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Em certo sentido, o título deste texto pode levar um leitor desavisado a esperar algo
que apenas indiretamente faz parte de minhas preocupações principais. Pior ainda, minha
ideia de pensar a sociologia da música como posicionada entre uma perspectiva historicista e
a crítica de arte pode sugerir implicitamente que ambas são antagônicas, algo que arrisca a me
colocar em sérios apuros diante de muitos de meus colegas nas duas áreas. Afinal, muitos
poderão argumentar – e com razão – que a crítica de arte que praticam se nutre da pesquisa
histórica mais rigorosa, ou que, por outro lado, foi preciso consultar vasta bibliografia na área
da crítica literária, musical ou de artes visuais para se elaborar um dado trabalho cujas
aqui, alfinetar ou marcar diferença em relação a estes colegas, minha intenção é precisamente
a de me juntar a eles, refletindo sobre algumas dificuldades e possíveis soluções para certos
Mas, afinal, qual é, então, meu objetivo ao propor que pensemos a sociologia da
música nestes termos? Gostaria de falar aqui do lugar da análise musical no trabalho
historicismo – como não muito mais do que pontos de referência provisórios para que
possamos encontrar um “lugar de entrada” e uma abordagem para a disciplina. É claro que,
quando falo em “historicismo” simplesmente, torna-se difícil saber a que me refiro, o mesmo
valendo para a noção vaga de “crítica de arte”. No entanto, aqui me interessam muito mais
algo como posturas gerais nas respectivas empreitadas do que abordagens específicas, cada
uma com suas idiossincrasias teóricas, dentro do que cada um desses “guarda-chuvas” poderia
abrigar.
1 O presente trabalho é um desdobramento direto de pesquisa de doutorado desenvolvida com bolsas Fapesp e
Capes.
2
histórico e interpretação no trabalho com arte dentro das Ciências Sociais – estão intimamente
ligados, se é que não são um só. Não sou o primeiro e certamente não serei o último a
observar que, por um período considerável de sua história, a sociologia tendeu a fugir dos
Bourdieu (1981, p. 207), segundo o qual a sociologia e a arte não davam um bom casamento.
desenvolveu, principalmente desde a segunda metade do século XX, uma série de teorias e
insights propriamente sociológicos que ajudaram a lançar luz sobre algumas dimensões
importantes do fenômeno artístico, abrindo searas das mais fecundas. Assim, fora algumas
exceções notáveis, os sociólogos parecem em geral ter preferido concentrar seus esforços no
que viram como a dimensão “social” do trabalho artístico, deixando problemas relacionados
mais diretamente às obras para o campo da estética, algo de que temos exemplo dos mais bem
Como o próprio autor explica, sua intenção era a de lançar luz sobre a arte como
trabalho socialmente compartilhado, algo que ele demonstra com o exemplo eloquente dos
créditos de um filme (BECKER, 2008, p. 7). Para Becker, a lista de nomes que passa diante
de nós ao fim de uma sessão de cinema seria quase que uma forma de encarnação do trabalho
coletivo necessário para que qualquer obra de arte venha ao mundo. Como se pode concluir
daí, a noção de autor individual perde importância, quando não se esfacela de fato. Portinari
criador de dois paineis, Guerra e Paz, para a sede da ONU em Nova York; Maiakóvski
ensaiando até cerca de cinquenta variações de um único verso; ou Pierre Boulez montando o
intrincado mecanismo serial que rege suas Structures para piano... Mesmo onde o artista
parece inteiramente no controle do que será sua obra, experimentando segundo sua própria
com o concurso de uma série de outras mãos, outros atores que produzem o papel e a tinta
onde se anotam os primeiros esboços e onde se imprime o resultado final; que divulgam e
legitimam as obras; que organizam concertos, saraus e exposições; que negociam obras; que
interpretam obras e muitos outros. Os mundos da arte são pequenos universos cujas
extremidades não são possíveis de delimitar, ou seja, que não são fechados, mas que possuem
Voltando ao problema central que nos anima aqui, como dizia, parte do campo que
chamamos de Ciências Sociais parece ter desenvolvido formas de abordar “o social na arte”
sensação de que resta sempre algo por ser explicado. E provavelmente restará mesmo, não
importando nossa forma de trabalhar. Não pretendo aqui, portanto, criticar aqueles que não
fazem análise de obras, mas apresento uma defesa dos que fazem. Se estamos interessados na
música, não há porque abrir mão do seu estudo no máximo de dimensões possível, o que
Entretanto, uma análise puramente musical, mais próxima do polo que caracterizei
como “crítica de arte”, deixa-nos frequentemente sem saber o porquê de certas escolhas
composicionais, revelando em muitos casos não muito mais do que relações entre partes numa
obra, ainda que sem dúvida sejam relações ricas e instigantes. Podemos chegar a entender
porque certas decisões composicionais “vão bem” com outras numa peça, mas continuamos
sem saber de onde vieram, de que pressupostos partem, por que o artista considerou uma e
não outra etc. Além disso, esse tipo de análise tende a incomodar especialmente aos
pesquisadores das Ciências Sociais, pois em alguns casos fazem parecer que as obras
“flutuam” fora do mundo, quando muito incluindo a vida dos “grandes artistas” em suas
Balizado nesses dois polos para pensar o trabalho com arte, pode-se então tentar
sugerir algo como um “caminho do meio”. Se pudéssemos nos equilibrar entre essas duas
posições, trazendo um pouco de cada uma e dosando-as cuidadosamente segundo o que nos
parece mais razoável em cada caso, teríamos aí uma maneira de pesquisar arte em que essas
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duas formas de conhecimento teriam algo a dizer sobre um único fato. Porém, esta tampouco
me parece a melhor solução, pois haverá uma “justa medida” diferente para cada pesquisador
que tentar a empreitada.2 Assim, arrisca-se até a incorrer numa espécie de “concorrência”
entre as explicações, restando ao pesquisador arbitrar a cada momento a quem ele dará ganho
de causa.
