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Cenários, Porto Alegre, n.

9, 1° semestre 2014

A BICICLETA QUE TINHA BIGODES: ATIVIDADES


INTERDISCIPLINARES PARA A APLICAÇÃO DA LEI Nº
10.639/2003 NA EDUCAÇÃO BÁSICA

BICYCLE THAT HAD MUSTACHE: INTERDISCIPLINARY


ACTIVITIES TO THE APPLICATION OF THE 2003’S LAW 10,639
FOR THE BASIC EDUCATION

Luciana Lee112

Resumo: A prática docente interdisciplinar vem oferecendo redes de possibilidades para a


implantação da Lei nº 10.639/2003, que incluiu no currículo oficial das escolas a
obrigatoriedade do ensino da história e da cultura afro-brasileira, em especial nas áreas de
Educação Artística e de Literatura e História brasileiras. Essa lei é de fundamental
importância, porque traz à tona a necessidade de se fazer uma nova abordagem do ensino
da literatura e da cultura africana e afro-brasileira, não mais a partir da perspectiva única
dos colonizadores. Atividades interdisciplinares inserem a leitura em contextos
significativos para os alunos, produzindo sentido para eles. Levando em conta a
interdisciplinaridade proposta pelos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNS) e a
implementação da Lei 10.639/03, sugerem-se algumas atividades para o Ensino Básico a
partir da leitura do livro A bicicleta que tinha bigodes, do escritor angolano Ondjaki. A
obra, como muitas outras produções literárias de países de língua oficial portuguesa do
período pós-independência, é propícia ao estudo do realismo-maravilhoso e do animismo.
O insólito, a fantasia, o lúdico, a oralidade tornam A bicicleta que tinha bigodes
extremamente rica para atividades interdisciplinares que visem ao cumprimento da
legislação a respeito da história e da cultura africana.

Palavras-chave: Lei 10.639/2003. Atividades interdisciplinares. Literatura africana de


Língua Portuguesa. Ondjaki. A bicicleta que tinha bigodes.

Abstract: Interdisciplinary teaching practice has been providing several network


opportunities for implementation of the 2003’s Law 10,639 which have included in the
official curriculum of schools the mandatory teaching of African-Brazilian history and
culture, especially in areas of Arts Education and Brazilian Literature and History. This
law is very important, because it brings up the need to make a new approach for the
teaching of literature of African and African-Brazilian culture, not from the colonizer’s
point of view, but from the native’s reality. Interdisciplinary activities insert the reading in
meaningful contexts for students, stimulating sense production. Given the interdisciplinary
proposal by the National Curriculum Parameters (pcns) and the implementation of the
2003’s Law 10.639, we suggest some activities for the Basic Education from reading the

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Luciana Saraiva Lee é especialista em Ensino de Língua Portuguesa e Literatura pela UniRitter. Email
lusalee@gmail.com.

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book Bike that had mustache, of the Angolan writer Ondjaki. The work, like many other
literary productions of countries with Portuguese as the official language at their post-
independence period, is propitious to the study of the wonderful realism and the animism.
The unusual, the fantasy, the ludic, the orality make Bicycle that had mustache extremely
rich for interdisciplinary activities aiming to apply the law on the history and African
culture.

Keywords: 2003’s Law 10,639. Interdisciplinary activities. Portuguese language African


literature. Ondjaki. Bicycle that had mustache.

1 INTRODUÇÃO

Vos agradeço, vos abraço: em criança como agora, eu andava em busca


das vossas estórias para fingir e acreditar que os livros sempre inventam
essa fogueira de sermos meninos à volta dela... (Ondjaki)

A Lei nº 10.639, de nove de janeiro de 2003, alterou a Lei nº 9.394, de 20 de


dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir
no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática História e Cultura
Afro-Brasileira, acrescendo os arts. 26-A, 79-A e 79-B. O art. 26-A torna obrigatório o
ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira nos estabelecimentos de ensino
fundamental e médio, oficiais e particulares, em especial nas áreas de Educação Artística e
de Literatura e História brasileiras. O conteúdo programático, assim, deve incluir

o estudo da História da África e dos africanos, a luta dos negros no Brasil, a


cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando
a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à
História do Brasil. (BRASIL, 2003, p.1).

