de 1820, com consulta na Biblioteca
Nacional.
Observamos, que em ambas as fontes descrevem as capelas ligadas à Igreja Matriz
de Nossa Senhora da Apresentação de Irajá, que são em número de oito. Cita também 14

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oratórios existentes sob a jurisdição eclesial dessa matriz de freguesia. Antes de listar as
capelas e oratórios, é importante destacar o trabalho de Chaon (2008) sobre os altares, as
missas e as vivências leigas da fé católica no Recôncavo da Guanabara por volta de 1750-
1820. Sobre as intensas experiências vividas pelos fiéis católicos, conclui a existência de
redes de sociabilidade religiosa, seja nas práticas públicas (eclesial) ou privadas(de ação direta
dos leigos), sem que uma categoria exclua a outra. Atesta que ,nos locais onde os católicos se
encontravam, havia a produção de fortes espaços de convívios em um mundo traçado pela
hierarquia patriarcal e as regras sociais ainda pautadas no Antigo Regime. Pesquisa os altares
e os seus usos, atento aos diferentes agentes religiosos. Foca a vivência leiga, não a vida
eclesiástica. Avalia de grande a importância das matrizes de freguesia(altares públicos) como
centro da vida social. Realça também as capelas privadas, localizadas nos engenho, mas não
exclusivo à família do senhor, visto que, parentes, visitas e alguns escravos podiam assistir as
celebrações. Capelas privadas e os oratórios (“altares domésticos”), só estavam ao alcance de
uma pequena parte da população branca e bem nascida. Recursos materiais necessários,
tramites burocráticos e licenças das autoridades da igreja, faziam desta “elite” poderosos
agentes leigos da fé católica. De acordo com o exposto pelo autor, concluímos que a matriz
de Irajá ganha importância, sendo necessário traçar o histórico de suas capelas privadas e
altares domésticos (os oratórios). Consta nas duas fontes de Pizarro oito Capelas:
1-Nossa Senhora da Apresentação. Com a mesma devoção da igreja matriz.
Localização: Meia légua à ESE (lés-sudeste). Ficava em terras da fazenda do
Fructuoso Pereira, hoje ficaria entre os bairros de Vila Kosmos e Vila da Penha.( Pizarro
comenta que a situação desta capela está reduzida a oratório)
2- Capela de Nossa Senhora da Conceição.
Localização|: meia légua ao Leste, para Bráz de Pina. Ficava em terras da fazenda do
Braz de Pina (senhor de engenho ligado a exploração e caça das baleias) no bairro do
mesmo nome.
3- Capela de Nossa Senhora da Penha.
Localização: uma légua e meia para o mesmo rumo (Leste). “(...) distante duas léguas,
em que Baltasar de Abreu Cardoso edificou no cume de um rochedo altíssimo e só acessível
por um lado” (Pizarro, 1820). Irajá foi responsável pela criação da mais famosa capela no Rio

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de Janeiro. Hoje elevada ao justo status de Santuário Mariano, a igreja da Penha, compartilha
sua história com a freguesia de Irajá.

Foto 2-A bandeira da igreja da Penha/RJ

Acervo de Ronaldo Luiz-Martins, em visita à sacristia da igreja da Penha, em 2015

4ª- Capela de Nossa Senhora da Ajuda.


Localização: uma légua e meia para o Leste. Ficava em terras da fazenda Grande da
Penha, a capela provavelmente ficava entre os bairros da Penha e Olaria.
5ª-Capela no chamado Engenho Novo.
Localização:A mais de 2 léguas a Oeste. Pertencia à fazenda do Engenho Novo da
Piedade.
6- Capela de São João Batista de Sacupema.
Localização: Distância de uma légua e meia para o SSW (SSO, Su - Sudoeste). Em
terras da fazenda de Sapopemba (possível sede em Deodoro).
7-Capela da Fazenda “Dos Afonsos”.
Localização: distante duas léguas, pouco mais ou menos para SSW (SSO, Su -
Sudoeste). Proximidade coma base aérea do Campo dosAfonsos.
8- Capela da Capela de N. Sª. da Conceição - a que existe no lugar chamado de Inhomocú .
Localização: distante mais de duas léguas para Oeste. Hoje, possivelmente,ficaria nas
proximidades do Complexo Olímpico de Deodoro, no bairro da Vila Militar.
As oito capelas são citadas pelo Monsenhor em ordens diferentes, mas são as
mesmas com diferenças na redação. Como exemplo da diferença entre as duas fontes,
podemos usar a descrição da primeira capela citada. A capela com o mesmo nome da matriz –
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Capela de Nossa Senhora da Apresentação, distante meia légua - na segunda fonte Pizarro
omite parte do que está na primeira fonte, vejamos respectivamente:

“1ª -de Nª. Sª d’Apresentação, na dist.a de ½ leg. P.ª ESE. dê que He admin.oro
Cap. Francisco Soares de Melo .Foi reedificada pelo seo antecessor o Cap. Mor.
Frutuoso Pereira, e está reduzida a Oratório, com faculdade de V. Ex.a, por naõ se
lhes terem feito Patrimônio. Não pude saber em qa tempo foi ereta , e p.r. quem. Está
em termos asseada.”( ARAÚJO, 2008, p.62).

Na segunda fonte das Memórias Históricas do Rio de Janeiro podemos comparar a narrativa
mais curta e misteriosa:

“Em seu território subsistem as Capellas filiaes seguintes. 1ªde N. senhora da


Apresentação , distante ½ legoa da Matriz, de cuja antiguidade, nem a quem deveu
a sua fundação, não consta, por lhe faltarem, os títulos , que desapareceram com a
mudança dos proprietários da Fazenda, onde se erigiu.” ( ARAÚJO, 1820, p.11)

Neste trabalho comparativo, notamos que sempre há uma capela ou outra com
omissões de alguns dados. A dificuldade de memória e arquivo são pertinentes, mas é
preciso sempre desconfiar e questionar a complexa falta de documentos reinterada por
Monsenhor Pizarro, pois sua postura não é neutra em seu próprio tempo.
As fontes autorais de Pizarro, entre outras, precisam ser entrelaçadas com o contexto político,
social, religioso e as espacialidades de várias épocas. A escolha de uma construção religiosa
na época colonial não era fruto do acaso, nem hoje seria, porém na historiografia, esse templo
atual nem sempre é observado como documento histórico. A impossibilidade de datação
dessa primeira igreja com a mesma invocação de Nossa Senhora da Apresentação nos
interessa, por saber a existência de fissuras políticas ou econômicas que ocorreram na virada
dos séculos XVII para o XVIII. Haveria relação com a ação do Santo Ofício? Seu poder
esteve presente nesta região, além de mudanças severas na economia com a descoberta do
ouro nas Minas Gerais.
Apesar do mistério da datação da origem da capela, importa apenas relacionar capela
e matriz do mesmo orago ainda sem uma história das duas construções. Intrigante é a
referência de 1613, em pedra, presente até a atualidade da igreja, mas nunca é relacionada na
história “oficial” da edificação da mesma matriz.
A data de 1613 está localizada no travessão em pedra que arremata a janela do meio.
Foi observado também que a cor e tipo de granito onde está a data 1613 são muito similares

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às molduras em pedra da porta principal de entrada da igreja. Com cuidado , nota-se que a
porta de entrada foi aumentada e completada com outro tipo de pedra.

Foto 3-Igreja Nossa Senhora da Apresentação de Irajá.


(foto cedida por Fernanda Costa)

Foto 4-Detalhes da janela frontalna igreja Nossa Senhora da Apresentação de Irajá.


(foto cedida por Fernanda Costa)
Mesmo sendo uma matriz de freguesia documentada, mesmo com data de referência
no frontispício daigreja das primeiras décadas do século XVII, a igreja foi diminuída em um
século, por falta de uma historiografia consolidada.
Coleção Subúrbio Carioca: “Olhos para ver”, editada pela prefeitura do Rio de Janeiro, com
foto da antiga matriz de freguesia, sem referência alguma a sua antiguidade posta no verso do
cartão postal:

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“Matriz de Nossa Senhora da Apresentação


Praça Nossa Senhora da Apresentação, 272, Irajá.
BTM – Decreto 12.654/94
Construída em pedra e cal a Igreja data das primeiras décadas do
século XVIII. De concepção arquitetônica singela, apresenta nave
única separada da capela-mor pelo arco-cruzeiro” (PREFEITURA,
2012. Grifo meu)

A formação da sociedade colonial na América Lusa tem especificidades que devem ser
levadas em conta, devido à complexidade entre as comunidades locais que desenvolveram a
“hierarquia social costumeira”, isto é, práticas sociais e econômicas valorativas que definem o
lugar social de grupos de indivíduos. Os religiosos, os conquistadores, funcionários reais,
sesmeiros, mercadores e senhores de engenho formariam a “nobreza da terra”, muitos com
linhagem cristã-nova.
Segundo Fragoso (2013), essa “nobreza” dos colonos é diferenciada da “nobreza
solar” do Reino, ambas possuem “status” na sociedade da colônia. Os “fidalgos” na colônia
recebiam gratidão régia, mercês e além disso a oportunidade de formarem “casas” – grupos
familiares extensos com possibilidade de ascensão política e econômica. Esses grupos
familiares desenvolveram ações próprias (autogoverno), mesmo dentro da “disciplina”
católica, ocupando setores-chave da sociedade, como as câmaras, postos militares, cargos do
clero, administração de engenhos e escravos. E “além do ambiente da parentela, havia
irmandades responsáveis por hospitais , cemitérios, o cuidado com viúvas e órfãos
desamparados”(FRAGOSO, 2014, p.58). Tais cuidados estão imbricados com a fé católica e o
funcionamento da sociedade do Antigo Regime. A possibilidade de uma “poupança social” e
do “crédito” era alimentada através das doaçõespara o além túmulo. A produção das riquezas,
nesta sociedade,perpassava os caminhos da fé e suas práticas.
Entre os 14 Oratórios sob a responsabilidade da freguesia Nossa Senhora da
Apresentação do Irajá, no século XVIII, estavam:
1-De R. Inácio Correa e Dona Joana de Sá Rangel (mãe ), dista menos de um quarto de légua
para oeste.
2-Do R. Vicente da Rosa de Oliveira - um quarto de légua para oés-sudoeste.
3-Do R. Francisco Pereira Xavier - em igual distância para sul.
4-Do R. Francisco Barnabé - uma légua e meia para sudoeste.

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5-Da viúvade Antonio de Menezes, no engenho chamado do Portella- uma légua para o
sudoeste.
6-De João Ferreira Coito, no Campinho - distante uma légua para o sudoeste.
7-O oratório de Antonio de Soiza de Araújo no Macaco – distante uma légua para os mesmos
rumos , nos mesmos termos.
8-Do Cap. Bento Luiz de Oliveira Braga, em Nazareth -distante duas léguas para o rumo do
oeste.
9-Do licenciado, cirurgião Modesto Rangel da Silva -distante uma légua e meia. Sem
descrição precisa nas fontes.
10-De Luiz Manoel de Oliveira, no Porto de Meriti, distante uma légua, com pouca diferença
para oeste.
11-Dos herdeiros do ReverendoJoão de Araújo Macedo, no porto de Irajá - de uma légua para
norte ou nor-noroeste.
12-Do Cap. José de. Frias -no engenho que foi de Antônio Martins Brito - e meia légua para
o mesmo rumo acima.
13-De BartolomeuCordovil de Siqueira – uma légua , com pouca diferença para o mesmo
rumo .
14-De Inacia Maria , na Ilha chamada de Saravatá , vizinha ao Porto Velho – uma légua e
meia , para o mesmo rumo.
É preciso expandir as pesquisas sobre estes agentes sociais, mapeá-los,para dar vida as
suas ações e práticas no cotidiano colonial, desta freguesia rural.
Vejamos que permissão para desfrutar de um oratório era para poucos, demandava
riqueza, conhecimentos e poder aquisitivo para agilizar os tramites religiosos e burocráticos.
Um “Breve Papal” era caro, uma licença para poder ter um altar doméstico tinha validade, que
poderia variar de meses ou anos, mas em todos os casos asseguravam inclusão e um alto
status social.

O Tombamento Municipal da Antiga Matriz


Durante a gestão de Cesar Maia na prefeitura da cidade do Rio de Janeiro , é decretado
o tombamento na esfera municipal, da antiga matriz e atual igreja de Irajá: Decreto nº
12654 de 28 de janeiro de 1994, considera em primeiro lugar o valor cultural da igreja de

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Nossa Senhora da Apresentação de Irajá, por ser uma de devoção, das mais antigas da cidade;
além de valores de algumas imagens e evidências de diferentes épocas.Após estudos técnicos
do patrimônio municipal feitos por Hélio Viana, funcionário da Departamento Geral de
Patrimônio Cultural, doravante DGPC, que relata suas observações sobre a Igreja em 1991.
A cópia incompleta desde parecer está no Instituto Rio Patrimônio da Humanidade (IRPH).
O que reforça a questão do “bem imaterial” – devoção a determinada Santa. Essa
ampliação no entendimento sobre o tombamento da igreja de Irajáé muito favorável, pois abre
uma nova concepção sobre esse patrimônio, valorizando a representação da Fé mariana e
“o devoto”, visto que, sem eles, não há o ritual - a devoção. Valoriza também o lugar onde se
dá as práticas religiosas. É relevante observar esse aspecto “ imaterial”, em um parecer de
um bem móvel tão tradicional – templo católico colonial.
Essa ampliação de compreensão do objeto tombado está realçada no texto pela
inscrição em pedra da data de – 1613 – que concebe o “povoamento”, mesmo que esparso,
reafirma a representatividade longeva e a especificidade dessa invocação de Santa Maria:
“(...) De todo modo, mesmo que o templo original fosse outro prédio, a presença de
uma construção de finalidade religiosa dotada de portais de granito já nas
primeiras décadas do seiscentismo pode ser considerada como um indicador seguro
de que a localidade teria reunido um considerável número de fiéis talvez desde
fins de 1500, ainda que dispersos na região então denominada Campos de Irajá.(...)
(Viana,1991,p.1)

No Brasil, outras igrejasreceberam o nome dessa santa como padroeira, em Natal


(Rio Grande do Norte) foi tombada ao nível estadual , e em especial na cidade de Porto
Calvo no Estado de Alagoas, é datada de 1610. Nossa Senhora da Apresentação, em Porto
Calvo, é tombada pelo IPHAN, foi submetida a um trabalho técnico que visava: Escavações
arqueológicas, educação patrimonial, recomendação e propostas de preservação, além de
acomodação dos artefatos recolhidos. O interessante é mostrar que esses tipos de bem
cultural, igrejas de construções luso-brasileiras, guardam possibilidades de estudos em
diversas áreas, e tentam responder os anseios de suas sociedades.
Etapas construtivas suas alterações da igreja Nossa Senhora da Apresentação de
Irajá,localizadas por referências:
1613 – Data grafada na pedra no travessão da janela central.
1644 – Paróquia e sede da 1º Freguesia rural com confirmação do Padre Gaspar da costa
como primeiro pároco.
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1647 – Alvará real para confirmação da igreja como sede da freguesia.


1743 - “Pelos anos de 1743 á 47 se reformou o retábulo, e o arco da Capela Mór, fez-se a
torre e o frontispício, reformou-se todo o corpo da Igreja, e puseram os novos
Sinos”(ARAÚJO, 2008, p.69). Observa-se que o sentido de “fez-se” está entre os verbos
“reformar” que poderia indicar o mesmo sentido para“fazer” como sinônimo de ”reformar”.
Apenas como hipótese: se colocaram novos sinos, já existiam os velhos.
1794/95 Pizarro relata reformas e construções feitas com o “desvelo e católico zelo” do
Capitão João Pereira de Lemos, Cap. Bento Luiz de Oliveira Braga, Cap. Francisco Soares de
Melo e ao falecido Eugenio de Paiva Ferreira :
“e cada um destes e seus lavradores, que contribuiram com as suas esmolas
avultadas, foi esta Igreja renovada em todo o seu material , principalmente no seu
madeiramento por todo o corpo, e Capela Mór, fazendo-se-lhe também boa
Sacristia, Consistório e Tribunas, que não tinham antes; e nesta obre se gastaram
mais de quatro mil cruzados.”(Araújo, 2008, p.60).

Apontamosa existência desses agentes sociais na promoção da igreja e da manutenção


da importância social em prover o seu estudo com o material necessário.
1902 -a igreja perde a administração do maior cemitério ligado a sua própria história. O
Cemitério de Irajá ficou conhecido com este nome, de administração municipal, a partir de
1902, porém teve início de suas atividades no século XIX. Seriam dois cemitérios, este maior
ao fundo da Igreja e outro bem pequeno ao lado, ambos foram ligados as Irmandades locais.
1926 -“(...)em 1926 a matriz foi pintada e reformada , a custas de esmolas e donativos
angariados pelo padre Januário Tomei, então vigário,”(MAURÍCIO, 1947, p.39)
1946- A reforma interna que descaracterizou a Igreja,quando foi substituído as madeiras de
lei do teto, por um “plafond” de concreto, além de abrir janelas laterais e retirada do piso com
compridas e largas pranchas de madeira. Verificou-se , durante a reforma que “(...)tanto a
capela-mor como o coro foram construídos muitos anos após ter sido levantado a nave. Na
viga, por exemplo, traz aberta a canivete, em algarismos que autenticam a sua antiguidade
a data de1695(...)” (MAURICIO, 1947, p.39 e 40, grifo meu). Observamos, pelo
cruzamento de informações de vários tipos, que remetem para a existência desse templo antes
da nomeação de matriz de freguesia.
1994 – Infelizmente, o tombamento municipal da Igreja de Nossa Senhora da Apresentação
de Irajá foi posterior. Não evitou o desmonte do pequeno e lateral Cemitério da

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Irmandade Nossa Senhora da Apresentação na década de 80 do século XX, em cujo cemitério


estava enterrado Honório Gurgel, também nome de bairro da região.
Lamentavelmente, o tombamento de 1994 não garantiu a preservação do cruzeiro,
outrora na frente da matriz, que ficava na lateral da igreja de Irajá. Reconhecida como “Cruz
das Almas”,pois sofreu na atualidade um processo de degradação.

Foto de acervo pessoal. Ano 2015.


O antigo cruzeiro quebrado – perdas do patrimônio religioso e histórico.

Conclusão
Observamos que a igreja Nossa Senhora da Apresentação de Irajá representou
espacialmente uma centralidade importante, desde os primórdios da construção da cidade do
Rio de Janeiro. A igreja de Irajá, através da sua história como sede da primeira freguesia rural
da Capitania Real do Rio de Janeiro, estava ligada ao desenvolvimento da economia
açucareira e com as divisões político-administrativas da cidade. A intensa relação entre Igreja
e a Coroa portuguesa também é verificada na criação da freguesia de Irajá. As redes de
capelas e oratórios da matriz da freguesia nos indica a importância e a complexidade da vida
sob os costumes do Antigo Regime nos arredores da cidade.
A listagem das capelas e oratórios, retiradas especialmente das duas fontes
produzidas por monsenhor Pizarro, foi necessária para materializar o espaço da Baixada de
Irajá ,através das vivências religiosas e apontar a importância desse templo colonial em Irajá.
Interessante pensar que a igreja da Penha, hoje elevada a Santuário Mariano, no século XXI,
outrora era submetida à jurisdição da igreja Nossa Senhora da Apresentação de Irajá, como
capela. Certamente, chama à atenção a quantidade de capelas privadas nos engenhos da
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época colonial e dos oratórios, despontando para a necessidade de ampliação da história dos
agentes leigos da fé católica. As matrizes, capelas e oratórios fazem parte da história da
Igreja Católica, nos primórdios de suas paróquias e freguesias do Rio de Janeiro colonial.
Formavam uma rede de centros de convivência da fé e dos costumes vigentes, ligados a
centralidade da antiga matriz de Irajá.

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Imagens da religião e a proposta moral secular: apontamentos acerca da prática


discursiva do “neo-ateísmo”
Maria Helena Azevedo Ferreira235
Resumo: Esta comunicação tem objetivo compreender como as imagens da religião foram
assimiladas pelo grupo que posteriormente foi chamado “neo-ateísta”. Para tal, além da
apresentação dos autores que compõe este movimento, nos focaremos em analisar como a
religião, de uma forma geral, foi atrelada a diversos momentos de terrorismo e violência.
Intentamos compreender, portanto, como estas imagens contribuíram para a prática discursiva
de Sam Harris, Daniel Dennett, Christopher Hitchens e Richard Dawkins se desdobram a
partir destas e produzem uma proposta moral desvinculada da religião. Percebendo a
importância do “lugar social” no qual estes autores estão inseridos, tomamos enquanto aporte
metodológico as considerações de Michel de Certeau (1982), bem como as colocações de
Michel Foucault (2008). A partir disso, pensando nestes personagens enquanto “homens
modernos”, nos embasaremos na proposta teórica de Bruno Latour (2012) e o conceito de
ação deste, denominado “antifetichismo”.
Palavras-chave: neo-ateísmo, religião, século XXI

Introdução

Nos dias atuais podemos ver que somadas as páginas do Facebook de alguns
intelectuais percussores deste ateísmo contam com mais de dois milhões de curtidas, sendo
que em sua maioria são correspondentes à página Richard Dawkins Foundation for Reason
and Science236. Ou até mesmo páginas alternativas na mesma rede, que debatem sobre
ateísmo de forma explícita.
Basta uma simples pesquisa no Youtube utilizando a palavra-chave “Richard
Dawkins” para percebermos uma grande quantidade de vídeos disponíveis no Youtube com
até aproximadamente oito milhões de acessos237. Em sua maioria se referem temáticas
envolvendo o posicionamento do cientista com relação à religião, destacando sua participação
em palestras, entrevistas, mesas redondas e até mesmo em vídeos mais descontraídos238, que
também atraem a atenção do público.

235
É membro do Laboratório de Estudos em Religiões e Religiosidades (LERR), mestranda pelo Programa de
Pós-Graduação em História pela Universidade Estadual de Maringá e bolsista pela Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de nível Superior (CAPES). Tem sua pesquisa orientada pela Profª Drª Vanda
Fortuna Serafim.
236
https://richarddawkins.net/ Acesso em: 26/09/16
237
Em uma busca realizada no Youtube, até onde chegou ao nosso conhecimento, podemos perceber que o vídeo
mais visto envolvendo o nome de Dawkins nesta plataforma é um intitulado “Bill O’ Reilly scared by Richard
Dawkins”, postado há quase nove anos atrás pelo canal “ComedyJesus”. Acesso em: 15/08/2016
238
Em um destes vídeos Dawkins lê mensagens que recebe dos leitores que criticam duramente seu ateísmo, o
vídeo intitulado “Love letters to Richard Dawkins” tem claramente o teor cômico. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=gW7607YiBso Acesso em: 15/08/2015
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Amarnath Amarasingam (2010) aponta que tal “neo-ateísmo” tem como uma de suas
características principais o proselitismo, ou seja, preza pela divulgação massiva de seus ideais.
Amarasingam (2010), entende que este tipo de proselitismo ateu é característico do
movimento:
Os neo-ateus tem um interesse própria em grupos e campanhas publicitárias. Eles
tem até mesmo um feriado próprio (Dia Internacional da Blasfêmia). Não é exagero
descrever o movimento popularizado por Richard Dawkins, Daniel Dennett, Sam
Harris e Christopher Hitchens como uma nova e particularmente zelosa forma de
fundamentalismo – e fundamentalista ateu239. (AMARASINGAM, 2010, p. 1)

O autor categoriza Dawkins, Dennett, Harris e Hitchens enquanto principais nomes


deste ateísmo insurgente no século XXI. Da mesma forma, Richard Cimino e Christopher
Smith (2011) destacam que Harris, com The end of faith de 2004, Dennett com Quebrando o
encanto (2006); Dawkins com Deus, um delírio (2006) e Hitchens com a obra Deus não é
grande (2007), formariam uma espécie de “cânone” do ateísmo contemporâneo. (CIMINO;
SMITH, 2011)
Cimino e Smith (2011) destacam que a articulação midiática, por meio revistas,
websites, blogs, fóruns online em torno destes autores; tiveram maior destaque após a
publicação da obra de Richard Dawkins. Neste sentido, Cimino e Smith (2011) apontam que
as ideias destes intelectuais começaram a ser discutidas em conjunto, o que de certo modo fez
com estes fossem entendidos enquanto proponentes de um “novo ateísmo”.

Moralidade, religião e o novo ateísmo


Claramente, os autores neo-ateístas dão uma grande importância aos eventos do 11 de
setembro, considerando-o como manifestação marcante do malefício da religião. Se apenas
olharmos para o conteúdo dos livros, é possível perceber que a narrativa ganha certo espaço,
de uma forma ou outra no discurso destes. A percepção de que a religião seria a principal
causadora de episódios de violência de grandes proporções é consenso entre os autores.
Ademais, notamos que os anos que se seguem pós 11 de setembro também são
marcados por medos, desconfianças e percepções. Poucas semanas após os atentados, a mídia
estadunidense e mundial discutia largamente sobre terrorismo, quando as primeiras notícias

239
The new atheists have their own special interest groups and ad campaigns. They even have own holiday
(Internacional Blasphemy Day). It is no exaggeration to describes the movement popularized by the likes of
Richard Dawkins, Daniel Dennett, Sam Harris, and Christopher Hitchens as a new and particularly zealous
formo of fundamentalism – and atheist fundamentalism. (AMARASINGAM, 2010, p. 1)
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sobre os supostos ataques terroristas, desta vez por meio de armas químicas como o antraz.
(DOUGALL; HAYWARD; et al, 2005)
A divulgação de que cartas, contento o elemento químico nocivo à saúde humana,
foram enviadas à mídia e a setores do governo, causou um discussão considerável sobre o
bioterrorismo. Além disso, pesquisadores como Angela Liegey Dougall et all (2005), apontam
que a crescente exposição destas pautas na mídia contribuíram por aumentar o nível de aflição
e prejuízo psicológico nos indivíduos entrevistados.
Na pesquisa os autores citados acima, perguntavam aos entrevistados como eles
tiveram conhecimento sobre o antraz e seus perigos. A maioria relatou que somente após o
episódio envolvendo as cartas é que tiveram conhecimento sobre a substância, principalmente
por intermédio da cobertura midiática, assistindo, lendo ou ouvindo comentários sobre o
acontecido.
É apontado que mesmo as pessoas que não tiveram contato direto com os ataques
terroristas ou que não conheciam ninguém relacionado, sofreram episódios de aflição e
pensamentos intrusivos. Em um contexto pós atentados, onde imagens de pessoas caindo ou
pulando das torres gêmeas, os prédios em chamas, se mostraram um forte componente para
que indivíduos, mesmo com um histórico de disfunções psicológicas, fossem sujeitos a
traumas e um sentimento de vulnerabilidade. (DOUGALL; HAYWARD; et al, 2005)
As ações consideradas terroristas não são novidades no território estadunidense. Em
1998 o então presidente Bill Clinton estabelece um maior rigor nas forças de segurança
nacional a fim de conter o terrorismo, já naquele período a preocupação era que os terroristas
estivem em posse de armas de destruição em massa, gases letais ou mesmos vírus de
computador. Algo parecido, no entanto com menores dimensões, aconteceu no World Trade
Center em 1993, quando um carro-bomba foi detonado aos pés dos edifícios. (CARTER et al;
1998)
Neste período, os atos terroristas tinham duas classificações: o terrorismo doméstico
diz respeito as atitudes terroristas de cidadãos estadunidenses, que não possuem ligações com
forças estrangeiras. Enquanto o terrorismo internacional, se refere a indivíduos de origem
estrangeira, capazes de perturbar a segurança nacional. Em geral em 1999 o terrorismo era
definido como:
[...] O uso ilegal da força e violência contra pessoas ou propriedades para intimidar
ou coagir um governo, a população civil, ou qualquer outro segmento, na
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prossecução de objetivos políticos ou sociais.240 (28 C.F.R. Section 0.85 apud


FEDERAL BUREAU OF INVESTIGATION, 1999)

Após o 11 de setembro, ainda que a definição de terrorismo não sofra mudanças,


podemos observar que as medidas de precaução e divulgação de denúncias são colocadas em
maior evidência:
As iniciativas do FBI contra o terrorismo desde os ataques de 11/09 tem se
focalizado na prevenção de futuros ataques através de um conjunto eficiente, de
análise, e disseminação de informação, o facilitação apropriada de compartilhamento
de relatos terroristas no estado federal, e parceiros locais; e no avanço da aplicação
da inteligência e lei com parceiros em todo o globo241. 242

No relatório oficial do FBI constam uma série de atentados considerados terroristas do


ano de 2002 até 2005, considerando tanto terrorismo doméstico quanto o internacional. Para
nosso propósitos listaremos apenas alguns daqueles com motivação religiosa243:

• Em Julho de 2002 um homem chamado Hesham Mohamed Ali efetuou


disparos à esmo com arma de fogo no Aeroporto Internacional de Los Angeles.
De acordo com o FBI, investigações posteriores indicaram que o indivíduo
tinha motivações religiosas.
• Em agosto de 2002, Robert Goldstein foi flagrado portando explosivos e armas
de fogo, segundo o FBI sua intenção era atacar o Centro Islâmico do Condado
de Pinellas, como forma de retaliação aos atentados suicidas palestinos em
Israel.
• Em outubro de 2002 dois homens bombas destruíram uma casa noturna em
Bali na Indonésia, eles seriam membros da organização terrorista Jemaah
Islamiya, ligada à Al Qaeda.

240
[...] the unlawful use of force and violence against persons or property to intimidate or coerce a government,
the civilian population, or any segment thereof, in furtherance of political or social objectives. (28 C.F.R. Section
0.85 apud FEDERAL BUREAU OF INVESTIGATION, 1999)
241
FBI counterterrorism initiatives since the 9/11 terrorist attack have focused on preventing future attacks
through the timely gathering, analysis, and dissemination of information; the facilitation of appropriate sharing
of terrorism-related information between federal, state, and local partners; and the advancement of intelligence
and law partnerships worldwide
242
Extraído de: https://www.fbi.gov/stats-services/publications/terrorism-2002-2005 Acesso em: 28/08/2016
243
O relatório oficial e completo do ano de 2002 à 2005 do FBI consta em: https://www.fbi.gov/stats-
services/publications/terrorism-2002-2005 Acesso em:28/08/2016
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• Em maio de 2003 pessoas ligadas a Al Qaeda implantaram carros bombas na


frente de três complexos residenciais na Arábia Saudita, matando 35 pessoas.
• Agosto de 2003 um carro explodiu na frente de um Hotel na Indonésia, o grupo
que teria sido responsável é o Jemaah Islamiya.
• Em novembro de 2003 Stephen John Jordi foi preso por planejar ataques em
clínicas de aborto em Miami, o indivíduo era ligado ao Army of God.
• Entre maio e dezembro do ano de 2004 uma série de ataques foram registrados
na Península Arábica comandados pela Al Qaeda.
• Em fevereiro de 2004, três homens foram presos acusados de fornecer
armamentos para o regime Talibã.
• Em junho também de 2004, o cidadão naturalizado estadunidense Mohammed
Junaid Babar foi acusado de fornecer informações que ajudariam na
implementação de bombas em bares, estações de trem e restaurantes no Reino
Unido.
• Em Julho de 2005 houve uma série de atentados coordenados em estações de
transporte londrino, feitos por quatro homens-bombas cidadãos ingleses.

A insurgência destas séries de ataques entendidos enquanto terroristas com motivações


religiosas produzem imagens para os indivíduos sobre o papel da religião e como ela se
manifesta na vida pública. Sendo assim, a formulação de uma moral desligada do sentido
religioso, constantemente vivenciado por meio das divulgações midiáticas, torna-se possível
neste período. No entanto, em que medida em que isto confere possibilidade e espaço para
que os neo-ateus promulguem suas ideias?
A imagem da religião, ainda recebeu duros golpes com a divulgação dos casos de
pedofilia e corrupção financeira na Igreja Católica. (GENARO; BENATTE, 2015) O
escândalo envolvendo casos de pedofilia eclodiu em 2002, quando o jornal Boston Globe
divulgou uma matéria244 acusando o então Arcebispo de Boston de pedofilia. Outros casos
nos Estados Unidos, na Irlanda, na Holanda, no México, na Venezuela e no Brasil, passaram a
ser divulgados sistematicamente até 2013 (GENARO; BENATTE, 2015). Apesar disso, a

244
Matéria completa em: http://www.bostonglobe.com/news/special-reports/2002/01/06/church-allowed-abuse-
priest-for-years/cSHfGkTIrAT25qKGvBuDNM/story.html Acesso: 30/08/2016
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percepção da existência da prática da pedofilia por parte dos clérigos já era conhecida desde
década de 1960:
Reduzindo os casos de pedofilia que desde a década de 1960 vinham sendo notados
em diferentes regiões do mundo ao “nível da linguagem”, controlando sua
“circulação no discurso” e na fala de proeminentes lideranças católicas membros do
alto clero e, finalmente, banindo-o das “coisas ditas”, erigiu-se entre o Estado do
Vaticano e suas inúmeras filiais e territorialidades, uma cultura do silêncio
documentalmente orientada. (GENARO; BENATTE, 2015, p.28)

Luis Felipe de Genaro e Antonio Paulo Benatte (2015) chamam atenção para o
silêncio da Igreja no que diz respeito à pedofilia, algo que passou ser de domínio do grande
público apenas através da imprensa do século XXI. Constantes discussões e pressões da
imprensa internacional, por forças jurídicas e pelas vítimas de abuso, fizeram com que o papa
Bento XVI tomasse um posicionamento, algo que só se concretizou em 2010 por intermédio
de uma carta pastoral. (GENARO; BENATTE, 2015)
Algumas expressões ligadas ao fenômeno religioso, marcados por manifestações
públicas relevantes, como é o caso das expressões terroristas e dos casos de pedofilia,
apresentam-se como vias pelas quais a religião, em geral, seja entendida como falida no
aspecto moral. A noção de ordem moral instaurada pela religião é pontuado por Peter Baelz
(1977):
Religião pode exercer uma coordenada e integrada função em manter ante os olhos
dos homens a visão de uma ordem universal última na qual as necessidades do
indivíduo e as necessidades da humanidade estavam harmonizadas245 (BAELZ,
1977, p.65)

A proposta da religiões tradicionais de estabelecer um projeto de ordem moral


contrasta com a percepção secular, mantenedora do argumento que a moral religiosa, na
verdade, foi responsável pelas maiores atrocidades humanas na história. Pontuando a história
religiosa como narrativa e crueldade e corrupção moral. (BAELZ, 1977)
Buscando separar-se da concepção religiosa, muitos secularistas tendem a pensar que a
moral não é privilégio de nenhum campo. Visto que para estes os interditos ou sanções
religiosas, que objetivariam criar um ordem moral, na prática se mostrariam produtoras de
crueldade e opressão. Além de criar uma visão egoísta do mundo onde as ações dos religiosos

245
Religion might exercise a co-ordinating and integrating function by holding before men’s eyes the vision of
an ultimate universal order in wich the needs of the individual and the needs of humanity were harmonized.
(BAELZ, 1977, p.65)
318
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seriam orientadas para a “salvação individual”, no qual o amor ao próximo é apenas uma
determinação divina. (BAELZ, 1977)
Diante dos episódios que apresentamos, que de certo modo tocam no monopólio da
moral das religiões institucionais, podemos dizer que o século XXI é um momento profícuo
para a proposta de uma ateísmo moral, diferente daquela alcunha empregada historicamente
de imoralidade. Isso não quer dizer que exista um “projeto moral ateísta” hegemônico em
pleno curso, não pelo menos quando refletimos acerca da ideia de ateísmo em cada um dos
autores.
À primeira vista, podemos ver algumas discordâncias dos autores neste quesito.
Hitchens discorda claramente de Dawkins e Dennett, que insistem em aludir a si mesmos
como brights. O termo ganhou maior profusão quando Richard Dawkins, em um artigo de
junho de 2003 para o The Guardian246, defende o uso da palavra para categorizar as pessoas
não compartilham de crenças sobrenaturais e que conservam uma visão naturalista do mundo.
A imputação de um termo que designe este grupo, mostra-se relevante para Dawkins, pois
ajudaria a criar uma consciência de grupo, assim como teria acontecido ao movimento gay:

Um triunfo da criação na consciência se mostra na adoção homossexual da palavra


“gay”. Eu costumava lamentar a perda [da palavra] gay em seu verdadeiro sentido.
Mas sobre o lado “bright” (esperamos por isto) gay inspirou um novo imitador, isto
é o ponto alto deste artigo. Gay é sucinto, “para cima”, positiva: uma palavra pra
cima, na qual homossexual é uma palavra “para baixo”, e estranha, bicha e
“pooftah” são insultos. Aqueles de nós que se adequam como sem religião, aqueles
de nós que possuem uma visão natural do universo, ao invés de uma sobrenatural;
aqueles que regozijam-se pelo real e desprezam o falso conforto do irreal, nós
precisamos de uma palavra própria, uma palavra como “gay”.247

Em 12 de julho do mesmo ano, Daniel Dennett publica um artigo no The New York
times248, defendendo a visão naturalista e desligada da crença sobrenatural. Sustentando o uso
da palavra bright, enquanto forma de organização como meio para facilitar a visibilidade do
grupo em uma sociedade civil. Com isso, o filósofo justifica a cunhagem do termo:

246
Disponível em: https://www.theguardian.com/books/2003/jun/21/society.richarddawkins Acesso: 30/08/2016
247
A triumph of consciousness-raising has been the homosexual hijacking of the word "gay". I used to mourn the
loss of gay in [...] its true sense. But on the bright side (wait for it) gay has inspired a new imitator, which is the
climax of this article. Gay is succinct, uplifting, positive: an "up" word, where homosexual is a down word, and
queer, faggot and pooftah are insults. Those of us who subscribe to no religion; those of us whose view of the
universe is natural rather than supernatural; those of us who rejoice in the real and scorn the false comfort of the
unreal, we need a word of our own, a word like "gay".
248
Disponível em: http://www.nytimes.com/2003/07/12/opinion/the-bright-stuff.html Acesso:30/08/2016
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Se você é um “bright”, o que você pode fazer? Primeiro, nós podemos ser uma força
poderosa na vida política americana se simplesmente nos identificarmos. (A
fundação dos Brights mantem um website no qual você pode participar) Eu entendo,
contudo, que enquanto sair do armário foi fácil para um acadêmico como eu – ou
meu colega Richard Dawkins, que levantou questão similar na Inglaterra – em
algumas partes do país admitir que você é um bright pode levar à uma calamidade
social. Então, por favor: não saia do armário.249

Em suas respectivas obras, Dawkins e Dennett fazem menção à palavra. Enquanto


Dennett faz uso deste como um modo de se identificar, Dawkins se remete à ela de um modo
um tanto peculiar. Há uma iniciativa estadunidense que mantem um website chamado “The
Brights”250 sustentando exatamente o Dawkins e Dennett defendiam em seus artigos de 2003,
neste site há a possibilidade de filiação de para se tornar um bright. Em Deus, um delírio,
contudo, o autor vê com ressalvas a eficácia do termo:

Inscrevi-me nos Brilhantes [Brights], em parte porque estava genuinamente curioso


de saber se a palavra conseguirá ou não se memeticamente absorvida pela língua.
Não sei, e gostaria de saber, se a transformação de “gay” foi deliberadamente
fabricada ou se ela simplesmente aconteceu. A campanha dos Brilhantes enfrentou
turbulências logo de cara, ao ser alvo de ateus furiosos por parte de alguns ateus,
petrificados pelo medo de ser chamados de “arrogantes”. O movimento do Orgulho
Gay, felizmente, não sofre dessa falsa modéstia, e talvez por isso é que tenho sido
bem-sucedido. (DAWKINS, 2007, p.430-431)

Sam Harris, em um artigo posterior em seu blog251, defende seu posicionamento em


conjunto com Dennett, Hitchens e Dawkins, da necessidade em espalhar a razão e o
conhecimento científico, mas vê problemas em qualquer prosônimo para fins de
conscientização.
Harris aponta que as denominações “neo-ateístas” ou “ateístas militantes” são formas
de caracteriza-los sem antes conhecer seus argumentos. Diferentemente de Hitchens e
Dawkins, Harris admite que nem todas as religiões são extremistas, como os tipos de
religiosidades que prezam pela meditação. Ademais, Harris entende que enquanto seus pares

249
If you're a bright, what can you do? First, we can be a powerful force in American political life if we simply
identify ourselves. (The founding brights maintain a Web site on which you can stand up and be counted.) I
appreciate, however, that while coming out of the closet was easy for an academic like me – or for my colleague
Richard Dawkins, who has issued a similar call in England – in some parts of the country admitting you're a
bright could lead to social calamity. So please: no ''outing.''
250
Disponível em: http://www.the-brights.net/ Acesso: 30/08/2016
251
https://www.samharris.org/blog/item/the-problem-with-atheism Acesso: 31/08/2016
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se preocuparem em valer-se da denominação de “ateus” o debate sobre fé e razão, religião e


ciência, ficaria em segundo plano, pelo peso marginal que a palavra ateu carrega.
Harris acrescenta que o movimento não deveria ser definido por seu antagonista, o
teísmo. Definir-se até mesmo como ateu, faria com que as pessoas repetissem os mesmos
contra-argumentos, o que manteria a ignorância e não levaria a lugar algum em torno de
conquista das pautas seculares. A luta, neste sentido, seria em torno da divulgação dos
princípios racionais, da busca por evidências e da autonomia do indivíduo. Portanto, amor e
curiosidade seriam aspectos mais que suficientes para compor a forma dos não-teístas.
Colocar-se como um grupo distinto detentor da verdade seria uma arma dos
extremistas religiosos e isso não deveria perdurar entre os secularistas. A partir disso, Harris
se contrapõe a designação de termos que definam o movimento, resumidamente porque eles
não traduzem uma eficácia real.
Enfim, procuramos mostrar que o se designa “neo-ateísmo”, compreendendo as obras
como principais percussoras, não é um movimento homogêneo, mas ainda sim conserva a
ideia de que a religião perdeu o crédito moral na sociedade. Tal caracterização da religião é
apenas possível a partir do momento em que os indivíduos, não apenas os autores das obras,
são constantemente bombardeados por informações e imagens acerca da religião, que por
vezes, podem causar uma reflexão moral.
Um ponto que gostaríamos de destacar é como religião e ateísmo são pensados nas
práticas cotidianas e como isto se reverbera nos discursos destes neo-ateus. Mapear as
práticas, as ideias que são fabricadas e torno destes dois conceitos é de certo uma tarefa
extensa e complicada, pois há de se considerar uma vasta gama de discursos de indivíduos das
mais diversas classes sociais e trajetórias. Contudo, talvez possamos, por meio de indícios e
preocupações do movimento neo-ateísta em se auto-afirmar e deslegitimar a religião, ao
menos perceber os temas que estes discursos transpassam, que se articulam às plataformas
práticas sob as quais eles se realizam.
A preocupação do movimento em discutir-se ateísmo, ou sobre os termos que melhor
se ajustam, não diz apenas ao modo como estes indivíduos querem ser lidos, mas também as
possibilidades da efetividade de seu discurso em seu “lugar social” (CERTEAU, 1982).

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Se o ateísmo tem certo grau de preconceito na sociedade estadunidense252,


considerando que os autores em maioria escrevem pensando neste público, a apreensão da
prática discursiva em torno do ateísmo é essencial para os neo-ateístas. Essencialmente no que
se refere a tentativa de desligar a noção de imoralidade ao ateísmo, por meio da
conscientização dos cidadãos não-crentes e criar uma consciência de classe que é vinculada a
princípios morais compartilhados.
A escrita por parte de integrantes da camada intelectual, neste sentido, formaliza as
práticas em torno das visões sobre os ateus. Parte do que Michel Certeau (1982) categoriza
como “marca”, ou seja, o signo sob o qual o adjetivo ateu é entendido no sociedade e partir
destes signos é possível que os neo-ateÍstas articulem suas visões em torno do ateísmo em
face à religião.

A religião e a prática discursiva no neo-ateísmo


Harris, Dennett, Hitchens e Dawkins em suas respectivas obras se voltam a pensar
temáticas em comum. A primeira delas é caracterização da religião, algo que é unânime entre
os intelectuais é percepção que a religião é problemática tanto da sua perspectiva
organizacional, como no que diz respeito a fé dos indivíduos. O problema é considerado
urgente de ser resolvido, ainda que alguns como Dennett não deixem claro que se quer
exterminar o pensamento religioso, por mais que encontre problemas no “encanto” inerente a
esta.
Já Harris vê especificamente a religião islâmica, como aquela que causa maiores
malefícios pela ausência de pensamento humanitário. Assim ele sugere que as formas
“democráticas” intervenham na questão, de modo que a religião não exerça domínio nas

252
Cimino e Smith (2011), chamam atenção para como os ateus e secularistas veem sua descrença e como esta
vai ser assimilada em círculos sociais. Os autores chegam a conclusão, que por mais que haja um sentimento de
grupo – principalmente após a publicação dos autores neo-ateístas – o que permanece é o sentimento de
marginalização. Em uma extensa pesquisa sobre a presença de preconceitos aos ateus, Margaret Downey (2011),
traz alguns relatos de ateus e episódios de hostilidade na mídia, no trabalho, nos ambientes educacionais, na
política dentre outros espaços. Um dos relatos do dia 8 de novembro de 2001 diz o seguinte: “O Presidente
George W. Bush disse: ‘Aqueles que celebram o assassinato de homens, mulheres e crianças inocentes não têm
religião.’” 252(ANÔNIMO apud DOWNEY, 2011, p. 15)
A percepção de marginalização dos ateus é, portanto, um visão comum especialmente nos EUA. Isso
pode ser notado também na esfera pública, na política, já nas declarações de George H. W. Bush em 1987 que
disse: “Não sei se ateus deviam ser considerados cidadãos, nem ser considerados patriotas. Esta é uma nação
regida por Deus.” (BUSH apud DAWKINS, 2007)

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esferas públicas. Enquanto que Hitchens, ao considerar que a religião “envenena tudo”, não
está apenas preocupado com suas expressões públicas, mas também no modo como elas
interferem na vida particular dos indivíduos. Dawkins, por sua vez, vê a religião como
principal causa de conflitos e confia à ciência e a sua inspiração um modo alternativo ao
pensamento religioso.
Em suma, podemos dizer que tais autores formalizam visões em torno da religião,
imputando valores e conceitos inerentes à esta, percebendo-a como elemento totalmente
dessacralizado e construído pelo ser humano. Bruno Latour (2012) identifica neste tipo de
postura, no que se refere ao homem moderno, um movimento onde há a acusação os outros de
fabricarem seus ídolos com suas próprias mãos. O fato de haver a construção desses ídolos,
que depois irão exercer um poder de dominação, são assimilados como uma “crença ingênua”
e portanto deve ser eliminada, na concepção dos modernos. (LATOUR, 2012)
As sociedades na concepções destes estariam repletas destas “crenças ingênuas”,
principalmente no caso do Estados Unidos e do mundo islâmico. Ao acusarem esta
ingenuidade, os neo-ateístas retiram o valor de “verdade” destes âmbitos por considerarem
apenas abstrações que não possuem contato com a realidade.
O que incomodaria estes homens moderno é fabricação de divindades, fazendo com
que separem o “crer” e o “saber”. (LATOUR, 2012) Quando Dawkins rebate a crítica de que
ele seria fundamentalista, o biólogo se defende apontando que nada fará com que o crente
mude de ideia, já “o verdadeiro cientista, por mais apaixonadamente que ‘acredite’ na
evolução, sabe exatamente o que é necessário para fazê-lo mudar de opinião: evidências.”
(DAWKINS, 2007, p.17-18). Acontece algo semelhante na narrativa de Hitchens sustentando
que não motivo legitimo para que a fé seja levada como verdade: “Agora que o monopólio da
religião foi quebrado, está ao alcance de qualquer ser humano ver que estas evidências e
provas [com relação à fé religiosa] como as invenções pusilânimes que são.” (HITCHENS,
2007, p.58).
A desconsideração de Harris à religião também ocorre de forma semelhante, pois este
defende que não há como elencar a fé como legitima, isso porque qualquer fato, para ser
considerado verdadeiro, deve-se basear em evidências. (HARRIS, 2004). O “crer” é atribuído
a uma concepção arcaica e que na modernidade é concebida como uma construção, que

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exerce poder sob a vida das pessoas. Trata-se de uma construção moderna, a qual estabelece
critérios para definir o que é verídico ou não.
Esta ação do homem moderno em direção as crenças, especialmente as religiosas, é
conceituado por Latour (2012) como atitude “anti-fetichista”, que:
É aquele que acusa um outro de ser fetichista. Qual é o conteúdo desta denúncia? O
fetichismo, segundo acusação estaria enganado sobre a origem da força. Ele fabricou
o ídolo com suas mãos, com o seu próprio trabalho humano, suas próprias fantasias
humanas, mas ele atribui este trabalho, estas fantasias, estas forças ao próprio objeto
fabricado. (LATOUR, 2012, p.26)

A função do anti-fetichista se mostra, pois, acusar de que o outro fabrica seu objeto de
adoração e também mostrar que todas as coisas são inerentes ao sujeito, não existem outros
agentes que possam interferir nas estruturas humanas. Assim, o homem moderno pretende
transformar “o criador em criatura”, tomando para a si sua autonomia, fazendo parte de um
processo de “reconciliação consigo mesmo”. (LATOUR, 2012)
Dawkins se mostra enquanto uma ilustração para essa inclinação moderna, quando
este se propõe a pensar um mundo dentro dos limites da materialidade, ele atribui a ciência o
cargo de recuperar essa autonomia humana e trazer o que antes se encontraria envolto no
obscurantismo religioso, para a o indivíduo, por sua vez passa a rejeitar os deuses e baseia-se
nas construções humanas. Através do mundo natural, seria possível advir todo o tipo de
sentimento e emoções. (DAWKINS, 2007)
No entanto, Latour (2012) argumenta que este resgate do sujeito procurando ser
autônomo em relação às suas divindades, ganha um corpo social, ou seja, essas concepções
não permanecem somente no âmbito individual e a partir do momento que apresentam uma
coletividade, adquirem também uma corporeidade e certa autonomia. Isto quer dizer, que essa
autonomia adquirida, em algum momento vai tornar-se determinadora de ações, acontece,
deste modo, o que o autor coloca como a “inversão da inversão”, ou seja, ao destruir os ídolos
fabricados e colocando o sujeito enquanto agente atuante há uma transferência de força, pois
agora o aspecto determinador vai passar a ser a sociedade e suas estruturas criadas para
compreender as realidades existentes.
Frequentemente, os neo-ateístas clamam para que se abarque a “razão”, ciência e o
darwinismo como princípios norteadores, no qual a verdade vai ser catalisada a partir destes
domínios. Neste sentido, Latour (2012) identifica dois polos na constituição de crenças do
homem moderno: o primeiro diz respeito a um olhar centrado no sujeito, onde os “objetos-
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encantados”, que seriam aqueles construídos, pelas mãos humanas com o objetivo de
adoração, ganham um teor pejorativo, uma vez que quando este indivíduo olha para outra
realidade a qual pretende a ser superior a mesma e lança essa concepção.
Porém, quando ocorre a “inversão da origem da força”, observamos a criação de
estruturas determinadoras dentro da própria sociedade, apesar da mesma ser produto da
fabricação humana, o polo de visão se transfere para uma concepção de “objeto-feito”, ou seja
esse objeto, também criado por mãos humanas, tem o aval fornecido pela ciência, mais uma
vez o “ator humano livre” prende-se a novas crenças tornando “ator humano determinado”.
(LATOUR, 2012)
Interessante notar essa “inversão da origem da força” em Richard Dawkins, em Sam
Harris e em Christopher Hitchens, na produção de seus discursos, que acontece da seguinte
forma: ao considerar a crença sobrenatural enquanto “delírio”, o fazem denunciando os deuses
enquanto criação mental, infligindo ao sujeito a sua responsabilidade. Quando estes estão a
falar de religião, o foco central é sujeito, ou seja, não existe nada que não seja fabricado pelo
sujeito. Quando os autores, olham para o seu próprio fetiche, o polo de visão muda e passa-se
a usar a ciência, mais especificamente o poder da evidência, enquanto aval para se legitimar
frente ao discurso religioso.
Assim, essa ciência se torna, por meio do que se considera uma evidência, objeto
dessacralizado e sacralizado logo em seguida, pois ela passa a ser o novo determinador de
verdades. Quando Dawkins, com o seu discurso, promove a derrubada das crenças
sobrenaturais, faz isso objetivando dessacralizar um mundo rodeado de divindades, criando
um novo objeto de adoração que pretende ser livre das amarras que pensamento religioso
colocaria, no entanto a ciência ao adotar a evidência como modelo de verificação, cria um
novo objeto sacralizado. (LATOUR, 2012)
Outro aspecto que nos permite definir um anti-fetichista e ao mesmo tempo
entendermos a configuração do que seria um “fe(i)tiche”, segundo Latour (2012), são os
termos construtivismo e realismo. Ao fomentar a crítica em relação aos fabricadores de
fetiches, o homem moderno coloca em oposição, no plano do discurso, construção e realidade,
dessa forma enquanto que a construção, pelo fato de ser artefato humano, se remeteria à
ficção e portanto não-verdade, a realidade por sua vez seria o fato, que acredita-se não ter a
intervenção humana.