Para tomar um exemplo de minha própria pesquisa, seria possível entender a virada do
Guerra-Peixe e Eunice Katunda no fim dos anos 1940 como uma mudança de posição
motivada por uma espécie de “virada da maré”, com a perda progressiva de força que as
ideias de uma arte de vanguarda vinham sofrendo desde o fim dos anos 1920 em detrimento
da noção de arte nacional. Afinal, não poderia ser coincidência que, justo no momento em que
claro que temos aí uma motivação sociológica clássica, uma busca por oportunidades.
E não é o caso de negar isso. A questão é que, por exemplo, o próprio Guerra-Peixe
escreveu com todas as letras ao musicólogo Francisco Curt Lange que vinha pensando em
“experimentar o nacionalismo franco [...], pois mesmo no Rio encontrarei muito mais apoio
que não há nenhum grande achado aí; não há nenhum grande desmascaramento nessa
explicação que nos ofereça insight sobre sua música para além do que já se sabe de sua
trajetória em termos mais gerais: um compositor dodecafonista que passou a fazer música
nacionalista na virada dos anos 1940 para 50, quando ideias de uma música nacional
prestígio.6
abandonou o dodecafonismo e, por fim, começou a articular sua música nacionalista. Entre
e de outros países; músicas “populares urbanas” brasileira, dos Estados Unidos e, em graus
variados, de países como Argentina, França, Itália e Cuba; o “folclore” brasileiro tonal e
modal etc. Além disso, cada uma dessas músicas tinha seus locais privilegiados de produção e
circulação, como rádios, orquestras, instituições de ensino, bares, cassinos, gafieiras e salas de
concerto, trazendo já dentro de si uma série de “marcas”, códigos e modos de fazer próprios a
elas e aos espaços onde eram produzidas e veiculadas. Tudo isso persiste em sua própria
constituição e, na medida em que constitui as obras de Guerra-Peixe, leva para dentro dessas
Como sabemos, a música que Guerra-Peixe vinha criando desde o fim dos anos 1940,
à sala de concertos e escrita para instrumentos dessa tradição. 7 Porém, era música realizada
6 Aliás, é de se perguntar se não se trataria do inverso; se as ideias de uma música nacional não ganharam nova
força principalmente por causa das novas adesões. Afinal, se o Realismo Socialista propunha algo como uma
“religação ao solo cultural das nações” articulada a uma simplificação da forma, a resposta do Ocidente
capitalista – articulada, por exemplo, nos Congressos pela Paz – não necessariamente precisava excluir as ideias
de vanguarda artística, tão fortes em sua história intelectual. Sobre os Congressos pela Paz e o Realismo
Socialista, ver Arbex (2012); sobre vanguardas, ver Dahlhaus (1997).
7 Talvez não fosse a principal música em termos numéricos, dada a produtividade que sabemos ser exigida dos
músicos que atuavam como “maestros” nas rádios da época (ver BARBOSA; DEVOS, 1984, 31 passim).
6
que, mais importante ainda, se sentia como tal.8 Para os artistas da época isso significava que
no Brasil não havia propriamente uma tradição de música de concerto, uma escola nacional ou
qualquer coisa do tipo, e que, por consequência, os compositores brasileiros que precederam
os modernistas eram vistos como praticantes de uma música “europeizada” – mesmo aqueles
que já nutriam algum tipo de nacionalismo. Desse modo, boa parte dos esforços dos primeiros
modernistas se voltou para a criação dessa “música brasileira”, o que poderia ser feito,
uma música que continuaria a ser feita nos moldes da música de concerto europeia (ver
TRAVASSOS, 1997, principalmente cap. 4 e 5). O curioso é perceber que em grande parte
eles talvez não divergissem quanto a onde traçar a linha que divide os “elementos próprios da
cultura do país” daqueles que lhes são exteriores. A maior discordância entre eles parecia ser o
significado concreto da ideia de “incorporar elementos brasileiros”, e foi este o principal alvo
entendia como “nacionais” de uma maneira que julgava ser mais consequente e rigorosa do
tratamento que ele recebia. Diante disso, determinava ele, quem quisesse realmente produzir
uma música nacionalista que tivesse sentido social deveria conhecer a fundo as manifestações
culturais brasileiras sobre as quais pretendia trabalhar, conjugando esse conhecimento com
uma técnica composicional sólida para que lhe fosse possível criar uma música nacionalista
que “fotografasse artisticamente o folclore”, em vez de copiá-lo (EGG, 2004; FARIA Jr.,
8 É recorrente entre os modernistas brasileiros a preocupação com o ingresso do país no “Concerto Universal
das Nações”, quando então o Brasil seria visto em pé de igualdade com os países europeus. O Movimento
Modernista Brasileiro foi impulsionado principalmente por esse sentimento ao buscar a renovação dos meios de
expressão para nossas artes, tanto, de início, a partir das pesquisas das vanguardas europeias quanto, depois, a
partir do “folclore” e demais ideias relacionadas ao nacionalismo, quando se passou a considerar que o país só
teria seu lugar entre as grandes nações do mundo se fosse capaz de dar uma contribuição própria,
especificamente sua, nesse concerto das nações (ver TRAVASSOS, 1997; MORAES, 1978).
