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Considerações iniciais
Gênero e psicopatologia
Assim, chego a um ponto central para abordagem do gênero enquanto elemento integrante tanto
à psicopatologia quanto à sexualidade: a dimensão simbólica. Da mesma forma pela qual não
conseguiremos apreender a importância dos papéis de gênero sem compreender as suas
representações e construções simbólico-normativas próprias, devemos sempre buscar compreender
as representações intrínsecas e subjetivas de cada psicopatologia - e estas, da forma singular que se
mostrem em cada pessoa.
No escopo desta comunicação, abordarei brevemente os transtornos depressivos e ansiosos.
Do ponto de vista psicodinâmico (derivado da psicanálise), ansiedade e depressão possuem uma
rica e complexa simbologia, cujas descrições não serão extrapoladas nesta ocasião. Em ambos os
casos, em um olhar breve e conciso sobre a questão, pode-se afirmar que a pessoa padeça em
função de um direcionamento disfuncional de sua energia psíquica, o que empresta características
peculiares aos seus sintomas e assim, prolongada e deleteriamente, inquieta-a (ansiedade) ou
entristece-a (depressão). Tais fenômenos psíquicos, comumente, tendem a estabelecer um
continuum entre si, e dependem, fundamentalmente, da estruturação singular de uma personalidade
que ofereça-lhes diretrizes e possibilidades únicas de representação e de expressão (Freire et al.,
2007). Certos autores, no entanto, contestam certos índices elevados de prevalência na comorbidade
entre transtornos de afetivos e de ansiedade (estimados dentre 25 até 80% dos casos,
aproximadamente), com o argumento de que tal associação provavelmente não seja uma medida da
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real freqüência com que tais condições coexistam independentemente, mas sim o resultado da
própria necessidade de uma classificação categorial que divide, a priori, os sintomas do paciente em
classes separadas - e, muitas vezes, excludentes (Issler et al., 2004; Gabbard, 2007).
Este, portanto, é outro ponto fundamental: os papéis de gênero enquanto elementos pertinentes
e indissociáveis na formação da personalidade. Os papéis de gênero, muitas vezes, acabam
tornando-se referências, grandezas “constantes” bem-vindas em uma dinâmica que oferece tantas
variáveis. O problema, neste caso, não está na tal constância, mas sim nas estereotipias implícitas
que perpetuam-se através destes papéis, tão sabidamente auto-excludentes e totalizantes, a fim de
também manter as suas incongruências subjacentes.
O interessante é que, de uma maneira geral, homens e mulheres estão potencialmente
suscetíveis às mesmas psicopatologias, porém certas diferenças associadas ao gênero parecem
determinar certas “predisposições”. Somados aos seus construtos sócio-histórico-culturais,
sobrepõem-se os próprios pressupostos psicológicos fundamentais para a estruturação da
personalidade, em especial no referencial psicodinâmico. Desde o início da formação acadêmica,
somos comumente apresentados a princípios bastante distintos para atestar um desenvolvimento
psíquico “normal”, o qual é notadamente diferente para meninos e meninas. Se formos interpretar a
abordagem psicodinâmica “ao pé da letra”, algumas características mostram-se dentro de
conotações que poderiam ser inadvertidamente interpretadas enquanto patriarcais e reducionistas,
pois tornam o homem - e o tal elemento diferenciador primário “incontestável” que possui, o pênis -
uma espécie de pilar central onde circundam muitos dos processos psíquicos formadores da
personalidade, seja para o sexo masculino ou para o feminino (Arán e Peixoto Jr., 2007).
Porém, será que poderia ter sido muito diferente disto, uma vez que Freud, mesmo sendo um
homem à frente de seu tempo, vivia em uma sociedade pautada por tais características? Freud foi
também um filho da sua época, assim como somos nós atualmente. Os elementos comportamentais
e estruturais que utilizou na elaboração de sua obra não foram simplesmente “inventados”; muitos
foram, na verdade, “descobertos”. A mulher, muito antes de Freud, já estava relegada a papéis
secundários diante de uma suposta supremacia masculina, traduzida em poder, acompanhada de
uma pedagogia histórica de submissão e de “contemplação” (Gay, 1989; Winck & Strey, 2007).
A mulher precisa, pois, desde cedo, conviver com muitos cerceamentos, em especial no campo
da sexualidade. A repressão passa a dar a tônica desta relação, tornando-se a fonte para pudores e
tabus que, infelizmente, mostram-se há muito tempo já naturalizados à identidade feminina. Ao
homem, por outro lado, é oferecida uma maior liberdade para lidar e expressar a sua sexualidade
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desde criança, aproximando-a e integrando-a à personalidade masculina como um todo de uma
forma bem mais natural e socialmente aceita. A própria mídia, por exemplo, encarrega-se de
legitimar esta dicotomia, transformando a sexualidade masculina (e a conseqüente exploração da
mulher como uma espécie de “objeto de consumo”) em uma reserva de mercado bastante lucrativa,
a qual aceitamos hoje em nossa identidade social com grande naturalidade (Parisoto et al., 2003;
Winck, 2006).