Essa Lei é de fundamental importância, porque traz à tona a necessidade de se fazer


uma nova abordagem do ensino de literatura e cultura africana e afro-brasileira, dando, na
escola, nova significação ou ressignificação à história brasileira e à história africana. A
história afro-brasileira e a história africana até então têm sido desconhecidas, ignoradas,
desvalorizadas ou tratadas a partir de uma única perspectiva, ou seja, a perspectiva dos
colonizadores. Chegou o momento de devolver à cultura afro-brasileira o seu caráter
constituinte e formador da sociedade brasileira, reconhecendo a gigantesca contribuição
dos povos africanos e de seus descendentes para o nosso País.

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Quanto à implantação da Lei nº 10.639/2003 na sala de aula, muitas são as


possibilidades, e a literatura africana de língua oficial portuguesa é uma delas. Como
afirma Renata Beatriz Brandespin Rolon (2011, p.133),
ao promover o contato com autores africanos de expressão portuguesa, a escola irá
mediar e estabelecer os diálogos entre a literatura brasileira e outras literaturas,
outras culturas, promovendo a quebra de preconceitos e paradigmas. Na leitura
desses autores, tem-se então uma literatura que transcende fronteiras geográficas e
linguísticas. Evidenciam-se raízes similares e marcas identitárias. Nessa
perspectiva percebem-se os enlaçamentos entre Brasil, Angola, Moçambique,
Cabo Verde e outros países que sofreram semelhante processo de construção.

Outro aspecto importante a ser observado é que a Lei 10.639, quando de fato
começar a ser cumprida nas escolas, será um importante instrumento de combate ao
preconceito, que sabemos existir na nossa sociedade e, por conseguinte, também na escola,
que, muitas vezes, é um ambiente hostil e com práticas preconceituosas. De acordo com
Fúlvia Rosemberg (1998, p.73),
o Brasil, como outros países da América Latina e os Estados Unidos, conheceu um
longo período de escravidão (até 1888) de pessoas negras trazidas da África ou de
seus descendentes. Inicialmente, como legado da escravidão e, posteriormente,
decorrente de práticas racistas, tem-se observado no país a convivência de
desigualdade e preconceito raciais bastante intensos com o mito da democracia
racial, ou de um “racismo cordial”.

Diante desse quadro, a sociedade de um modo geral e a escola em particular têm o


dever de combater qualquer tipo de preconceito, como, por exemplo, o racial, do qual
estamos ora tratando.
O segundo aspecto relativo ao ensino que vamos abordar diz respeito à
interdisciplinaridade. Segundo os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) (BRASIL,
1998, p.30),
a interdisciplinaridade questiona a segmentação entre os diferentes campos de
conhecimento produzida por uma abordagem que não leva em conta a inter-relação
e a influência entre eles — questiona a visão compartimentada (disciplinar) da
realidade sobre a qual a escola, tal como é conhecida, historicamente se constituiu.

O professor de Literatura, como mediador, deve mostrar aos alunos que a leitura
pode ser uma atividade prazerosa. Para isso, ela deve estar inserida em um contexto
significativo, que possa produzir sentido para o leitor.
A fim de construir esse sentido, a interdisciplinaridade tem-se mostrado uma
ótima solução, pois promove o diálogo com outras disciplinas ou áreas de conhecimento.
Para Todorov (2012, p.89),

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a análise das obras feita na escola não deveria mais ter por objetivo ilustrar os
conceitos recém-introduzidos por este ou aquele linguista, este ou aquele teórico
de literatura, quando, então, os textos são apresentados como uma aplicação da
língua e do discurso; sua tarefa deveria ser a de nos fazer ter acesso ao sentido
dessas obras – pois postulamos que esse sentido, por sua vez, nos conduz a um
conhecimento do humano, o qual importa a todos.

