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Estudos Históricos

Guerra, imagem e ciência se articulam na


rrajetória histórica de cinco séculos dos
grupos indígenas chamados de Aimorés,
Botocudos e atualmente Krenak. Este livro
MarcoMorel se constitui numa história das imagens
(iconográficas e textuais) acompanhada de
contextualização e, sempre que possível, das
expressões elaboradas pelos próprios índios.
A análise inclui as relações políticas, sociais
e as condições de vida destas populações.
Desde as primeiras narrativas coloniais,
passando pela catequese, Iluminismo, via-
jantes naturalistas, Romantismo, Antropo-
logia Física, Modernismo e Antropologia
GUERRA, IMAGENS contemporânea, o livro apresenta um painel
das representações culturais em torno desta
E RESISTÊNCIA INDÍGENA rribo, uma das mais "cobiçadas" pela ciên-
cia. A confusão entre o exótico e o exato.
Trara-se de um trabalho de historiador
(com estilo próximo ao da ficção literária
em alguns momentos) baseado numa am-
pla pesquisa documental em arquivos na-
cionais e internacionais feita durante treze
anos, bem como nos relatos orais. O livro
agora publicado foi finalizado em 2006.
A narrativa historiográfica sobre este
grupo indígena se constitui numa saga que
expressa tradições de violência, conflito so-
cial, homogeneização cultural e ocultação
de memória na formação da sociedade brasi-
leira. O esrigma de "Botocudo" aparece co-
mo espelho inverrido da identidade nacional.
A resistência indígena se destaca em
múlriplas facetas e estratégias de sobrevi-
vência, realçando tais populações como
agentes históricos em luta por uma socie-
dade plural que, ainda hoje, não reconhece
suas próprias imagens.

C: \P\
Criação: l.uis Díaz.
Imagem: Femme Botocudo, face et protll, dite
\larie E. Thiesson. photographiée à Paris en 184-t.
P F0086830;1' \I 000029;1' '\I OOOO.lO. Th iesson E.
(acrif au 19e siecle). Loc,tlisarion: Paris, musée du
quai Branl). Phoro ((:) \lusée duquai BraniY, Dist.
HUCITEC EDITORA R\101-Grand Palais/image musée du Quai Branly.
MARCOMOREL

A SAGA DOS BOTOCUDOS


.
guerra, 1magens
e resistência indígena

HUCITEC EDITORA
São Paulo, 2018
© Direitos autorais, 2016,
de Marco More!.
© Direitos de publicação reservados por
Hucitec Editora Ltda.,
Rua Águas Virtuosas, 323
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CIP-Brasil. Catalogação-na-Fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

M84s
Morei, Marco, 1960-
A saga dos Botocudos : guerra, imagens e resistência indígena I Marco
Morei. - 1. ed. -São Paulo : Hucitec, 2018.
517 p. ; 21 cm. (Estudos históricos ; 91)
Inclui índice
ISBN 978-85-8404-050-6
1. Índios Botocudo- História. 2. Índios da América do Sul- Brasil-
História. I. Título. II. Série.
16-36466 CDD: 981.00498
CDU: 94{=87){81)
Nós vivemos uma vida muito triste.
- HIM (JOSÉ ALFREDO DE OLIVEIRA
KRENAK), em 2000

Mas a história dessa terra, desse troço aqui, leva


a noite inteira contando. Leva a vida inteira con-
tando, o que é que aconteceu, o que é que deu, o
que é que não deu ...
- TCHARN (MARIA SôNIA KRENAK), em
1998

Mas entre os indígenas das terras de pau-de-tinta


outras foram as condições de resistência ao euro-
peu: resistência não mineral, mas vegetal. [...]
A reação do domínio europeu, na área de cultura
ameríndia invadida pelos portugueses, foi quase
a de pura sensibilidade ou contratilidade vegetal,
o índio retirando-se ou amarfanhando-se ao con-
tato civilizador do europeu por incapacidade de
acomodar-se à nova técnica econômica e ao novo
regime moral e social.
- Gilberto Freyre. Casa-grande e senzala, ca-
pítulo II, O indígena na formação da família
brasileira.
SUMÁRIO

Índice de ilustrações e mapas 6

Abreviaturas 10

Prefácio,joão Paulo Pimenta 11

Introdução 15

I - Os "vis Aimorés"
1. Ferocidade no papel: primeiros registros 21
2. Aldeamentos, entre mortandades e milagres 52
3. Terras e corpos rasgados nas rotas do gado e da mineração 79

II- Cerco aos Botocudosno século XIX


4. Guerra de 1808-1824: o império luso-brasileiro contra os "antropófagos" 109
5. Viajantes descobrem a "cordialidade dos selvagens" 148
6. Independência e morte: o Império do Brasil submete os "índios bravos" 183
7. O mau selvagem: Romantismo, História e civilização 221
8. Sob o rigor da ciência: múltiplas imagens e esqueletos viajando 285
9. Índios na vitrine: a ExposÍfáO Anthropologica Brazileira 328

III - Krenak, alvorecer do "povo novo"


10. De Botocudo a Krenak: caminhos, pontes e muros 355
11. Na arca de Noé, a sobrevivência por um fio 406
12. Sementes na terra reconquistada 452

Bibliografia e fontes 488

5
ÍNDICE DAS ILUSTRAÇÕES E MAPAS

Mapa 1. Mapa-mundi. Bartolomeu Velho, 1561. Mapas Históricos Brasileiros. 26


São Paulo: Abril Cultural, 1969.
Mapa 2. Nova et accurata tabula. Jan Blau, 1640. Mapas Históricos Brasileiros. 27
São Paulo: Abril Cultural, 1969.
Mapa 3. "A marcha do povoamento e a urbanização- século XVll". Sérgio 28
Buarque de Holanda {org.). História geral da civiliza;ão brasileira, t.1, vol. 1.
Mapa 4. Mapa de área com presença dos Botocudos. M. Wied-Neuwied, 1822. 118

Figura 1. Ataques de {ndios Botocudos na região de Minas Gerais com danos e mortes. 33
Aquarela de Caetano Fonseca de Vasconcelos, [c.a. 1800], IEB/USP.
Figura 2. Pintura de um confronto envolvendo tropas pluriétnicas e índios. J. 91
M. Rugendas, <http://www.bbm.usp.br>.
Figura 3. Desenho de dois soldados. M. Wied-Neuwied, 1822. 120
Figura 4. Representação de Pataxós. M. Wied-Neuwied, 1822. 124
Figura S. "Cabeça de Botocudo mumificada pelos Patachós". Jean-Baptiste 125
Debret, http://www.bbm.usp.br/.
Figura 6. Botocudo preparado para o combate. M. Wied-Neuwied, 1822. 126
Figura 7. Botocudos. M. Wied-Neuwied, 1822. 127
Figura 8. Príncipe Maximilien e tropa. M. Wied-Neuwied, 1822. 150
Figura 9. Príncipe Maximilien e tropa. Detalhe da Figura 8. 150
Figura 10. Chefe June, ou Juné, ou Kerengnatnouck, n.O 1. M. Wied-Neuwied, 152
1822.
Figura 11. Chefe June, ou Juné, ou Kerengnatnouck, n.O 2. M. Wied-Neuwied, 153
1822.
Figura 12. Índio Maxacali aprisionado por um Botocudo. M. Wied-Neuwied, 156
1822.
Figura 13. Botocudos na água. M. Wied-Neuwied, 1822. 159
Figura 14. Utensílios fabricados por Botocudos. M. Wied-Neuwied, 1822. 162
Figura 15. Cabanas construídas por Botocudos. Jean-Baptiste Debret, <http:/ 162
/www.bbm.usp.br/>.
Figura 16. Príncipe Wied-Neuwied e o Botocudo. M. Wied-Neuwied, 1822. 165
Figura 17. Litogravura de um homem, Firmiano Durães, índio Botocudo. A. 167
Saint-Hilaire, 1830.
Figura 18. Botocudo. Spix e Martius, 1981. 172
Figura 19. Cena de Botocudos caçando animais selvagens. Rugendas, <http:// 173
www.bbm.usp.br>.
Figura 20. Rosto feminino de Botocudo. Rugendas, <http://www.bbm.usp.br>. 174
Figura 21. Rosto masculino de Botocudo. Rugendas, <http://www.bbm.usp.br>. 17 4
Figura 22. "Família de Botocudos em marcha". Jean-Baptiste Debret, <http:/ 177
/www.bbm.usp.br>.
Figura 23. Detalhe do conjunto de retratos de "cabeças" de índios. Jean-Baptiste 179
Debret, <http://www.bbm.usp.br>.
Figura 24. Devastação da Mata Atlântica. M . Wied-Neuwied, 1822. 198
Figura 25. "Botocuda mendigando". J. J. Tschudi, 1866. 204
Figura 26. Índios incorporados pelas frentes de expansão. M. Wied-Neuwied, 210
1822.
Figura 27. Imagem de medalha cunhada no ano da coroação de D. Pedro II 236
(1841). Museu Mariano Procópio, in L. Schwarcz, 1999.
Figura 28. Índia de um grupo de Botocudos. F. A. Biacd, 1862. 248
Figura 29. Desenho aquarelado retratando a Filadelfia que surgia nos sertões 274
mineiros. Shirner, 1860.
Figura 30. Q],ladro de Santa Rosa, século XX. Grandes Personagens da Hist6ria do 274
Brasil, vol. II.
Figura 31. Grupo de chineses no Rio de Janeiro. Saint-Hilaire. 2 91
Figura 32. Daguerreótipo de mulher, frente. E . Thiesson. PM000028. Icono- 297
theque du Musée du Q],tai Branly.
Figura 33. Daguerreótipo de mulher, perfll. E. Thiesson. PM000029. Iconotheque 297
du Musée du Q],lai Branly.
Figura 34. Daguerreótipo de rapaz. E. Thiesson. PM000030. Iconotheque du 299
Musée du Q],lai Branly.
Figura 35. Daguerreótipo de rapaz, perfll. E. Thiesson. PM000057. Iconotheque 299
du Musée du Q],lai Branly.
Figura 36. Daguerreótipo de rapaz, "três quartos". E. Thiesson. PM000058. 299
Iconotheque du Musée du Q],lai Branly.
Figura 37. Desenho baseado em descrições textuais. James Henderson, 1822. 302
Figura 38. Esboço feito à mão por D. Pedro II, 1860. Corpo. Museu Imperial, 305
Petrópolis.
Figura 39. Esboço feito à mão por D. Pedro II, 1860. Rosto. Museu Imperial, 306
Petrópolis.
Figura 40. Esboço feito à mão por D. Pedro II, 1860. Três rostos. Museu Imperial, 307
Petrópolis.
Figura 41. Foto de índia e criança. Marc Ferrez, 1876. Fundação Biblioteca 311
Nacional.
Figura 42. Foto de jovem índia de catorze anos. Mace Ferrez, 1876. Fundação 311
Biblioteca Nacional.
Figura 43. Foto de mulher "muito idosa". Mace Ferrez, 1876. Fundação Biblioteca 311
Nacional.
Figura 44. Foto de mulher indígena. Mace. Ferrez, 1876. Fundação Biblioteca 311
Nacional.
Figura 45 . Foto de homem indígena, perfil. Marc Ferrez, 1876. Fundação 312
Biblioteca Nacional.
Figura 46. Foto de índia e criança, perfll. Mace Ferrez, 1876. Fundação Biblioteca 312
Nacional.
Figura 47. Foto de indígena, perfil. Marc Ferrez, 1876. Fundação Biblioteca 312
Nacional.
Figura 48 . Foto de mulher indígena, perfil. Marc Ferrez, 1876. Fundação 312
Biblioteca Nacional.
Figura 49. Foto de mulher indígena, perfil, II. Mace Ferrez, 1876. Fundação 313
Biblioteca Nacional.
Figura 50. Foto de mulher indígena, frente. Marc Ferrez, 1876. Fundação 313
Biblioteca Nacional.
Figura 51. Foto de mulher indígena, perfil, III. Mace Ferrez, 1876. Fundação 313
Biblioteca Nacional.
Figura 52. Foto de mulher indígena, perfil, IV. Marc Ferrez, 1876. Fundação 313
Biblioteca Nacional.
Figura 53 . Desenho de crânio de um Botocudo. M. Wied-Neuwied, 1822. 318
Figura 54. "Selvagens Botocudos". Castro Meneses; Joaquim Ayres. Acervo IHGB. 345
Figura 55. Caricatura 1, Angelo Agostini. Revista Il/ustrada, n.• 310, 5\8\1882. 348
Acervo particular Marco Morei
Figura 56. Caricatura 2, Angelo Agostini. Revista !Ilustrada, n.• 310, 5\8\1882. 348
Acervo particular Marco Morei
Figura 57. Foto de três Botocudos. Walter Garbe, 1909. Acervo particular 362
Marco Morei.
Figura 58. Foto de Botocudos sentados. Walter Garbe, 1909. Acervo particular 363
Marco More!.
Figura 59. Foto de Botocudos sentados em um tronco abatido. Walter Garbe, 363
1909. Acervo particular Marco Morei.
Figura 60. Foto de dois Botocudos. Walter Garbe, 1909. Acervo particular 362
Marco Morei.
Figura 61. Foto de crianças agrupadas. Walter Garbe, 1909. Acervo particular 364
Marco Morei.
Figura 62. Foto de casal com uma criança. Walter Garbe, 1909. Acervo particular 365
Marco Morei.
Figura 63. Foto de Botocudos com arco e flecha. Walter Garbe, 1909. Acervo 366
particular Marco Morei.
Figura 64. Foto de família com flautas. Walter Garbe, 1909. Acervo particular 367
Marco Morei.
Figura 65. Foto de Botocudos acendendo fogueira. Walter Garbe, 1909. Acervo 367
particular Marco Morei.
Figura 66. Foto de cinco índios junto a árvore. Walter Garbe, 1909. Acervo 368
particular Marco Morei.
Figura 67. Foto de índios sob tenda de lona. Walter Garbe, 1909. Acervo 368
particular Marco Morei.
Figura 68. Foto de Botocudos aglomerados em volta de um homem branco. 369
Walter Garbe, 1909. Acervo particular Marco Morei.
Figura 69. Foto de dois homens. Walter Garbe, 1909. Acervo particular Marco 369
Morei.
Figura 70. Foto de cena de caçada. Walter Garbe, 1909. Acervo particular 370
Marco Morei.
Figura 71. Única foto do chefe chamado Krenak. 1910. Acervo da familia de 386
José Vieira da Fonseca, reproduzida em I. Missagia de Mattos, 2004, p. 397.
Figura 72. Foto de três índios em atitude de trabalho. Posto Guido Marliere. 394
Acervo do Museu do Índio, Rio de Janeiro.
Figura 73. "Índios Aimorés que tomaram parte na turma de exploração entre 398
o rio Doce e S. Mateus, para a construção da estrada e que, depois, estiveram
na capital do Estado, em vista às autoridades". Cacique Tetchuc. Alberto
Lucacelli, 1911. IHGB.
Figura 74. "Grupo de Índios Aimorés". 1919. Cacique Nazaré. Acervo IHGB. 400
Figura 75. "Estampas do sabonete Eucalol. Botocudo. Os índios do Brasil. 403
Série 32, Estampa 1".
Figura 76. Foto de escola construída pelo SPI, "Escola Indígena Vatu". Heinz 410
Forthmann, 1946. Acervo do Museu do Índio, Rio de Janeiro.
Figura 77. Foto de paisagem. Heinz Forthmann. Acervo do Museu do Índio, 411
Rio de Janeiro.
Figura 78. Foto de crianças trabalhando, Posto Guido Marliere. Heinz 412
Forthmann, 1946. Acervo do Museu do Índio, Rio de Janeiro.
Figura 79. Foto de índios agrupados aguardando a distribuição de uma mesa. 413
Heinz Forthmann, 1946. Acervo do Museu do Índio, Rio de Janeiro.
Figura 80. Foto de menino (Gabriel) se alimentando. Heinz Forthmann, 1946. 413
Acervo do Museu do Índio, Rio de Janeiro.
Figura 81. Foto de meninos Krenak e diretor do SPI. Heinz Forthmann, 1946. 413
Acervo do Museu do Índio, Rio de Janeiro.
Figura 82. "Velho índio Krenak". Heinz Forthmann, 1946. Acervo do Museu 414
do Índio, Rio de Janeiro.
Figura 83. Foto de Sebastiana (Tacruk). Foto de Sonia Marcato (1979). 430
Figura 84. Foto de Joaquim Grande, lfder dos Krenak. Foto de Sonia Marcato 441
(1979) .
Figura 85. Foto de Sebastiana (Tacruk) e Jacó, netos do chefe Krenak. Foto de 442
Sonia Marcato (1979).
Figura 86. Foto do autor com o cacique José Alfredo de Oliveira, apelidado de 45 5
"Seu Nego". (Him, na lfngua Krenak). Acervo particular Marco Morei.
Figura 87. Foto de Seu Nego. Marco Morei. 1998. Acervo particular Marco 458
Morei.
Figura 88. Foto com José Carlos (Kren) e Solange (Tetuita), ftlhos de Seu Nego, 461
ao transitar pela área Krenak. Marco Morei. 1998. Acervo particular Marco
Morei.
Figura 89. Foto de Solange Krenak (Tetuita) em escarpa. Marco Morei. Acervo 462
particular Marco Morei.
Figura 90. Foto de Maria Sônia (Tcharn) e marido, Bibiano, xerente. 1998. 465
Marco Morei. Acervo particular Marco Morei.
Figura 91. Foto de mulheres Krenak. 1998. Marco Morei. Acervo particular 469
Marco Morei.
Figura 92. Foto de ruínas do presídio indígena I . 1998. Marco Morei. Acervo 470
particular Marco Morei.
Figura 93. Foto de ruínas do presídio indígena II. Marco Morei. 1998. Acervo 471
particular Marco Morei.
Figura 99. Foto de Laurita (Tacrukinic). Marco Morei. 2000. Acervo particular 472
Marco Morei.
Figura 100. Foto do autor com grupo de crianças à beira do rio Eme. 2000. 473
Acervo particular Marco Morei.
Figura 101. Foto de José Carlos (Kren), José Osmar e Maiara, em frente à 486
Escola Índigena na reserva Krenak. Marco Morei. 1998. Acervo particular
Marco Morei.
ABREVIATURAS