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No entanto, ao nos atentarmos para a prática, construção e realidade tornam-se


sinônimos, pois fora disso não existe produção de conhecimento. Assim, o homem moderno
ao pretender livrar-se dos deuses nada mais faz que seguir um discurso teórico onde realidade
e construção estão em planos completamente opostos. (LATOUR, 2012)
O discurso dos modernos, parte, portanto, segundo Latour (2012), dessa separação
entre construção e verdade, entendendo como realidade “quadros que ninguém construiu”,
deste ponto de vista em tese, o discurso moderno ganha ares de uma quase a-humanidade,
pois ao negar a construção enquanto verdade e portanto estabelece padrões inatingíveis no que
diz respeito a ela.
Importante ressaltar que essa dinâmica proposta por Latour (2012) apresenta como
pressupostos dois tipos de “denúncias”, a primeira é mais evidenciada que se refere aos
modernos rejeitando as divindades, a segunda sugere uma reflexão maior que percebe esses
mesmos modernos enquanto criadores de outros fetiches que iram os transformar em sujeitos
determinados em um passo seguinte, neste processo construção e realidade ganham um
distanciamento na teoria e uma aproximação na prática.
Estes autores neo-ateístas compreendem que a ciência também faz parte de uma
construção humana, no entanto há um aspecto que os permitem distanciar discurso e prática,
ou seja, olhar para religião e ciência, não como construídas com valores iguais. A ciência e
religião são entendidas sob um panorama diferente, além das incursões inconscientes nas
construções referidos à estes domínios, há a importância que estes assentos ganham no
período em escrevem, principalmente ao falar de religião.
Na composição do “fe(i)tiche” entraram em cena duas principais premissas, que vistas
de uma forma superficial parecem opostos, no entanto analisando de forma mais profunda
fazem parte do mais essencial do fe(i)tiche moderno. Há a prerrogativa da destruição dos
elementos considerados arcaicos, contudo, as estruturas não desfalecem completamente.
Neste sentido há uma separação bem demarcada da teoria e da prática. Na teoria deve
se escolher entre fatos e fetiches, categorizando e os separando veementemente, na prática se
constituem os “fe(i)tiches”, onde construção e realidade são aproximados no intuito de dar
uma eficácia ao mesmo, além disso cria um ambiente independente onde a ciência pode
inovar-se acreditando estar longe da interferência dos fetiches, neste plano abaixo não existe
uma distinção clara, assim, construção e realidade podem operar em conjunto livremente.

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Dessa maneira, existe uma dupla vantagem que está no fato de que no plano teórico é
necessário que a ciência se legitime enquanto uma produtora de verdades, livre da
interferência dos mitos e de uma construção humana, sendo, portanto, tida como verdadeira e
na prática a ciência pode se utilizar do aparato da construção de realidades, sem que isso
ganhe uma conotação negativa. Interessante observar na configuração do “fe(i)tiche”
moderno, que ao mesmo tempo que há uma clara separação entre teoria e prática, oferece
suporte uma a outra na medida em que a teoria fundamenta o discurso científico e a prática
permite que ela funcione, impregnada de destruições, reconstruções e apropriações.
(LATOUR, 2012)
A configuração do dispositivo do “fe(i)tiche” moderno, segundo Latour, é orientada
por três principais fatores: o da “quebra”, do “passe” e por fim da “restauração”.
Primeiramente para compreendermos o fenômeno da “quebra” é preciso nos atentarmos ao
movimento de legitimação que a ciência tem de passar, dessa maneira a distinção entre fatos e
fetiches se torna fundamental, pois há o rompimento com um conjunto de elementos com a
pretensão de se instalar o que seria novo.
Com isso abre-se espaço para a configuração do “passe”, neste momento a ciência
adquire a função de produtora de verdades, essas verdades são construídas e essa construção
não ocorre a partir do nada, a realidade a ser constituída estabelece uma ligação, para fins
práticos, com aqueles aspectos que se acreditavam derrubados, formatando o que seria uma
realidade produzida por métodos de verificação atualizados. Dessa forma, com a constituição
de “nova” realidade entra em cena a “restauração”, onde novamente tem de se recorrer ao
processo de destruição daquela verdade fundamentada. (LATOUR, 2012)
A dinâmica proposta por Latour (2012) pode ser facilmente vista nos autores neo-
ateístas, que se apegam à crítica à religião, mas ao mesmo tempo se reportam a outra
construção humana: a ciência. Poderíamos dizer o mesmo com relação ao ateísmo? Estes
autores que apresentam condições moralidade, apegam-se à um projeto ateu?
Steve Fuller (2011) argumenta que o darwinismo têm sido arma principal dos neo-
ateístas, para garantir uma visão de mundo considerada elevada e respeitável. Isto é evidente
em Dawkins, quando o biólogo encaixa a seleção natural como conscientizadora, ou quando
Hitchens aponta que a seleção natural pode muito bem excluir as concepções criacionistas ou
do design inteligente.

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Fuller infere que a utilização da ciência, mais especificamente do darwinismo,


constitui-se como uma tentativa de legitimar-se frente ao teísmo. Procurando desvincular-se
do estigma de desorganização, estes neo-ateus tomam o mundo natural, e as explicações
apontadas por Darwin, como seus, criando uma oposição entre o teísmo e consequentemente
com o criacionismo:
Na verdade, Darwin deu aos ateus razões para acreditar que, aos menos em
princípio, há um durável senso de ordem que pode crescer da desordem. Isto quer
dizer que os ateus podem reorientar suas atitudes com relação aos teístas. Ao invés
de presumir que os teístas estavam iludidos em pensar qualquer ordem sobre toda a
natureza, os ateus podem agora contar com um relativo senso de ordem, que
podemos perceber na natureza em termos de um estaticamente normal processo
embasado. [...] Assim, o ateísmo torna-se justificável no discurso público acerca da
ordem na natureza, apesar da presunção contínua do status do teísmo nesta
discussão.253 (FULLER, 2011, p.66)

A ciência neste sentido é operada como um mecanismo de legitimação, como forma


também de um resgate moral do movimento. A relação entre ateísmo e moralidade pode ser
vista nos autores nas obras que inauguram o neo-ateísmo. A partir disso, algumas questões
podem ser levantadas, primeiramente, quais seriam as condições históricas para que estes
ateus precisassem clamar por espaço, clamando por domínios para garantir sua legitimidade
moral, além disso, quais seriam os motivos para desvincular a moral da religião?
Até este momento nos voltamos a apresentação das ideias que compõem o movimento
neo-ateu, entretanto, é necessário compreender como estas narrativas se encontram no
discurso de Dawkins. Michel Foucault (2008) assinala para a compreensão de um discurso de
acordo com as condições nas quais ele se apresenta, procurando entender como o documento
se organiza, como ele determina seus recortes, distribui as temáticas, elabora níveis e descreve
relações.
Tal empreendimento sugerido por Foucault (2008) parece um tanto pretensioso,
quando observamos a gama de possibilidades que se colocam em nossa volta ao olharmos
para a fonte em questão. Contudo, tendo em vista que algumas temáticas ganham mais
relevância para os neo-ateístas, inclusive para Dawkins, nos atemos a pensar em que medida

253
In effect, Darwin gave Atheists reasons for believing that, at least in principle, a durable sense of order could
indeed arise from disorder. This meant that Atheists could re-orient their attitude towards theists. Instead of
presuming that theists were deluded in thinking that there was any order at all in nature, Atheists could now
account for the relative sense of order that we perceive in nature in terms of normal statistically based
processes.[...] Thus, Atheism came to be justifiable in the public discourse about order in nature, despite the
continuing presumptive status of theism in the discussion. (FULLER, 2011, p.66)

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as construções feitas sobre religião oposta ao ateísmo, composto de uma moralidade e um


projeto de futuro, se configuram no discurso de Dawkins, tendo em vista a constelação de
discursos que o cercam.
É claro, que inferir todas as condições sob os quais um discurso é formado é tarefa
impossível, visto que ela pode se desdobrar quase que ao infinito. Antes de tudo, entender
Deus, um delírio no âmbito da prática discursiva, se liga a concepção de que não se torna
necessário enquadrá-lo como uma mera repetição de discursos posteriores, por mais que os
enunciados sejam reutilizados, eles nascem em situações completamente distintas. Tal fato,
faz com que nossa obra seja compreendida de acordo com o que as irrupções de
acontecimentos que tornaram este discurso plausível no século XXI.
De acordo com Foucault (2008) os discursos são fundamentados em um número
finitos de vocábulos, mas que permitem um número muito grande significados e correlações,
podemos dizer, portanto, que a soma dos signos que compõe uma prática discursiva pode ser
maior ou menor do que o todo. Neste sentido, cada discurso é formado pelo o que Foucault
(2008) conceitua como “enunciados”, os enunciados são as “partes indivisíveis” do discurso.
Sumariamente, os enunciados seriam preposições compostas por “signos”, ou seja, por
elementos compostos de significados e também significantes. A título de exemplo podemos
acentuar a ideia de Dawkins sobre o status do ateu; o autor ao retomar a construção histórica
de o ateísmo ligado a imoralidade, faz com este signo seja significante em seu discurso e faça
parte de um enunciado, a partir do momento em este signo vai ajudar a fomentar a própria
reivindicação de Dawkins de uma moralidade para o ateísmo.
Desse modo, os signos, para além de estarem assentados em uma lógica sintática, a
palavra ateu, por exemplo, eles remetem a uma série de significações construídas
historicamente. De forma que seu emprego faça alusão à este aspecto significante e dê forma
para o discurso presente na obra.
Com isso, os enunciados não facilmente demarcáveis por sua unidade estruturada, isto
quer dizer que estes são pontuáveis através dos signos que se encontram em seu interior. A
ligação proposta por Foucault (2008) entre enunciados e signos, supõe a justaposição ou
sucessão desses elementos, em outras palavras ao mesmo tempo em que os signos podem
conferir significado ao enunciado, o enunciado estabelece um caráter significante ao signo –
vide o emprego que Dawkins atribui ao ateu – tais relações podem encontrar-se também de tal

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maneira conjecturadas que essa distinção não se torna possível. Assim, a efetuação dessa
relação pode ocorrer também de maneira sobreposta, de modo a se considerar conjuntamente
o aporte instrumental sob o qual o ato se realiza.
Desta maneira, o enunciado comporta uma série de signos, que dizem respeito a vários
domínios, que se encontram nestes enunciados. A relação entre signos e enunciado está sujeita
ao vínculo entre significado e significante, o que se difere do que está sendo dito do que está
sendo enunciado e que, portanto, possui um significado.

Desse modo, o texto pode ser pensado para além de seus empregos nominais, ele
carrega consigo significados específicos, de modo que a sua reprodução não traz o mesmo.
Há, portanto, uma clara diferença entre o que se enuncia, ou seja, o que é dito e explicitado e
o enunciado, que se desdobra também nas colocações não ditas. O enunciado, dotado de
significação, precede o que é apresentado, assim este significado não se dirige diretamente aos
sujeitos ou aos objetos singulares, diferentemente do que é apresentado, do que é enunciado,
que possui intencionalidades evidentes. (FOUCAULT, 2008)

Pensando na primeira publicação do “neo-ateísmo”, que é a obra de Sam Harris


podemos inferir que a apresentação da religião como delírio coletivo, é usada e reapropriada
por Dawkins, que acrescenta a ideia de um acidente histórico que fez com que isto fosse
possível. Aqui reside a importância de se pensar um enunciado como um empreendimento
coletivo de escrita, onde vários produtores, no caso os autores considerados neo-ateístas,
escrevem um em seguida do outro e compartilham, fazendo usos específicos, enunciados.

Tal comparação entre discursos – por mais que não seja nossa intenção fazer uma
análise, comparativa, mas sim entender a obra de Dawkins neste meio – torna-se possível
apenas quando observamos que Harris, Dennett, Hitchens e Dawkins partilham condições
análogas de produção. São intelectuais ocidentais, estão a olhar para a religião em um pós 11
de setembro, defendem uma visão desligada do sobrenatural, das religiões tradicionais,
utilizam-se dos mesmo conceitos, escrevem em períodos muito próximos. Enfim, uma série
de elementos que nos permitem compreender que estes compartilham certa regularidade
dentro de seus enunciados.
Foucault explica que os enunciados estão inscritos em “domínios”, que são articulados
por “dependências simbólicas”, as quais se evidenciam pela relação

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enunciado/significado/significante. Em outras palavras a utilização de signos remetem-se a


um domínio específico, quando por exemplo, os neo-ateístas insistem em dar prioridade para
a teoria da seleção natural, eles abarcam um fenômeno típico do domínio científico. E
também como pontuou Gordon (2011), constroem seu discurso tendo em vista o domínio da
moral, dentre outros. Importante destacar, que essas dependências simbólicas são de extrema
relevância empregadas ao discurso, na medida em que confere valor de verdade por meio da
legitimidade construída social e historicamente destes domínios.
Na constituição do enunciado contam, além das regularidades discursivas na qual ele
se encontra, as intenções do autor, a atividade consciente do escritor, assim como o “jogo
inconsciente exercido no processo de escrita”. Os enunciados tendem também, a recortar
objetos, explicando-o de acordo com o tempo histórico e os lugares onde são articulados.
A fim de delimitarmos metodologicamente nosso objeto de estudo, optamos por
entende-lo sob a perspectiva de uma prática discursiva. Compreendendo que o discurso de
Dawkins em Deus, um delírio faz parte de um certo número de regularidades discursivas, que
compartilham enunciados, ligados à domínios específicos, e que recortam objetos. Ou seja,
propomos olharmos para nossa fonte essencialmente no que diz respeito ao enunciado que
constrói um objeto, a religião, considerando que este enunciado é formado por significantes,
advindos tanto da ideia de ateísmo, como da ideia de religião, propomos pensar as condições
históricas deste tipo de discurso.

Fonte Impressa
DAWKINS, Richard. Deus, um delírio. trad. Fernanda Ravagnani. São Paulo: Companhia das
Letras, 2007

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A representação do negro no filme “o milagre das águas” (1987)

Mariana Valentini Rodrigues 254(LERR/UEM/G)


Dra. Vanda Serafim (orientadora LERR/PPH/UEM/PQ)
Universidade Estadual de Maringá- UEM

Resumo: A presente comunicação tem como objetivo compreender como é construída uma
“representação” do negro por meio do filme “O milagre das águas” (1987), dirigido por
Ronoaldo Pelaquim e Marcos J. Jorge. Pensando que a produção é ligada a instituição
católica, com fins evangelizadores, observamos que o negro é retratado de forma alegre,
sorridente e entoando cantos à Nossa Senhora Aparecida, do qual é devoto. Vemos portanto
uma “representação” do outro na medida em que uma narrativa sobre o escravo, do século
XVIII, é realizada pela personagem de Pai José, no século XX. Parte-se enquanto aportes
teóricos de “representação”, de Roger Chartier (1991), e do “outro”, de Norbert Elias (2000).
Metodologicamente utilizamos as discussões de Sandra Pesavento (2008) e Marcos
Napolitano (2008) sobre o filme como objeto de pesquisa no campo da ciência histórica.
Palavras-Chaves: Representação. Escravo. Nossa Senhora Aparecida

The black’s representation on the movie “o milagre das águas” (1987)


This communication has the goal of understanding how a black person’s “representation” is
built in the movie “O milagre das àguas” (1987), directed by Ronoaldo Pelaquim and Marcos
J. Jorge. As the production is linked with the catholic institution, with evangelizing purposes,
we notice that the black is depicted in a joyful way, laughing and chanting for Nossa Senhora
Aparecida, whom wich he is devoted. We can see, therefore, the Other’s “representation”,
when a narrative about a slave from the XVIII century is done by the character of Pai José, in
the XX century. The theoretical contributions of “representation”, from Roger Chartier
(1991), and the “Other”, from Norbert Elias (2000). For the methods, the discussions of
Sandra Pesavento (2008) and Marcos Napolitano (2008) about the movie as being an object
for historic research.
Representation. Slave. Nossa Senhora Aparecida

O filme brasileiro ‘O Milagre das Águas’, foi produzido no ano de 1987, com direção
de Ronoaldo Pelaquim e Marcos J. Jorge. O longa-metragem se passa em 1904 e retrata a
história de um senhor paraplégico, devido à um acidente, chamado José e seu filho João, que
decide ir à Aparecida do Norte, após descobrir que seu pai era de lá e que sua mãe – já
falecida – era devota da santa. O menino João leva, andando, seu pai na cadeira de rodas,

254
Bolsista de Iniciação Científica – Fundação Araucária. Graduanda do segundo ano de História da
Universidade Estadual de Maringá e membro do Laboratório de Estudos em Religiões e Religiosidades (LERR).
E-mail: marivalentini.r@gmail.com
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enquanto este conta a história da Santa padroeira do Brasil. Contra a vontade de José, a
viagem segue sob os cuidados do filho, que acredita em um milagre com seu pai.
A criatividade do menino é conduzida durante a narrativa sobre a história de Nossa
Senhora Aparecida e seus milagres, que passa a enxergar tudo que lhe é contado. Um detalhe
especial e de extrema importância, é o fato da escravidão presenciada no período da
“aparição” da imagem, ser até então inédita ao garoto. A situação do negro no período e as
comoções causadas pela “aparição” da imagem negra, ganha ênfase, sendo possível a análise
desse aspecto no filme.
O filme “O Milagre das Águas” (1987), é um filme sem prêmios, feito com apoio da
Basílica Nacional de Aparecida, idealizado e realizado pelo Padre e também diretor e ator do
filme – Pai José – Ronoaldo Pelaquim. É um longa comercializado por lojas católicas e tem
como principal objetivo, a evangelização dos fiéis. Ronoaldo Pelaquim dirigiu apenas esse
filme e além de Padre, dedica-se a carreira de cantor, atualmente. O filme foi produzido por
Redemptor Produções e Verbo Filmes, distribuído por Embrafilme – Empresa Brasileira de
Filme S.A e feito em São Paulo – SP. Por meio desta informação devemos perceber que o
filme é a forma como um padre dos anos 80, enxerga e nos apresenta a história de Nossa
Senhora Aparecida.
A aparição da imagem de Nossa Senhora Aparecida, aconteceu no ano de 1717, época
do Império e independente se a cor da santa, foi alterada devido ao tempo que permaneceu em
baixo da água, o filme nos transmite a satisfação e alegria dos negros em relação à estética da
santa, acreditando que a imagem veio de fato com o intuito de transformação no pensamento e
atitudes da época em relação aos escravos, como a abolição. Podemos perceber tal satisfação,
através da letra de uma das músicas cantadas no filme, interpretada por um escravo, que diz:
“É negra a cor da noite, é forte a minha dor. É negra a cor da Santa, é santo o meu amor ”.
A fonte trabalhada, nos faz buscar entender os milagres concedidos por Nossa Senhora
Aparecida aos escravos, e com eles a concretização dos ideais abolicionistas. Como por
exemplo, o milagre concedido à um escravo que através de histórias da santa, podemos
associar com o escravo Zacarias. O escravo, passa pela imagem sagrada, com algemas e
carregado pelo seu feitor. Pede permissão para orar diante a santa e lhe é concedido tal desejo.
Este então pede para que Nossa Senhora o salve daquela condição, e no mesmo instante as
algemas se quebram sendo libertado.

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A compreensão da contribuição do escravo para a popularização e devoção à santa,


tanto espiritualmente quanto materialmente, é possível através do filme, com a construção da
capela. A popularidade da santa que fez os peixes “aparecerem” no rio, aumentava a cada dia
e a casa de Felipe Pedroso – um dos pescadores a encontrar a imagem – já não comportava
mais a fé dos moradores e nem dos viajantes que, fazia da capela improvisada parada
obrigatória. Com isso, se fez necessário a construção de uma capela maior, que comportasse
todas aquelas pessoas que ansiavam por um milagre.
Na época como mencionado, o trabalho existente era o escravo e os mesmos ficaram
responsáveis por tal construção, retratado no filme de forma exageradamente gratificante,
justificado pelo amor e devoção à santa, como podemos perceber na música cantada por um
escravo durante o longa-metragem que diz: “Do negro vem a força, do negro o suor (...) de
pedra sobre pedra, o templo vai nascer (...) é negra minha pele, é grosso meu suor. É negra a
cor da santa, é santo o meu amor”.
Entretanto, o menino João, personagem central do filme, questiona o pai em relação ao
assunto do parágrafo anterior, mostrando insatisfação como percebemos no seguinte diálogo:
“- Aquela capela, não foram os negros que fizeram para ela? – Quase só os negros. – E ela, a
santa, havia de querer escravos para ela? – É claro que não. Mas você sabe, era coisa do
tempo(...)”.
Diante as inquietudes do menino, seu pai decide contar sobre quando os negros
começaram a se ver livres, e para isso ele associa a abolição com a Princesa Isabel, que é
retratada como uma fiel devota de Nossa Senhora da Conceição Aparecida. Um negro
chamado Antônio Joaquim dos Santos, considerado o melhor trombonista da região, é
convocado para tocar diante a Princesa, que fica encantada e lhe entrega um lenço branco
como forma de afeto. No filme a alteza é representada como uma aliada dos negros, por quem
tinha muito amor.
O longa-metragem, tem várias temporalidades. Foi feito em 1987, retrata a história de
pai e filho que viviam em 1904, Pai José e o menino João, relembram a época da aparição de
Nossa Senhora Aparecida, em 1717. As outras datas mencionadas no filme também são de
suma importância, porém, para podermos melhor entender o modo como o negro foi inserido
nesse filme e os possíveis motivos desta retratação, devemos compreender o contexto
histórico em que o filme foi produzido, ou seja, o ano de 1987.

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Como aporte teórico, trabalhamos com a “representação” de Roger Chartier em sua


obra “O mundo como representação” (1991). O autor apresenta várias proposições que
articulam de maneira nova os recortes sociais e as práticas culturais, como as subjetividades
das representações, que segundo Chartier (1991) “se ligaria uma outra história dedicada aos
discursos e situada à distância do real”, como percebemos nas cenas em que os escravos
entoam cantos sorridentes à Nossa Senhora Aparecida, e excluindo qualquer imagem ligada
ao que de fato foi a escravidão e o modo como o negro era tratado.
Chartier ainda nos aponta sobre as “representações coletivas” sendo matrizes de
práticas construtoras do próprio mundo social. Além disso essa noção de “representação
coletiva”, tem ligação com o mundo social, colocadas pelo o autor em três modalidades:
“(...) de início, o trabalho de classificação e de recorte que produz
configurações intelectuais múltiplas pelas quais a realidade é contraditoriamente
construída pelos diferentes grupos que compõem uma sociedade; em seguida em
seguida, as práticas que visam a fazer reconhecer uma identidade social, a exibir
uma maneira própria de ser no mundo, a significar simbolicamente um estatuto e
uma posição; enfim, as formas institucionalizadas e objetivadas em virtude das quais
“representantes” (instância coletivas ou indivíduos singulares) marcam de modo
visível e perpétuo a existência do grupo, da comunidade ou da classe.”

Essa realidade contraditoriamente construída pelos diferentes grupos que compõe uma
sociedade, pode ser analisada através da personagem do “Pai José”, que ao ser criado por um
padre, passa a representar também a Igreja e se torna um “representante”, citado por Chartier,
como aquele que “marca de modo visível e perpétuo a existência do grupo, da comunidade ou
da classe”.
Trabalhamos o “outro”, através de Nobert Elias, em sua obra “Os Estabelecidos e os
Outsiders” (2000), que diz o seguinte sobre os Estabelecidos:
“As palavras establishment e established são utilizadas, em inglês, para designar
grupos e indivíduos que ocupam posições de prestígio e poder. Um establishment é
um grupo que se auto percebe e que é reconhecido como uma “boa sociedade”, mais
poderosa e melhor, uma identidade social construída a partir de uma combinação
singular de tradição, autoridade e influência: os established fundam o seu poder no
fato de serem um modelo moral para os outros. ”

Reconhecemos os estabelecidos no filme, como a Igreja Católica, que assim como diz
a obra, é “uma combinação singular de tradição, autoridade e influência”.
Já os Outsiders, o texto nos aponta o seguinte:
“Na língua inglesa, o termo que completa a relação é outsiders, os não membros da
“boa sociedade”, os que estão de fora dela. Trata-se de um conjunto heterogêneo e
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difuso de pessoas unidas por laços sociais menos intensos do que aqueles que unem
os established. A identidade social destes últimos é a de um grupo. Eles possuem um
substantivo abstrato que os define como um coletivo: são o establhisment. Os
outsiders, ao contrário, existem sempre no plural, não constituindo um grupo
social”.

Os outsiders são identificados no filme como o escravo/negro, aqueles que foram


excluídos da sociedade, por não serem bons o suficiente.
Em “O mundo como representação”, Chartier (1989), ainda escreve sobre a “dupla via” e
pontua o seguinte:
“(...) uma que pensa a construção das identidades sociais como resultando sempre de
uma relação de força entre as representações impostas pelos que detém o poder de
classificar e de nomear e a definição, de aceitação ou de resistência, que cada
comunidade produz de si mesma; outra que considera o recorte social objetivado
como a tradução do crédito conferido à representação que cada grupo da de si
mesmo, logo a sua capacidade de fazer reconhecer sua existência a partir de uma
demonstração de unidade (...)”.

Elias (2000), ao apresentar sua obra e dizer que os estabelecidos são o grupo de
reconhecidos, e como citado podemos associar à personagem “Pai José” criada pelo padre,
nos diz também sobre os outsiders e em um determinado momento, conclui que o próprio
grupo de não reconhecidos, se aceitam como tal, tomando como verdade, aquilo que os
estabelecidos dizem. É esse recorte social e a representação que cada grupo da de si mesmo,
como mencionado por Chartier (1989).
Os escravos, ao efetuarem suas funções, determinadas pelos estabelecidos, entoando
cantos, justificadas no filme com estrema gratificação por ser um trabalho destinado à Nossa
Senhora Aparecida, pode ser interpretado, como essa aceitação dos outsiders, colocado por
Elias (2000), e uma representação imposta pelos que detém o poder de classificar, como no
trecho de Chartier (1989).
Metodologicamente, partimos das reflexões de Marcos Napolitano (2008), em seu
livro “A história depois do papel”, e das discussões de Sandra Pesavento (2008) em
“Narrativas, imagens e práticas sociais”.
Na obra de Marcos Napolitano, ele nos apresenta o cinema como um meio de
comunicação que vem evoluindo constantemente, com sons e imagens cada vez mais
realistas, e junto com sua crescente notoriedade, ganha também seu espaço na pesquisa
histórica. O elemento base do cinema é a imagem, que segundo Sandra Pesavento “(...)são, e

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tem sido sempre, um tipo de linguagem, ou seja, atesta uma intenção de comunicar, que é
dotada de um sentido e é produzida a partir de uma ação humana intencional. ”
No filme “O milagre das águas”, o qual utilizamos como fonte do projeto, não
transmite imagens fortes dos sofrimentos da escravidão. A forma como os escravos são
retratados, por vezes sorridentes e entoando canto a “Virgem Negra”, nos faz perceber a
forma como o diretor e os patrocinadores decidiram trabalhar o formato do filme, utilizando
de imagens “leves”, para que a evangelização seja cumprida com sucesso.
Um aspecto destacado por Pesavento é que a imagem retém um conteúdo que impede
que imaginemos, seja o contexto, seja o personagem, seja a trama; além daquela que nos é
mostrada. A forma como nos é transmitido a imagem (do negro no caso), faz com que
fiquemos atentados somente à elas, por vezes esquecendo todo sofrimento que os passaram no
período retratado.
Sobre a forma como o historiador analisa uma obra cinematográfica, Napolitano
afirma que mesmo que o historiador tente manter os itens técnicos fora da análise, para que
seu trabalho não se confunda com a de um crítico, por exemplo, estes se fazem necessário,
sob pena de enviesar a análise. Conhecer o diretor e a forma como ele trabalha, nos ajuda a
compreender a obra cinematográfica; a intenção do diretor e/ou do patrocinador do filme, e o
seu possível público alvo. As referências que os receptores obtêm, serão fundamentais para
compreensão do que a produção do filme quer passar, porém cada pessoa a receberá de uma
forma, pois cada um interpreta de uma maneira.
Napolitano parte da premissa que o pesquisador deve perceber as ambiguidades das
imagens que nem sempre conseguem apresentar uma leitura coerente e unívoca do fato
histórico.
Em suma, buscamos com o projeto de pesquisa que realizaremos, e que aqui
apresentamos enquanto artigo, é refletir sobre a forma como o filme representa a figura do
escravo e sua relação com Nossa Senhora Aparecida.

Referências Bibliográficas
JORGE, Marcos J.; PELAQUIN, Ronoaldo. “O milagre das águas”. Produção de: Ronoaldo
Pelaquin. Direção: Ronoaldo Pelaquin e Marcos J. Jorge. São Paulo, 1987. 1:25:50.
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História das Religiões, Literatura, Conceitos e Identidades – Vol. VI – ISSN 2359-6988

Uma discussão sobre “peregrinação” e “tribo” a partir do “Hallel” de Maringá-Pr

Mariane Rosa Emerenciano da Silva255

Resumo: Esse trabalho propõe pensar como o “Hallel” de Maringá-PR se configura enquanto
um local de “peregrinação” e “transito” de leigos entre “módulos” temáticos. Apresentando-se
como um evento religioso promovido pela comunidade laica e apoiado pela Arquidiocese de
Maringá, o “Hallel”, na cidade, teve sua primeira edição no ano de 1995 e no ano de 2015
completou sua 21ª edição. Parte-se do periódico O Diário do Norte do Paraná como fonte de
pesquisa histórica, priorizando as edições dos anos de 1997 à 1998. Na perspectiva de refletir
como o leigo é categorizado em determinado “campo religioso”, nos respaldaremos nas
considerações de Pierre Bourdieu (2007). Contribuem, também, as discussões sobre
“peregrinação”, de Danièle Hervieu-Léger (2008), e “tribos”, de Maffesoli (1998).
Palavras chave: Hallel de Maringá; Peregrinação; Tribos, Campo Religioso

A discussion of “pilgrimage” and “tribes” from the “Hallel” from Maringá-PR

Abstract: In this paper, we propose the thinking of the “Hallel” from Maringá-PR configured
as a place for “pilgrimage” and “transit” of lay people between thematic “modules”. Showing
itself as a religious event promoted by the lay community and supported by the Arquidiocese
de Maringá, “Hallel” had its first edition in 1995, and in 2015 it completed 21 years. Using
the periodic O Diário do Norte do Paraná as a source for the historic research, we gave
priority to the 1997’s and 1998’s editions. With the perspective of thinking how the lay
person is categorized in a specific “religious field”, based on Pierre Bourdieu (2007)
considerations. Danièle Hervieu-Léger’s (2008) discussions about “pilgrimages”, and
Maffesoli’s (1998), dealing with “tribes”.
Hallel de Maringá; Pilgrimage; Tribes, Religious Field

O presente trabalho é desdobramento projeto de iniciação cientifica “Festa


Religiosidade: reflexões acerca do Hallel (Maringá/ PR, 1995-2016)”. Temos como intuito é
pontuar algumas reflexões como o “Hallel” de Maringá-PR se configura enquanto um local
de “peregrinação” e trânsito de leigos entre “módulos” temáticos. Contribuem, também, as
discussões sobre “peregrinação”, de Danièle Hervieu-Léger (2008), e “tribos”, de Maffesoli
(1998).
Construir ou problematizar um conhecimento das ciências humanas implica em
conhecer o que é objeto, e o que é conhecer um indivíduo. Deve-se levar em consideração que
o historiador, é tão sujeito da história quanto seu objeto. No artigo publicado em 2012, por
255
Bolsista de Iniciação científica – CNPq. Graduanda do Curso de História da Universidade Estadual de
Maringá – PR. Membro do Laboratório de Estudos em Religiões e Religiosidades (LERR) – UEM. Contato:
marianer.emerenciano@gmail.com.

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Solange Jobim e Souza, e Elaine Deccache Porto e Albuquerque, A pesquisa em ciências


humanas: uma leitura bakhtiniana, as autoras expõe a duplicidade de “ser sujeito e, ao
mesmo tempo objeto de conhecimento – exige que as ciências humanas se definam a partir de
uma problemática que lhes seja própria e de um campo especifico de exploração”
(ALBUQUERQUE; SOUZA, 2012, p.110). Ambas enfatizam, que o encontro do pesquisado
com o outro deve ser regida por uma produção de conhecimento dialógico e de alteridade. A
alteridade nesse caso, não se limita apenas à consciência da existência do outro, e nem se
reduziria ao diferente, mas comporta também o estranhamento e o pertencimento.
As autoras analisam a compreensão do sujeito por meio, de uma leitura explicita por
Mikhail Bakthin, e citam a seguinte questão “a compreensão que o sujeito tem de si se
constitui através do olhar e da palavra do outro. Cada um de nós ocupa um lugar espaço-
temporal determinado, e deste lugar único revelamos o nosso modo de ver o outro e mundo
físico que nos envolve” (ALBUQUERQUE; SOUZA, 2012, p.112). Nesse sentido, podemos
observar que tanto o pesquisador lança um olhar de compreensão sobre seu objeto, quanto seu
objeto pode apreender o que um pesquisador descreve sobre ele. Seria uma questão de se
perceber, se identificar em relação ao que o outro enuncia. “Nossa individualidade não teria
existência se o outro não a criasse” (ALBUQUERQUE; SOUZA, 2012, p.112). E ainda
ressaltam:
Pensar pesquisa em ciências humanas como um modo especial de acontecimento na
vida implica levar em consideração que a compreensão dos temas que se quer
investigar se dá a partir de confrontos de ideias e negociação de sentidos possíveis
entre o pesquisador e os sujeitos [...]. O pesquisador não está só na cena da pesquisa,
o grande desafio diz respeito a sua disponibilidade de se deixar surpreender pelo
encontro/confronto que acontece no campo com os sujeitos da pesquisa
(ALBUQUERQUE; SOUZA, 2012, p.112).

Pensando nessas particularidade sobre a ciência humana, fazemos algumas reflexões


sobre um evento de música católico, O Hallel. Em que já pontuamos no começo desse
trabalho, é o nosso objeto de pesquisa. A palavra de origem bíblica significa ‘Aleluia’.
Encontrada no livro dos Salmos, nos respectivos capítulos: 105, 106, 110, 111, 112, 113,
114, 116, 117, 134, 135, 145, 148, 149 e 150.
Uma das fontes escritas utilizada no projeto é o jornal O Diário do Norte do Paraná
apresenta, por meio, de D. Jaime o primeiro Arcebispo da Arquidiocese de Maringá. O
seguinte trecho sobre o nome do evento,

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Etimologicamente, a palavra vem da língua hebraica onde o louvor é traduzido de


forma mais característica como “HILLEL”. É uma explosão de hinos e cantos de
louvor com o qual se designava, na antiga sinagoga, um grupo de Salmos (Sal 113-
118), os quais se utilizavam especialmente em circunstâncias solenes e festivais. O
mesmo se vê na tradição rabínica, de um “grande” Hallel. Cantavam-se salmos, na
alegria e nas tristezas, mas sempre no louvor a YAHVEH, o Deus supremo,
AQUELE QUE É, o louvor a um Deus VIVO. Não são os mortos que louvam ao
Senhor, mas os que estão vivos (O DIÁRIO DO NORTE DO PARANÁ, 1995, p.2,
grifo do autor).

Hallel seria a grande manifestação do povo que louvava a Deus através dos sons de
instrumentos musicais e da dança256. Esse nome é dado a um dos maiores eventos de músicas
católicos da América Latina. O primeiro Hallel foi organizado pela Renovação Carismática
Católica na cidade de Franca-SP, no ano de 1988. No ano de 1995 a cidade de Maringá é
convidada a realizar a primeira edição do Hallel Maringá, sendo seus organizadores O Projeto
Mais Vida, com apoio da Arquidiocese. O evento é realizado em outras cidades: Brasília- DF,
Aparecida do Norte- SP, Ribeirão Preto- SP, Restinga- SP, Cubatão- SP, Piraju- SP, Tabuão
da Serra- SP, Londrina- PR, Florianópolis- SC, Campo Grande- MS, Paracatu- MG,
Uberlândia- MG, João Pessoa- PB e Fortaleza- CE257. O evento ainda apresenta algumas
edições em outros países, como: Chile, Peru, Paraguai, Colômbia, México, EUA258, entre
outros.

256
A palavra Hallel é de origem aramaica e significa cântico de louvor a Deus, uma música que celebra a Vida.
Os salmos bíblicos fazem referência à exaltação dos cantos e da música através dos sons de instrumentos
musicais e da dança. O Salmo 135 (136) era especialmente recitado na Páscoa. O Salmo 150 é um convite a para
que todos os instrumentos musicais e todos os seres vivos louvem à Deus. Nos dias atuais, em lugar de cítaras,
harpas, liras e trombetas, ouvimos guitarras, baterias, teclados, percussão, baixos, microfones, vozes e efeitos
especiais, com qualidade para que o anúncio de Jesus Cristo chegue às pessoas, de qualquer idade, nível social,
etnia ou credo, possibilitando que todas encontrem seu espaço. Esse trecho e no site oficial do evento.
Disponível em: http://www.hallelmaringa.com.br/about/historia/. Acesso em:18 de mar. de 2016.
257
Vide o site do Hallel de Franca. Disponível em: http://hallel.org.br/hallel-evento/hallel-pelo-brasil/. Acesso
em: 16/01/2017.
258
Disponível em: http://hallel.org.br/hallel-evento/hallel-pelo-mundo/. Acesso em: 16/01/2017.
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Imagem 1: Hallel Maringá- Pr (2015)


Fonte: Arquivo pessoal

O nome do evento nos leva a considerar a realização do Hallel como um dia festivo,
com muita música, dança, palestras, missas, aberto a toda comunidade, “o Hallel é uma festa
que envolverá todas as pessoas de todas as faixas etárias das mais variadas formas” (O
DIÁRIO DO NORTE DO PARANÁ, 1995, p.4).
O evento em Maringá é Organizado no Parque de Exposição Francisco Feio Neto
(Imagem 2), numa área total de 248 mil metros quadrados. A (imagem 3), é um mapa
distribuído pelo organizadores, para as pessoas que participam do Hallel. Podemos observar
como o evento é dividido e organizado em capelas (Capela do Silêncio e Capela do Louvor),

palco central (com missas e bandas) e os módulos.

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Imagem 2: Parque de Exposição Francisco Feio Ribeiro. Disponível em:


http://www.srm.org.br/site/estrutura. Acesso em: 21/11/2016.

Imagem 3: Mapa Hallel 2015


Fonte: Arquivo pessoal.

A imagem 4, representa a programação e atividades desenvolvidas nas edições do


Hallel de 1998.

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Imagem 4: Programação Hallel 1998- Diário do Norte do Paraná.


Fonte: Arquivo pessoal

Logo abaixo citamos as atividades do ano de 1999, que nos leva a observar que a
programação muda, ou seja, os módulos podem ou não permanecer.
Teremos montados no parque diversos módulos de evangelização com capacidade
para 250 a 400 pessoas onde serão falados de temas específicos. Desta forma temos,
por exemplo, módulo de Maria (palestras sobre Nossa Senhora), módulo do
matrimonio, módulo do namoro, módulo de pessoas especiais (palestras com assunto
ligado a pessoas excepcionais) módulo da música, módulo da prevenção e combate
às drogas (depoimentos de ex-dependentes, palestras), módulo da Renovação
Carismática, módulo do cursilho, módulo do movimento familiar cristão, módulo de
evangelização dos colégios Regina Mundi e Marista (O DIÁRIO DO NORTE DO
PARANÁ, 1999, p.04).

É necessário enfatizar, que nos módulos além de palestras a música é um dos


principais instrumentos de evangelização. “Os módulos são temáticos, com palestras sobre
assuntos como família, Nossa Senhora e Namoro. Existem módulos com palestras para
músicos e até de heavy metal” (O DIÁRIO DO NORTE DO PARANÁ, 2006, p. D-2).
Diante dos dados citados, percebemos que há uma liberdade de trânsito para
frequentar os módulos, capelas e palco central. Sendo assim, as pessoas podem participar das
atrações que mais lhe chamem atenção, e que mais se identifiquem. A peregrinação consiste
justamente na procura de um grupo, comunidade, ou como define Michel Maffesoli (1998)
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em O tempo das tribos de uma “tribo”, na qual exista o sentido de “pertença”. Danièle
Hervieu-Léger (2008) em O peregrino e o convertido: a religião em movimento, pontua a
significância da crença e como essa pode estar vinculado aos elementos de identificação.
Podemos atribuir a definição de peregrinação para um quadro mais reduzido, se por
um lado a autora expõe a peregrinação de jovens que de forma voluntária que a cada dois anos
se reúnem em volta do papa na jornada mundial da juventude (JMJ). A religião, referimo-nos
no presente trabalho ao catolicismo, não se configura de maneira homogênea. É perceptível
que os métodos para atingir os fiéis são os mais copiosos. Levando em consideração que os
indivíduos apreender e interpretam de forma distintas as manifestações religiosas. Sendo
assim existe uma forte presença peregrina dentro de uma determinada religião, como a
formação das mais variadas congregações (franciscanas, beneditinas, marianas), grupos de
orações formado por leigos.
Podemos observar que o Hallel de Maringá é uma festa que utiliza a música como
instrumento de evangelização. Mas sua configuração em “módulos” possibilita uma
peregrinação dos participantes na procura de alguns gêneros musicais, assim como, na
discussão de determinados assuntos, por meio das pregações e palestras. Estamos falando de
um lugar que propõe um transito de troca de experiência, com uma relação entre os próprios
participantes que costumam participar do evento em grupos. Como dos músicos e palestrantes
que participam do Hallel.
Uma das características dos eventos peregrinos é a pluralidade e autonomia. Os
participantes (Hervieu-Léger, discorre principalmente sobre os jovens) não se sentem
obrigados a estarem nesses lugares, as atividades propostas permite avaliar as ofertas
espirituais dentro do próprio catolicismo. “Um aspecto merece particular atenção: a gestão do
pluralismo que permite, num contexto de avançada diminuição da desregulação institucional,
a combinação da peregrinação e do agrupamento emocional que caracteriza as peregrinações
contemporâneas” (HERVIEU-LÉGER, 2008, p.103).
Ao pensar no contexto em q o Hallel se organiza, enfatizamos o primeiro Hallel o de
Franca no ano de 1988. Que se inspirou no evento Rock in Rio (1985) percebe-se que ocorre
o que Maffesoli (1998) menciona como "tribalismo". O "tribalismo" ou "tribos" segundo o
autor seria uma das características da Modernidade. Ocorre uma nova construção social, no
qual se perde a presença do individualismo em função do solidarismo. As pessoas procuram

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comunidades que possibilitem uma identificação. Nesse sentido, as "máscaras" são elementos
fundamentais de pertença a uma determinada comunidade.
Em seu artigo sobre ‘A sociedade secreta’ G. Simmel insiste, aliás, no papel da
máscara, da qual se sabe que tem, entre outras funções, a de integrar a ‘persona’
numa arquitetura de conjunto. A máscara pode ser uma cabeleira extravagante ou
colorida, uma tatuagem original, a reutilização de roupas fora de moda, ou ainda o
conformismo de um estilo ‘gente bem’. Em qualquer caso ela subordina a persona a
esta sociedade secreta que é o grupo afinitário escolhido. Aí existe a ‘des-
individualização’, a participação, no sentido místico do termo, a um conjunto mais
vasto (MAFFESOLI, 1998, p.128).

Por mais indicativos que se tenha da sociedade Moderna como sendo individualista,
Maffesoli enfatiza que o indivíduo não legítima por si suas ações, não haveria nenhum
destaque se esse agir só. Sendo, assim, pertencer a uma tribo atribui significância para suas
expressões e manifestações. Citação de Maffesoli:
Agora, cada vez mais, nos damos conta de que mais vale considerar a sincronia ou a
sinergia das forças que agem n a vida social. Isso posto, redescobrimos que o
indivíduo não pode existir isolado, mas que ele está ligado, pela cultura, pela
comunicação, pelo lazer, e pela moda, a uma comunidade, que pode não ter as
mesmas qualidades da idade média, mas que nem por isso deixa de ser comunidade
(MAFFESOLI, 1998, p.114).

Uma das questões pontuadas pelo autor é o relativismo que se prepondera. Apesar da
dualidade criada no que consiste pertencer uma tribo, como o de segregação, racismo ou
ostracismo de se identificar com uma determinada comunidade em detrimento da outro. Por
outro lado, pode ocorrer a criação de uma nova cultura. No Hallel, por exemplo, foi a
utilização de uma música profana o rock, com letras que mencionassem o sagrado.
Diante disso Pierre Bourdieu (2007) em Gênese e Estrutura do Campo Religioso,
contribui com a análise de “campo religioso”. No qual, a religião estaria contribuindo para
uma imposição dos princípios de estruturação da percepção e do pensamento mundo.
Segundo Bourdieu (2007), a racionalização da religião estaria na transferência da
noção de pureza do mágico para o moral, ou seja, a religião como aporte moral de percepção
do mundo, a busca de viver sem pecado para a salvação.
O reconhecimento social que os o corpo específico que detêm o conhecimento ou
monopólio de salvação, parte justamente dos leigos que acabam por assumir que se
desconhecem como tal. No entanto, necessitam de indivíduos com tais qualificações, que
produzam e reproduzam esses meios. Uma autoridade no assunto para, que se possa entender
como agir de forma a serem salvos.

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Quando se expõe a questão de ser qualificado para assumir o monopólio religioso de


salvação, aqueles que a buscam estaria em um grupo inferior aos que a apresentam os meios
de salvação: “A desapropriação objetiva designa tão-somente a relação objetiva que os grupos
ou classes ocupando uma posição inferior na reestrutura da distribuição dos bens religiosos,
estrutura que se superpõe à estrutura da distribuição dos instrumentos de produção religiosa”
(BOURDIEU, 2007, p 39).
Apesar de Bourdieu (2007) apresentar que haveria um acumulo de conhecimento e
capital religioso e depois distribuído ocorreria de forma inevitável a pauperização religiosa a
sua desvalorização, e ainda ressalta “a separação simbólica entre o saber sagrado e a
ignorância profana que o segredo exprime e reforça” (BOUDIEU, 2007, p. 40). As diferentes
formações de grupos sociais desenvolveria a diferenciação de seu aparelho religioso, sua
conservação, reprodução, difusão e produção. O que poderia separar em duas situações, o
autoconsumo religioso e monopolização completa da produção religiosa por especialistas.
Observamos que apesar da tentativa de monopólio por parte dos especialistas, a
religiosidade nem sempre será apreendida da forma que esses a propõe. O autoconsumo
religioso estaria vinculado as necessidades e formas diferentes que os homens se relacionam
com o seu meio, ou seja, a sociedade a que está inserido. Para Bourdieu:
A oposição entre os detentores do monopólio da gestão do sagrado e os leigos,
obviamente definidos como profanos, no duplo sentido de ignorantes da religião e
de estranhos ao sagrado e ao corpo de administradores do sagrado, constitui a base
do princípio da oposição entre sagrado e o profano e paralelamente, entre a
manipulação legítima (religião) e a manipulação profana e profanadora (magia ou
feitiçaria) do sagrado, quer se trate de uma profanação objetiva [...], quer se trate da
profanação intencional [...].
Uma vez que a religião, e em geral todo sistema simbólico, está predisposto a
cumprir uma função de associação e de dissociação, ou melhor, de distinção, um
sistema de práticas e crenças está fadado a surgir como magia ou feitiçaria, no
sentido de religião inferior, todas as vezes que ocupar uma posição dominada na
estrutura das relações força simbólica, ou seja, no sistema das relações entre o
sistema de práticas e de crenças próprias a uma formação social determinada
(BOURDIEU, 2007, p.43).