A professora Ivani Fazenda (2013, p.18-19) afirma o seguinte sobre a


interdisciplinaridade:

Esquecida em décadas passadas, volta agora como palavra de ordem das propostas
educacionais, não só no Brasil mas no mundo. [...] Sabemos, por exemplo, em
termos de ensino, que os currículos organizados pelas disciplinas tradicionais
conduzem o aluno apenas a um acúmulo de informações que de pouco ou nada
valerão na sua vida profissional, principalmente porque o desenvolvimento
tecnológico atual é de ordem tão variada que fica impossível processar-se com a
velocidade adequada a esperada sistematização que a escola requer.

O pensar interdisciplinar, dessa forma, dialoga com outras formas de conhecimento


e se deixa interpenetrar por elas.

Assim, por exemplo, aceita o conhecimento do senso comum como válido, pois é
através do cotidiano que damos sentido às nossas vidas. Ampliado através do
diálogo com o conhecimento científico, tende a uma dimensão utópica e
libertadora, pois permite enriquecer nossa relação com o outro e com o mundo.
(FAZENDA, 2013, p.20).

Levando em conta o cumprimento da legislação no que se refere à cultura afro-


brasileira e a interdisciplinaridade proposta pelos PCNs, procuramos elaborar algumas
atividades interdisciplinares para a Educação Básica a partir do estudo, da análise e da
interpretação do livro A bicicleta que tinha bigodes (2012), do escritor angolano Ondjaki.
Antes disso, porém, falaremos brevemente sobre a literatura africana de língua portuguesa,
principalmente a angolana, por ser o foco do nosso estudo, e sobre o escritor Ondjaki e o
seu A bicicleta que tinha bigodes.

2 O AUTOR, A OBRA E SEU CONTEXTO

Para entendermos a literatura africana de língua portuguesa, é necessário


adentrarmos um pouco na história dos países africanos de colonização portuguesa. Angola,
Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe são conhecidos como
Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa, ou PALOPs, formando uma comunidade

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de quase nove milhões de falantes nativos, principalmente depois da independência de


Portugal, quando os movimentos independentistas viram na língua portuguesa um
instrumento para conseguir o desenvolvimento e a unidade nacionais.
Segundo Renata Beatriz Brandespin Rolon (2011, p.134-135),
no cenário da literatura contemporânea africana de expressão portuguesa, verifica-
se que as obras trazem inscritas as manifestações culturais dos povos oriundos dos
conflitos de guerra e das mudanças geradas após a independência. Com isso a
linguagem atinge seu mais alto grau de precisão e sua maior potência de
significação. Por intermédio da leitura das obras de José Craveirinha, Mia Couto,
Pepetela, Ondjaki, Octaviano Correia, Dario de Melo, Luandino Vieira e de tantos
outros, tem-se a possibilidade infinita de interpretação.

Angola, cuja capital é Luanda, obteve sua independência de Portugal em 1975,


depois de um confronto guerrilheiro iniciado em 1961. De 1975 a 2002, o país envolveu-se
em uma guerra civil devido à luta pelo poder entre os movimentos de libertação, sendo
considerado o mais longo conflito da África, com meio milhão de mortos e economia
arruinada. O conflito tornou-se uma batalha da Guerra Fria, visto que a União Soviética e
os Estados Unidos, com seus respectivos aliados, prestaram assistência militar às partes
envolvidas na guerra.
É nesse contexto que a literatura angolana pós-colonial se insere.
Os primeiros anos de independência são marcados pela afirmação nacionalista,
pela necessidade de fundar uma literatura que mostrasse a angolanidade, a
moçambicanidade. Muito desse percurso passa pela recuperação das tradições
locais e da memória ancestral que resistia nas vozes dos mais velhos e dos sábios.
(TETTAMANZY, 2011, p.29).

