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Carlos Biasotti

Nélson Hungria
(Súmula: Vida e Obra)

Discurso de Posse na Academia Brasileira de


Ciências, Artes, História e Literatura (ABRASCI)

2018

São Paulo, Brasil


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O Autor

Carlos Biasotti foi advogado criminalista, presidente da


Acrimesp (Associação dos Advogados Criminalistas do
Estado de São Paulo) e membro efetivo de diversas entidades
(OAB, AASP, IASP, ADESG, UBE, IBCCrim, Sociedade
Brasileira de Criminologia, Associação Americana de Juristas,
Academia Brasileira de Direito Criminal, Academia Brasileira
de Arte, Cultura e História, etc.).

Premiado pelo Instituto dos Advogados de São Paulo, no


concurso O Melhor Arrazoado Forense, realizado em 1982, é
autor de Lições Práticas de Processo Penal, O Crime da Pedra, Tributo
aos Advogados Criminalistas, Advocacia Criminal (Teoria e Prática),
além de numerosos artigos jurídicos publicados em jornais e
revistas.

Juiz do Tribunal de Alçada Criminal do Estado de São


Paulo (nomeado pelo critério do quinto constitucional, classe
dos advogados), desde 30.8.1996, foi promovido, por
merecimento, em 14.4.2004, ao cargo de Desembargador do
Tribunal de Justiça.

Condecorações e títulos honorícos: Colar do Mérito


Judiciário (instituído e conferido pelo Poder Judiciário do
Estado de São Paulo); medalha cívica da Ordem dos Nobres
Cavaleiros de São Paulo; medalha “Prof. Dr. Antonio Chaves”, etc.
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Nélson Hungria
(Súmula: Vida e Obra)
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Carlos Biasotti

Nélson Hungria
(Súmula: Vida e Obra)

Discurso de Posse na Academia Brasileira de


Ciências, Artes, História e Literatura (ABRASCI)

2018

São Paulo, Brasil


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Nélson Hungria (1891-1969), Pontifex Maximus do


Direito Penal no Brasil.
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Índice

I. Exórdio....................................................................................... 13

II. Biografia do Patrono............................................................... 17

III. Formação intelectual de Nélson Hungria........................... 20

IV. Lugares seletos de seus livros................................................. 22

V. Formação jurídico-penal do Mestre..................................... 29

VI. Polemista de primeira plana................................................... 31

VII. A rica personalidade do excelso Jurista............................... 34

VIII. Nélson Hungria no juízo de graves autores........................ 40

IX. Frontispícios de alguns de seus livros (fotos)..................... 43


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13

I. Exórdio

Excelentíssimas Senhoras e Senhores:

Membro recém-eleito desta prestigiosa Academia Brasileira


de Ciências, Artes, História e Literatura (ABRASCI), corre-me
satisfazer, liminarmente, à grave obrigação contraída para com
aqueles que, dando de mão talvez aos conselhos da prudência,
deliberaram entre si acolher em seu grêmio este obscuro candidato.

A presunção do mérito, que generosamente afirmastes a


meu favor, interpreto-a por expressão da universal benevolência
com que as sociedades culturais costumam incentivar os
que lhes vêm bater à porta. Por inculcar magnanimidade, esse
ato muito me desvaneceu e penhorou; recebo-o, pois, com
profundo reconhecimento; trata-se de dívida que jamais poderei
suficientemente resgatar; mas, visto não prescreve nunca (por ser
dívida de gratidão), sempre achareis em mim uma alma agradecida.

Outra questão, que por sem dúvida estará alguém a agitar


nesta augusta assembleia de intelectuais, diz com o motivo que
induziu sujeito adiantado já em anos a pleitear assento em
academia de tão larga e notória reputação.

Entro, pois, a declinar as razões por que requeri à vossa


autoridade meu ingresso no sodalício. (Faço-o, escusava dizê-lo,
sob o regime de estrita e sincera confissão).
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Em primeiro lugar, cedi àquela força irresistível que a todos


impele e exorta, de contínuo, a acrescentar os cabedais de espírito,
isto é, a paixão do saber inerente à condição humana. Dados à lição
da História, sabeis que o célebre Catão (o Antigo), rastejando
embora pelos 80 anos, determinou consigo aprender a língua
grega, para comprazer-se de ler no original a Ilíada e a Odisseia
de Homero (1).

E não admira deitasse a barra tão longe, se atentarmos


naquilo de Rafael Bluteau, glória das letras portuguesas:

“Neste mundo, a maior bem-aventurança do homem, abaixo da graça


de Deus, é o saber, porque saber é conhecer a verdade, e neste conhecimento se
cifra a bem-aventurança da criatura intelectual” (2).

O outro móvel que sói atrair os profanos para os círculos das


entidades culturais é o raro prazer da convivência com pessoas que,
por mui particulares e invejáveis atributos, estão muito acima da
craveira comum.

Quem, falando lisa e francamente, não disputaria a honra de


pertencer a uma confraria onde pudesse privar do convívio de
sujeitos que se abalizaram nas ciências, letras e virtudes?!

Haverá nada mais edificante e aprazível do que praticar com


os integrantes de uma assembleia de doutos?!

Estou que não!

Figurai-vos, por um momento, meus amigos, entre os


membros desta academia… Que é o que veríeis? Grãos expoentes
das ciências e das letras, a uns — versados nas ciências médicas —
ouviríeis que o homem (que Alexis Carrel apelidava de grande
desconhecido) devia confirmar-se numa certeza: “A Humanidade jamais

(1) Cf. Plutarco, Vidas dos Homens Ilustres, t. III, p. 390; Editora das Américas; São
Paulo.

(2) Prosas Portuguesas, 1726, 1a. Parte, p. 172; Lisboa.


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ganhou nada pelo esforço da multidão. É a paixão de alguns indivíduos, a


chama da sua inteligência, o seu ideal de ciência, de caridade e de beleza que a
fazem progredir” (3).

Entre os membros desta egrégia corporação encontraríeis


ainda quem, tomando a palavra ao eloquente Cícero, repetisse, com
enlevo, que a História é a testemunha dos tempos, a luz da verdade, a vida
da memória, a mestra da vida e a mensageira da antiguidade (4).