AHE Arquivo Histórico do Exército, Rio de Janeiro.


AHMIP Arquivo Histórico do Museu Imperial de Petrópolis, Rio de Janeiro.
AN Arquivo Nacional do Brasil, Rio de Janeiro.
Apeb Arquivo Público do Estado da Bahia, Salvador.
Apes Arquivo Público Estadual do Espírito Santo, Vitória.
BNF Bibliothêque Nationale de France, Paris.
FBN Fundação Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro.
FBN/Icon Divisão de Iconografia da Fundação Biblioteca Nacional, Rio de
Janeiro.
FBN/MSS Divisão de Manuscritos da Fundação Biblioteca Nacional, Rio de
Janeiro.
FBN/SOR Divisão de Obras Raras da Fundação Biblioteca Nacional, Rio de
Janeiro.
Funai Fundação Nacional do Índio
IEB/USP Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo, São
Paulo.
IHGB Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro.
MHO Arquivo do Musée de l'Homme, Paris.
MI Arquivo do Museu do Índio, Rio de Janeiro.
RAPM Revista do Arquivo Público Mineiro
SPI Serviço de Proteção ao Índio
PREFÁCIO

Sim, cada morto deixa um pequeno bem - sua memória


- e pede que cuidemos dela. Para aquele que não tem
amigos, é preciso que o magistrado ocupe seus lugares.
Pois a lei, a justiça, é mais segura que todas as nossas
afeições esquecidiças, que todas as nossas lágrimas tão
rapidamente secas. Essa magistratura é História. E os
mortos são, para dizer como no Direito romano, essas
pessoas miseráveis com as quais o magistrado deve se preo-
cupar.
Nunca em minha carreira perdi de vista esse dever
do historiador. Dei a muitos mortos bem esquecidos a
assistência de que eu mesmo teria necessitado.
Eu os exumei para uma segunda vida. Muitos não
eram nascidos no momento que lhes teria sido adequado.
Outros, na vigília de circunstâncias novas e executoras
que vêm apagar, sufocar sua memória (por exemplo,
os heróis protestantes, mortos antes da brilhante e esque-
cidiça época do século XVIII, de Voltaire e de Montes-
quieu).
A história acolhe e renova essas glórias deserdadas;
ela dá nova vida a esses mortos, ressuscita-os. Sua justiça
associa assim aqueles que não viveram ao mesmo tempo,
repara os muitos que não apareceram senão em um mo-
mento, para logo desaparecerem. Eles agora vivem co-
nosco, que nos sentimos seus parentes, seus amigos. Assim
11
12 JOÃO p AULO PIMENTA

se constitui uma família, uma cidade comum entre vivos e


mortos. 1

Escritas há cento e cinquenta anos atrás, as belas palavras do


grande historiador francês Jules Michelet atribuíam enorme responsabili-
dade àqueles que se dedicassem ao estudo do passado, oferecendo-lhes, ade-
mais, um alento. Em um mundo de "injustiça" e "esquecimento", a conver-
são da História em "magistratura" significava sua conversão em uma
necessária forma de atuação, ademais singularizada pela experiência se-
dutora de compartilhamento da vivência desse mundo com os mortos.
Atualmente, algum historiador consegue abdicar por completo da expecta-
tiva de tal experiência, tão desejável quanto inatingível, tão encantadora
quanto quimérica?
Ora, substantivos como injustiça e esquecimento, outrora tão caros
a Michelet, hoje parecem igualmente capazes de se converter em adjetivos
de reconhecimento do mundo. Seria ainda concebível tomar o historiador
como espécie de magistrado? A leitura deste novo livro de Marco More/,
categoricamente, nos diz que sim.
Porém, se A saga dos botocudos: guerra, imagens e resistência
indígena trata de tema não totalmente inédito - e seu autor dialoga de
modo absolutamente sagaz com o que a seu respeito já foi escrito - ele o
Jaz, porém, em uma perspectiva inusitada. Pois aqui, a história de popu-
lações indígenas habitantes desse subcontinente que seria progressivamente
colonizado pelos portugueses a partir do século XVI e de certa forma
recolonizado pelos brasileiros a partir do século XIX, bem como das ima-
gens produzidas a seu respeito, é uma história reparadora não de mortos-
-desaparecidos e exumados para uma segunda vida, mas de mortos ainda
vivos. Os botocudos, prematuramente esquecidos por gerações de especia-
listas e não especialistas que se apressaram em declará-los e acreditá-los
completamente desaparecidos em nosso país, surgem aqui em seu passado,
mas também em seu presente e seu foturo. Em carne e osso, em pinturas,
desenhos, gravuras e fotografias (uma, ao lado de Morei}, vivíssimos de
muitasformas, mas até agora - eis uma das maiores injustiças de que são

1
Jules Michelet. "Préface - Des justices de l'Histoire". ln: Histoire du XIXe
siede: tome IL-jusqu'au 18 brumaire. Paris: Michel Lévy Frêres, 1875, pp. III-IV
(tradução livre). Agradeço ao historiador José Miguel Nanni Soares a localização
exata desse trecho.
PREFÁCIO 13
vftima - impossibilitados de habitarem a mesma cidade daqueles outros
vivos, os neles interessados.
Reparador de múltiplas injustiças nem sempre bem percebidas pelos
estudiosos dessas populações, Marco More! aqui trabalha como o historia-
dor amplamente conhecido e respeitado por suas outras grandes contribui-
ções à historiografia brasileira: a debruçar-se sobre tema impactante, ofe-
recendo excelente narrativa, e manejando de modo altamente profissional
todos os fundamentos do ofício. Com um detalhe: ao evocar com naturali-
dade, leveza e sem alarde o manancial daquilo que nosso mundo segmen-
tado em nichos de conhecimento superespecializados convencionou chamar
de "outras disciplinas" no rol das Ciências Humanas, ofaz, simplesmente,
como um historiador. Isto é, como um analista que jamais poderia acredi-
tar na possibilidade de explicar uma parcela da realidade social (passada-
-presente) por meio de uma únicafonte teórico-metodológica, de uma única
disciplina. Não era assim que o ofício do historiador costumava ser pensa-
do há algumas décadas? Isto é, antes de ele ser contaminado pela mesma
combinação contemporânea entre aceleração, pragmatismo e superficiali-
dade que- ironicamente- parecem ter levado os botocudos a um enter-
ro prematuro.
Que o leitor aproveite do livro que ora tem em mãos: ele épeça única.

-JOÃO p AULO PIMENTA


Universidade de São Paulo
INTRODUÇÃO

Este livro se constitui numa história das imagens (icono-


gráficas e textuais) geradas ao longo de cinco séculos sobre grupos
indígenas chamados de Botocudos, acompanhada de contextualização
histórica e, sempre que possível, das expressões elaboradas pelos pró-
prios índios. Logo, não se propõe a ser uma história desses povos, o
que abrangeria um amplo levantamento de particularidades regio-
nais, etnológicas, linguísticas, administrativas e demográficas, ou seja,
pesquisa de maior envergadura por todos as épocas. 1
O enfoque recai, portanto, nas representações culturais e numa
história da produção intelectual sobre os Botocudos, alternando-as e
interligando-as aos traços gerais da trajetória do contato entre índios
e não índios - considerando ambos como agentes históricos na so-
ciedade em transformação. Coloca-se, pois, um entrelaçar entre a
"história das imagens" (textos ou ícones) com a "história" propria-
mente, envolvendo diferentes momentos das relações poüticas e sociais,
isto é, de poder, e também das condições de vida dessas populações.
Trata-se de um trabalho de historiador (com estilo próximo ao da
ficção literária em alguns momentos) baseado na pesquisa documen-
tal, na interpretação desses documentos e na leitura de obras relacio-
nadas ao tema. ~anto aos ícones, considero-os como um campo

1
Há consideráveis trabalhos na perspectiva de uma história (com dimensão
antropológica) desses índios nomeados de Botocudos. Destacam-se nesta linha as
respectivas dissertações de mestrado e teses de doutorado de duas antropólogas: I. M.
de Manos (1996 e 2004) eM. H. B. Paraíso (1982 e 1998[a]) e também a tese de H.
L. Langfur (1999).
15
16 INTRODUÇAO

importante a ser incorporado pelo ofício do historiador, ainda mais


em sociedades tão marcadas pela dimensão visual: além do registro
descritivo e da contextualização de seus usos, podem ser lidos e inter-
pretados, embora a dimensão de documento histórico da iconografia,
apesar de cabível, esteja longe de esgotar suas eventuais possibilidades
artísticas ou estéticas.2
A guerra foi constante durante cerca de quatro séculos nos con-
tatos com os índios estudados, o que não significava confronto per-
manente, pois tais encontros foram marcados também por negocia-
ções e diferentes níveis de incorporação à sociedade. Pareceu-me
importante, contudo, realçar essa dimensão bélica e de conflito, em-
bora ela não seja incompatível com outras vias de sobrevivência e
alianças e, mesmo, com outras formas de violência. O potencial dessas
resistências indígenas, que rendeu grande notoriedade a tais índios e
justificou ondas de violência sobre eles, resultou, ao mesmo tempo,
em sua persistência enquanto grupo étnico diferenciado no interior
da sociedade nacional.
A pesquisa se restringe aos índios em geral associados ao grupo
linguístico Macro-Jê que ocuparam larga faixa do território que in-
cluía Recôncavo e Sul da Bahia, vales dos rios Doce e Jequitinhonha,
região central de Minas Gerais e grande parcela do Espírito Santo.
Estavam entre as últimas tribos a guerrear na região Sudeste, ainda
no século XX, e hoje habitam urna pequena reserva em Minas Ge-
rais. Existem outros grupos nomeados de Botocudos não incluídos
neste livro, notadarnente os de Santa Catarina, Paraná e noroeste de
São Paulo (também chamados de Xokleng ou Kaingang). 3 E o uso
dos ornamentos batizados de botoques caracteriza diversos povos in-
dígenas no Brasil e em várias partes do mundo. Deve-se considerar
também que os Botocudos aqui tratados nunca formaram um conjun-
to coeso, antes se fracionavarn em diversas tribos, conforme caracte-
rística de sua organização social.
O livro, que começou a ser elaborado em 1993, resulta de ma-
teriais encontrados em arquivos e bibliotecas da França, Rio de Ja-
neiro, Espírito Santo, São Paulo e Bahia, além de pesquisa de campo
com os índios. Mantive a ortografia original das fontes documentais
consultadas. Encontrava-me em Paris fazendo doutorado sobre as-
2
Para um apanhado crítico da relação entre história e imagem iconográfica, v.
P. Burke (2001). Entre as principais referências teóricas que utilizo e reelaboro, estão
as conhecidas obras de R. Barthes (1980) e P. Dubois (1998).
3
Sobre esses Botocudos do Sul do Brasil, ver A. M . Namem (1994).
INTRODUÇÃO 17
sunto diverso, mas a vivência como estrangeiro, isto é, como Outro,
numa sociedade marcada por tensões e preconceitos raciais que atra-
vessavam o cotidiano, remeteram-me para posição diversa da que
vivia em meu próprio país, despertando outro tipo de sensibilidade.
Daí, ao me deparar ao acaso com uma referência à declaração de
guerra aos Botocudos em 1808 e, em seguida, ao encontrar nos ar-
quivos do Musée de l'Homme os daguerreótipos desses índios feitos
na mesma Paris em 1844, realizei "mergulho" em mares até então não
navegados por mim, do qual este livro finalizado (após várias inter-
rupções) em 2006 é o resultado.
O texto está dividido em três Partes que correspondem, quase
simetricamente, aos períodos colônia, império e república, na pers-
pectiva de dimensionar a presença indígena na história do Brasil e
colocar em evidência aspectos importantes desta sofrida e às vezes
violenta construção de uma ordem nacional.
A Parte I, Os "VIS AIMORÉS", consta de três capítulos que
tratam da visão dos primeiros cronistas, historiadores, missionários,
militares e administradores, dos séculos XVI ao XVIII, quando os
índios estavam incluídos na denominação genérica de Aimorés. Há
mais material dos jesuítas nos dois primeiros séculos, bem como de
colonizadores do século XVIII já marcados pela perspectiva da Ilus-
tração, além de mapas que registram a presença desses grupos indí-
genas. Predominam os relatos sobre guerras e legendas de ferocidade
e canibalismo, ao mesmo tempo que faltam informações mais consis-
tentes sobre os modos de vida dessas tribos.
Composta de seis capítulos, a Parte II, CERCO AOS BoTOCUDOS
NO SÉCULO XIX, é a maior do livro. Inicia-se com a declaração de
guerra a esses índios, agora chamados de Botocudos, por D. João
assim que chega ao Brasil em 1808; trata dos viajantes europeus (Wied-
-Neuwied, Saint-Hilaire, Debret, Rugendas e outros) que produziram
relatos e ícones sobre tais povos; aborda as relações desses índios (e a
crescente perda de seus territórios) com a nação brasileira que se
construía e as atitudes políticas e econômicas do novo império dian-
te das tribos; faz um apanhado das principais pesquisas e discus-
sões culturais, históricas e antropológicas ao longo do século XIX,
com ênfase nas primeiras fotos (daguerreótipos) de Botocudos fei-
tas em 1844 e na multiplicidade de ícones que surgiram; trata das
visões paradoxais do Romantismo e da historiografia e termina com
a Exposição Antropológica de 1882 no Rio de Janeiro, onde Botocudos
ao vivo foram a principal atração diante de D. Pedro II.
18 INTRODUÇÃO