7
como um encontro entre a música “folclórica” e a música de concerto, mas também trazem
de que em suas peças tentou evitar a criação de um efeito de “colcha de retalhos”, mesmo ao
torno das críticas à falta de organicidade nas obras dos nacionalistas da primeira geração (ver
Como se pode ver, o desafio é conseguir mapear como Guerra-Peixe fazia para todos
resolve pela investigação puramente sociológica, mas que tampouco é de natureza unicamente
musicológica, visto que é preciso dar conta, por exemplo, do universo de debates e disputas
em que Guerra-Peixe estava enredado para que possamos entender que opções musicais eram
consideradas válidas e por quê. Assim, conforme nos aproximamos de suas obras, a maneira
contornos mais nítidos, tornando-se perceptível que em cada peça os elementos que a formam,
ainda que díspares, tendem a assumir uma feição própria que em certa medida responde às
localizada, é evidente – do que são “necessidades da obra” também precisa ser reconstruída.
origem dos elementos presentes numa peça. Ao mesmo tempo, discutir a técnica de um
compositor como se esta fosse um dado absoluto ou, em estreita relação com isso, pensá-la
simplesmente nos termos da música de concerto europeia, dificulta a percepção de que não há
como reduzir os tais “elementos brasileiros” presentes ali ao papel que desempenham em
termos formais.
Voltando à análise
Voltando ao assunto que nos ocupa aqui, como se vê, dosar a explicação classicamente
sociológica com a explicação “interna” coloca o problema de decidir quando recorrer a cada
8
uma delas. Há que se reconhecer que todo trabalho intelectual depende do arbítrio do
possível, é difícil escapar à sensação de que, num caso como o do exemplo acima, não há o
que tomar como guia para elegermos as causas explicativas. Ou melhor, aquilo que nos guia
fica na penumbra, deixando passar uma série de pressupostos não declarados travestidos de
onde se recorre a cada uma e a todas as dimensões indistintamente, onde se passa de uma
dimensão à outra sem solução de continuidade? 9 Neste caso talvez fosse possível depender
concretamente a cada passo da investigação, e dois dos principais riscos que se corre nesse
são: (1) relegar a análise musical a uma posição de mera confirmação do que já se sabe,
Em relação ao primeiro ponto, vale observar que poucas são as obras de um artista que
estruturação, de referenciais estéticos e de gosto que entram em jogo na construção das obras
sem que o artista tenha total controle ou consciência deles. Além disso, há a dificuldade de se
considerar que determinada obra ou fase da carreira de um artista seria a mais característica de
sua produção, sendo ali que poderíamos encontrar suas “obras-manifesto”. Parece-me mais
seguro, então, evitar considerar que as obras “revelam concretamente”, ou “na prática”, o que
o compositor estava querendo dizer ao fazer suas afirmações de caráter mais normativo ou
programático. Em vez disso, talvez seja mais interessante observá-las como aquilo que o
artista produziu movido por certas ideias; colocando para si próprio um conjunto específico de
9 Ver Hennion (2007, p. 64). Não é difícil farejar a relação entre o que será desenvolvido a partir dessa ideia e
alguns pressupostos sobre a relação entre natureza e cultura nos trabalhos de Antoine Hennion (2007, 1995),
Bruno Latour e Madeleine Akrich (2006), entre outros.
9
problemas com o qual teve que lidar; trabalhando dentro de determinadas tradições com
certos meios a sua disposição e tendo em torno de si tais e tais obras que o influenciaram
produzidos pelo próprio compositor sobre sua arte talvez esteja mais em perceber as
descontinuidades entre o que o artista enuncia e o que ele realiza, abrindo até, a partir daí,
possibilidades de compreender o social na arte mais na medida em que ele se torna visível
como aquilo que, de tão naturalizado ou presente, não consegue ser contornado no momento
criador.
desenvolvido mais detidamente ao longo do texto, mas guarda uma relação importante com o
problema apontado acima. Paradoxalmente, a dificuldade que acabei de apontar – “ler” uma
obra tirando dela conclusões do tipo “o autor disse que se devia fazer X; em sua prática ele
juntou Y com Z; então isso significa que, de seu ponto de vista, para fazer X deve-se juntar Y e
Z” –, embora crie os problemas já discutidos, acaba minimizando o que precisa ser apontado
agora, visto que, de certo modo, usa-se o próprio autor da obra como referencial e critério
para a análise. Entretanto, ainda assim persiste uma dimensão intrinsecamente difícil de
interpretativo, mas que é exacerbada se cedermos à tentação de tratar as obras como algo que
a análise nos habilitaria a “ler” diretamente, quase como se fossem “textos” escritos em nossa
própria época.
Pode-se argumentar que toda análise é parcial e que o que estou apontando aqui é um
problema intrínseco ao próprio trabalho analítico, logo, estamos diante de algo que
precisamos simplesmente aceitar, um barulho com o qual se tem que aprender a dormir, por
assim dizer. Isto é verdade até certo ponto, mas a questão é que talvez seja possível tentar ser
mais rigoroso do ponto de vista histórico, partindo daquilo que sabemos que importava na
percepção de uma obra musical em seu contexto de origem para poder analisá-la.