Na esfera da Ciência Política e da Arte Literária também


haveríeis de identificar, nessa alegoria de notáveis, alguns que, sob a
inspiração do excelso Rui, verberassem:

“De tanto ver triunfar as nulidades,


de tanto ver prosperar a desonra,
de tanto ver crescer a injustiça,
de tanto ver agigantarem-se
os poderes nas mãos dos maus,
o homem chega a desanimar da virtude,
a rir-se da honra,
a ter vergonha de ser honesto” (5).

À derradeira, não era improvável que, numa tertúlia tão


comum aos cenáculos acadêmicos, um dos presentes ostentasse
insígnias do Direito e da Justiça: a Lei das XII Tábuas, a balança e o
gládio. E que, particularizando mais a hipótese, esse ente de razão
pertencente à linhagem dos penalistas acertasse de declamar, com
estilo próprio:

(3) Alexis Carrel, O Homem, esse Desconhecido, p. 163; trad. Adolfo Casais
Monteiro; Porto).

(4) “Historia vero testis temporum, lux veritatis, vita memoriae, magistra vitae, nuntia
vetustatis” (Cicero, De Oratore, lib. 9, 36).

(5) Rui Barbosa, Obras Completas, vol. XLI, t. III, p. 86.


16

“Quando grosseiramente inverossímil, a defesa do réu é mais um


indício de sua culpabilidade” (6).

Ou então:

“A pena traduz, primacialmente, um princípio humano por excelência,


que é o da justa recompensa: cada um deve ter o que merece” (7).

Acabava de recordar a alta doutrina daquele que, segundo o


voto de autores de grande suposição, passa pelo maior penalista
brasileiro: Nélson Hungria, a quem escolhi por patrono de minha
investidura acadêmica.

Assaz conhecidos são os títulos que o credenciaram a


conspícuo lugar no panteão dos luminares do Direito.

(6) Nélson Hungria, in Jurisprudência, vol. 13, p. 236.

(7) Idem, Novas Questões Jurídico-Penais, 1945, p. 131; Rio de Janeiro.


17

II. Biograa do Patrono

Esse, que a comunidade jurídica reverencia e exalta sob o


epíteto de “O Pontífice Máximo de nosso Direito Penal”(8), nasceu no dia
16 de maio de 1891, na cidade de Além Paraíba, em Minas Gerais(9).

Renunciando ao patronímico “Hoffbauer”, de seus maiores,


adotou o nome vocatório ou regimental de “Nélson Hungria”.

Apenas colou grau de bacharel em direito, foi nomeado, em


1909, aos 19 anos de sua idade, Promotor Público de Rio Pomba
(MG), cargo que exerceu por 11 anos. A seguir, passou a Belo
Horizonte; aí, enquanto se desempenhava do ofício de Redator

(8) Mário Hoeppner Dutra, Perfis, 1981, p. 88; São Paulo.

(9) É a notícia que traz, em verbete próprio, a Enciclopédia Larousse Cultural (1988,
p. 390; Editora Universo). Mas, à semelhança de Homero, a quem sete cidades
disputaram a honra de ter-lhe sido o berço, reina viva controvérsia a respeito
do lugar onde Nélson Hungria viu a primeira luz: querem uns que é natural de
Rio Pomba, cidade de Minas Gerais (cf. Revista de Direito Penal, 1971, nº 1, p. 89);
outros, de Angustura (MG), como se lê na resenha biográfica estampada no
vol. I, t. I, p. 10, dos Comentários ao Código Penal (6a. ed.; Editora Forense);
à derradeira, a pormos fé na asserção de Hoeppner Dutra, seria o local de seu
nascimento “uma fazenda perdida nos confins da Zona da Mata” (op. cit., p. 81).

Foi o douto Desembargador Benedito Silvério Ribeiro, no entanto, o que


parece deu com a verdade histórica, ao afiançar, em excelente ensaio biográfico
sobre Vultos do Poder Judiciário (2016, p. 28), que “Nelson Hungria Hoffbauer nasceu
na Fazenda Solidão, de seus avós maternos, em Angustura, distrito do município de Além
Paraíba, Zona da Mata, Minas Gerais, em 16 de maio de 1891”.
18

de Debates da Câmara Legislativa, dedicava-se ao árduo múnus


da Advocacia. Veio, depois, para o Rio de Janeiro, antigo Distrito
Federal, onde exerceu, por nomeação, as funções de Delegado
de Polícia até o ano de 1922. Em 1924, aprovado em concurso
no qual conquistou o primeiro lugar, ingressou na Magistratura,
tocando-lhe a 8a. Pretoria Criminal. Foi então provido no cargo
de Juiz de Direito das Varas de Órfãos e da Fazenda Nacional.
Nomeado Desembargador do Tribunal de Justiça do ex-Distrito
Federal em 1944, foi, por fim, em 1951, exaltado ao cargo de
Ministro do Supremo Tribunal Federal, por decreto do Presidente
Getúlio Vargas.

Regeu ainda a cadeira de Direito Penal na Faculdade Nacional


de Direito.

Foi coautor e principal elaborador do Código Penal de 1940,


cuja Exposição de Motivos escreveu, posto que a assinasse o Ministro
da Justiça Francisco Campos (cognominado “Chico Ciência”).
Afirmou-o quem estava em condições de poder informá-lo, porque
seu mais leal discípulo e amigo: Heleno Cláudio Fragoso (10).

Reputam-no os críticos o mais autorizado exegeta da Lei


Penal, e os Comentários do Código Penal (sua obra-prima) um soberbo
monumento de saber profundo e vasta erudição, que nenhum
criminalista desconhece; para aqueles que ainda o não possuem
cabe a recomendação de Cujácio a respeito de Paulo de Castro,

(10) Cf. Revista de Direito Penal, 1971, nº 1, p. 90. Tal opinião se apadrinha
outrossim com a autoridade de Evandro Lins e Silva, ministro do Supremo
Tribunal Federal, “in verbis”: “Aqui cabe uma revelação que me parece altamente
significativa para a própria história jurídica do País. A Exposição de Motivos do Código
Penal de 1940, assinada pelo ministro Francisco Campos, é de autoria de Nélson Hungria”.
“De sua autoria, também, é a Exposição de Motivos do Código de Processo Penal de 1941,
subscrita pelo ministro Francisco Campos” (Arca de Guardados, 1995, pp. 95-96;
Editora Civilização Brasileira; Rio de Janeiro).
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jurista português: Quem o não tivesse, vendesse a camisa para


comprá-lo (11).