Finalmente, a Parte III, KRENAK, ALVORECER DO "Povo


Novo", apresenta três capítulos. Inicia-se com a discussão sobre a
possibilidade de incorporação nacional de tais grupos que gerou, em
1910, a criação do Serviço de Proteção aos Índios. Há material foto-
gráfico sobre os mesmos índios na passagem de selvagens/nus para
civilizados/vestidos. Trata dos últimos massacres contra esse povo no
século XX, bem como dos estudos acadêmicos sobre tal tribo, agora
batizada de Krenak, que oficialmente chegou a ser dada como extinta
nos anos 1950-60; relata a instalação de um presídio para índios em
seus territórios durante a ditadura civil-militar de 1964, a luta pela
posse da terra (Reconquista) que se iniciou nos anos 1980 e culmi-
nou, em 1997, com a expulsão de fazendeiros e a retomada de uma
parte das terras tradicionais; relaciona novas produções culturais (CDs,
fumes e hipertextos) sobre esses povos; e a partir de três viagens do
autor à reserva no rio Doce entre 1998 e 2001 (com entrevistas, fotos
e filmagens dos índios), aborda as visões deles sobre sua história,
imagens e expectativas no raiar do século XXI.
Alguns agradecimentos são indispensáveis, apesar das possíveis
omissões (decorrentes do longo prazo de elaboração do trabalho),
pelas quais me desculpo antecipadamente. Em primeiro lugar para os
índios Krenak que tão generosamente me receberam, ensinaram e
partilharam suas reflexões, experiências e culturas. Também para
Marly Schiavini de Castro, que me propiciou a ponte com os Krenak,
por sua disponibilidade contínua pela causa dos povos indígenas. Ao
querido companheiro e mestre José Ribamar Bessa Freire, pelo que
transmite de energia, lucidez e sabedoria em sua cotidiana cruzada
por novos céus e novas terras para todos, índios e não índios. Para as
amigas lzabel Misságia de Mattos, Lorelai Kury, V éronique Hébrard,
Vânia Losada Moreira e Leônia Chaves Resende, cujas pesquisas e
incentivos serviram de apoio a este trabalho. Aos colegas, alunos e
orientandos que caminharam em vários momentos nas mesmas tri-
lhas da história indígena. Para Maria Regina Vieira Ramos de Assis,
por me apoiar na caminhada do ciclo vital. Destaco ainda funcioná-
rios dos museus, bibliotecas e arquivos consultados, que forneceram
preciosas pistas e informações. E Ana Paula e Cristina que, como
sempre, me dão as melhores sementes e flores. De qualquer modo, o
conteúdo do presente livro é de responsabilidade exclusiva do autor.

Rio de Janeiro, 2006.


I
OS "VIS AIMORÉS"

Estes Aymorés são muito feros e cruéis, não


se pode com palavras encarecer a dureza desta
gente.
- PERO DE MAGALHÃES GANDAVO,
Tratado da Terra do Brasil (1570).

E como eles são tão esquivos inimigos de


todo o gênero humano, não foi possível saber
mais de sua vida e costumes, e o que está dito
pode bastar por ora.
-GABRIEL SoARES DE SouzA,
Tratado descriptivo do Brazil em 1587
Capítulo 1
FEROCIDADE NO PAPEL:
PRIMEIROS REGISTROS

Ü s Aimorés foram senhores de largas faixas de espaço e


tempo. Antes e depois da chegada dos europeus. Pareciam, além de
invencíveis, intangíveis, invisíveis, indescritíveis e inomináveis, apesar
das guerras, mapas, ícones, narrativas históricas e dos nomes que ten-
tavam abarcá-los, gerando expressivo conjunto de imagens sobre es-
ses índios.
Sabe-se que praticamente todo litoral que hoje é brasileiro foi
percorrido por expedições de reconhecimento (portuguesas e de ou-
tros países) na primeira década após a viagem de Pedro Álvares Cabral.
Algumas feitorias se instalaram, o escambo de pau-brasil realizava-
-se com índios por portugueses e franceses. Mas as tentativas de ex-
ploração e povoamento consistentes começam nos anos 1530, quando
da criação do sistema de Capitanias, inicialmente Hereditárias e de-
pois Reais.
Nos territórios onde havia Aimorés foram criadas cinco capita-
nias: Bahia, São Tomé, Ilhéus, Porto Seguro e Espírito Santo. O
resultado foi que essas três últimas fracassaram em seu intento colo-
nizador, as tentativas de povoamento regrediram- quadro que dura-
ria, com alterações, até meados do século XVIII e mesmo princípio
do XIX. A resistência indígena foi um dos principais fatores nesse
fracasso ou "atraso" colonizador na região. Foi época de Descobertas,
inclusive as dos índios descobrindo os europeus e as consequências
de sua chegada nos territórios que seriam batizados de brasileiros.
O conjunto de relatos, tradições e testemunhos escritos e orais
sobre tais grupos indígenas, nos três primeiros séculos de colonização,
21
22 OS "VIS AIMORÉS"

gerou imagens que se cristalizaram em mentalidades de longa dura-


ção.1 Estariam presentes no romantismo literário brasileiro do sécu-
lo XIX, no qual os Aimorés apareceriam como exemplo acabado do
"mau selvagem" em textos primordiais como o romance O guarani de
José de Alencar. Ou no poema épico de Gonçalves Dias,I-]uca-Pirama,
que reitera estigma ao "vis Aimorés", recriando herança de largo al-
cance das letras e vozes coloniais. E tal conjunto de imagens ainda
persiste no século XXI: num difuso senso comum, em memórias co-
letivas, tradições regionais e, eventualmente, na perspectiva de ho-
mens de letras.
Os invencíveis Aimorés desafiaram a Conquista europeia e
criaram a Reconquista indígena. Se aceitássemos aqui o esquema ven-
cidos-vencedores, caberia aos portugueses o rótulo de vencidos em
consideráveis parcelas do território das capitanias de Ilhéus, Porto
Seguro e Espírito Santo ao longo de quase três séculos, ao passo que
os Aimorés e outros grupos seriam chamados de vencedores. Essas
tribos impediam ou mesmo revertiam a Conquista europeia, num
movimento que pode ser chamado de Reconquista. Dessa maneira, a
Conquista não aparece como ponto de partida inelutável e evolutivo
de um processo unívoco, uma vez que, em determinadas épocas e
locais, ela pode ser revertida ou sucedida pela Reconquista indígena,
que instaura assim um novo tipo de relação.
Da mesma forma que as Restaurações não conseguem recriar
exatamente o estado de coisas que buscam resgatar, a Reconquista
não significa que os índios voltariam a viver como antes da chegada
dos Conquistadores, pois estes continuam presentes, ainda que mo-
mentaneamente derrotados. E se o movimento de Conquista voltar a
se impor, ele não será o mesmo, pois terá de levar em conta as mu-
danças ocorridas. A Reconquista também tem continuidade de lon-
ga duração e deixa suas marcas na sociedade, uma vez que pode ser
um dos fatores responsáveis pela sobrevivência de povos indígenas
em nossos dias, preservando e transformando suas identidades cultu-
rais. Sem falar que o movimento de luta pela terra e de retomada de
áreas que se encontram em poder dos não índios continua a ocorrer

1
A ideia de que as mentalidades (isto é, representações simbólicas) persistem
ao contexto e às relações sociais em que surgiram aparece no conhecido ensaio de F.
Braudel, "História e Ciências Sociais: a longa duração", in Idem. Escritos sobre a Histó-
ria... , pp. 41-77.
FEROCIDADE NO PAPEL: PRIMEIROS REGISTROS 23
atualmente - fazendo com que a Reconquista também tenha seu
espaço, diante da Conquista que não se completou totalmente no ter-
ritório brasileiro.
Sabemos também que os europeus eram ainda intrusos: sua ci-
vilização, no século XVI, não era a dominante no território chamado
de Brasil. Não foi à toa que as primeiras povoações eram litorâneas e
algumas situavam-se em ilhas, como a fortificação de Vitória que
deu origem ao Espírito Santo, por exemplo. Os primeiros explorado-
res e colonizadores encontravam-se literalmente ilhados.
Qyanto aos Aimorés, pareciam ser invencíveis. O final do sécu-
lo XV1 marca, para o território brasileiro, uma fase de avanço da
Conquista. Depois de algumas décadas de sangrentos conflitos, as
bases da presença portuguesa se afirmavam, com diversos grupos in-
dígenas derrotados. Entretanto, na área de influência dos Aimorés, a
situação era diferente, para não dizer inversa, com o predomínio da
Reconquista ou o impedimento da Conquista.
Entre os testemunhos a esse respeito está o de frei Vicente do
Salvador: narrando as tentativas colonizadoras nos dois primeiros
séculos, afirma que em Porto Seguro os engenhos foram desfeitos
devido "aos muitos assaltos do gentio aimoré, em que lhes matavam
os escravos, pelo que também despovoaram muitos moradores e se
passaram pera outras capitanias". Da mesma forma em Ilhéus onde,
segundo o mesmo historiador franciscano do século XVII, o princi-
pal problema da ocupação europeia foi "a praga dos selvagens aimorés,
que com seus assaltos cruéis fizeram despovoar os engenhos". 2
Também o jesuíta Fernão Cardim, no início do Seiscentos, re-
gistrava sobre os Aimorés: "Estes dão muito trabalho em Porto Se-
guro, Ilhéus e Camamu, e estas terras se vão despovoando por sua
causa". 3
Reforçando essas indicações, temos o relato do jesuíta }ácome
Monteiro, segundo o qual, em 1610, a Capitania de Porto Seguro
estava "mui acabada por respeito dos Aimorés" e a de Ilhéus "despo-
voou-se quase em todo, por causa dos Aimurés". 4
A região onde hoje se encontra o sul da Bahia viveu momentos
dramáticos. Fazendas montadas e equipadas eram destruídas pelos

2
Frei Vicente do Salvador, pp. 121-3.
3 F. Cardim, p. 199.
4
Jácome Monteiro, apud Serafim Leite, VIII, p. 402.
24 OS "VIS AIMORÉS"

indígenas ou abandonadas pelos proprietários, que não suportavam


os constantes ataques de diversas tribos aguerridas, sobretudo dos
Aimorés. Um reduzido punhado de guerreiros investia com tanto
vigor que era capaz de destruir um engenho de açúcar defendido por
grupos com armas de fogo.
O!Ial o território dos intangíveis Aimorés? As relações entre
esses índios e as diversas frentes de expansão, nos três primeiros sécu-
los de colonização, não se limitava ao confronto: havia negociações,
interações, estratégias de resistência e submissões. Mas a guerra ocorreu
e foi de longa duração, intensa no tempo e no espaço. Diante das
agressões e das doenças e sentindo as novas disposições dos inimigos
europeus, os Aimorés do litoral migram em direção ao Oeste e ao
Sul, no início do século XVII, abandonando assim a região em torno
de Salvador, mas presentes em consideráveis espaços no que então
eram as capitanias de Ilhéus, Porto Seguro e Espírito Santo, e que
hoje compõem partes dos estados da Bahia, Minas Gerais e Espírito
Santo. Nessa região os Aimorés se embrenharam e ocuparam faixas
de terra consideráveis até a época da Independência brasileira.
Os primeiros mapas indicam que havia grupos de Aimorés no
interior e os relatos iniciais de conquistadores e colonizadores falam
de Aimorés no litoral. Infelizmente faltam informações mais deta-
lhadas sobre a organização social dessas tribos e suas possíveis dife-
renças por viverem em ambientes distintos, como à beira do mar,
florestas, montanhas e sertão. Os Aimorés ocuparam ecossistemas
bem diversificados, em geral dentro do conjunto conhecido hoje por
Mata Atlântica, como florestas tropicais e subtropicais, matas de bre-
jos úmidos, fronteiras de caatingas, campos de altitude (topos planos
ou picos rochosos), restingas, mangues, praias, dunas, lagoas e rios.
Tais tribos revelavam assim vigorosa criatividade e capacidade de
adaptação a ambientes distintos. Mas, à medida que a Conquista se
consolidava na faixa litorânea, as tribos foram se fixando no interior.
Os últimos descendentes de Aimorés instalados à beira-mar
seriam os Grens que, em fins do século XVIII, estavam destribaliza-
dos e sobrevivendo à maneira de pescadores pobres, como veremos
adiante.
A região de presença dos Aimorés, ao lado de diversos grupos
indígenas, estaria definida desde meados do século XVII até o início
do século XIX, incluindo basicamente os vastos territórios dos vales
dos rios Doce e Jequitinhonha e parcelas próximas ao litoral. Se
FEROCIDADE NO PAPEL: PRIMEIROS REGISTROS 25
pegarmos um mapa do Brasil e tomarmos como ponto de partida o
rio Pardo e a região de Belmonte, na Bahia, descermos o rio
Jequitinhonha, passarmos pela serra do Chifre, pela serra das Esme-
raldas e chegarmos ao rio Doce, do interior quase até ao litoral, temos
aí uma área de aproximadamente 150.000 quilómetros quadrados,
maior do que o território de Portugal metropolitano. Evidentemente
não eram apenas Aimorés nem somente índios que habitavam essa
região ao longo de três séculos. Mas durante esse período a resistên-
cia dos tradicionais habitantes foi um dos fatores que dificultou o
desenvolvimento mais consistente do povoamento colonizador.
Caminhos e povoamentos eram, como se sabe, base prévia da
colonização. A presença dos Aimorés acabou por cristalizar uma espé-
cie de fronteira no interior das fronteiras do Brasil, embora sem a
validade dos limites oficiais. Mas era uma barreira erguida, desafian-
do a lógica colonizadora. A existência desse território não submisso,
apontado por muitos registros como "vazio" ou quase despovoado,
marca um dos pontos fracos da Conquista que, em alguns casos, são
espaços de Reconquista. Vazios sim, mas de representantes da civili-
zação ocidental, o que do ponto de vista ambiental permitiu a preser-
vação ou sobrevida de algumas parcelas da Mata Atlântica.
Tal área estava encravada entre quatro pontos geopolíticos cruciais
para a América portuguesa e mais tarde para o Brasil. Qyatro centros
irradiadores de povoamento durante todo o período colonial. Ao norte,
estava Salvador, primeira capital e por muito tempo fonte de riqueza
e de poder político. Ao sul situava-se o Rio de Janeiro, que viria a se
tornar capital e local da centralização dos poderes. A oeste havia
Minas Gerais, que se tornaria grande produtora das riquezas mine-
rais. A leste, o mar, por onde desembarcavam os colonizadores. Esses
quatro pontos cardeais formavam como uma cruz. No meio dessa
cruz estava o território de índios que, atravessando os tempos colo-
niais, viria se colocar como um dos derradeiros desafios ao progresso
nacional brasileiro em sua vertente predatória.
Assim, ao longo do século XVII, os Aimorés em grande parte
ficaram fora do alcance do olhar e dos registros de seus oponentes.
Comprovando o predomínio dos Aimorés nestas regiões durante os
séculos XVI e XVII existem mapas, que registram a ocupação do
espaço, ainda que de forma imprecisa nessa época.
Mesmo sem levantamento exaustivo, é possível desenhar ostra-
ços gerais da presença desses indígenas no território da América
26 OS "VIS AIMORÉS"

portuguesa. 5 Já no Mapa-Mundi de Bartolomeu Velho (Mapa 1),


1561, aparecem os ''Aymyreis" ocupando grande porção do interior,
próximo às margens direita do rio São Francisco, na altura corres-
pondente às capitanias de Ilhéus e Porto Seguro. Esta presença nos
sertões coincide com o relato de que em 1564 os Aimorés foram
tangidos do interior para o litoral por guerras com outras tribos. 6 Ao
se deslocarem para a costa, os Aimorés aproximaram-se das frentes
de colonização e desalojaram os Tupiniquins, que, por sua vez, deslo-
caram-se, conforme registra outro cronista da época. 7 Todas essas
movimentações afetavam os primeiros passos da colonização europeia,
ao mesmo tempo que os agentes desta começavam a interferir nos
conflitos entre os grupos indígenas.