Após esses primeiros anos, como afirma Simone Pereira Schmidt (2009, p.143) ao
refletir sobre a condição pós-colonial da literatura angolana,
o tom crítico se acentua e chega ao desencanto, em muitas narrativas que se
dedicam a representar os tempos de guerra que dominaram o país nas décadas
seguintes à independência. O projeto de nação se esvazia consideravelmente; a
guerra e o sofrimento constantes colocam em xeque as ideologias que sustentavam
a ideia do país independente, expõem as feridas deste projeto, ao mesmo tempo em
que se começa a problematizar os referenciais eurocêntricos a partir dos quais a
própria noção de país foi forjada, no passado, pelo colonialismo europeu. Para
além das fronteiras nacionais, autores como Ana Paula Tavares e Ondjaki
inscrevem, no espaço morto da guerra, o imperativo da sobrevivência e da
invenção de novas razões para narrar e existir.

Ondjaki, um dos escritores angolanos mais conhecidos fora de seu país, nasceu em
Luanda, em 1977, e atualmente vive no Rio de Janeiro. É prosador e poeta, também
escreve para cinema e correalizou um documentário sobre a cidade de Luanda (Oxalá
cresçam pitangas – histórias de Luanda, 2006). É membro da União dos Escritores

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Angolanos e da Associação Protectora do Anonimato dos Gambuzinos (sic). Está traduzido


para francês, espanhol, italiano, alemão, inglês, sérvio, sueco e polaco. Sua escrita é
marcada pela oralidade, e seus personagens, em geral, são crianças ou adolescentes e
assistem aos desdobramentos da independência e da guerra civil em Angola e à presença
de soviéticos e cubanos em Luanda.
O livro de Ondjaki que abordaremos, A bicicleta que tinha bigodes, classificado
como infanto-juvenil, foi publicado em 2012 pela Editora Pallas e conta a história de três
crianças que resolvem participar do concurso de redação divulgado na Rádio Nacional,
cujo prêmio é uma bicicleta com as cores da bandeira nacional. Em busca de ideias para
uma boa história, essas crianças vão, aos poucos, nos apresentando outras personagens
interessantes da rua onde moram: o tio Rui, que é escritor e tem bigodes mágicos de
letrinhas; o motorista de apelido Nove; o GeneralDorminhoco; o CamaradaMudo; a
AvóDezanove; a menina Isaura, que dá nomes de personalidades aos bichos da rua. A
fantasia, a inocência, as aventuras vividas pelos amigos, o sabor das pequenas coisas e a
amizade marcam o ritmo dessa história, que resgata valores e sentimentos raros nas obras
atuais. Assim como em outros livros, o autor segue a grafia angolana e apresenta um
pequeno glossário para orientar os leitores.
Agora, depois de contextualizar a literatura angolana, o autor e a obra a ser
abordada, podemos retomar o enfoque deste artigo, com as propostas de atividades
interdisciplinares para a Educação Básica para cumprir o que a legislação estabelece
quanto ao ensino da história e da cultura afro-brasileiras. Dividiremos as atividades em
duas partes, para o Ensino Fundamental e para o Ensino Médio, pois entendemos que o
trabalho com o livro de Ondjaki pode ser realizado tanto com alunos do Fundamental como
com adolescentes do Ensino Médio, alterando, para isso, o enfoque e a complexidade das
questões propostas.

3 ATIVIDADES INTERDISCIPLINARES PARA A EDUCAÇÃO BÁSICA (Ensino


Fundamental e Ensino Médio)

Iniciando as atividades interdisciplinares para o Ensino Fundamental, apresentamos


dois textos introdutórios, um do próprio A bicicleta que tinha bigodes e outro que trata da
superstição popular.