Saíram também de sua pena bem aparada as seguintes obras:


Fraude Penal (1934), Legítima Defesa Putativa, Questões Jurídico-Penais
(1940), Novas Questões Jurídico-Penais (1945), Dos Crimes contra a
Economia Popular, Crimes em Espécie, além de artigos (perto de uma
centena) publicados em revistas especializadas.

Representou o Brasil, em 1940, no Segundo Congresso de


Criminologia, no Chile.

Aposentado compulsoriamente (em 1961, que entrara na


casa aritmética dos 70 anos), inscreveu-se na respectiva seção da
Ordem e reencetou sua banca de advogado. Na gloriosa milícia de
Justiniano continuou a despender, qual luz intelectual de seu tempo,
inestimáveis tesouros de ciência jurídica, até que o veio buscar a
morte, em 26 de março de 1969.

(11) “Qui non habet Paulum de Castro tunicam vendat et emat” (apud Francisco de
Pennaforte Mendes de Almeida, Engastes em Ouro, p. 52).
20

III. Formação intelectual de Nélson Hungria

Aliava dois predicados, que dificilmente concorrem num


só indivíduo: consumado jurista e escritor exímio. Afora o
grande Rui, que, por universal consenso, arrebatou a palma de
o maior jurisconsulto e primaz entre os escritores brasileiros (12), e o
Conselheiro Lafaiete (13), a quem os júris acadêmicos atribuíram
o lisonjeiro epíteto de “mestre das definições perfeitas”, poucos houve,
na área do conhecimento humano, em especial no âmbito jurídico-
-penal, que puderam rivalizar com este doutíssimo varão que dava
pelo nome de Nélson Hungria.

Precocemente acordou em seu espírito a vocação para o


estudo: aos dezesseis anos recebia a láurea de bacharel em direito e
era despachado promotor público para a comarca de Rio Pomba
(MG), onde por nove anos cumpriu à risca e animosamente
as atribuições de seu cargo. Sem prejuízo dos graves deveres
funcionais, antes no intento de melhor desempenhá-los, achou
de aprender (sem descurar do cultivo aturado da formosa
língua portuguesa) alguns idiomas estrangeiros. Autores de boa
nota afiançam que, nesse trato de tempo, aprendeu de raiz seis
línguas (14), nas quais se exprimia com exação e elegância.

(12) Cf. Laudelino Freire, Clássicos Brasileiros, 1923, vol. I, p. 261.

(13) Cf. Rui, Réplica, nº 25.

(14) Cf. Pedro Paulo Filho, Grandes Advogados, Grandes Julgamentos, 4a. ed., p. 489;
Editora JHMizuno, Leme (SP).
21

Da leitura de suas obras extrai-se, realmente, que não era


hóspede em francês, italiano, espanhol, alemão, inglês e latim,
idiomas que possuía em grau assinalado.

Foi, porém, à “última flor do Lácio” que consagrou culto mais


acendrado, intenso e amoroso.

Os votos memoráveis que proferiu no Excelso Pretório e os


livros com que aumentou os quilates à república das letras jurídicas
descobrem-lhe a inteligência peregrina, os primores da linguagem
padrão, a marca do escritor de força, as galas do estilo e, sobretudo,
a invulgar ciência do Direito Penal.
22

IV. Lugares seletos de seus livros

“O melhor retrato de cada um é aquilo que escreve”, pregou o genial


Antônio Vieira (15).

Cai a propósito, por isso, trasladar aqui alguns relanços da


extensa obra de Nélson Hungria, por onde se avaliarão, ao justo, os
raros dotes de espírito daquele que, nas províncias do Direito, é
chamado por antonomásia “O Penalista”.

Em sua fraseologia jurídica avultava o consórcio perfeito da


ideia original com o rigor da fórmula escrita, sob o fino lavor da arte
literária.

No introito do capítulo sobre os crimes contra a vida discursou


desta guisa:

“O homicídio é o tipo central dos crimes contra a vida e é o ponto


culminante na orografia dos crimes. É o crime por excelência. É o padrão da
delinquência violenta ou sanguinária, que representa como que uma reversão
atávica às eras primevas, em que a luta pela vida, presumivelmente, se operava
com o uso normal dos meios brutais e animalescos. É a mais chocante violação
do senso moral médio da humanidade civilizada” (16).

(15) Sermões, 1959, t. VII, p. 435.

(16) Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, 1981, vol. V, p. 25; Editora
Forense.
23

Quanto à prova para condenação, sobretudo por homicídio,


advertiu:

“A verossimilhança, por maior que seja, não é jamais a verdade ou a


certeza, e somente esta autoriza uma sentença condenatória. Condenar um
possível delinquente é condenar um possível inocente” (17).

Não obstante sempre tivesse em muito o sagrado direito de


defesa, observou, “ad cautelam”:

“Quando grosseiramente inverossímil, a defesa do réu é mais um


indício de sua culpabilidade” (18).

Ao ferir o tema da pena, externou estes conceitos:

a) “A pena é força de reserva na defesa da ordem jurídica” (19).

b) “Suprima-se a pena (quod Deus avertat) e o crime seria talvez a lei


da maioria” (20).

c) A pena “traduz primacialmente um princípio humano por


excelência, que é o da justa recompensa: cada um deve ter o que merece” (21).

d) “A lição, a experiência dos acontecimentos do mundo atual me


levaram a uma revisão de meu pensamento, para renegar, para repudiar, de
uma vez para sempre, a pena-castigo, a pena-retribuição, que de nada vale e é
de resultado ineficaz. A pena-retributiva jamais corrigiu alguém” (22).

Nisto de crimes contra a honra, pontificou:

(17) Idem, ibidem, p. 65.

(18) Idem, in Jurisprudência, vol. 13, p. 236.

(19) Idem, Comentários ao Código Penal, 1980, vol. VII, p. 182.

