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O DESEJO DA REALIDADE* Maria Rita Kebl T Memo sabendo que a natureza tiltima do desejo ¢ da categoria do impos- sivel, do absoluto, do interdito — que sao trés maneiras de dizer a mesma coisa —, ndo € assim que se dé nossa experiéncia cotidiana como sujeitos desejantes. Do ponto de vista do modo corriqueiro como vivemos e expressamos nossa condic#o de desejantes, o lugar dos objetos do desejo é a realidade, ou melhor, o campo das representagbes da realidade e dos objetos ditos reais. E nesse campo, das Tepresentagdes da realidade, que podemos falar nao O desejo, mas do desejo, des- viado de seus fins primérios, obscuros para 0 sujeito, em diregdo a objetos secun- darios que aparecem para a consciéncia como objetos possiveis cujo alcance de- pende pelo menos em parte de nossa agdo voluntaria, consciente. Aqui sou obrigada, um pouco a contragosto, a fazer um paréntese a res- peito do que estou pretendendo chamar de realidade. A principio parece simples: real é tudo o que se diferencia da produgao alucinatoria. Porém, as coisas se com- plicam muito quando se constata que, por um lado, também aquilo que o psi- guismo alucina se baseia na meméria de alguma experiéncia com algum objeto da realidade. Por outro lado, nfo temos nenhuma garantia a respeito da nossa plena objetividade, ou seja: de que nossa percep¢do e representacdo nao so dos objetos da realidade, mas principalmente das leis que regem as milltiplas relagoes entre esses objetos, e entre nds e “‘eles’”, sejam percepcdes e representacdes reais. Sabemos que, quando'Freud fala em Principio de Realidade ou em exigén. Cias da realidade, esta colocando a prova dos noves no limite daquilo que importa 20 psiquismo, que € 0 proprio limite entre a vida e a morte: satisfacao real é (*) Este trabalho contou com a participacdo integral da psicanalista Maria Marta Assolini Desde as primeiras fases de estudo e reflexdo, até a elaboracao do texto definitivo, sua contribuicio foi decisiva, na forma de sugestdes, referencias tebricas, criticas, esclarecimentos e uma total disponibi- lidade para conversas amistosas ¢ exigentes, sem 0 que *‘O desejo da realidade”” nao teria passado de ‘uma vaga intuigdo para mim. A ela este texto ¢ dedicado. 363 aquela capaz de assegurar a sobrevivéncia do corpo — ultimo reduto que con- segue se opor 4 onipoténcia do pensamento — enquanto o engodo da satisfacao alucinatéria é logo denunciado pelo proprio corpo, que continua a enviar sinais de desconforto e/ou alarme até que algum outro objeto venha ocupar o lugar do objeto criado pelo psiquismo em sua tentativa de auto-suficiéncia. A este outro objeto capaz de aplacar 0 corpo chamamos objeto real, ainda que o psiquismo precise de muito tempo e repetidas provas da realidade até diferenciar um do outro. Aqui, temos uma nocio da realidade muito proxima da concretude: real € aquilo que fala a0 corpo, prazer capaz de aplacar a carne, ameaca capaz de des- truir a vida ou mutilar, danificar, modificar essa nossa ‘‘morada temporal” —, nica morada do psiquismo, freqiientemente subestimada por uma certa ‘‘onipo- téncia do pensamento psicanalitico”’ pos-freudiano. Mas a prova do corpo nfo pode ser a tinica prova dos noves da realidade, uma vez que para além da realidade imediata vivemos a realidade de uma deter- minada cultura, um campo de objetos e percepcdes que ultrapassa em muito aquilo que é do alcance da carne; um vasto campo simbélico no qual prazer e des- prazer vao depender de um codigo compartilhado. Inclusive os prazeres vividos, aparentemente, “‘no corpo". Codigo tao externo ao psiquismo — ainda que assu- mido e introjetado por ele — quanto os objetos concretos de que 0 corpo se apro- pria para sobreviver. Assim, a prova do corpo & preciso acrescentar a prova do Outro, humildemente aceitar que, como programa minimo de realidade — e sempre no limite —, real é tudo aquilo que o cédigo de uma determinada cul- tura aceita como tal; real é todo objeto e toda relaco que a cultura a que per- tengo reconhega como tal. Esse critério convencional, tao util as ciéncias exatas, serve mal e porca- mente a psicandlise, uma vez que o proprio Freud trabalhou para destituir boa parte de nossa confianca nos cédigos compartilhados ao encontrar outras causas, outras explicacdes e outras determinacOes para fendmenos que até entdo a cultura a qual pertencia pensava ja ter ‘‘enquadrado na