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Texto 1:
Mesmo a Isaura uma vez me disse que naquela lagoa ela já tinha visto gambozinos
coloridos a imitarem um arco-íris.
- Tu viste mesmo esses gambozinos?
- Vi sim. Tinham as cores do arco-íris, e outras cores que vocês nunca viram.
(Ondjaki, 2012, p.19).

Texto 2:
Os gambozinos são seres imaginários que, segundo a superstição popular, vivem
no campo, embora algumas espécies já tenham se adaptado e hoje também se
possam encontrar nos recantos sombrios e úmidos dos parques de algumas
cidades. Também são descritos como uma espécie de pássaro ou peixe, embora se
pense que possam ser parecidos com o pirilampo, com o dragão marinho ou com o
ouriço. Há quem ache que são seres da família dos vegetais que vivem debaixo da
terra. A ideia que se faz destes seres varia conforme a imaginação de cada um.
(Wikipédia, http://pt.wikipedia.org/wiki/Gambozino).

A primeira proposta de atividade sugere que o aluno pesquise mais sobre os


gambozinos e descubra em quais lugares há lendas e folclore em relação a esses seres
imaginários e se, além de Ondjaki, existem outros autores que representam esse elemento
do imaginário popular em textos literários. Aqui há uma curiosidade para a qual o
professor deve atentar: o próprio Ondjaki é membro da Associação Protectora do
Anonimato dos Gambuzinos (sic). Depois disso, o aluno faria um desenho ou uma pintura
mostrando como imagina que essas criaturas seriam. Uma ideia interessante seria fazer
uma exposição na escola ou em algum lugar da comunidade com esses trabalhos
elaborados pelos alunos. Essas atividades envolveriam não só o professor de Literatura,
mas o de História, o de Geografia e o de Artes. Ainda pode-se sugerir que o aluno encontre
outros elementos pertencentes ao fantástico na obra e que descreva a relação das crianças
com esses elementos. Aqui o professor de Literatura tem a oportunidade de apresentar aos
alunos uma das marcas pós-coloniais da literatura africana de língua portuguesa, que é
o recurso ao insólito, ao absurdo, ao fantástico como estratégia de enfrentamento
do real [...]. Através de construções simbólicas, alegóricas e de conteúdo insólito,
intenta-se recuperar o sentido da realidade [...]. (MATA, 2003, p.68-69).

Um aspecto da obra que seria interessante de ser estudado na disciplina de História


é a situação de Angola nos anos 80/90 do século XX (época em que se passa a história),
principalmente a situação da capital, Luanda (lugar onde a história acontece). De acordo
com o que foi descoberto sobre a época referida, os alunos saberão os motivos da constante
falta de luz naquele país, assim como outros problemas de abastecimento. Ao mesmo
tempo, o professor de Literatura debateria com os estudantes como as personagens da
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história lidam com esses problemas de abastecimento, principalmente com a falta de luz,
que é um elemento importante no desenvolvimento do enredo. Depois disso, brincadeiras
poderiam ser organizadas na sala de aula, inspiradas nas brincadeiras que as personagens
fazem quando falta luz.
Por fim, o professor de Língua Portuguesa/Redação poderia solicitar que fosse
escrita uma carta como se o aluno fosse o Presidente de Angola respondendo à carta do
narrador. Aqui se pode aproveitar para introduzir o estudo do gênero textual carta, assim
como e-mail e outros gêneros semelhantes. A carta do narrador, que encontramos no final
do livro, dá uma boa ideia da situação econômica e política de Angola, porém sob a ótica
infantil, o que poderia ser bem aproveitado pelo professor de História.
A seguir listaremos algumas atividades interdisciplinares que poderão ser úteis para
trabalhar com o Ensino Médio. Assim como nas atividades para o Ensino Fundamental,
nestas, professores de várias disciplinas, como Língua Portuguesa/Redação/Literatura,
Artes, História e Geografia, têm a possibilidade de realizar trabalhos interessantes com
suas turmas.
A personagem Isaura é muito importante na narrativa, então iniciaremos com ela.
Isaura dá nomes de personalidades do cenário internacional aos bichos da rua,
principalmente nomes de presidentes. A sugestão é que o aluno faça uma pesquisa
para saber quem são esses personagens na vida real. Depois disso, a turma discutiria o
motivo pelo qual o gato teve seu nome trocado de Tátecher para Ghandi.
Continuando com a personagem Isaura, percebemos que o escritor Ondjaki, na
contracapa de A bicicleta que tinha bigodes, refere que “sua” Isaura é em homenagem à
Isaura do escritor moçambicano Luis Bernardo Honwana. Mais adiante, Ondjaki faz um
agradecimento ao escritor angolano Manuel Rui e ao seu livro Quem me dera ser onda
(2005) – também em A bicicleta... há um personagem chamado tio Rui, que é escritor.
Aqui é uma ótima oportunidade para se introduzir o conceito de intertexto, assim como
apresentar outras obras da literatura africana, como Nós matámos o cão-tinhoso (2008), de
Luis Bernardo Honwana, e Quem me dera ser onda, de Manuel Rui, além de uma outra
obra de Ondjaki, Os da minha rua (2007), que traz um conto chamado Nós choramos pelo
cão tinhoso (p.131-136), mostrando, mais uma vez, a influência e a importância do escritor
moçambicano Honwana para Ondjaki.