(20) Idem, ibidem, 1958, vol. I, t. II, p. 195.

(21) Idem, Novas Questões Jurídico-Penais, p. 131.

(22) Idem, Comentários ao Código Penal, 1980, vol. I, t. I, p. 14.


24

“Nenhuma contemplação merecem aqueles que, por ódio, despeito,


rivalidade ou áspero prazer do mal, se fazem salteadores da honra alheia” (23).

Como quem preza e cultua a verdade, não se abstinha nunca


de manifestar opinião sobre assuntos ainda os mais controversos e
delicados, se era o ensejo propício para deitar raio de luz ao âmago
da questão e prevenir as consciências.

Assim, num lugar de seu acatado magistério, escreveu acerca


do terrível problema da eutanásia, estas palavras dignas de bronze:

“O homem, ainda que irremediavelmente acuado pela dor ou minado


por um mal físico, não é precisamente a rês estropiada, que o campeiro abate.
Repugna à razão e à consciência humanas que se possa confundir com a
prática deliberada de um homicídio o nobre sentimento de solidariedade e
abnegação que manda acudir os enfermos e desgraçados”.

E, passos avante, num rapto de justa ira:

“Defender a eutanásia é, sem mais nem menos, fazer apologia de um


(24)
crime” .

Seu estilo, ou cunho especial de escrever, era, pelo comum,


solene, severo e levantado. Nunca lhe esquecia empregar, de
preferência, o termo próprio e mais ajustado à lição do Direito
Penal. No intento de comunicar à expressão verbal o selo do decoro
naqueles casos em que o exigia o licencioso do objeto ou melindre
da matéria, apelava para a voz latina, em ordem a não profanar os
olhos castos. Assim, embora soubesse que “não há palavra má, se a
puserem em seu lugar” — conforme aquilo de um autor de prol(25) —,
contudo, por amor da honestidade, suavizava o texto e calçava o
coturno, elevando o estilo, máxime no título dos crimes contra os
costumes.

(23) Idem, ibidem, 1980, vol. VI, p. 43.

(24) Idem, ibidem, 1981, vol. V, pp. 128 e 131.

(25) Rafael Bluteau, Vocabulário, Suplemento, 1728, vol. II, p. 17.


25

Ao versar, “verbi gratia”, o homicídio passional por adultério —


em que o marido, por funestas contingências, fora cooptado pela
famigerada confraria de São Cornélio —, o emérito jurista redigia
desta sorte:

“Em face do novo Código, os uxoricidas passionais não terão favor


algum, salvo quando pratiquem o crime em exaltação emocional, ante a
evidência da infidelidade da esposa. O marido que surpreende a mulher e o
tertius em flagrante ou in ipsis rebus venereis (quer solus cum sola in eodem
lecto, quer solus cum sola in solitudine”) e, num desvario de cólera, elimina
a vida de um ou de outro, ou de ambos, pode, sem dúvida, invocar o § 1º do
art. 121; mas aquele que, por simples ciúme ou meras suspeitas, repete o gesto
bárbaro e estúpido de Otelo, tem de sofrer a pena inteira dos homicidas
vulgares” (26).

Até aqui, breve amostra do estilo jurídico alto, escorreito e


incisivo do preeminente Jurista.

Não lhe era estranho, porém, o linguajar pedestre, e ainda


incivil e tosco, se podiam favorecer a clareza do ensino doutrinário.

Vem a lanço referir a anedota que ilustra o tipo penal da


conjunção carnal violenta ou estupro. Ao pé da página 113 do
volume VIII de seus eruditos Comentários lê-se o que entro a narrar,
alcançada antes a vênia do polido auditório ou do pio leitor:

“Conta-se de um juiz que, ao ouvir de uma pseudoestuprada que o


acusado, para conter-lhe os movimentos de defesa, se servira, durante todo o
tempo, de ambas as mãos, indagou: Mas quem foi que conduziu o ceguinho?
E a queixosa não soube como responder…” (27).

Não desdenhava a graça nem os lances agudos; recorria


amiúde aos tropos de linguagem e às frases de espírito.

(26) Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, 1981, vol. V, pp. 162-163.

(27) Idem, ibidem, 1981, vol. VIII, p. 113.


26

Na exposição da matéria sobre o crime de estelionato, ocupa-se


primeiro da fraude, seu traço mais relevante, exprimindo-se por
este feitio:

“Fraude é o mimetismo dissimulado do camaleão (de cujo nome latino


stellio derivou, precisamente, o vocábulo estelionato), a ardilosa mise-en-scène
da aranha na caça aos insetos, o comodismo solerte do cuco, que deposita os
próprios ovos, para a incubação, nos ninhos de outros pássaros” (28).

Ao explanar o delito de sedução (art. 217 do Código Penal), que o


espírito do tempo induziu à revogação — o que se operou também
no tocante ao adultério (art. 240) —, o preclaro Jurista, apurando o
estilo, pôs em escritura:

“A respeito da promessa de casamento (como meio de sedução) há um


velho ensinamento no sentido de sua irrelevância, quando feita aestuante
libidine. O princípio, porém, não deve ser aceito incondicionalmente. Sem
dúvida, considerada isoladamente, não pode ter valia, por evidentemente
insincera, a promessa feita no momento erótico, com a voz empastada da
libido estuante, pois, em tal caso, o agente promete um anel de casamento
como prometeria, se fosse pedido, o anel de… Saturno” (29).

Os ditos espirituosos afluíam abundantes de seus escritos.


Cito-vos este exemplo: não se descomedia imputando a nota de feias
às mulheres que o fossem; para designá-las afiava o epigrama: eram
“um interdito proibitório contra a luxúria” (30).

Entendem alguns que não levava a bem a instituição do Júri,


pois que a ele se referia com patente acrimônia. Ao invés de
Magarinos Torres — que disse: “O júri é a melhor forma de justiça que
eu conheço” (31) —, tachava-o Nélson Hungria de “apêndice infeccioso

(28) Idem, ibidem, 1980, vol. VII, p. 167.

(29) Idem, ibidem, 1981, vol. VIII, p. 164.

(30) Cf. Revista Forense, vol. 166, p. 10.