realidade”’ 4 sua maneira. Além do mais, a psicandlise nos ajuda a desconfiar do campo do codigo como prova de realidade, ja que ¢ esse justamente 0 campo privilegiado da neurose, das racio- nalizacdes, das defesas que nos impedem, individualmente mas apoiados o melhor possivel no consenso, de ver 0 que nao é para ser visto. Ainda assim temos de nos conformar com o fato de que 0 cédigo tem 0 poder de criar um campo de realidade — social, ideoldgico ¢ inclusive neurético — e que é desse campo que nos chegam as representacdes, também externas ao psiquismo, que nos permitem uma certa confianca em que aquilo que estamos vivendo faz parte do que 0 Outro aceita como realidade, e, portanto, é como se assim fosse. E como se assim fosse. Uma vez que nos acostumamos a aceitar que a tealidade para a psicandlise tem um estatuto diferente do que tem para a filosofia; uma vez que aprendemos a desconfiar da relacdo necessdria entre realidade Satide, e encaramos a superadaptacao as | lidade como p da aco das defesas neuréticas que inibem a curiosidade, a capacidade de inves- 364 tigagao e de insubordinacio, — derivadas da curiosidade sexual infantil —, pode- mos admitir recuar até esse ponto como ‘‘ programa minimo"” para a definica0 do ‘campo social da realidade Desde que nao se petca de vista o limite da carne: pois alguém pode recusar 0 critério do Outro como exigéncia da realidade e se dispor a morter como sujeito social em nome de alguma outra experiencia de realidade — isolamento dos misticos, de alguns poetas, de alguns revoluciondrios —, nem por isso estaremos seguros de poder rejeitar essas experiéncias como menos reais em fungio de seu desvio quanto 20 codigo. Mas nao se pode desatender totalmente os critérios do corpo sob pena de morte — e a morte € o fim de qualquer possibilidade. Portanto, continuamos com Freud. O critério tltimo e irredutivel da reali- dade ainda é 0 que situa as possibilidades da vida diante das certezas da morte. Mesmo porque, embora sejamos obrigados a admitir que a realidade ¢ externa a0 psiquismo, ultrapassa seu alcance e sua capacidade de entendimento, precede nossa passagem por este mundo e certamente sobreviverd a ela, é impossivel nos referirmos 4 totalidade desse real. A realidade de que se trata aqui é a realidade humana, resultante da permanente negociagio entre as criagdes da realidade psi- quica e as imposigdes da realidade externa. Se no inicio da sua obra Freud ainda tinha a ingenuidade de supor que algumas categorias de seres humanos — os neurdticos e psicéticos — viviam em menor ou maior grau ‘‘mergulhados na realidade psiquica’’ enquanto outros — os sos — eram capazes de distinguir claramente a realidade sem deformé-la por aco do desejo inconsciente, logo foi obrigado a perceber que estava formulando uma psicologia cujas leis valiam para além dos limites do patologico. Assim, as deformacdes da realidade produzidas por a¢do do desejo, embora variem em qualidade e grau, no so proprias desta ou daquela patologia, mas proprias da existéncia do desejo e do recalque, 0 que significa proprias do humano, como 0 inconsciente também 6. As relagdes entre a realidade psiquica e a realidade externa ao psiquismo esto longe de ser de pura oposica0. Para entender um pouco do que as constitui, temos de admitir no minimo que: primeiro, toda fantasia toma como suporte algum acontecimento da experiéncia real; segundo, nem tudo o que é recalcado sto fantasias — percepgdes da realidade externa que podem ser sentidas como ameacadoras para o ego em funcio de sua associagdo com o desejo também s30 recalcadas e se incorporam ao conjunto de imagens que vao formar a tal realidade psiquica. A percepcdo ‘“‘minha mae me odeia’” pode ser, absolutamente realista em alguns casos e, recalcada por seu cardter doloroso e ameacador, ficar conde- nada a se manifestar na forma de fantasia ou percep¢ao deformada. Por ultimo, © desejo e suas manifestagdes ndo sdo menos reais do que as trovoadas ou as fases da Lua Por tudo isso, nenhuma humildade por parte do analista diante daquilo que é real para seu paciente ¢ demasiada. Como o criador da psicandlise, devernos saber negociar na moeda do pais que estamos visitando,! que no é especifica- mente o pais da neurose ou da psicose — ¢ 0 reino do inconsciente. Para além da onipoténcia do pensamento existe 0 pensamento ¢ sua poténcia, cujos limites 365

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