10
Mas como proceder, então, diante do paradoxo de que, ao mesmo tempo em que
aponto os problemas de se tomar o discurso do próprio compositor como guia para a análise
de suas obras, afirmo que seria desejável obter algum conhecimento, mesmo que precário,
daquilo que pode ter guiado o compositor no momento em que produzia sua música?
criação daquilo que esse mesmo compositor diz sobre seu trabalho, especialmente quando o
faz em retrospecto. A questão aqui não é a história posterior da obra – que está fora do
controle de quem a produziu –, mas sim o fato de que, como já adiantei, seria no mínimo uma
ingenuidade racionalista acreditar que o compositor cria plenamente consciente dos elementos
que está mobilizando. Terei ocasião de voltar a isso com mais vagar e armado de melhores
instrumentos para discutir o ponto, mas é importante observar que uma análise
composicionais, entre outras coisas, que se faziam presentes no contexto de criação de uma
obra que estejamos analisando, evitando assim despender energias tratando de relações
internas que, embora possam estar presentes, têm pouco interesse de um ponto de vista
sociológico por não terem importância no pensamento musical do contexto que temos sob
investigação. Em resumo, é preciso evitar fazer análise musical como alguém que se propõe a
ler hoje um texto do século XVI confiante de que, pelo simples fato de conhecer a língua em
que o texto foi escrito, será possível compreender tudo que seu autor estava dizendo.
historiadores como Quentin Skinner e John Pocock, que, em linhas muito gerais, trabalham
de um texto à luz do conhecimento, por exemplo, das questões a que seu autor poderia estar
11
Não será possível resenhar neste espaço a complexidade dos argumentos que embasam
o método de trabalho destes pesquisadores, mas ainda assim podemos nos apoiar em algumas
das proposições de Skinner, que, baseado na teoria dos atos de fala de Austin, trabalha a
relação complexa entre intenções e convenções que tomam parte na produção de qualquer ato
Criticism, com sua ideia da “falácia intencional”; com a chamada Estética da Recepção, mais
preocupada com a “realização do texto levada a cabo pelo leitor”; e com algo que pode ser
enquadrado, num sentido amplo, como crítica pós-moderna, indo da ideia da “morte do
Skinner observa que parte dos argumentos contra a preocupação com motivos e
intenções autorais se baseia no pressuposto de que informações dessa natureza não devem
“contaminar” nossa resposta a uma obra e que, portanto, dever-se-ia lidar com os próprios
textos e só com eles (SKINNER, 2002, p. 94-95). Segundo os advogados dessa posição, em se
tratando de fatores “externos”, eles não formariam parte da estrutura da obra, pois, primeiro:
não é possível recuperar as intenções de determinado autor; segundo: ainda que seja possível
recuperar informações dessa ordem, preocupações com as intenções por trás de um texto
podem afetar a resposta a ele de maneira indesejada, talvez até mesmo estabelecendo um
padrão de julgamento das obras com base nisso, o que seria inadequado; por fim, em terceiro
significados “públicos” que um texto vai adquirindo ao longo do tempo (SKINNER, 2002, p.
95-96). Além disso, se um artista realmente foi bem sucedido na realização de uma obra, seus
A réplica aos argumentos resenhados acima serve para Skinner avançar sua proposta
10 Para mais detalhes, ver SKINNER (2002, p. 91-3). Sobre a noção de convenção, ver também McCLARY
(2000) e BECKER (2008, p. 28 passim e cap. 2, principalmente).
12
que não se pode ter acesso é ignorar em que medida as intenções presentes em qualquer ato
discernir em uma situação específica qual o significado que um determinado gesto possui não
é adivinhar o que se passa na cabeça daquele que realiza esse gesto, é apenas compreender, de
acordo com uma série de outros elementos presentes naquela situação, qual é a convenção que
está sendo explorada, pois se os significados podem ser entendidos intersubjetivamente, “as
Diante disso, pode-se replicar que essa compreensão intersubjetiva não seria possível
no caso da música por esta não possuir aquele nível fundamental de significado a que
música e, portanto, tudo que pudéssemos teorizar sobre sua interpretação a partir daí não teria
musical que me ocupa aqui – pode realmente ser considerada um ato de comunicação.
A discussão sobre o tema é extensa e infelizmente não poderá ser resenhada aqui. Vale
assinalar, no entanto, que a ideia de que a música seria incapaz de qualquer referencialidade
começa em sua forma moderna no século XIX europeu, com Eduard Hanslick, chegando até
nossos dias alternando momentos de maior ou menor prestígio ao longo da história. 13 Como se
verá adiante, a forma de análise ensaiada aqui nos permite simplesmente “pularmos” essa
questão, indo diretamente às construções simultâneas de som e sentido, visto que existe não
só comunicação – embora não da mesma maneira que na literatura –, como também existem,
11 Para evitar perder o foco de minha argumentação, terei de me contentar em apenas assinalar de passagem que
neste ponto Skinner empreende uma interessante discussão a partir da diferenciação entre motivos, isto é,
condições antecedentes e conectadas apenas contingentemente ao surgimento de uma obra, e intenções, que são
ou uma espécie de plano para a criação de uma obra de certo tipo, ou um “ato”, cuja concretização é a realização
dele próprio, ou seja, aquilo que se tinha a intenção de fazer, que consiste na própria intenção de fazer algo –
caso em que se está, então, aludindo a uma característica da própria obra.
12 É possível estabelecer uma relação aqui com a discussão que Lévi-Strauss (2011) realiza sobre a música
serial na célebre abertura de O Cru e o Cozido.