(31) Apud Evandro Lins e Silva, A Defesa Tem a Palavra, 1980, p. 237.
27

da justiça” (32) e, sobre isto, “osso de megatério”: “(…) o famigerado


Tribunal, osso de megatério que persiste em ligar repressão penal e regime
democrático, redundou, pela incompetência e frouxidão, em fator indireto
de criminalidade” (33).

Para gáudio, entretanto, dos advogados que atuam à barra do


Tribunal do Júri, a antipatia que lhe votava o provecto Mestre como
que ultimamente se aplacara e remitira. É o que revela a carta-
-prefácio, publicada no pórtico do livro de Carlos de Araújo Lima
(Os Grandes Processos do Júri, 1955, vol. II): “Sinto-me tão envaidecido com
isso que quase chego a me reconciliar com o tribunal do povo…”.

Sua vida pública não foi estreme de ingratas surpresas; uma


está relacionada com sua candidatura a deputado, em Minas Gerais.
No dia da eleição, prestes a encerrar-se a votação, eis que chegam
dois eleitores, seus conterrâneos, provenientes dos remotos grotões
das Alterosas… Tão seguro estava Hungria da vitória no pleito, que
lhes falou com brandura e sem rebuço: “Vocês nem precisam votar. Já
ganhei disparado. Vamos tomar uma cerveja”. (Por essa época não era
obrigatório o voto, nem imperava a lei seca, adversária inflexível
dos devotos de Baco!).

Após o escrutínio e já apurados os sufrágios, verificou-se,


para espanto geral, que o promissor candidato “havia perdido as
eleições pela diferença de um voto. Nunca mais quis saber de política” (34).

(32) Cf. Revista Forense, vol. 166, p. 12.

(33) Apud Pedro Paulo Filho, Grandes Advogados, Grandes Julgamentos, 4a. ed.,
p. 30; Editora JHMizuno; Leme/SP.

(34) Pedro Paulo Filho, op. cit., p. 488.


28

Foi assim que mofino incidente de urna — ou o acaso,


que alguém já chamou de “pseudônimo da Providência” (35) —, deparou
à Ciência Penal, ameaçada de perder para a grei política seu mais
auspicioso baluarte, aquele que lhe haveria edificar o mais suntuoso
e perene monumento de glória!

(35) Cf. Francisco de Paula Ferreira de Rezende, O Julgamento de Pilatos, p. 14.


29

V. Formação jurídico-penal do Mestre

À ciência que o havia de empinar à culminância de Oráculo


do Direito Penal consagrou Nélson Hungria, desde a juventude, a
máxima parte de sua vida.

Dedicou-lhe, sem reserva, horas intermináveis de solitário


estudo e forrageou nos mais reputados livros de doutrina de que se
ufana a literatura jurídica universal. Nenhum autor clássico de
Direito Penal lhe foi estranho, que todos conversou com mão
diurna e noturna. Logrou, destarte, amealhar copiosíssimo cabedal
científico e informativo, com que pôde enriquecer e consolidar, em
sumo grau, seu vasto saber especializado. Arrolou as Escolas Penais,
perscrutou-lhes as bases e princípios, encareceu o que nelas havia
de certo e judicioso, emendou e corrigiu os defeitos que ostentavam
e, com feliz intuição e clarividência, proferiu solene veredicto, no
qual assentou, com rigor de lógica jurídica e dialética poderosa,
aquela que, a seu aviso, respondia deveras ao objeto último da
Ciência Penal.

Assim, detendo-se na Escola Clássica ou Tradicional (Cesare


Beccaria, Carmignani e Carrara), advertiu que “o postulado da
responsabilidade moral”, fundado “no pressuposto do livre arbítrio e na sua
ideia abstrata de justiça”, deixava “fora do direito penal grande número de
delinquentes, precisamente os mais perigosos (os anormais)” (36).

(36) Nélson Hungria, Questões Jurídico-Penais, 1940, p. 155; Livraria Jacintho


Editora; Rio de Janeiro.
30

Pelo que respeita à Escola Positiva, que entre seus corifeus


conta Enrico Ferri, Lombroso e Garófalo, ponderou que, “com a sua
fórmula de responsabilidade legal, aliada ao critério da temibilidade, atende
muito mais eficazmente ao colimado objetivo da defesa social, legitimando não
só a amplitude da órbita da repressão como a multivariedade da prevenção” (37).

Muito a seu pesar, no entanto, chasqueou:

“As escolas penais não passam, afinal de contas, de inócuas vaidades


lítero-científicas” (38).

Tomando sobre si o encargo de patentear o caráter distintivo


da Ciência Penal, enunciou:

“A ciência penal parte de premissas certas, que são as normas jurídicas,


para chegar, logicamente, a conclusões certas. Não comporta escolas, uma vez
que não pode haver diversidade de métodos na interpretação e aplicação das
regras ditadas pela vontade soberana do Estado. Seu único método possível é o
dedutivo, o lógico-abstrato, o técnico-jurídico” (39).

Fechando a abóbada de seu valente arrazoado, emitiu a


declaração:

“O tecnicismo jurídico não é uma tendência do direito penal: é a


condição sine qua non da realidade de uma ciência jurídico-penal. Só ele pôde
imprimir ao direito penal a admirável unidade, harmonia e coesão com que se
apresenta na atualidade”.

Numa palavra, não se deve ocupar a ciência do direito senão


de “definições, catalogações e sistematização de conceitos latentes no corpo
das leis que se propõem o combate à delinquência. É a dogmática jurídico-
-penal” (40).

(37) Idem, ibidem, p. 155.

(38) Idem, ibidem, p. 61.

(39) Idem, ibidem, p. 58.

(40) Idem, ibidem, p. 59.


31

VI. Polemista de primeira plana

A par da intensa atividade intelectual, que lhe imprimia na


figura austera admirável relevo, imperavam em Nélson Hungria
duas forças incoercíveis, que nunca se atrofiaram nem conheceram
desmaios: uma, sua permanente disposição de luta pelas ideias que
reputava próprias de varão esclarecido, justo e sensato; outra, o
horror visceral a todo tipo de fraude ou tibieza de caráter.