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A fim de contextualizar a obra, é interessante que o aluno pesquise sobre Angola


nos anos 80/90 e descubra a situação do país à época quanto aos aspectos políticos, sociais,
econômicos, entre outros, observando como isso é representado no texto. Em seguida, deve
procurar saber qual a situação do país nos dias de hoje. Depois de feitas essas pesquisas,
um seminário seria uma atividade muito ilustrativa, com os alunos mostrando o que
aprenderam sobre o país africano e seu povo.
Como Angola é um país africano que tem como língua oficial a Língua Portuguesa,
os alunos também poderiam fazer uma apresentação explicando o motivo disso de acordo
com a história do país. Aqui é possível relacionar algumas diferenças entre o vocabulário
de Angola e o do Brasil, aproveitando o vocabulário usado no livro em estudo e em outras
publicações, ou mesmo em músicas e filmes. Depois disso, outra ideia é ver se o livro faz
alguma referência à influência da cultura brasileira naquele país.
Ainda dentro da temática cultural, pode-se ver como aparece no texto a culinária de
Angola e se há semelhanças com a culinária brasileira. Uma atividade prática interessante
seria organizar a turma em grupos e cada grupo preparar um prato típico de Angola, como,
por exemplo, uma paracuca, doce muito apreciado pelas crianças, personagens do livro de
Ondjaki. Logo após, um lanche coletivo seria muito apropriado, quando cada grupo falaria
sobre o prato, seu preparo, seu nome e outras curiosidades.
Para a próxima atividade, sugerimos iniciar com um texto introdutório, retirado de
uma entrevista do autor Ondjaki ao programa Ler Mais, Ler Melhor
(http://www.youtube.com/watch?v=XUUW7Fs9R8o):
A Rádio Nacional faz um concurso e vai ganhar uma bicicleta a criança de Angola
que escrever a melhor redação. Mas isso é só uma desculpa. Eu penso que a
história é muito mais sobre a fantasia, sobre a amizade, sobre o ato da escrita,
tendo em vista que essas crianças estão numa rua e procuram, até, o escritor da rua
para lhes ajudar a escrever a tal redação [...].