13 Para uma discussão muito próxima desta em diversos sentidos, ver McCLARY, 2002, p. x e seguintes.
13
forçasse os limites dessas convenções ao ponto de não esperar nem que seus pares diretos
compreendessem o que ele faz, pode-se supor que ele próprio – que é mais um dos atores
A própria possibilidade de entender uma obra musical até certo ponto como um ato
comunicativo depende justamente da relação entre convenções e intenções e o papel que elas
deliberadamente de acordo com convenções – o que pode acontecer também, é claro – e mais
de que seu “ouvido” seria o último critério a partir do qual ele julga o que produz. Cada vez
que o compositor avalia como soa um trecho que acabou de escrever, decidindo se vai apagá-
lo ou deixá-lo no papel; sempre que precisa trabalhar uma ideia já iniciada e então procura a
momentos e em diversos outros, o compositor parte dos referenciais que possui, ou seja, parte
composição.
tempo todo a outras obras e, por consequência, associam-na também àquilo a que associam
estas outras obras, temos que concordar que o próprio compositor também faz o mesmo,
fechando-se um círculo em que fica claro como ele, que também é um agente inserido num
determinado contexto, intermedeia – com base em seu ouvido – a relação entre essas
dimensões que tradicionalmente se poderiam chamar “externa” e “interna”, fazendo com que
elas de fato se encontrem. Um compositor pode julgar que está criando algo que soa familiar e
que, por isso, terá boa aceitação de um público que ele considere conservador, por exemplo.
Esse julgamento é feito com base nos referenciais que o compositor possui e que foram se
firmando aos poucos, entre outras coisas, pelo processo de educação musical que ele recebeu;
pelos gêneros de música com os quais travou contato; pelo valor relativo e o “lugar” que por
diversas vias aprendeu a atribuir a cada um desses gêneros; pelo que ele sente que é o valor
que sua época e, mais especificamente, certos grupos em seu meio social atribuem a
14
intrínseca ao ato da criação artística vem daí, e nos força a reconhecer que as clássicas leituras
externa e interna não passam de uma separação arbitrária ou, quando muito, “didática”.
Afirmar que a música é inevitavelmente parte da esfera social no sentido em que vem
sendo discutido aqui não significa, entretanto, dizer que as associações que cada ator faz da
música com o social sejam necessariamente claras, diretas, simples, conscientes ou unívocas
para ele próprio, e muito menos significa que uma obra pode ser “decodificada” facilmente.
Muito pelo contrário, estão em jogo aí múltiplos significados e formas de sentir a música em
relação aos quais é bastante difícil estabelecer uma avaliação definitiva e completa. No
entanto, talvez seja possível proceder a partir de elementos específicos, abrindo gradualmente
o foco ao nos apoiarmos sobre uma série de percepções, leituras e compreensões por vezes
Um problema que surge, no entanto, é de como preencher a lacuna entre aquilo que
mapeamos como tendências gerais de recepção num dado contexto e as intenções específicas
de um compositor ao elaborar uma dada obra. 14 Tomando o ouvido como critério, conforme
venho sugerindo, o problema em boa medida se resolve, pois se pode prescindir de considerar
percebe que no próprio aparato perceptivo do artista já está embutida a dimensão “social”,
chegamos a uma curiosa e até salutar indistinção onde de fato não importa tanto saber se algo
foi feito intencionalmente ou não. Da mesma maneira que acontece com as chamadas
garantida pela relação entre o ouvido e as convenções num contexto determinado, implicando
tocarem em fortíssimo o primeiro tema do último movimento de uma sinfonia que está
14 Skinner (2002, p. 118 passim) foi criticado pela mesma razão, acusado de “mostrar que a carapuça serve, não
que o autor a estava usando”.
15
compondo, tema este numa tonalidade maior, construído em cima de um arpejo da tônica, é
difícil não considerar que ele quis dar um caráter heroico, triunfal ou ao menos sugerir algo
amplo da música de concerto ocidental. Para criar algo que soe assim, nosso compositor
“quero criar um clima heroico, portanto escreverei um tema em tonalidade maior, baseado em
tríades, e vou dá-lo aos metais”. Mesmo que tenha agido conscientemente em alguma medida,
o que importa é que ele também poderia ter chegado ao mesmo resultado simplesmente
instrumentos até produzir o som que lhe parecesse mais adequado em relação ao que tinha em
mente. E isto funciona porque o que os músicos costumam chamar de ouvido, que é de certo
modo social, lhes serve de critério para julgar o que estão fazendo.15
muito similar a algo preexistente que lhe era completamente desconhecido, frequentemente só
vindo a tomar conhecimento disso quando terceiros lhe apontam o fato, 16 mostra bem como
15 Apesar de tudo isso, é preciso admitir que um compositor pode pretender se colocar completamente alheio a
tudo o que há de “externo” ou de social e criar uma obra sem nem mesmo avaliar como ela soa, seguindo algum
outro método ou critério. Na verdade, existe um exemplo conhecido e bem documentado disso, que é o chamado
“serialismo integral” do pós-Segunda Guerra. Mas justamente a maneira como alguns dos músicos envolvidos
em tais pesquisas composicionais procederam para chegar a tais objetivos é bastante reveladora quanto ao que
está sendo discutido aqui. O serialismo integral funcionava com base numa regulação até certo ponto “mecânica”
de todos os parâmetros do som musical (olhando do ponto de vista daqueles compositores), deixando o mínimo
de margem para a decisão do compositor. Teoricamente isso garantiria ainda uma coerência fundamental à peça
com base numa série de relações pré-estabelecidas (ver BOULEZ, 1987, principalmente as Considérations
générales, e BRINDLE, 1987, cap. 4 e 5). Mais que descrever os procedimentos ou outros detalhes técnicos da
música que os serialistas desenvolveram, importa aqui lembrar que um dos argumentos em favor da adoção de
uma tal disciplina composicional era o de que se deveria tentar fazer tábula rasa do código musical, criando a
partir daí toda uma nova sintaxe. Para alcançar esses objetivos, seria preciso “retirar” a subjetividade do
compositor do momento criador, havendo aí de fundo a ideia de que essa subjetividade, construída durante
séculos de tradição europeia, era a mesma que havia levado ao romantismo, aos nacionalismos e, por fim, às
duas grandes guerras que arrasaram a Europa. Assim, – e esse é o ponto – se fosse deixado ao compositor
decidir, por mais “avançado” que fosse seu senso estético, inevitavelmente seu ouvido o “trairia”, levando-o de
volta, em algum grau, à velha tradição. Por isso, serializar todos os parâmetros era uma maneira de forçar a
composição musical a se fazer valer com base em uma lógica em boa medida autônoma, evitando que o
compositor fizesse escolhas e abrindo novas possibilidades às quais dificilmente se chegaria de outra maneira.