Nos debates judiciais que se feriam entre os ministros da


Suprema Corte de Justiça, durante os julgamentos dos processos,
mostra-se bem a presença do consumado dialeta e implacável
argumentador: sua linguagem, conquanto ajustada à praxe forense,
era veemente e aniquiladora; brotavam-lhe dos lábios as palavras
com a vibração dos estouros das catadupas, prodígio que somente
se opera com as individualidades privilegiadas e os espíritos de
eleição, pois pressupõem talento oratório e domínio absoluto do
assunto.

Da intrepidez com que defendia suas opiniões discorre


estrênuo cronista:

“(…) apaixonava-se pelos temas e, então, ia a todas as consequências,


num tom de valente brigador” (41).

(41) Hugo Mósca, op. cit., p. 28.


32

A bravura com que se empenhava no debate da lide “sub


judice” é constante em suas intervenções, como se extrai deste
relanço:

“(...) persisto no meu ângulo de vista e por ele batalharei enquanto me


restarem forças, todas as vezes que por aqui aparecerem casos idênticos” (42).

A acerada polêmica judicial, que a propósito do crime de


receptação entreteve com o Desembargador José Duarte, do antigo
Tribunal de Apelação do Distrito Federal, pode constar sem falta em
antologia como um dos melhores textos de disputas jurídicas e
críticas literárias que ainda vieram a público. Tudo nela conspira a
esse título honroso: a força do argumento, a excelência da doutrina,
a relevância do assunto, a riqueza do saber, a boa exação e apuro da
linguagem, a elegância do estilo, a estudada urbanidade, em suma,
os atributos intelectuais que são a pedra de toque do polemista
exímio, da progênie de Rui, Laet, Herculano e Camilo.

Em prova desta verdade, trarei à colação alguns lugares da


controvérsia que Nélson Hungria sustentou a pé firme com aquele
seu colega e amigo, extraídos da obra, nunca assaz louvada,
Comentários ao Código Penal (1980, vol. VII, pp. 307-318), imperecível
arca de tesouros jurídicos e literários:

“Dissentiu do meu voto, porém, o Desembargador José Duarte, que é,


sem favor algum, um dos mais destros penalistas pátrios, e, na sua dissidência,
chegou a pôr em dúvida o meu testemunho acerca do apontado erro.
Abespinhei-me e dei-lhe a seguinte réplica, que se ressente de certa exaltação,
mas sem o mais remoto intuito de negar o alto mérito do meu contendor”
(p. 307).

E logo abaixo:

“Seja-me lícito ponderar que a deslealdade do meu preclaro colega foi


tanto mais censurável quanto ele achou de impugnar o testemunho que eu
prestara a respeito de um erro de cópia na redação do art. 180 do Cód. Penal

(42) In Revista Forense, vol. 139, p. 345.


33

(de cuja elaboração fui minima pars) e me alfinetou com a sua ironia,
asseverando que, a crer-se no apontado erro, o copista fora, sem o pressentir,
mais sábio que o legislador. Não é positivamente louvável que um juiz de
tribunal colegial evite debate facie ad faciem, para ulteriormente, na solidão
do gabinete, desafogando-se sobre a passividade do papel, emitir conceitos
desamáveis aos companheiros de quem discorda”.

Na mesma página escreveu ainda:

“Deixemos, porém, de lado a deselegância (tão de estranhar da parte de


quem sempre encontrei airoso cavalheiro) e vamos ao voto vencido, onde há
muito que respigar. Usarei nesta minha réplica o mesmo sistema do meu caro
colega: amigos, amigos, direito penal à parte. Não é fácil tarefa deslindar os
pontos de chegada do Sr. José Duarte. Dispondo de vasto cabedal de leituras,
tem ele o prazer das digressões e das citações eruditas, inteiramente esquecido
da austera singeleza de que deve revestir-se a literatura dos arestos. A cada
passo, perde de vista os temas nucleares, para discorrer de omni re scibili et
quibusdam aliis. Dir-se-ia que ainda não se libertou da mania dos juízes
noviços, que, condoídos da pressuposta ignorância alheia e ávidos de renome,
entendem de bordar suas sentenças com difusas lições doutrinárias, em sete
línguas diferentes” (p. 308).

Por último, este passo do brioso esgrimista da palavra:

“É interessante como o aferro a um ponto de vista unilateral leva um


espírito lúcido, como o do Sr. José Duarte, a descaídas tão chocantes” (p. 317).

Essa vivaz disposição de ânimo, que avaliada por miserável


estalão poderia confundir-se com teimosia de espírito, não era
outra coisa que expressão típica de sentimento de justiça, apanágio
primordial do paladino do Direito.
34

VII. A rica personalidade do excelso Jurista

Filiado à escola da sã doutrina e da preeminência do Direito,


deu Nélson Hungria provas plenas e inconfutáveis de amor à
Justiça, e de intransigência com o arbítrio. Na defesa tenaz dos
direitos e garantias do homem punha sempre a mira de sua atuação.
Não desconhecia, por certo, a enérgica exortação de Rui
tocantemente ao assunto: “Não há sofrimento mais confrangente que o
da privação da justiça” (43).

Foi assim que, de moto próprio, com seu nome aureolado,


patrocinou causa de foro internacional: levantou a voz a favor de
Caryl Chessman, de alcunha Bandido da Luz Vermelha, condenado à
pena capital em câmara de gás mortífero no estado norteamericano
da Califórnia, sob a acusação de rapto e estupro de duas jovens.

Em memorável conferência que pronunciou nesta Capital, no


Centro Acadêmico XI de Agosto, em maio de 1959, afirmou:

“Para erradicar o mal, não é preciso erradicar o homem. O que cumpre


fazer não é matar o homem criminoso, mas o criminoso no homem. A
criminalidade não se extingue ou declina com a pena de morte. Ao invés de
irrogar-se arbitrariamente o direito de matar, ao Estado incumbe promover a
remodelação da própria sociedade, para que se apresentem melhores condições

(43) Obras Completas, vol. XL, t. VI, p. 202.


35

políticas, econômicas e éticas, eliminadoras das causas etiológicas do


crime” (44).

