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A imaginação sociológica: Uma leitura de C.

Wright Mills

A consciência humana, latu sensu, está limitada à capacidade de visão do


homem comum, circunscrito ao seu derredor. Em função disto, o homem comum
não define seus interesses em termos de transformação históricas, pois não a
percebe, na maioria das vezes, das imbricações entre suas vidas e as estruturas
sociais devido à ausência de uma qualidade intelectual básica que lhe permita
identificar a teia de relações entre a biografia e a história. Tal dificuldade é
justificada pela rapidez com que ocorrem as transformações na sociedade,
transformações estas que atinge o homem numa escala global.

“A própria evolução da história ultrapassa, hoje, a capacidade que têm os


homens de se orientarem de acordo com os valores que amam” (p. 11)

Não é de estranhar que os homens comuns sintam dificuldade de enfrentar a


quebra de paradigmas proporcionada pela ampliação dos horizontes
decorrentes dessas mudanças. É um período no qual se tem informação sobre
tudo e discernimento sobre nada. Contudo, nesse processo, informação e
discernimento não são o suficiente para preparar os homens para lidar com o
sentimento de inadequação decorrente das transformações. O que se faz
necessário, segundo Mills é a imaginação sociológica:

“uma qualidade de espírito que lhes ajude a usar a informação e a desenvolver


a razão, a fim de perceber, com lucidez, o que está ocorrendo no mundo e o que
pode estar acontecendo dentro deles mesmos.” (idem)

A imaginação sociológica permite a identificação dos reflexos de questões


estruturais da sociedade sobre as perturbações na vida individual. Através da
imaginação sociológica pode-se entender com mais facilidade a interação do
indivíduo com o meio social, uma vez que torna-se passível de se ver, com maior
nitidez, as influências deste sobre a trajetória pessoal.

Três elementos fundamentais compõem a imaginação sociológica: a História, a


biografia e a estrutura social. Para compreender a experiência individual e avaliar
a si mesmo dentro de seu tempo, o indivíduo deve entender como a sociedade
veio a ser o que é, como se dá o seu processo de mudança e como sua história
está sendo feita.

Outrossim, cumpre também analisar a natureza da “natureza humana” em


sociedade, que tipos de povos a habitam em particular, bem como as várias
institucionais existentes se operam, quais são dominantes, o que mantém sua
coesão e o que as impulsionam a mudar. A partir desses questionamentos,
segundo Mills, é possível experimentar uma “transavaliação de valores”.

“Para compreender as modificações de muitos ambientes pessoais, temos


necessidade de olhar além deles. E o número e variedade dessas modificações
estruturais aumentam à medida que as instituições dentro das quais vivemos se
tornam mais gerais e mais complicadamente ligadas entre si. Ter consciência da
ideia da estrutura social e utilizá-la com sensibilidade é ser capaz de identificar
as ligações entre uma grande variedade de ambientes em pequena escala”
(p.17).

Na medida em que os valores coletivamente aceitos são ameaçados vê-se a


emergência das principais questões públicas de uma época. Considerando,
porém, as limitações no alcance sociológico, é possível que as pessoas não
possuam consciência dos valores aceitos, o que torna inócua a ameaça. Este
sentimento de indiferença, se generalizado, torna-se então apatia.

Este é um dos problemas fundamentais da sociedade de massa, pois tais povos


tornam-se apolíticos. Há ainda a possibilidade de não se ter nenhuma
consciência de valores ameaçados e ainda assim sentir a pressão da ameaça.
Esta inquietação, bem como a já citada indiferença, marcam, segundo Mills, a
época atual. E embora Mills tenha escrito este livro em 1959, suas observações
permanecem atuais.

O autor faz ainda um contraponto com a década de 30, considerada uma idade
política, na qual os valores ameaçados eram reconhecidos, bem como as
contradições estruturais que os punham em risco. Este contraponto torna ainda
mais evidentes os problemas de nossa época, definidos por uma preocupação,
sobretudo, com a qualidade da vida individual ou ainda com a possibilidade de
continuar existindo vida individual.