A religião em sua qualidade de sistema simbólico, funciona como estrutura que


constrói a experiência, ao mesmo tempo que a expressa. Uma das principais questões
pautadas por Bourdieu (2007), é a estrutura que a religião atente a respeito dos interesses da
posição. A religião seria um meio para identificar essa posição social e até mesmo diferencia-
la. O autor nos relata o seguinte:

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As relações de transação que se estabelecem, com base em interesses diferentes,


entre os especialistas e os leigos, e as relações de concorrência que opõem os
diferentes especialistas no interior do campo religioso, constituem o princípio da
dinâmica do campo religioso e também das transformações da ideologia religiosa
(BOUDIEU, 2007, p. 50).

O que ele conclui é que, quanto maior for a distância econômica, social e cultural entre
os grupos dos produtores, o grupo dos divulgadores e dos receptores, mais ampla será a
reinterpretação. No sugere também que a cada formação de social e em cada época, será
adaptada nas condições de visão mundo. Exemplo disso, temos as igrejas cristãs, que devem
sua sobrevivência devido a sua capacidade de transformação à medida que se modificam as
funções que cumprem em favor dos grupos que as adotam.
Observando essas adaptações, podemos compreender um pouco mais sobre os
diferentes métodos utilizados pelas igreja. O objeto que estudamos, por exemplo, o Hallel é
um movimento da Igreja Católica, organizado por leigos que praticam a religião mencionada.
O evento reuni música, dança, pregação, palestras, entre outras atividades que estão segundo
seus organizadores vinculadas a uma “nova” forma de evangelização.
O que autor relata, diz respeito ao interesse do religioso dos diferentes grupos, que são
utilizados como estratégias, de sobrevivência da religião. Ou seja, não seria desistir de fato do
monopólio pela salvação dos bens, e sim continuar como detentores desses métodos,
articulando de forma flexível para que os leigos se tornem ou permaneçam adeptos ao seus
discursos de salvação. O que devemos refletir é que a religião não sobreviverá sem fieis,
ocorre a necessidade de adaptação é inquestionável, deve se colocar a serviço da satisfação
dos grupos que as procuram.
Em virtude da autonomia relativa do campo religioso como mercado de bens de
salvação, as diferentes configurações historicamente realizadas da estrutura das
relações entre as diversas instâncias em competição pela legitimidade religiosa
podem ser encaradas como momentos de um sistema de transformações”
(BOURDIEU, 2007, p.59).

Essa citação de Bourdieu (2007), vai ao encontro da reflexão sobre a “peregrinação” e


“tribo”. No consiste a autonomia do indivíduo, de se identificar, e legitimar o “campo
religioso”. Os especialistas, visam oferecer o que os leigos buscam. E adaptar-se ao anseio
desses. Oferecer atividades, com diversos temas e métodos (música, palestra) é uma forma de
estar atendendo a procura desses indivíduos que estão peregrinando, seja na própria religião,

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ou de religião pra outra. E que se identificam, como uma determinada tribo. Tanto no que
consiste um gênero musical (sertanejo, rock), ou grupos de oração.
Ao pensar na discussão de Bourdieu (2007), pontuamos uma questão que nos é
importante realizada por Michel de Certeau (1998) analisa o conceito de “estratégia” em
Fazer com: usos e táticas na obra A invenção do cotidiano. A tática estaria vinculada a alterar
e manipular uma circunstância. Enquanto a estratégia é capaz de produzir, mapear e impor,
assim percebemos que a distinção entre uma e outra estão nos tipos de operação. O autor
mostra que é preciso especificar esquemas de operações, distinguir as maneiras de fazer.
Começaremos por tentar compreender as questões de “uso” e “consumo” ponderadas
pelo autor. O primeiro termo para Certeau (1998), “trata-se precisamente de reconhecer ações
(no sentido militar da palavra) que são a sua formalidade e sua inventividade próprias e que
organizam em surdina o trabalho de formigas do consumo” (CERTEAU, 1998, p. 93). O
segundo termo mencionado trata “de uma produção racionalizada, expansionista, centralizada,
espetacular e barulhenta, posta-se uma produção de tipo totalmente diverso, qualificada como
consumo” (CERTEAU, 1998, p. 94). Esse consumo estaria ligado de certa forma a uma arte
de utilizar produtos que são impostos aos indivíduos. |
Uma questão pontuada pelo autor seria o fato de que, as representações, práticas e leis
a serem consumidos nem sempre serão assimiladas de forma que seus produtores estão a
propor,
os conhecimentos e as simbólicas impostos são o objeto de manipulações pelos
praticantes que não seus fabricantes. A linguagem produzida por uma categoria
social dispõe do poder de estender suas conquistas às vastas regiões do seu meio
ambiente [...] existe um distanciamento mais ou menos grande do uso que faz deles
(CERTEAU, 1998, p. 95).

É importante ressaltar, que a produção para consumo não se detêm ao que seria a
forma correta de usar um produto, essa se empenha em contabilizar aquilo que é usado.
Estratégia, seria o cálculo das relações de forças, que se torna possível a partir do momento
em que um sujeito de querer e poder pode ser isolado. Essa estaria postulada em lugar
próprio, e seria utilizada mediante a um alvo ou ameaça exterior. “Como na administração de
empresas, toda racionalização estratégica procura em primeiro lugar distinguir de um
ambiente próprio, isto é, o lugar do poder e do querer próprios” (CERTEAU, 1998, p. 99). A
estratégia, segundo Certeau (1998) seria um tipo especifico de saber, e o poder do saber. É

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definido por ele como legítimo, por sua capacidade de transformar as incertezas da história
em espaços legíveis.
A discussão a que nos propomos, leva-nos a considerar as seguintes questões sobre o
Hallel de Maringá. É um evento contemporâneo, que nos faz refletir sobre questões apontadas
por de Danièle Hervieu-Léger (2008) e Maffesoli (1998), no que consiste algumas
características dos homens modernos. Que é a busca por identidade e pertencimento a um
determinado grupo. Nesse sentido, damos ênfase a busca dos peregrinos, levando em
consideração que esses acabam por ser representado pelos leigos. Bourdieu (2007), como
“campo religioso”, nos permite observar a relação entre os “especialistas” e “leigos”. Os
especialistas em busca do monopólio de salvação, arqueiam “estratégias” para atender esses
fieis. Os fieis são consumidores, e a Igreja seria a empresa a fornecer os produtos de consumo,
o fato é que se os consumidores migram e não estão satisfeitos com as estratégias antes
utilizadas pela empresa. Essa deve recorrer a novos meios de mostrar que seus serviços ainda
são favoráveis, e que poderão corresponder as novas exigências dos seus consumidores. Os
módulos, capelas, bandas e atividades que visualizamos no Hallel de Maringá, são meios de
se adaptar as várias “tribos” que a modernidade postula.

Referências Bibliográficas

ALBUQUERQUE, Elaine Deccache Porto e; SOUZA, Solange Jobim e. A pesquisa em


ciências humanas: uma leitura bakhtiniana: Bakhtiniana, São Paulo, 7(2), p.109-122, jul./dez.
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BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. 7ª edição – São Paulo. Perspectiva,
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CERTEAU, Michel. Fazer com: usos e táticas. In: A Invenção do cotidiano. Petropolis,
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História das Religiões, Literatura, Conceitos e Identidades – Vol. VI – ISSN 2359-6988

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O DIÁRIO DO NORTE DO PARANÁ. Programação, Maringá, p. B-01, 05 set. 1998
O DIÁRIO DO NORTE DO PARANÁ. O que é o Hallel, Maringá, p.04, 04 set. 1999
O DIÁRIO DO NORTE DO PARANÁ. Uma presença constante, Maringá, p. D-2, 03 e 04
set. 2006.

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RELIGIOSIDADES - ANPUH
História das Religiões, Literatura, Conceitos e Identidades – Vol. VI – ISSN 2359-6988

O Diário de Irmã Dubost: construção da subjetividade de uma vicentina no XIX


(Mariana-MG, 1849-1858)
Melina Teixeira Souza259
Resumo: Com o propósito de fundar o primeiro colégio feminino do Império em
Mariana/MG, as Filhas da Caridade enfrentam a travessia marítima de Paris ao Rio de Janeiro
e prosseguem viajando a cavalo. Sabendo da densidade da missão, Irmã Dubost começa um
diário e, ao chegar ao seu destino, envia correspondências mensais para seus superiores. O
intuito de estudar a construção da subjetividade da madre a partir de sua produção
autorreferencial motiva a reconstituição da vida religiosa feminina no Brasil, bem como a
análise do fascínio por produções de caráter biográfico e sua relação com o alvorecer da
modernidade. A investigação revela que, dentre as delimitações identitárias mobilizadas pelo
ato autobiográfico, o pertencimento à congregação se sobressai: afirma-se que, ao relacionar
vida religiosa ao esforço missionário, as vicentinas ampliam o espaço de atuação do gênero
numa instituição reticente ao protagonismo de mulheres, o que favorece o estabelecimento de
laços grupais.
Palavras-chaves: vida religiosa feminina; ordens religiosas; escrita autobiográfica

Sister Dubost’s journal: construction of the subjectivity of a Vincentian in the 19th


century (Mariana-MG, 1849-1858)
Abstract: With the purpose of founding the Empire’s first girls’ school in Mariana/MG, the
Daughters of Charity face the sea crossing from Paris to Rio de Janeiro and continue traveling
on horseback. Knowing the density of the mission, Sister Dubost begins a journal and, upon
arriving at her destination, sends a monthly correspondence to her superiors. The intent of
studying the construction of the mother's subjectivity from her self-referential production
motivates the reconstitution of women’s religious life in Brazil, as well as the analysis of the
fascination for biographical productions and their relation to the dawn of modernity. The
research reveals that, among the identity delimitations put into motion by the autobiographical
act, belonging to the congregation stands out: it is claimed that, by relating religious life to the
missionary effort, the Vincentians extend the space of action of the gender in an institution
reticent to the protagonism of women, which favors the establishment of group bonds.
Keywords: women's religious life; religious orders; autobiographical writing

Considerações iniciais
No dia 28 de novembro de 1848 o “Estrela da Manhã”, embarcação que reunia solene
comitiva composta por seis padres, doze freiras da congregação das Filhas da Caridade de São
Vicente de Paulo, e ainda, três irmãos coadjutores, enfunou suas velas e deixou o porto de
259
Graduação em História pela Universidade Federal de São João del Rei (2008), Mestre em História pela
Universidade Federal de Ouro Preto (2012). Doutorado em andamento pela Universidade Federal Fluminense
(2016). Professora da Secretaria de Educação do estado de Minas Gerais. Tem experiência na área de História,
pesquisando principalmente os seguintes temas: Historiografia religiosa, Congado/Reinado, Escrita de si.
Endereço eletrônico: melufsj@yahoo.com.br.
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Havre, norte da França, seguindo em direção ao Brasil, mais precisamente ao município de


Mariana, Minas Gerais. A travessia dos religiosos rumo ao continente sul-americano ganha
ares de admirável epopeia, já que eles enfrentam, além da extensa peregrinação marítima,
também um longo percurso a cavalo até a chegada ao seu novo lar, partindo do Rio de
260
Janeiro. Irmã Dubost, designada Madre Superiora das Filhas da Caridade no Brasil,
registra nas páginas de seu diário de bordo que, em sua pregação de despedida, o Superior
Geral da confraria em Paris, padre Etienne, tece comparações entre o navio Estrela da Manhã
e a Arca de Noé:
Fazendo alusão à Arca de Noé, que continha os elementos da nova geração, esse
bom Pai comparou-o ao nosso navio “Estrela da Manhã”, encerrando a esperança
de todo um país. “Partam, pois, disse-nos ele. Partam com alegria, tendo em uma
das mãos o archote da fé e, na outra, a chama da caridade. Partam, São Vicente vela
por vocês, e Maria os conduzirá ao porto; nada tem a temer...” 261

O então bispo de Mariana, religioso da Congregação da Missão, Dom Antônio Ferreira


Viçoso, era natural de Peniche, região próxima a Lisboa, e caracterizava-se por uma trajetória
eclesiástica atrelada ao empenho no incremento da educação em solos tupiniquins, estando à
frente da fundação e reforma de diversos estabelecimentos de ensino, tais como, os Colégios
do Caraça, de Congonhas do Campo, de Campo Belo da Farinha Pobre (Campina Verde), o
Seminário de Mariana (ROCHA, 2008, p. 77). Assim, o comprometimento do prelado na
vinda das Filhas da Caridade ao Brasil representa uma iniciativa pioneira no tocante à
instrução de mulheres no Império, já que tal presença resultou na fundação do primeiro
colégio religioso feminino de Minas Gerais no ano de 1849, o Providência (BICALHO;
LOPES, 1993, p. 51), tratando-se, igualmente, de marco salutar na história da vida religiosa
feminina local, haja vista que, até então, “só se conhecia no país, a forma enclausurada de
vida religiosa” (NUNES, 1985, p. 26).
A congregação das Filhas da Caridade foi instituída em Paris no ano de 1633, em meio
a um contexto problemático, em que a cidade abrigava considerável número de indivíduos
miseráveis e doentes, “às calamidades naturais, acrescentavam-se as políticas, guerras civis e
religiosas” Tal conjuntura, de acordo com a historiadora da educação Eliane Lopes, favorecia

260
AEAM [Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana], Casa da Providência. DUBOST, Irmã, A bordo
do “Estrela da Manhã”. Tradução de Irmã Celza Kubitschek de Figueiredo. Nov/1848 a fev/1849.
261
AEAM, Casa da Providência. DUBOST, Irmã, A bordo do “Estrela da Manhã”. Tradução de Irmã Celza
Kubitschek de Figueiredo. Nov/1848 a fev/1849. p. 14.
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a prática da caridade, atividade virtuosa que seria, maiormente, feminina. O padre Vicente de
Paulo, em parceria com a viúva Louise de Marillac, funda então uma congregação, cujos
princípios basilares afastavam-se da concepção de vida enclausurada reservada aos conventos
femininos (LOPES, 1991).
Abria-se, assim, um precedente em relação aos estatutos das demais ordens ou
congregações femininas do século XVII no que tange à autonomia necessária para se exercer
a caridade, a qual passa a envolver a possibilidade do trânsito.262 Ao eleger como um de seus
alicerces o princípio da caridade, em consonância à humildade e à simplicidade, a
congregação das Filhas da Caridade, talvez mesmo sem um entendimento ou militância
favorável à emancipação das mulheres em relação à tutela de seus pais e/ou maridos, propicia
um inegável alargamento no espaço de atuação das mesmas, autorizadas assim, a transitar por
locais distantes, buscando um ansiado contato com os desvalidos. E é sob tal prima que a
chegada das vicentinas ao Brasil, em meados do Oitocentos, deve ser elucidada, como um
acontecimento digno de nota para a dilatação da arena de ação das mulheres religiosas no
país. Logo, saber como este fato se deu, ainda mais em um cenário marcado pelo dinamismo
cultural como o município de Mariana, é alvo de interesse desta pesquisa.
A chegada das Filhas da Caridade em Mariana possui notória relevância no campo da
instrução formal feminina. Tendo-se em vista a interdição do estabelecimento de ordens
religiosas nas Minas, os chamados recolhimentos obtiveram centralidade na região. Tratando-
se, tais locais, por definição, de “casas de reclusão para mulheres que poderiam, mais tarde,
transformar-se em conventos, mas não eram estabelecidos canonicamente” (LOPES, 1991, p.
35.), pode-se considerar o Recolhimento de Nossa Senhora das Macaúbas, situado em área
correspondente aos arredores do município de Santa Luzia no tempo presente, como
instituição na qual, desde o início do século XVIII, se concentraram as primeiras iniciativas
visando uma educação formal para as filhas das famílias mais proeminentes do estado.
Segundo estudo voltado para o cotejamento do discurso episcopal acerca da formação
feminina empreendida no seio do estabelecimento, tratavam-se de “ideias de educação
promovidas por uma instituição católica fortemente ligada aos bispos e financiada pelas
próprias famílias, ressaltando o caráter privado e elitista dos primórdios da educação feminina

262
Tal prerrogativa desembocou, visando-se à unidade da confraria, na subordinação das Filhas da Caridade ao
Superior dos Padres da Missão, e não ao bispo da localidade onde a casa seria instituída.
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em Minas Gerais” (ROCHA, 2008, p. 11-12). O ensino professado em tais locais


disseminados pelo país, mostrava-se bastante incipiente. Neste sentido, a chegada das Filhas
de Caridade à Mariana e a fundação do primeiro colégio religioso feminino de Minas Gerais,
em meados do século XIX, representam o empenho de um bispo em capitanear, na extensão
de seus domínios episcopais, uma significativa guinada nas precárias condições de instrução
para mulheres verificadas de forma geral no Império.
A empreitada da comitiva das doze vicentinas, deste modo, não era nada desprezível.
Consciente da densidade de seu encargo, Irmã Dubost, freira tornada Superiora da
congregação no Brasil, serve como porta-voz das expectativas de seus líderes na França: “dir-
se-ia que elas [esperanças de êxito na missão] faziam parte do Conselho do Senhor numa
antevisão das abundantes bênçãos que seriam derramadas sobre o povo do Brasil. Não sejam
263
meus pecados obstáculos a essa expectativa”. O entendimento da acuidade da missão,
muito provavelmente, serve como pontapé inicial para a religiosa tomar a iniciativa de
começar um diário. Ao aportar no Rio de Janeiro e prosseguir viagem, Irmã Dubost não
abandona seus escritos, a despeito das dificuldades inauguradas com a necessidade de
transpor íngremes territórios através de um meio de transporte estranho e um tanto quanto
desafiador para as religiosas:
No dia 12 pusemo-nos a caminho. Padre Cunha, querendo dar-nos mais conforto e
oferecer-nos oportunidade para que nos acostumássemos a andar a cavalo, levou-
nos para uma hospedaria distante uma boa légua. Saímos após a oração do meio-
dia, depois de havermos reanimado a confiança em Nosso Salvador. Montamos
corajosamente, mas inabilmente. Para mim foi um cavalo manso de “caráter”, mas
de trote duro. Como no dia seguinte eu me sentisse cansada, arranjaram-me outro.
Mas nenhum é sem defeito. Este parecia ter uma amizade especial ao cavalo do
guia: se acontecesse passar outro a sua frente, não sossegava enquanto não se
ajuntasse ao amigo. 264

O diário de bordo produzido pela religiosa, assim como o conjunto de


correspondências enviadas por ela aos seus superiores em Paris na primeira década de
existência do Providência, possuem notável valor enquanto raros exemplares de escrita
autobiográfica feminina no XIX, ainda mais tendo-se em vista que os diários escritos por
mulheres foram muito mais comuns em países protestantes (MELLO apud GONÇALVES,

263
AEAM, Casa da Providência. DUBOST, Irmã, A bordo do “Estrela da Manhã”. Tradução de Irmã Celza
Kubitschek de Figueiredo. Nov/1848 a fev/1849. p. 12.
264
AEAM, Casa da Providência. DUBOST, Irmã. Viagem por terra. Relatório enviado de Mariana, 15 de abril,
ao nosso Diretor, Padre Aladael. Tradução de Irmã Celza Kubitschek de Figueiredo. Mar/1849 a Abr/1849. p.
47.
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2015, p. 105). Além de se conhecer a versão vicentina das particularidades mais prosaicas ao
longo da marcha dos devotos, a produção autorreferencial de Irmã Dubost proporciona a
possibilidade de se investigar a construção de sua subjetividade, atentando-se para alguns
aspectos como a articulação de sua experiência com o sagrado, seu entendimento sobre
questões de gênero e suas estratégias para comandar tão pioneira iniciativa no campo da
instrução formal feminina no Brasil.

Vida religiosa feminina no Brasil


A análise da história da vida religiosa feminina no Brasil empreendida pela socióloga
Marnia José Rosado Nunes, estudiosa do tema, baseia-se no postulado de que tal formulação é
entrecortada por “submissão e transgressões”, “passividade e criatividade”. Em comparação
com a América espanhola, a pesquisadora apregoa que a fundação de conventos em território
brasileiro ocorreu bem posteriormente, e de forma mais vagarosa devido a razões econômicas,
haja vista o alto custo de fundação e manutenção destes estabelecimentos religiosos, tornados
viáveis (e necessários) para a Coroa portuguesa somente após o desenvolvimento da indústria
açucareira; e também por causa da política demográfica infligida na América portuguesa, a
qual não fora direcionada a um estímulo ao povoamento imediato. Além disso, a ocupação
demográfica, quando se fez necessária, tornou a escassez de mulheres brancas um grande
obstáculo para a instituição dos conventos. Para Maria José Rosado Nunes, “os conventos
estavam no centro da política demográfica portuguesa para a Colônia; eram proibidos e
incentivados segundo os interesses sociopolíticos em jogo” (NUNES, 1997).
Nesse contexto, instituições religiosas não estabelecidas canonicamente, e, portanto,
sem a obrigatoriedade dos votos, os chamados recolhimentos, tornam-se cenário privilegiado
para o desenvolvimento da vida religiosa feminina na Colônia. Ainda mais considerando-se
que a requisição de vultosos dotes, além da exigência de “pureza de sangue” para a admissão
nos conventos, interditava esses locais às mulheres mestiças ou brancas pobres, isto é, grande
parcela da população feminina colonial. Os recolhimentos eram espaços que abrigavam
mulheres sobre as mais diversas circunstâncias, elas eram chamadas “recolhidas – também
ditas pelos viageiros – mulheres segregadas e internas que não tomam véu”. Elas podiam ser
filhas ou esposas de homens que, por algum motivo, encontravam-se temporariamente fora de
seus locais de residência, não contando com parentes que pudessem lhes oferecer abrigo

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(QUINTANEIRO, 1995, p. 59). Nos estudos acerca da vida religiosa feminina no Brasil,
abundam casos de mulheres enclausuradas contra sua vontade, e igualmente profusos são os
motivos que justificariam a internação forçada.
Apontados como instrumentos de regulação de casamentos– se não houvesse jovens
ricos disponíveis para todas as filhas era mais vantajoso ingressá-las forçosamente na vida
religiosa do que assistir a dissipação das fortunas familiares em “maus” contratos nupciais – e
espaço de punição de mulheres insubmissas, isto é, que não se subordinavam aos mecanismos
de controle social e cuja conduta era apresentada como questionável (LEITE, 1997, p. 43), as
casas religiosas não devem ser encaradas apenas como locais que reforçavam a subordinação
feminina aos pais e/ou maridos:
As mulheres também os utilizaram a seu próprio favor em muitas situações: para
escapar de um casamento não desejado, para realizar seu desejo de viver
piedosamente. Houve aquelas que, refugiadas no claustro, pediram o divórcio de
maridos que a maltratavam fisicamente ou dissipavam sua herança. As casas
religiosas foram ainda, por muito tempo, um dos poucos lugares em que as mulheres
aprendiam a ler e a escrever. (NUNES, 1997, p. 488)

Constata-se a existência de diversos estudos dedicados ao registro das várias


possibilidades que os conventos representavam para as mulheres. Menos comuns são
abordagens que procurem dar conta das inquietações existenciais mais íntimas que
justificariam o despertar feminino para a vida religiosa, talvez pela ausência de fontes que
pudessem transmitir a versão das próprias mulheres a respeito de sua história, como é caso da
escrita autobiográfica de Irmã Dubost. Os canais de expressão das mulheres nos séculos
XVIII e XIX ainda eram bastante restritos, o espaço de atuação feminino por excelência ainda
era o âmbito privado.
Se os conventos foram observados tardiamente em solo brasileiro se compararmos ao
caso da América espanhola, em Minas Gerais, a situação foi ainda mais desfavorável para tais
estabelecimentos. A vasta historiografia que trata da centralidade das associações religiosas
leigas no contexto social do Setecentos mineiro – com implicação, inclusive, na eficiência do
processo de conversão dos negros à religião católica265 –, assevera que as irmandades e ordens

265
Como afirma o antropólogo Pierre Sanchis ao tratar da especificidade do que trata por “catolicismo mineiro”,
no prefácio de obra da historiadora Célia Borges, se “[as irmandades] em outras regiões do Brasil ofereceram o
nicho urbano capaz de “reinstitucionalizar” o que virá a ser chamado de “religiões afro”, em Minas, parecem ter
sido instrumentos eficazes de “catolicização” do negro”. In: BORGES, Célia Maia. Escravos e libertos nas
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terceiras cumpriram o papel de principais agentes da vida religiosa na Capitania, muito em


função do impedimento da entrada e permanência das ordens religiosas em Minas Gerais:

É muito conhecida a aversão que as autoridades portuguesas demonstraram ás


ordens religiosas, impedindo-lhes a permanência em tais regiões. O governo
julgava ser muito maior a possibilidade de um membro de ordem religiosa fazer
contrabando, pois, possuindo casas em diversos pontos do Brasil e do exterior,
tinha facilidade de contatos, podendo enviar ouro e diamantes sem grande
dificuldade. (SCARANO, 1978. p. 16)

Além da proibição do clero regular, a fundação de conventos foi dificultada no


território das Minas Gerais haja vista a peculiar carência de mulheres brancas naquela região.
Ao debruçar-se sobre o cotidiano das mulheres mineiras no século XVIII, o historiador
Luciano Figueiredo esboça um panorama no qual destaca a invisibilidade social a que o
gênero foi submetido, sendo as mulheres impedidas de exercer quaisquer funções públicas. O
pesquisador enfatiza particularmente a existência de um elevado número de prostitutas na
Capitania das Minas, conjuntura que é atribuída ao excesso de requisições legais para o acesso
ao matrimônio oficial (tornando-o realidade distante da grande maioria da população) e
também a um dos traços mais característicos da sociedade mineradora, a “extrema mobilidade
de contingentes dedicados à mineração” (FIGUEIREDO, 1997, p. 156). A Coroa é obrigada,
assim, a empreender incisiva política de combate ás uniões consensuais, tão corriqueiras no
território, e estímulo ao matrimônio legitimado pela Igreja católica. Nessa perspectiva, a
instituição de casas religiosas que poderiam atrair as escassas mulheres brancas de famílias
respeitáveis não era bem-vista pela administração lusitana.
O advento do século XIX inaugurou a disseminação de ideias liberais e uma crescente
preocupação com a instrução feminina entre os círculos elitistas brasileiros. Tal conformação
coincidiu com a decadência dos recolhimentos (em sua maioria, pela situação financeira
desfavorável) e um questionamento das ordens tradicionais motivado pela “falta de um
objetivo essencialmente apostólico” (LEITE, 1997, p. 49). Ao estudar as perspectivas de
educação para as mulheres da elite de Salvador entre fins do XIX e início do século XX, a
historiadora Márcia Leite argumenta que a instrução feminina ao longo do Oitocentos ainda se
concentrava majoritariamente em um âmbito privado, sobretudo por causa da restrições

irmandades do Rosário: devoção e solidariedade em Minas Gerais: séculos XVIII e XIX. Juiz de Fora: editora da
UFJF, 2005. p. 18
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Anais do VI ENCONTRO DO GT NACIONAL DE HISTÓRIA DAS RELIGIÕES E DAS
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impostas ao livre trânsito das mulheres no espaço público urbano. Ademais, a pesquisadora
tece considerações a respeito da ausência de estabelecimentos dedicados à educação feminina
na capital baiana, já no final do XIX:
O colégio Nossa Senhora das Mercês era basicamente a única instituição
educacional de grande porte, começando, ao final do século XIX, a receber alunas
oriundas de camadas sociais abastadas de toda a Bahia. [...] Outro instituto voltado
para a educação das moças baianas foi o dirigido pelas irmãs de São Vicente de
Paula, congregação estrangeira imbuída de ideais reformistas. Na Bahia, o trabalho
das religiosas foi aceito com desconfiança, “já que admitiam alunas oriundas de um
espectro social muito extenso”. O fato de as moças de família estabelecerem
contato com meninas pobres incomodou a sociedade, gerando desentendimentos.
(LEITE, 1997, p. 49)

A laicização potencializada pela Revolução Francesa contribuiu para restringir o


espaço de atuação das congregações na Europa, o que favoreceu a migração de muitas
religiosas para o continente americano, as quais vinham imbuídas do ideal de cumprir
valorosa missão em terras longínquas. Entre os desígnios de tal missão, aquele que talvez
tenha obtido maior relevo foi a dedicação das religiosas ao ato de instruir mulheres, com a
verificada “criação de uma rede formidável de escolas católicas sob a direção de religiosas
estrangeiras” (NUNES, 1997, p. 491).
A primeira destas escolas foi justamente aquela fundada em 1849 pelas freiras da
congregação das Filhas da Caridade de São Vicente de Paulo no município de Mariana – sede
do arcebispado e epicentro do poder eclesiástico na ocasião –, que recebeu o nome de Colégio
Providência (BICALHO; LOPES, 1993, p. 51). O pioneirismo da iniciativa das Filhas da
Caridade, empreendimento capitaneado pelo lazarista Dom Viçoso, é reconhecido no campo
das ciências humanas como um marco no campo educacional e também para a “solidificação
da vida religiosa feminina”:
No Império, duas congregações femininas iniciam aqui suas atividades: A Filhas de
Caridade, em 1849, e as Irmãs de São José de Chambéry, em 1858. A partir de
1891, intensifica-se a vida de religiosas estrangeiras, em sua maioria francesas e
italianas. [...] O interesse da Igreja no campo da educação e o apoio do governo
tornavam possível ás congregações estabelecerem seus colégios. Elas conquistaram
espaços sociais cada vez maiores, seus efetivos se multiplicaram, e enfim, a vida
religiosa feminina solidificou suas raízes no país. Na segunda metade do século
XIX, religiosas e religiosos detinham praticamente o monopólio da educação no
Brasil: das 4600 escolas secundárias existentes 60% pertenciam à Igreja e gozavam
de enorme prestígio. (NUNES, 1997, p. 492-494)

A historiadora da educação Glaucira Louro acredita que o cenário pós-Independência


caracterizou-se pela tentativa das autoridades de afastar o passado colonial, transformando a
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imagem do Brasil, no discurso oficial, de um território, “atrasado”, “inculto”, “primitivo”,


para uma concepção de nação permeada pelos ideias liberais e preocupada com a instrução de
seu povo. A questão educacional encontrava-se, então, no cerne dos debates. Data de 1827, a
chamada “Lei de instrução pública” que determinava que “se estabelecessem ‘escolas de
primeiras letras’, as chamadas ‘pedagogias’, em todas as cidades, vilas e lugarejos mais
populosos do Império” (LOURO, 1997, p. 444). Vale ressaltar que a realidade esteve, por
longos anos, a léguas de distância da prescrição legal.
Porém, a concepção hegemônica do que seria uma educação voltada para as mulheres
privilegiava aspectos de sua formação moral, muito mais do que propriamente acadêmicos. O
entendimento em voga era de “a mulher deveria ser muito mais educada do que instruída” e o
interesse em sua formação não se fundamentava em aspirações pessoais, mas era orientado,
sobretudo, pela principal função social imposta ao gênero, a maternidade: “as mulheres
carecem tanto mais de instrução, porquanto são elas que lhe dão a primeira educação aos seus
filhos. São elas que fazem os homens bons ou maus; são as origens das grandes desordens,
266
como dos grandes bens; os homens moldam a sua conduta aos sentimentos delas.”
Tratava-se da exploração de um “modelo de feminilidade ideal” que se inspirava no culto á
Virgem Maria: “em Maria uniram-se os dois aspectos de virgindade e maternidade,
simbolizando o ideal tradicional da mulher”. Tal arquétipo elegia algumas virtudes como
características do sexo feminino, como a resignação, o comedimento, a modéstia, o que
contribuiu para justificar e perpetuar a posição secundária reservada ao gênero em instituições
como o Estado e a Igreja (URÁN, 1984, p. 55).

A escrita de si: considerações teórico-metodológicas


No artigo que abre uma coletânea que se propõe incitar reflexões acerca da nomeada
“produção de si” (leia-se cartas, diários íntimos e memórias) para o ofício historiográfico, a
pesquisadora Ângela de Castro Gomes chama atenção para o que denomina “boom de
publicações de caráter biográfico e autobiográfico” (GOMES, 2004, p. 07), ou seja, o
vigoroso crescimento do gênero dentro do mercado editorial, alavancado pela ânsia dos
leitores em devorar uma escrita de tom confessional. A publicação organizada pela
historiadora já completa mais de dez anos, e o que se observa no mercado editorial brasileiro é

266
Lei de instrução pública, 1827.
361
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a confirmação de tal tendência, e até mesmo o seu recrudescimento. De acordo com a


pesquisadora, mesmo que a escrita autorreferencial seja praticada desde a Antiguidade, ela se
cristaliza em consonância à constituição do individualismo moderno: “é esse o sentido da feliz
observação de Levillain, quando assinala que, se o ato de escrever sobre vidas é muito antigo,
a ideia de que a vida é uma história, é mais recente.”
Sabe-se, contudo, que a “sociedade” é também uma das “criações” da modernidade,
constituída a partir da idéia de um “contrato social” entre indivíduos iguais e
autônomos [...]. Sendo assim, num primeiro nível, não é possível pensar o
indivíduo como oposto à sociedade, uma vez que tal “contrato” pressupõe sua
existência e autonomia anteriores, sendo firmado com base nos direitos e deveres
dos indivíduos como sujeitos morais e políticos. Entretanto, [...] ao lado do ser
moral autônomo, signatário do contrato social, a modernidade também cria o
indivíduo único e singular, o ser psicológico, que “aparece quando o social passa a
ser visto como estatal, o oficial, o central, aquilo que é essencialmente exterior à
dimensão interna dos indivíduos. (ALBERTI, 1991, p. 04)

Tais proposições conferem ao indivíduo uma centralidade ímpar. Na concepção de


Contardo Calligaris, a modernidade ocidental se define como “uma cultura na qual se espera
que do sujeito venha a organização do mundo (e não do mundo, a organização do sujeito)”.
Esse protagonismo do indivíduo, de acordo com o pesquisador, redimensiona a sinceridade
como um valor em si, em uma instância até mesmo hierarquicamente superior à verdade
factual, numa clara valorização da “intenção” de ser sincero, autêntico. Nessa perspectiva, a
escrita autobiográfica, seja ela em forma de diário ou de memórias, é de suma importância:
“falar ou escrever de si [...] é um dispositivo crucial da modernidade, uma necessidade
cultural, já que a verdade é sempre e prioritariamente esperada do sujeito - subordinada à sua
sinceridade” (CALLIGARIS, 1997, p. 45).
Michel Foucault já se perguntou: “que é, pois, tal linguagem, que nada diz, jamais se
cala e a que se chama literatura?” (FOUCAULT apud ALBERTI, 1991, p. 02), e vários
teóricos procuram elaborar reflexões sobre o tema. A historiadora Verena Alberti acredita que
a literatura se relaciona ao espaço reservado ao próprio indivíduo na cultura ocidental, assim
como também a arte, a genialidade e a loucura. Afinal, se os agentes de tais entidades podem
vir a ser tratados como desvios da norma, seres quase marginais, paradoxalmente também
servem para reforçar a tão estimada singularidade do indivíduo. Ao escritor, ao artista, ao
gênio e ao louco é facultada a proposição de questões, o inquietamento social, a possibilidade

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de estar à margem, de provocar, desassossegar-se, mover-se, representar, talvez, a diferença,


ou a alternativa.
O que Verena Alberti busca ratificar com tais reflexões é a conclusão tecida pelos
estudos de Louis Dumont (que por sua vez se inspirou nos ensinamentos de Marcel Mauss) e
que alcançaram ampla repercussão no campo da antropologia social: o indivíduo, em nossa
cultura, constitui o “espaço da totalidade”; é a concepção do indivíduo enquanto “valor” que
impera nas sociedades modernas (ALBERTI, 1991). De acordo com a perspectiva
dumontiana, cabe instituir aqui uma distinção de pensamento entre as sociedades tradicionais
e modernas. Nas organizações coletivas tradicionais, edificadas na hierarquia, a categoria
“valor” estabelecia e regulava as relações entre os membros, agindo como mediador social. Já
as sociedades modernas acostumaram-se a se perceber como imunes a tal categorização,
afinal, a modernidade foi gestada com base nos princípios de liberdade e igualdade. O
paradoxo moderno é que a sociedade é fundada também naquilo que procura negar: o
indivíduo é tomado como um “fato que mantém uma relação de igualdade com outros fatos
iguais a ele”, contudo, essa separação entre “fato” e “valor” por si só já demonstra que o
indivíduo surge enquanto “valor” na modernidade. Nas palavras de Verena Alberti, “ele já
nasceu como valor encompassador, apesar de firmado na igualdade; como totalizador, apesar
de nivelado e fragmentado”. 267
Se na modernidade ocidental o espaço da totalidade é ocupado pelo indivíduo, nossa
cultura também se caracteriza por “[ter] como religião justamente o que seculariza, des-
magiciza, racionaliza” (DUARTE apud ALBERTI, 1991, p. 06). Ora, neste caso, podemos
citar como exemplo a própria literatura. Em nossos tempos, pode-se dizer que os escritos
literários são, de tal maneira, cultuados e sacralizados, que chegam a ocupar um domínio que
outrora foi exclusivo da religião, no sentido de “[tornar-se] uma espécie de ‘escritura’, e o
escritor, assim como os deuses, torna-se um imortal, porque detém, indecifrável, um dom
especial”. Ademais, é no espaço literário que os indivíduos têm a chance de ensaiar operações
para ressignificar e totalizar a realidade fragmentada, processo análogo ao que se dá com os
leitores, no momento em que, na solidão da leitura, entram em contato com a “obra impressa,
independente e solitária, [que] guarda em si uma totalidade secreta” (ALBERTI, 1991, p. 07).

267
Para saber mais sobre a cultura individualista, característica da sociedade moderna, segundo as teorias de
Louis Dumont, ver também: PINHEIRO, Clara Virgínia de Queiroz. Indivíduo e sociedade: um estudo sobre a
perspectiva hierárquica de Louis Dumont. Mal-estar e subjetividade, Fortaleza, v. 1, p. 94-105, set. 2001.
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É sob tal prisma que deve-se compreender a ascensão da escrita de si no tempo


presente, tanto no tocante ao aumento do interesse dos leitores pelo consumo de produções
biográficas e autobiográficas, como também tendo-se em vista o empenho dos sujeitos em
produzir suas próprias memórias, falar de si, construir algum canal de expressão para seus
devaneios e reminiscências, o qual, preferencialmente, possa funcionar como testemunho à
posteridade. A prerrogativa desse tipo de escrita é a noção compartilhada de que “a vida se
constitui um todo, um conjunto coerente e orientado, que pode e deve ser apreendido como
expressão unitária de uma ‘intenção’ subjetiva e objetiva”, ideia que o sociólogo Pierre
Bourdieu ironicamente batizou de “ilusão biográfica” (BOURDIEU, 2006, p. 184). Na
modernidade, o ato autobiográfico, bem como o romance, “dá notícia [...] da profunda
desorientação de quem vive” (BENJAMIN apud ALBERTI, 1991, p. 08). O indivíduo
moderno tem na literatura, sobretudo nas produções autobiográficas, um horizonte para tentar
conferir sentido à realidade, mais que isso, a folha em branco lhe oferece a oportunidade de
confrontar a fragmentação substancial que o mutila, e, por que não, de combatê-la, operando
uma série de mecanismos de seleção, subtração, enfatização; no ato da escrita, enfim, o
sujeito encontra a possibilidade de se constituir.
De outro lado, contudo, ela [a autobiografia] também difunde e exemplifica a
experiência do autor, a partir de seu ponto de vista singular, e, nesse sentido, tal
qual a “narração”, (in)forma, aconselha e ensina o “ouvinte”. Paradoxalmente,
portanto, a autobiografia, “nascida” e legitimada no contexto da modernidade,
atualiza uma modalidade discursiva, que, segundo Benjamin, estaria retrocedendo
para o “arcaico”. [...] Esse quadro paradoxal, em que convivem uma manifestação
discursiva “típica” da modernidade - a autobiografia - e outra identificada com o
“arcaico” - a “narração” -, pode ser explicado através do que se convencionou
chamar de “paradoxo da modernidade”: se a autobiografia é o espaço, por
excelência, de expressão do “indivíduo”, não se deve esquecer que esse mesmo
“indivíduo”, antes de ser um “fato”, é um “valor”, aproximando a modernidade,
marcada pelo "individualismo", do "arcaico", marcado pela “hierarquia”.
(ALBERTI, 1991, p. 08)

Os escritos literários funcionam, então, como espaços de expressão privilegiados do


sujeito moderno, podendo servir para informar, dar sentido, orientação: “vivemos nossas
vidas como romances e, reciprocamente, encontramos na literatura modelos para nossas
vidas” (CALLIGARIS, 1997, p. 21). Assim, não se pode utilizar a escrita autobiográfica de
Irmã Dubost apenas como fonte de dados sobre os hábitos e preceitos da congregação das
Filhas da Caridade de São Vicente de Paulo, ou ainda, somente com o intuito de se conhecer

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detalhes da peculiar jornada das religiosas a caminho do estabelecimento de sua primeira casa
em território brasileiro.
Se nos perguntarmos a respeito da motivação de Irmã Dubost em começar um diário
de bordo concomitantemente ao enfunar de velas do Estrela da Manhã, a resposta para esta
questão se relaciona, é claro, com a consciência que a freira devia ter do pioneirismo e da
gravidade de sua missão, e o consequente desejo de deixar um registro escrito da empreitada.
Todavia, se a irmã escreve, essa ação não pode ser desassociada da vitalidade da produção de
si para o sujeito moderno, nem muito menos deve ser tomada apenas enquanto registro
imparcial de episódios cotidianos. Como mecanismo de ordenação da realidade, o ato
autobiográfico vem acompanhado de uma série de procedimentos característicos: omissões,
acréscimos, adaptações. A produção autorreferencial representa fonte privilegiada, valiosa,
portanto, para se investigar a construção da subjetividade feminina no período, ainda mais em
se tratando de uma religiosa. Se a escrita feminina foi tradicionalmente relegada ao âmbito
privado, limitando, em grande medida, a constituição de canais de expressão para o gênero, as
mulheres religiosas tiveram ainda menos possibilidades de serem ouvidas.
Tal esforço de “ouvir” o que Irmã Dubost tem a nos contar deve submeter-se, é claro,
aos mais rigorosos procedimentos de crítica das fontes, comuns a quaisquer pesquisas
historiográficas. Ao dar-se voz à freira, não devemos confundir sua escrita com um
testemunho do que seria a “verdade dos fatos”, mas o relato deve ser tomado como uma
versão dos ocorridos, na qual, o que importa para o historiador, é a maneira com que a
narrativa é tecida, são, sobretudo, as impressões, opiniões e visões sobre o que é narrado.
Sabendo do risco do leitor/pesquisador se deixar “enfeitiçar” pelo “sentimento de veracidade”
que é constitutivo do ato autobiográfico, Ângela de Castro Gomes faz uso do que chama
“advertências” salutares para a utilização da escrita de si como fonte de pesquisa, as quais este
trabalho endossa e apropria-se. Além de citar a temeridade já mencionada, de se confundir a
ótica do autor com a “verdade dos fatos”, o que, em última instância, “obscureceria a
fragmentação, a incoerência e a incompletude do indivíduo moderno”, a pesquisadora faz
referência às correntes que divergem a respeito das relações do texto com seu “autor”
(GOMES, 2004, p. 15). Em síntese, há aqueles que defendem a ideia de que “o texto é uma
‘representação' de seu autor, que o teria construído como forma de materializar uma
identidade que quer consolidar”; por outro lado, existe o pressuposto de que o autor seria

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“posterior” ao próprio texto, “um efeito, uma invenção do discurso que constrói” (GOMES,
2004, p. 15). Ângela de Castro Gomes, bem como Contardo Calligaris, percebem essa
dicotomia com um “falso paradoxo”, e defendem que a escrita de si contaria com “editores” e
não propriamente autores, já que, ao falar de si, o sujeito se produz, o sujeito se constitui.
Nem essência anterior ao que escreve, nem produto de sua própria narração, o sujeito/editor,
no ato da escrita, usa sua trajetória de vida como matéria-prima para cortar, colar, adequar,
ressignificar, e assim, produzir uma narração e um autor, afinal, “narrar-se não é diferente de
inventar-se uma vida”. O ato autobiográfico seria, logo, “constitutivo do sujeito e de seu
conteúdo” (CALLIGARIS, 1997, p. 49) e estaria ganhando importância crescente no tempo
presente, também por ser constantemente associado à possibilidade de transformação do
indivíduo e de sua vida.