O brado enfático a prol da humanização do Direito Penal —


que nisto se resumiu a cruzada pela revisão do processo de
Chessman, réu de morte, para que lhe fosse comutada a pena —
interpreta-se por grandeza de alma de quem sempre anteviu
a majestade da Justiça na boa aplicação da Lei às relações da vida
em sociedade. Assim como Rui — que, em páginas eloquentes
verberou a ignomínia do processo do “Capitão Dreyfus” (45) —,
lembrou a Nélson Hungria, estribado em razões de peso e tomo,
lançar pregão de repúdio à execução capital, pela considerar
inconciliável com os nobres sentimentos em que se extremam os
povos civilizados.

O seu toque de rebate pela abolição da pena de morte não foi,


certamente, baldia mensagem às pedras do deserto, mas oportuno e
autorizado protesto lavrado à face dos grandes do mundo, para que
extirpassem de suas legislações “esse resíduo de barbaria incompatível
com o mais elementar espírito de solidariedade humana” (46).

Além dos predicados de inteligência, rigidez de caráter e


largueza de alma, dominava Nélson Hungria uma invulgar paixão
pela Magistratura, à qual serviu sempre com incontestável
fidelidade.

Com indescritível surpresa e mágoa, por isso, receberam os


seus amigos e admiradores perturbadora notícia, que lhe arguia
desprimores no exercício do grave ministério.

(44) Cf. René Ariel Dotti, in Grandes Juristas Brasileiros, 2003, p. 234; Editora
Martins Fontes; São Paulo.

(45) Cf. Cartas de Inglaterra, 1929, pp. 133-157; Livraria Acadêmica; São Paulo.

(46) Nélson Hungria, in Revista Brasileira de Criminologia e Direito Penal, 1967,


nº 17, p. 20.
36

Foi o caso que, segundo conhecido literato, o conspícuo


Magistrado, por lassidão, pusilanimidade ou coação (moral, ao
menos), ter-se-ia omitido em ato de seu ofício, para satisfazer a
interesse do jornalista Assis Chateaubriand.

Juiz de Direito da 4a. Vara de Órfãos e Sucessões do Rio de


Janeiro, Nélson Hungria — de acordo com o libelo infamante —
reformara, por mera condescendência, decisão proferida nos autos
da ação de destituição de pátrio poder que o citado jornalista e
empresário intentara contra a mãe de sua filha (47).

As razões que fundamentaram a decisão — que o olhar


penetrante do biógrafo quis tratar à má parte — mostram-se, ao
aviso, jurídicas e convincentes. Transcrevo-as, ao pé da página, por
seu inteiro teor literal, como se leem na causticante biografia do
instituidor da Ordem do Jagunço (48).

Vem a ponto notar que, nas questões de família deduzidas


perante a Justiça, quando concorrem interesses de menores — “verbi
gratia”, guarda dos filhos —, a estes em especial haverá de cobrir a
toga do magistrado, que saberá antepô-los à mera vontade dos pais,
a qual muita vez assume o relevo de capricho ou vaidade pessoal.

(47) Fernando Morais, Chatô, o Rei do Brasil, 1994, pp. 387-389; Editora
Schwancz Ltda.; São Paulo.

(48) “Tendo ouvido, juntamente com o doutor curador de órfãos, a menor Teresa, e
verificando a igualdade de seu intenso apego quer à mãe, quer ao pai, resolvi que a mesma
não deve ser submetida ao imerecido castigo de se ver privada por longo tempo da presença
de qualquer de seus pais. Tomei, por isso, a deliberação de que fique hospedada em minha
própria casa, onde poderá ser visitada, diariamente, na parte da manhã, pela mãe e, na parte
da tarde, pelo pai. Creio que assim fica assegurado o interesse da menor, enquanto este Juízo
não profira sua decisão definitiva. Intime-se. Nelson Hungria Hoffbauer, Juiz de Direito da
4a. Vara de Órfãos e Sucessões” (apud Fernando Morais, op. cit., p. 389).
37

É neste critério que se esforça o instituto (49).

Aquela que proferiu Nélson Hungria, sobre ter sido, porque


assim o diga, uma decisão salomônica, representou, no particular,
solução “extrema ratio”, ou prática da virtude em grau heroico. É que,
pondo o fito na salvaguarda dos direitos e interesses de uma
criança, não trepidou em determinar com inusitada veemência:
“fique hospedada em minha própria casa”.

O juiz da causa — e isto se aprende à porta do fórum —


presta sua jurisdição conforme a prova do processo. Os elementos
de convicção, que o estudo dos autos lhe patenteia, são os que o
credenciam a julgá-la segundo o melhor padrão.

Não resisto ao prazer (ia dizendo encanto) de trasladar para


aqui este pedacinho de ouro incrustado numa obra de Hélio
Tornaghi:

“Na verdade, os homens dependem mais da justiça que da lei, muito


mais do juiz que do legislador. É utilíssimo para um povo ter boas leis; mas é
melhor ainda ter bons juízes. O bom juiz resiste às leis manifestamente
iníquas, corrige as imperfeitas, dá polimento e vida às excelentes e põe em
prática a norma que se aproxima do ideal. E, sem arranhar as garantias do
jurisdicionado, encontra meios de fazer justiça” (50).

Ora, como é a prova a luz que esclarece o espírito do julgador


na solução do litígio, e tendo consideração a que a espécie dos
autos constituía verdadeira “vexata quaestio”, ou questão muito
controvertida e tormentosa, não estranha proferisse o circunspecto
Juiz, com sabedoria e audácia, insólita decisão, averbada não
obstante de parcial pelo crítico implacável.

(49) Pertinente ao caso que se ventila, cito ementa jurisprudencial que reflete a
inteligência dominante nos pretórios da Justiça a respeito da guarda de filho:
“Nas questões referentes a menores, o que se deve ter em vista é exclusivamente o interesse
deles, para o que a lei confere ao juiz arbítrio ilimitado, permitindo-lhe estabelecer o que
julgar acertado em benefício dos interessados” (Rev. Forense, vol. 189, p. 215).