Mapal

5
Os mapas citados a seguir foram consultados, em reproduções, em Mapas
históricos brasileiros. São Paulo: Abril Cultural, 1969.
6
P. de Magalhães Gândavo, p. 4.
7
G. Soares de Souza, pp. 57-8.
FEROCIDADE NO PAPEL: PRIMEIROS REGISTROS 27
No mapa Novus Brasilit2 Typus, do holandês Joducos Hondus,
1625, aparecem na Capitania "de los Iseos" (sic) os "Guaymies" (sic),
isto é, os Guaimurés na Capitania de Ilhéus; na de Porto Seguro
constam os "Aymures" ao passo que no Espírito Santo estão Tapuias
(denominação genérica para os não Tupis) e ''Apiapetang", o que po-
deria ser o nome de uma tribo específica. As mesmas informações são
repetidas no mapa Nova et Accurata Tabula, do holandês Jan Blau,
1640 (Mapa 2), acrescentadas dos Tupiniquins na Bahia e de Aimorés
espalhados em grande parte do interior, na altura correspondente ao
Recôncavo e Ilhéus.

Mapa2

Outro holandês, Joahanes Janssoulus, no seu Brasili12 Tabula,


de 1647, repete as informações de seus predecessores, parecendo cris-
talizar que haveria uma divisão entre Guaimurés em Ilhéus e Aimorés
em Porto Seguro. Este esquema se repete no mapa Amérique Mé-
ridionale, do francês Sanson d'Abberville, 1650. O mesmo autor acres-
centa um aspecto importante em outro mapa, Le Brésil, de 1656: a
presença de Aimorés e Guaimurés ao lado uns dos outros e encosta-
dos ao litoral, entre Ilhéus e Porto Seguro, ao passo que no Espírito
Santo permanecem os Tapuias. Dados semelhantes apresenta o ita-
liano Guglielmo Sansone no seu America Meridionale de 1677.
28 OS "VIS AIMORÉS"

Comparando os mapas a relatos escritos, vemos que em 1610


os Aimorés já se encontravam no rio Doce, há dez léguas do litoral
do Espírito Santo, e nos anos 1670 apareciam como senhores dos
sertões entre os rios Jequitinhonha e Mapendipe. 8
Assim, mesmo pelos mapas europeus, verifica-se que no século
XVII os Aimorés ocupavam, na região que lhes tocava, porções de
terra maiores do que as da Conquista. Essas tribos continuavam como
grupos dominantes geograficamente, fora das escassas povoações ur-
banas e litorâneas do século XVII.
Em contraste com a cartografia do período colonial, temos o
mapa (Mapa 3) publicado por historiadores brasileiros na História
geral da civilização brasileira, nos anos 1950/60, que desenha as áreas
de povoamento no Brasil do século XVII. 9

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Mapa3

8 Padre}ácome Monteiro [1610], apud. Serafim Leite, vol. VIII, p. 401 e Arq.

1.1.20 does. de autoria de Balthazar da Silva Lisboa, Arquivo do IHGB.


9
Sérgio Buarque de Holanda (org.). História geral da civilização brasileira, t. 1,
vol. I, A Época Colonial, p. 293.
FEROCIDADE NO PAPEL: PRIMEIROS REGISTROS 29
Subentende-se que os trechos em branco são despovoados ou
vazios. Vê-se uma grande área em branco próxima ao litoral e avan-
çando em grande parte para o interior, na altura das Capitanias de
Ilhéus, Porto Seguro e Espírito Santo, englobando os vales dos rios
Doce e Jequitinhonha. Rodeado de correntes migratórias dos coloni-
zadores, esse trecho em branco corresponde exatamente à presença
dos Aimorés e outros grupos indígenas, mas sobre isso esse mapa é
mudo. Como se povoamento fosse sinônimo apenas de colonização e
que os índios não constituíssem povoação, isto é, habitantes de deter-
minado lugar ou região.
Seriam os Aimorés invisíveis? Não consegui localizar nenhuma
iconografia referente a eles produzida nos séculos XVI a XVIII, ao
contrário de outras tribos sobre as quais existe considerável material,
sobretudo de grupos tupis e alguns tapuias. O ícone (Figura 1) mais
antigo que encontrei dos índios aqui estudados foi feito em Minas
Gerais entre 1803 e 1808, quando já eram denominados Botocudos. 10
Entretanto, tal figura se mantém na perspectiva marcante das narrati-
vas do período colonial brasileiro: enquadrar esses índios numa le-
genda de ferocidade, com registro de ataques relâmpagos - ao con-
trário da iconografia predominante dos artistas, viajantes e cientistas
do século XIX, que terá outras feições, como se verá adiante.
O pesquisador Alberto Lamego adquiriu esta pintura (Figura
1) no início do século XX (incorporando-a a seu acervo pessoal, que
seria adquirido pela Universidade de São Paulo) e divulgou-a em seu
livro com informações equivocadas. 11 Em legenda, afirmou: "Corre-
rias dos Botocudos na Terra Goytacá". E acrescentou um adendo:
"Reprodução de aquarela original e inédita, desenhada em fins do
século XVIII por um eclesiástico testemunha da horrorosa carnifici-
na". E mais nada informa em seu livro (que trata do passado do Norte
fluminense), quando, em sua mesma coleção, há manuscrito que acom-
panha a imagem trazendo dados diferentes e mais esclarecedores.
Possivelmente Lamego se esforçou em "aproximar" tal peça da área
geográfica e da época por ele estudadas.

1
° C. F. Vasconcelos. Ataques de índios Botocudos na região de Minas Gerais
com danos e mortes, pintura, ms., aquarela e nanquim. Coleção Alberto Lamego,
Iconografia n.• 59, IEB/USP; agradeço a reprodução e remessa da imagem e do
manuscrito a ela referente ao Prof. lstvãn Jancsó, quando diretor do Instituto de
Estudos Brasileiros da USP em 2004.
11
A. Lamego, t. 1, pp. 4-22.
30 OS "VIS AIMORÉS"

Trata-se, conforme a precisa indicação catalográfica do Institu-


to de Estudos Brasileiros da USP, de um "Desenho à pena com tinta
escura e aguarelado com tonalidades diversas, mas predominando os
tons de amarelo, azul, castanho, cinza e preto"Y A visão desse qua-
dro empolgou o modernista Mário de Andrade que, exercendo sua
veia de crítico de arte, referiu-se à "aquarela que é uma obra-prima".
Acrescentando: "Conservadíssima, as cores guardando ainda todo o
brilho, uma verdadeira perfeição, com aquela pobre senhora assassi-
nada toda de amarelo, evocando pela cor a audácia daquele manto
amarelo com que Ticiano envolveu Nossa Senhora numa Crucifixão"Y
A observação de Mário de Andrade é pertinente quanto ao
impacto visual e também ao estilo do quadro, que, situado entre as
heranças da pintura medieval e do Renascimento europeu, se aproxi-
ma mais do estilo neoclássico (então uma tendência de vanguarda no
início do século XIX) pela clareza, equilibrio e proporção das cores e
formas, diferenciando-se do Barroco largamente praticado em Minas
Gerais e na Bahia ao longo do século XVIII. Ao mesmo tempo, a
aquarela criada por um pároco do interior de Minas poderia ser com-
preendida na tradição popular de pinturas de riscadores de milagres e
ex-votos como crônica imagética e religiosa de eventos considerados
marcantes, também no âmbito regional ou local. Essa tendência, de
ampla difusão, servia, como se sabe, para relatar, fixar na memória e
divulgar episódios destacados sob o prisma religioso: martírios, mi-
lagres, promessas, visões místicas, curas, etc.
O pintor dessa obra foi o padre Caetano da Fonseca Vasconce-
los, vigário da igreja São Miguel de Piracicaba, em Vila Nova da
Rainha (atual Caeté, próxima a Sabará e Lagoa Santa, portanto bem
distante do Norte fluminense), Minas Gerais. Ele realizou-a para
acompanhar a carta que enviava ao ainda príncipe regente D. João
pedindo providências urgentes para reforçar o combate aos índios
Botocudos na região. Ou seja: para alcançar maior eficácia e vigor,
seu discurso gerou imagens não somente verbais, mas iconográficas,
buscando assim alertar e sensibilizar as autoridades, apostando no
impacto causado pela eloquência da visualização da cena que narrava.
E consciente, talvez, da ausência de registras iconográficos anteriores

12
J. C. Velloso. Catdlogo de Iconografia da Coleçáo Alberto Lamego, p. 66.
13
M. de Andrade. O Estado de S. Paulo, 22-12-1935, apud A. R. Nogueira e
outros, Catálogo dos Manuscritos da ColeçãoAlberto Lamego, p. 17
FEROCIDADE NO PAPEL: PRIMEIROS REGISTROS 31
sobre esses índios, buscava retratá-los e chamar atenção sobre eles,
numa estratégia de reforçar a veracidade do que escrevia e a justeza
do que solicitava. Era como se a fixação dos índios pela imagem fosse
o preâmbulo do controle e da captura pretendidos. A pintura, que
materializava uma visão desses índios tão distantes, deve ter chegado
ao destinatário e corrido de mão em mão pelas autoridades e corte-
sãos luso-brasileiros.
Esse padre Caetano era parente de José Teixeira da Fonseca
Vasconcelos, posteriormente o primeiro presidente da província de
Minas Gerais, senador do Império e visconde de Caeté, família im-
portante de administradores públicos e proprietários de terras e es-
cravos, à qual pertenceu, também, Bernardo Pereira de Vasconcelos.
A carta do padre Caetano para o príncipe regente, em forma de súpli-
ca, é versão escrita da sua criação estética, acrescida de outros argu-
mentos objetivos e detalhados. Num primeiro momento, ele chama
atenção sugestivamente para as tristes memórias da presença dos índi-
os na sua Freguesia do seguinte modo:

[... ] os estragos horrorows do Gentio bravo antropofago da


Nação Botocudo, que infesta, rouba, espedaça e come as carnes
próprias dos Corpos dos Miseráveis Freguezes do Supplicante
que procura encontrar. 14

E detalhando o que seria o canibalismo dos índios, relata no


mesmo documento:

Ah, Senhor, que scena tristissima hé, quando chegão carradas


de Membros de Corpos humanos em montão truncados e des-
carnados [para] enterrar na dita Freguezia do Supplicante, fi-
cando o sangue, por delícia brutal, chupado das veias dos Mi-
seráveis e as Carnes comidas por aqueles Bárbaros.

E relacionando o texto ao ícone, o vigário comenta:

A ultima crueldade acontecida offerece o Supplicante no mal


desenhado prospecto junto, para avivar a Memória delle.

14
Requerimento do padre Caetano Fonseca Vasconcelos ... Cod. 59, doe. 1936,
manuscrito da Coleção Alberto Lamego, IEBIUSP. A referência vale para as duas
citações seguintes.
32 OS "VIS AIMORÉS"

A carta e a pintura, portanto, tinham um reiterado sentido de


criar ou reforçar uma memória hostil sobre os índios - memória de
grande força e permanência entre os moradores não índios em Minas
Gerais ao longo dos tempos. Mas a recriação dessa cena tristíssima
pelo padre Caetano Vasconcelos se articulava com interesses defini-
dos. Era momento do declínio da mineração, o que gerava demanda
de novas terras para agricultura ou, então, a busca mineradora em
áreas ainda não exploradas, no caso, em razão da permanência de
tribos hostis ao colonizador. O padre Caetano alertava ao príncipe
que uma parte da Freguesia estava despovoada pelo ataque dos índios,
o que causava prejuízos evidentes à Coroa portuguesa: largas faixas
de terra abandonadas e consequente diminuição da arrecadação de
dízimos. O padre Caetano, na mesma linha argumentativa, fazia elo-
gios ao capitão-general de Minas Gerais, Pedro Maria Xavier de
Ataíde e Melo (futuro visconde de Condeixa em Portugal, governou
a capitania entre 1803 e 1810) e solicitava recursos da Coroa para
reforçar a militarização da região mediante a recuperação e criação
de presídios nos territórios indígenas. Ora, levando em conta o pe-
ríodo da administração do referido capitão-general e o fato de que
em 1808 o governo de D. João tomaria providências exatamente nes-
te sentido (por meio de Carta Regia onde se baseia justamente nas
queixas dos moradores), é possível situar a data da missiva e da pin-
tura entre 1803 e 1808.
A aquarela, portanto, surgiu desse conjunto de reivindicações e
preocupações de consideráveis grupos familiares que estendiam redes
de poder político e econômico pela capitania e disputavam territórios
aos índios. Pode-se dizer que seu vigor estético emanava desta pulsão
de domínio e da sensibilidade religiosa que o compunha.
Tanto no texto quanto no ícone, o autor reforça a afirmação de
canibalismo. 15 Porém, ainda aqui, seu relato não se apresenta como
testemunho ocular de possíveis práticas antropofágicas, mas baseia-
-se na vista dos restos dos corpos encontrados, a partir dos quais
recriou a cena. O que pode apontar para o costume dos índios de
mutilar, descarnar ou esfolar corpos dos adversários, não necessaria-
mente de ingeri-los. A imagem vampiresca do sangue sugado pode-

15
Sobre as diversas concepções e atitudes da cultura ocidental diante do
canibalismo, e particularmente dos indígenas do território brasileiro, v. a instigante
obra de F. Lestringant. Le cannibale. .. (1994).
FEROCIDADE NO PAPEL: PRIMEIROS REGISTROS 33
ria resultar do sangue que se esvaiu dos corpos mutilados, sem que os
índios o tivessem sorvido. Nesse sentido, a reiteração do canibalismo
aparece mais como estratégia de desumanização e justificativa para
combater e aniquilar os índios.