Uma subjetividade amparada na identidade vicentina


Muitos pesquisadores no campo das ciências humanas já se dedicaram à
sistematização de um inventário acerca das produções autobiográficas na história. O filósofo
francês Georges Gusdorf268 localiza o surgimento do gênero no século XVIII, a partir da
premissa de que apenas poderia haver uma escrita de si no momento em que o indivíduo passa
a se sobrepor à comunidade, tornando-se agente de seu próprio destino e não mais submetido
aos preceitos da tradição. Contardo Calligaris argumenta que, tomando a produção
autobiográfica como “escrito recapitulativo”, cujo propósito é a reconstituição de vidas, pode-
se concordar com a assertiva de Gusdorf, no entanto, alargando-se a compreensão do termo,
chega-se a uma periodização bem mais alongada no tempo, embora indissociável aos
movimentos da cultura individualista ocidental (CALLIGARIS, 1997, p. 46).
Um capítulo particularmente interessante na história da produção de si refere-se ao que
se convencionou chamar de “autobiografias espirituais”, as quais seriam, invariavelmente,
“narrativas de conversão, seja da incredulidade ou da heresia à fé católica, seja de uma fé
269
cristã ainda medíocre, ou ainda que séria, a um cristianismo mais fervoroso” . O exemplo
mais bem acabado deste tipo de narrativa são as “Confissões” de Santo Agostinho, escritas no
268
GUSDORF, Geoges. La découverte de soi. Paris: Presses Universitaires de France, 1948; Mémoire et
personne. Paris: Presses Universitaires de France, 1951; “Conditios and limits of autobiography”. In: OLNEY.
James. Autobiography: essays theoretical and critical. Princeton: University Press, 1980.
269
Autobiographies spirituelles. In : Dictonnaire de Spiritualité, Ascetique et Mystique. Paris: Beauchesne, 1932-
1995. T. II.
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século IV. A originalidade e repercussão da obra foi tamanha, que a própria constituição do
subgênero “autobiografia espiritual” dentro do gênero autobiografia deve ser atribuída à
produção. Sendo assim, ao nos depararmos com um documento tal qual o diário de bordo de
Irmã Dubost, isto é, uma narrativa autobiográfica produzida por uma religiosa, a primeira
presunção aventada diz respeito à classificação da obra como uma autobiografia espiritual.
Sobre esse aspecto, algumas questões devem ser colocadas.
Não é possível qualificar o material como um diário propriamente íntimo, já que a
freira registra o intuito de remeter o documento aos seus superiores na França, solicitando
inclusive, que as páginas sejam alvo de alguma supervisão, no sentido de “suprimir”
prováveis “excessos”270. Irmã Dubost endereça a narrativa aos líderes de sua organização
religiosa e é a eles que ela parece se dirigir a todo o momento. Existe uma interlocução
frequente com a “Divina Providência”, o que lhe motiva passagens bastante contemplativas,
entretanto, a reflexão da freira constrói-se sobre a forma de um diálogo constante com aqueles
que, até por serem os responsáveis por ela se encontrar na dianteira da expedição, parecem
representar algo como símbolos da união das religiosas em torno de sua missão, guias
inspiradores para seus movimentos e decisões ao longo da travessia. Por conseguinte, mesmo
que a freira entenda a missão necessariamente como oportunidade de aprimoramento de sua
fé, o diário não pode ser rotulado como uma autobiografia espiritual em sua essência.
Em um trecho do documento, ao relatar o início da viagem por terra, Irmã Dubost
oferece um exemplo de como suas reflexões teológicas são narradas diretamente aos membros
da congregação (no caso “meu Pai”, refere-se mais especificamente a Padre Etienne, Superior
Geral da confraria), em uma retórica que busca aproximação entre as freiras recém-chegadas,
envoltas em um cotidiano de desafios, e seus pares na França.
No dia 14 partimos de Vargem mais ou menos ás 7 horas. Era grande o caminho
que tínhamos que percorrer: 06 léguas neste país equivalem a nove em França.
Deus, a Santíssima Virgem, São José, nossos bons Anjos continuam a proteger-nos.
E eis-nos como cavaleiras aguerridas, galgando rochedos escarpados, descendo
veredas estreitas e íngremes com a mesma calma como se estivéssemos na estrada
mais plana. Como o abandono à Divina Providência é uma suave liteira, quanta paz
se experimenta entre os braços divinos. Sim, meu Pai, agradecei por nós a Deus e
uni-vos a nós para pedir-lhe conceder-me a morte se eu for enclave a Sua Divina

270
AEAM, Casa da Providência. DUBOST, Irmã, A bordo do “Estrela da Manhã”. Tradução de Irmã Celza
Kubitschek de Figueiredo. Nov/1848 a fev/1849. p. 10.
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obra. Ele que é tão bom, para que eu não seja tão má. Quero amá-lo de todo o
coração e torná-lo amado e conhecido por todos os homens. 271

De acordo com Calligaris, a distinção entre o que seria um escrito propriamente


“intimo” daquele voltado à publicação não se aplicaria:
O que é, sim, relevante é que o sujeito que se constitui por seu ato autobiográfico
pode se constituir sob o olhar de Deus, sob um olhar que ele estima ser o seu
próprio, ou ainda - para e com publicação ou não - sob o olhar dos outros. Mas
essas diferenças (entre as quais seria possível repartir nem tão grosseiramente assim
os atos autobiográficos modernos) não são uma questão de temperamento dos
autores ou de escolha estilística. Elas testemunham mudanças culturais da
subjetividade moderna. (CALLIGARIS, 1997, p. 54)

É possível supor que, no século XIX, quando o diário foi escrito, o processo de
esvaziamento da autoridade da tradição como soberana das trajetórias individuais já devia
estar concluído, o que contribui para se identificar o período como mais propício a
proliferação de atos autobiográficos construídos sob o olhar dos próprios sujeitos, ou sob o
olhar dos outros. Todavia, em se tratando de uma religiosa em pleno cumprimento de missão
atribuída à “Providência Divina”, o caso deve ser bem matizado. Assim mesmo, acredita-se
que o fato de Irmã Dubost produzir seu diário sob a forma de um recorrente diálogo com seus
próprios companheiros tem relações com as características da subjetividade moderna nos seus
tempos. Mesmo que em alguns trechos da obra ela dedique-se a longas meditações
fundamentadas em sua procura pela aproximação com entidades superiores, dentre os
processos de delimitações identitárias mobilizados pelo ato autobiográfico, o pertencimento
da religiosa à congregação das Filhas da Caridade possui notável relevo. Observemos um
trecho do relato: ao aportar no Rio de janeiro, a comitiva de religiosos é obrigada a passar
algumas semanas no município, à espera dos preparativos da longa travessia a cavalo até
Mariana. As freiras hospedam-se, então, com as “Religiosas Franciscanas, enclausuradas, com
todas as suas Regras”:
Este mosteiro que era antigamente numeroso, conta hoje com 13 membros apenas,
dos quais mais da metade idosas e enfermas que não podem assistir a nenhum
exercício religioso. É para lamentar ver apenas quatro ou cinco religiosas cantarem
os louvores de Deus neste vasto coro com suas cem cadeiras. Três ou quatro jovens
religiosas mostram-se muito aflitas com essa situação e desejariam acompanhar-
nos. Asseguro-vos que nossa permanência nesta casa, longe de nos atrair para a

271
AEAM, Casa da Providência. DUBOST, Irmã. Viagem por terra. Relatório enviado de Mariana, 15 de abril,
ao nosso Diretor, Padre Aladael. Tradução de Irmã Celza Kubitschek de Figueiredo. Mar/1849 a Abr/1849. p.
48.
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vida enclausurada, ao contrário, faz-nos agradecer a Deus e bendizê-lo por nos ter
escolhido para a pequena Companhia das Filhas da Caridade. 272

Fazer parte de uma organização um tanto quanto pioneira no questionamento de


alguns pilares da concepção em voga de “vida religiosa” devia mobilizar um pertencimento
institucional fortificado. Mais que um discurso atrelado às autobiografias espirituais, o que
parece prevalecer no ato autobiográfico de Irmã Dubost é a (re)afirmação dos valores mais
caros à sua congregação religiosa. Logo, afirma-se que, se no ato da escrita o sujeito se
constitui, a religiosa o faz amparando-se, sobretudo, em sua identidade de freira vicentina.
Ora, se para essa confraria a caridade é salutar, e seu efetivo exercício pressupõe a busca do
contato com os desvalidos, onde quer que eles estejam, é necessário que haja uma sólida
união das irmãs em torno dos princípios da congregação, até mesmo para se afastar o risco do
esvaziamento doutrinal das novas casas fundadas em locais distantes. Ademais, ao relacionar
vida religiosa feminina ao esforço missionário, as Filhas da Caridade ampliam o espaço de
atuação do gênero justamente em uma instituição reticente ao protagonismo de mulheres, o
que favorece a integração e o estabelecimento de fortes laços entre as vicentinas. Ao
diferenciarem-se de outras congregações, as freiras mantêm-se fortemente unidas.
Assevera-se que, dentre os processos de delimitações identitárias mobilizados pelo ato
autobiográfico, o pertencimento à congregação das Filhas da Caridade de São Vicente de
Paulo se sobressai. Pode-se afirmar ainda que a rejeição das freiras à vida enclausurada
significou um contato mais próximo com os fiéis, e com seus problemas cotidianos, sobretudo
em relação às dificuldades enfrentadas por mulheres. Se o trabalho das Filhas da Caridade em
Salvador tornou-se alvo de desconfiança, pois as religiosas “admitiam alunas oriundas de um
espectro social muito extenso” (LEITE, 1997), deve-se supor que a atuação das freiras em
Mariana tenha seguido os mesmos princípios, o que pode ser entendido como um passo
adiante no vagaroso acesso das mulheres pobres à instrução formal, uma conquista admirável
para o Brasil oitocentista.
Sugere-se que a vinda de Irmã Dubost ao Brasil representa para a freira a solidificação
de sua fé, e o adensamento de sua experiência com o sagrado. Na narrativa, a madre
questiona-se a todo o momento sobre suas limitações humanas, e relaciona a superação das

272
AEAM, Casa da Providência. DUBOST, Irmã, A bordo do “Estrela da Manhã”. Tradução de Irmã Celza
Kubitschek de Figueiredo. Nov/1848 a fev/1849. p. 40.
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dificuldades ao longo da missão à aproximação do ente superior. Contudo, a escrita


autobiográfica desnuda o quão cheio de contradições este percurso da religiosa rumo à
elevação espiritual pode ser. A irmã valoriza a simplicidade como princípio institucional, mas
não deixa de tecer comentários que testemunham o estranhamento e a condenação aos hábitos
brasileiros. Ela descreve um povo “inculto, mas piedoso”, seu relato se reveza entre a
admiração da singeleza e fervor religioso dos brasileiros, e um olhar estrangeiro que, ao
evidenciar o diferente, o exótico, a disparidade, revela-se imbuído de incompreensão. O
fragmente abaixo se refere à descrição de uma refeição ocorrida em Petrópolis, junto a uma
família local:
A comida não faltava, mas faltavam alguns pratos. Fizemos da tampa da marmita
uma grande travessa. Não havia talheres... Cinco ou seis se puseram ao redor
“pescando” na marmita. [...]. Era verdadeiramente curioso vê-los meterem a mão no
prato de pirão que servia de pão. Temendo perder o pirão, cada um se servia em
grande quantidade e alguns até repetiam. Todos beberam numa mesma cuia, sem
lavar nem jogar fora os restos. Para sentar-se havia cadeiras duras e velhas, um
banco desconfortável, uma tábua meio podre que se quebrou conosco, alegrando
assim a extraordinária refeição. 273

O trajeto de Irmã Dubost, desde sua partida da França, até a edificação da nova casa
das Filhas da Caridade no Brasil, como se pode notar, é repleto de desafios e aventuras. As
freiras têm de enfrentar, além de longa jornada marítima e em terra, um país estrangeiro cuja
instrução feminina era incipiente ou inexistente. Sem falar do estranhamento causado por uma
caravana de mulheres professoras, piedosas e devotas, mas que se recusavam à vida
enclausurada. Assim, a decisão de Irmã Dubost de relatar suas experiências cotidianamente,
seja por meio de um diário de bordo, seja em forma de correspondências aos seus superiores
franceses tem o potencial de proporcionar inquietantes elocubrações historiográficas .

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273
AEAM, Casa da Providência. DUBOST, Irmã. Viagem por terra. Relatório enviado de Mariana, 15 de abril,
ao nosso Diretor, Padre Aladael. Tradução de Irmã Celza Kubitschek de Figueiredo. Mar/1849 a Abr/1849. p.
46.
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São Paulo: Cehila/Paulinas, 1984.

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RELIGIOSIDADES - ANPUH
História das Religiões, Literatura, Conceitos e Identidades – Vol. VI – ISSN 2359-6988

Título: Exu e Diabo, dom e mercado: mutações de uma entidade entre o XIX e XX

Moacir Carvalho274

Resumo: Pretende-se discutir as mutações sofridas pela entidade Exu entre os candomblés e
umbandas brasileiros. Busca-se discutir a associação entre essa entidade e o Diabo. Assim,
analisar as transformações ocorridas entre o XIX e o XX, concentrando-se em Salvador e Rio
de Janeiro. Problematizam-se as combinações mágico-religiosas aí ocorridas, pois os
fornecedores de bens espirituais em concorrência tiveram que enfrentar pressões simultâneas.
Estas, imporiam o desenvolvimento de uma prática mágico-religiosa que não se identificasse,
nem com a busca de meios de sobrevivência, nem com a prática do mal. Portanto, tais
oficiantes passaram a ter que encobrir as demandas por malefício, sendo desqualificados por
quaisquer comportamentos interesseiros. Destarte, o significado do mal, bem como o das
entidades mudaria: nem aleatoriamente, nem reprodução cega do passado, mas, seguindo-se
desenvolvimentos de origem cristã, africanos, e ameríndios já hibridizados. Igualmente,
resignificava-se e reelaborava-se o poder e o lugar de agência dessa entidade.
Palavras chave: (agência; concorrência; Exu; interesse; malefício)

Title: Exu and Devil, gift and market: mutations of an entity between the XIX and XX

Abstract: It is intended to discuss the mutations undergone by the Exu entity, above all,
among candomble and umbanda cults in Brazil. It seeks to discuss the association between
this entity and the Devil. Thus, to analyze the transformations that occurred between the XIX
and XX, concentrating in Salvador and Rio de Janeiro. The magical-religious combinations
occurring there are problematic, since the suppliers of competing spiritual goods had to face
simultaneous pressures. These would imply the development of a magico-religious practice
that did not identify itself, neither with the search of means of survival, nor with the practice
of evil. Thus, the meaning of evil as well as that of entities would change: neither randomly,
nor blind reproduction of the past, but following developments of Christian, African, and
Amerindian origins, already hybridized. Likewise, the power and the place of agency of this
entity was re-established and re-established.
Key words: (agency, competition, Exu; interest; spell for evil)

Nessa fala procurarei seguirei dois planos de análise que venho desenvolvendo nas
partes finais de minha tese, e que pretendo, em sua conclusão entrecruzá-las, chegando, ao
fim, com ao menos uma promessa de síntese minimamente convincente. Tratarei aqui da
entidade Exu, e suas transformações ao longo do período que vai desde os fins do século XIX
até a década de 1960, aproximadamente, procurando, quando necessário, apresentar as

274
Moacir Carvalho é doutorando do programa de pós graduação em Sociologia da Universidade de Brasília,
mestre em Sociologia pela Universidade de Brasília, Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal da
Bahia, atualmente, é professor do Instituto Federal da Bahia – IFBA. E_mail: moacir.carvalho@gmail.com
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diferenças e semelhanças entre umbandistas e candomblecistas a respeito. Certamente, trata-


se da mais polêmica dentre as entidades afro-brasileiras e, atualmente, aquela que mais recebe
atenção por parte da literatura sobre tais religiosidades entre nós. Começarei com o
embaraçoso tópico das aproximações entre a entidade africana Exu, e seu correspondente
predominante nos processos de sincretismo afro-cristão ou islâmico (CAPONE, 2009;
CARNEIRO, 1961; DOPAMU, 1990; MAUPOIL, 1981; OLIVEIRA, 2005; PRANDI, 2001;
QUERINO, 1988; RODRIGUES, 1935; SILVA, 2015; SODRÉ, 2010; TRINDADE, 1985)
principalmente no Brasil, mas já em território africano: o Diabo275. Em seguida apresentarei
as igualmente embaraçosas relações entre Exu e magia, sobretudo a chamada “magia negra”,
tomando-a num primeiro momento, como pensada por Durkheim em “As formas elementares
da vida religiosa”, ou seja, como prática individualizada definida por relações de
conveniência entre fornecedor e consumidor do bem/serviço religioso, ou mesmo por Weber,
em sua tipificação do mago.
Foi provavelmente através Maupoil, isso somente na década de 1930, que se teve o
primeiro relato e descrição mais minuciosa e não cristianizada a respeito de Exu, algo
provavelmente mais confiável sobre o que ocorreria nas regiões da iorubalândia da época.
Antes disso, foram os relatos de missionários e viajantes que forneceram as primeiras
impressões a seu respeito no século XIX. Embora Exu venha há muito tempo protagonizando
as mais delicadas polêmicas a respeito do sincretismo afro-brasileiro, foi também somente
com Pierre Verger em seu livro “Orixás: deuses iorubás na África e no Novo Mundo” de 1981
que se teve a primeira tentativa mais rigorosa publicada em língua portuguesa de se realizar

275
Arthur do Valle analisará parte do material disponibilizado em artigo de Ulisses Rafael e Yvonne Maggie:
Sorcery objects under institutional tutelage: magic and power in ethnographic collections. Entre as imagens, há
uma bastante interessante de um Exu (Figura 2), legendada como Exu Sete Capas. O artigo é ilustrado com fotos
do fim da década de 1970, tiradas pelo fotógrafo Luiz Alphonsus. A imagem foi destruída em 1989 por um
incêndio, quando o acervo do Museu da Polícia do Rio de Janeiro estava instalado na Rua Frei Caneca 162.
Trata-se, de fato, de um típico “Exu-Diabo” semelhante ao constante em inúmeras feiras de objetos e artefatos
umbandistas pelo Brasil de hoje. Na ficha catalográfica da imagem, encontra-se a seguinte inscrição: “Essa
representação de Exu é típica da influência do Cristianismo nos cultos afro-brasileiros. Todavia [...] enquanto o
Satã cristão é descrito como uma entidade indesejável, que foi expulsa do Paraíso, nos cultos afro-
brasileiros Exu é descrito como embaixador da humanidade junto à corte dos orixás.” E, importantíssimo, na
página registra-se que a ficha foi produzida por um dos diretores do museu. Este seria membro da Umbanda. E,
durante os anos 1960 este teria se especializado na decoração dos altares dos terreiros. O diretor também citaria
livros de antropólogos reconhecidos que pesquisaram as práticas afro-brasileiras – Bastide, Carneiro e Ramos.
Essa imagem é muito semelhante à que encontrei (Figura 1), durante a feitura da minha tese de doutorado,
reproduzida em uma gravura da década de 1936, no jornal “A Noite”, na matéria “Museu de símbolos e
singularidades. Provavelmente, trata-se da mesma escultura.
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uma descrição genética das entidades, uma a uma, cruzando-a com as apropriações e
recriações durante o trânsito para o Brasil, embora Exu já tivesse sofrido um tratamento
específico em “O candomblé da Bahia” de Bastide, duas décadas antes, sem contar, é claro, as
muitas menções que a entidade sofreria na literatura umbandista.
Todavia, ainda anterior a isso haviam sido publicados trabalhos de outros autores que
tocavam aqui e ali em aspectos da entidade, ou de outros orixás, como: Etiene Ignace Brasil;
Maupil; Frobenius; Rodrigues, Querino; Pierson; Ribeiro; Ramos; Carneiro; Ellis; João do
Rio; isso sem falar em toda uma literatura umbandista, bem como análises mais recentes, mas
igualmente importantes a respeito de Exu: “The esculpture and myths of Eshu-Elegbá, the
yorubá trickster”, de John Wescott em 1962; “Eshu-Elegbá: the yorubá trickster god”, em
1975, de John Pemberton; e “The trickster in West África” de Robert Pelton em 1980;
também, trabalhos posteriores, como os de Vagner Gonçalves da Silva, Eliane Sávia
Trindade, Stefania Cappone; Jaime Sodré, Reginaldo Prandi, Juana Elbein dos Santos, entre
outros que trataram da entidade. E, embora a obra de Verger venha também inserir-se numa
polêmica brasileira, em que boa parte dos significados atribuídos nos textos a Exu no Brasil
eram ainda dominados pela produção umbandista, Verger parece dar aí, comparando-se a um
Roger Bastide, por exemplo, pouca importância a se existiria ou não alguma fidelidade do
Exu-Elegbá brasileiro em relação ao africano, o que parece indicar um patamar de
descolamento e confiança entre os cultos afro-brasileiros bem distinto do encontrado por
Bastide entre as décadas de 1950-1960, época de suas pesquisas.
Também, embora sendo “Orixás” obra fundamental para quem se interessa pelos
atributos físicos, estéticos, de caráter e personalidade das entidades, não se seguirá aqui
exatamente o mesmo caminho; como não se realizará aqui uma discussão sobre o erro ou
acerto dos significados atribuídos a Exu, sob o ponto de vista da uma maior ou menor
observância para com o que hoje restaria, do que nele já seria vivo e presente desde sua
origem na África. Ao contrário, interessa-me indicar agentes, mecanismos e recursos
empenhados na recordação, reinvenção e esquecimento seletivo de seus atributos entre nós.
Evidente que durante a expatriação desse senhor especialmente habilidoso em atrair sobre si
polêmicas, poderia ocorrer a “distorção” de quaisquer significados que tenha possuído
“originariamente”, modificando-se eventualmente seu caráter de mensageiro (CASTRO,
2004; BASTIDE, 2001; LOMBARDI, 1991; PRANDI, 2001; SODRÉ, 2010; VERGER,

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2002), recuando e até desaparecendo seu priapismo e sexualidade exacerbada (MOURÂO,


2012; PRANDI, 2001; VERGER, 2002), tornando-se, por outro lado, perigoso causador da
morte e desagregação. Mas quase sempre também sendo visto pelos praticantes como um ser
mais humano e tolerante que os orixás, trabalhador dedicado mas de espírito romanticamente
livre; além de galhofeiro e até contestador. Sugere Bastide, Exu parece ter-se deslocado para a
fronteira entre o permitido e o proibido, entre o lícito e o ilícito276. Mas ganhava com isso a
simpatia, por exemplo, de intérpretes politicamente conscientes do significado da cultura
popular, bem como da herança da escravidão negra entre nós.
Quando hoje fala-se em Exu, quais características costumam vir a mente? Sem dúvida
que uma delas é a do trickster (PELTON, 1980), do brincalhão, galhofeiro e subversor da
ordem; uma outra, a canonizada por Bastide em seu “O candomblé da Bahia”, é a do
mensageiro, do tradutor entre os deuses e os seres humanos; sendo que uma terceira, que
também relaciona-se a de tradutor, soma-se às outras, estabelecendo-se uma relação entre Exu
e o oráculo de Ifá. Todavia, mesmo essas importantes definições, em relação às quais
costumeiramente se afirma serem as representações “autênticas” e verdadeiras de Exu, não
esgotam o que registra a própria literatura a respeito. Pois em suas funções e simbolizações,
Exu também assume a de amoral, comilão, protetor, interesseiro, demasiadamente humano,
dionisíaco, animalesco, guardião da casa ou da porta, bem como a de príapo – traço esse que
praticamente desapareceu no Brasil –, de trabalhador diligente e infalível para as questões
mais difíceis como o “ôme” de Noreiel Vilela; Exu pode ser batizado ou pagão, pode ser o
espírito dos mortos, ligado aos eguns, como o Sete Caldeiras de Cidade de Deus, ou o
companheiro; mas pode também ser a ameaça, ou ainda ser tomado enquanto de fato
demoníaco e irascível.
Procurarei nessa fala não me ater ao fato de se tais interpretações seriam falsas ou
verdadeiras, ou seja, se condizentes com uma suposta ou real origem ancestral africana; nem
buscarei, o que seria impossível nesse contexto, seguir as origens conhecidas de cada uma
dessas linhas, ao contrário, buscarei interpretar certa tensão entre persistência e inventividade-

276
Provavelmente isso não teria sido uma operação totalmente “desvirtuadora”. Como afirma Anderson Oliveira:
“Para os sacerdotes e pessoas comuns entre os iorubás a função principal de Exu é representar uma oposição à
criação, sendo o infrator das regras e da ordem. Por seu dinamismo, Exu se tornou elemento constitutivo de tudo.
Dessa maneira, todos – pessoas e objetos – têm o seu Exu, Incumbido por Olodumaré da tarefa de mudar o que
está parado, Exu recebe o Ado, uma cabaça na qual se encontra a força de transformação.” (OLIVEIRA, 2005, p.
18)
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seletividade. Tal tensão seria oportuna produtora de rica diversidade de alusões e formas de se
relacionar com a entidade, bem como, propícia à produção de um conjunto de expectativas em
relação à sua agência, esta, inserida em campos de sentido realmente vividos e inscritos em
práticas que são significativas para os praticantes. Sendo assim, precisarei aceitar que,
justamente, tal plasticidade simbólica não indicaria para desvios ou equívocos resultantes da
ignorância desses praticantes, mas, ao contrário, que tal diversidade e, mesmo, ambiguidade e
contradição seriam partes constituintes mesmo do seu valor e força, podendo Exu ter sido, e
ainda ser, uma chave valiosa para a compreensão das ambiguidades vividas pelos segmentos
pauperizados, sobretudo os negro-mestiços no Brasil, bem como para os caminhos que
levariam a uma determinada configuração religiosa entre tais segmentos no país.
Por que Diabo? De fato, Exu já vinha sendo identificado ao Diabo na África, tanto por
cristãos quanto por muçulmanos. Mas também é certo, Exu não foi sincretizado apenas com o
Diabo nas regiões latino americanas que receberam os contingentes de escravos negros,
inclusive o Brasil. Em Cuba por exemplo ele foi sincretizado com o Menino Jesus. Em outros
casos, com São Bartolomeu, Santo Antônio, São Gabriel, São Benedito e São Pedro
(BASTIDE, 2001; SILVA, 2015). Mas, como disse Vagner Gonçalves da Silva, se Exu pode
relativizar seu significado tornando-se tantos outros, assim também o Diabo o fez durante a
história, tornando-se muitos ao ponto de no Catolicismo, mesmo o oficial, ter-se descolado
sobremaneira até dos seus símbolos e significados bíblicos (KELLY, 2008). Quando passa-se
para as formas populares de Catolicismo, as coisas complicam-se ainda mais. Por exemplo,
para a palavra Diabo, Souto Maior identifica mais de cem sinônimos todos em português no
Brasil. Mais que isso, o pano de fundo sobre o qual formaram-se imagens populares do Diabo,
estão em muito distantes de uma ideia de mal absoluto e terrificante do Diabo do Exorcista de
Peter Blatty277, por exemplo, ligando-se a um conjunto de outros seres encantados, práticas e
forças mágicas componentes da vida popular, no campo e na cidade, e que hoje são chamadas
de lendas, crendices ou folclore. Já nos cordéis, uma das imagens mais comuns é a de um
Diabo logrado, que em troca de benefícios aos seres humanos exige o resgate de nossas almas
atendidas em dadas circunstâncias pactuais, às quais sempre são contornadas pela astúcia
humana, sobretudo a feminina, ou pelos poderes de Deus ou dos santos no momento limítrofe
da retribuição.

277
Escritor e cineasta americano. Sua obra mais conhecida é “O exorcista”, de 1971.
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Dessa forma, seguindo a sugestão de Vagner Gonçalves da Silva, é bastante provável


que não só Exu diabolizou-se, isso já na África, mas que também, o Diabo exuizou-se; o
Diabo, quando adstrito aos candomblés, xangôs, tambores, batuques, macumbas e umbandas,
não poderia transformar-se facilmente no Diabo teológico e terrível do Catolicismo ou do
protestantismo, ele não poderia deixar de acionar todo um conjunto de significados que, a
depender do contexto, poderiam tomar a figura de frente, ou pano de fundo, sendo que, não
abandonando em absoluto aqueles atributos de severidade, não seria exclusivamente isso, nem
seu contrário, mas os dois ou vários e nenhum ao mesmo tempo...
Nina Rodrigues em seu livro “O animismo fetichista dos negros baianos” do final do
século XIX – 1896-1897 –, tratando principalmente da tradição nagô que caracteriza o
candomblé do Gantóis, até hoje considerado uma das referências mais “autênticas” dentre os
candomblés brasileiros, o autor deixava clara a relação efetuada no interior de tais terreiros
entre Exu e o Diabo, deixando também explícita uma dada relação entre o “despacho”, ou
padê de Exu (BASTIDE, 2001), e sua função de expulsar a entidade do terreiro, para que ela,
o Exu-Diabo, não atrapalhasse as atividades ali realizadas. Para tanto, Exu recebia, primeiro
que todos os orixás uma oferenda, mediante a qual assentia afastar-se do terreiro e não
perturbar a ordem. Também, Edson Carneiro não só concorda com essa interpretação, como
indica para o fato de Exu não ser sempre considerado exatamente um orixá, mas um
intermediário desses, um tipo de escravo ou serviçal de nível inferior e mais próximo dos
humanos, sendo que, dessa forma, também não se deveria ter a cabeça dedicada a um orixá,
pois nesse caso, a palavra certa seria “carrego”, indicando para o peso e sofrimento
intrínsecos a tal circunstância, sempre indesejada e mesmo inaceitável para as comunidades
de santo, tendo-se a possessão por este sendo caracterizada por movimentos desencontrados e
por uma postura descontrolada e assustadora.
Bastide e Verger seriam os primeiros a tentar modificar tal visão sobre Exu, sendo que
nas umbandas um processo paralelo e distinto ocorria, pois aí as componentes diabólicas de
Exu ligavam-se de forma menos embaraçada, pelo ao menos quando observamos a
proliferação de legiões, e suas relações entre diabos, exus, omolús e pombagiras, ainda que,
também nesse caso, a reação em geral da maioria dos primeiros escritos umbandistas tenha
partido do esforço de, estrategicamente, localizar, sob o ponto de vista cosmológico, os exus à
região da macumba, da quimbanda, ao Candomblé e a “magia negra” em geral, sendo que a

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atitude a ser tomada pelos centros e guias frente a tais entidades deveria ser a de negação e
repressão de sua natureza, guiando-os para o caminho da luz e da evolução, uma vez que aqui
seriam claramente espíritos desencarnados e ausentes de luz, pois que teriam vivido um
passado de sofrimentos, crimes, alcoolismo e lassidão e desregramentos em vida. Certamente
que isso compunha uma lógica de legitimação, em que cada vez mais o mal passava a ser
localizado no outro, sendo que à Umbanda caberia o domínio sobre o contrafeitiço, magia de
defesa contra as artes das trevas (CARVALHO, 2015; ORTIZ, 1999) nas quais os
descendentes de africanos no Brasil seriam especialmente habilidosos – por isso o perigo do
Candomblé. Ou seja, a Umbanda também herdaria a mesma relação dominante entre exus e
Diabo, mas, recriando um ambiente distinto no qual tais entidades não só se proliferariam,
como estabeleceriam relações regulares com o Diabo, não sendo os exus necessariamente
diabos – ainda que nas práticas isso também possa acontecer –, mas servos desses, os ditos
espíritos desencarnados pouco evoluídos (TRINDADE, 1985).
Mas como tal diversidade poderia ser acionada de forma eficaz simbolicamente? Uma
alternativa analítica seria o de se pensar as entidades como agências (LATOUR, 2012) e, com
isso, considerar-se que tal poder de agência, no caso dos exus, não deveria ser pensado
monoliticamente, senão, que aspectos distintos seriam acionados conforme contextos
distintos, ou seja, mediante encadeamentos e localizações diferenciadas em que as gramáticas
acessadas por pares ou adversários distintos e diferencialmente capacitados e orientados
demandariam por aspectos distintos da entidade. Nesse sentido, a ideia contemporaneamente
aprofundada de um Exu entre trickster e princípio dinamizador cai muito bem. Tem-se assim
uma possibilidade de se pensar a entidade através de seus múltiplos agenciamentos.
Por um lado, o Exu da casa seria um Exu mais amigável, o compadre, o batizado, dificilmente
identificável com o Diabo e comumente referido como responsável por proteger a família de
seus próprios conflitos interpessoais. Já o Exu da porta, ligado à rua, ao ser pagão, seria mais
violento, severo, e ligado a uma imagem demoníaca mais tenebrosa; ele deve causar e
realmente, causa medo. Já a imagem de galhofeiro, pode tanto servir para se pensar sua
função dinamizadora, como é um meio eficaz de comunicação e arrefecimento de seu terror
nos terreiros e giras; por outro lado, sua ligação com a magia de ataque pode ser acionada
eficazmente nos contexto de estigmatização realizada por jornais, principalmente do início do
século XX, como também, pode funcionar como um tipo de chancela ou moeda valiosa no

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campo das guerras de feitiço. Para nos anos 1970, aparecer como uma espécie de anti-herói ao
estilo Firmino do Barravendo de Glauber Rocha, figura contra cultural (FERNANDES, 2009;
LAPASSADE & LUZ, 1972; SARACENI, 2011; SILVA, 2015) ou síntese da liberdade
individual contra as opressões do racismo, de trabalho, do Estado e do mercado. Quero com
isso dizer que Exu agiria, e seria dessa forma reivindicado, num complexo simbólico que o
colocaria entre uma série de pares de opostos, todos eles característicos dos estudos sobre
cultura popular, tais como: negociação e conflito; permanência/ pureza-mutação/ sincretismo;
indivíduo-sociedade e, para os propósitos do presente texto, dom e mercado. Com isso, torna-
se ricamente oportuno sua análise para as religiosidades populares afro-brasileiras.
De fato, a aproximação com o Diabo não seria em si um problema, todavia Trata-se de
questões delicadíssimas quando se pesquisam matrizes afro-brasileiras, exigindo-se que a
análise ocorra à luz do papel que os intelectuais tiveram na formação das religiões, bem como
da difícil relação entre memória, história, cultura e poder. Entre outras coisas, há um
argumento político central que subjaz às dificuldades dos pesquisadores ao levantarem esse
tipo de questão às religiosidades afro-brasileiras (CAPONE, 2009). Historicamente
permanece o drama do significado da escravidão, do preconceito, e da perseguição ao que
restava da cultura de matriz Africana no Brasil, principalmente no Republicano. Toda uma
herança negro-mestiça só oficialmente reconhecida no contexto nacional quando já avançado
o século XX. Isso contrastava com o que ocorreria, por exemplo, com a figura do índio que,
também vítima da violência que caracterizou a empreitada colonial, já bem antes tinha
recebido por parte dos intelectuais nacionais algum tipo de avaliação positiva enquanto
componente convergente à mitologia da brasilidade – sem se entrar no mérito dos equívocos e
conservadorismo de toda a idealização que acompanhou tal reabilitação de sua imagem.
Toca-se aqui no tema do romantismo, em sentido bastante ampliado, e as relações que
alguns escritores por ele influenciados estabeleceriam popular. Como já indicado, a Umbanda
seria aquela religião em que mais explicitamente se identificaria essa herança de teor
marcadamente romântico. Criação nem sempre bem vinda, era debutante nascida do
desdobramento do velho mestiçamento religioso nacional, mas que tomava nova forma na
transição para as aglomerações étnico-urbanas dos séculos XIX-XX (BASTIDE, 2001;
ORTIZ, 1999), na orientação para as lógicas denominacionais entre os 1930-1950, além da

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explosão de ofertas a um só tempo mágico-religiosas e multimidiáticas do Rio de Janeiro do


início do século XX.
Todavia, sob ponto de vista da produção de uma versão alternativa do mundo e da
própria esfera mágico-religiosa, a Umbanda faria no século XX e ao seu modo algo a um só
tempo distinto e semelhante ao que o Candomblé soteropolitano faria, enquanto africanização
pública do religioso. Pois se ambas as práticas, mesmo que defendendo uma precedência
originária, seguiriam caminhos quase que opostos sob o ponto de vista do lugar dos
hibridismos, o resultado foi que, até que a perseguição promovida pelos neopentecostais
desarrumasse o equilíbrio do campo, a luta por obtenção de reconhecimento e respeito
públicos dessas matrizes parecia ter saído vitoriosa para ambos, isso já entre as décadas de
1960 e 1970. Vitória tanto das aspirações comunitaristas, culturais e nacionalistas enfatizadas
pelos escritores que se interessaram pelo Candomblé, sobretudo o de matriz nagô, quanto os
escritores umbandistas que buscavam uma definição da prática, não tanto como religião
nacional, mas, ao menos como algo não mais oficialmente perseguido, e que deveria se fundar
num princípio caritativo anti-mercantilista. Tanto Candomblé quanto Umbanda, agora
denominações, seriam forjadas por princípios que se contraporiam, mais ou menos
explicitamente, a um racionalismo instrumental, bem como a um possível esvaziamento de
significado do mundo. Evidentemente que as práticas religiosas não seguiriam exatamente as
maneiras de ver a cultura popular dos seus intelectuais, mas, com certeza, tal produção
impactaria a relação entre religiosidade popular e um espaço público, ao fornecer símbolos
autorizados nas lutas por reconhecimento e legitimidade de então.
Tal fenômeno só pode ser entendido diante do avanço dos cultos extradomésticos que
já vinha ocorrendo nos candomblés desde as primeiras décadas do século XIX, e que na
Umbanda e candomblés do Rio, aparentemente se consolidaria um pouco mais tarde. Ou seja,
sem a orientação crescente por ser culto organizado, religião, em oposição a magia,
possibilidade essa formalmente estabelecida pela constituição de 1891, a participação
intelectual e a cultura escrita talvez nunca alcançassem o peso que alcançaram. Já através da
constituição, se instituía a idéia de liberdade religiosa, com isso abrindo-se um espaço de
pressão sobre a construção da legitimidade dos segmentos populares religiosas, que daí em
diante teriam que negociar a própria presença e auto-apresentação diante de agentes cada vez
mais diversificados, como os jornais e a política. Isso dava-se sob um triplo pano de fundo:

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em uma comunidade política que se autodefinia como civil e democrática, e que desenvolvia
seus mecanismos e organismos de ação técnica e civilizadora – polícia, medicina, escola,
direito, engenharia, mas também, é fundamental para o meu trabalho a atuação dos jornais;
saber e registro; um universo mágico-religioso herdado do século XIX, e em que
predominavam não apenas os saberes popularmente disseminados e compartilhados entre os
vizinhos, mas também, em que predominavam os profissionais de perfil mais artesanal do
mágico-religioso, aqueles que, sob esse ponto de vista, agiam de forma relativamente mais
solitária e doméstica – os curandeiros, benzedeiras, rezadeiras, e mandingueiros em geral; por
fim, a luta interna que se desenvolveria entre os próprios agentes mágico-religiosos no
período que pode ser marcado entre as primeiras décadas de 1900 até o meado do século XX.
Sem essa tripla pressão, provavelmente tal desenvolvimento nunca tivesse tomado a direção
que tomou.
Um material que me foi bastante útil para a confecção da atual análise foram os
jornais. Estes, mesmo quando pretendiam desqualificar os praticantes mágico-religiosos
populares, acabavam por fornecer alguma informação valiosa, quase que a única informação
disponível para os anos 1900-1920, para o que ocorria nas casas umbandistas e candomblés.
Além disso, no Rio dos anos 1910 era possível encontrar-se reclames de cartomantes e
umbandistas misturados entre os anúncios de elixires milagrosos, pianos e máquina de
costurar. Por certo, como qualquer pessoa que desejasse vender algo, se buscavam os jornais o
faziam na expectativa de serem vistos. Mais que isso, por se considerar o jornal em si um
meio agregador de valor ao seu produto/ serviço pelo simples fato de poder estar lá, de se
compartilharem um espaço ao mesmo tempo “público” e reservado a uma elite pagante e
leitora. Por um lado, nota-se certa frouxidão taxonômica nesses primeiros materiais,
comparando-se aos padrões atuais, estes mais denominacionais278. Por outro, já se percebe um
movimento de diferenciação e padronização que redistribuiria fornecedores e consumidores
religiosos. Configurava-se, assim, certo padrão regulatório, ainda que silencioso, e em
conformidade às demandas e funções que surgiam.

278
A estipulação de uma dimensão espiritual como algo precisamente demarcado a que aspirariam muitos
religiosos só poderia fazer sentido confrontando-se a um fundo de imprecisão que os próprios agentes religiosos
esforçavam-se por estabelecer; esta, região de magos, seitas, superstições e feiticeiros.
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A Umbanda, enquanto “rebento” da antiga Macumba é, também, um desenvolvimento


posterior em forma extradoméstica279 e mais impessoalizada de atendimento espiritual.
Contexto no qual o fornecedor de serviços mágico-religiosos tinha de lidar cada vez mais com
uma clientela de desconhecidos, de forma que o recurso à propaganda em jornais (CRUZ,
2000) ganharia maior valor, bem como a exigência de uma formulação negociada sobre os
critérios que relacionariam, sob o ponto de vista da dinâmica oferta-demanda: valor, preço e
tempo. Ficando indicado em vários anúncios consultados, haver alguma profissionalização no
campo, marcada por um senso público e impessoal de rivalização corrente entre ofertadores
de serviços quaisquer em grandes cidades.
Entretanto, a novidade é que se trataria também de um contexto marcado por uma
crescente perseguição em moldes distintos e seguindo uma integração funcional mais bem
delineada entre as funções seculares: jornais, policiais, médicos, farmacêuticos e juristas,
como se já não bastassem os próprios concorrentes. Circunstância em que as antigas redes
através das quais tais mandingueiros e curandeiros faziam sentido estavam sendo
desmontadas. Ironicamente, diante das urgências da formação nacional do período, também as
práticas espirituais deveriam, segundo as aspirações de determinados segmentos intelectuais
empenhados na tarefa civilizadora, converter-se280 em recursos da tradição propícios à
fornecer a matéria prima moralizadora nacional. Em parte, a guinada das ciências sociais
brasileiras nas décadas de 1920-30 seria importantíssima. Mas é certo que bem antes disso,
um sentido forte de utilidade pública já vinha sendo gestado. Delimitando o que deveriam ser
as funções religiosas frente a outras esferas, todas a um só tempo crescentemente
especializadas e interdependentes.
Daí que, em um contexto extremamente assimétrico, tanto econômica quanto
politicamente, restaria às práticas e segmentos populares, ou bem sucumbir, excluídos, ou
integrar-se de alguma forma. E, para integrar-se, foi necessário que parte do sentimento de
culpa que sobre estes pesava, ou, esperava-se que pesasse, mediante séculos de dominação,
fosse de fato assumido publicamente e convertido em virtude. Ou seja, os praticantes teriam

279
Procuro explorar, para a Umbanda, hipótese similar à do antropólogo Nicolau Parés. Em seu “A formação do
candomblé”, para entender as transformações dos candomblés baianos ele recorre às mutações ocorridas nas
casas, estas, teriam deixado de se caracterizar pelo culto doméstico, normalmente focado em uma entidade
protetora e, portanto, com famílias inteiras ligadas ao mesmo orixá, passando a apresentar-se cada vez mais em
formato extradoméstico mais aberto.
280
Católicos, protestantes e espíritas encabeçavam a intelecualização religiosa nacional.
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que sacrificar algo em troca de seu salvo conduto. A Umbanda ofereceria o sacrifício
(HUBERT & MAUSS, 2005) da macumba e do mandingueiro. E em troca, tornar-se-ia o
posto avançado na luta contra a magia negra, já que “Umbanda tem mironga”, domínio do
mistério não estritamente textual ou dogmático. Evidentemente, trata-se de esquema que nem
de longe consegue dar conta da imensa complexidade dos processos. Todavia, aponta para
remissões constantes na maneira como os escritores umbandistas das décadas de 1930 à 1970
justificariam a sua Religião. Com isso, o deu-se certo desenvolvimento de funções
especializadas em forma de “religião”, em oposição à “magia”, ou à “magia” negra”, bem
como à mera “crendice”/ folclore e o curandeirismo, com isso, indicando-se uma
sensibilidade para o tipo de preocupação pública que se desenvolvia então.
A estigmatização do mandingueiro, bem como da “macumba”, ou mesmo os
candomblés, tomados como “magia-negra”, a “quimbanda”, a mandinga, a coisa feita, o gri-
gri, foi decisiva para o deslocamento semântico e “umbanda”; um processo que respondia
defensivamente à lógica de acusação no interior do espaço das disputas; ou seja, havia uma
homologia entre as aspirações jornalísticas por civilizar-reprimir os costumes, e o
desenvolvimento de um padrão intra-religioso de multipolarização em que a acusação é o
primeiro passo numa batalha de feitiços e contra-feitiços, em que, quase exclusivamente, a
magia, ou ao menos aspectos particulares dela vão funcionando como armas de acusação. E,
de fato, como indicado logo acima, os umbandistas o farão em relação à macumba, e mesmo
candomblés; os candomblés nagôs, em relação aos praticantes, segundo seus critérios, ritual e
magicamente inábeis – caboclos e umbandas. Também, com relação ao babalaô, do qual
Martiniano Eliseu do Bonfim é um dos últimos exemplos de sua geração. Trata-se aqui
arrefecimento das práticas mágicas, muitas vezes ligadas a Exu, e em relação às quais a figura
desse babalaô (BASTIDE, 2001; CAPONE, 2011; SILVA, 2015) – adivinho e feiticeiro,
também especializado no oráculo de Ifá –, o qual quase desapareceu em dado momento, foi
central até fins do século XIX.
Tratava-se do entrecruzamento entre os significados mágico-religiosos, e os processos
e sentidos disseminados pelos mecanismos civilizatórios, para os quais, tornava-se,
diferentemente do que ocorreria no século XIX, absolutamente inaceitável a disposição em si
para o mal. Assim, se a magia de ataque tinha de ser escondida no século XIX, por conta de se
tratar de algo que “meu” adversário deveria ficar sem saber, para que não pudesse me

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prejudicar mágica ou pessoalmente, crescia nesse momento um embaraço pela prática do mal
em si, que vinha juntar-se à vergonha, a depender da posição e aspirações pessoais e de cor e
classe, de se estar relacionado aos chamados “cultos fetichistas”. Assim, mesmo que eu não
acreditasse em magia, eu ficaria extremamente desapontado, e mesmo enojado se, por acaso,
descobrisse um trabalho à minha porta, ou soubesse que alguém, sobretudo alguém que
estimo, tenha feito algo para mim, ou contra a felicidade da minha família, por exemplo.
Com isso vai-se acentuando uma identificação negativa entre magia negra/ mal, e ação
interesseira, em oposição às práticas desinteressadas, as quais seriam típicas das religiões.
Minha hipótese é que, embora tal desenvolvimento respondesse, de fato e num primeiro
momento às aspirações dos segmentos intelectualizados, principalmente no caso da Umbanda,
tal desenvolvimento extrapolaria em muito a visão de classe desse grupo. Autonomizando-se,
uma vez que, primeiro, a questão da caridade fazia parte de um chão católico comum que,
também naquele momento, reorientava-se no sentido de uma ação voluntária para além da
busca por perdão dos pecados, ou conquista da simpatia da igreja e influência sobre os mais
pobres, ainda que tais mecanismos nunca tenham saído completamente de cena; por outro
lado, tal linguagem foi-se desenvolvendo nos processos práticos, em que não só ajudar
materialmente, mas também espiritualmente era importante, em um cosmos cada vez mais
povoado por espíritos, alguns desses também necessitados de ajuda, tornava-se linguagem
típica dos contextos mágico-religiosos de então. Junto a isso, as práticas mágico-religiosas,
graças aos dispositivos legais e ações policiais e jornalísticas, passavam a ser pressionadas
quanto ao uso de infusões e ervas em geral, passando a noção de ação espiritual a poder ser a
única de fato a escapar da acusação de prática ilegal da medicina.
A transição para uma relação de distanciamento tempo-espacial quanto ao percurso de
fechamento do ciclo dom-contradom, dependeria de uma resultante mais complexa quanto ao
tempo entre dádiva e contradádiva. Entre o dom e sua retribuição, fazem-se necessárias uma
série de funções e demandas articulares, relacionando praticantes, deuses, objetos, animais e
espíritos em atividades rotineiras, conviviais, e afetivas que estariam além do típico ideal do
“toma-lá-dá-cá” que, até certo ponto, dominava a prática do antigo mandingueiro ou
curandeiro, por exemplo. Extrapola-se aqui um ambiente ritual e de prática restrito às funções
de cura, adivinhação e feitiçaria, tanto nos candomblés, quanto umbandas. Com isso, dá-se
uma modificação da relação com o tempo, em que habilidades de inibição dos desejos, bem

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como de procrastinação em geral precisariam se desenvolver. Surge daí uma espécie de


especialista religioso semelhante a um indivíduo das vanguardas artísticas. Não precisamente
localizado no tipo sacerdotal, nem profeta, nem mágico religioso.
Não se quer dizer com isso que a magia de ataque foi extirpada, claro, das práticas,
mas ela precisaria destarte ser mais do que nunca escamoteada, sobretudo pelo fato de que,
realmente, alguns praticantes, ao que parece, passariam a tentar inibir o seu exercício,
tornando-se a figura de Exu com isso ambiguamente mais temida e desejada do que nunca.
Com o crescimento de tal desconfiança, penso que, ao contrário, teria havido um movimento
em cadeia, através do qual, quanto mais estampavam nos jornais, de forma por vezes
espetacular, os terreiros, os mandingueiros, os feiticeiros, mais se proliferava, e se carimbava,
digamos assim, a existência, de fato, de praticantes mágicos, espíritos, orixás, objetos e
demônios movidos ou em movimento visando nos prejudicar. Esse tema, aliás, o dos
mistérios e espíritos, vinha sendo uma constante em diários e periódicos desde fins do século
XIX. Portanto, Exu deslocou-se, com isso, ainda mais para uma zona borrada, ou mesmo
trevosa, não apenas porque a vítima do feitiço não deve saber sobre tal encomenda, mas
porque vai tornando-se repulsiva a própria noção de mal, este não pode vir a público.
Daí que foi natural o desenvolvimento da umbanda quase como uma espécie de
serviço de utilidade pública visando nos proteger do mal. Para isso foi suficiente deslocar para
o “outro” o atributo de mandingueiro, mas sem nunca se poder abrir mão da presença das
entidades potencialmente malfazejas. A Umbanda teria sido muito mais ativa nesse processo
que o candomblé, o qual seguiu um caminho distinto como bem/ serviço étnico cultural.
Certamente que a competição que no Rio a umbanda tinha que enfrentar diante não só ao
prestígio dos candomblés baianos, como mais ancestrais e de magia mais forte, como diante
das alternativas simbólico profissionais possivelmente bem mais atrativas que aqui se davam
no campo do entretenimento e da música, por exemplo, seria algo que não aconteceu em
Salvador Algo decisivo para os caminhos que as religiosidades populares teriam tomado na
duas cidades.
Trata-se então de um complexo desenvolvimento das regulações recíprocas que,
também este, era acompanhado por um desenvolvimento de padrões crescentes de
autoregulação. Novamente, trata-se da complexa relação entre contexto e diversidade
simbólica-funcional (EISENSTADT, 1991; FARIAS, 2006; ORTIZ, 1999). Aqui, diferentes

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impactos e apropriações sobre os discursos modernizadores ou tradicionalistas gerariam


distintas possíveis construções da entidade. Ora adquirindo nova simbologia e função, ora
recorrendo-se, completando-se, modificando-se, ou mesmo criando-se novos mitos e
justificativas para suas ações. Minha hipótese é que toda a dificuldade da relação entre diabo e
exu por um lado, e exu e mercado por outro, seria muito mais devedora dos específicos
padrões civilizatórios desenvolvidos entre nós, em combinação com o tipo particular de
inventividade e adaptatividade mágico-religiosas que estavam a disposição e puderam se
consolidar como minimamente aceitáveis. Com isso, a presença de algumas lideranças
extremamente habilidosas e empenhadas puderam fornecer caminhos alternativos capazes de
forjar moedas simbólicas em um mercado no qual, cada vez mais, a autenticidade da prática e
do praticante não poderiam repousar mais exclusivamente na sua capacidade de vencer
adversários mágicos, ou conseguir benefícios para a vida das pessoas, embora isso, até hoje
continue fundamental.
A partir das décadas de 1970-1980, Exu adquiriria um novo perfil, mais claramente
classista, étnico e contracultural. Pode ser que fatores como o Concílio do Vaticano II
(ISAIA), os eventos de 1968-69, o movimento negro e a influência dos estudos culturais
americanos em nossas ciências e políticas culturais, o trânsito de intelectuais brasileiros em
direção à África, o crescimento da imagem turistificada e positivada nos jornais da cultura
negro-mestiça, além de trabalhos como os de Bastide e Verger, entre outros, tenham
possibilitado que Exu realizasse uma nova mutação e adquirisse ainda mais outros atributos.
O processo continua, sempre um germinativo inacabado.

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Figura 1: Museu de símbolos e de singularidades. A Noite, Rio de Janeiro, 20/10/1936

À esquerda, Exu em matéria de A Noite. O


jornalista visita o museu da polícia e,
durante a reportagem, é acompanhado pelo
comissário Alfredo Lyrio e um pai de santo
de Vila Maria chamado Francisco de Paulo,
o qual estava preso há dias. Um Exu branco
com roupa preta, postura curvada e espada
embainhada, como se vê é pouco comum.
Na legenda dizia: “Exu, entidade máxima
da linha de malei”; ficando, infelizmente,
sem identificação esse Exu em particular. O
pai de santo Francisco, assim explicava ao
repórter a origem da entidade Exu: “Era no
céu. A harmonia pairava sobre tudo. Certa
vez os três grandes arcanjos revoltaram-se
contra Deus. E o poder infinito fulminou-
os, arremessando na face da terra. Aqui
ficou sendo o seu reino. Os exus presidem
todas as coisas, dispondo e ordenando.
Formaram-se as falanges, que se contam
por três grandes e quatro menores. Exu é a
entidade das gargalhadas, porque ri sempre
de quem é desgraçado.” Não resta dúvida
tratar-se de uma síntese entre o Diabo
cristão e o trickster africano. Para não dizer
que o próprio Diabo popular pode ter algo
de galhofeiro. A imagem teria pertencido a
um pai de santo que trabalhava no Engenho
de Dentro. Ao abordar o terreiro, a polícia
apreendeu a imagem que foi parar no
museu. O pai de santo, uma semana depois
do ocorrido, teve uma morte “estranha”.
Enquanto limpava uma arma, essa disparou
o matando, acidentalmente. Em seguida, o
repórter registra as explicações sobre a vida
dos orixás, todas, na verdade, recriações de
passagens bíblicas famosas, que são
indicadas.

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Figura 2: Exu Sete Capas. Imagem de Exu pertencente ao museu da Polícia Civil do Rio de
Janeiro. Foto: Luíz Alphonsos, 1979. A imagem foi apreendida em data anterior a 1937 e destruída por
incêndio em 1989. Fonte: Maggie, Y; Rafael, U. N. Sorcery objects under institutional tutelage: magic and
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Cidade de Deus. Direção de Fernando Meirelles. Produção de Walter Salles. Produtora


VídeoFilmes. 2002.

Disco Eis o ‘ôme’; canção: Só o ôme; intérprete, Noriel Vilela; EMI Music, 1968; Em:
http://www.vagalume.com.br/noriel-vilela/so-o-ome.html

Barravento. Direção: Glauber Rocha, 1962. Acessado em:


http://www.youtube.com/watch?v=sy60bm2Cn04;

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Quando soam os atabaques: a polícia e a reportagem num santuário africano - é preciso limpar
a cidade destes antros. 9/9/1927, Salvador, A Tarde
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No mundo cheio de mistérios dos espíritos e ‘pais de santo’ – Martiniano – ‘babalaô’ e


professor de inglês. Estado da Bahia, Salvador, p. 10, 14/5/1936

Quando da bruxaria e do fanatismo. O Malho, Rio de Janeiro, 22/11/1913

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Entre Beatos e Rezadeiras: os (re)cantos do religioso na obra de Luiz Gonzaga


Paulo Hígor Duarte de Souza281

Resumo: O presente trabalho propõe uma reflexão a respeito da influência de elementos do


cristianismo na trajetória artística de Luiz Gonzaga, discutindo sobre o processo de formação
da escuta do cantor a partir do contato que ele teve com diversas manifestações orais do
catolicismo no sertão como as ladainhas, procissões e benditos. Analisa-se também de que
forma Luiz Gonzaga se apropria desses elementos constituintes da paisagem sonora do seu
lugar para a criação de um repertório musical voltado à construção de uma identidade
específica atrelada ao Nordeste do Brasil, e além disso de que forma esse tipo de religiosidade
expresso pela oralidade possibilita uma flexibilidade das práticas e discursos religiosos
ligados a essa espacialidade.
Palavras-chave: Luiz Gonzaga, sertão, religiosidade, oralidade.