Vemos aqui, por meio deste exemplo que apresenta preocupações completamente diferentes das que animam o
presente trabalho, uma percepção da criação musical que, neste sentido, é bastante próxima da que está servindo
de pressuposto para minha argumentação.
16 Tanto se trata de uma situação possível que são conhecidos diversos casos em que compositores
desconfiaram de melodias que lhes vieram à cabeça já muito desenvolvidas, como que prontas, achando que
poderiam ser, no fundo, plágios inconscientes. Não raro, esses músicos mostram suas criações a pessoas
próximas, perguntando-lhes se aquilo lhes soa familiar. Talvez o caso mais célebre seja Yesterday, sobre a qual
Paul McCartney relata no documentário Anthology ter acordado no meio de uma noite com a melodia pronta,
16
isso funciona. É ilusório realizar um cálculo de análise combinatória simples para estimar a
probabilidade de que uma sequência de notas se repita, pois as chances de repetição são muito
existentes dentro de nossa lógica de compassos subdivididos em dois, três ou quatro tempos
também divisíveis. Mesmo considerando estruturas mais complexas, como compassos mistos
ou subdivisões ímpares, a situação muda pouco, pois estas são menos comuns, enquanto a
possibilidade de uma estrutura se repetir se deve justamente ao fato de que quem compõe não
suas preferências e em como deseja que soe. De fato, a ideia de “convenção” é ainda
insuficiente para explicar isso. Trata-se muitas vezes de realmente ir em busca de algo que
faça sentido dentro de um estilo ou de uma tradição. É verdade que, por outro lado, junto
dessa procura por soar dentro do que se tem como um estilo ou de associar o som a elementos
classicamente tidos como extramusicais, pode existir também uma procura pelo inesperado, e
isso coloca um novo problema. Mas se pode argumentar aqui que via de regra esse inesperado
é esperado dentro de certos marcos, como se houvesse uma tentativa de dosar ineditismo e
familiaridade. Participar de algo e, uma vez reconhecido ali, diferenciar-se; é disso que se
trata (ver BARROS, 2013, introdução e p. 227 passim): Pode-se pensar em um compositor
como aquele que “interage” em sons com outros compositores e com o mundo que tem em
compositor, é claro. Assim, esse arsenal sofre o tempo todo adições, deslocamentos,
valorizações e desvalorizações, ao mesmo tempo em que possui alguma unidade que lhe
De qualquer modo, o fato é que dificilmente fará sentido tentar estabelecer para cada
compasso de uma obra uma “questão” específica à qual o compositor estaria respondendo.
Por um lado, pode-se trabalhar com questões amplas, entendendo a partir daí o fato de um
perguntando-se nos dias subsequentes se aquela não seria alguma canção antiga que teria ouvido na coleção de
discos de seu pai.
17 Para um exemplo bastante ilustrativo, ver BECKER (2008, especialmente o início do cap. 2).
17
conjunto com certos temas e processos. Por outro lado, talvez seja possível encontrar uma
Assim, poderíamos ver “em ação” as “associações” e “classificações” que o ouvido faz, e
então, a partir daí, construir uma compreensão histórica e sociológica das obras de arte que
Abre-se caminho para analisar as obras de uma maneira historicamente mais rigorosa,
minimizando o risco que o analista corre de, por vezes, ficar perdido diante de uma
uma época, o universo de problemas com que o artista estava se batendo, e pensando a criação
do artista dentro desses marcos, é possível realizar uma análise musical ao mesmo tempo mais
restrita e mais reveladora, com maior grau de “controle” e evitando o risco do anacronismo.
Temos aqui algo que aparece também na lição que Antoine Hennion toma de Michael
(HENNION, 2007, p. 179). Só assim podemos evitar “voos” interpretativos que, ainda que
Voltando à análise – 2
Uma pergunta que se pode fazer, no entanto, é como proceder para realizar uma
análise musical que dê conta dos problemas e dificuldades que foram apontados acima.