(50) Curso de Processo Penal, 1980, vol. I, p. XII; Editora Saraiva; São Paulo.
38

A divulgação do episódio nas páginas do livro biográfico


meteu em perplexidade e inquietação numerosos expoentes do
vasto circuito forense. Passando em silêncio outros muitos, por não
estirar demasiado as raias deste discurso, invoco o testemunho de
Walter Ceneviva, respeitado jurista e escritor prestigioso.

Na seção Letras Jurídicas, em que a preceito e discretamente


se ocupara do caso numa folha desta Capital, revelou ter-lhe
sido (e para um sem-número de pessoas) motivo de surpresa
e desapontamento “ver o nome de Hungria ligado ao de Assis
Chateaubriand, num episódio marcado por muitas dúvidas éticas” (51).

Logo mais abaixo, acrescentou o esmerado articulista:

“Nélson Hungria está na história do direito brasileiro como uma de


suas figuras exponenciais. Por seu lado, o trabalho de Fernando Morais é
daqueles cuja seriedade tem de ser respeitada e aplaudida” (ibid.).

Mas, porque o silêncio fala a favor dos mortos — que por si já


se não podem defender —, reconheçamos a Nélson Hungria ao
menos o benefício da dúvida: suspendamos, em nome da notória
falibilidade dos juízos humanos, o golpe que lhe desferiu o
inexorável censor.

Será ato de prudência em matéria difícil, em que tivera parte


uma de nossas mais primorosas organizações mentais, verdadeira
luz intelectual do País.

Se tão grande, contudo, for nossa desgraça que o Tribunal


da Crítica rejeite os embargos opostos à sentença do laureado
biógrafo, então é resignar-se à verdade que encerra a cruel parêmia:
“Andar sem tropeçar é privilégio do Sol” (52).

(51) In Folha de S. Paulo, 13.11.1994.

(52) Rafael Bluteau, Vocabulário, 1712, t. I, Prólogo.


39

Imperfeições e defeitos são inerentes à natureza humana (53).

Alguma censura, que a ordem moral pública houvesse acaso


de irrogar ao célebre Penalista, não era decerto poderosa para
depreciar-lhe os créditos, que no geral consenso dos doutos passam
por excepcionais e inestimáveis, atenta sua prodigiosa contribuição
à cultura jurídica do Brasil.

(53) “O cair o homem vai de ser homem, e todos somos homens”, filosofou sutilmente
o clássico Manuel Bernardes (Nova Floresta, 1711, t. IV, p. 477).
40

VIII. Nélson Hungria no juízo de graves autores

Conceituadas autoridades em várias províncias do saber


humano deram testemunho acerca da vida, obra e personalidade de
Nélson Hungria. Foram unânimes na altíssima opinião em que o
haviam.

I. Heleno Cláudio Fragoso, Professor-titular de Direito Penal


da Faculdade de Direito Cândido Mendes e “discípulo fiel do Mestre”:

“Nélson Hungria foi um dos mais notáveis penalistas de todos os


tempos” (54).

II. René Ariel Dotti, Professor-titular de Direito Penal da


Universidade Federal do Paraná:

“(...) o maior penalista brasileiro de todos os tempos, a transmitir lições


de humanidade, Direito e Justiça para as gerações de seu tempo e do
futuro” (55).

III. Evandro Lins e Silva (1912-2002), Ministro do Supremo


Tribunal Federal, advogado e escritor de alto merecimento:

(54) Cf. Nélson Hungria e Heleno Fragoso, Comentários ao Código Penal, 1980,
vol. I, t. I, p. 10.

(55) In Grandes Juristas Brasileiros, 2003, p. 206; Editora Martins Fontes; São
Paulo.
41

“Não há favor nem lisonja quando se proclama que Nélson Hungria é


o maior penalista brasileiro de todos os tempos” (56).

IV. Hugo Mósca, Diretor-Geral da Secretaria do Supremo


Tribunal Federal:

“No campo do Direito Penal brasileiro, ninguém, até hoje, o


sobrepujou…” (57).

V. Francisco Léo Munari, Professor de Direito Penal da


Faculdade de Direito Mackenzie:

“Sua magnífica obra, desde o Tratado sobre a Fraude, até os


Comentários ao Código Penal, é insubstituível nas bibliotecas jurídicas do
Brasil e da América, demonstrando irretorquivelmente a profundidade de sua
inteligência dos fenômenos jurídicos e seu extenso e variado saber” (58).

VI. Mário Hoeppner Dutra (1914-1997), Desembargador,


membro da Academia Paulista de Direito, do Instituto Histórico e
Geográfico do Estado de São Paulo, etc. Autor de Delito de Rixa,
A Evolução do Direito Penal e o Júri, Furto e Roubo, Perfis, etc.:

“Nélson Hungria faleceu no dia 16 de março de 1969. Foi o Pontífice


Máximo de nosso Direito Penal, e até hoje, decorridos que são quase dois
lustros daquele infausto acontecimento, nenhum outro lhe tomou o lugar. A
ninguém foi dado coroar-se com a tiara que cobriu a sua fronte de mestre
inigualável” (59).

No juízo dos doutos, que lhe examinaram com pontual


diligência a grandiosa obra nas profundezas do Direito Penal e

(56) Arca de Guardados, 1995, p. 96; Editora Civilização Brasileira; Rio de


Janeiro.

(57) O Supremo Tribunal Federal e o meu Depoimento, 1975, p. 30; Cia. Editora
Americana; Rio de Janeiro.

(58) Ciclo de Conferências sobre o Anteprojeto do Código Penal Brasileiro de Autoria do


Ministro Nélson Hungria, 1965, p. 461; Imprensa Oficial do Estado; São Paulo.

(59) In Perfis, 1981, p. 88; São Paulo.


42

os trechos de sua vida na Magistratura, Nélson Hungria, pela


fulguração do talento, amplo saber e trabalho ímprobo e fecundo,
inscreveu seu nome, com caracteres de ouro, no frontão do templo
da eterna glória.

Eis por que o preferi, entre os maiores juristas brasileiros,


para patrono de minha cadeira nesta Academia e, naturalmente,
como homenagem especial a todos os seus membros.

Ao excelso patrono, portanto, e aos distintíssimos confrades


declaro o meu sincero afeto e perene gratidão!
43

IX. Frontispícios de alguns de seus livros


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www.scribd.com/Biasotti

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