Between Beatos and Rezadeiras: the religious songs and places on Luiz Gonzaga’s work
Abstract: This paper proposes a reflection about the influence of Christians elements on the
artistic career of Luiz Gonzaga, discussing the singer’s listening training process, starting with
his contact with oral traditions of Catholicism on Brazilian sertão, like ladainhas, porcissões
and benditos. It’s also analyzed Luiz Gonzaga’s way of appropriating these elements that are
part of his place’s soundscape to create a musical repertoire dedicated to build a specific
identity tied to the Brazilian Northeast, also the way that this kind of religiousness, expressed
in oral form, makes possible some flexibility on religious practices and discourses related to
this space.
Keywords: Luiz Gonzaga, sertão, religiousness, orality.

Introdução
Situada no sopé da Chapada do Araripe, a Fazenda Caiçara, localizada no município
de Exu, em Pernambuco, possui sem dúvida, pela própria constituição geográfica do lugar,
uma presença muito evidente dos elementos sonoros do cotidiano de uma localidade sertaneja
no início do século XX. A rotina dos seus habitantes à época é marcada e ritmada, em grande
medida, por manifestações sonoras. Ao amanhecer, o canto dos galos desperta os lavradores e
as lavadeiras, anunciando novo dia de labuta; os chocalhos pendurados nos pescoços das
criações anunciam o nascer do sol e partida do vaqueiro em sua jornada, o ocaso do astro e o
regresso da boiada também estão marcados pelo som agudo dos chocalhos; entre o começo e
o fim do dia, o som dos riachos , o cortante, lento e grave aboio, o cantarolar dos pássaros,
homens e mulheres, dão pouco espaço ao peso do silêncio; à noite, se é dia de festa, a sanfona

281
Estudante do 7º período da graduação em História-Licenciatura pela Universidade Federal do Rio Grande do
Norte. Bolsista de iniciação científica do CNPq. E-mail: phds_higor@hotmail.com. Trabalho desenvolvido sob a
orientação do Prof. Dr. Durval Muniz de Albuquerque Júnior.
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e o arrastar dos chinelos dão o compasso, se é dia de reza ou de luto, as novenas, ladainhas e
excelências preenchem acusticamente o breu da noite sertaneja. Nessa fazenda , aos 13 de
dezembro de 1912, nasceu o artista Luiz Gonzaga do Nascimento. Toda sua infância esteve
ambientada neste cenário e sua produção musical sobre o sertão, sobre o espaço acima
apresentado, pelo próprio caráter desse tipo de manifestação artística, está ligada a um
exercício de memória do qual o processo mental de composição musical evoca, enquanto
marca constituinte da espacialidade sobre a qual se canta, sua paisagem sonora.282
É pertinente que a obra de Luiz Gonzaga, entendida não como puro exercício de
descrição de uma realidade espacial mas, mais profundamente, como um exercício de
fabricação imagético-discursiva desta espacialidade283, seja analisada de modo que fique
evidente o quanto o processo criativo e a performance do artista foram influenciados pela
evocação da paisagem sonora do espaço sobre o qual ele canta. Ou seja, o ouvido, ouso dizer
que mais até do que o olho, é o canal principal de apreensão dos elementos do espaço – o
sertão, o Nordeste – apresentado na obra gonzagueana. É com maior evidência da escuta do
que do olhar que se caracterizou o sertão de Gonzaga, ele leu o seu mundo e o interpretou em
sua obra a partir do ouvido e da voz. Como música, sua mensagem chega aos seus ouvintes e
reverbera em suas identidades também a partir do ouvido.
A forte presença do som, da voz e de uma escuta específicas enquanto características
da arte de Luiz Gonzaga nos leva a refletir sobre três aspectos – não necessariamente distintos
um do outro, mas interconectados - de sua obra, sobre os quais este trabalho se concentra: o
primeiro é a própria especificidade do conceito de escuta, que aqui aproxima-se da definição
proposta pelo semiólogo Roland Barthes, segundo a qual “Ouvir é um fenômeno fisiológico;
escutar é um ato psicológico” (BARTHES, 1990. p.217); em segundo lugar, é importante
deter-se com atenção no aspecto da oralidade enquanto modelo comunicativo predominante
da sociedade a qual Gonzaga pertence e sobre a qual sua música se dirige, traçando aqui um

282
Para o conceito de paisagem sonora, Ver: SCHAFER, R. Murray. A Afinação do Mundo. 2. ed. São Paulo:
Editora Unesp, 2011.
283
Durval Muniz de Albuquerque Júnior, ao refletir sobre o entendimento da região Nordeste como espaço
dotado de uma realidade que é pré-existente aos discursos que a instituem quanto tal, sendo estes discursos
apenas “espelhos” da espacialidade sobre a qual tratam, critica: “ Falar e ver a nação ou a região não é, a rigor,
espelhar estas realidades, mas criá-las. São espaços que se institucionalizam, que ganham foro de verdade. [...].
Nossos territórios existenciais são imagéticos. Eles nos chegam e são subjetivados por meio da educação, dos
contatos sociais, dos hábitos, ou seja, da cultura, que nos faz pensar o real como totalizações abstratas”.
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A Invenção do Nordeste e Outras Artes .5. ed. São
Paulo: Cortez, 2011. (p.38)
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paralelo entre a força da oralidade e a apropriação de elementos desta mesma oralidade que
representam um modelo específico de religiosidade cristã popular – terceiro objeto do
trabalho. Em suma, e conectando os três aspectos norteadores do texto, o contato com o
religioso através da oralidade constitui um elemento fundamental da própria escuta do artista,
e ele se apropria dessa voz popular e religiosa em diversas músicas suas, o que em grande
medida imprime um estilo estético específico à sua produção. Essa ligação entre religiosidade
e oralidade permite o desenvolvimento de um discurso e de práticas religiosas menos
delimitadas pelo cânone cristão, no qual os elementos da cultura popular encontram um maior
espaço de inserção e potencial de ressignificação da religiosidade que podem ser percebidos
na trajetória do cantor.
Além disso, a influência de elementos religiosos também está presente no cancioneiro
gonzagueano a partir da apropriação de uma moral e visão de mundo religiosas – que em
grande medida possibilitam o entendimento da configuração das subjetividades do cantor e
daqueles que, de alguma forma, experimentaram e valorizaram o contato com tal visão -
fortemente propagada, sobretudo, nas pregações do Frei Damião de Bozzano e do Padre
Cícero Romão Batista. Uma das características marcantes das músicas de Gonzaga é a
veiculação de uma visão fatalista da vida do habitante do Nordeste, que é “marcado pelo
destino de ser sempre um sofredor”, e o contraponto a esse destino trágico aparece sempre sob
a forma pontual de um milagre na terra ou da crença na salvação em “um espaço utópico onde
se afirmava, em relatos religiosos, um possível por definição milagroso”. (CERTEAU, 1998,
p.76)

Benditos, Ladainhas e Procissões: A influência da oralidade religiosa na formação da


escuta Gonzagueana
Existe uma intrínseca relação entre o sentido da audição e a operação de identificação
dos espaços, e esta relação atravessa os mais diferentes estágios de formação e consolidação
de uma escuta específica. O semiólogo Roland Barthes define três tipos diferentes de
escuta284: a chamada primeira escuta, que diz respeito à transformação, à metamorfose dos
ruídos indefinidos de um determinado ambiente em signos que o delimitam e o identificam; a
segunda escuta, que possui um caráter criativo, deliberado, pois indica reprodução intencional

284
BARTHES, Roland. A Escuta. In: BARTHES, Roland. O Óbvio e o Obtuso: Ensaios sobre fotografia,
cinema, pintura, teatro e música. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. p. 217-230.
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de um ritmo ou de um código sonoro inteligível; e a terceira escuta, que possui um caráter


relacional, interpessoal, pois indica a escuta da voz do outro, o estabelecimento de
comunicação verbal.
No processo de consolidação da primeira escuta a relação desta com o espaço é
parcialmente fisiológica, está diretamente ligada à sobrevivência, à identificação das ameaças.
A audição é um dos sentidos mais eficientes em relação à segurança do ser humano pela sua
capacidade de alcance. Na primeira escuta, o processo psicológico que diferencia o simples
ato de ouvir do ato de escutar é justamente a identificação de um espaço de segurança a partir
da assimilação dos ruídos familiares ao convívio em um conjunto de signos, ou seja, escutar
significa, entre outras coisas, delimitar um perímetro espacial de segurança através da
identificação de sons familiares ao espaço o qual se ocupa. A primeira escuta promove um
processo inicial de identificação do homem com o espaço no qual seu convívio está
assegurado.
Na segunda escuta instala-se a dimensão afetiva do homem em relação ao seu espaço
haja vista que, pelo caráter criativo desta, o processo de reprodução e captação de sequências
sonoras, de ritmos bem definidos, deliberados, permite ao homem preencher seu espaço de
convivência de significados e imagens associadas aos sons peculiares do lugar, e aí inicia-se
também o processo de constituição de uma memória afetiva ligada ao auditivo. Na segunda
escuta os lugares convertem-se em espaço de afetividade do homem com o meio, os sons
associam-se às imagens que se fixam na memória e dela podem ser evocados.
A terceira escuta, de maior relevância para as questões propostas neste trabalho, é a
responsável por tornar os afetos presentes em cada espacialidade em multidirecionais,
potencializa as relações de sociabilidade e a constituição de uma subjetividade, ou ainda de
uma territorialidade. Entendendo-se a terceira escuta como a escuta da voz do outro, é
possível pensar tal fenômeno como fortalecedor dos laços sociais entre indivíduos que
compartilham uma mesma espacialidade, criador de uma identidade ou de uma subjetividade
que percorre em fluxos por tal espaço. Além disso, tal escuta compreende o estabelecimento
de relação entre os homens e a oralidade, a compreensão de que aquilo que se fala confere
significado sociocultural ao homem, preenche o ser de signos e significados variados, tendo
em vista que

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[...] a voz nos faz reconhecer os outros (como a letra sobre um envelope), dá-nos a
conhecer sua maneira de ser, sua alegria, ou sua tristeza, seu estado; transmite uma
imagem do corpo do outro, e mais além, toda a psicologia[...].285

A escuta da voz reflete não só a ideia de que os sentidos – nesse caso a audição - são
educados, sua inteligibilidade está condicionada - ao menos nos dois últimos estágios de
formação da escuta – a situações espaço-temporais determinadas, mas também ao fato de que
ouvir o outro significa estabelecer uma relação de identidade, reconhecer os desejos e afetos
do outro explicitados na oralidade significa participar, imiscuir-se, apropriar-se ou afastar-se
desses.
É em consequência da relação entre escuta e identidade, formação de subjetividade,
que pode-se pensar a obra de Gonzaga como sendo influenciada pelos elementos religiosos do
catolicismo fortemente presentes no seu espaço de convivência, e a apropriação de diversas
práticas orais e sonoras dessa religiosidade com a qual ele conviveu pode ser entendida como
instrumento de consolidação da estratégia de enunciação da espacialidade definida como
objeto de sua trajetória artística, a saber, o sertão.
O contato de Luiz Gonzaga com a sanfona se deu desde os primeiros dias de sua vida
através da figura de seu pai Januário, exímio tocador de fole de oito baixos e que também
tinha uma oficina para consertar sanfonas. As primeiras investidas musicais de Gonzaga se
deram às escondidas, aproveitando-se das sanfonas deixadas em sua casa, como ele fazia
questão de lembrar com orgulho a cada vez que narrava sua trajetória artística. Entretanto, há
uma outra experiência fundamental para a formação do estilo musical do Luiz Gonzaga,
igualmente valorizada por ele em suas memórias, que é o contato com as celebrações católicas
do sertão pernambucano, das quais sua mãe era assídua frequentadora e, além disso, era
cantadeira de igreja e puxadeira de reza, cantando, por exemplo, nas novenas do mês de maio,
que aconteciam diariamente, durante nove dias, naquela época.286 Grande parte dessas

285
Idem. (p.224)
286
A biógrafa Dominique Dreyfus, responsável por uma das biografias mais completas do cantor, elaborada
através de uma grande quantidade de horas de conversas gravadas entre ela e Luiz Gonzaga, ressalta a presença
eminente do canto religioso nas festividades sertanejas muitas vezes vividas pelo cantor. “No sertão, festa e
felicidade rimam com música e dança. E o decorrer do ano era marcado pelos festejos. Em dezembro e janeiro,
os reisados, os pastoris, os bumbas-meu-boi animavam a região. Em junho eram as festas juninas, celebrando
São João, Santo Antônio, São Pedro, encarregados de proteger a safra de feijão e milho verde. [...] Havia
também as festas de Renovação, que Gonzaga gostava muito[...] E sempre acontecia algum batizado, algum
casamento, sem contar as procissões, nas quais não faltavam as bandas de pífanos acompanhando os cantos
agudos e arrastados das rezadeiras: ‘Aveee, ave Mariiia...’”. DREYFUS, Dominique. Vida do Viajante: A Saga
de Luiz Gonzaga. 3. ed. São Paulo: Editora 34, 2012 (p.37)
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festividades religiosas serão mencionadas posteriormente em músicas e depoimentos do


cantor, muitas vezes repetidamente, como é o caso do São João287. Além disso, é perceptível
em muitas de suas composições traços melódicos e elementos sonoros e orais ligados a essas
manifestações religiosas. Na música Ave Maria Sertaneja, por exemplo, Gonzaga une uma
melodia lenta e arrastada , semelhantes aos cantos das procissões, que em determinados
momentos simula o dobre de um sino de igreja, a uma oração comum entre os sertanejos
daquela época, rezada exatamente quando o sino da igreja indicava as 18h, horário quando
geralmente o sol havia acabado de se pôr e, pela falta de luz elétrica naquela época, o trabalho
na roça se encerrava e os sertanejos recolhiam-se às suas casas e faziam a seguinte prece, a
última do dia: “Ave Maria/ Mãe de Deus Jesus/ Nos dê força e coragem/ Pra carregar a nossa
cruz.”288
Nas canções Légua Tirana e A Triste Partida é perceptível a alusão, presente tanto na
melodia quanto na letra, a uma longa, resignada e sofrida caminhada, que nos remete
imediatamente a uma das mais fortes imagens do cristianismo ocidental: o êxodo, a busca pela
terra prometida.289 Essa imagem é recorrente em grande parte das narrativas sobre o sertão
nordestino, sejam elas literárias, musicais ou sociológicas. Ela está presente, por exemplo, nos
romances Vidas Secas, de Graciliano Ramos, e O Quinze, de Rachel de Queiroz. Em A Triste
Partida, as condições inóspitas do sertão, agravadas pelas secas, forçam uma família de
retirantes a buscar a sobrevivência em outro lugar:
[...]
Sem chuva na terra
Descamba Janeiro,
Depois fevereiro
E o mesmo verão
(Meu Deus, meu Deus)

287
Segundo o banco de dados do site www.luizluagonzaga.mus.br, Gonzaga gravou 11 músicas cujo título faz
referência à festa de São João.
288
RICARDO, Júlio; GONZAGA, Luiz. Ave Maria Sertaneja. Disponível em:
http://www.luizluagonzaga.mus.br/000/index.php?option=com_content&task=view&id=108&Itemid=103
Acesso em: 01 Fevereiro 2017.
289
“A travessia de um deserto ou de um sertão é uma das mais poderosas e recorrentes representações
arquetípicas da humanidade, como atestam estes dois clássicos da literatura: o Êxodo e o Grande Sertão:
veredas. Em ambos os textos, o mesmo deserto, o mesmo êxodo, a mesma travessia, a mesma epifania como
mito fundante, o mesmo pacto sobrenatural.” . FILHO Apud SENA, In: SENA, Custódia Selma. Uma Narrativa
Mítica do Sertão. In: SENA, Custódia Selma et al (Org.). Sentidos do Sertão. Goiânia: Cânone Editorial, 2011.
p. 101-121. (p.108)
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Entonce o nortista
Pensando consigo
Diz: "isso é castigo
não chove mais não"
(Ai, ai, ai, ai)

Apela pra Março


Que é o mês preferido
Do santo querido
Sinhô São José
(Meu Deus, meu Deus)

Mas nada de chuva


Tá tudo sem jeito
Lhe foge do peito
O resto da fé
(Ai, ai, ai, ai)

Agora pensando
Ele segue outra tria
Chamando a famia
Começa a dizer
(Meu Deus, meu Deus)

Eu vendo meu burro


Meu jegue e o cavalo
Nóis vamo a São Paulo
Viver ou morrer [...]290

A narrativa da migração nessa música está intimamente associada ao êxodo, à busca


de uma terra prometida, que aqui apresenta-se como São Paulo, símbolo da urbanização, da
modernidade e da civilização. É interessante perceber que esse tipo de narrativa contempla
uma experiência de vida de grande parte do público ouvinte da música de Luiz Gonzaga à
época na qual ele gravou a canção. Na canção Légua Tirana, apresenta-se o mesmo cenário de
uma caminhada árdua e longa, entretanto associada a uma romaria, uma espécie de
peregrinação religiosa a algum lugar considerado santo, digno de veneração, com o intuito de
pagar promessas ou de fazer prece. Na música, narra-se a caminhada de um romeiro que diz: “
Fui inté o Juazeiro/ Pra fazer minha oração/ Tô voltando estropiado/ Mas alegre o coração/

290
A Triste Partida é um poema de autoria de Patativa do Assaré ao qual Luiz Gonzaga atribuiu uma melodia e
gravou no ano de 1964. Disponível em:
http://www.luizluagonzaga.mus.br/000/index.php?option=com_content&task=view&id=90&Itemid=103 Acesso
em: 01 Fevereiro 2017.
400
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Padim Ciço ouviu minha prece/ Fez chover no meu sertão[...]”291, fazendo referência à cidade
de Juazeiro do Norte no Ceará – um espaço central, referência para os cristãos sertanejos – e
ao Padre Cícero Romão Batista, figura que povoa com muito destaque o imaginário nacional a
respeito da região Nordeste. Ainda em relação a Légua Tirana, é interessante notar a
similaridade melódica com um determinado tipo de canto religioso – as excelências – que
trata da morte e a relação desta com a temática da seca, conforme afirma o historiador Jonas
Rodrigues de Morais:
A canção ‘Légua Tirana’ inicia com versos que fazem lembrar o canto das
incelências (ou excelências) – tipo de cantiga de velório que aborda o tema
“morte” -, também caracterizado quando o texto musical trata da morte da
natureza e da falta da chuva – ‘Quando o sol tostou as foia/ E bebeu o
riachão[...]’. [...] As incelências de tradição católica eram bastante
perceptíveis no sertão nordestino e marcadas na cultura musical dessa
espacialidade. Esse ritual fúnebre se dá principalmente de noite e madrugada
a dentro, se constituindo de cânticos de velório ou rezas entoadas em voz
alta frente ao corpo da pessoa morta292

A estreita relação estabelecida entre a narrativa da seca através de um canto religioso


cuja motivação é a morte indica o quanto o cancioneiro gonzagueano está atravessado por
uma visão de mundo fortemente influenciada pelo fatalismo religioso, pela inexorabilidade do
destino material, terreno, e, devido a esta primeira característica, do cultivo de uma crença
numa alternativa de vida cuja possibilidade está mais ligada ao milagroso, a uma intervenção
divina, do que propriamente a algum processo social de mudança, de alteração drástica da
ordem.
Partindo do pressuposto que a ação da voz interfere no sentido e na inteligibilidade
própria da palavra, imprime uma marca e uma subjetividade própria daquele que a enuncia, é
importante compreender a dimensão artística, performática presente na obra de Luiz Gonzaga
haja vista que a interpretação, a performance em relação à enunciação de uma determinada
mensagem oral é capaz de conferir sentido diferente a uma mesma situação devido ao
respaldo social do qual é investido o intérprete. Ou seja, em relação às inúmeras influências
das práticas orais cristãs das quais Gonzaga se apropria, é importante pensarmos em como a

291
GONZAGA, Luiz; TEIXEIRA, Humberto. Légua Tirana. Disponível em:
http://www.luizluagonzaga.mus.br/000/index.php?option=com_content&task=view&id=143&Itemid=103
Acesso em: 01 Fevereiro 2017.
292
Ver MORAES, Jonas Rodrigues de. Sons do Sertão: Luiz Gonzaga, música e identidade. São Paulo:
Annablume, 2012. 292 p. (p.113-114)
401
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reunião desses diversos elementos em um projeto artístico e estético organizado, expresso


através da musicalidade e da voz, constrói um forte discurso identitário que associa tais
práticas a uma determinada espacialidade da qual se reivindica o pertencimento. Pelo lugar de
“cantador das coisas do sertão” que Gonzaga assume, por assumir a condição de intérprete e
divulgador dessa realidade a qual ele faz parte, sua obra investe-se de um poder coletivo,
identitário, promotor da unidade. A respeito do intérprete, Paul Zumthor afirma:
Na medida mesma em que o intérprete empenha assim a totalidade de sua presença
com a mensagem poética, sua voz traz o testemunho indubitável da unidade comum.
Sua memória descansa sobre uma espécie de ‘memória popular’ que não se refere a
uma coleção de lembranças folclóricas, mas que, sem cessar, ajusta, transforma,
recria. O discurso poético se integra por aí no discurso coletivo, o qual ele clareia e
magnifica[...].293

A música de Gonzaga, então, influenciada pelo processo de formação da sua própria


escuta, enuncia uma identidade, uma territorialidade a partir da apropriação – entre outras
coisas – de elementos do cristianismo que, pelo seu caráter oral, apresentam uma mobilidade
das formas, uma fusão com elementos que não necessariamente compreendem o cânone
cristão, e esse tipo de discurso religioso manifestado na oralidade carrega uma dimensão
problemática devido ao fato de que pode servir tanto como modelo mais acessível de
enunciação de uma mensagem e de uma religiosidade cristã quando comparado à muitas
vezes complexa interpretação do cânone, mas também pode dar vazão a práticas ou a
interpretações de mundo que são resultados da influência de elementos que não são
necessariamente cristãos em uma narrativa cristianizada. Para além de identificar
positivamente ou negativamente estas possibilidades, faz-se interessante pensar como essa
dubiedade proporciona a criação e adoção de novas práticas cristãs que se desenvolvem à
margem do catolicismo tradicional, mas que não necessariamente representam resistência ou
afastamento em relação a este.

Quando o Gibão Vira Batina: A Missa do Vaqueiro


Luiz Gonzaga vivenciou, durante toda sua vida, um contato bastante peculiar com um
modelo de cristianismo fortemente marcado pela informalidade, por interpretações autônomas
da doutrina cristã advindas, entre outras coisas, do fato de que nem mesmo os padres tinham

293
ZUMTHOR, Paul. A Letra e a Voz: A "literatura" medieval. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. 324 p.
(p.142)
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uma formação intelectual suficiente para interpretar as muitas vezes complexas reflexões do
livro sagrado. A relação com o divino no recorte espacial estava muito marcada pela inserção,
em meio a uma leitura de mundo cristã (a crença messiânica, a fé numa perspectiva
salvacionista), de algumas sobrevivências animistas, de uma sacralização dos elementos da
natureza, da atribuição de poderes a seres como os pássaros – esses animais tiveram um lugar
bastante privilegiado no repertório do sanfoneiro, sempre aparecendo relacionados a algum
sinal divino a respeito, sobretudo, dos períodos de chuva e seca: é o caso do Acauã, ave de
“mau-agouro” cujo canto indica a seca, “Acauã/ Teu canto é penoso e faz medo/ Te cala
Acauã/ Que é pra chuva voltar cedo”294. Na obra de Gonzaga, a natureza aparece sempre
investida de um poder que escapa ao domínio de explicações racionais.
A forte presença de uma visão fatalista de mundo existente na obra de Gonzaga, a
ideia de que existe uma força destinadora sobre a qual as atitudes humanas não têm poder
certamente é derivada de uma característica bastante comum no sertão nordestino desde
meados do século XIX – quando a região Nordeste ainda denominava-se Norte – que é a
presença dos beatos, figuras que, diante do cenário de miséria social e inospitalidade dos
espaços o qual percorria, reunia a seu redor uma legião de fiéis que passavam a compartilhar
essa crença numa perspectiva de mudança mas cujo objeto de desejo, cujo cenário idealizado
não estava propriamente em concreto alcance, situava-se em um plano mais ou menos
abstrato.295 A figura do Frei Damião de Bozzano foi o mais notável desse tipo religioso à
época na qual Gonzaga viveu, e a este beato o cantor homenageou em mais de uma música.
A missa do vaqueiro296 é talvez o acontecimento que melhor exemplifique essa relação
flexível, maleável, embora de muita fé que o cantor possuía com o catolicismo. No dia 9 de
julho de 1954, Raimundo Jacó, vaqueiro ligado à família Alencar e primo de Luiz Gonzaga,
foi morto por outro vaqueiro que, ao que tudo indica, estava ligado à família dos Sampaio.
Essas duas famílias alimentavam um conflito histórico na região do Exu e esse assassinato foi
um dos muitos que ocorreram naquele lugar devido ao conflito. A investigação a respeito da

294
DANTAS, José; GONZAGA, Luiz. Acauã. Disponível em:
http://www.luizluagonzaga.mus.br/000/index.php?option=com_content&task=view&id=95&Itemid=103 Acesso
em: 02 Fevereiro 2017.
295
Michel de Certeau foi um historiador que procurou refletir sobre como essas reivindicações atreladas a uma
visão mística, religiosa do mundo conectava-se com as reivindicações políticas, entendendo estas como as que
estão atreladas a um objeto de desejo concreto e aquelas como sendo as que tal objeto não aparece
concretamente definido. Ver CERTEAU, Michel de. La Debilidad de Creer. Buenos Aires: Katz, 2006. 326 p.
296
Sobre a Missa do Vaqueiro, Ver: DREYFUS, Dominique. Op. Cit. (p.246-251)
403
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morte de Raimundo Jacó pouco durou, sendo logo suspensa e o processo finalizado sem
nenhum culpado. Inconformado, Gonzaga decidiu responder a esse acontecimento gravando
uma toada intitulada A Morte do Vaqueiro, música que apresenta um teor de protesto pouco
comum no cancioneiro gonzagueano. Nela, Gonzaga denuncia o descaso em relação à morte
do seu primo, evidenciando o desprezo dos coronéis pelo acontecimento: “[...] Bom vaqueiro
nordestino/ Morre sem deixar tostão/ O seu nome é esquecido/ Nas quebradas do Sertão/ [...]
Sacudido numa cova/ Desprezado do senhor/ Só lembrado do cachorro/ Que ainda chora a sua
dor[...]”297.
Alguns anos depois da morte do seu primo, Luiz Gonzaga conhece João Câncio, um
padre da região do Exu que dividia as funções sacerdotais com as corridas de boi nas
vaquejadas. Câncio foi uma figura que se notabilizou por seu engajamento político e
combateu a exploração dos trabalhadores rurais em plena ditadura militar, e da amizade com
Gonzaga resultaria a criação da Missa do Vaqueiro, que serviria não só como encontro de
celebração da fé cristã por parte dos trabalhadores, mas também como reuniões informais para
que as reivindicações do grupo fossem ouvidas. Durante muito tempo, Gonzaga custeou a
realização do evento, que possuía características peculiares as quais indicam com clareza a
maleabilidade do contato com o religioso sobre a qual esse texto reflete: Em primeiro lugar,
ao invés de batina e estola, João Câncio celebrava a missa vestido em um gibão de couro;
entre os cantos entoados na celebração estava a canção A Morte do Vaqueiro; ao invés de
celebrada em um templo religioso como uma capela ou igreja matriz, a missa acontecia no
lajedo sob o qual encontraram o corpo de Raimundo Jacó. Por fim, e mais interessante ainda,
toda a liturgia da celebração era pensada de modo que os ensinamentos bíblicos fossem
metaforizados em situações comuns aos vaqueiros, como afirmara o padre em depoimento:
Eu transmiti o que eu queria dizer aos cantadores, para que eles pusessem no
linguajar certo do povo, com a mensagem que eu queria dar. Isso era a parte litúrgica
da missa. Quanto à eucaristia, eu me inspirei nos costumes dos vaqueiros. Por
exemplo, na época de levar o gado lá pra serra, acabavam as rivalidades, as
inimizades entre os vaqueiros. Havia então um senso da comunidade e uma
solidariedade muito fortes. Por exemplo, eles juntavam o gado de todo mundo, não
queriam saber de quem era, e colocavam nos currais até a apartação, no dia de
descer. E enquanto estavam lá em cima, a comida era dividida entre todos. Quem
tinha um patrão pobre, que só dava rapadura, dividia a rapadura, e quem tinha um

297
BARBALHO, Nelson; GONZAGA, Luiz. A Morte do Vaqueiro. Disponível em:
http://www.luizluagonzaga.mus.br/000/index.php?option=com_content&task=view&id=86&Itemid=103 Acesso
em: 02 Fevereiro 2017
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patrão rico, que dava carne, dividia a carne também. Assim, todos comiam igual e à
vontade... e eu peguei isso como a divisão dos apóstolos.298

A Missa do Vaqueiro exemplifica, então, a mobilidade das formas, a ampliação das


alternativas, as vicissitudes de um discurso religioso ligado ao cristianismo e divulgado,
tornado coletivo, sobretudo a partir de práticas orais. É na oralidade que se instala a fluidez
dos discursos, e Gonzaga apropria-se e identifica-se com essa fluidez a medida em que
assume o papel de construtor de uma identidade, de uma territorialidade a partir do seu canto,
da força da sua voz e do seu lugar de fala.

Considerações Finais
A perspectiva de um sertão desvinculado de uma religiosidade presente e difusa em
vários elementos constituintes desse espaço é pouco provável e inteligível haja vista que, do
ponto de vistas dos discursos hegemônicos a respeito da região, a dificuldade de lá viver é
crônica, e o sentido da vida deve ser buscado em outras alternativas, o passo à frente deve ser
dado em outra direção, uma direção que fundamentalmente transcenda os limites terrenos,
visto que, na aridez da terra seca, o clímax não passa da sobrevivência diária, buscada da
estaca zero, ciclicamente, durante todo dia. É esse tipo de discurso - do qual Luiz Gonzaga
não só deu vazão mas preencheu de outros sentidos diferentes através da sua arte – que
justifica a associação entre a região e um destino fatalista até os dias atuais.
Entretanto, enquanto as alternativas de mudança, as perspectivas de redenção situam-
se nesse outro plano, nesse ponto de conexão entre o político e o místico, fecha-se os olhos
para o desequilíbrio e a desigualdade social provocada tão somente pelas ações humanas, pela
adoção de projetos de poder que visam a manutenção de privilégios de um determinado
segmento social às custas da exploração de outro.

Referências Bibliográficas

ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A Invenção do Nordeste e Outras Artes .5. ed. São
Paulo: Cortez, 2011.

BARTHES, Roland. O Óbvio e o Obtuso: Ensaios sobre fotografia, cinema, pintura, teatro e
música. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.

298
In: DREYFUS, Dominique. Op. Cit. (p.248)
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RELIGIOSIDADES - ANPUH
História das Religiões, Literatura, Conceitos e Identidades – Vol. VI – ISSN 2359-6988

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Uma análise da cartilha “Celebração das Comunidades”, pela diocese de Nova


Iguaçu (1988) – Teologia da práxis.

Peter Sana.299

Resumo: Nossa pesquisa busca compreender como o empenho nas estruturas políticas de
base da população, feito pela Diocese de Nova Iguaçu, sob a liderança do bispo Dom Adriano
Hypólito, contribuiram para o processo de luta na Baixada Fluminense. A nova postura das
Igrejas Católicas da América Latina, diante de um cenário de pobreza, suscitou o processo de
reflexão dos líderes religiosos desta região. O nosso objetivo é trazer uma visão panorâmica
sobre a Teologia da Libertação, compreender como era conduzida e integrava o papel político
de conscientização das classes populares misturando a autoridade eclesiástica a uma espécie
de líder político na obtenção de representatividade no período. Traremos o exemplo da a
diocese de Nova Iguaçu e a liderança do bispo Dom Adriano, e faremos uma breve análise da
cartilha “Celebração das Comunidades” (1988), suas relações com a fala da diocese e a
linguagem dos movimentos sociais após a ditadura militar.
Palavras-chave: Dom Adriano Hypólito, Diocese de Nova Iguaçu, cartilha Celebração das
Comunidades.

An analysis of the booklet "Celebration of Communities" by the diocese of Nova


Iguaçu (1988) - Theology of praxis.

Abstract: Our research seeks to understand how the commitment to the basic political
structures of the population, made by the Diocese of Nova Iguaçu, under the leadership of
Bishop Adriano Hypólito, contributed to the struggle in the Baixada Fluminense. The new
attitude of the Catholic Churches of Latin America, faced with a scenario of poverty, sparked
the process of reflection of the religious leaders of this region. Our objective is to bring a
panoramic view of Liberation Theology, to understand how it was conducted and to integrate
the political role of raising popular awareness by mixing ecclesiastical authority with a sort of
political leader in obtaining representativeness in the period. We will take the example of the
diocese of Nova Iguaçu and the leadership of Bishop Adriano, and we will briefly analyze the
booklet "Celebration of Communities" (1988), its relations with the diocese's speech and the
language of social movements after the military dictatorship .
Keywords: Dom Adriano Hypólito, diocese of Nova Iguaçu, booklet Celebration of
Communities.

Introdução.

Após o golpe militar de 1964, a Igreja brasileira se caracterizou por possuir alguns
bispos atuantes que se destacaram por sua coragem em ir contra a tradição e buscar

299
Doutorando em História Social pela UERJ-FFP; mestre em Educação, contextos contemporâneos e demandas
populares pela UFRRJ (2015); possui especialização em Sociologia pela UGF (2012), graduação em História
pela UNIG (2009) e em Filosofia pela UERJ (2015); professor concursado pela SEEDUC (2013).
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alternativas que fossem além do campo de atuação até então praticado. O eixo social passou a
ser um novo campo de atuação destas Igrejas, e o campo religioso passou a ter uma
interpretação que buscou fundamentar tais ideias consideradas progressistas.
Segundo Scott Mainwaring (1989, p.9), a Igreja brasileira, durante este período que
podemos considerar nosso recorte histórico para o desenvolvimento de tal pesquisa (1964-
1985), foi a mais progressista do mundo.
Os setores que passaram a receber a influência da Igreja na Baixada Fluminense foram
os mais variados. Preservar a influência social como alternativa para a manutenção da força
da Igreja no âmago da sociedade necessitava sair da cobertura voltada para as elites
(DIOCESE DE NOVA IGUAÇU, 1983, p.44).
Neste pequeno artigo, discutiremos o papel da Teologia da Libertação diante da
conjuntura política vigente no bispado de D. Adriano Hypólito (1966 – 1996), o embasamento
teórico que fomentou a participação popular diante das decisões políticas da diocese de Nova
Iguaçu e principalmente as ideias contidas na cartilha “Celebração das Comunidades”
publicada pela Igreja iguaçuana com a edição do mesmo bispo. Contudo, buscaremos mesclar
o esclarecimento dos pontos destacados acima e dos objetivos e principais motivações para a
produção da cartilha ter sido feita pela diocese; além de buscar compreender as formas de
atuação que buscavam obter com a produção da mesma.

A Teologia da Libertação e as ideias progressistas.


Segundo Mainwaring (op. cit., p. 18), a atuação da Igreja pôde ser ampliada após o
fenômeno que foi denominado Teologia da Libertação a partir de 1960. Com o Concílio
Vaticano II, a Igreja oficializou a sua preferência no favorecimento da causa popular. Sua
construção ideológica passou a funcionar em detrimento das massas, e isso se deve mais pelo
momento histórico e a manutenção de sua influência do que o fato de não haver oposição no
seu interior (Ibidem, p. 19).
Muitos tradicionalistas buscaram rompimento com esse novo modelo de Igreja. E
tivemos esse exemplo também em Nova Iguaçu, quando o padre Valdir Ros, da paróquia do
bairro Riachão (Nova Iguaçu), rejeitou o projeto político implementado pela diocese e passou
a fazer duras críticas ao bispo. Esta crítica ganhou apoio dos grupos que viam o bispo e suas

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ações de cooperação com os movimentos sociais da região como uma ameaça a hegemonia de
grupos locais contrários ao novo modo de agir da Igreja (SERAFIM, 2013, p.104).
Foi preciso que a Igreja criasse um “sentido comunitário em torno da fé”
(MAINWARING, 1989, p. 20) para que a identidade religiosa pudesse ser fundida com a
causa social. A conjuntura social da América latina sugeriu uma nova forma de compreensão
da realidade e, consequentemente da sua mais plena forma de atuar no meio social (Ibidem, p.
25).
“Para os teólogos da libertação, o socialismo ou toda a forma de emancipação humana
não é senão uma preparação ou antecipação da salvação total da chagada do reino de Deus”
(LÖWY, 1991, p. 103). E esta conexão com ideias marxistas foram motivos para ataques aos
bispos que buscavam na opção pelos pobres uma nova maneira de ser cristão.
O marxismo é utilizado como mediação para o discurso da fé: Ele tem ajudado a
esclarecer e a enriquecer certas noções maiores da teologia: povo, pobre, história e
mesmo práxis e política. Isso não quer dizer que se tenha reduzido o conteúdo
teológico dessas noções ao interior da forma marxista. Ao contrário, tem-se
separado o conteúdo teórico válido (isto é, de acordo com a realidade) de noções
marxistas no interior do horizonte teológico (BOFF, Leonardo e Clodovis. 1984,
apud LÖWY, M. 1991, p. 103).

O fervor religioso passou a ser colocado a serviço do corpo social, e as interpretações


que vigoraram no tal contexto histórico e simbolizaram uma nova esperança para a luta
popular (GARCIA, 2008, p. 21). O Deus que se fazia presente na configuração mais
tradicional do agir católico passou a ter uma nova aspiração: pelas classes sociais menos
abastadas da sociedade (Ibidem, p. 23).
A conexão entre marxismo e teologia da libertação, segundo Maria Cristina Garcia
(ibidem, p. 36-37), está no fato de ambos se encaixarem em movimentos de pobres, a luta
contra as injustiças e opressão causadas pelo sistema capitalista.
Para tanto, quando a fé passa a ser utilizada em função da organização igualitária da
sociedade, os desfavorecidos se reconhecem nela e passam a ter uma nova perspectiva e ainda
mais forte para manter a luta de pé.
A “Teologia da Ação”: a cartilha “Celebração das Comunidades” e a
performance social da Diocese de Nova Iguaçu.
Leonardo Boff (1980, p. 13) nos descreve que a libertação política exige um novo
olhar sobre a realidade, uma tomada de autoconsciência que permitiria ao indivíduo o
desvelar da realidade implícita.
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Os valores que são constantemente taxados como essenciais pela sociedade capitalista,
podem não ser pretendidos por todas as classes sociais a partir do momento que elas tomam
consciência de tais práticas como manutenção da condição de explorada.
A consciência da dominação leva a falar em libertação. A libertação condena toda
forma de subdesenvolvimento e dominação. Isso não se obtém sem conflito, esse que começa
com a revelação da sua ideologia (BOFF, 1980, p. 17-18).
Contudo, a cartilha “Celebração das Comunidades”, confeccionada pela diocese de
Nova Iguaçu e editada pelo bispo D. Adriano Hypólito em junho de 1988, trazia uma
orientação para o entendimento de seu preparo na sua segunda página: era uma saída do
modelo de Igreja engessado e formal.
A cartilha ainda trazia em sua segunda página de orientação o enfoque na celebração
da vida e o debate em torno das questões da violência na Baixada Fluminense, e oferece ao
povo um lugar para debates e a ser ocupado para fins comunitários, isto é, a Igreja e todo seu
aparato financeiro e estrutural.
Na página 3, a cartilha oferece uma carta do bispo D. Adriano Hypólito fazendo um
grande apelo às comunidades para que pudessem ocupar a Igreja e assim se fortificarem na
luta contra a violação dos direitos humanos.
Tendo como título da página “O Bispo Contra A Violência”, no primeiro parágrafo o
bispo enfatiza a grande violência que existe na Baixada Fluminense e relata que quase
nenhuma família pode dizer que não foi vítima de um roubo, assalto, estupro, morte ou
qualquer tipo de violência. Além disso ainda pontua que tais situações têm sido conduzidas
com descaso pelas autoridades, pois não há punições aos criminosos.
Em seguida, tomando como inexistente a capacidade do poder público em lidar com
tais problemas, e destaca a repressão com que os mesmos tratam aqueles que criticam o
governo, convoca a comunidade a discutir tais problemas e a agirem de alguma maneira para
sanar tal deficiência.
Sua pretensão, destaca na mesma página 3, não é tomar o lugar do Estado na ação
policial e repressão da violência, mas cumprir um papel evangelizador de conscientização da
população para que viessem, participassem desta movimentação e discussão e assim
pudessem, de alguma forma, diminuir tal desespero causado pela violência na Baixada
Fluminense.

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A principal ideia era que a comunidade, através de sua experiência durante todo o
período do governo militar, colocasse à disposição a sua criatividade em lidar com tais
problemas e conduzisse tal criatividade na elaboração de alternativas que, a médio e longo
prazo, diminuíssem o quadro de violência na região.
Na página 4, nos cantos de entrada, observamos a ênfase na questão da liberdade e da
justiça. Como podemos notar no segundo canto:
Não temais os que vos ameaçam com a morte ou com difamação. Não temais os
poderes que passam, eles tremem de armas na mão. Não temais os que ditam as
regras na certeza de nunca perder. Tende medo somente de quem cala ou quem finge
não ver.

As palavras são voltadas totalmente para uma reanimação da comunidade face aos
problemas sociais e políticos, que mesmo estando em tempos de abertura política,
permaneciam com medo da repressão vivida de 1964 até 1985, com o fim do regime militar.
No terceiro canto percebemos o quanto a Igreja está valorizando a voz do povo e
criticando o silêncio daqueles que observam os problemas sociais, mas que não interferem ou
não agem em função de sua própria liberdade e justiça contribuindo assim também para outras
pessoas. Como vemos:
Não temais os que gritam nas praças que está tudo perfeito e correto. Não temais, os
que afirmam de graça que vós nada trazeis de concreto. Não temais o papel dos
profetas, que o papel do profeta é falar. Tende medo somente do medo de quem acha
melhor não falar.

Embora a ideia que é passada de melhorias após uma possível ruptura com o regime
militar, a realidade que podemos observar na região da Baixada Fluminense é que ainda
permanecem velhos problemas de violência e falta de assistência nos serviços básicos. Mas
agora com aparência democrática, a intensificação da luta tenderia a diminuir conforme as
melhorias fossem acontecendo.
Na parte da cartilha em que o dirigente fala à comunidade presente, sempre mantém a
ideia do Deus “libertador” e atribui o mesmo significado daquele que protege e guia os
oprimidos. São as ideias que podemos notar na fala da Teologia da Libertação, pois como
reforça Leonardo Boff (1980, p. 25), a humanização como processo de abertura e evolução
humana faz do homem capaz de superar limites e romper a domesticação sofrida pela
repressão.

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Na mesma página 4, no ponto 3 que se refere ao sentido da celebração, ficam claros os


objetivos de denunciar a questão da violência e colocar a diocese na liderança deste processo
no item denominado “leitor 1”.
Na página 5, o “leitor 2”, veio com a proposta de destacar a situação de pobreza da
Baixada Fluminense e a maneira com que as “minorias privilegiadas sempre tratam a força de
trabalho, que constitui a tônica de nossa população. Nossa sociedade vai simplesmente
reproduzindo as relações escravocratas”, relata.
Entre “leitor 1”, “leitor 2”, até o nono na página 6 da cartilha, seguem passagens
carregadas de fé na religiosidade cristã. Nesta cartilha podemos perceber claramente a mistura
de fé com crítica social e política, características da Teologia da Libertação, que também tem
grande influência das ideias marxistas.
No item “leitor 3”, na página 5 da cartilha, percebemos uma fala bem vigorante que
traz à tona a reprodução das velhas estruturas dominantes que mantém desde muito tempo a
população pobre à margem da sociedade e sofrendo com a violência latente e escandalosa
neste meio.
No “leitor 4”, é destacado que o problema não é da população miserável, mas sim do
descaso que há da parte da sociedade brasileira enraizada com o tradicionalismo elitista e
excludente, e revela que “tudo isso possibilita as chacinas não apuradas, os destruidores de
vida não punidos, os ‘presuntos’ insepultados da Baixada Fluminense.
O “leitor 5” critica a postura das igrejas que correm em lado oposto dos problemas
sociais, isto é, cuidam apenas da parte espiritual e negligenciam a situação de violência e
constante violação dos direitos humanos da população mais pobre.
O “leitor 6”, já na página 6, descreve que uma simples Igreja alternativa não era
suficiente para trazer soluções aos problemas, mas sim uma Igreja que tem “compromisso
com a realidade”.
O “leitor 7” mostra que em anos passados houveram promessas de melhoria na
segurança pública, mas nenhuma das solicitações ou sequer propostas paliativas foram
executadas, mas sim largadas de mão pelas autoridades.
Dados tais problemas, destaca o “leitor 8”, a própria Igreja, no Conselho Presbiteral,
passou a fazer seu levantamento em um dossiê, que buscava trazer esclarecimentos sobre os
crimes que aconteciam na Baixada Fluminense. E no “leitor 9” continua o relato informativo

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que esclarece sobre a ideia de se encontrar às quintas-feiras na diocese para um fórum contra
a violência.
Já no item 4, que vai da página 7 à página 8, temos um diálogo entre o dirigente do
encontro e a comunidade salientando algumas causas de violência doméstica que podem ser
evitadas se houver um processo de conscientização de tal ato como um pecado e uma agressão
ao próximo. O diálogo ainda traz ideias voltadas para a não prática da calúnia e difamação, e
também incentiva a compreensão dos problemas dos próximos e sensibilização com a causa
alheia.
Na “Oração Comum”, ponto 5 da cartilha, na página 8, há uma espécie de clamor que
busca através da religiosidade destacar os problemas sociais e buscar ajuda divina para
situações que são de grande perturbação para a população mais pobre. Segue a oração:
Deus de nossos pais / Senhor da História. / Pai dos pobres! / Tu que ouviste o clamor
de Israel / e o libertaste da terra de servidão, / arranca de nosso coração / da tua
Igreja / e de nossa sociedade, / as marcas do pecado da escravidão, / que dominou o
Brasil, por tantos séculos! / Livra-nos do racismo, / do preconceito, / da
discriminação e da violência! / Ouve o clamor do povo negro, / com todos
empobrecidos da terra, / a caminho da Libertação! / Faze reinar entre nós sua justiça
/ “derruba o trono dos poderosos / e exalta os humildes, / sacia de bem os famintos /
e despede os ricos sem nada”. / Senhor, apressa o dia, / em que vivendo teu Amor, /
sejamos no coração da história / semente do Povo Novo, / livre de toda injustiça / e
de todo pecado da violência. / Isso te pedimos / com a Virgem Aparecida, / por Jesus
Cristo, / na unidade do Espírito Santo, Amém.

São diversos os elementos tratados nessa luta que a Igreja travou junto à comunidade.
Violência está sendo vista como uma diversidade de ações que coíbem ou inibem a liberdade
alheia, quer seja da causa negra, do “empobrecido” ou mesmo dos que sofrem com a violência
física. Todos estes elementos estão vinculados à fé e a ação prática da experiência divina.
A autoridade eclesiástica é vista como o eixo central da constituição das redes de
relações. Envolve a noção do poder e os meios coercitivos que são utilizados para a
manutenção do poder por persuasão (BEZERRA, 2009, p. 1). Trata-se de reconhecer a
autoridade do bispo como guia na luta por melhores condições e o recurso da fé para legitimar
tal confiança e passar a mensagem de esperança na luta social.
No ponto 6, “Oração Dialogada” entre homens e mulheres nas páginas 8 e 9 da
cartilha, a mensagem mantém o mesmo sentido, isto é, a ideia de esperança e de união dos
pobres para a luta contra a opressão.

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No ponto 7, “Canto: Povo De Deus Conquistando A Liberdade”, percebemos uma


ideia motivacional e educativa. A busca pelo ideal de luta é o grande foco, assim contendo a
mistura da fé e da revolta contra a falta de liberdade e opressão social, política e econômica
sofrida pelos “empobrecidos”.
Nas leituras da página 10 até a 12, denominadas “leitura 1”, “leitura 2”, “leitura 3”,
“leitura 4”, “leitura 5” e “leitura 6”, as mensagens vêm baseadas nas “lamentações de
Jeremias”, e nos intervalos de tais leituras, frases eram repetidas pela comunidade que tinham
teor bastante crítico e consciente do que deveria ser combatido. Como nos mostra a frase entre
a “leitura 2” e a “leitura 3”, o destaque à opressão sofrida: “pelos caminhos da América há
muitos monumentos sem rostos! Heróis pintados, mau gosto, livros de história sem cor,
caveiras de ditadores, soldados tristes, calados, com olhos esbugalhados vendo avançar o
Amor!”
Na página 12 temos a referência ao ponto 9300, referente à parte da celebração que há
depoimentos espontâneos referentes a uma contextualização do problema da Baixada
Fluminense e as lamentações de Jeremias, e o ponto 10, denominado “Canto: Povo Peregrino
Em Busca De Libertação”, juntamente com o ponto 11 (Salmo 68), e o 12 (“Profecias De
Isaías: O Novo Céu E A Nova Terra”, página 13), a mensagem passada no direcionamento da
celebração mescla a ideia de libertação do povo oprimido com a mensagem de esperança
daqueles referenciais históricos contidos no livro sagrado que se libertaram também da
opressão dos poderosos.
O ponto 13 é uma clara ideia trazida pela Teologia da Libertação, ou seja, no “Canto:
Veremos Reinar A Liberdade”, podemos observar a ideia do paraíso na Terra, onde não
haveria injustiças e o povo conseguiria viver em liberdade e sem opressão, mas sempre tendo
em vista a luta que deveria travar contra os opressores para tal sucesso.
Na página 14, o ponto 14 “Profecias De Isaías: As Mãos Dos Opressores Estão
Cheias De Sangue”, faz uma denúncia usando o livro bíblico do profeta Isaías como base para
buscar um estado de consciência e libertação para a revolta do povo contra a opressão e o
estado de violência que vivia a região.
O ponto 15, na página 15 denominado “Canto: Tempo Da Graça, Dia Da Libertação”,
a mensagem de liberdade e contra a opressão continua sendo embasada pelos escritos

300
O ponto 8 trata das Lamentações de Jeremias e o 9 dá abertura para depoimentos espontâneos.
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sagrados. Assim segue com o ponto 16, denominado “Evangelho De Lucas (4, 14-21): Hoje
Cumpriu-Se A Profecia”, com a mesma ideia de buscar conscientizar a comunidade da
necessidade de libertação e do embasamento bíblico que justificava a participação da Igreja
nesta luta social.
Na última página (16), os pontos 17, “Partilha Comunitária Da Palavra De Deus”, 18
“Palavra Aberta Aos Presidentes Da Celebração”, 19 “Orações E Preces Espontâneas Da
Comunidade”, 20 “Pai Nosso Do Povo De Deus Se Dando As Mãos” E 21 “Saudação
Fraterna E Abraço De Paz” traz a parte da celebração em que os participantes da comunidade
podem demonstrar suas ideias e seus entendimentos acerca do que foi cantado e falado no
evento. O ponto 22, “Canto Final”, celebra a despedida do evento e o encerramento da
cartilha tem a frase “A Baixada Busca Deus Libertador”.