“Para os que aceitam valores herdados, como razão e liberdade, é a inquietação


em si que constitui o problema; é a indiferença em si que constitui a questão”.
(p.18)

Diante desse quadro a principal tarefa intelectual e política do cientista social é


revelar os componentes dessa inquietação e indiferença, as quais eram
manifestas principalmente pela literatura, base da cultura humanista. Todavia,
esta, de acordo com o autor, tornou-se uma “arte menor”, incapaz de concorrer
em comoção com os acontecimentos com a realidade muitas vezes trágica e
estarrecedora que a realidade histórica e os fatos políticos contemporâneos
apresentam.

Sobretudo, não compete à arte a formulação de questões capazes de auxiliar o


homem na superação desses sentimentos de inadequação. A abertura para
novos começos, segundo Mills, é a promessa da Ciência Social, a qual não pode
abdicar de uma análise cultural e política como parte de seu trabalho diário.

Diante da controvérsia sobre a natureza das Ciências Sociais, a proposta do


autor é analisar os diversos estilos de trabalho, a fim de ampliar os horizontes
sobre a concepção de procedimentos de cada um deles, identificando o que
melhor pode servir à imaginação sociológica. Três são as principais tendências:
O empirismo abstrato, a grande teoria e a análise social clássica. Todas elas
correm o risco de sofrer deformações, por isso a necessidade de esclarecer os
seus métodos.

“Dominar o método e a teoria é tornar-se um pensador consciente de si, um


homem que trabalha e tem consciência das suposições e implicações do que
pretende fazer. Ser dominado pelo método é simplesmente ser impedido de
trabalhar, de tentar, ou seja, de descobrir alguma coisa que esteja acontecendo
no mundo.” (p.133)
Segundo Mills, os riscos do empirismo repousam numa análise sub-histórica. O
dado empírico revela uma visão abstrata da vida cotidiana dos universos sociais,
alimentada por variáveis muitas vezes imprecisas, se analisadas fora do
fundamento das estruturas histórico-sociais.

Outro problema do empirismo abstrato é a dificuldade de eleger problemas


substanciais, devido à abundância de fatos. A única exigência é a verificação, a
qual se enquadra em processos correlatos e estatísticos.

Contudo, fatos acumulados não fazem uma ciência social. A grande teoria, por
sua vez, apresenta uma visão bastante estática e abstrata dos componentes
sociais, incorrendo ainda no risco de abandonar a História, elaborando conceitos
sobre outros conceitos igualmente abstratos. Em contrapartida, o cientista social
clássico evita esquemas rígidos de procedimentos, nem se inibe pelos métodos
e técnicas, adotando o modo do artesão intelectual.

Atenta para a aplicação de certos métodos a determinados problemas, bem


como de certas teorias a dados fenômenos. Representa uma medianiz entre o
empirismo abstrato e as grandes teorias, pois direciona sua abstração no sentido
das estruturas sociais e históricas.

Destarte, o cientista social clássico identifica os procedimentos mais adequados


para responder às indagações dos problemas eleitos, problemas esses
substantivos. O alinhamento dos problemas, por sua vez, depende dos métodos,
teorias e valores.

Quanto maior a consciência dos valores envolvidos e dos riscos a que estão
ameaçados, mais substantivado estará o problema. Seus escritos revelam uma
grande preocupação com dois valores considerados fundamentais, razão e
liberdade, por serem co-extensivos com a principal tendência da sociedade
contemporânea, a tendência à centralização, à ampliação de organizações
burocráticas vastas e do controle do poder nas mãos de uma elite muito
pequena.
Considerando que o progresso científico é cumulativo, Mills ainda ressalta a
importância de uma “objetividade” na ciência. Em seus escritos, ele interpreta o
mundo por uma perspectiva muito influenciada por Max Weber, defendendo uma
visão holística de sistemas socioculturais, interdependentes, os quais têm efeitos
profundos sobre os valores humanos.

Desta forma, Mills sugere que as questões e preocupações sociais sejam


formulados como problemáticas científicas, a fim de dar visibilidade à razão,
como um valor relevante para uma sociedade democrática livre.

MILLS, C. Wright. A Imaginação Sociológica, Rio de Janeiro. Zahar, 1982.

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