Figura 1

Uma leitura deste ícone (Figura 1) pode trazer mais alguns


elementos. A imagem aparece impregnada de símbolos religiosos,
ainda que velados. Num quadro de tons pastéis, a figura central é a
mulher com vestido amarelo, deitada suavemente em posição hori-
zontal. Ela está morta, mas seu corpo é o menos corrompido, como a
sugerir uma aura imaculada, reforçada pelo tom solar de sua roupa e
pela postura que tem qualquer coisa da estátua Pietà, de Michelangelo,
com a diferença de que é a mulher quem está deitada, mas com certa
suavidade. Essa figura feminina, mártir explícita e implicitamente
Imaculada, é na verdade o vórtice central do quadro, como já captara
o olhar de Mário de Andrade. O amarelo da roupa feminina contras-
ta com a paisagem cinzenta e desolada ao fundo e no chão e, ainda, se
contrapõe aos demais corpos mutilados, bem como ao vigor fálico,
destrutivo e vertical dos índios presentes na cena. O homem branco
no canto esquerdo do quadro aparece apenas da cintura para cima,
34 OS "VIS AIMORÉS"

como que nos poupando também a vista de possíveis mutilações. Em


contrapartida, o corpo do negro vestido de azul, possivelmente um
escravo, é o mais mutilado, com membros decepados ou descarnados
e o esqueleto aparecendo da cintura para baixo. A mulher negra, do
mesmo modo, sem os braços, está envolta numa poça de sangue. Outro
homem branco, vestido de azul, além de mutilado, aparece contorci-
do. Esqueletos e ossos espalham-se, numa visão dantesca, infernal.
Qyanto aos índios, vê-se que os dois em primeiro plano estão
com o botoque na boca à mostra, em cor vermelha, à semelhança de
língua ou dentes de fora - símbolo de gula e de satanização na
iconografia medieval, alusão à serpente que expulsou Adão e Eva do
paraíso e sugerindo a visão de vampiros. Duas caveiras soltas no qua-
dro reforçam esta impressão mortífera e diabólica.
A alusão à antropofagia ressalta na aquarela. Os índios carre-
gam carnes nos cestos, como se fossem se abastecer de alimentos -
retirando assim do canibalismo (que é fortemente sugerido, mas não
aparece concretizado) possíveis significados ritualísticos, como hábi-
tos alimentares - reforço da noção de horror e barbárie. Alguns
indícios da cultura material dos índios são desenhados: o corte de
cabelo, arcos e flechas com desenhos e trançados e os cestos. Carac-
terísticas descritas posteriormente por outros pintores, o que traz uma
certa feição etnográfica à pintura, possivelmente resultado do teste-
munho de habitantes que conviviam com os índios - ao mesmo
tempo, valorizando o tom de veracidade da cena. E os índios estão
nus, isto é, sem vestígio de civilização ocidental. Os dois índios do
primeiro plano estão em pé, verticais, numa composição de contraste
com as demais vítimas horizontais, entre elas a mulher deitada. Eles
aparecem em retirada, enquanto outros dois índios, no canto direito
do quadro, estão de costas e distantes, o que aponta a ideia de in-
tangibilidade desse grupo indígena.
Ao mesmo tempo que os corpos dos negros são os mais mutila-
dos na imagem, vê-se outro negro, possivelmente escravo, utilizado
pelos índios para ajudá-los a carregar as carnes recolhidas. Tal com-
posição remete às relações tensas e hostis entre negros e Botocudos/
Aimorés. Estes, com frequência, atacavam e matavam escravos du-
rante incursões a plantações ou combates com tropas coloniais. Tal
hostilidade foi marcante, embora também haja notícias, em outros
momentos, de alianças e até de miscigenação entre esses índios e
negros e escravos de origem africana.
FEROCIDADE NO PAPEL: PRIMEIROS REGISTROS 35
Tal aquarela, na verdade, está em sintonia com textos do perío-
do colonial, como se verá a seguir. Ambos - ícone e escritos -
formavam imagem coesa: relâmpagos guerreiros impregnados com
valores da cristandade e da Conquista. Desenhada no início do século
XIX, essa aquarela parece coroar uma era de formulação de imagens.
Poucas vezes, durante estes três primeiros séculos de colonização, os
registros captaram algo mais desses Aimorés.
O batismo da História asperge estigma e identidade. E, ainda
assim, os Aimorés eram quase indescritíveis. Inexistem, até princípio
do século XIX, relatos mais consistentes sobre os Aimorés além de
registros de combates e violências, sucintos relatórios administrativos
ou eclesiásticos e arautos de "guerras justas". Ressaltavam-se traços
sanguinários e não se conseguia enxergar quase nenhum resquício de
organização social, de inteligência ou de humanidade.
Os Aimorés eram vistos como feras. Ao contrário dos Tupinam-
bás, eles não tiveram Hans Staden,Jean de Léry ou André de Thevet
para descrever-lhes com mais densidade os costumes e, até, as cenas
de canibalismo de que frequentemente eram acusados. O relato do
jesuítaJácome Monteiro, de 1610, apesar de breve, é o mais substan-
cial que se conhece sobre Aimorés até o início do século XIX. Da
antropofagia, por exemplo, sabe-se apenas de testemunhos indiretos
e acusações. Se algum não índio testemunhou tais práticas, não ficou
para contar a história ...
No caso dos primeiros historiadores ou cronistas do período
colonial, as fontes documentais se constituem de maneira exemplar
na visão unilateral do adversário, condicionando assim o conheci-
mento que se possa ter sobre estas tribos entre os séculos XVI e
XVIII. Junte-se a isso características destes grupos Macro-Jê, como:
indícios de uma cultura material composta de artefatos perecíveis, de
um povo que na época da chegada dos europeus era nômade dentro
de determinada faixa territorial, que se dedicava à caça, colheita e
agricultura extensiva sem deixar vestígios arqueológicos monumen-
tais. E temos aí, neste "vazio", terreno fértil para as mais fantásticas,
diversificadas (e em geral cruéis) especulações.
Mas essa unilateralidade dos registros não deve ser absolutizada.
Não seria possível que numa leitura mais atenta pudéssemos perceber
que os Aimorés, mesmo sem palavras registradas, também influen-
ciassem e participassem da elaboração destas narrativas, ainda que
contra as intenções dos que a estavam escrevendo? Não estariam eles
36 OS "VIS AIMORÉS"

compondo, pela escrita do colonizador, uma história sem palavras, a


qual poderíamos, séculos mais tarde, revisitar e detectar os traços
desta presença da cultura indígena, por meio de seus gestos e resis-
tências, nas entrelinhas dos insultos e esconjuros do colonizador?16
De qualquer maneira, taiss registros que nos chegam sobre os
Aimorés têm sua significação e merecem ser compreendidos. Eles
esclarecem pouco sobre a língua, costumes, crenças, hierarquias, va-
lores, divisões familiares, etc. Mas ressaltam, sobretudo, três caracte-
rísticas: guerra, movimentação constante e uma energia vigorosa.
Estão, pois, falando de componentes que fundamentavam o compor-
tamento destes grupos indígenas, base de suas identidades - ainda
que saibamos que as identidades também são mutáveis de acordo
com as condições de vida. Tomemos alguns exemplos de citações das
narrativas dos séculos XVI e XVII.
Um dos primeiros a registrar, por escrito, informações sobre os
Aimorés (grafou "Gaimares") foi o padre Manuel da Nóbrega que,
nas suas cartas entre 1549 e 1560, descrevia-os à sua maneira:

Há outra casta de Gentios que chamam Gaimares; é gente que


mora pelos Mattos e nenhuma comunicação têm com os
Christãos, pelo que se espantam quando nos vêm e dizem que
somos seus irmãos, porque trazemos barbas como elles, as quaes
não trazem todos os outros, antes se rapam até as pestanas e
fazem buracos nos beiços e nas ventas dos narizes e põem uns
ossos nelles, que parecem demônios. E assim alguns, principal-
mente os feiticeiros, trazem o rosto todo cheio delles. Estes
gentios são como gigantes, trazem um arco mui forte na mão e
em outra um pau mui grosso, com que pelejam com os contrá-
rios e facilmente os espedaçam e fogem pelas matas e são mui
temidos entre todos os outrosY

A adversidade com os "outros", provavelmente os tupis, bem


como a tática de atacar e escapulir pelas matas, evitando combates
abertos, são referências que se repetirão nos relatos posteriores. Nota-

16
Sobre essas questões envolvendo escrita da história e ausência de palavras
registradas, v. os trabalhos de Farge (1997) e de Moniot (1976).
17
M . da Nóbrega. Cartas do Brasil, p. 70; a data dessa carta é estimada em
1549.
FEROCIDADE NO PAPEL: PRIMEIROS REGISTROS 37
-se que a descrição de Nóbrega quanto a aspectos físicos (barbados)
e ornamentos (narizes furados) não confere com a maioria dos regis-
tras posteriores sobre Aimorés, sendo possível que ele estivesse refe-
rindo-se a outros tapuias. O pioneiro jesuíta escreveu não se sabe se
por testemunho direto ou (o que era comum na época) reproduzindo
testemunhos orais e versões de colonos e conquistadores.
Pero de Magalhães Gândavo, em torno de 1570, em seu Tratado
da Terra do Brasil, sugestivamente destaca estes grupos indígenas, ci-
tando-os logo na parte inicial, em separado dos demais "gentios" .18
Tal se justificava, como se percebe na leitura, pela resistência e ata-
ques que dificultavam a colonização nas capitanias de Ilhéus e Porto
Seguro. "Muitas terras viçosas estão perdidas junto desta Capitania
[Ilhéus], as quais não são possuídas dos portugueses por causa desses
índios".
As observações de Gândavo têm um duplo aspecto (que, de
certo modo, permanecerá durante dois séculos em relação a esses
índios): por um lado trazem informações escassas (embora relevantes
neste caso) e, por outro, revelam desconhecimento, perplexidade e
ressentimento diante da força de tais grupos. Gândavo registra: esta
"nação do gentio que veio do sertão há cinco ou seis anos", em razão
de ataques de outros índios, o que os teria levado a migrar até mais
próximo da costa. Ou seja, aponta para rotas de migração, suas datas
e localidades, assinala a existência de uma guerra envolvendo esses
Aimorés, bem como mostra as alterações nas correlações de forças
entre as tribos, numa época em que a presença europeia vai se expan-
dindo no território. Em relação à identidade linguística, afirma: "a
língua deles é diferente dos outros índios, ninguém os entende", numa
provável referência às línguas tupis que predominavam no litoral e
eram mais conhecidas dos europeus.
Qyanto à descrição física, diz que "são eles tão altos e tão largos
de corpo que quase parecem gigantes; são muito alvos, não têm pare-
cer dos outros índios na terra [... )". Cabe ressaltar que as descrições
posteriores dos Botocudos apontam, em geral, para pele avermelhada,
marrom, cobre, etc., havendo, nesse ponto, uma discrepância com as
possíveis características desses Aimorés. Qyanto a habitação, infor-
ma Gândavo que não "têm casas nem povoações onde morem, vivem
entre os matos como brutos animais". Isto é, aponta para o nomadismo

18
P. de M. Gândavo, pp. 4-8.
38 OS "VIS AIMORÉS"

e lança a comparação com animais ferozes - tema recorrente nos


escritos sobre esses índios. Em seguida o autor descreve-lhes a be-
licosidade e eficácia nos ataques contra os portugueses, reforçando a
legenda de ferocidade que desde então se espalhava. Narrando táticas
de guerras e ao mesmo tempo falando do comportamento destes gru-
pos, acrescenta: "não têm rosto direito a ninguém, senão a traição
fazem a sua". Além de indestrutíveis, pareciam intangíveis e invisí-
veis. Como ver-lhes o rosto e o rastro? Tal impressão se reforça com
a afirmação Qá citada em epígrafe): "Estes Aymorés são muito feros
e cruéis, não se pode com palavras encarecer a dureza desta gente". O
autor, desse modo, reconhece a dificuldade de expressar em palavras,
em seu próprio código, a atividade guerreira dos Aimorés. Repete-se
a dificuldade de capturá-los pela palavra, escrita ou falada.
Em textos de 1581 e 1583, o legendário padre José de Anchie-
ta contaria de suas dificuldades em catequizar os Aimorés, prague-
jando contra eles. "Não se acha remédio contra tamanha praga". E
queixava-se destes "índios, que na língua brasílica se denominam
aimorés, raça de homens, piores que as feras, sobre os quais outras
vezes escrevemos". Confirma, pois, que o termo aimoré pertence à
língua brasilica, isto é, ao tupi. Narra também exemplos de ferocida-
des cometidas por esses índios, casos que se propagavam de boca em
boca pelos primeiros colonizadores: "E não há muitos dias que, ma-
tando entre outros, uma escrava prenhe, a abriram e tiraram uma
criança de dentro e, diante dos olhos dos outros, a espetaram, assaram
e comeram". 19
Gabriel Soares de Sousa, em 1587, deixou também relato sobre
os Aimorés, que "dos outros barbaros são havidos por mais que
barbaros". 20 Marcado pelo superlativo, o testemunho desse cronista
concorda com o anterior no tocante aos hábitos destes índios:

[... ] andam sempre de uma parte a outra pelos campos e pelos


mattos, dormem no chão sobre folhas; e se lhes chove arri-
mam-se ao pé de uma arvore, onde escondem as folhas por
cima, quanto os cobre, assentando-se em cocoras [... ].

E mais adiante, o mesmo Sousa narra:

19
José de Anchieta. Cartas. .. , pp. 311, 312 e 340.
FEROCIDADE NO PAPEL: PRIMEIROS REGISTROS 39
Vivem estes barbaros de saltear toda a sorte de gentio que en-
contram, e nunca se viram juntos mais de trinta frexeiros; não
pelejam com ninguem rosto a rosto, toda a sua briga é atraiçoa-
da, dão assaltos pelas roças e caminhos por onde andam [... ].

Taxativo, o mesmo autor afirma: "comem estes selvagens carne


humana por mantimento".
Mais uma vez aparece o nomadismo, a ausência de aldeias ftxas
e a tática de guerra. Acrescenta-se o canibalismo, mas sem nenhuma
citação de casos precisos da ocorrência dessas práticas. O autor busca
retirar qualquer fundamento ritualístico da antropofagia, associando-
-a com alimentação de subsistência, o que equivale a comparar, indi-
retamente, os Aimorés às feras carnívoras e autofágicas.
De modo ainda mais sugestivo, Gabriel Soares aftrmava quanto
ao Gentio Aimoré que "a sua falia é rouca da voz, a qual arrancam da
garganta com muita força, e não se poderá escrever, como Vasconço".
Não deixa de ser significativa a comparação com o vasconço (ou
basco, idioma de origem linguística desconhecida e em desvantagem
na Espanha) feita, aliás, num momento de ascensão de domínio do
reino de Castela sobre o mundo ibérico. Os Aimorés eram associa-
dos, dessa forma, com o Outro que aparecia como mais diferente ou
incompatível com o grupo hegemônico que pretendia dominar o ter-
ritório e homogeneizar as culturas. De qualquer modo, Gabriel Soa-
res ou seus eventuais informantes ouviram as vozes desses índios e de
algum modo dialogaram com eles.
Mas a dessemelhança levava, neste ponto de vista, a uma im-
possibilidade de compreensão deste Outro pelos códigos conhecidos:

E como elles são tão esquivos inimigos de todo o gênero hu-


mano, não foi possível saber mais de sua vida e costumes, e o
que está dito pode bastar por ora;

Por sua vez, o padre Pero Rodrigues, provincial do Brasil, re-


gistrava raiva e impotência em 1599, lamentando que "[... ] tanto
aperta com a gente uma praga de gentio bravo, cuja língua não se
pode entender, e que chamam Aimorés"Y

20
Gabriel Soares de Souza, pp. 58-60.
21
Carta de Pero Rodrigues, Bahia, 19-12-1599, apud Serafim Leite, I, p. 212.
40 OS "VIS AIMORÉS"

O termo praga já fora usada por outro jesuíta, Anchieta, como


foi visto. Era a mesma radicalidade da diferença, do desconhecimen-
to e da dificuldade de compreensão das linguagens do Outro que
aparecia como potente, por ser intangível e inominável.
Descrevendo-lhe mais de perto alguns costumes, o jesuítaJácome
Monteiro, na sua Relação de 1610, fala sobre o caráter estruturante
da guerra entre os Aimorés:

Entre si andam em perpétuos ódios, dos quais se esquecem quan-


do hão-de fazer mal aos Portugueses, pêra o que se confederam
e fazem em um corpo [... ].