Conclusão.
Embora o período do regime militar tenha se encerrado em 1985, as ideias contidas na
base da diocese de Nova Iguaçu continuaram a ter um grande teor crítico e fundamentado nas
ideias da Teologia da Libertação.
A cartilha da “Celebração da Comunidade” é um exemplo de como a atuação política
orientada pelo embasamento bíblico pode ganhar proporções grandes e atingir o objetivo de
promover libertação contra o estado de opressão pela ideologia dominante e movimentar o
povo em direção à luta social com a liderança da Igreja.
A importância da liderança da diocese de Nova Iguaçu nas lutas sociais da Baixada
Fluminense se deve ao trabalho iniciado pelo bispo Dom Adriano Mandarino Hypólito, que
após a sua posse na diocese em 1966, passou por um processo de sensibilização e opção pelos
pobres.
Diante de todo trabalho realizado com as Comunidades Eclesiais de Base301, estendeu
a ação da Igreja a um âmbito muito maior que o espiritual, isto é, passou a ter
representatividade nas lutas sociais que emergiam no cenário de resistência no período da
ditadura militar.

301
As CEB’s “constituem um novo modo de ser Igreja. Nesse sentido, representam ‘uma resposta específica a
uma conjuntura histórica vigente’(Demo-Calsing, Relatório da pesquisa sobre CEBs, 18-19). Teologicamente
significam uma nova experiência eclesiológica, um renascer da própria Igreja e por isso uma ação do Espírito
Santo no horizonte das urgências de nosso tempo)” (BOFF, p. 18, apud Paulo VI, REB 34, 1974, p. 945).
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Não obstante, a cartilha aqui exposta e comentada, é um exemplo de como o processo


de politização introduzido pelas ideias compostas pela Teologia da Libertação, em
consonância com o discurso do bispo Dom Adriano, produziu resultados expressivos na
vanguarda de atuação nessa mistura de fé e práxis que levou a Igreja iguaçuana a um status de
“agente” social e promovedora de um espaço de lutas e cooperação daqueles menos providos
de recursos financeiros e assistência social e intercalado com a falta de representatividade
política. Após toda essa atuação de base feita pela Igreja nos anos 60 e 70, o espaço
evangélico também se mesclou com o espaço de atuação política, fazendo do fiel um atuante
político e reivindicador de sua própria causa, com seu representante maior a entidade
eclesiástica.

Documentação
Cartilha “Celebração das Comunidades”. Diocese de Nova Iguaçu, 19 de julho de
1988.

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Educação familiar e missões protestantes no Brasil: as filhas do casal Wardlaw e as


práticas de escrita e leitura (1880-1899)
Sergio Willian de Castro Oliveira Filho302

Resumo: No século XIX, o Brasil se tornou um campo missionário protestante. A presente


comunicação busca discutir os discursos e experiências da família dos missionários
estadunidenses De Lacey Wardlaw e Mary Hoge Wardlaw, que passaram cerca de vinte anos
no Brasil, especificamente no que diz respeito às práticas de letramento doméstico
desenvolvidas em tal nação. Abordaremos elementos relacionados à instrução das filhas
destes missionários presbiterianos nascidas no Brasil e as práticas de escrita e leitura destas
crianças. Nossa hipótese gira em torno da perspectiva de que o letramento dos filhos de
protestantes no campo missionário continha elementos que iam além da relação leitura e fé,
abrangendo também vasta leitura de textos não religiosos e de incentivo à escrita.
Palavras-Chave: Missões Protestantes; Brasil; Práticas de letramento.

Abstract: In the 19th century, Brazil became a Protestant mission field. This paper aim
discuss the discourses and experiences of the family of the American missionaries De Lacey
Wardlaw and Mary Hoge Wardlaw, who spent about twenty years in Brazil, specifically with
regard to the domestic literacy practices developed in that nation. We will approach elements
related to the education of the daughters of these Presbyterian missionaries born in Brazil
and the writing and reading practices of these children. Our hypothesis revolves around the
perspective that the literacy of the Protestant children in the mission field contained elements
that went beyond the relation between reading and faith, also encompassing vast reading of
non-religious texts and encouragement of writing.
Keywords: Protestant Missions; Brazil; Literacy practices.

A prática missionária protestante norte-americana no Brasil e em outros pontos do


globo, durante o século XIX, teve na fundação de escolas primárias uma de suas principais
estratégias como mecanismo proliferador da alfabetização e proselitismo. Apesar da atuação
de missionários colportores na primeira metade do século XIX e da implantação da Igreja
Congregacional no Rio de Janeiro em 1855 pelo Reverendo escocês Robert Reid Kalley
(1809-1888), podemos considerar a efetivação e expansão do projeto missionário protestante
proselitista no Brasil a partir da articulação de dois comitês missionários presbiterianos dos
Estados Unidos: a Missão do Norte sediada em Nova York e a Missão do Sul sediada em
Nashville, as quais em 1859 enviaram o Reverendo Ashbel Green Simonton303 ao Rio de
Janeiro.

302
Doutorando em História Cultural pela Universidade Estadual de Campinas. Email: sergiowfilho@ig.com.br
303
MENDES, Marcel (Org.). Simonton, 140 anos de Brasil. São Paulo: Editora Mackenzie, 2000. pp. 59-60.
417
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Em seguida a missão presbiteriana se estendeu para o interior das Províncias do Rio de


Janeiro e São Paulo seguindo a trilha do café. Apenas na década de 1870 o protestantismo de
missão estabeleceu suas raízes no norte do Brasil, tendo por base principal a cidade de Recife
e como líder o Reverendo John Rockwell Smith. Recife passou a ser a cidade que recebia os
missionários encarregados de fundarem comunidades protestantes em outros pontos do norte
do Império. De modo que, em 1880, o Reverendo De Lacey Wardlaw e sua esposa Mary
Hoge Wardlaw foram enviados à Pernambuco, tendo recebido, dois anos após sua chegada, a
missão de estabelecer uma comunidade presbiteriana na Província do Ceará. Dentre as várias
estratégias missionárias desenvolvidas por este casal, pode-se citar a fundação de uma escola
primária na cidade de Fortaleza (Província do Ceará) na década de 1890.
O casal Wardlaw chegara ao Brasil como missionários do Committee of Nashville.
Tendo como espaço primordial de atuação algumas cidades que compõem o atual nordeste
brasileiro, Lacey e Mary Wardlaw exerceram suas atividades missionárias neste país até o ano
de 1901, quando retornaram aos Estados Unidos juntamente com suas quatro filhas.
A atuação missionária do casal presbiteriano voltou-se principalmente para a cidade de
Fortaleza; mas também foram focos da ação do casal de missionários as cidades de Baturité
(no interior da Província do Ceará) e Mossoró (no interior da Província do Rio Grande do
Norte).
O matrimônio de De Lacey e Mary ocorreu em 29 de julho de 1880, em um ambiente
de despedida, pois os jovens recém-casados dentro de poucos dias partiram para uma nação
estrangeira na condição de missionários.
Viagens de jovens casais de missionários com destino ao campo missionário pouco
tempo após o casamento era algo recorrente. Os Boards of Foreign Missions incentivavam e
davam preferência ao envio de missionários casados para missões fora dos Estados Unidos.
Deste modo era fato comum a viagem ocorrer poucos dias ou meses após a realização do
casamento, assim como era habitual o postulante a missionário recém-egresso do seminário
realizar votos matrimoniais pouco tempo após sua formatura.
Assim, nove dias após a união matrimonial, De Lacey Wardlaw e Mary Hoge
Wardlaw foram enviados para a Província de Pernambuco, no Brasil, pelo Committee of
Nashville. Viagem que durou três semanas e terminou em 26 de agosto de 1880 na cidade de
Recife. A missão do jovem Reverendo Wardlaw foi, inicialmente, a de auxiliar o Reverendo

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John Rockwell Smith, líder da Igreja Presbiteriana de Recife, então sede de um Presbitério.
Sendo em setembro de 1882, após uma espécie de período de adaptação ao campo
missionário, enviado para a Província do Ceará a fim de estabelecer ali uma comunidade
protestante permanente.
Em concomitância ao estabelecimento de um núcleo presbiteriano na cidade de
Fortaleza, o jovem casal de missionários também tivera no decorrer dos anos aumentado o seu
núcleo familiar com o nascimento das suas quatro filhas: Virginia Randolph Wardlaw nasceu
em 1881 em Recife; Blanche Lewis Wardlaw em 1883; Mary Louise Wardlaw em 1886 e
Caroline Cunningham Wardlaw em 1891, tendo as três últimas nascido na cidade de
Fortaleza.
De modo que, somadas às atividades inerentes à missão presbiteriana, havia a
necessidade de se lidar com atribuições familiares atinentes à instrução e letramento das filhas
em terra estrangeira. A educação transmitida de pais para filhos nas famílias protestantes dos
Estados Unidos nos séculos XVII e XVIII constituiu-se de um metódico cotidiano de ensino
da leitura fazendo uso recorrente da Bíblia. As crianças liam com os pais passagens bíblicas
repetidas vezes, buscando além do aprendizado da leitura, a memorização de trechos das
Escrituras:
Assim foi na América dos séculos XVII e XVIII, caso extremo da prática protestante
do livro. A leitura e a fé aí estão ligadas indissociavelmente, definindo uma cultura
inteira baseada na familiaridade com o texto bíblico. Este é ouvido antes de ser lido,
pois frequentemente o pai o lê em voz alta para a família ou o criado o lê para os
patrões.304

Pode-se considerar a família Wardlaw como uma destas famílias a que Roger Chartier
se referiu como pertencente a “uma cultura inteira baseada na familiaridade com o texto
bíblico” e com a leitura de forma geral. De Lacey Wardlaw era filho de um também
reverendo presbiteriano, Thomas De Lacey Wardlaw, que além das atividades ministeriais
no Kentucky havia exercido a t i v i d a d e s m a g i s t e r i a i s c o m o professor particular305. De
modo similar Mary Swift Hoge, também era filha de um ministro presbiteriano. Desta
forma, não é desmedido supor que a instrução familiar de Lacey e Mary Wardlaw tivera a
forte marca da junção leitura e fé apontada por Chartier.

304
CHARTIER, Roger (Org.). História da vida privada, 3: Da Renascença ao Século das Luzes. Tradução de
Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 134.
305
History of the Ohio Falls Cities and their Counties. Vol. I. Cleveland: L. A. Williams & Co., 1882. 491.
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Grande parte das esposas dos missionários protestantes enviados ao Brasil exerceu
atividades na área da educação, o que permitiu a constituição de diversas escolas fundadas no
decorrer do século XIX e início do XX em várias cidades brasileiras, algumas das quais
existentes até os dias atuais.
Isso foi um aspecto recorrente a partir da segunda metade do século XIX, quando
mulheres (casadas e solteiras) pertencentes a algumas denominações protestantes nos Estados
Unidos passaram a ter uma participação mais ativa na organização de sociedades e
movimentos diversos a partir de suas igrejas. Sendo um desses movimentos a disseminação de
sociedades missionárias formadas por mulheres, que tinham por principal atribuição a área da
educação 306.
A missão presbiteriana na cidade de Fortaleza durante o século XIX, sempre
perpassava o mundo letrado. O principal mecanismo de propagação das doutrinas
presbiterianas pelo Reverendo Wardlaw aos não membros de sua igreja se dava de forma
escrita através de publicações de sermões na coluna intitulada “Notas Religiosas” em um
jornal local: o ‘Libertador’. Além disso, a família Wardlaw administrava uma livraria
chamada de ‘Livraria Evangélica’, que possuía como produtos principais: bíblias, livros e
folhetos protestantes (produtos esses também divulgados através da imprensa local).
A formação familiar do casal Wardlaw possuía traços íntimos das práticas de
letramento. Não apenas Lacey Wardlaw deu ênfase em seu trabalho missionário na questão
da educação, mas também Mrs. Wardlaw, que tomaria a frente da escola fundada em
Fortaleza pela missão no ano de 1890.
Mary Wardlaw noticiaria aos seus compatriotas, através do periódico missionário
norte-americano ‘The Missionary’307, acerca dos meses iniciais do funcionamento da escola, a
qual atendia “Twenty-three scholars, and three more are promissed”. Uma das professoras era
filha de um dos principais membros da igreja Presbiteriana de Fortaleza, o cirurgião dentista
Albino José de Farias, a qual era “graduate at the Normal School”.
Percebe-se que De Lacey e Mary Hoge Wardlaw se mostravam interessados e
empenhados nos aspectos relacionados ao letramento em seus trabalhos missionários. Isso
306
SILVA, Eliane Moura. Gênero, Religião, missionarismo e identidade protestante norte-americana no Brasil
ao final do século XIX e inícios do XX. In. Mandrágora: São Bernardo do Campo, V. 14, pp. 25-37, 2008. p. 26.
307
The Missionary. A monthly Journal, issued in behalf of The Foreign Missions of the Presbyterian Church in
the United States. Edited by the secretaries. Vol. XXIII. Published by Whittet & Shepperson. Richmond:
November 1890. p. 434.
420
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não constituía uma particularidade desse casal de missionários presbiterianos, mas tratava-se
de uma perspectiva missionária protestante que tinha em seu ethos uma ligação prático-
religiosa com o mundo das letras.
Mas tal preocupação também parecia estender-se à vida familiar do casal.
Acreditamos que o modelo de educação empregado pelo casal Wardlaw às suas filhas
enquanto os mesmos estiveram no Brasil foi embasado no padrão de educação privada das
famílias protestantes norte-americanas do período, o qual valorizava a escola, no entanto,
tendo no ambiente doméstico um local de apresentação e aprimoramento da leitura às
crianças por parte dos pais, sendo a Bíblia, a literatura principal, porém, não a única.
Não possuímos elementos suficientes para apontar todos os mecanismos de instrução
utilizados por Lacey e Mary no letramento de suas filhas, entretanto, alguns indícios podem
nos ser úteis no que diz respeito às práticas de ensino privado deste casal de missionários nos
anos em que viveram no Brasil.
Provavelmente, dada a importância da ‘Escola Americana’ por parte do casal
Wardlaw, suas filhas deveriam ser alunas de tal instituição. Mary Hoge apontava que esta
escola servia como um alívio para os pais adeptos do protestantismo, já que nas outras escolas
existentes na cidade de Fortaleza, as crianças “not only learned much that was objectionable,
but in most cases have been neglected by their teachers and shunned or persecuted by their
mates”.
Posto isso, é plausível inferir que Mary Wardlaw não tenha considerado
conveniente matricular suas filhas em outras escolas da cidade, optando pela escola da
própria missão, e principalmente pela instrução doméstica, conforme foi confirmado por seu
esposo em carta enviada a seus colegas de turma de Princeton.
Um documento em especial nos leva a deduzir uma série de características que
estariam presentes na educação das filhas destes missionários no Brasil, trata-se de uma
correspondência enviada pela filha mais velha do casal, Virginia Randolph Wardlaw, à
revista Infanto-Juvenil norte-americana ‘St. Nicholas’308, publicada no ano de 1899, em sua
edição de aniversário.
O conteúdo da revista trazia diversas histórias, poemas, contos, jogos e charadas que

308
St. Nicholas, an illustrated magazine for young folks. Conducted by Mary Mapes Dodge. Volume XXVI, part
I – November 1898 to April 1899. The Century co. New York, 1899.
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variavam em tamanho e linguagem, tendo em vista que a publicação visava alcançar tanto
crianças que ainda estavam aprendendo os rudimentos da leitura, quanto adolescentes em
transição para a vida adulta.
Um dos chamarizes da ‘St. Nicholas’ era a quantidade de gravuras e fotografias
presentes em suas publicações, além disso, uma forte ênfase patriótica era dada nas histórias
chamando a atenção para a valorização dos heróis norte-americanos apontados como
fundadores e construtores da pátria, o que contribuía para atrair a simpatia dos pais das
crianças e dos jovens leitores.
A literatura de cunho infanto-juvenil havia alcançado um vasto espaço no mercado
editorial europeu e norte-americano nos séculos XVIII e XIX. Havia uma imensa variedade de
publicações, tais como, livros, revistas, jornais, panfletos; as quais tinham por atrativo básico
ao público, formado por crianças e os pais destas, cores, gravuras, e o teor muitas das vezes
extraordinário de suas histórias.
Virginia Wardlaw, que em 1899, contava com dezoito anos de idade escreveu para a
‘St. Nicholas’ parabenizando a revista por seu vigésimo sexto aniversário e nos dando alguns
rastros de seu cotidiano voltado às letras. A jovem Wardlaw declara que o acesso que
tinha à publicação se dava por auxílio de um primo que enviava ao Brasil o material desde
1890, material este pelo qual Virginia demonstrava ser, juntamente com suas três irmãs
mais novas, assídua leitora: “I don't know what we could do without you”309.
Acreditamos que o fato de o Reverendo Lacey Wardlaw ser dono de uma livraria, muito
tenha contribuído para o acesso das suas filhas a um material impresso importado, na medida
em que grande parte dos produtos comercializados por Wardlaw provinha do exterior, sendo
tal ministro presbiteriano assinante de vários periódicos estrangeiros.
A ‘St. Nicholas’ servia então, ao mesmo tempo, como um material de lazer e
entretenimento e como um meio para o aprimoramento da leitura das jovens Wardlaws, na
medida em que o letramento era considerado imprescindível para o mundo religioso desta
família.
Virginia passa então a declarar suas histórias preferidas da revista “Lady Jane, Jack
Ballister's Fortunes, Polly Oliver’s Problem, Master Skylark, and Miss Nina Barrow”;
histórias estas que traziam em suas tramas: piratas, princesas, rainhas, missionários,

309
Ibidem.
422
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heróis e heroínas juvenis. Contudo a jovem leitora ressaltaria que sua preferência voltava-
se para “stories about the war”, principalmente “Chuggins” e “Margaret Clyde”.
Percebe-se no escrito de Virginia uma forte valorização dos feitos militares norte-
americanos, que estavam presentes em várias das histórias citadas acima. Ora, torna-se
compreensível tal valorização da jovem filha de um casal de norte-americanos a aspectos
inerentes ao militarismo e à guerra, na medida em que a constituição de uma nacionalidade
estadunidense se voltou com vigor exacerbado a esses elementos.
Para que se constituísse um espírito nacional norte-americano foi necessário aos
idealizadores da nação fomentar nas figuras ligadas às diversas guerras o papel de fundadores
da América, tais como a de independência, de Secessão, Americano-Espanhola, de
Conquista do Oeste.
Por isso, o historiador português Fernando Catroga, ao analisar tal valorização da
guerra e da figura do militar nos Estados Unidos, visto não como um ente individual, mas
imerso na coletividade dos cidadãos, percebe nos diversos festejos comemorativos
americanos voltados aos que “morreram pela Pátria” um dos elementos primordiais da
religião civil, na qual está presente:
A mobilização dos sentimentos – finalidade de toda a religião civil – tem a sua
mais acabada assunção nos deveres para com a Pátria, incluindo a disponibilidade
para se morrer por ela. Por isso o culto dos heróis e dos grandes a este processo de
interiorização dos valores.310

Desta maneira, Virginia interiorizava o culto dos heróis da nação de seus pais, que
apesar de ser-lhe uma realidade outra, tornava-se com a leitura da ‘St. Nicholas’ e da
instrução familiar sua nação também. E não apenas Virginia, mas suas irmãs de modo
similar aprendiam a valorização dos heróis americanos, uma vez que percebiam nas gravuras
destes heróis excelentes presentes para dar no natal: “My sister is enlarging the pictures of the
American heroes to give me at Christmas. Sampson311, Dewey312, and Hobson313 are the
ones we like best”.

310
CATROGA, Fernando. Nação, Mito e Rito: Religião civil e comemoracionismo (EUA, França e Portugal).
Fortaleza: Edições NUDOC / Museu do Ceará, 2005. p. 54.
311
William Thomas Sampson (1840-1902): Contra-Almirante que se notabilizou pelo comando da frota norte-
americana na Batalha de Santiago de Cuba ocorrida durante a Guerra Hispano-Americana de 1898.
312
George Dewey (1837-1917): Almirante que comandou a força naval americana que venceu a Batalha Naval
na Baía de Manila durante a Guerra Hispano-Americana de 1898.
313
Richmond Pearson Hobson (1870-1937): Contra-Almirante que tomou parte juntamente com William
Sampson da Batalha de Santiago de Cuba.
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Mas, se por um lado a valorização dos militares estadunidenses deixa transparecer o


ideário de uma nacionalidade estadunidense entre Virginia e suas irmãs; por outro a
primogênita do casal Wardlaw, nascida em 1881 no Brasil, resolve destacar aos editores da ‘St.
Nicholas’ os “our own great men”, isto é, os heróis brasileiros.
Tendo acesso aos periódicos brasileiros, através de seu pai, que era assinante de
diversos jornais, assim como autor de matérias pagas no jornal ‘Libertador’, Virginia
queixava-se em sua correspondência o fato de as publicações brasileiras serem carentes de
imagens dos “great men” brasileiros, que, mesmo sendo poucos, segundo seu modo de ver,
eram importantes homens.
Ao que destaca quais seriam em sua opinião “Our most famous men”: Carlos
Gomes (1836-1896) e José de Alencar (1829-1877); de modo a forjar para si uma identidade
ao postar tais figuras como “nossos mais famosos homens” e não como “os mais famosos
homens brasileiros”, criando uma complexidade ímpar no jogo da alteridade já que Virginia
aparentemente via-se ao mesmo tempo norte-americana e brasileira.
Desta maneira, Carlos Gomes é descrito por Virginia como escritor de “our national
hymn, which Gottschalk arranged so magnificently”. Na realidade o que Virginia chama de
hino nacional, trata-se da “Grande Fantasia Triunfal sobre o Hino Nacional Brasileiro” de
autoria do compositor e pianista norte-americano Louis Moreau Gottschalk, que, com este
espetáculo dedicado à Princesa Isabel, tornou-se um dos músicos preferidos da família
Imperial brasileira na década de 1860.
No entanto, percebe-se que, novamente, a jovem Wardlaw faz uso do pronome
“nosso” aludindo ao hino nacional brasileiro, ao mesmo tempo em que fala de maneira
elogiosa a um compositor norte-americano, transmitindo nesta relação talvez seus próprios
sentimentos de fusão de territorialidades.
Além disso, destaca Carlos Gomes como autor da ópera “Guarany” baseada no
romance homônimo de José de Alencar, o qual Virginia parecia haver lido, pois o
considerava “the most beautiful tale I know of. I wish someone would translate it”. Com estas
palavras, notamos que outras leituras além da bíblia, eram empreendidas pelas filhas de Lacey
e Mary Wardlaw. Isto é, a partir destas poucas linhas da correspondência de Virginia
Wardlaw, que exultam os escritos de Gomes e Alencar, nota-se que apesar da proeminência
da bíblia, e da utilização de periódicos de cunho protestante como itens utilizados pelos

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Wardlaws no letramento de suas filhas, outros tipos de literatura circulavam no ambiente


doméstico daquele lar de missionários estadunidenses em solo estrangeiro.
Virginia citaria ainda acerca de José de Alencar: “a Cearense author, to whom a statue
has lately been erected at Rio de Janeiro. He wrote a novel which gave to this state the
name of the “Land of Iracema””, o que remete para uma percepção ainda mais reduzida, ao
identificar Alencar à Província do Ceará, local de nascimento do escritor, porém não de
residência.
Há então nesta, aparentemente, simples correspondência de uma adolescente a uma
revista infanto-juvenil, uma grande riqueza de detalhes acerca das relações de alteridade.
Antes de encerrar sua carta, Virginia, remeteria novamente à utilização dos elementos
brasileiros e norte-americanos para explicar o que representaria a data de 15 de novembro
para os brasileiros e para ela: “The 15th of November is the Brazilian Fourth of July, because
on that day it ceased to be an empire. I can't forgive the Brazilians yet for the way they
treated our dear old emperor”.
Em tal trecho uma sequencia de alusões à relação “nós-eles” se desenvolve, desde a
comparação entre o 15 de novembro e o 4 de julho, até a discordância da ação dos
“Brazilians” no exílio do Imperador Dom Pedro II, o qual Virginia denominaria de
“nosso” imperador.
Destarte, percebemos na referida fonte diversos elementos que nos conduzem a uma
percepção um pouco mais aprofundada da instrução letrada dispensada às filhas do casal
Wardlaw por estes durante suas duas décadas de vivência no Brasil. Uma heterogeneidade
de mecanismos eram utilizados para promover o desenvolvimento de práticas letradas entre
as crianças, tendo o ambiente familiar como um local propício a tais práticas.
Outro periódico estadunidense também serviu de espaço para a publicação de textos
das filhas do casal Wardlaw: o ‘North Carolina Presbyterian’. Com uma seção chamada
“Children’s Column”, que era especificamente voltada à publicação de textos que tinham
crianças como suas autoras, tal periódico atraía um grande número de pequenos textos das
mais variadas temáticas com autoria infanto-juvenil, ou dos pais de tais crianças.
Logicamente, que a relação das filhas do casal Wardlaw com tal periódico de cunho
protestante possuía um caráter de manutenção de leitura de textos ligados às concepções
teológicas presbiterianas, assumindo uma função de leitura inserida no repertório cultural de

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aceitabilidade religiosa aos fieis presbiterianos estadunidenses. Apesar disso, o que nos
interessa neste momento é demonstrar como, além de uma instrução letrada que incentivava a
leitura, os Wardlaws também se interessavam em incentivar práticas de escrita às suas filhas.
De modo que, mesmo no Brasil, Mary Hoge Wardlaw estimulava suas filhas a enviarem
correspondências a este periódico presbiteriano a fim de serem publicadas. Conforme se pode
constatar na correspondência publicada em 12 de novembro de 1896 na Children’s Column,
assinada pela filha caçula dos Wardlaws:
My dear Evelyn: Mamma read me your letter. I am five years old, too, so we are two
little five year old. I wish to go there, but I cannot go now, because its too far. We
go to the beach, too, sometimes, and we gather shells, too. One evening, we went
and Eloise and I (...) I play with Deldee so much. She is seven years old. Her other
name is Geraldine Alice Baird. She came from the States. My name is Carrie
Cunningham Wardlaw. Ceara, Brazil. 314

Tal correspondência se tratava de um contato estabelecido com outra criança também


“articulista” da Children’s Column, Evelyn Jones de seis anos de idade, moradora de
Durham na Carolina do Norte. Desse modo, as crianças com o auxílio dos pais, mantinham
correspondência que era publicada no periódico. Apesar de, aparentemente, ser um texto
trivial, o texto de Caroline Wardlaw e Mary Wardlaw apresentam-nos uma série de aspectos
concernentes ao cotidiano da infância das Wardlaws no Brasil, tais como as idas à praia de
Carrie com sua irmã “Eloise” (apelido de Mary Louise), a caça às conchas, a amizade com
“Deldee” (filha de Reginald Price Baird, Ministro presbiteriano que substituiria Lacey
Wardlaw à frente da Igreja Presbiteriana de Fortaleza).
Na continuidade de sua correspondência, a pequena Carrie, aludiria ainda que gostava
bastante dos dias de domingo pois, em tais dias, tinha à mesa carne fresca e que “Carrie is
very fond of cold beef”. Acerca de suas posses, Caroline menciona a existência de uma
pequena cadeira, uma bananeira e um gatinho chamado “Menelek”.
Cinco dias depois, seria a vez de Blanche, então com treze anos de idade ter uma de
suas correspondências publicadas na Children’s Column. O foco do texto de Blanche
Wardlaw é apresentar as peraltices de seu macaco de estimação, chamado “Grandaddy”315.
Apesar de não ser o foco da articulista, em seu texto transparecem aspectos relacionados ao
letramento no cotidiano da família Wardlaw.

314
North Carolina Presbyterian, ‘Children’s Column’. Fayetteville, 12 de novembro de 1896.
315
North Carolina Presbyterian, ‘Children’s Column’. Fayetteville, 19 de novembro de 1896.
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Blanche Wardlaw informa ao seu leitor que uma visita frequente à sua casa era a de
um senhor cego, membro de sua igreja, chamado Sr. Braga, o qual era vítima constante dos
roubos de “Grandaddy” ao seu prato de comida. Acerca do Sr. Braga, Blanche afirmaria que
“He has almost been a member o four family for many years. He comes here on Sundays and
Wednesdays and mother has written a story about him in the Children’s Missionary”316.
Curiosamente, em outro escrito de Mary Hoge Wardlaw, um romance intitulado
‘Candida, or, by a way she knew not: A story from Ceara’, publicado em 1902, a autora
apresenta um personagem cego (Sr. Manuel) que assim como o Sr. Braga, que segundo
Blanche seria quase um membro da família Wardlaw, o cego do romance de Mary o era dos
missionários da ficção (Mr. e Mrs. Cary).
Segundo Blanche, enquanto ela escrevia a carta, o próprio pai também era vítima do
animal de estimação, que lhe roubava um cigarro do bolso enquanto o Reverendo distraía-se
lendo. Assim, apesar de não ser seu foco principal, a garota apresenta aos seus leitores uma
mãe escritora e um pai leitor.
A respeito do cotidiano das filhas de Lacy e Wardlaw, uma correspondência
publicada no mesmo periódico, em 29 de outubro de 1896, agora assinada por Eloise (Mary
Louise) Wardlaw nos daria uma breve informação de uma espécie de sociedade feminina da
qual ela, suas irmãs, sua mãe e alguma mulheres da igreja fariam parte:
We have a Samaritan Society. It meets twice a month. My eldest sister was
treasurer, mother was president and a young girl, member of the church was a
secretary (...) I have a three sisters, Virginia is fifteen, Blanche is thirteen and I am
ten and Carrie is five (...) Ate logo. De sua amiga. Eloise Wardlaw. 317

Podemos apontar que alguns elementos contribuíram para este estilo de cotidiano
letrado por parte de Virginia, Blanche, Mary Louise e Caroline, tais como: a profissão de
seus pais, as funções exercidas por Mary Hoge como educadora na missão e a livraria de
Lacey como fator propiciador de acessibilidade aos livros e periódicos.
Além da leitura, a escrita parecia fazer parte do cotidiano de Virginia, Blanche, Mary
Louise e Caroline, como explicita a irmã mais velha na correspondência à ‘St. Nicholas’: “My
two younger sisters and I have started a little paper we call “The Three Graces." We asked

316
WARDLAW, Mary Hoge. Candida; or, by a way she knew not. A story from Ceará. Richmond: The
Presbyterian Committee of Publication, 1902.
317
North Carolina Presbyterian, ‘Children’s Column’. Fayetteville, 29 de outubro de 1896.
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our little sister Carrie to write a story for us, and she said, "Then the paper ought to be
called ‘The Four Graces’!”.
A própria Virginia Wardlaw publicaria no ‘North Carolina Presbyterian’ textos de
caráter ficcionais mais longos que as costumeiras correspondências, os quais continham forte
teor protestante, de acordo com os objetivos do periódico, tais como os textos “Diva’s Witness
for Christ’ publicado em 24 de fevereiro de 1898 e ‘Her Father’s Testament’ publicado em 15
de dezembro de 1898.
O retorno aos Estados Unidos trouxe uma série de experiências novas à família
Wardlaw. O Reverendo De Lacey Wardlaw não exerceu funções eclesiásticas em sua terra
natal até a sua morte em 1934, por outro lado sua esposa Mary Hoge Wardlaw atuou com
bastante vigor até o ano de sua morte, também em 1934, em atividades relacionadas a missões
e ensino religioso.
Pouco tempo após retornar aos Estados Unidos, ainda na primeira década do século
XX, Mary Wardlaw passou alguns meses em um trabalho missionário voltado aos habitantes
das montanhas do Kentucky sob a liderança do missionário presbiteriano Edward Guerrant.
Anos depois, após a entrada dos Estados Unidos na Primeira Guerra Mundial, entre 1917 e
1919, Mrs. Wardlaw atuou como missionária em Cuba com duas de suas filhas (Mary Louise
– que já morava em Cuba desde 1912 com seu esposo - e Caroline Cunningham que fora à
Cuba com a mãe em 1917). Nas décadas de 1920 e 1930, o casal Wardlaw fixou residência
em Miami, onde Mrs. Wardlaw era ativa participante das atividades educacionais de uma
comunidade presbiteriana que atendia classes infantis formada por crianças de origem
hispânica além de participar de sociedades femininas de escritoras.
Quanto às suas filhas, todas contraíram matrimônio nos Estados Unidos e, ao menos
sobre duas delas, temos registros de atuação como missionárias, conforme dito acima: Mary
Louise e Caroline Cunningham.
Concluímos que a leitura e a escrita podem ser encaradas como elementos de total
relevância aos filhos dos missionários estrangeiros protestantes que experienciaram o
Brasil do século XIX, mas acima de tudo no cotidiano familiar destes sujeitos.
Se tais atividades letradas desenvolvidas pelas filhas do casal Wardlaw podem ser
percebidas como práticas que se voltavam ao lazer e à distração de crianças que muito
provavelmente tinham pouco contato com outras crianças no país estrangeiro (com exceção

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das crianças que frequentavam a comunidade protestante); elas também podem ser vistas
como estratégias por parte dos pais em prover às suas filhas dois objetivos extremamente
caros à teologia protestante: o letramento e o ensino de práticas virtuosas através de histórias
exemplares.
O protestantismo tinha como um de seus fundamentos chaves a livre interpretação da
Bíblia e a valorização da letra. Assim, a prática da leitura sistemática dos praticantes da
referida fé era algo considerado imprescindível.
A leitura da Bíblia era algo inseparável da vida do protestante, desde a propagação
pelos reformadores da doutrina do sacerdócio universal, isto é, o cristão não dependeria de
outros homens na sua busca por Deus, devendo alcançar tal intento particularmente com a
leitura regular da Bíblia. Podemos considerar como fatores complementares a esta ânsia pela
leitura por parte dos protestantes o impacto da invenção e propagação da imprensa pela
Europa e as diversas publicações em idiomas vernáculos, inclusive da própria Bíblia. Alguns
grupos protestantes como os pietistas alemães postaram como fundamental à sua fé uma
religiosidade individual e piedosa tendo como procedimento imprescindível o conhecimento
da Bíblia através da leitura particular, daí a necessidade da alfabetização entre os fiéis.
Entretanto, cabe ressaltar que, apesar de a maior parte das leituras das crianças ter
orbitado em torno de escritos de caráter religioso-protestante, escritos desvinculados de tal
dinâmica fizeram parte do cotidiano das filhas do casal Wardlaw, tais como os de autoria de
José de Alencar e Carlos Gomes.
Assim, ao apresentarmos algumas práticas de leitura e escrita desenvolvidas pelas
filhas de um casal de missionários presbiterianos no Brasil do final do século XIX, nosso
objetivo foi apontar possibilidades de análise do cotidiano dos filhos de missionários
estrangeiros no Brasil, os quais estiveram em grande número neste país, mas que geralmente
ficam cobertos sob uma capa de quase invisibilidade.
Para essas crianças que operavam um jogo de alteridade ante o território de vivência e
os repertórios culturais de seus pais, a leitura e a escrita faziam parte de um cotidiano de
letramento e aproximação com a nação de seus pais, a qual veio a tornar-se o destino das
mesmas após 1901.

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A magia na e da religião egípcia

Thiago Henrique Pereira Ribeiro318

Resumo: Por uma herança advinda da Grécia Antiga, as áreas de magia e religião são
tradicionalmente pensadas como antagônicas no Ocidente. Já o Egito Antigo se apresenta
como um caso diferente em que há complementaridade entre os dois campos, algo que lança
desafios aos estudiosos modernos pela incongruência entre uma tradição de pensamento e
categorização e a realidade que se visa analisar. Assim, este texto objetiva apresentar como se
conjuga essa relação próxima entre magia e religião no solo egípcio, destacando
principalmente os ambientes funerário, central para esta civilização, e de próprio culto aos
deuses. Para isso, no entanto, uma apresentação prévia do paradigma tradicional de oposição
entre religião e magia também foi algo necessário.
Palavras-chave: Egito Antigo, religião, magia.

The magic in and of Egyptian religion


Abstract: For a heritage received from Ancient Greece, the fields of magic and religion are
traditionally thoughts as antagonistics in Western world. But the Ancient Egypt shows itself
as a different case where there is complementarity between the two fields, something that puts
challenges to the modern scholars by the incongruence between a tradition of thought and
categorization and the reality that one aims to analyze. Thus, this text has the objective of
presenting how this close relation between religion and magic is conjugated on Egyptian soil,
specially highlighting the funerary practices, which are central to this civilization, and the
proper worship of the gods. To do so, however, a previous presentation of the traditional
paradigm of opposing religion and magic has also been something necessary.
Keywords: Ancient Egypt, religion, magic.

Certa vez, participei de um evento voltado para a área de Ciências da Religião em que
falei dos problemas e dificuldades de se usar os termos religião e magia para os estudos sobre
o Egito Antigo. Após terminar minha fala, uma das pesquisadoras responsáveis pela mesa
redonda me aconselhou a ver os casos em que a magia era utilizada como uma ferramenta de
acusações, o que poderia ser um bom viés metodológico para uma análise mais voltada para
questões sociais, por exemplo. O conselho me teria sido ótimo se não fosse o “problema” do
Egito, de acordo com o que as fontes existentes e estudos realizados me permitem afirmar,
não ter visto um fenômeno “inquisitorial” desse tipo.
Optei por iniciar evocando esse acontecimento de minha vida profissional/pessoal
(digo pessoal pois a referida pesquisadora também é uma amiga particular) pelo fato dele já

318
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História (PPGHR) da Universidade Federal Rural do Rio de
Janeiro (UFRRJ) sob as orientações de Marcos José de Araújo Caldas (orientador) e Nely Feitoza Arrais
(coorientadora). Graduado em História pela mesma instituição no ano de 2015, campus Seropédica.
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apontar para o assunto que pretendo abordar aqui. A pesquisadora em questão se dedica aos
estudos sobre Jesus Histórico e Paleo-Cristianismos, o que faz com ela se ambiente bastante
pelos contextos judaico, grego e romano. Considero que a razão do tal conselho está
justamente por ela ter ambiência com o mundo greco-romano. Acontece que o tema da magia
em Grécia e Roma era muito utilizado como uma acusação com possíveis efeitos jurídicos, o
que realmente acabava por tocar nas esferas social e política319. Já no Egito Antigo isso não se
observa, uma vez que a chamada magia egípcia usufruía de um estatuto diferente: socialmente
legal e aceita, amplamente utilizada e parte integrante, ouso dizer, da esfera religiosa.
Assim, este texto se destina a esmiuçar essas questões levantadas de modo a mostrar
como a magia exercia sua presença no Egito Faraônico. Para isso, dividirei minha abordagem
em três seguimentos: primeiro, um breve trato conceitual tanto de magia quanto de religião;
segundo, a compreensão desses dois campos no contexto egípcio antigo; e terceiro, uma
explanação de como a magia tinha relações próximas e imbricadas com as áreas templária e
funerária da religião egípcia.

Magia e religião, magia versus religião


O uso desses dois termos já traz por si só uma série de problemas que, caso sejam
deixadas de lado, ameaçam fortemente deturpar os caminhos da análise. Esta questão pode ser
resumida em dois pontos precisos. Em primeiro lugar, religião e magia nascem no contexto
da Europa, principalmente na chamada cultura ocidental, e vivenciam cada qual sua trajetória
de mutações e permanências de usos e sentidos. Em segundo lugar, o Egito Antigo
obviamente se localiza fora desse meio em termos cronológicos, geográficos e linguístico-
culturais, o que o coloca também como distante dos termos e suas historicidades. Em resumo,
o que quero dizer é que se ratam de dos conceitos não apenas atrelados à cultura ocidental
cujas significações sofreram imensas mudanças, mas que se procede aplicando-os a outro
universo cultural. Desta forma, a ameaça de anacronismo e demais erros analíticos é
constante.

319
Ver principalmente o estudo de GRAF, Fritz. Excluding the Charming: the development of the greek concept
of magic. In: MEYER, Marvin; MIRECKI, Paul (eds.). Ancient Magic and Ritual Power. Boston; Leiden: Brill
Academic Publishers, Inc., 2001, pp. 29-42.
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Permitam-me ir mais debagar para expor melhor a questão. Cada uma dessas palavras,
religião e magia, tem sua trajetória singular que ao mesmo tempo toca a de seu vizinho320.
Começando pelo caso da religião, sua origem etimológica remonta ao latim religio, o qual por
sua vez possui relação com dois verbos latinos: religare e relegere. O verbo relegere expressa
a execução correta de atos ritualizados e o zelo por estes, sendo bastante relacionada à religião
pública e cívica que existia em Roma. Já religare expressa um “religamento” ou
reaproximação do homem com o divino, sendo bastante evocado pelos primeiros escritores e
pensadores cristãos321. Assim, a religio passa a estar ligada não só à cultura europeia quanto
ao próprio Cristianismo, algo que se mantém até meados do século XVI322.
Contudo, apesar da palavra ser antiga, é apenas com as mudanças decorrentes do
período iluminista que ela passa a designar um fenômeno social delimitável e passível de ser
racionalizado323. Em outras palavras, religião enquanto conceito é algo bem mais recente,
gozando de menos de trezentos anos324. Nas palavras de Frederico Pieper:
A percepção de que há uma esfera que pode ser delimitada e nomeada de religião é
resultante do processo de fragmentação da vida em diversos setores, consistindo-se
em um legado da modernidade, mais especificamente do iluminismo. Aqui, já não é
mais o religioso (ou a noção de Deus) que unifica toda a vida social. De certa forma,
a partir do iluminismo, a noção de cultura vai assumindo esse papel. Como uma
parte constituinte desse todo maior que se denomina de cultura há, portanto, uma
região chamada de religião.325

É válido salientar que baseio a diferença entre palavra e conceito por meio da
abordagem do historiador alemão Reinhart Koselleck. Segundo ele, o que difere uma mera
palavra de um conceito é a polissemia deste último, isto é, a existência de mais de um
significado, algo que pode vir a ocorrer à simples palavra conforme as diversas mudanças em

320
Um terceiro vizinho seria a ciência, elemento que surge frequentemente em embates cotidianos com a religião
e, ao observarmos muitos estudos principalmente antropológicos, em comparação com a magia. Apesar deu vir a
tocar na ciência em alguns momentos, deixo claro que se trata de um elemento que não integra minha
preocupação neste escrito.
321
Ver: DE AZEVEDO, Cristiane A. A Procura do Conceito de Religio: entre o relegere e o religare. In:
Religare, vol. 7, nº 1, pp. 90-96. João Pessoa: UFBP, 2010.
322
SMITH, Jonathan Z. Religion, Religions, Religious. In: TAYLOR, Marc C. (ed.). Critical Terms for
Religious Studies. Chicago: University of Chicago Press, 1998, pp.169-184, pp. 269-271.
323
Ibidem, p. 274.
324
PIEPER, Frederico. Problematizando o conceito de Religião: considerações hermenêuticas. In: SILVEIRA,
Emerson José Sena da; COSTA, Waldney de Souza Rodrigues (orgs.). A Polissemia do Sagrado: os desafios da
pesquisa sobre religião no Brasil. São Paulo: Fonte Editorial, 2015, pp. 31-53, p. 38.
325
Ibidem, p. 34.
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curso a fizeram agregar mais de um sentido326. Este processo é bem explicado e de forma
resumida no seguinte trecho:
O sentido de uma palavra pode ser determinado pelo seu uso. Um conceito, pelo
contrário, para poder ser um conceito, deve manter-se polissêmico. Embora o
conceito também esteja associado à palavra, ele é mais do que uma palavra: uma
palavra se torna um conceito se a totalidade das circunstâncias político-sociais e
empíricas, nas quais e para quais essa palavra é usada, se agrega a ela.327

Religião é assim lançada para o século XIX como um conceito científico possível
bastante utilizado pelas Ciências Humanas em desenvolvimento. Contudo, este histórico
ocidental fez com que seu estatuto entrasse em cheque nas últimas décadas, uma vez que há
diversos casos em que a sociedade e cultura estudadas não segmentam essa parte da vida
humana como o faz o Ocidente após o século XVIII EC, o que acarreta em indivíduos sendo
definidos como religiosos pelos padrões ocidentais sem que eles mesmos se compreendam
desta forma328. Com isso, muito se debateu e ainda se debate se o conceito deve ser evitado ou
trocado por outro menos nocivo, enquanto outros criticam tais posturas e defendem se tratar
de uma ferramenta heurística viável. Retornarei a este ponto quando for abordar o contexto
egípcio.
Já a magia, por sua vez, se caracteriza por um ônus de negatividade e pejoratividade
desde o surgimento da palavra. Seu nascimento costuma ser apontado para a Grécia dos
séculos VI-V AEC, momento em que mageia aludia a sacerdotes zoroastras persas do grupo
dos Magi (os magoi, plural de magos). Seu emprego pelos gregos envolveu contornos
pejorativos que, segundo Fritz Graf, se devem principalmente à demarcação de identidade329,
ou seja, a delimitação do nós a partir da crítica e diminuição do eles330. Roma posteriormente
adota esta carga pejorativa ao utilizar as formas latinas magus e magia para designar,
respectivamente, o praticante e sua arte. Tanto em contexto grego quanto romano a ideia de

326
KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Tradução de
Wilma Patrícia Maas e Carlos Almeida Pereira. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2006, p. 108.
327
Ibidem, p. 105.
328
PIEPER, Frederico. Op. cit., p. 33.
329
GRAF, Fritz. Op. cit., p. 30.
330
RITNER, Robert K. The Religious, Social, and Legal Parameters of Traditional Egyptian Magic. In:
MEYER, Marvin; MIRECKI, Paul (eds.). Ancient Magic and Ritual Power. Boston; Leiden: Brill Academic
Publishers, Inc., 2001, pp. 43-60, p. 44.
435
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magia estava envolta em ares de falsidade, enganação e charlatanismo, sendo os termos


relacionados a ela331 utilizados como ferramentas de denúncias e acusações332.
Além desse histórico greco-romano, Stanley Tambiah aponta também para uma
influência da cultura judaica nesta concepção ocidental negativa de magia. A questão aqui se
encontra, segundo ele, na diferenciação que antigos hebreus faziam entre seu culto a Yahweh
e as divindades existentes nas civilizações e sociedades em torno. Falando de forma resumida,
Tambiah fala que enquanto Yahweh era tido como existindo acima da natureza, de origem
desconhecida e doravante imune a influências humanas, os deuses politeístas ao redor
costumavam possuir um nascimento demarcado que os tornava partes do próprio cosmos e,
com isso, passíveis de serem diretamente afetados pelos ritos humanos. Assim, apesar de
serem creditados como eficazes, esses cultos “pagãos” eram tidos como uma espécie de falsa
religião333. Dessa forma, o Cristianismo herdou essa concepção negativa de magia tanto de
sua raiz judaica quanto de suas bases greco-romanas, sendo deste em especial o uso do
conceito como recurso de acusação:
[...] os romanos perseguiram os primeiros cristãos por prática de magia. Em troca, a
politicamente segura Igreja Católica perseguiu pagãos romanos por magia, apenas
para ser novamente acusada por críticas de Protestantes reformados durante a
Reforma.334

Acontece que tal carga negativa foi herdada pelos primeiros estudos antropológicos. A
definição de magia passava principalmente por sua comparação com a religião e/ou com a
ciência, sendo que lhe eram atribuídos elementos negativos: magia é primitiva, antissocial,
subversiva, marginal, não respeita dogmas, individualista, materialista, etc. Enquanto que a
religião, apesar de suas várias definições (o que também é um fator gerador de problemas),
recebia contornos positivos. Um bom exemplo pode ser visto na célebre obra de James Frazer,
O Ramo de Ouro (The Golden Bough¸ no original inglês), escrito ainda em fins do século

331
Ritner cita que a palavra grega goetheia, mais antiga, também foi assim empregada durante o período clássico
grego. Ibidem, p. 45.
332
Elemento que foi muito empregado na vida política da Roma Imperial. GRAF, Fritz. Op. cit., p. 42.
333
TAMBIAH, Stanley Jeyaraja. Magic, Science, Religion and the Scope of Rationality. Cambridge; New York;
Melbourne: Cambridge University Press, 1990, pp. 6-7.
334
RITNER, Robert K. Op. cit., p. 44. Tradução livre. A obra de Keith Thomas, Religião e Declínio da Magia,
fornece ainda uma boa explicação de como o Catolicismo e suas práticas foram ligadas à magia pela Igreja da
Inglaterra no período moderno.
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XIX335. Frazer analisa religião e magia como fenômenos distintos e antagônicos, aproximando
o modus operandi desta última com a ciência. Ambas, magia e ciência, trabalham a partir da
consideração de que a natureza obedece a leis regulares e fixas, mas a magia consiste em uma
aplicação enganosa e ilegítima de tais ideias, as quais, se fossem corretamente desenvolvidas,
culminariam na ciência. Daí resulta sua famosa fala de que a magia é “a irmã bastarda da
ciência”336. Já a religião para Frazer enxerga a natureza como regida por vontades
conscientes, normalmente expressas na crença em divindades ou entidades em geral. A
religião alia uma concepção teórica prévia (a crença) a uma ação prática (muitas vezes, mas
não unicamente, na forma do rito) a fim de agradar essas entidades para que elas interfiram na
natureza em benefício do praticante, de sua comunidade ou de toda a humanidade337. Nisto há
uma diferença ainda mais crucial com a magia uma vez que esta, além de ter a certeza dos
resultados que obterá (visto que não está sujeita a temperamentos divinos), objetiva apenas a
forçar a natureza para que ela atenda aos desejos e vontades de quem realiza o ato mágico.
Mesmo quando lida com forças espirituais (como as mesmas entidades concebidas e lidadas
pela religião), seu intuito é apenas coagi-las a agirem de acordo com as vontades do mago338.
Frazer, assim, não apenas estabelece uma oposição entre magia e religião como também
afirma haver uma contenda entre o sacerdote e o mago339, uma vez que cada um lida com o
divino à sua maneira: enquanto o primeiro concilia e dialoga, o segundo coage e se utiliza da
força. O antropólogo também estabelece uma linha evolutiva que ai da magia, tida como mais
simples, monolítica e universal, à religião, mais complexa diversificada e plural, tendo
provavelmente surgido em uma fase posterior da história humana340.
Essas formulações de Frazer exemplificam bem vários pontos do que eu costumo
chamar de paradigma clássico, o qual pressupunha como elementar não só a oposição entre
religião e magia como a valoração de cada, respectivamente positiva e negativa. Trata-se de

335
Apesar de a obra completa consistir em doze volumes, utilizei aqui a versão resumida escrita pelo próprio
James Frazer na década de 1920. Ver: FRAZER, James G., Sir. “Magic and Religion”. In: The Golden Bough. A
Study in Religion and Magic. Abridged Edition. New York: Dover Publications, Inc., 2002, pp. 48-60.
336
Ibidem, p. 50.
337
Ibidem, pp. 50-51.
338
Ibidem, pp. 49, 51.
339
Apesar de, segundo ele, tal divisão ter surgido apenas tardiamente na história das religiões, sendo as funções
indiferenciadas em estágios mais iniciais da história humana. Ibidem, p. 52.
340
Ibidem, pp. 54-56.
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uma espécie de axioma que era aplicado muitas vezes sem preocupações teóricas341, mas que
acabou recebendo duras críticas da mesma forma que o conceito de religião. Resumindo a
trajetória de contestações, observou-se que a relação entre elas não era tão estanque e evidente
como anteriormente se pensava. Estudiosos constataram que há casos em que não apenas a
religião possui características atribuídas à magia e vice-versa, como também compreenderam
que existem situações em que a magia apresenta benefícios sociais, algo que se pensava ser
uma exclusividade da religião (como o exemplo de um ato mágico em prol de uma boa
colheita), da mesma forma que a religião pode se mostrar com faceta a-social, tendência que
se apontava indiscriminadamente para a magia (as práticas de reclusão e eremitismo são bons
exemplos disso) 342. O trabalho de Keith Thomas, Religião e Declínio da Magia, fornece um
bom exemplo dentro do campo da História. Ao tratar do tema da magia na Inglaterra
medieval, este historiador mostrou como ela muito se alimentava dos próprios elementos da
Igreja cristã, em especial a missa, a prece e a água benta. A ideia de que estes e outros itens
tinham eficácia material e terrena não só era forte como também incentivada por teólogos e
sacerdotes, principalmente ao estes defenderem o poder realizador da prece e da repetição de
palavras343.
O egiptólogo Robert Ritner afirma que magia serve como uma categoria de exclusão,
uma vez que designa o eles, o diferente344. Sendo assim, religião é seu oposto, uma categoria
de inclusão ao localizar o nós. Em outras palavras, o uso de cada conceito segue uma questão
de alteridade345. Ritner cita ainda um exemplo que considero bastante elucidativo disto. No
texto bíblico de Números 5: 11-31, é descrito um processo de averiguação de adultério
feminino caso haja desconfiança por parte do marido. Em meio às recomendações
apresentadas, há a prática de dissolução de texto escrito em um líquido para em seguida este
ser bebido pela mulher suspeita, o que causa um resultado que é mostrado em seu próprio

341
Um bom exemplo consiste na análise desenvolvida por Max Weber. Em nenhum momento dela são definidos
o que o autor compreende pelo conceito de religião ou de magia, mas esta é constantemente evocada ao longo de
seu escrito a fim de estabelecer diferenciação e realçar o limite do que ele chama de fenômeno religioso. Ver:
WEBER, Max. “Sociologia da Religião (tipos de relações comunitárias religiosas) ”. In: _______. Economia e
Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Volume 1. Brasília: Editora UnB, 2015, pp. 279-418.
342
VERSNEL, Hendrik Simon. Some Reflections on the Relationship Magic-Religion. In: Numen, vol. 38, nº 2,
pp.177-191, 1991, pp. 179-180.
343
THOMAS, Keith. Religião e Declínio da Magia: crenças populares na Inglaterra, séculos XVI e XVII. Trad.:
Desine Bottman e Tomás Rosa Bueno. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, pp. 47-48.
344
RITNER, Robert K. The Mechanics of Ancient Egyptian Magical Practice. Studies in Ancient Oriental
Civilization, nº 54. Chicago: The Oriental Institute of Universe of Chicago, 1993 [repr: 2008], p. 237.
345
RITNER, Robert K. Op. cit., 2001, p. 44; SMITH, Jonathan Z. Op. cit., p. 276.
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corpo346. Acontece que este mesmo ato de se dissolver e ingerir material com palavras escritas
é largamente atestado no Egito (onde o líquido a ser ingerido pode também apenas “lavar” o
texto escrito, em caso do material de registro deste ser algum tipo de pedra ou madeira ao
invés de papiro). Mas, enquanto no caso egípcio a prática é definida como mágica, sua
apresentação na Torah/Pentateuco recebe a alcunha de religião347. A diferença de
categorização de uma mesma técnica seguiu, portanto, meramente a lógica do local em que
ela foi exercida: enquanto os egípcios assumiram o papel de eles, o relato bíblico é valorizado
pelo Ocidente de tradição judaico-cristã como um elemento identitário, sendo, portanto, o nós.