Com relação ao texto acima, os alunos descreveriam como aparecem no livro a


fantasia, a amizade e o ato da escrita e também aspectos do universo infantil e da amizade
entre as crianças, entre as crianças e os adultos e entre as crianças e um escritor. Um
questionamento importante a ser feito pelo professor seria o seguinte: “Na sua opinião, a
história enfatiza o sucesso ou a busca por um objetivo?”. Diante desse questionamento,
como expectativa do professor em relação às possíveis respostas de seus alunos, pode-se
prever que, como o personagem não consegue escrever a redação e, desse modo não vence
o concurso, a história prioriza a busca pelos objetivos, pois nem sempre podemos vencer

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em tudo, mas a participação é o componente mais importante, pois traz crescimento


pessoal e ensina a convivência em grupo de maneira solidária e democrática. O professor
pode questionar se os alunos já participaram de algum concurso e, se venceram, qual a
experiência que ficou; se não venceram, o que foi importante na participação em termos de
aprendizagem e convivência com o outro.
Finalmente, os alunos escreveriam um pequeno ensaio posicionando-se em relação
à atitude do “tio Rui” de não ajudar o narrador a escrever a redação para a Rádio Nacional
de Angola, seguido de um debate em que todos apresentariam seus argumentos, o que
propiciaria a discussão sobre ética, um dos temas transversais presentes nos PCNs,
fundamental para o exercício da cidadania em uma sociedade democrática e pluralista.
Neste momento também, as características do gênero textual ensaio podem ser mostradas
pelo professor, assim como as do paper, do artigo, da resenha, entre outros.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

As propostas acima são apenas alguns caminhos que podem ser utilizados em uma
abordagem interdisciplinar dessa obra da literatura africana, pois o texto possui um
universo riquíssimo a ser trabalhado em sala de aula. Procuramos elaborar atividades que
pudessem relacionar o texto literário com vários aspectos da história e da cultura
principalmente e que proporcionassem uma aproximação do leitor com a obra, realizando
também atividades lúdicas e artísticas.
Por meio da leitura interdisciplinar, o aluno é levado a uma visão crítica e complexa
do texto literário, não esquecendo as suas especificidades e subjetividades como obra
literária. A leitura interdisciplinar, assim, deve ir além da questão estética do texto,
ampliando o universo do leitor e convidando-o [...] “a imaginar outras maneiras de
concebê-lo e organizá-lo” (TODOROV, 2012, p.23).
Quanto à Lei nº 10.639/2003, a sua relevância se dá na medida em que traz uma
nova abordagem ao ensino da literatura e da cultura africana e afro-brasileira na escola,
agora reconhecendo a importância dos povos africanos e de seus descendentes na formação
do Brasil. Outro fator a considerar é que o cumprimento da referida lei pelas escolas será
um poderoso aliado no combate ao racismo e à intolerância, inadmissíveis em uma
sociedade que se quer igualitária e democrática. Finalmente, não podemos deixar de

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destacar e explicar por que a literatura africana de língua portuguesa é mais um dos
possíveis caminhos para a implantação da Lei 10.639 nas escolas, qual seja o de
estabelecer diálogos com uma outra cultura, quebrando preconceitos e paradigmas, além de
proporcionar ao aluno a percepção de raízes identitárias e marcas similares à cultura
brasileira.
Diante do exposto, convém ressaltar que as atividades interdisciplinares sugeridas
pelos PCNs, aliadas ao cumprimento da legislação referente ao ensino da cultura e da
história afro-brasileira, são instrumentos de grande auxílio ao professor na sensibilização e
no desenvolvimento da imaginação criadora de seus alunos. O professor de Literatura, ao
apresentar A bicicleta que tinha bigodes na sala de aula, pode mostrar o imaginário das
crianças angolanas, porém despertando o interesse do leitor brasileiro por tratar de temas
inerentes às crianças do mundo inteiro, de tal forma que da sensibilização pode-se passar à
promoção do conhecimento extensivo às outras disciplinas, pois o pensar interdisciplinar,
por possibilitar vários tipos de abordagem de uma mesma obra, torna a leitura prazerosa,
produzindo sentido para os alunos, pois insere essa obra em contextos significativos que
costumam enriquecer a sua relação com o mundo.

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