Em seguida, o autor associa animalização desses índios com


suas táticas de guerra e ainda reforça a fama de invencíveis, como
neste trecho:

Chamam-lhes bichos do mato; de nenhum gênero de gente,


nem de armas têm medo, porque nunca pelejam em campo,
senão de cilada; 22

O jesuíta Fernão Cardim, na década de 1620, também fez seu


relato sobre os índios que chama de Guaimurês. 23 Cardim teve contato
estreito com os holandeses no Brasil e seu conhecimento pode ter ser-
vido de fonte para os mapas holandeses. Avançando pouco na descri-
ção física, ele vê estes índios como "muito encorpados, e pela continu-
ação e costume de andarem pelos matos bravos tem os couros muito
rijos". Não praticavam agricultura, viviam da caça e do produto dos
ataques. "Correm muito e aos brancos não dão senão de salto".
Sobre a tática de combate:

Qyando vêm à peleja, estão escondidos debaixo de folhas[ ... ]


e não ha poder no mundo que os possa vencer.

Depois de reforçar o mito da invencibilidade, é ainda Cardim


quem joga lenha na fogueira da legenda de ferocidade que envolve
os Aimorés, afirmando que eles esfolam os prisioneiros, deixando
apenas os ossos e as tripas, que ao capturarem uma criança bran-
ca matam-lhe com pauladas na cabeça e que, ainda, teriam o hábito
de matar as mulheres grávidas para comerem os fetos assados. Esse

22
Jácome Monteiro, apud Serafim Leite, VIII, p. 406.
23
F. Cardim, pp. 198-9.
FEROCIDADE NO PAPEL: PRIMEIROS REGISTROS 41
"hábito" parece remeter ao caso narrado anteriormente por Anchie-
ta, ou a outro semelhante. De qualquer modo, eram narrativas que se
espalhavam pelo território colonial, compunham uma memória cole-
tiva dos primeiros tempos da presença europeia e serviam como de-
marcadoras de identidades. E o desconhecimento, o aspecto ininteli
gível, é sublinhado por Cardim: "não se lhes pode entender a língua".
Já o franciscano frei Vicente do Salvador, à sua maneira, traçou
em 1627 o perfil dos Aimorés:

[... ] como nunca sahiam a campo a pelejar, sinão a traição,


escondidos pelos mattos, mui poucos lhes mataram [.. .].

O mesmo autor afirma em outro trecho:

[... ] como não tinham casas nem logar certo onde os bus-
quem, nem saiam a pelejar em campo, mas andem como leões e tigres
pelos mattos e dalli saiam a saltear pelos caminhos, ou ainda sem
sahir, detraz das arvores, empreguem suas frechas, poucos bastam
para destruirem muitas terras.

As citações dos oito autores acima são interessantes e ricas de


sugestões. Em primeiro lugar, descrevem a tática de guerra geral-
mente utilizada pelos Aimorés, semelhantes às guerrilhas ante os exér-
citos regulares. Esses índios evitavam o combate direto, o que explica
seu sucesso apesar da inferioridade do armamento. Embora as armas
dos europeus fossem mais eficientes e mortíferas, elas perdiam parte
de sua eficácia diante dessa tática de guerra composta de escaramu-
ças, que consistia em evitar combates abertos. Somavam-se a isso os
ataques surpresa dos índios e o conhecimento do terreno e do meio
ambiente - e temos aí da parte dos Aimorés uma lógica de guerra
solidamente estruturada, com resultados palpáveis, que durante tanto
tempo desafiou as mais diversas táticas militares dos portugueses,
espanhóis, holandeses e brasileiros. Estes fatores bélicos compõem
algumas (mas não todas) das explicações sobre o sucesso destes ín-
dios diante dos colonizadores durante tanto tempo. 24

24
O ]ournal de la Société des Américanistes, Paris, LXXl, 1985, dedicou um
número especial à discussão teórica sobre a guerra e os povos indígenas. Destacam-se
no volume os artigos de Jean-Pierre Chaumeil, Maria Manuela Carneiro da Cunha,
Eduardo Viveiros de Castro, P. Menget,Anne Cristine Taylor e ainda Thierry Saignes.
Existem estudos clássicos e anteriores sobre o tema, como os de M. E . Davie, Pierre
C lastres e Florestan Fernandes.
42 OS "VIS AIMORÉS"

O fato de se constituírem como grupos aparentemente errantes,


sem local fixo como aldeia, sempre movimentando-se em acampa-
mentos provisórios (e mantendo esta movimentação nos combates),
foi outro fator que dificultou a vitória contra os guerreiros Aimorés.
Os guerreiros ocidentais e seus aliados ainda aqui ficavam descoro-
çoados. Isso explica por que, como destacou frei Vicente, poucos ín-
dios podiam ocupar e destruir muitas terras.
A crença na invencibilidade desses índios parecia assombrar os
Conquistadores que, durante quatro séculos, utilizaram todos os meios,
persuasivos ou violentos, sem conseguir submeter completamente tais
tribos. Todos esses relatos, sobretudo as narrativas de guerra, as des-
crições de combates, recuperam uma imagem extremamente vigorosa
desses Aimorés, como mais tarde dos Botocudos. Assim, mesmo a
contragosto, estes escritores dos séculos XVI e XVII acabavam por
situar as tribos de Aimorés como sujeitos históricos. Melhor dizen-
do: a própria força dos Aimorés como agentes do processo histórico
impunha estas brechas nas narrativas dos colonizadores, fazendo com
que, mesmo sem palavras próprias, as tribos também participassem
da composição das narrativas escritas.
Nos relatos dos primeiros historiadores, comprometidos com a
colonização e eivados de rancor e temor diante de grupos indígenas,
percebe-se a presença e a atuação do comportamento guerreiro des-
ses índios, que não eram passivos como vegetais (para retomar a ex-
pressão sugestiva de Gilberto Freyre), que não se deixavam submeter
na maior parte dos casos e frequentemente tomavam a iniciativa nos
ataques. A constante reafirmação dos não índios sobre a invencibilidade
correspondia a uma constatação prática. Mas podia ser também a
maneira possível como a cultura portuguesa, imersa nas lutas de co-
lonização, expressava a força que fazia desses índios agentes históri-
cos importantes.
Esse aparente paradoxo (entre invencibilidade de um lado e
depreciação e desumanização de outro) ajuda, pois, a compreender
que numa visão de conjunto estes "cronistas coloniais" se caracteriza-
vam por falar da fúria, da violência, das necessidades e ataques dos
índios adversários, ao mesmo tempo que ocultavam as falas, senti-
mentos e mesmo suas inteligências - ou talvez não tivessem acesso a
elas. Diante do adversário que continuava ameaçando não havia qua-
se menção a sistemas culturais e sociais que compunham a vida des-
tes grupos - registro que desde o século XVI era feito em relação a
FEROCIDADE NO PAPEL: PRIMEIROS REGISTROS 43
outras tribos que vivenciavam alianças e contato mais estreito com o
colonizador. A escrisa desta história aparece então como moldada
pelas práticas guerreiras dos Conquistadores e colonizadores. Histó-
ria escrita do ponto de vista da Conquista, mas de certa forma "bru-
talizada" pelo vigor guerreiro dos Aimorés, intimamente ligado às
suas estruturas culturais.
Existem possíveis explicações para essa força de resistência e
amplitude da sobrevivência dos Aimorés.
Os grupos tupis (mais ligados à agricultura, com cerâmicas mais
complexas e sediados no litoral na época da chegada dos europeus)
tinham mais dificuldade em locomover-se e mudar de habitação com
agilidade. Ao contrário dos grupos Jês (e a denominação genérica de
Aimorés), com frequência caçadores e coletores, nômades ou semi-
nômades, com cultura material menos complexa, feita de materiais
mais leves. Tais características davam a eles melhores condições de
movimento, seja para evitar o contato ou guerrear, tornando-se assim
mais difíceis de serem conhecidos pelos adversários, relativamente
preservados de suas formas de contato, registro e controle.
Pode-se arriscar a afirmação de que a guerra, ainda que agrava-
da pela presença dos europeus, compunha a identidade e a estrutura
social desses índios, constituindo-se num motor vital de criação e
reprodução de seus laços sociais, garantindo e elaborando a coesão
interna de cada grupo. 25 Paradoxalmente, a guerra aparecia como
garantia da vida dessas tribos, e quando guerreavam com os não índios,
com outras tribos ou entre si, ao mesmo tempo que engendravam
atividade eminentemente destrutiva, criavam condições de preservar
a própria vida. A guerra aparecia para eles como fonte e troca de
energias com os adversários. Nesse sentido, pode-se falar de uma an-
tropofagia, seja ela simbólica ou efetiva, uma vez que os combates
podem significar a incorporação da energia do adversário. Este "ca-
nibalismo", ainda que apenas simbólico, criava uma perturbadora
alteridade entre não índios e Aimorés - onde as ferocidades e as
energias se igualavam, se disputavam e se realimentavam.
Os combates podiam tanto conduzir à morte quanto serem ga-
rantia de vida. Sendo assim, quanto mais tinham chance de combater
ou evitar contato, mais esses índios ganhavam força para sobreviver.
Se deixassem de guerrear, os Aimorés estariam dissolvendo parte de

25
Cf. nota anterior.
44 OS "VIS AIMORÉS"

sua própria organização social, deixando de ser quem eram, ainda


que a atividade guerreira possa ser entendida de várias formas e me-
diações, dentro de condições históricas.
Um dado curioso aparece durante as guerras dos chamados Ai-
morés: as armas de fogo encontradas por esses índios eram destruídas
e não utilizadas, comportamento que, ao que parece, seria mantido
pelos descendentes dessas tribos mesmo nos momentos de guerra mais
intensa, no princípio do século XIX. Isso parece indicar que a ativi-
dade guerreira, para esses índios, tinha um sentido ligado à visão de
mundo: mudar as armas seria alterar a própria guerra, o que parecia
inconcebível para esses grupos que, assim, expressavam um "conser-
vadorismo" de costumes. Por gestos como tais, que valem como um
testemunho, podemos conjeturar que a guerra parecia ter para eles
um caráter cósmico ou sagrado, que regulava suas relações sociais
com os "Outros" - e não apenas busca de subsistência, como tende a
crer o olhar funcionalista, nem uma suposta índole "selvagem".
Em reforço da hipótese de que essa visão guerreira, nos Aimorés,
estivesse ligada a uma cosmogonia, a uma visão do mundo e do univer-
so, há também o nomadismo. Mais do que buscar explicações definiti-
vas para a guerra e o nomadismo (às vezes muito evidentes para a
perspectiva racionalista), do tipo fuga dos inimigos, busca de subsistên-
cia ou influências climáticas, percebe-se que em alguns povos indígenas
o nomadismo, como a atividade guerreira constante, pode estar ligado
à busca de uma "Terra Sem Males", vingança de mortos ou ao confron-
to com espíritos que estariam errando pelas florestas, dos quais os
índios precisariam fugir, enfrentar ou saciar as vontades. Existem ca-
sos também de práticas rotineiras de vingança, funcionando como
uma espécie de código de honra regulador das relações de poder.
Trata-se, pois, de uma visão de mundo: organização social, vingança,
espíritos e Terra Sem Males. Estariam os Aimorés submetidos a um
ou a vários desses códigos? Tudo leva a crer que sim, apesar da ausên-
cia de estudos deste gênero nos três primeiros séculos do contato.
Durante muito tempo - e ainda hoje - despejou-se um dis-
curso moralizante sobre os índios, colando etiquetas que oscilam en-
tre a bondade e a perversidade naturais. O bom selvagem e o mau
selvagem. Em cima dessas constatações elaboram-se políticas, litera-
turas, fazem-se contatos, praticam-se controles e até genocídios.
lnomináveis Aimorés. É importante alertar para a inexatidão do
uso do nome Aimoré. Não se tratava de uma tribo apenas, e nem
FEROCIDADE NO PAPEL: PRIMEIROS REGISTROS 45
sempre de um mesmo grupo etnolinguístico, mas denominação ge-
nérica que podia ser aplicada a vários grupos e tribos, em geral tapuias.
Isto é, não tupis, e com certa frequência do grupo linguístico Jê ou
Macro-J ê. O padre J ácome Monteiro, por exemplo, que os conheceu
de perto, escreveu ao relacionar os índios do Brasil: "E há outros, que
chamam Tapuias e mais comum ente Aimurés, que estão nesse espaço
de 140 léguas, que há da Baía ao Espírito Santo". 26 Neste rol de
Tapuias incluíam-se os que viriam a ser chamados de Botocudos
durante o século XIX e Krenak no século XX. Logo, essa imprecisão
do nome Aimoré, aplicado a agrupamentos distintos, ainda que difi-
culte um conhecimento mais rigoroso, não impede a caracterização
predominante dos índios identificados sob tal rótulo, que são os tra-
tados no âmbito deste trabalho.
À escassez de contatos com a civilização ocidental corresponde
uma carência de fontes escritas, de registras mais densos em relação a
esses Aimorés. E, mais do que uma dificuldade de consultar fontes
documentais, ocorre um problema maior, que viria a expressar o cerne
das relações com os índios. Como nomear estes últimos? Como tratá-
-los, senão pelo extermínio e aniquilação, não só da vida, mas do
próprio nome?
O nome foi marca forte que os registras históricos deixaram
sobre esses grupos indígenas. Chamados de Aimorés, como mais tarde
de Botocudos, essas nomeações não eram assumidas por eles. Ao con-
trário, era identidade atribuída pelos adversários, estigma. "Mas ne-
nhum se nomeia pelo de Guaimuré, que quer dizer nome mau, la-
drão, matador, prezando-se todos pelo nome de Guerém Guerém". 27
Guerém pode ser uma corruptela de Kren. Da mesma forma, dois
séculos depois, outra testemunha diria que o nome de Botocudo de-
sagradava profundamente esses índios, que se irritavam ao ouvi-lo
pronunciado. 28
Está claro, portanto, que esses índios nunca chamaram a si
mesmos de Aimorés, como também nunca se apresentariam mais tar-
de como Botocudos. Esses dois nomes ou, mais do que isso, essas
duas identidades, foram forjadas por seus oponentes, servindo ao
mesmo tempo de classificação e justificativa para combatê-los.