Algumas sugestões neste sentido podem ser encontradas em Mimesis, a obra mais conhecida
autor trata de Dante Alighieri, tem início, como de costume, com a transcrição de um trecho
da obra a ser analisada, no caso o décimo canto do Inferno, da Divina Comédia. Segundo
Auerbach, ali Virgílio e Dante caminhavam “por um caminho estreito, entre ataúdes abertos e
ardentes” quando tiveram sua conversa interrompida por um dos condenados, um florentino
18
chamado Farinata degli Uberti que, reconhecendo o sotaque toscano de Dante, chamou-o para
saber sobre o destino de sua cidade. Auerbach segue descrevendo o que se passa na cena e
discutindo o desenrolar da ação até chegar ao ponto que nos interessa aqui. Chamando a
atenção para a passagem do diálogo entre Dante e Farinata para o que se dá entre Dante e
Cavalcante, outro condenado do Inferno que os interrompe para pedir informações sobre o
filho Guido, que ainda era vivo e era amigo de Dante, Auerbach observa os procedimentos
artísticos com que o poeta modela o tom de acordo com cada caso a ser tratado na cena:
Para fazer com que isso apareça com maior clareza, observaremos mais
perto as passagens nas quais a cena muda. Farinata interrompe os que
passam conversando com as palavras: O Tosco, che per la città del foco vivo
ten vai... Isto é uma invocação, um vocativo introduzido por o, seguido por
uma oração relativa que, comparada com a invocação, é bastante pesada e
carregada de conteúdo, e que só depois é seguida pela oração volitiva,
carregada também de cortesia grave e reservada; não está dito: Toscano,
detém-te...; mas: Toscano, tu que..., queiras dignar-te a ficar neste lugar. A
fórmula “ó tu que...” é extremamente solene, e provém do estilo elevado da
epopeia antiga; Dante tem o seu som nos ouvidos, assim como guardou o
som de tanta coisa de Virgílio, Lucano ou Estácio; não acredito que, antes
dele, tenha sido empregada numa língua vulgar medieval. Mas ele a emprega
à sua maneira: de forma extremamente invocadora, semelhante àquela usada
na Antiguidade apenas em súplicas religiosas e, na oração relativa, de
conteúdo extremamente condensado; o sentimento e a situação de Farinata
perante o transeunte estão concentrados pelas três definições per la città del
foco ten vai, vivo, così parlando onesto de uma maneira tão dinâmica, que o
mestre Virgílio, se houvesse realmente ouvido estas palavras, ter-se-ia
assustado mais profundamente do que Dante no poema. As orações relativas
que Virgílio junta aos vocativos, ainda que sejam perfeitamente belas e
harmônicas, não são, nem de longe, tão agudamente concentradas e
emocionantes... (AUERBACH, 2004, p.153-156)
É difícil pensar em uma análise mais instigante e bem realizada – ao menos para meus
fins – do que a que é mostrada neste trecho de Mimesis. Isso aparece desde o momento em
que Auerbach aponta para o efeito dos “escuros sons em ‘o’ de O Tosco” (AUERBACH 2004,
153), ressaltando a própria qualidade do som das vogais e sugerindo o peso, a gravidade e a
escuridão com que Farinata fala, até o momento em que ele “rastreia” as origens de uma
forma frasal, mostrando como Dante pode ter chegado àquela construção dentro da tradição
ou tradições a que estava ligado. É importante reparar que, como Auerbach observa, Dante
não citou nem repetiu uma fórmula conhecida, ele empregou a tal fórmula proveniente da
19
análise, que no entanto carrega um “peso” para dentro da obra, um peso que vem daquilo a
Mas o passo mais revelador é a própria possibilidade que se abre para encontrar
ligações sutis por meio de um conhecimento das tradições a que a obra sob análise está ligada.
Ao observar, por exemplo, que determinado elemento em Dante é construído em relação com
uma fórmula do estilo elevado da epopeia antiga, Auerbach mostra que não é necessário
restringir-se ao significado, mesmo quando se está analisando literatura, pois nas próprias
implicações mútuas.
Do mesmo modo que Auerbach faz no trecho discutido acima, pode-se tomar
“fundo” mais geral, consegue-se começar a desdobrar uma série de relações que servem para
alimentar a análise. Uma figura melódica ou rítmica, por exemplo, ou determinadas texturas,
isso pode ser compreendido sociologicamente. O ponto é que é preciso tomar elementos que
origem da obra que se está analisando, partindo daí para tentar conhecer como se tendia a
É difícil e arriscado tentar definir de antemão e de maneira geral o que podem ser
esses elementos, mas em princípio pode-se dizer que eles se tornam mais fáceis de trabalhar
na medida em que são, falando num nível estrutural mais microscópico, delimitáveis e
contínuos, podendo ser isolados e então relacionados com outros elementos similares já
conhecidos naquele contexto.18 Não importa tanto se os elementos já conhecidos aos quais se
18 O ideal é que se possa usar, por razões de clareza e precisão, os termos já consagrados do vocabulário
musicológico, falando em figura, modo, padrão rítmico, período etc., de acordo com o que está em questão. Mas
por vezes pode-se estar diante de uma combinação de fatores “diluídos”, de elementos estilísticos próprios a um
gênero ou uma tradição que vêm à tona em outro contexto e que acabam sendo difíceis de designar por um termo
mais específico. Nesses casos, talvez seja possível recorrer à ideia um tanto problemática de “gesto musical”,
que usada com cautela pode servir para designar elementos difusos que constituem uma obra, abarcando-os
contextual e relacionalmente ao mesmo tempo em que reforça seu caráter de elemento analisável. Tratei do
20
vai relacionar aquele que se tem em mãos são os mais antigos ou mesmo os originais em
referência contidos numa obra. Mais do que apontar uma suposta origem para o elemento que
determinado conjunto de relações, como quem diz: isto pertence a um conjunto, o mesmo
É claro que, como toda forma de análise, a que está sendo sugerida também favorece
específicos e delimitados podemos começar a traçar algumas ligações entre uma obra e
determinados conjuntos de práticas musicais que, na falta de termo melhor, podem ser
fazer, práticas e técnicas até agrupamentos instrumentais, espaços onde se pratica a música,
preferências por determinadas sonoridades e mesmo algo como “sensibilidades”, que são
bastante difíceis de definir – e mais ainda de delimitar –, mas que inegavelmente têm uma
parte importante em como a música é percebida. Assim, uma vez que se admite que as
diversas tradições coexistentes num determinado contexto possuem, cada uma delas, uma
“carga social”,19 torna-se possível buscar nos elementos musicais indicações de como aquela
Uma análise deste tipo tem o problema de tender a reforçar o caráter de coerência e
homogeneidade dos contextos sobre os quais se lança o olhar, uma limitação que demanda o
cuidado contínuo de trabalhar tentando compensá-la. Para isso, é importante ter em mente
que, dependendo do artista que se está estudando, é preciso lidar não com uma única tradição
ou um único cânone, mas sim com a convivência de diversas tradições, “subtradições” e até
mesmo algo como “contra-tradições”. Além disso, é importante tratar o termo “tradição” de
maneira histórica e sobretudo relacional, nunca como algo fixo ou essencializado. Logo,
entender uma obra a partir da ideia de tradição é vê-la em certa medida como integrando um
corpus que a antecedeu – caso em que a obra é como que uma “floração” – ou que a sucedeu
– caso mais raro e difícil de delimitar em que a obra, em geral junto de algumas outras, é algo
como o início de uma nova “ramificação”. Ao falar no início de uma nova ramificação, então,
há que se atentar para o fato de que não se está postulando um início absoluto, mas sim algo
como um novo braço de um tronco antigo: uma tradição sempre pode ser parte de algo maior
e nenhum tronco é um início absoluto, mas tem uma história em que, a partir de certo ponto
de vista, faz sentido considerá-lo como uma nova ramificação. Quando se flexibiliza a ideia
de tradição ao ponto de poder considerar que características suas vão por vezes ganhando aos
generalidade que cada análise concreta demanda –, aí se tem uma noção de tradição com
utilidade analítica.