Todavia, mesmo que tal condição pareça colocar o homem em situação consideravelmente mais
favorável, um olhar mais atento aponta que nem sempre é bem assim: a necessidade (seja auto ou
hetero-imposta) em corresponder aos ideais masculinos, em especial no campo da sexualidade,
podem mostrar-se metas extremamente frustrantes e exigentes (Winck e Strey, 2006). O homem,
assim, por ter seu papel sexual mais associado a uma avaliação qualitativa, associada à
performance, e também quantitativa (inversamente do “autorizado” às mulheres), pode predispor a
instalação de quadros inicialmente ansiosos - principalmente em função desta permanente busca de
um ideal que é, por natureza, inatingível em sua plenitude. Nestes casos, por exemplo, pode-se
surgir a disfunção erétil, especialmente decorrente de uma ansiedade antecipatória ao ato sexual, e
segundo a qual o desempenho passa a obedecer expectativas que o orientem a uma quase
“perfeição” (por isso é também conhecida como ansiedade de desempenho). A persistência desta
condição pode, por sua vez, também abrir precedentes a quadros depressivos importantes, criando
assim um perigoso ciclo vicioso entre gênero, sexualidade e psicopatologia que dificilmente poderá
ser abandonado (ou até identificado) sem auxílio profissional (Kaplan, 1977; Roso, 2002; Abdo e
Fleury, 2006).
Da mesma forma, a maior repressão que as mulheres tendem a estabelecer quanto a sua
sexualidade pode levá-las a outras disfunções sexuais importantes, em especial aquelas relacionadas
à obtenção do orgasmo, ao desejo sexual hipoativo e à própria dor durante o ato sexual. Assim a
mulher, com seu papel sexual mais pautado pela passividade e pela contenção do desejo, abre a
possibilidade de transformar seu aparelho psíquico em um terreno extremamente profícuo à
instalação de quadros clínicos psicológicos, em especial os transtornos depressivos. Tal condição
justifica-se pela grande pauta de culpas e de tabus comumente associados à sua sexualidade, onde
tanto a histórica falta de espaço para o reconhecimento e a expressão dos desejos sexuais, quanto o
anseio por um maior protagonismo na relação conjugal, encontram, na sexualidade, correspondentes
diretos a seus análogos próprios ao gênero. Certamente não é uma casualidade a incidência de
depressão nas mulheres, a qual mostra-se o dobro da diagnosticada em homens. Assim, para muitas,
a obtenção do prazer ou a própria “permissão” para sentir o desejo sexual acabam tornando-se
tristes e desanimadoras barreiras, de difícil transposição. Estas, em uma correspondência
bidirecional e constante entre a sexualidade e a saúde do aparelho psíquico, acabam, assim, tendo
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como principais interlocutores os papéis de gênero (Kaplan, 1977; Roso, 2002; Gomes, 2003;
Andrade, Viana e Silveira, 2006).
Considerações finais
Nos estudos sobre o gênero fala-se muito em termos como transformação, discussão, reflexão,
re-significação, e tantos outros que passam uma idéia de movimento, de evolução. Penso que,
muitas vezes, tendemos, de um modo geral, a vislumbrar tais pressupostos a partir de um olhar mais
espectador e menos “ator”. A palavra “ator”, novamente segundo o Dicionário Aurélio - aquele
mesmo que colocou sexo e sexualidade em par de igualdade semântica - significa “agente do ato”
(Ferreira, 2004). Talvez esteja faltando a nós, enquanto profissionais, nos portarmos enquanto
verdadeiros agentes de nossos atos e conhecimentos, trazendo-os para perto de nós e tornando-nos
mais responsáveis por eles - e esta é uma mentalidade extremamente coerente para quem dedica-se
aos estudos de gênero. Para conseguirmos integrar o gênero em outros campos epistemológicos
precisamos assumir uma postura diferenciada, revendo os nossos próprios pressupostos individuais
antes de aventurarmo-nos em identificar as possibilidades que se abram para tal “fora” de nós.
Assim, com esta breve contribuição, espero ter despertado o interesse em começar a
“procurar” o gênero em lugares antes não usuais, abrindo-se aí novas e cativantes possibilidades de
re-significação destes mesmos (e familiares) lugares - bem como do próprio gênero. É bastante
interessante e potencial proficuidade de idéias que pode eliciar-se através dos pontos de
convergência entre diferentes saberes, podendo tornar cada um deles, individualmente, ainda mais
interessante e desafiador - uma vez que consigamos vislumbrá-los enquanto campos
epistemológicos que, para permanecerem distintos, não precisam caminhar distantes.
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