26 Jácome Monteiro, apud Serafim Leite, VIII, p. 406.


27
Ibidem.
28
Cf. M . Wied-Neuwied, t. 2, p. 209.
46 OS "VIS AIMORÉS"

De acordo com o Dicionário de Aurélio Buarque de Holanda,


aimoré vem do tupi, amboré, nome de um peixe conhecido também
por amoreia ou moreia. A mesma expressão - com variações como
guaimuré- serviria aos tupis para denominar não só este peixe notó-
rio por seu comportamento agressivo, mas a todo tipo de pessoa que
lhes fizesse mal, que lhes parecesse violenta ou ameaçante. Dessa
maneira, foram denominados predominantemente alguns poderosos
grupos de índios arredios aos tupis e aos colonizadores, localizados
em determinada área geográfica, como o "gentio" Aimoré.
Mais tarde, já no século XIX, seria possível verificar, como vere-
mos adiante, que uma das características desses grupos, ao lado de
um certo nomadismo e do [racionamento em bandos, era a ausência
de nomes fixos e unificados. O nome de uma tribo mudava em função
de diversos fatores que não foram bem esclarecidos, mas sabe-se, por
exemplo, que uma tribo podia ganhar o nome do chefe ou do local
onde estivesse sediada. A mudança de chefe ou de local podia acarretar
a transformação do nome da tribo, o que dificulta o registro por códi-
gos letrados e racionalistas. Prejudica não só o registro, mas o que é
inerente à própria nominação em si: o conhecimento e o controle.
Daí a iniciativa do adversário de dar um outro nome a esses grupos
- o que correspondia, também, a uma atitude, um enquadramento.
Indomáveis, era preciso domá-los. Inomináveis, era preciso nomeá-
-los. Invencíveis, era preciso vencê-los. Para os historiadores e outros
estudiosos, fica o desafio: como tratá-los, sem reproduzir a marca dei-
xada pelos seus adversários? Falar deles é repetir seus algozes. Não
falar é também perpetuar o silêncio de morte que paira sobre eles.
Grande parte das localidades litorâneas, na época do "Des-
cobrimento", foi batizada com nomes religiosos católicos. A pró-
pria palavra índio indicava a crença inicial de que os múltiplos povos
encontrados nas "Américas" (de Américo Vespúcio ... ) eram habi-
tantes das Índias, isto é, das Índias ao oriente da Europa. A nomea-
ção de Aimoré, como mais tarde de Botocudo, não fugiria a essa
regra batismal.
Algumas informações esparsas chegam sobre os nomes dessas
tribos Aimorés. Segundo o padre Jácome Monteiro, os Aimorés di-
vidiam-se em grupos de nomes diversos, como Guerém Gueréns,
Patutus, Napurus, Crampee, Piiouriis, Coconhim e Brue-Brue. 29

29
Padre Jácome Monteiro, apud Serafim Leite, vol. VIII, p. 406.
FEROCIDADE NO PAPEL: PRIMEIROS REGISTROS 47
Cardim, mais ou menos na mesma época, afirmava que tribos como
Mainuma, Aturary e Qyiglaio "se misturão com os Guaimu-
rês", ou "entrão em communicação"com eles. 30 O que leva a crer
que seriam os nomes tribais que eles se atribuíam ou, então, ocor-
rência de alianças ou incorporações entre distintos grupos etno-
linguísticos, que acabavam se mesclando. De qualquer modo, fica
difícil falar em Aimorés puros: apesar da existência de grupos com
identidades étnicas definidas, havia encontros e mutações, de forma
dinâmica.
Em relação a ornamentos, temos a observação do jesuítaJácome
Monteiro, que viu os Aimorés portando o que chamou de pedras
brancas e redondas:

Nas orelhas, assi homens como mulheres, trazem umas pedras


redondas, brancas e quanto maiores tanto mais graves; os bei-
ços furados e cheios de pedras, e estas brancas, como as das
orelhas [... ].

Essas "pedras brancas" poderiam ser os ornamentos de madeira


de cor clara, que os portugueses chamariam botoques (originando o
apelido Botocudo) e os índios no minavam como gnimato (utilizados
na orelha) e houma (nos lábios). 31 De qualquer maneira, sabe-se que
diferentes grupos etnolinguísticos utilizavam ornamentos nos lábios,
orelhas e narinas, perfurando-os.
Qganto ao exame linguístico, quase nada foi feito de forma
sistemática no tempo dos Aimorés. O mesmo Jácome Monteiro
informa que os Guaimurés chamavam os portugueses de krenton, que
significava gente do cabelo feio. Mais tarde, no século XIX, a maio-
ria dos vocabulários Botocudos retoma essa expressão com o mesmo
significado, isto é, designação pejorativa dos não índios - o que já é
um indício da continuidade entre Aimorés e Botocudos. Como assi-
nalou um estudo linguístico, em nenhuma outra tribo encontra-se tal
vocábulo. 32

30
F. Cardim, p. 203.
31
Cf. M . Wied-Neuwied, t. 2, p. 212.
32 C. Emmerich & R. Montserrat (1975). Há um estudo linguístico pioneiro

e expressivo sobre esse grupo étnico do theco C. Loukotka (1955), que listou 38
dialetos dos Aimorés/Botocudos e faz ressalvas para a inclusão dessa língua no tronco
Macro-Jê.
48 OS "VIS AIMORÉS"

Assim, no século XIX, entre tribos de Botocudos, krenton sig-


nificava ao mesmo tempo "cabeça-feia" (kren-ton), civilizado, gente
má. Existem variações desse termo, como crenn-tonn, kreneton e
cratonha. Este, aliás, adaptado e incorporado ao idioma português no
Brasil, como caratonha. O Dicionário de Morais e Silva, edição de
1813, registrava tal termo, sem aludir à sua origem. 33 Na década de
1990, os Krenak ainda utilizavam o termo krenton, que significava
"branco doido" ou, também, soldados. 34
Vê-se que kren, ou cren, é uma das expressões-chave desse vo-
cabulário, servindo para denominar cabeça, cabelo, cara. É possível
fazer também uma comparação fonética entre os termos Guerém ou
Gren (nomes de tribos nos séculos XVII e XVIII, que podem ser
corruptela de cren) com os Krenac do século XX, todos girando em
torno da mesma raiz, cren.
A questão das origens e da continuidade entre Aimorés, Grens
e Botocudos gerou alguns mal-entendidos. Varnhagen, por exemplo,
arrisca o palpite de que esses índios teriam vindo do sul das Améri-
cas, da Patagônia, mas não fundamenta tal hipótese. 35 Teófilo Ottoni,
que conviveu de perto com essas tribos nos anos 1840 e 1850, contes-
ta a linha de continuidade entre Aimorés e Botocudos e afirma que
estes falavam uma língua do grupo tupi-guarani. 36 Trata-se de erro
crasso de Ottoni, que não apresenta argumentos ou provas consisten-
tes. Ottoni quer crer que eles são um ramo dos tupis, mas faz tal
asserção ignorando até as evidentes diferenças linguísticas entre esses
grupos. Seria o mesmo que afirmar que os chineses falam russo, ou
que os alemães expressam-se em japonês ... Ottoni fundamenta tal
afirmação num ponto curioso: não consegue enxergar nos Botocudos
que encontrou nenhum resquício daquilo que lhe parecia ser a gran-
deza épica dos Aimorés. São provavelmente manejos da sensibilidade
romântica que via no Tupi os bons e nos Aimorés os maus, sem maiores
fundamentos históricos, embora repetidos por alguns estudos poste-
riores. O notável etnólogo Curt Nimuendaju, por seu turno, descon-
fiou da filiação Aimorés e Botocudos, mas infelizmente não teve opor-
tunidade, como admitiu, de aprofundar a questão.37

33
Diccionario da lingua portugueza . .. , Antonio Moraes e Silva [1813], (1922).
34
Cf. Izabel Misságia de Mattos (1996, p. 56).
35 F. A. de Varnhagen. História geral do Brasil, vol. I, t. 1, p. 309.
36
T. Ottoni, pp. 188-9.
37
Curt Nimuendaju, apud I. Missagia (1996, p. 57).
FEROCIDADE NO PAPEL: PRIMEIROS REGISTROS 49
No século XIX, Martius, na sua primordial classificação das
línguas indígenas do Brasil, que rompe de maneira consistente com a
dualidade tupis e tapuias, põe juntos Aimorés e Botocudos.38
Numa atitude oposta a de Ottoni (quanto à filiação dos Boto-
cudos com Aimorés), o general Cândido Rondon e os pioneiros do
Serviço de Proteção aos Indios (SPI), no começo do século XX, reto-
mam a denominação de Aimoré para os mesmos índios, no que pare-
cia ser uma tentativa de resgatar-lhes o passado e a dignidade atingida,
além de garantir-lhes alguma parcela de posse do território. Rondon
chamou os Krenak de "última relíquia da outrora pujante nação dos
Aimoré", ao mesmo tempo que o SPI advogava ao governo de Minas
Gerais a legalização de terras para esses índios em torno dos rios Eme
e Doce. E numa classificação etnolinguística, o general Rondon consi-
deravaAimorés, Botocudos e Krenaks pertencentes a um mesmo grupo. 39
Há diversas fontes e análises que indicam para esse caminho de
continuidade entre Aimorés, Grens e Botocudos. A tradição oral dos
moradores da região - registrada nos livros dos primeiros viajantes
do século XIX, como Saint-Hilaire e Wied-Neuwied- expressava
uma consciência clara deste elo entre Aimorés e Botocudos. Um ad-
ministrador local e proprietário de terras, José Pereira Freire de Moura,
que viveu entre os anos 1760 e 1810 nas margens do rio Jequitinhonha,
estabelecendo contato com várias tribos, testemunha neste sentido:

Os Indios Botocudos Ambarés são certamente hua tribo deriva-


da, mas apartada dos Botocudos que habitão os matos do Rio-
doce. Elles tem a mesma lingoa, ou a sua lingoa pouco difere
da Botocuda, sendo dela um dialeto. Os ornamentos dos botoques
no beiço, e nas orelhas, o serem antropofagos, não se lhe conhe-
cer domicilio certo, andarem sempre em pequenas partidas para
poderem subsistir; porque vivem da caça e da pesca, não tendo
o menor conhecimento de cultura: tudo isto concorre para se
poder dizer com justeza que são, ou fazem hua tribu dos Bo-
tocudos.40

38
Von Martius. Glossaria, p. 177.
39
Conferência do general Cândido Mariano da Silva Rondon no Congresso de
Geografia, Belo Horiwnte, 1920, apud Amílcar B. Magalhães {1947), pp. 32 e 60.
40 J. P. F. Moura. "Noticia e observações sobre os indios Botocudos que frequen-

tam as margens do rio Jequitinhonha e se chamão Ambarés ou Aymorés" [1809],


RAPM, II, 1897.
50 OS "VIS AIMORÉS"

O relato acima é interessante por vários motivos. Ele começa


reafirmando a continuidade entre Aimorés e Botocudos. Tenta uma
descrição, ainda que sumária, das características culturais dessas tribos.
Embora ainda se prenda aos registros dos relâmpagos guerreiros, da
ferocidade e da agilidade, que marcaram os escritos da época colonial,
esse funcionário e proprietário rural, certamente imbuído de alguns
raios das Luzes das ciências, leva em conta hábitos culturais e a compa-
ração linguística para estabelecer a identidade das tribos em questão.
Mesmo o próprio ato de chamá-los ao mesmo tempo de Botocudos e
Ambarés é sugestivo para indicar que esse relato foi feito justamente
no momento de passagem entre uma denominação e outra.
Além disso, há um ensaio histórico e linguístico sobre esta ques-
tão que estabelece conclusões fundamentadas mostrando que Aimorés,
Krens e Botocudos compunham essencialmente um mesmo grupo
etnolinguístico. 41 E com transformações históricas e culturais que os
grupos humanos em geral passam ao longo de cinco séculos, em
diferentes graus e circunstâncias.
Não creio que tenha existido autodenominação unificada ao
longo dos diversos tempos e espaços para este grupo etnolinguístico
subdividido em tribos. Borum, tido por nome autêntico e uniforme,
não aparece em registros anteriores ao século XX. Minha tendência é
conceber que, a um certo nomadismo territorial, correspondia um
nomadismo nominal. Isto é, os nomes desses grupos eram mutáveis
de acordo com diferentes circunstâncias (o chefe do bando, a locali-
dade onde estavam, etc.) e a existência de nome único entre estes
grupos foi sempre imposição externa. Ou então eles assumem o nome
único (como Krenak, por exemplo, que no século XX passa a ser
agregado como sobrenome) para efeito de identificação externa, isto
é, diante dos Outros, que não eles próprios. Mesmo que o nomadismo
territorial tenha acabado, o nominal, de algum modo, permanece,
assim como o fracionamento convive com a unificação de diferentes
"bandos", que coexistem no século XXI numa mesma área, mas de-
marcando diferenças e desavenças.
A antropóloga lzabel Misságia de Mattos anotou que "Borum
é o termo nativo com que os Krenak se autodesignam e cujo signifi-
cado literal é gente [ ... ]", afirmação que me parece pertinente. 42 É

41
Cf. Charlotte Emmerich & Ruth Monserrat, cit.
42
lzabel Missagia de Mattos, 1996, p. 56 e 2004, p. 43.
FEROCIDADE NO PAPEL: PRIMEIROS REGISTROS 51
verdade que os Krenak se referem a eles próprios (e mesmo a ante-
passados já falecidos) como Borum, como pude presenciar nas opor-
tunidades em que estive com eles. Certa vez perguntei ao chefé Him,
seu Nego, se o nome deles era Borum. Ele respondeu-me apenas,
com leve sorriso, que "Borum quer dizer índio". 43 Os próprios Krenak
grafam Búrum ao ensinarem sua língua aos jovens da tribo. 44
Dentro dessa perspectiva, vemos que a alteração do nome de
Aimoré para Botocudo não correspondeu diretamente a diferenças
nas características desses grupos. São gerações sucessivas de uma iden-
tidade étnico-linguística em mutação, com a mesma localização macro-
geográfica. É verdade que ocorreram mudanças: na sociedade que se
consolidava no território brasileiro, nos contatos com esses índios e,
ainda, nas concepções sobre eles, havendo, portanto, alterações signi-
ficativas nos modos de vida dessas tribos, como dos demais grupos
humanos existentes no território brasileiro nos últimos cinco séculos.
É significativo perceber que os primeiros textos sobre os Aimorés
destacavam a ferocidade, como aspecto desumanizador. Ao contrário
de outros relatos sobre índios, nos quais o controle sobre suas cultu-
ras aparecia na ênfase num comportamento marcado seja pela indo-
lência, docilidade, aceitação pacífica, alegre ou voluntária dos valores
da cristandade e da civilização ocidental. Entretanto, essa "máscara"
feroz, se correspondia a uma atitude de resistência dos Aimorés, era
também uma forma de enquadrá-los e justificar a violência contra
eles. Ainda aqui é possível encontrar "brechas" nas narrativas escritas
pelos colonizadores de corpos, terras, almas e palavras.
Qlando quatro Aimorés entraram pela primeira vez na vila de
Ilhéus, no raiar do século XVII, acompanhados de jesuítas, ao verem
os habitantes de origem portuguesa e outros índios aldeados, mostra-
ram-se "ainda medrosos de gente, a quem tanto tinham ofendido, [e]
se ferravam com o Padre e o Irmão, sem nunca os largarem senão den-
tro em casa". 45 Tinham força guerreira, mas também fragilidades. Não
eram completamente invencíveis, intangíveis, invisíveis, indescritíveis
e inomináveis, porque, afinal, partilhavam da condição humana.