Religião e magia egípcias


Mas isso tudo não me impede de utilizar a dupla de termos para um estudo sobre o
Egito Antigo. Apesar de todos os problemas apresentados, me encontro de acordo com os
estudiosos que defendem se tratar de conceitos heurísticos úteis para a compreensão de
contextos culturais por uma lógica dita científica, uma vez que esta, no caso principalmente
das Humanidades, não consegue se desligar do universo linguístico de onde surgiu e/ou se
situa seus praticantes. Evitar ou substituir religião e magia por outras palavras acarretaria mais
em problemas do que em soluções348.
No entanto, utilizá-las requer que a atitude de aplicação não seja passiva. Abordar o
trajeto percorrido por cada a fim de mostrar as dificuldades inerentes é apenas a primeira
etapa na busca por um uso que seja mais consciente e atento dos conceitos. A segunda é uma
busca pelo aquilo que Hendrik Versnel chama de definição funcional, pensada e elaborada
tendo em mente a aplicação no contexto estudado de forma a ser, ao mesmo tempo, maleável
e ajustável caso seja preciso349. Michael Satlow também me auxilia nesta tarefa ao apregoar
que o melhor esforço ao lidar com categorias neste tipo de estudo deve ser o emprego das de
segunda ordem (ou seja, primariamente externas ao contexto estudado) de forma utilitária,
servindo apenas para a reunião de componentes anteriormente díspares entre si e sendo

346
BÍBLIA DE JERUSALÉM. 6ª impressão. São Paulo: Paulus, 2010, p. 210.
347
RITNER, Robert K. Op. cit., 2008, pp. 107-109.
348
Pieper comenta esta questão de forma apurada para o caso da religião, comentando que a) os estudiosos que
defendem o não uso do termo acabam evocando-o posteriormente, às vezes acompanhado de aspas, tal é a
validade nomeadora do termo; e b) substituí-los pode manter os problemas de origem linguística e ainda trazer
outros de alusão a um círculo maior de elementos (como seria o caso de se usar cultura no lugar). Ver: PIEPER,
Frederico. Op. cit., pp. 42-44.
349
VERSNEL, Hendrik Simon. Op. cit., pp. 185-186.
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deixada de lado logo após para que o estudo foque no conjunto formado350. Como ele defende
que uma categoria desse tipo seja também elaborada fazendo jus a sua origem e aos debates
sobre ela para que honrem as discussões teóricas ao mesmo tempo em que se tornam
dinâmicas, explícitas e maleáveis ao estudo351, sua proposição se soma à feita por Versnel
mesmo que Satlow não tenha empregado a expressão usada por este.
Assim, o caminho que devo seguir é o de traçar definições funcionais para seguir com
meu estudo. Começando por religião, a primeira questão que se coloca diante de mim é a
inexistência de qualquer palavra ou expressão em língua egípcia cujo significado possa ser
equiparado ao que chamamos, em nossa sociedade, de religião. Isto já torna a tentativa de
emprego do conceito algo potencialmente perigoso, mas sou auxiliado por Jan Assmann na
tarefa. Este egiptólogo alemão utiliza as concepções de Religião Visível (RV) e Religião
Invisível (RI), originalmente cunhadas por Thomas Luckmann na década de 1960, para lidar
com essa questão352. A RV se refere aos aspectos e elementos observáveis da religião, tais
como atos, ritos e objetos utilizados, enquanto que a RI e seu quadro geral de sentido, espécie
de plano de fundo em que se insere a RV353. A RI é identificada por Assmann com Maat354,
concepção complexa e de suma importância do Egito Antigo que designava questões de
ordem, justiça e verdade de tudo o que era entendido como parte da existência cósmica.
Enquanto a Religião Visível pode ser atribuída como englobando as ações de culto e serviços
a deuses e mortos, Maat serve-lhes como plano de fundo norteador ao mesmo tempo em que
orienta também os campos que entendemos atualmente como Justiça e Política355. Como o
fortalecimento de Maat era uma preocupação deveras central e para isso as ações
administrativas, legais e políticas também atuavam de forma significativa, estas acabam sendo
igualmente identificadas como elementos inseríveis no escopo afetado pela Religião Invisível.
Porém, é pensando nos cultos a deuses e mortos e no contato destes dois grupos com as
pessoas, ou seja, a Religião Visível, que faço o emprego do conceito de religião.

350
SATLOW, Michael L. Disappearing Categories: using categories in the study of religion. In: Method and
Theory in the Study of Religion, vol. 17, nº 4, pp. 287-298, 2005, pp 293-294.
351
Ibidem, pp. 294-295.
352
Ver: ASSMANN, Jan. “Invisible Religion and Cultural Memory”. In: ______. Religion and Cultural
Memory. Stanford: Stanford University Press, 2006, pp. 31-45.
353
Ibidem, p. 32.
354
Ibidem, p. 33.
355
Ibidem, p. 35.
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Já uma abordagem sobre a magia se beneficia pela possibilidade de se fazer a tradução


para expressões em língua egípcia. Seguindo-se as orientações de Joris Borghouts, há,
principalmente, dois termos que podem ser apontados como magia egípcia: heka e akhu.
Borghouts dedica um trato detalhado para a dupla cujos membros possuem uma proximidade
tal que leva até a uma alternância nas fontes escritas (apesar de ser algo raro) 356. Em resumo,
akhu é um elemento com atribuições criadores e de acesso restrito aos deuses, enquanto que
heka tem características mais protetoras e se encontra disponível não só para as divindades
egípcias como também para os humanos357. Talvez seja por este último motivo que heka é
quase sempre lembrado como se tratando da magia egípcia par excellence, quase sempre
figurando nas fontes e pesquisas sobre o tema.
De qualquer forma, a magia egípcia pode ser compreendida como uma espécie de
força e/ou substância (ela pode ser vista de ambas as formas nas fontes egípcias) utilizada por
homens e deuses para fins diversos. Trata-se de um tipo de ferramenta, e como tal seus usos
podem ser identificados como benignos ou malignos apenas levand0-se em conta os intuitos
de quem a utiliza; em outras palavras, por si só a magia é um elemento neutro358. Isto faz com
que ela não se torne um item eminentemente negativo como pintado pela tradição Ocidental,
mas sim socialmente aceito e largamente presente. Um bom exemplo disso é o episódio da
Conspiração do Harém, em que indivíduos planejaram a morte do faraó Ramsés III (século
XII AEC, XX Dinastia) por meio de magia. Ritner afirma se tratar de um crime grave não por
ter envolvido a magia, mas por ter sido uma tentativa de assassinato do rei:
Se isso fosse feito por magia ou por meio da força física era irrelevante; assassinato
por espada dificilmente teria sido mais aceitável. [...]. Os registros da Conspiração
do Harém assim revelam uma condenação por feitiçaria contra o rei, não uma
condenação contra a feitiçaria em si.359

Assim, os espaços de ambos, magia e religião egípcias, estão definidos. No entanto,


tais espaços não devem de forma alguma ser entendidos como estanques, monolíticos e
separados. Passo, então, para a última e mais importante seção deste texto.

356
BORGHOUTS, Joris F. “Akhu and hekau. Two Basic Notions of Ancient Egyptian Magic, and the Concept of
the Divine Creative Word.” In: ROCCATI, Alessandro; SILIOTTI, Alberto (eds.). La Magia in Egitto ai Tempi
dei Faraoni. Atti Convegno di Studi Milano 29-31 Ottobre 1985. Milan: 1987, pp. 29-46, p. 32.
357
Ibidem, pp.34-35; 38.
358
RITNER, Robert K. Op. cit., 2008, p. 20; ROUFFET, Frédéric. À la recherché du magicien égyptien. In:
Bulletin de la Société française d’égyptologie, nº 191-192, pp. 60-69, 2015, p. 64.
359
RITNER, Robert K. Op. cit., 2008, p. 199.
441
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Entre a magia e a religião egípcias


Que aa religião e a magia egípcias eram elementos próximos e relacionados os
egiptólogos como Wallis Budge360 e Alan Gardiner361 já reconheciam. De fato, estabelecer
linhas divisórias claras entre as duas, ou delas com a ciência, é um esforço que alguns como
Ritner afirmam ser arbitrário e infrutífero.
A razão disso é justamente a ampla presença da magia. Ela e observada em usos
medicinas, bélicos, protetores, dentre diversos outro. Pinch argumenta que a magia era
executada mesmo que seu objetivo pudesse ser alcançado usando-se os meios de técnicas e
saberes práticos já existentes362; em outras palavras, uma dor de cabeça poderia ser sanada por
meio de magia ou com soluções de ervas e medicamentos, por vezes utilizando-se ambos os
procedimentos. Daí a dificuldade, neste exemplo dado, em definir onde termina a magia e
começa a medicina e vice-versa. As linhas divisórias, se é que existentes, são porosas, além de
dizerem mais respeito a formas de pensamento ocidentais do que propriamente egípcias.
Deixando a medicina de lado, os tópicos seguintes buscarão demonstrar como a magia
estava de tal forma ligada à Religião Visível egípcia que buscar separá-las ameaça incorrer
em graves erros analíticos.

Deuses e magia
Um primeiro ponto a ser notado é o importante papel do mito e dos deuses na magia.
Um de seus procedimentos centrais era a evocação de algum caso envolvendo os deuses para
que os envolvidos no ato mágico, praticante e seu cliente, fossem a eles identificados. Pela
lógica egípcia, isso fazia com que eles se tornassem os próprios deuses mencionados, e o que
houvesse ocorrido aos deuses seria reproduzido a nível humano. Por exemplo, uma pessoa
que tivesse sido picada por um escorpião poderia ser tratada por meio da evocação de algum
relato mítico em que o deus Hórus também sofresse uma picada do tipo e acabasse sendo
curado. Ao ser identificado com Hórus, ou melhor, ao tornar-se o deus Hórus, a vítima do
escorpião teria o mesmo fim que esta divindade e melhoraria.

360
BUDGE, E. A. Wallis. Egyptian Magic. London: Kegan, Paul, Trench and Trübner & Co., 1901. Scanned at
sacred-texts.com, April 2002, Redacted by J.B. Hare, p. 2
361
GARDINER, Sir Alan H. Magic (Egyptian). In: HASTINGS, James (ed.). Encyclopaedia of Religion and
Ethics. Volume VIII. New York: Charles Scribner’s Sons, 1915, pp. 262a-269a, p. 262a-b.
362
PINCH, Geraldine. Magic in Ancient Egypt. London: British Museum Press, 2006, p. 14.
442
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O segundo ponto diz respeito ao praticante da magia e a heka em si. O “mago” egípcio
era, até onde as fontes e estudos aferiram até então, um sacerdote. Este, como poderia não
apenas ter acesso a determinados textos como gozar de certos conhecimentos e atribuições,
poderia vir a atuar como “mago” quando estivesse fora de suas funções sacerdotais. No
entanto, não era todo e qualquer sacerdote que poderia agir como mago363. O sacerdote-leitor
chefe é o mais comumente lembrado como executor de magia364, mas Joachim Quack fala da
participação de outros, tais como o conjurador de escorpiões e o sacerdote da deusa
Sekhmet365. Já heka não se tratava meramente de uma força cósmica, como também poderia
aparece como o deus Heka, chegando a possuir seus próprios templos e sacerdotes voltados a
seu culto no Baixo Egito366. Ritner afirma que menções a este deus aparecem ao longo de toda
história do Egito367. Heka também figura em um importante texto egípcio como um dos
primeiros seres criados do demiurgo e um de seus principais auxiliadores no processo de
criação do universo368. Ademais, como uma das temporalidades concebidas pelos egípcios era
cíclica369, acreditava-se que a criação se repetia diariamente, logo as fundamentais ações de
Heka ocorriam continuamente370. Estes e outros fatores fazem com que Ritner aponte Heka
como uma divindade importante, e não uma mera “ ‘personificação’ colorida”371.
Por último, devo mencionar o próprio espaço dos templos. O templo egípcio é um
local interessante para nós ocidentais por que, diferentemente das ideias pré-concebidas e
enraizadas que temos, o principal objetivo dele não era o de um culto público ou reunião de
fiéis. Havia realmente um pátio externo com ampla circulação em que uma miríade de
atividades de diversos tipos eram desempenhadas. Contudo, o ponto principal do templo era a
câmara em que residia o deu (uma estátua representando-o que, para os egípcios, correspondia
a ela própria). Este recinto especial tinha acesso altamente restrito, disponível apenas a alguns
363
Para um panorama aproximado da diversidade de posições sacerdotais que existiam, ver: PERMIGOTTI,
Sergio. O Sacerdote. In: DONADONI, Sergio (dir.). O Homem Egípcio. Tradução de Maria Jorge Vilar de
Figueiredo. Lisboa: Editorial Presença, 1994, pp. 107-132.
364
RITNER, Robert K. Op. cit., 2008, pp. 220-222; PINCH, Geraldine. Op. cit., p. 52.
365
QUACK, Joachim Friedrich. “La magie au temple”. In: KOENIG, Yvan. La Magie en Égypte : à la
recherche d’une définition. Actes du colloque organisé par le musée du Louvre les 29 et 30 septembre 2000.
Paris : la documentation Française – Musée du Louvre, 2002, pp. 41-68, pp. 44-46.
366
PINCH, Geraldine. Op. cit., pp. 9-11.
367
RITNER, Robert K. Op. cit., 2008, p. 15.
368
Ibidem, p. 17. A fonte em questão é o Encantamento nº 261 do conjunto dos Textos dos Sarcófagos.
369
Os egípcios basicamente concebiam o tempo de duas maneiras, cíclica e linear, de forma que elas se
complementavam ao invés de se chocarem como pressuporíamos atualmente.
370
Ibidem, p. 18.
371
Ibidem, pp. 26-28.
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sacerdotes de determinadas posições hierárquicas cujas atribuições envolviam cuidados à


divindade residente, tais como oferendas de alimentos, banhos da estátua, entoação de hinos,
dentre outros372. Nisto tudo a magia era uma presença constante, desde a fala e gestos do
sacerdote às imagens existentes nas paredes que eram animadas e auxiliavam nos serviços ao
deus. Além disto, novamente Quack fornece uma série de exemplos de encantamentos grafas
em paredes de templos, tanto externas quanto internas, que auxiliavam em questões de
proteção, cura e auxílio ao nascimento, principalmente quando este se referia ao deus-
residente em forma de criança373. Por fim, há as bibliotecas de templos que conseguiram
sobreviver aos dias de hoje (poucas, infelizmente) e em que foram encontrados papiros
comais encantamentos mágicos, os quais se destinavam primeiramente ao faraó mas que
também era utilizados em prol de alguma divindade, animal ou até algum indivíduo
particular374.

Mortos e magia
A presença da magia na esfera das práticas funerárias é mais forte e menos necessitada
de defesa375. As tumbas egípcias nos trouxeram paredes ornadas com inscrições, rolos de
papiro, conjuntos de estatuetas diversas e uma variedade de outros componentes que, acima
de tudo, não eram colocados ali por mero embelezamento decorativo. Cada um desses itens
possuía uma razão para estar ali sendo o intuito central a garantia e manutenção da nova vida
após a morte376.

372
Ver OLIVEIRA, Haydée. “Os templos egípcios e seus espaços”. In: CARDOSO, Ciro F. S. & OLIVEIRA,
Haydée (orgs.). Tempo e espaço no Antigo Egito. Niterói, PPGHistória – UFF, 2011, pp. 133-146; ver também:
BAINES, John. “Society, Morality, and Religious Practice”. In: SHAFER, Byron E. (org.). Religion in Ancient
Egypt. Ithaca and London: Cornell University Press, 1991, pp. 123-200.
373
QUACK, Joachim Friedrich. Op. cit., pp. 47-57.
374
Ibidem, pp. 57-60.
375
Para uma exposição completa e pormenorizada, ver: RIBEIRO, Thiago. Cosmologia e Morte no Egito Antigo:
o Tribunal de Osíris. Monografia de conclusão de curso, orientada pelo professor Luís Eduardo Lobianco.
Seropédica: Coordenação do Curso de História, Instituto de Ciências Humanas e Sociais da Universidade
Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), 2014, 127f.
376
Ver, para os pontos tratados nesse tópico, as seguintes obras: TAYLOR, John H. Death and the Afterlife in
Ancient Egypt. London: The British Museum Press, 2001; SANTOS, Moacir Elias. Jornada para a Eternidade:
as concepções de vida post-mortem real e privada nas tumbas tebanas do Reino Novo - 1550 - 1070. Tese de
Doutorado, orientada pelo Professor Doutor Ciro Flamarion Cardoso. Niterói: Programa de Pós-Graduação em
História da Universidade Federal Fluminense, 2012, 467 f., e CARDOSO, Ciro F. S. Deuses, Múmias e
Ziggurats: uma comparação das religiões antigas do Egito e da Mesopotâmia. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1999.
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Os egípcios não eram um povo ligado à morte, mas sim à vida. A morte consistia em
um momento de passagem para uma nova existência, melhor e mais elevada que a gozada
dentre os vivos, mas isto não vinha de forma gratuita. O deus Osíris era o arquétipo de todo
indivíduo falecido pois, segundo as crenças, ele foi assassinado e veio a ressuscitar graças à
magia da deusa Ísis, sua irmã e esposa. Da mesma forma, uma pessoa que viesse a morrer
poderia, na concepção egípcia, ressuscitar em uma nova vida como Osíris havia feito. Porém,
isto não era algo imediato e precisava de uma série de processos e preparos para que fosse
concretizado. Como em Osíris, a magia também era aqui imprescindível.
Havia diversos pontos e etapas das práticas funerárias que eram necessárias para
assegurar o pós-morte, como a construção da tumba (que não costumava ser algo
financeiramente barato), o preparo do corpo pela mumificação e o próprio enterro. A magia se
encontrava presente em todo esse meio, mas optarei por falar aqui de alguns pontos relativos
às crenças. Primeiramente, o morto, após todo o processo de sepultamento, deveria ainda
empreender uma jornada para poder chegar ao reino dos mortos. Não se tratava de uma
simples e fácil tarefa, pois inúmeros perigos e desafios lhe eram impostos. Felizmente, ele
contava com o auxílio de amuletos, estatuetas e fórmulas de encantamentos – isto é, com todo
um arcabouço de recursos mágicos que lhe permitiam chegar a seu destino. Dentre eles, o
mais notório talvez seja o conjunto de “livros” funerários, sendo mais destacáveis a tríade
formada pelos Textos das Pirâmides, Textos dos Sarcófagos e o famoso Livro dos Mortos.
Estes três consistiam em uma mesma tradição de textos de encantamentos cujo intuito
principal era prestar auxílios ao morto. Eles poderiam ser postos nas tumbas na forma de
papiros ou em inscrições feitas no sarcófago, paredes e teto. Como os egípcios acreditavam na
eficácia e potencialidade de palavras escritas e imagens de afetarem a realidade, a mera
presença deles já era significativa para a concretização da viagem póstuma.
Mas não era apenas importante conquistar essa nova vida após a morte, como também
mantê-la era uma preocupação crucial. Para os egípcios, por mais grandiosa e divina que fosse
essa nova existência, os “mortos glorificados”, como eram assim chamados, precisavam ser
nutridos por meio de alimentos da mesma forma que os vivos, do contrário poderiam vir a
sofrer uma espécie de segunda morte e deixarem de existir (a inexistência, tema ligado ao
Caos Original, era um dos grandes medos dos egípcios). Assim, era função dos vivos
oferecer-lhes comidas e bebidas regularmente. Acontece que tais oferendas nem sempre eram

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realizadas, principalmente quando já se tratava de um morto antigo e esquecido. Para lidar


com isso, recorria-se novamente à magia como um meio de garantir que a oferta de alimento
sobrevivesse ao fim das doações. Assim, era possível garantir que plantações fossem
cultivadas para o finado no próprio reino dos mortos, sendo empregadas as estatuetas ushabits
existentes na tumba como mão-de-obra substituta ao próprio morto (do contrário, ele mesmo
precisaria trabalhar). Ou, poderia se utilizar textos e imagens grafadas na tumba que fizessem
o ato de oferendas ter uma repetição mágica, como é o caso de cestas de alimentos serem
representadas em prol do morto. Mas um recuso que foi muito utilizado era uma espécie de
repasse de oferendas por meio de inscrições atribuídas ao faraó, algo que era feito utilizando a
fórmula Htp-di-nsw (algo como “uma oferta feita pelo rei”).

Conclusão
Eu não teria como seguir o conselho de ver a magia ser usada para acusações simplesmente
por que isto não ocorria no Egito Antigo. A magia era importante para o povo egípcio; eles
acreditavam, segundo nos informa um texto intitulado Ensinamentos para o rei Meri-ka-Ra,
que ela havia sido uma dádiva do deus sol criador e a utilizavam para proteger suas casas,
lidar com animais perigosos, dialogar com os deuses e tratar suas doenças (por vezes, os
próprios deuses poderiam estar ligados às doenças). A magia não apenas fazia parte da
religião como também é significativa sua ligação muito próxima com a vida, o que pode ser
constatado pelo simples fato do símbolo hieroglífico representativo do “princípio vital”, ka,
fazer parte da escrita da palavra heka.
Em suma, a magia egípcia era uma espécie de engrenagem importante no
funcionamento do universo. Retire-a, e todo o restante entra em colapso.

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Preservar e Permanecer: o ethos religioso e a memória histórica católica de Espírito


Santo do Pinhal (SP)
Valéria Aparecida Rocha Torres377

Resumo: Este artigo se propõe abordar a produção da memória da origem católica do


município de Espírito Santo do Pinhal (SP) como um modelo de análise sobre as condições
sociais que possibilitam a construção da memória da Igreja Católica no Brasil. As narrativas
da memória histórica oficial do município ressaltam a história vinculada ao catolicismo,
enquanto acabou por ocultar outras possibilidades de memória, de certa forma
“naturalizando” a sua origem católica, esta por sua vez viabilizada por mentalidades
produzidas historicamente pelo ethos católico brasileiro. Mas não basta ficarmos somente
nesta afirmação é necessário discutir e apontar os mecanismos por meio dos quais esta
memória se construiu e tornou-se hegemônica sendo assim, partirmos do diálogo com o
historiador Jacques Le Goff e como o sociólogo Michel Polack e do ponto de vista da
discussão a respeito do ethos católico brasileiro nosso diálogo se dá com o antropólogo
Clifford Geertz.
Palavras-chave: Memória; História; Igreja Católica; Catolicismo.

Preserving and Remaining: the religious ethos and the Catholic historical memory of
Espírito Santo do Pinhal (SP)
Abstract: This article proposes to approach the production of the memory of the Catholic
origin of the municipality of Espírito Santo do Pinhal (SP) as a model of analysis on the social
conditions that make possible the construction of the memory of the Catholic Church in
Brazil. The narratives of the official historical memory of the municipality emphasize the
history linked to Catholicism, while at the same time hiding other possibilities of memory,
somehow "naturalizing" its Catholic origin, this in turn made feasible by mentalities produced
historically by the Brazilian Catholic ethos. But it is not enough just to remain in this
affirmation is necessary to discuss and point out the mechanisms through which this memory
was built and became hegemonic being thus, starting from the dialogue with the historian
Jacques Le Goff and as the sociologist Michel Polack and from the point of view Of the
discussion about the Brazilian Catholic ethos our dialogue is with the anthropologist Clifford
Geertz.
Keywords: Memory; History; Catholic church; Catholicism

Introdução:
Este artigo tem por perspectiva explorar a construção da memória-histórica católica de
Espírito Santo do Pinhal (SP) dos primeiros anos do regime republicano até a segunda metade
do século XX como o produto da territorialização da memória da Igreja Católica, tal processo
em nossa análise foi proporcionado por uma série de fatores que compõe o contexto propício

377
Valeria Aparecida Rocha Torres. Doutoranda do Programa de Estudos Pós-graduados em Ciência da Religião
– PUC-SP. Bolsista da CAPES. valeriarochatorres@gmail.com
449
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à produção do lugar da memória histórica católica na História do Brasil, não há dúvidas de


que este processo não é exclusividade e nem singularidade de Espírito Santo do Pinhal uma
pequena cidade situada no leste paulista, mas o seu exame pode contribuir para revelar outras
possíveis dimensões dos papéis desempenhados pela Igreja Católica na vida cotidiana da
sociedade brasileira.
Portanto, nos propomos a tentar compreender dimensão da memória do catolicismo
como foco da identidade do grupo, da história deste grupo e da gênese de sua formação além
da busca pela compreensão desse processo como um projeto de imposição desta memória
sobre outras memórias e outras histórias inerentes a este grupo, também nos interessa
acompanhar um dos caminhos percorridos na construção desta memória e o habitat378 que
favoreceu o seu florescimento e assim acreditamos em alguns indícios que apontam para isso,
em primeiro lugar o fato de que entre o final do século XIX e início do XX começou a
propagar-se no Brasil uma concepção de história informada pelo pensamento neotomista379,
naquele contexto da História do Brasil o neotomismo se apresentava como alternativa ao
racionalismo positivista380 que por sua vez havia dominado o pensamento da elite política e
intelectual brasileira, inclusive fundamentando, como foi colocado anteriormente, as críticas
ao poder da Igreja Católica e o seu controle sobre o cotidiano social. Dessa forma o

378
Lugar onde algo ou alguém se instala por sentir que é seu ambiente ideal: “Dentro da cozinha ele está no seu
habitat, e isso é fácil constatar enquanto ele tempera, corta, cheira, flamba, se envolve e revela segredos, seus e
das receitas” (RN). www. http://michaelis.uol.com.br/ acesso em 24/10/2016.
379
Neotomismo: Doutrina filosófica que toma por base o pensamento de Tomás de Aquino, adaptando-o, quando
necessário, para levar cm conta as descobertas científicas e os problemas específicos do mundo moderno. Mais
contemporaneamente, inspirou-se na Encíclica Aeterni Patris (1879) do papa Leão XlI, que inaugurou o
neotomismo oficial. Seu principal representante neste século foi o filósofo francês Jacques Maritain (1882-
1973). (Japiassú ; Marcondes, 2001,p.139).
380
Positivismo (fr. positivisme) I. Sistema filosófico formulado por Augusto *Comte. tendo como núcleo sua
teoria dos três *estados, segundo a qual o espírito humano, ou seja. a sociedade, a cultura, passa por três etapas: a
teológica, a metafísica e a positiva. As chamadas ciências positivas surgem apenas quando a humanidade atinge
a terceira etapa, sua maioridade, rompendo com as anteriores. Para Comte. as ciências se ordenaram
hierarquicamente da seguinte forma: matemática, astronomia, física, química, biologia, sociologia; cada uma
tomando por base a anterior e atingindo um nível mais elevado de complexidade. A finalidade última do sistema
é política: organizar a sociedade cientificamente com base nos princípios estabelecidos pelas ciências positivas.
2. Em um sentido mais amplo, um tanto vago, o termo "positivismo" designa várias doutrinas filosóficas do
séc.XIX. como as de Stuart *Mill, *Spencer, *Mach e outros, que se caracterizam pela valorização de um
método empirista e quantitativo, pela defesa da experiência sensível como fonte principal do conhecimento, pela
hostilidade em relação ao *idealismo, e pela consideração das ciências empírico-formais como paradigmas de
cientificidade e modelos para as demais ciências. Contemporaneamente muitas doutrinas filosóficas e científicas
são consideradas "positivistas" por possuírem algumas dessas características, tendo este termo adquirido uma
conotação negativa nesta aplicação. (Jupiassú; Marcondes, 2001, p.152)
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neotomismo promoveria a reinvenção da História do Brasil formulada a partir da fé e razão


contemplando os anseios da elite política e da Igreja Católica.
Se o positivismo apagava a fé em prol da razão e do empirismo, o neotomismo trazia
para muitos intelectuais a possibilidade de conjugar fé e razão, tradição e
modernidade, o que condizia com as expectativas de futuro da classe dominante.
Assim, a interpretação da história no Brasil e na Argentina era parte de um debate
enraizado numa sociedade que almejava se modernizar sem abandonar suas
características tradicionais, cristãs e conservadoras. (Silva, 2009, p.2)

Portanto, no sentido descrito anteriormente a análise da produção da memória da


origem católica de muitos municípios brasileiros pode contribuir para o entendimento de um
projeto mais amplo e revelador a respeito da transição do país para a chamada “modernidade”
que procurou aliar as suas características tradicionais cristãs e conservadoras, dessa maneira a
produção da memória histórica católica, como referência de origem de vários municípios
brasileiros pode ter cumprido um papel importante na perspectiva da organização do
catolicismo no Brasil381 que atravessou o século XX em constante elaboração do papel da
Igreja Católica e de sua relevância no forjar da sociedade brasileira. No entanto, essa
constatação é uma afirmação que necessita de investigação e interpretação, por isso, trazemos
neste artigo uma proposta de análise e reflexão sobre este processo.
Mas ainda é preciso enfatizar o contexto complexo no qual se insere a produção desta
memória, que está para além das relações institucionais entre Igreja Católica e o Estado
Brasileiro, pois, a presença do catolicismo no Brasil desde os primórdios do processo de
colonização foi decisiva no forjar das relações sociais, na construção de determinada
cosmovisão instituidora e normatizadora das práticas religiosas de uma sociedade plural cuja
interseção cultural entre gerações de indígenas, africanos e europeus por muitas vezes foi
orquestrada pelo catolicismo, dessa forma e com alguma certeza podemos afirmar com Maria
Lúcia Montes (2012) que em seu livro Figuras do Sagrado: entre o Público e o Privado na
religiosidade brasileira afirma que desse processo resultou a conformação do etos católico no
Brasil.
Os estudiosos das religiões sempre reconheceram, no Brasil, desde os tempos
coloniais, a curiosa mistura por meio da qual uma Igreja Católica plenamente
atuante na vida pública graças a seus vínculos com o Estado, capaz de promover a
legitimidade do poder a economia moral da propriedade privada, ainda que esta se
referisse a outro ser humano, o escravo, foi igualmente capaz de acomodar-se ao
etos da sociedade em que se inseria e assim, incorporar sistemas de crenças

381
Sobre a organização do catolicismo no Brasil no século XX ver Ralf Della Cava. DELLA CAVA, Ralph.
Igreja e Estado no Brasil do século XX. Estudos CEBRAP. N.12,pp 5-52, 1975.
451
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particularistas e locais, adaptar-se a devoções de cunho privado e mesmo incentivá-


las, como no caso das confrarias e irmandades, ou criar práticas religiosas de caráter
intimista, como se traduz, por exemplo, nos ex-votos populares encontrados por toda
a parte no país. (Montes, 2012, p. 48)

O ethos católico brasileiro talvez seja uma das chaves para tentarmos compreender o
processo por meio do qual nos jogos políticos entre a Igreja e o Estado no Brasil elaboram-se
recortes interessados da memória e da História Social. Maria Lúcia Montes denomina de
ethos a lógica e comportamento religioso que foi construído no Brasil desde os tempos
coloniais que permeou toda a vida social de ponta a ponta, esse ethos comportava o sagrado e
o profano e fundamentalmente o público e o privado expressando o espaço sem fronteiras
entre a festa religiosa e civil, entre o espiritual e o temporal, esse espaço sem dúvida marca
inabalável do ethos religioso brasileiro. Nessa perspectiva podemos inferir que no processo de
construção da sociedade brasileira a lógica fundamentada e informada pelo profícuo diálogo
inter-religioso (afro-ameríndio cristão), orquestrado pela simbologia católica contribuiu
profundamente para a conformação da textura da memória social.

1. A construção da História de Espírito Santo do Pinhal: do fato religioso ao fato


histórico.
Como boa parte das cidades da região do leste paulista, Espírito Santo do Pinhal surgiu
a partir do caminho das bandeiras, essas expedições que se destinavam a Goiás em busca de
ouro utilizavam dois caminhos diferentes, um que partia do Rio de Janeiro e outro de São
Paulo. No primeiro, o caminho tinha por traçado a Serra da Mantiqueira, Morro do Lobo,
atingindo as atuais divisas de São Paulo e Minas. Nessa região alcançavam Rio Pardo e
embrenhavam-se por Goiás adentro. No segundo, quando partiam de São Paulo, passavam por
Jundiaí, Atibaia, Jaguari (hoje Bragança Paulista), Mogi Mirim, Mogi Guaçu (limítrofe a
Espírito Santo do Pinhal), Itaqui, Casa Branca, Batatais e, transpondo o Rio Grande,
avançavam nos sertões de Goiás, assim, por meio desse caminho surgiu o município de
Espírito Santo do Pinhal que está situado a 90 km de Campinas e 190 km de São Paulo.
A ocupação dessas terras, portanto, começou por volta do final do século XVIII e
provavelmente a partir do processo de expansão bandeirante descrito anteriormente, no
entanto, a fundação da cidade somente ocorreu em 1849 e está vinculada a Romualdo de
Souza Brito que, vindo de Mogi das Cruzes, estabeleceu-se no local como posseiro

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dedicando-se, primeiramente à agricultura de subsistência e depois à cafeicultura comercial.


Em meados do século XIX a questão da posse e propriedade de terras era um problema grave,
boa parte das terras no Brasil eram devolutas, sendo assim, sua ocupação era feita por
posseiros – migrantes, como era o caso de Romualdo de Souza Brito– que, itinerantes,
buscavam melhores condições de vida para si e suas famílias.
No entanto, a região do rio Mogí-Guassú e Eleutério era dominada por mata
exuberante e caracterizada por uma topografia muito acidentada, o que dificultava e
muito a entrada de povoadores. Foi somente no final do século XVIII e início do
século XIX que gente vinda de Mogí-Gussú e Ouro Fino começaram a se apossear
destas terras. A entrada simultânea de paulistas por um lado e mineiros por outra, na
região do Eleutério, gerou uma série de conflitos, tanto entre os posseiros como
também entre as autoridades de Mogi Mirim e Ouro Fino. (MARTINS, 1986, p.52)

Dessa forma, os conflitos de terras eram constantes e normalmente resolvidos por


meio da violência ou outras estratégias – como a doação de terras à Igreja - desenvolvidas por
posseiros para assegurar sua permanência e controle sobre as terras ocupadas, foi esse caso
específico de Espírito Santo do Pinhal, sua fundação está ligada a uma demanda conflituosa
sobre a posse de parte das terras da fazendo do Pinhal ( nome dado devido a imensa
quantidade de araucárias na região), levada a cabo por agricultores que na primeira metade do
século XIX tentavam se estabelecer na região.
Tudo começou, quando, por volta de 1820, Floriano Pires Cardoso adquiriu fazenda do
Pinhal situada na freguesia de Mogi Guaçu de Antonio Carlos Azevedo que, por sua vez havia
conseguido a fazenda por meio de posse. E assim, durante a primeira metade do século XIX a
Fazenda do Pinhal foi assunto de demanda judicial, entre os herdeiros dos Pires Cardoso, dos
Azevedo e posteriormente de outros condôminos que ali se estabeleceram e como a legislação
de terras no Brasil somente foi aprovada em 1850382, as questões relativas às tais demandas
eram, obviamente, decididas por meio da força e neste caso, como em tantos outros,
resolvidos os conflitos eram apaziguados por meio da doação das terras em litígio para a
Igreja Católica.
Para apaziguar o litígio foi que Romualdo de Souza Brito um dos condôminos da
Fazenda Pinhal e sua esposa, dona Tereza Maria de Jesus, resolveram solucionar o problema

382
Lei N° 601 de 18 de Setembro de 1850 : Dispõe sobre as terras devolutas no Império, e acerca das que são
possuídas por titulo de sesmaria sem preenchimento das condições legais. bem como por simples titulo de posse
mansa e pacifica; e determina que, medidas e demarcadas as primeiras, sejam elas cedidas a titulo oneroso, assim
para empresas particulares, como para o estabelecimento de colonias de nacionaes e de extrangeiros, autorizado
o Governo a promover a colonisação extrangeira na forma que se declara.
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do conflito no qual estavam envolvidos: no dia 27 de dezembro de 1849 doaram as terras


disputadas para a formação do patrimônio do Divino Espírito Santo, porém Romualdo não era
parte significativa no litígio que se estendeu durante o século XIX, ele só veio a aparecer na
questão quando fez a doação de terras ao Patrimônio do Espírito Santo. Porém, a partir desta
doação, que compreendia 40 alqueires de terras retiradas da Fazenda do Pinhal surgiu o
povoado que recebeu o nome de Espírito Santo e Nossa Senhora das Dores do Pinhal.
No entanto, as questões relativas à posse de terras e formação de povoados no Brasil
do século XIX não eram tão simples assim, e doar terras à Igreja é um ato que além da
devoção a determinado santo ou ao Divino Espírito Santo, como é o caso analisado, envolvia
outras contendas, existia uma questão pragmática no ato da doação de terras para ao
patrimônio da Igreja Católica no século XIX, pois cabia a Igreja por meio de seus representes
homologar o aceite da doação e desse ato dependia o início ou não de um povoamento,
reconhecido como tal pela Igreja e pelo Estado, assim, o cabia ao pároco do povoamento mais
próximo, no caso o vigário de São João da Boa Vista, aceitar ou não a doação o aceita
significava curar a capela erigida em louvou ao Divino Espírito Santo, isso aconteceu somente
em 1856 quando o Bispo de São Paulo declarou curada a capela do Divino Espírito Santo do
Pinhal fornecendo as divisas do povoamento. Portanto, depois de 7 anos de luta, o
povoamento foi reconhecido como tal.(Martins,1986, p.21)
Assim, na formação inicial do município temos esse grupo de posseiros vindos
fundamentalmente da Região de Bragança Paulista, por volta de 1860 uma nova leva de
migrantes chegou à região, oriundos do sul de Minas Gerais, estes começaram a desenvolver a
cafeicultura comercial na região, os mineiros formaram a elite econômica que controlou a
política local de 1870 e até ao final da Primeira República, com estes cafeicultores chegaram
um número considerável de escravos trazidos de Minas para trabalharem na lavoura de café,
não sabemos precisar ao certo esse número por falta de registros, mas existe o registro de um
censo encomendado por um fazendeiro local em 1886 que registrava a presença de mil
escravos no município, um número bastante alto num contexto às portas da abolição.
Ainda em relação à formação social do município no final do século XIX temos a
entrada de um grande contingente de imigrantes italianos – expulsos de seu país em função da
Unificação Italiana em 1864 – foram trazidos como opção de substituição para a mão de obra
escrava, porém essa “opção” é oriunda de um projeto político que envolveu o país numa longa

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discussão política sobre modelo de governo e regime de trabalho, esse debate que se acirra em
meados do século XIX, obviamente, se assentava em princípios liberais focados no trabalho
livre, no modelo de progresso pautado no branqueamento da raça e na idealização do
trabalhador livre europeu como redentor e promotor do “novo” Brasil. E assim a opção foi
clara, o branco, europeu, apto ao trabalho livre e católico, que correspondia a modelo do
projeto liberal de branqueamento da raça quando a escravidão do ponto de vista político-
econômico chegou ao seu limite esse processo foi estudado pela historiadora Célia Maria
Marinho de Azevedo (1987) em seu livro Onda Negra Medo Branco: o negro no imaginário
das elites no século XIX.
Numa palavra, a raça inferior negra, embora escravizada teria determinado a má
evolução ou a não evolução dos brasileiros brancos. E assim despido da imagem de
vitima, que estava então sendo construída pelos abolicionistas, o negro passa a
incorporar a de opressor de toda uma sociedade. Finalizando Pereira Barreto
propunha políticas para assegurar condições favoráveis à imigração europeia tais
como a separação da Igreja do Estado, a grande naturalização, o casamento civil, a
secularização dos cemitérios, a elegibilidade de não católicos. Sem isso e mais o
controle severo sobre os negros não se conseguiria garantir a simpatia da Europa e
atrair uma grande corrente migratória e, consequentemente, seria absolutamente
impossível resolver a questão do trabalho. (Azevedo, 1987, pp.69-70)

Neste cenário que se consolida a formação do município de Espírito Santo do Pinhal,


os imigrantes italianos que vieram atender as novas demandas da mão de obra do país,
chegaram a Espírito Santo do Pinhal formaram o Bairro de Santa Luiza, que atualmente
abriga um Santuário em louvor à santa, uma parte desses imigrantes formou classe média
urbana outra parte se constituiu em pequenos produtores de café geograficamente localizados
no Bairro Rural de Santa Luzia.
No espaço físico da cidade de Pinhal grupos étnicos diversos – entre eles: italianos,
espanhóis, negros e seus respectivos descendentes -, buscaram estabelecer-se. Para
tanto, construíram identidades, criaram laços e alianças e delimitaram espaços
sociais 3. Entretanto, entre a convivência e sua aceitação como iguais no espaço
urbano, muita distância ainda deveria ser percorrida e, muitas pontes teriam de ser
transpostas.
A convivência aparentemente igual não condizia com a realidade de exclusão
imposta à maioria desses grupos e de seus descendentes em Pinhal. O período Pós-
Abolição vai ser marcado pela forma conflituosa como se deu a introdução desses
grupos nos espaços físicos, sociais e políticos na cidade. (Tamaso, 2005, p.4)

Sem dúvida alguma, a estruturação e formação da sociedade pinhalense não foi isenta
de conflitos sociais, políticos e econômicos desde a doação de terras vinculadas ao início do
povoamento, depois com o desenvolvimento da cafeicultura com a chegada de um

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contingente expressivo de escravos383, a chegada de imigrantes que vieram em busca de


melhores condições de vida, esses conflitos passaram também pelo controle da história e da
memória local. Apesar da heterogeneidade da formação social e econômica do município a
memória histórica prevalecente é relativamente apaziguadora e permeia o imaginário coletivo
da população de Espírito Santo do Pinhal: o ato de fé de Romualdo de Souza Brito e sua
esposa, que por devoção ao Espírito Santo doaram as terras para apaziguar os conflitos
resultados da demanda em torno das terras, narrativa que ganhou expressão como veremos a
partir do início da Primeira República.
Assim, nessa religiosidade popular, as forma simbólicas que laboriosamente haviam
sido introjetadas por culturas africanas e indígenas, permitindo que por meio delas
se integrassem seguimentos étnicos distintos à sociedade e à cultura brasileira em
processo de formação, eram já – ou pareciam ser – ininteligíveis a uma elite branca
que não reconhecia ou não queria reconhecer-se nessa imagem de si projetada pela
devoção marcada pela inconfundível presença do negro. (Montes, 2012, p.66).

Nesse sentido o trabalho de Michael Pollak (1989) pode contribuir para o


entendimento da produção e difusão da memória coletiva em uma abordagem crítica, como
um processo de dominação ou violência simbólica inserido num contexto de disputa pela
imposição da memória legítima. Assim, a memória de um grupo social deve ser analisada
inserida num campo de disputas, de enfrentamentos pela imposição, afirmação e legitimação
de um determinado “regime de verdade” sobre o passado.
Dessa forma, temos algumas possibilidades de entendimento dessa memória e uma
não exclui a outra, uma delas é a ideia da produção de lugares da memória de acordo com a
concepção do historiador Pierre Nora (1993) que distingue memória de história e trata a
memória fundamentalmente no campo da construção de identidades de grupos, outra
possibilidade é a memória como espaço de disputa política de afirmação e legitimação de um
grupo no espaço social como afirma Michel Pollak. Acreditamos que tratar de memória ou
memórias comporta inúmeras dimensões e dentro da dinâmica ou das dinâmicas de sua
produção podemos encontrar tanto as concepções de Pollak quanto de Nora.
Portanto, o que notadamente se confunde nesse processo de produção de memória são
os fatos históricos com fatos religiosos ou fatos de devoção religiosa que se misturam e
convergem no que denominamos de história, e por este motivo uma questão a ser investigada,

383
Em 1886 praticamente às vésperas da abolição da escravidão, Espírito Santo do Pinhal tinha mais de 1000
escravos registrados chegou-se a informação desse número em função de um censo no município feito por um
dos cafeicultores abolicionista chamado João Elisário de Carvalho Montenegro.
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dessa forma a hipótese que defendemos neste artigo é existe nessa história a confluência de
uma série de recortes “interessados” que produziram e viabilizaram uma narrativa histórica
cuja consolidação se vincula aos interesses da elite luso-brasileira cafeicultura informada e
formada a partir da mentalidade católica que no século XIX esteve atada ao processo de
construção política do Império Brasileiro por meio do Padroado Régio, assim, consideramos
importante acompanhar, analisar e interpretar como as teias destes são fatos são entrelaçadas.