O peso da História
Quando falei do “peso” que cada elemento traz para dentro de uma obra, não se tratava
algumas páginas atrás são algo puramente arbitrário, como se pode deduzir. O ponto
fundamental aqui é que, embora não seja o caso de retornar a uma discussão sobre causas
momento, “do zero”.20 Quando dizemos que algo é histórico ou que “se desenvolveu
historicamente”, isto não significa apenas negar sua eternidade e desnaturalizá-lo. Dizer que
algo tem história significa dizer que teve um início e que certamente terá um fim – ao menos
como o conhecemos –, mas também significa que ele foi se construindo sobre uma série de
20 Para uma leitura de Skinner próxima a esta, ver Richter (1995, cap. 6). Hennion (2007, p. 187-188) também
levanta uma discussão diferenciando o relativismo do sociólogo do relativismo do historiador da arte que toca
em pontos importantes relacionados ao que está sendo tratado aqui.
22
configurações localizadas, fragmentárias, parciais, frouxas, mas que vão aos poucos se
em virtude dessa própria “sedimentação” histórica. Não há como definir de antemão ou com
base em alguma lei geral qual o “peso relativo” de cada um desses elementos. Não é possível
fazê-lo senão com base no que os próprios atores e suas obras nos dizem.
atores mais próximos do compositor, que é o que a leitura contextual visa a nos dar, de modo
a tentar reconstituir o “ouvido” de uma época de maneira similar à que Michael Baxandall
reconstitui o olhar da Renascença.21 Procedendo nessas bases, podemos ver uma obra como
uma espécie de “condensado de forças” cuja composição específica é indefinível em si, mas
que pode ser avaliada “localmente”, com base no “ouvido” do compositor, ouvido este, como
já foi dito algumas vezes, formado nas convenções de sua época e em tudo que dá sustentação
a essas convenções.
Há de se ter sempre em mente que se está estudando como as pessoas fazem música.
interessados; trata-se de obras que são produto da criação de seres humanos específicos,
como foi dito no início, foca-se nas obras simplesmente porque nelas está nosso interesse,
mas as obras não são nem documentos da História nem documentos para a História (ou para a
Sociologia e a Musicologia); elas são parte do que faz a História das coisas e, evidentemente,
têm uma História. Por isso também não ajuda em nada traçar paralelismos puros e simples
entre estruturas musicais e estruturas sociais. Estabelecer este tipo de relação é colocar um
postulado no lugar do que se quer explicar, já que quando se analisa algo sociologicamente
creio que o que em geral fazemos é mostrar como aquilo se constitui, tentando entender quais
são as forças fundamentais que atuam sobre sua gestação e que o mantêm “vivo”, ou seja,
21 Ver BAXANDALL (1991, p. 78 passim). Para uma discussão de Baxandall já voltada especificamente para o
problema que nos ocupa, ver HENNION (2007, p. 176-181).
23
Diante do que foi exposto acima, algum leitor ou leitora poderia perguntar se estou
sustentando que o trabalho com música nas Ciências Sociais estaria então vedado àqueles que
não se julgam habilitados a realizar análise musical propriamente dita. Sentiria-me tentado a
retrucar, perguntando a esse interlocutor imaginário qual música exatamente lhe é estranha ao
ponto de lhe ser impossível articular um discurso sobre ela. O tipo de análise proposto aqui é
muito mais uma busca de filiação para elementos encontrados nas obras do que uma análise
principalmente ao fato de meu próprio trabalho estar voltado para uma música que, de alguma
forma, se liga à tradição intelectual que produziu essa musicologia. Para outras músicas a
forma de análise muito provavelmente seria outra, e somente a própria pesquisa pode fornecer
sugestões sobre como realizá-la, para onde direcionar o olhar, quais elementos são mais
Como espero ter deixado claro, as Ciências Sociais realizaram avanços de importância
inestimável na área muitas vezes renunciando justamente a “pôr as mãos sobre” as famosas
“obras em si”. Desse modo, o objetivo deste texto já estaria plenamente cumprido se as linhas
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