2 . A memória e mentalidade católica de Espírito Santo do Pinhal: o ethos religioso para


além das transformações da secularização.
O passado social formalizado é claramente mais rígido, uma vez que fixa um padrão
para o presente. Tende a ser o tribunal de apelação para disputas e incertezas do
presente: a lei é igual ao costume, sabedoria dos mais velhos, em sociedades
iletradas; os documentos que consagram esse passado e que com isso adquirem certa
autoridade espiritual fazem o mesmo em sociedades letradas ou semi-letradas.
(Hobsbawn, p.23)

Como bem observa o historiador Erick Hobsbawn o passado é sempre socialmente


formalizado, apesar de toda uma tradição positivista que influenciou profundamente a
produção da História como ciência ter consolidado a ideia de que como fatos sociais os fatos
históricos são dados empíricos prontos para ser coletados pelo historiador, é fundamental
termos fixamente presentes em nossas análises que o passado em nossa sociedade assume essa
autoridade espiritual e em muitas vezes torna-se um lugar incontestável. Desde o início do
século XX essa concepção de história é profundamente questionada e devemos a História
Social Inglesa a qual se filia o historiador Erick Hobsbawn, como também pela Escola dos
Annales, esses questionamentos provocaram a mudança de paradigma de compreensão da
história como uma produção social, cultura, econômica, política, permeada de interesses e
construída a partir destes interesses.
Sendo assim, é importante que qualquer cientista social e não somente os historiadores
tenham como perspectiva que uma boa parte produção do conhecimento da História se
conforma por meio de “testemunhos” que chegam até nós das mais variadas formas, como por
exemplo, por meio de relatos orais, documentos escritos, obras de arte, utensílios de múltiplas
naturezas, edifícios, templos etc. Porém, esses “testemunhos” não são isentos de compromisso
com seu próprio tempo e contexto, não são meras expressões materiais do passado que se
tornam matéria-prima do trabalho de historiadores.

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A partir dessa perspectiva analisamos uma série documental, esta se documental se


confunde com a oralidade384 e essa fusão contribuiu de maneira significativa para a produção
da memória católica do município de Espírito Santo do Pinhal e por meio destas conseguimos
vislumbrar alguns sentidos atribuídos a essa documentação, que começou a ser organizada no
final do século XIX no início do período republicano, constituída por documentos escritos,
artigos de jornais, almanaques da cidade, da Província de São Paulo e posteriormente do
Estado de São Paulo, documentos eclesiásticos, registros de terras, testamentos e muita
informação que se transmitiu por meio da oralidade.
A princípio o que impera e se perpetua no senso comum da comunidade é concepção
histórica construída por eventos e datas que desde o início do século XX se repetem como
referência histórica e se inserem na perspectiva da produção história estuda por Ana Paula
Barcelos Ribeiro da Silva (2009), uma lógica que se preocupa com a ordenação dos fatos
cronologicamente e esta cronologia é pautada e legitimá-los por meio de ações religiosas.
Assim, a cronologia histórica do município demonstra por si mesma as escolhas dos
fatos, mesmo tendo em vista que o processo de ocupação do território começou por volta de
1820 e que ocorreram conflitos entre os posseiros, o marco desta cronologia é a data da
doação de terras ao Patrimônio do Espírito Santo e a última data importante do século XIX
apresentada por ela não foi a abolição da escravidão, mas a benção no cemitério municipal.
27-12-1849 Romualdo de Souza Brito e sua esposa Maria Tereza de Jesus fazem doação de
40 alqueires de terras para constituir PATRIMÔNIO DO ESPÍRITO SANTO. Data que é
considerada a fundação de Espírito Santo do Pinhal.
13-02-1850 Provisão do Bispo de São Paulo dando licença para ereção da Capela do Divino
Espírito Santo do Pinhal e Nossa Senhora das Dores.
25-12-1851 No Natal é celebrada a primeira missa na Capela.
03-08-1853 Provisão de ereção e fundação do Cemitério da Capela do Espírito Santo e
Dores (Freguesia de Mogi Guassú) dada pelo Bispo de São Paulo.
10-11-1853 Escritura de Conciliação entre os condôminos da fazenda do Pinhal.
22-07-1855 Um abaixo assinado dos moradores da Capela do Pinhal solicitam ao Bispo de
São Paulo que a mesma seja curada.
22-09-1855 O vigário Joaquim Feliciano de Amorin Sigar de São João da Boa Vista, dá seu
parecer favorável às pretensão da população de Pinhal.
29-09-1855 O vigário da Vara de Mogi Mirm, José Cardoso de Vasconcelos atesta que a
Capela do Divino Espírito Santo de Nossa Senhora das Dores do Pinhal tem plenas
condições para celebração do Santo Sacrifício da Missa.
1856- No início desse ano o Vigário de Mogí-Guassú, José Mariano da Silva, José
Valeriano de Sousa, manifestaram forte oposição ao desejo da população de Pinhal terem a
Capela elevada ao Curato.

384
A oralidade não é privilégio de sociedades não letradas, em cidades pequenas ou de médio porte os vínculos
com a história local muitas vezes se dão por meio da oralidade, está por sua vez informa a produção documental
e vice-versa.
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12-02 – 1856 O vigário José Valeriano de Sousa, de São João da Boa Vista fornece
informações e as divisas entre São João e a Capela de Pinhal, mas consegue retirar de
Pinhal a região das Três Fazendas.
12-03-1856 Uma solicitação do procurador da Capela do Pinhal, José Carlos d’Alambary
Luz no sentido de apressar as providências para tornar a Capela Curada.
02-04-1856 Provisão do Bispo de São Paulo, declarando Curada a Capela do Divino
Espírito Santo do Pinhal, e fornecendo as suas divisas.
24-04-1860 A Capela foi elevada a Freguesia pela lei n° 3 do Governo Provincial.
04-08-1868 Provisão do Bispo de São Paulo para a benção do Cemitério de Espírito Santo
do Pinhal.
26-04-1869 Romualdo de Sousa Brito falece em Espírito Santo do Pinhal.
9-04-1877 A Freguesia foi elevada à categoria de Vila pela Lei n° 17.
10-03-1883 A Vila foi elevada à categoria de Cidade, pela Lei n° 14.
15-11-1887 Provisão do Bispo de São Paulo para Benção do Cemitério Municipal.
15-03-1888 – Benção do novo Cemitério Municipal. (Martins, 1986, 21, grifos).

Esta cronologia está presente no livro Espírito Santo do Pinhal e Nossa Senhora das
Dores, escrito por Roberto Vasconcelos Martins (1986), edição e publicação do autor, é
resultado de um longo trabalho de compilação de documentos acerca do município desde a
sua fundação. Roberto Vasconcelos Martins não é historiador, é uma pessoa interessada na
história da cidade que se dispôs a compilar documentos no Arquivo da Cúria Metropolitana
de São Paulo, no Arquivo do Estado de São Paulo, em cartórios tanto em Espírito Santo do
Pinhal quanto em cidades que de alguma forma tem relação com o local, como Ouro Fino
(MG), Mogi Mirim (SP), Mogi Guaçú (SP) e São João da Boa Vista (SP).
O autor também reúne em seu trabalho a compilação de textos de outros memorialistas
importantes como o seu trisavô, Thomaz Antonio Pacheco Lessa que foi o primeiro
intentende do município na Primeira República, e que em 1893 publicou um dos primeiros
Almanaques sobre a história do município onde também se ressalta essa memória católica.
Romualdo em tal situação – de ameaça – declarou que não faria a roça projetada,
mas doaria ao Divino Espírito Santo de 40 alqueires de terras, a que tinha direito na
mencionada Fazenda do Pinhal, que no mesmo lugar, onde se fazia tombar os
primeiros pinheiros, erigir-se uma Capela, como se vê da escritura de terras. “Fez-se
a doação, conforme reza do documento acima, porém, ainda assim os murmúrios, as
queixas, as demandas e as intrigas continuaram, até que um dia dois desastres
ocorridos ao mesmo tempo na Fazenda Sertãozinho, vieram advertir os ambiciosos e
rebeldes chicanistas de que há uma Justiça Divina que, assim, como premia os bons,
também castiga os maos, por esta ou por aquela forma, ferindo-os em suas próprias
pessoas ou nas de sua família. Foi assim, que meiga e descuidada menina, estando a
cantar singelas, mas doces e ternas cantigas sertanejas e a peneirar o milho que o
monjolo triturava cahio o espeque ou forquilha que o amparava e o pesado madeiro,
como si fora um raio, veio a esmagar aquela cabecinha loira no fundo do pilão.
(Martins, 1986, p.236)).

Dessa forma, os documentos (livros, relatos e outras publicações) escritos sobre a


memória-histórica do município assumem este duplo sentido o de ensinar e de papel
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justificado (Le Goff,1990) como prova, Roberto Vasconcelos Martins (1986) reproduz a
memória da origem católica do município a partir das narrativas produzidas por seu trisavô,
como papel justificado e o fato de ter se preocupado em compilar documentação não o eximiu
de apropriar-se de uma narrativa já consagrada e sacramentada a respeito da fundação da
cidade e de seus vínculos à devoção católica, outra grande fonte de informação que corrobora
com a produção dessa memória é o trabalho de Ernesto Rizzoni (1960), mais um memorialista
que na década de 1960 reuniu em um livro todas as notícias que apareceram sobre Espírito
Santo do Pinhal no “Diário de Campinas” entre 1886 a 1889, a citação em seguida é uma das
transcrições que abrem o seu livro “Nossa Terra Nossa Gente: Pinhal História e Notícia”, na
verdade pode ser considerada como a primeira reprodução da notícia em jornais sobre a
fundação de Espírito Santo do Pinhal, enviada ao jornal anonimamente, em 1886.
Estávamos no ano de 1849. Vários eram os possuidores do nosso território nesse ano e
poucas propriedades existentes. Sobressaiam, pela área, as fazendas Sertãozinho e do
Pinhal, esta coberta de densos pinheiros, que lhe emprestam o nome. Romualdo de Sousa
Brito, um dos donos da fazenda do Pinhal, propriedade que vinha sendo disputada por
diversos colonizadores da fazenda Sertãozinho, ignora-se a que título, iniciando certa vez
derrubada de pinheiros existentes no atual largo da Matriz para o plantio de milho, foi
obrigado a interromper o serviço em virtude dos gritos e dos tiros de espingarda e de
trabuco que lhe foram dirigidos.
Espírito profundamente religioso e equilibrado, Romualdo foi tomado de súbita
inspiração. Declarou que não mais faria a roça, mas doaria partes das terras uma área
de quarenta alqueires de terras ao Divino Espírito Santo, para patrimônio, e a fim de
que, o mesmo lugar onde ocorrera o incidente, fosse erigida uma capela.” (Rizzoni,
1964, pp. 80-82, grifos nossos)

Por este texto podemos inferir que em 1886 já circulava nas falas e no cotidiano da
cidade a imagem do ato benevolente do fazendeiro de café, doador das terras ao patrimônio
do Espírito Santo, que deram origem ao município, assim, começamos a observar o ato de
doação terras à Igreja que no século XIX era condição necessária à formação de povoados, se
transformar na imagem de benevolência e devoção. Vejamos, então, no final do século XIX
um individuo provavelmente religioso, publicou num jornal de grande circulação para época o
Diário de Campinas (lembramos que Campinas foi um marco na expansão cafeeira para o
Oeste Paulista) essa notícia se transformou em fonte de informação apreendida por Rizzoni
que a consagrou na abertura do seu livro, que por sua vez se tornou fonte de reprodução dessa
memória, com isso queremos demonstrar como uma linha de sentido histórico vai se
construindo tendo como matriz o recorte da doação terras ao Patrimônio do Espírito Santo.

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Também existe ainda em circulação uma importante publicação que reproduz esta
memória foi a Poliantéia Comemorativa do Centenário da cidade em 1949, elaborada por um
grupo de professores, artistas e intelectuais, essa publicação reuniu uma séria de artigos e
curiosidades culturais e históricas do município, não tem como os trabalhos de Martins e
Rizzoni a preocupação com a sistematização e compilação de documentos, mas trazemos a
Poliantéia pelo fato de que esta publicação sistematizou o que a oralidade sobre a esta
memória de fé e devoção do doador de terras.
Na abertura da Poliantéia a narrativa da cronologia descrita anteriormente e a história
do ato de fé apaziguador dos doadores das terras ao Patrimônio do Espírito Santo como o
início glorioso e religioso da cidade. A Poliantéia, por sua vez tornou-se, além de uma revista
de grande circulação, uma referência para trabalhos posteriores a respeito da história de
Espírito Santo do Pinhal. Reforçando o ato de devoção ao Espírito Santo de Romualdo de
Sousa Brito e de sua esposa Tereza Maria de Jesus, não há em nenhum compêndio,
almanaques, opúsculo, artigo de jornal, Poliantéia comemorativa e até mesmo em trabalhos
recentes sobre a história do município, em que esse ato de devoção, abnegação e apaziguador
não ressalte nos textos como ato religioso, assim a teia deste fato se consolida ao longo do
tempo.
Ernesto Rizzoni reproduz a narrativa do anônimo publicada no “Diário de Campinas”
e ambos, Rizzoni e Vasconcelos reproduzem a Poliantéia. Essas narrativas informam e
ensinam umas às outras e ao longo de mais de um século formam uma teia de memórias que
se justificam. Por reunir características enciclopédicas é necessário ressaltar que o trabalho de
Roberto Vasconcelos Martins é uma importante referência para a história do município, pois,
além de compilar vasta documentação, sistematiza outras tantas que ao longo de um século
dialogaram entre si na produção da memória da cidade.
Pouco ou quase nada se questionam em relação às implicações desta memória-
histórica católica que foi perpetuada por memorialistas locais, pela história oral, por
monumentos, praças, prédios públicos, datas comemorativas, personagens históricas que
acabam compondo o chamado patrimônio cultural da cidade construído num quadro
harmônico em que História da Igreja Católica permanece no centro por meio da doação das
terras ao Espírito Santo. Aqui não se trata de minimizar o papel que a Igreja Católica
desempenhou na História do Brasil, pois, acreditamos que estaríamos tratando a produção da

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memória de forma maniqueísta, mas cabe refletir quais as condições da mentalidade social
que viabilizam a sua consolidação e como por meio desta reflexão poderíamos contribuir com
estudos a respeito dos processos sociais da produção da memória histórica no Brasil e dentro
dessa produção de que maneira a formulação de determinadas narrativas estão vinculadas à
projetos mais amplos como é o que o caso da centralidade que a Igreja Católica possui no
cotidiano e na memória dos municípios brasileiros.
Dessa forma, não temos dúvidas que toda essa construção foi demarcada e estruturada
por referências interpretadas socialmente por meio do modelo de catolicismo que se constituiu
no Brasil durante o período colonial resultado de projetos formalizados, por meio de trocas de
estoques étnico culturais entre indígenas, africanos e portugueses que aqui elaboraram um
complexo sistema de crenças chamado de catolicismo barroco por vários historiadores e
pensadores como João José Reis (1994) e Maria Lúcia Montes (2012), termo cunhado pela
originalmente pelo historiador Michel Vovelle, o catolicismo barroco se caracteriza pela festa,
pela pompa e pela religiosidade expressa como espetáculo, de acordo com inúmeros
historiadores no século XIX esse modelo se esgotou e o processo de sucessivos
questionamentos à Instituição Igreja Católica e às suas práticas chamadas populares,
representadas fundamentalmente por uma religiosidade pública e festiva, começam a
acontecer a partir de meados do século XIX.
O transito desse catolicismo barroco para um catolicismo mais adaptado ao novo
modelo do Brasil laico, liberal e moderno foi necessário e esse processo se consolidou com a
proclamação da República com a Constituição de 1889 que legalizou a separação entre Igreja
e Estado no país, no entanto, afirmamos que essa separação pode ter sido de direito, mas não
de fato.
Dessa forma, da complexa separação entre Igreja e Estado no Brasil surgiu um modelo
de laicidade pragmática como sugeri Aquino (2012) uma laicidade que atende tanto aos
interesses da Igreja quanto do Estado, por isso, devemos considerar que a vida religiosa da
população brasileira pouco se altera nesse processo, a não ser quando questões políticas de
grandes proporções, como a mobilização popular, estão envolvidas, como foi o caso de
Canudos. Mas mesmo diante dessa laicidade pragmática a Igreja Católica reage ante a
separação institucional produzindo outras estratégias de preservar sua atuação no âmbito
espiritual e temporal.

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A diocesanização, como estratégia, foi, de fato, a solução encontrada pela ICAR da


Europa, na segunda metade do século XIX, para compensar a perda dos territórios
eclesiásticos na península itálica e em outros lugares. Efetivou-se uma
territorialidade religiosa que, em princípio, tornava todo o mundo passível de
intervenções jurisdicionais eclesiásticas. O mundo poderia ser recortado em
dioceses, prefeituras, prelaturas, paróquias etc. Desse modo, pode-se considerar que
tal estratégia preservou e ampliou, no âmbito espiritual e no plano de controle
religioso, os antigos domínios da Igreja, transpondo para essa nova territorialidade o
capital simbólico e o poderio institucional adquirido pelo catolicismo romano ao
longo de sua história milenar. (Aquino, 156)

Acreditamos que essa territorialidade religiosa promovida pela ampliação das


dioceses foi além de limites geográficos, pois, consideramos que podemos encontrar indícios
da construção de territórios da memória católica como um desdobramento dessa estratégia de
reorganização da Igreja pós-padroado no Brasil, a produção de lugares da memória cunhada
pelo o historiador Pierre Nora (1993) que expressa mudanças na relação que grupos ou
mesmo a sociedades estabelecem com o passado numa encruzilhada entre o respeito e o
sentimento de pertencimento, entre a consciência coletiva e a preocupação com a
individualidade.
Portanto, apesar do processo da chamada secularização da sociedade brasileira
acompanhada pela laicidade do Estado instituída pelo Regime Republicano, como abordamos
anteriormente o caso da produção de uma memória histórica católica de Espírito Santo do
Pinhal é um dado a ser considerado como uma experiência complexa e multifacetada em que
a memória como experiência social, revela o quanto o catolicismo no Brasil é o resultado de
múltiplos diálogos capazes de unir numa mesma totalidade o sentido de pertencimento e as
significações que esse sentido comporta, pois, o projeto de memória de um grupo se torna a
memória coletiva repetida através do tempo até tornar-se incontestavelmente de domínio
publico.
Por isso, cremos que a experiência narrada – mesmo que a partir de um recorte
específico que se dá pelo elenco dos textos escritos – de Espírito Santo do Pinhal seja
recorrente em boa parte dos municípios brasileiros seja o resultado da confluência de todos os
elementos que procurarmos elencar neste artigo: o jogo de poder, o esquecimento, a
representação de uma mentalidade e uma visão de história, mas ainda queremos acrescentar
ao pensamento de Maria Lúcia Montes (2012) quando indica que a festa desempenha o papel
central no forjar do ethos religiosos brasileiro, papel importante que, também, creditamos à
produção da memória.
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3 Mentalidades Católicas : ethos religioso brasileiro?


Sem dúvida, ‘ a pombinha sagrada’ sempre foi muito querida no mundo cristão,
graças aos símbolos litúrgicos que carrega. Terceira pessoa da Santíssima Trindade,
o Espírito Santo, que descia dos céus sob a forma de línguas de fogo, ‘ espíritos de
raios e luz de quentura’, sobre as cabeças dos apóstolos fiéis, estava ligado ao
renascimento espiritual através da distribuição de seus inúmeros dons e graças –
amor de Deus, sabedoria, paz, santificação,bondade, abundância, alegria, proteção
contra doenças e pragas – aos verdadeiros devotos.(Campos,1996, p.19)

O ponto de partida da produção da memória analisada neste artigo foi à doação de


terras ao Divino Espírito Santo, de acordo com Marta Abreu Campos (2000) em seu trabalho
O Império do Divino: Festas Religiosas e Cultura Popular no Rio de Janeiro 1830-1900 o
século XIX recebeu como herança a ‘religiosidade colonial’ ou ‘o catolicismo barroco’
citando o historiador João José Reis (1992) que por sua vez cunha o termo ‘catolicismo
barroco’ reproduzindo a expressão do historiador francês Michel Vovelle, como já foi
abordado anteriormente neste artigo, por catolicismo barroco se entende práticas religiosas
marcadas pela externalização da fé em forma de espetáculo, missas pomposas, procissões,
festas em honra a santos de devoção normalmente organizadas pelas irmandades leigas outra
grande característica da religiosidade popular brasileira.
Ao estudar a trajetória da festa de devoção do Divino Espírito Santo do período
colonial ao século XIX a mesma autora assinala que as práticas devocionais ao Divino
Espírito Santo na Europa são anteriores à Reforma Católica, sendo que países como França e
Alemanha foram os responsáveis pela difusão dessa devoção pela Europa. No Brasil a
devoção ao Divino Espírito Santo chegou juntamente com o processo de colonização e
sempre ocupou um espaço fundamental entre as festas religiosas populares, por isso
acreditamos que é preciso compreender a motivação (Geertz, 2015) que envolve a devoção ao
Divino Espírito Santo e a sua relação com a produção da memória histórica católica.
Tradicionalmente, destaca Le Roy Ladurie, baseado em dados que remontam o
século XIII, essas confrarias do Espírito Santo sempre estabeleceram importantes
vínculos com setores populares e com as comunidades como um todo, por não se
identificarem diretamente com algum grupo social ou profissional. Para o
historiador francês, a ‘ terceira pessoa ( da Trindade) é mais coletivista e futurista
dos três.
Jacques Heers, por sua vez, ainda acrescenta que no processo de apropriação das
festas pagãs, por parte da Igreja Católica, as festas de Pentecostes completavam o
ciclo do ano da Primavera europeia,quando eram bastantes naturais, desde os tempos
muito antigos, a alegria, os divertimentos e as ações de graça.Pentecostes era a festa
da abundância, e a própria Igreja para atrair devotos figurava inúmeros dons do
Espírito Santo, lançando chuvas de luzes e estrelas, além da distribuição de maçãs e
queijos. (Ibidem, pp.19-20)

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Ao longo da História do Brasil temos a formação da devoção ao Divino Espírito Santo


e essa devoção se expandiu no Brasil pelo fato da ‘ terceira pessoa da Trindade possuir um
caráter coletivista, além disso, durante todo o período colonial e também no século XIX as
festas religiosas populares assumiram parte significativa da vida social brasileira. Este
argumento só corrobora com a tese de Maria Lúcia Montes (2012) que se assenta na lógica da
festa a produção do ethos religioso brasileiro.
Ainda assim, é necessária muita reflexão acerca do estamos compreendendo por ethos
religioso brasileiro e mais que isso, o seu papel essencial dor forjar de nossas relações sociais
e neste sentido queremos fazer algumas considerações, o antropólogo americano Clifford
Geertz (2015) acredita que existe um paradigma a ser levado em conta quando abordamos o
ethos religioso de um povo: “os símbolos sagrados funcionam para sistematizar esse ethos – ‘
o tom, o caráter a qualidade da sua vida seu estilo de disposições morais e estéticos.”(Geertz,
p. 67).
As motivações sociais, “uma tendência persistente, uma inclinação crônica para
executar certos tipos de atos...” (Geertz, 2015,p.71) presentes na festa religiosa popular, em
especial a devoção ao Divino Espírito Santo, com certeza marcam o estilo de vida religioso
brasileiro desde o período da colonização, obviamente esse processo histórico não foi
uniforme e muito menos linear, sofrendo transformações ao longo do tempo, porém, como
afirma Geertz os símbolos religiosos formulam um estilo de vida e uma metafísica particular,
às vezes implícita e ambos sustentam a autoridade social do outro.
Assim, nas fronteiras do século XX, diante do processo de secularização da sociedade
(a secularização de acordo com o entendimento do projeto liberal brasileiro) ainda era
necessário uma congruência básica – aliar chamada modernidade e com as tradições
religiosas. Não temos dúvidas de que esse foi o grande desafio enfrentado pela sociedade
brasileira.
Por isso, abordar o contexto da produção desta memória católica em Espírito Santo do
Pinhal é uma operação complexa, que não se esgota num artigo, que é na verdade um
primeiro ensaio sobre essa questão, por isso, apresentamos apenas alguns indícios que nos
chamaram atenção e que julgamos terem sido engendrados pela singular mentalidade religiosa
brasileira representada de um lado pelo pensamento neotomista das elites e por outro pelo

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amalgama de estoques étnicos e culturais que se confrontam e aos poucos se fundiram num
Brasil em formação.
Mas estudar as memórias coletivas fortemente constituídas, como a memória nacional e
neste caso memória local implica preliminarmente a análise de sua função. A memória é uma
operação coletiva dos acontecimentos e também uma interpretação do passado que se quer
salvaguardar. Pode ser compreendida como uma tentativa mais ou menos consciente de
definir e de reforçar sentimentos de pertencimento e fronteiras sociais entre coletividades
como partidos, sindicatos, igrejas, aldeias, regiões, clãs, famílias, nações etc. “A referência ao
passado serve para manter a coesão dos grupos e das instituições que compõem uma
sociedade, para definir seu lugar respectivo, sua complementariedade, mas também as
oposições irredutíveis”. ( Pollak, 1989, p.7)
Assim, compreender a função da memória para nós é uma operação que abrange o diálogo
com Pollak, Nora e Le Goff, este último tem muito a contribuir com ao tratar o processo de
aprendizado social e coletivo produzido pela construção da memória e suas múltiplas
possibilidades.

Considerações Finais
A memória da origem católica do município de Espírito Santo do Pinhal ao mesmo
tempo em que está vinculada ao ideário da cidade produzido pela elite cafeicultora que
comandava o município durante o Império e continuou a comandá-la após a República, essa
memória denota provavelmente um aspecto da laicidade pragmática assumida pela sociedade
brasileira pós-padroado atendo aos anseios republicanos e aos interesses da Igreja. Pois,
alguns símbolos religiosos legitimam e são legitimados por essa memória como a devoção do
Divino Espírito Santo e a benevolência cristã do proprietário doador das terras, reforçando a
inspiração do Divino Espírito Santo que abençoa o ato do proprietário de terras e de escravos,
bem como poder apaziguador da Igreja.
Esse processo histórico de produção de memória histórica genealogicamente ligada ao
catolicismo é a identidade local, mas compreende-la empreende arrolar os elementos que a
produziram, fixamos nosso nos documentos que retomam ao longo do tempo a mesma
narrativa, porém documentos assentados em uma maneira de entendimento da própria
história, que revelam opções e escondem disputas.

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Assim, retomamos as lógicas que viabilizaram não somente a produção desta memória
coletiva como o seu perpetuar por décadas a fio a mentalidade neotomista incorporada pela
nascente historiografia brasileira entre 1870 e 1940, mas além dessa formação, o ideário
neotomista esteve presente na construção da lógica de poder no Império Brasileiro e mesmo
com a República Positivista este se reeditou como alternativa ao racionalismo cientificista e
procurou aliar razão e fé esta mentalidade produziu uma preocupação com a produção de um
determinado modelo de História do Brasil o que na verdade nos leva a considerar que a
memória-histórica católica é mais um dado constitutivo do etos religioso do Brasil.
Concordamos com Clifford Geertz (2015) quando diz que os aspectos morais e estéticos
de uma dada cultura, seus elementos valorativos, podem ser resumidos sob a denominação de
ethos, dessa forma acreditamos que a produção da memória histórica e todos os
empreendimentos que ela envolve é um dos fios condutores com os quais tecemos o ethos
religioso brasileiro.

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Práticas em louvor ao Divino na cidade de Ponta Grossa/PR


Vanderley de Paula Rocha385

Resumo: Este texto problematiza as práticas religiosas, realizadas em Ponta Grossa/PR, para
homenagear o Divino Espírito Santo. Focamos nas manifestações ocorridas na Casa do
Divino, local que ganhou esse título após Maria Julio Cesarino Xavier ter abrigado em seu
interior a imagem da representação do Divino Espírito Santo, uma pomba de asas abertas,
gravada em um pedaço de madeira que encontrara em um rio. Assim, essas manifestações
estão presentes nessa cidade desde 1882 prevalecendo até os dias de hoje. Objetivamos
discutir as relações que homens e mulheres estabeleceram com o sagrado por meio de
manifestações festivas em louvor ao Divino. Para tanto, utilizamos como fontes: periódicos
locais, programas dos festejos e o processo de tombamento do imóvel (Casa do Divino).
Palavras-chave: Divino, Devoção, Festejos, Ponta Grossa.

Practices in praise of the Divine in the city of Ponta Grossa/PR


Abstract: This text problematizes the religious practices, held in Ponta Grossa / PR, to honor
the Divine Holy Spirit. We focused on the manifestations that took place in Casa do Divine, a
place that won that title after Maria Julio Cesarino Xavier had sheltered in her interior the
image of the representation of the Divine Holy Spirit, a dove with open wings engraved on a
piece of wood found in a river . Thus, these manifestations have been present in this city since
1882 prevailing until the present day. We aim to discuss the relationships that men and
women have established with the sacred through festive manifestations in praise of the
Divine. For that, we used as sources: local periodicals, programs of the festivities, interviews
and the process of tipping the property (home Divine).
Key-words: Divine, Devotion, Festivities, Ponta Grossa.

As atividades religiosas em homenagem ao Divino Espírito Santo na cidade de Ponta


Grossa tiveram início em 1882. Foi quando, segundo a tradição, D. Maria Júlio Cesarino
Xavier encontrou, em um rio, uma imagem do Divino Espírito Santo (pomba de asas abertas)
gravada em pedaço de madeira.
De acordo com os registros, essa senhora possuía sessenta anos, sofria de problemas
mentais e falta de memória. Ao sair de sua casa em outubro de 1882 em direção à região da
cidade de Castro, a senhora se perdeu no caminho e não conseguiu chegar ao seu destino e
nem mesmo retornar à Ponta Grossa. Em um determinado dia, passando pela região que hoje

385
Bacharel e Licenciado em História (UEPG); Especialista em História, Arte e Cultura (UEPG); Mestre em
História (UEPG); Doutorando em História (UEM) sob a orientação da Professora Dra. Solange Ramos de
Andrade (UEM). vanderleypr05@yahoo.com.br
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se encontra a cidade de Carambeí, parou para beber água em um rio e, ao se aproximar, viu a
imagem da representação do Divino Espírito Santo imersa nas águas386.
Após ter encontrado a imagem do Divino, D. Maria Xavier tocou-a e rezou
fervorosamente de joelhos, fato que denota o seu conhecimento religioso ao reconhecer
naquela imagem uma figura de religiosidade. Em seguida, sentiu-se curada de suas
enfermidades, principalmente dos problemas mentais. Concomitante, essa senhora teria
recobrado a memória, conseguindo, portanto, lembrar o caminho que a traria de volta para a
cidade de Ponta Grossa e assim o fez.
Ela retornou à cidade e reencontrou seus familiares que não a viam há mais de quatro
meses. Juntamente com a notícia de seu retorno, espalhou-se pela região o “fato milagroso”
de sua cura. Nesse contexto, D. Maria Xavier começou a ser conhecida na cidade como “Nhá
Maria do Divino”, fazendo referência à imagem encontrada por ela.
A partir de então essa senhora começou a recolher quadros de santos das mais
variadas denominações e também passou a juntar dinheiro para construir uma capela para
saudar o Divino. No entanto, foi vítima de roubo e, por esse fato, decidiu construir um altar
em uma das salas de sua casa para que a imagem, em um ostensório que a mesma mandou
confeccionar, ficasse exposta para o grupo de amigos e familiares que passaram a frequentar o
local. Foi então que sua residência ganhou o título de a Casa do Divino. A partir desse
momento, passou-se a realizar diversas práticas religiosas em honra ao Divino Espírito Santo
como novenas, procissões, cavalhadas e festas.
Durante o tempo em que D. Maria conduziu essas práticas devocionais em honra ao
Divino, as mesmas se concretizavam em âmbito familiar e entre amigos. Eram realizadas
novenas, procissões com as bandeiras do Divino nas residências próximas da casa e a festa no
domingo. Para o historiador Euclides Marchi, “o início das devoções constituía-se numa
manifestação pessoal ou de âmbito familiar. Eram encontros para rezas, novenas em ação de
graças ou pedir bênçãos especificas” 387.
Podemos entender o fato ocorrido com Dona Maria a partir das discussões feitas por
Mircea Eliade em relação ao “mito de origem”, pois podemos encontrar, neste fato, alguns

386
Nota da Redação: Divino de Ponta Grossa vai completar 100 anos. Ponta Grossa: Jornal Diário dos Campos,
28 de janeiro de 1979, p. 06.
387
MARCHI. Euclides. O mito do Brasil católico: Dom Sebastião Leme e os contrapontos de um discurso.
História. Questões e Debates. Curitiba: UFPR, n. 28. p.p. 55-74, 1998.
470
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elementos de identificação de um mito apontados por esse autor, tais como: História
verdadeira, porque se refere à realidade – e sagrada, porque é obra dos “entes sobrenaturais”;
A Criação – como algo veio a existir, assim através do mito podemos conhecer a “origem”
das coisas; Vive-se o mito, pois é impregnado pelo poder sagrado388.
Eliade nos alerta que, no passado, o mito era associado à fábula, ficção, invenção,
denotando, portanto, o que podia não existir realmente. De acordo com o autor, fruto da
crença judaico-cristã que relegou ao caráter de falsidade tudo o que não fosse justificado por
um dos dois testamentos da Bíblia. Já na contemporaneidade, o mito deve ser entendido a
partir da perspectiva do “Mito Vivo”, ou seja, vivo no sentido que fornece modelos para a
conduta humana. Assim, o mito relata um acontecimento ocorrido no tempo primordial, o
tempo fabuloso do princípio. Trata-se de uma realidade cultural, evidenciando o que Mircea
Eliade afirmou: “[...] a narrativa de uma criação: ele [o mito] relata de que modo algo foi
produzido e começou a ser”389.
Cabe a nós entender o significado que lhe é atribuído, ou seja, o sentido que um
determinado mito possui na vida dos indivíduos. Assim, compreendemos que o fato ocorrido
com D. Maria pode ser dividido em dois momentos: o achado da imagem da representação do
Divino, que deu origem às práticas religiosas desenvolvidas na Casa do Divino, e a cura das
enfermidades de D. Maria que, por sua vez, passa a ser o modelo de fé a ser seguido pelos
outros devotos do Divino. Essa senhora teve fé e foi atendida, pois obteve a cura de seus
problemas mentais. O próprio fato de D. Maria, após a cura e o retorno à sua casa, ter
dedicado uma das salas de sua residência ao Divino pode ser entendido como a primeira
promessa paga ao Espírito Santo neste local.
Assim, o fato com ela ocorrido desencadeia toda uma trama posterior e anterior.
Antes do encontro, a personagem estava vivendo uma espécie de busca e depois do milagre
ou da hierofania ela encontra o que procura. Portanto, o acontecimento pode ser entendido
como uma manifestação do sagrado, através do qual ela começa uma tradição. A história
nesse sentido precisa ser lembrada, porque teve um início, um marco. Isso é evidente quando,
anualmente, há um “retorno à origem”. Em outubro, o mês do “achado” da imagem é
celebrado com diversas manifestações como missas e novenas solenes realizadas na Casa do

388
ELIADE, Mircea. Mito e Realidade. Tradução: Pola Civelli. São Paulo: Editora Perspectiva. 1972.
389
ELIADE, Mircea. Mito e Realidade... Op. cit.,08.
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Divino, evidenciando o que Eliade chamou de “o retorno in illo tempore”390 que, por ocasião
da reatualização do mito, a comunidade inteira é renovada, reencontra as suas fontes, revive
suas origens.
Essa comunidade de devotos do Divino projeta no milagre ocorrido com D. Maria os
anseios e desejos de que, assim como ocorreu com essa senhora, um milagre ocorra em suas
vidas também. É por isso que o mito é revisitado, uma vez que passa a dar sentido à devoção
ao Divino, podendo ser percebido como o contato entre o visível e o invisível. O milagre é
invisível, mas a cura foi perceptível ao ponto de D. Maria recobrar a memória e retornar à sua
casa e ao convívio de seus familiares. Essa rememoração do “mito de origem” estimula e
colabora com a manutenção da fé no Espírito Santo.
Desde o ano de 1882 até sua morte em 1917, com seus noventa e cinco anos, D.
Maria trabalhou recolhendo quadros de santos e objetos trazidos por devotos que, até hoje,
fazem parte do acervo religioso da casa. Com o seu falecimento, a casa passou a pertencer a
seu sobrinho, Luís Cesarino Ribeiro e à esposa Zepherina Ribeiro. Neste período, foi D.
Zepherina quem administrou as práticas de religiosidade em honra ao Divino no local, sendo
que foi nesse momento que se deu início a visitação pública ao espaço. Gradativamente, esse
lugar passou a receber inúmeras pessoas, vindas de cidades vizinhas e até mesmo de outros
estados. Essas pessoas frequentavam esse local e, juntas, participavam das práticas em honra
ao Divino, consubstanciando o momento que começou a se construir o corpo de fiéis-devotos
do Divino Espírito Santo em Ponta Grossa391.
O Senhor Luís Cesarino Ribeiro faleceu no ano de 1921, deixando a casa para sua
esposa, D. Zepherina e os três filhos. Juntamente com essa senhora morava sua mãe de
criação, Felícia de Oliveira, conhecida na cidade por ter sido escrava do Senhor Domingos
Ferreira (Barão de Guaraúna). Em entrevista ao periódico local Diário dos Campos, D. Felícia
disse “que tinha orgulho de ter trabalhado na mansão do Fidalgo”392.
O mesmo periódico afirmou que D. Felícia havia conhecido D. Pedro II e a
Imperatriz Tereza Cristina na vinda do casal imperial à Ponta Grossa. De acordo com os
registros, o Imperador e a Imperatriz haviam se hospedado na casa do Barão de Guaraúna
390
Ibid. p. 100.
391
Redação. Divino em Ponta Grossa vai completar 100 anos. Jornal: Diário dos Campos. Ponta Grossa. 28 de
janeiro de 1979.
392
Redação. Gente do tempo do Império: Morreu a velhinha do Divino. Jornal: Diário dos Campos. 20 de julho
de 1941.
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localizada próximo ao antigo Clube Pontagrossense, hoje Clube Ponta Lagoa, na Praça
Marechal Floriano Peixoto, marco inicial do processo de urbanização de Ponta Grossa. Felícia
Oliveira faleceu em 1941, com 112 anos e, neste dia, o Jornal Diário dos Campos, trouxe a
seguinte manchete “Morreu a velhinha do Divino”393.
Zepherina Ribeiro casou-se novamente com Roldão Rodrigues Chaves e veio a
falecer em 1957 com 63 anos. Deixou a responsabilidade da Casa do Divino com sua filha do
seu segundo casamento Edy Ribeiro Chaves que não tinha filhos e que, ao adoecer, contou
com o auxílio de seu sobrinho Antônio Edu Chaves Filho e a esposa Lídia Hoffmann Chaves.
Quando Antônio e Lídia vieram morar na casa, em 1994, a mesma estava fechada
devido aos problemas de saúde de Edy Ribeiro, pois esta não tinha mais condições de atender
os devotos. Somente no ano de 1996 a casa foi reaberta. Segundo Lídia Hoffmann, neste
mesmo ano, ela havia tido um sonho no qual surgia uma luz muito forte por detrás do altar
onde a imagem do Divino se encontra, fazendo com que os quadros desaparecessem. Nesse
mesmo momento, ela teria ouvido uma voz dizendo “Que aquele era um lugar sagrado, onde
muitas graças foram concedidas, portanto não poderia permanecer fechado”. No dia seguinte,
D. Lídia pediu ao Divino Espírito Santo a cura de seu filho que sofria de uma doença
degenerativa incurável nos ossos e caso fosse atendida reabriria a casa. A graça foi alcançada
e a doença nunca mais se pronunciou394. Pagando sua promessa, Lídia Hoffmann reabriu a
Casa do Divino em 1996 e o fato ocorrido com ela fez aumentar ainda mais o número de
devotos que homenageiam o Divino Espírito Santo na cidade.
Como foi possível perceber, a devoção ao Divino Espírito Santo continuou a ser
mantida pelos familiares, em especial pelas mulheres que se comprometeram a dar
continuidade a essa devoção que faz parte da religiosidade e do imaginário ponta-grossense.
A figura da mulher na Casa do Divino sempre foi muito importante, tanto pela
questão de que foram quatro mulheres que encamparam a bandeira do Divino quanto pela
quantidade expressiva de mulheres que participam das celebrações dedicadas ao Espírito
Santo na cidade395.

393
Redação. Gente do tempo do Império: Morreu a velhinha do Divino. Jornal: Diário dos Campos. 20 de julho
de 1941.
394
Caderno de campo: informações obtidas através de entrevistas com Lídia Hoffmann.
395
Informações obtidas por meio de entrevista com Lídia Hoffmann em 05/05/2014.
473
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Segundo Michele Perrot, há três campos onde as mulheres encontraram barreiras de


atuação: político, militar e religioso396. No campo religioso, elas utilizaram táticas para
desenvolver sua atuação, entre essas a presença massiva no campo da religiosidade popular.
As mulheres não estão presentes no quadro hierárquico eclesiástico, mas é possível encontrá-
las nas comunidades de base, trabalhando na organização cotidiana da instituição e elegendo
práticas onde podem exercer papel de liderança na esfera religiosa como é o caso de lugares
de religiosidade não oficial.
Estudando a atuação feminina no campo religioso colonial, Wilma Bueno, Vera
Jurkevics e Geraldo Pieroni buscaram compreender de que maneira as mulheres comuns
expressavam suas relações com o sagrado, ao mesmo tempo que investigaram as práticas
religiosas que foram criadas por essas para atender suas aspirações religiosas. Sobre esse
processo, os referidos autores assim se posicionaram:

No Brasil colonial, registrou-se que a população feminina, que desejava um lugar


para professar sua religiosidade, não encontrando tais condições legitimadas pela
Igreja, elegia um altar, um totem ou construía uma casa ao redor da qual
congregavam outras discípulas inventando formas ritualísticas simbólicas e
397
significantes para o viver cotidiano .

Essa tradição das mulheres coloniais permanece presente na sociedade


contemporânea, pois elas continuam conduzindo práticas religiosas e se fazendo presente,
principalmente nos espaços de religiosidade popular. Isso ocorre na Casa do Divino em Ponta
Grossa aonde quem conduz as celebrações é uma mulher e o corpo de fiéis chega a 70% do
sexo feminino. Assim, podemos afirmar que a postura da mulher em relação ao homem neste
lugar é “Mor”, pois todos os trabalhos são por elas desenvolvidos e tudo que está relacionado
a casa liga-se diretamente à elas.
Essa característica da Casa do Divino difere de outros lugares que desenvolvem essas
práticas em honra ao Divino onde a atuação masculina é mais expressiva. Em Pirenópolis,
Goiás, por exemplo, os homens é que são os festeiros, ou seja, os coordenadores das

396
PERROT, Michele. Minha história das mulheres. São Paulo: Contexto. 2007.
397
BUENO, Wilma de Lara; JURKEVICS, Vera Irene e PIERONI, Geraldo Magela. Gênero, religiosidade e
relações de poder: um estudo das práticas femininas no Brasil Colonial. Tuiti: Ciência e Cultura, n. 41, p.p. 61-
71. Curitiba: Janeiro/Junho de 2009, p. 66.
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celebrações398. Outro exemplo que podemos incluir nesta discussão é o dos responsáveis pela
festa de Sant’Ana em Ponta Grossa. Ao estudar os preparativos dessa celebração, Maura
Petruski constatou que os festeiros responsáveis pela festa da padroeira eram apenas homens.
A historiadora cita o exemplo de uma das festas realizada na década de 1930 e, segundo ela,
“Especificamente para a festa do ano de 1939, a comissão organizadora assim esteve
composta: ‘Vigário Sebastião Carlos, Conrado Pereira Ramos, Terézio de Paula Xavier,
Augusto Canto Junior, Nicolau Bach, Vicente Frare e André Mulaski’”399. Essa situação
mudou a partir de 1950, quando mulheres que integravam movimentos religiosos na cidade
passaram a integrar a lista de organizadores da festa.
Isso não quer dizer que não encontramos a presença masculina na Casa do Divino em
Ponta Grossa, mas são as mulheres quem se dedicam mais a esse espaço, as que se doam mais
em prol do sagrado, quem permitem que essas práticas aconteçam. A mulher se expõe mais ao
se expressar nas práticas religiosas. No entanto, isso não significa que elas têm mais fé que os
homens, apenas são mais expressivas e demonstram mais suas emoções.
Essa questão está relacionada à feminilidade, pois ao se expressar com emoção na
novena, na procissão ou na festa, as mulheres não vão ferir sua feminilidade. O homem é mais
comedido, reservado, discreto, porque, do contrário, ele estaria ferindo sua masculinidade.
Assim, o que podemos perceber é que existem papeis sociais e, neste caso, de gênero,
construídos cultural e historicamente e que acabam refletindo nesses espaços de religiosidade,
como é o caso da Casa do Divino.
Joan Scott afirmou que “gênero” significa mais do que a divisão entre mulheres e
homens, pois se refere à construção cultural do que é pensado como diferença sexual, ou seja,
as representações construídas em torno do que é “ser mulher” e “ser homem” e o que é
“feminino” e “masculino”. Ao mesmo tempo, Scott nos alerta que mesmo entre um público
distinto, neste caso, entre as mulheres, existe diferenças decorrentes de classe, religião, gênero
e outros400. Portanto, o que temos são conceitos construídos e reproduzidos ao longo do

398
GERALDES, Amanda Alexandre Ferreira. A memória dos objetos: verônicas, máscaras e flores da Festa do
Divino de Pirenópolis/Goiás. 2015. 215f. Dissertação (Mestrado) em História Social, Faculdade de Ciências
Sociais, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo: São Paulo, 2015.
399
PETRUSKI. Maura Regina. Julho chegou... E a festa também: Sant’Ana e suas comemorações na cidade de
Ponta Grossa (1930-1961). Curitiba: UTFPR. Tese de (Doutorado em História), 2008.
400
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e Realidade. Porto Alegre, 16 (2):5-
22, jul/dez. 1990.
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tempo, ou seja, discursos edificados que se refletem em diversos aspectos da vida social, tais
como na identidade, na sexualidade, nas relações profissionais e pessoais, entre outros.
No campo religioso, podemos entender que as mulheres se manifestam de diferentes
formas em relação ao sagrado e recorrem aos elementos diversos e distintos para estabelecer
comunicação com o divino. A história das mulheres, das religiões e da religiosidade constatou
que, neste universo de crenças, são os homens que controlam o reconhecimento. São eles
também que legitimam as práticas e os rituais femininos, relegando as mulheres a um papel
secundário401. Por isso as mulheres tendem a procurar outros espaços para que possam atuar
mais efetivamente, construindo e realizando manifestações heterodoxas, que muitas vezes
fogem do controle oficial.
Outro elemento que nos ajuda a entender o papel desempenhado pelas mulheres
nesses espaços está relacionado ao papel exercido por essas, durante muito tempo, no
ambiente privado. Nesse ambiente elas ocuparam papel de liderança das questões religiosas
da família, pois são elas as responsáveis por conduzir os familiares dentro do campo religioso
e por se dedicar a esses espaços, uma vez que esses estão localizados, na maioria das vezes,
em suas próprias residências.
Todos esses aspectos, a atuação feminina na Casa do Divino, o “achado” da imagem,
o “milagre” ocorrido com familiares de Lídia Hoffmann e a presença de uma figura conhecida
na cidade (a escrava do barão de Guaraúna) criaram a mística e fortaleceram o imaginário
social e religioso atribuído à Casa do Divino.
Não podemos deixar de constatar que todo esse imaginário foi construído com o
auxílio da imprensa local que sistematicamente noticiou esses fatos em seus veículos,
sobretudo nos jornais. Esses periódicos construíram uma representação dessa devoção,
principalmente em matérias especiais de aniversário da cidade. Evidenciamos assim que, ao
mesmo tempo em que o jornal colaborou na construção da representação em torno da devoção
ao Divino Espírito Santo, colaborou na representação da história da cidade uma vez que toda
cidade precisa ter uma história que passa a ser revivida em momentos especiais, tal como em
seu aniversário.

401
BUENO; Wilma de Lara JURKEVICS; Vera Irene; PIERONI, Geraldo Magela. Gênero e religiosidade... Op.
cit., p. 65.
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Assim sendo, o jornal fez com que os seus leitores encontrassem no mesmo os
elementos identitários, pois “é preciso ir buscar o sentido de uma sociedade em seu sistema de
representações e no lugar que esse sistema ocupa nas estruturas sociais e na ‘realidade’” 402. O
domínio do imaginário é constituído pelo conjunto das representações que exorbitam,
portanto cada cultura, cada sociedade ou até mesmo cada parcela desta tem seu imaginário.
Foi pela manutenção desse imaginário que esse espaço de religiosidade em Ponta Grossa se
tornou um “templo de peregrinação” considerado pelos devotos do Divino um “lugar
sagrado”.
Referências Bibliográficas

BUENO, Wilma de Lara; JURKEVICS, Vera Irene e PIERONI, Geraldo Magela. Gênero,
religiosidade e relações de poder: um estudo das práticas femininas no Brasil Colonial. Tuiti:
Ciência e Cultura, n. 41, p.p. 61-71. Curitiba: Janeiro/Junho de 2009.

ELIADE, Mircea. Mito e Realidade. Tradução: Pola Civelli. São Paulo: Editora Perspectiva.
1972.

GERALDES, Amanda Alexandre Ferreira. A memória dos objetos: verônicas, máscaras e


flores da Festa do Divino de Pirenópolis/Goiás. 2015. 215f. Dissertação (Mestrado) em
História Social, Faculdade de Ciências Sociais, Pontifícia Universidade Católica de São
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Evelyn. A História do imaginário. In: LE GOFF, Jacques. A História Nova. Tradução:
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MARCHI. Euclides. O mito do Brasil católico: Dom Sebastião Leme e os contrapontos de um


discurso. História. Questões e Debates. Curitiba: UFPR, n. 28. p.p. 55-74, 1998.

PERROT, Michele. Minha história das mulheres. São Paulo: Contexto. 2007.

PETRUSKI. Maura Regina. Julho chegou... E a festa também: Sant’Ana e suas


comemorações na cidade de Ponta Grossa (1930-1961). Curitiba: UTFPR. Tese de
(Doutorado em História), 2008.

SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e Realidade. Porto
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402
HUIZINGA, Johan. L’ automme du Moyen Âge. Paris: Payot, 1975. Apud. PATLAGEAN , Evelyn. A
História do imaginário. In: LE GOFF, Jacques. A História Nova. Tradução: Eduardo Brandão. São Paulo:
Martins Fontes, 2005, p. 405.
477

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