43
Entrevista concedida ao autor no território dos Krenak, Resplendor (MG),
rio Doce, em 6 de fevereiro de 2000.
44
Conforme M. Krenak e outros. Cartilha Conne Panda. Rfthioc Krenak . ..
1997.
45
Cf. relato do jesuíta Domingos Rodrigues, apud Serafim Leite, II, p. 125.
Capítulo2
ALDEAMENTOS:
ENTRE MORTANDADES E MILAGRES

Ü contato com os Aimorés entre meados dos séculos XVI


e XVII, alternando guerras, escravidão e catequese, mobilizava aten-
ção dos principais centros de poder do mundo ocidental: Lisboa, Madri,
Amsterdam e Roma. E era em Salvador, capital do Brasil, que as
iniciativas concentravam-se. Além disso, as investidas holandesas no
litoral da Bahia entre os anos 1580 e 1630 (além da ocupação propria-
mente, entre 1624 e 1625) coincidiram, em alguns momentos, às
investidas dos Aimorés, dificultando a colonização ibérica nas terras
amencanas.
Com a catequização temos o primeiro grupo coeso de homens
letrados e engajados no processo de Conquista a relacionar-se com os
povos indígenas. Dois atores históricos coletivos se encontravam:
Aimorés e os jesuítas. Colonizadores mansos, índios bravos, coloni-
zadores bravos e índios mansos formando um entrelaçar e entrecho-
car de forças neste cruzamento entre sertão e litoral, entre doutrina-
ção, sincretismo e resistência indígena, guerra e cultura, acomodações
e destruições, alianças e apocalipses.
Foram vinte e oito missões expedicionárias enviadas da Europa
pela Companhia de Jesus para o Brasil até 1604, com dezenas de
padres que, a partir daquele momento, ajudariam a mudar os rumos
da colonização de forma decisiva. Destes, alguns escreveram sobre os
Aimorés, como Manuel da Nóbrega, Fernão Cardim, Pero Rodrigues,
José de Anchieta Gá citados) e Sebastião Gomes. Outros, além de
escrever, entraram em contato direto com eles, e pelo menos quatro
jesuítas sabiam a língua dos Aimorés em começos do século XVII:
52
ALDEAMENTOS: ENTRE MORTANDADES E MILAGRES 53
Jácome Monteiro Gá referido), Domingos Rodrigues, João de Aze-
vedo e Domingos Monteiro, todos do Colégio da Bahia, e o último
pregava o catecismo na língua dos Aimorés. Porém, não se conhece
nenhum vocabulário aimoré desta época.
A experiência de "cristandade dos tapuias" foi tentada com mais
ênfase no período que correspondeu, aproximadamente, ao domínio
espanhol sobre Portugal (1580-1640) e à crescente influência da
Companhia de Jesus, da qual, como se sabe, floresciam as Missões
em diversas partes do continente, da Amazônia ao Sul.
Nesta guerra de Conquista os instrumentos bélicos não eram
poupados: pólvora, chumbo e bala. Mas entrelaçada à violência que
custava tantas vidas havia a dimensão simbólica, mágica, que não
caracterizava apenas os índios e marcava a cultura europeia, numa
longa duração. Na impossibilidade de conhecer melhor as crenças e
celebrações desses índios nos dois primeiros séculos da colonização,
é instigante, porém, compreender e assinalar crenças e celebrações
dos colonizadores, geradas no contato com os Aimorés.
A visão de mundo (bélico-religiosa) da Europa, sobretudo a
partir das Cruzadas, tinha algumas marcas. As relíquias, como se
sabe, eram objetos de culto - durante séculos um dos principais
catalisadores da fé católica. Elas começam a perder força a partir do
Reforma e do racionalismo Ilustrado do século XVIII - embora
possa se perceber, ainda hoje, persistências desse tipo de culto. Caixinhas
preciosas onde estariam guardados restos mortais de santos, trapos de
roupas sagradas, supostos pedaços do Santo Sudário ou da Cruz de
Cristo transformavam-se em imagens potentes e congregadoras, às
vezes com mais vigor e importância do que as figuras dos santos
esculpidas. Mais tarde pesquisadores detectaram figuras de santos
que seriam como centopeias- caso fossem verdadeiras todas as Re-
líquias que lhes eram atribuídas - ou ainda uma Cruz de vários
quilómetros de extensão onde Cristo esteve pregado ... 1
As relíquias tinham papel importante, sobretudo no sentido de
encorajar a guerra contra os pagãos, fossem mouros ou índios. Eram
baluartes da memória que ajudavam a fundamentar a coesão e a iden-
tidade da civilização cristã ocidental. Restos de corpos do passado
que contribuíam a dar organicidade ao corpo social do presente.

1
Um curioso inventário crítico e desmistificador foi feito por Collin de Plancy,
Dictionnaire critique des reliques et images miraculeuses, 1821.
54 OS "VIS AIMORÉS"

Assim, ficamos sabendo que o superior geral da Companhia de


Jesus, em 1575, enviara para a Bahia uma relíquia de São Jorge,
visando especificamente os Aimorés. 2 O gesto não era gratuito. O
santo-guerreiro, mártir do século IV, fora escolhido como Padroeiro
das Cruzadas por Ricardo Coração de Leão. O líder jesuíta clamava
assim a uma nova Cruzada, desta vez contra outros "bárbaros". O
"dragão" a ser enfrentado pela força de São Jorge tomava outro feitio.
E não era atitude ingênua ou piedosa, mas vigoroso gesto simbólico,
ponto de partida para investida de envergadura da Companhia de
Jesus e de grupos armados sobre os Aimorés. Significou, nos anos
seguintes, destruição de tribos, mortes por epidemias, combates san-
grentos, batismos coletivos, conversões de índios ... A vitória obtida
num embate com Aimorés em 1581 (quando os conquistadores leva-
ram para o campo de batalha esta Relíquia) foi atribuída à presença
deste objeto de culto, tido como miraculoso.
É o padre José de Anchieta, aliás, quem narra este caso
miraculoso:

E o em que mais confia toda gente dali é em uma relíquia do


glorioso São Jorge mártir, que está na nossa igreja. Por terem
experimentado que, depois que foi para ali (que haverá seis
anos), não mataram nenhum português, e dos índios muito menos
do que antes costumavam. Pelo que a gente lhe tem muita de-
voção e, pelo seu dia, vão todos, senhores e escravos, índios e
portugueses à nossa igreja, com uma solene procissão, aonde se
lhes faz uma pregação em louvor do santo e aumento da devo-
ção, que se lhe deve ter. 3

A narrativa de Anchieta aponta para o sólido caráter congregador


das relíquias, símbolo capaz de unificar diferentes segmentos (sociais
e culturais) sob o manto da fé católica, diante de inimigo comum,
além de demonstrar como tais procedimentos, oriundos da Idade Média
europeia, eram reproduzidos de maneira vigorosa nas terras de além-
-mar, ganhando, possivelmente, diferentes significados para grupos

2
Cf. Jarric, apud Southey, t. 2, p. 50. Também a Carta Ânua da Companhia
de Jesus de 1581 escrita pelo padre Anchieta confirma o milagre atribuído a S. Jorge,
cf. Serafim Leite, I, pp. 191-2.
3 J. de Anchieta. Cartas . .. , p. 311.
ALDEAMENTOS: ENTRE MORTANDADES E MILAGRES 55
tão diversos envolvidos nas celebrações. E é interessante lembrar que
a Vila de São Jorge dos Ilhéus foi batizada com o prenome de seu
primeiro donatário, mas de certo modo crismada pelos atribuídos
milagres do santo homônimo.
Conta-se também que a imagem de Nossa Senhora da Ajuda,
nos arredores de Porto Seguro, desapareceu do altar da igreja em sua
homenagem no dia de um levante dos Aimorés. Após sangrentos
combates, na manhã seguinte, a mulher que tomava conta da capela
encontrou a estátua de volta ao altar, "toda suada e com um lenço lhe
alimpou o suor do rosto". O Menino Jesus em seu colo também su-
mira e só posteriormente foi achado, num canto do altar. A explica-
ção encontrada é que a santa fora socorrer seus fiéis durante a batalha
contra os índios, deixando escondido o Menino. A volta da imagem
ao altar foi motivo de festejos, com celebração de missa pelo jesuíta
Mateus de Aguiar, no Natal de 1621. 4
Na mesma localidade de Nossa Senhora da Ajuda, três séculos
mais tarde, a memória coletiva local ainda guardava fortes traços des-
te entrelaçar dos Aimorés e jesuítas. Como nesta lenda, que circulava
nos anos 1930:

A jovem e bela Y naiá vivia feliz em Carahyva, na beira do


mar, nos arredores de Porto Seguro, onde o chefe dos Aimo-
rés (Abaitara) era seu irmão. Até que chegaram estranhos ho-
mens em navios vindos de uma terra desconhecida (seria a
expedição de Gonçalo Coelho, de 1503, cujos canhões deixa-
dos no local ainda hoje atestam sua passagem por lá). Y naiá
apaixonou-se por um homem da expedição portuguesa que,
entretanto, não correspondeu à paixão e seguiu viagem com os
seus. Ynaiá, desesperada, segue por terra o navio até Porto
Seguro, mas ao chegar lá as naus já haviam partido. A índia
aimoré então morreu de paixão. Seu irmão, para vingar a sua
morte, destruiu o povoado de Santo Amaro. Escapou da des-
truição apenas a imagem de Nossa Senhora d'Ajuda, que foi
retirada para um arraial nas proximidades. Os jesuítas então
construíram uma igreja com o nome da santa que também ba-
tizou a localidade. O!ranto a Y naiá, foi enterrada na igreja de

4
Cf. carta do padre Mateus Aguiar ao provincial Domingos Coelho, apud
Serafim Leite, V, p. 230.
56 OS "VIS AIMORÉS"

São Francisco, que ruiu, mas cujo local passou a ser alvo de
adoração. 5

Permanecia então este culto a Ynaiá, sobretudo entre as mulhe-


res da cidade, que costumavam rezar missas e depositar flores no
local onde se supunha estar seu túmulo. Ainda na ocasião, N. S. da
Ajuda era uma santa milagreira que atraía peregrinos de toda a região
e cuja sala dos milagres (ex-votos, pinturas, etc.) estava repleta de
agradecimentos por graças alcançadas.
Os mitos indígenas entrelaçados à cultura católica por meio da
catequese constituem um manancial de estudos. É evidente que a len-
da citada acima misturava episódios que ocorreram em épocas diversas,
como a expedição de Gonçalo Coelho, a fundação da vila de Santo
Amaro (feita à custa de um massacre sobre Aimorés) e a catequese.
Entretanto, essa narrativa, mantida viva pela tradição oral por uma
população de caboclos que ainda se lembravam de sua identidade
mista de Tupiniquim e Aimoré, não seria uma forma, sincrética, de
resistência cultural e de narrar a própria história, onde a pureza de
sentimento dos índios contrasta com a brutalidade e insensibilidade
do Conquistador?
Além dos jesuítas, a Ordem dos Frades Menores teve seu qui-
nhão no confronto bélico e simbólico com os Aimorés, registrado
pela pena de escribas confrades como Vicente do Salvador e Antônio
MariaJaboatão. Ainda em Ilhéus, de acordo com o relato deste últi-
mo, cronista franciscano, certa vez os colonos investiram contra estes
índios, "repetindo as entradas, e numa deixarão sem vida a muitos, e
trouxerão prezos, e cativos huma grande multidão daqueles bárba-
ros".6 Segundo freiJaboatão, os colonos atribuíram a vitória e apre-
samento dos índios a Nossa Senhora das Neves, padroeira de uma

5
Em 1939, em missão dos Diários Associados, o jornalista Edmar Morei reco-
lheria esse mito fundador de Arraial d'Ajuda (BA), onde os habitantes, caboclos, ainda
se apresentavam como descendentes dos Tupiniquins e dos Aimorés, misturados aos
brancos, cf. Edmar Morei, Assis Chateaubriand e outros. Sob os céus de Porto Seguro,
pp. 29-31.
6 Frei Antonio de Santa MariaJaboatam. Novo Orbe Seráfico Brasflico. .. , vol. I,

pp. 88-9. Este autor franciscano escreveu no século XVIII e não deixou informações
sobre a data do episódio, que situa nos primeiros tempos da colonização. O trecho em
que este autor fala sobre os Aimorés é uma transcrição literal (sem aspas ou referên-
cias) da narrativa quinhentista de Gabriel Soares de Sousa.
ALDEAMENTOS: ENTRE MORTANDADES E MILAGRES 57
capelinha em Ilhéus ao pé do monte na rua de São Bento. Vitoriosos,
decidiram então ampliar e rebatizar a capela, com o nome de Nossa
Senhora da Vitória. E registrou-se que, entre os prisioneiros Aimorés,
"Os mesmos Gentios cativos confessavão, forão vencidos por huma
forte, e formosa Mulher branca, que montava em hum ligeiro cavallo".
Aí não era mais caso de relíquia, mas sim de uma aparição mariana,
outro tema tradicional (e recorrente) na simbologia católica que vem
narrado nesta crônica franciscana. O trecho acima indica também
que havia casos de cativeiro ("prezos, e cativos"), isto é, de escravidão,
entre Aimorés aprisionados.
Em contrapartida a esta derrota, sabemos, ainda em Ilhéus, de
"[ ... ] huma Capella do Seráfico Patriarcha [São Francisco de As-
sis], que houve nos seus princípios no districto daquella Villa", den-
tro de um engenho, abandonada, junto com a propriedade rural, pelos
fiéis "fugindo aos estragos, e insultos dos Tapuyas Aymorés, estes
arrazarão tudo, e com a ruína do Engenho, a teve também a Capella". 7
Desfaziam-se as imagens, inclusive franciscanas, diante da interven-
ção (de resultado iconoclasta) desses indígenas. Por outro lado, entre
escravização e resistência, houve o aldeamento Curral dos Bois, com
Guaimorés, organizado por franciscanos no sertão da Bahia, sob a
invocação de Santo Antônio, entre 1702 e 1843. 8
A devoção em torno do padre José de Anchieta e culto à sua
memória mesclaram-se ao enredo de uma tradição anti-indígena, com-
. pondo sugestivo mosaico de permanências de representações cultu-
rais e de sua cristalização em crenças e símbolos religiosos - habi-
lidade característica entre os jesuítas. Já nos primórdios da colonização,
o próprio Anchieta assinalara os Aimorés como hostis, chamando-os
"do mais cruel e desumano gentio, que nestas partes há". 9 O pioneiro
da catequese nas terras brasílicas parece ter vivido frustração por não
ter obtido a incorporação destes índios no seu projeto missionário,
como relatou em tom de desabafo:

Com intervenção dos tapuias, intentou-se a empresa, todos os


recursos foram mobilizados, para que essa infeliz e cruel nação

7
Ibidem, pp. 377-8.
8 Cf. Missões e aldeamentos no sertão nordeste do Brasil no século XVII, in
Pedro Puntoni. A guerra dos bárbaros. .. , p. 295.
9
José de Anchieta. Cartas. . , pp. 311, 312 e 340.
58 OS "VIS AIMORÉS"

entrasse em intercâmbio conosco e assim, abraçasse a fé em


Jesus Cristo. Tudo inútil! Pois, para se pôr em contato com eles
e entabolar negociações de paz, percorrendo os índios as ocul-
tas brenhas (que são moradas dos aimorés), se viram não pou-
cos trespassados uma e outra vez por suas flechas, regressando
assim às regiões nativas. Continuam, pois, os inimigos a perpe-
trar as tropelias de antes. O!,teira Deus que um dia se abram os
seus olhos, para conhecerem e amarem seu Criador! 10

Contrariando a expectativa de Anchieta e de outros coloniza-


dores, os Aimorés persistiam em atacar engenhos, residências e ou-
tras propriedades. O famoso poema épico De gestis Mendi de Saa (Os
feitos de Mem de Sá), primeiro livro publicado (em 1563) de autoria
do padre José de Anchieta, narra a guerra empreendida pelo terceiro
governador do Brasil (1557-1572) contra os índios da capitania do
Espírito Santo, com destaque para a batalha do rio Cricaré, onde
faleceu o comandante das tropas portuguesas e filho do governador,
Fernão de Sá. Trata-se de uma obra apologética da figura de Mem de
Sá na perspectiva da Conquista e da cristandade, na qual ss destaca,
também, a presença dos indígenas como temíveis adversários brasílicos,
associados à natureza americana.
Após a morte de Anchieta, temos no século XVII o exemplo de
crenças e devoções na atitude do jesuíta Domingos Monteiro: en-
quanto aguardava a aproximação dos Aimorés para atraí-los ao al-
deamento dos Reis Magos, no Espírito Santo, orava com frequência
ao junto do túmulo do padre Anchieta (que o recebera na Compa-
nhia de Jesus) pela conversão deste gentio, rezando missa também no
local quando os primeiros índios aproximaram-se sem atacar, em
1619_11 Era uma celebração à memória e homenagem aos projetos de
Anchieta quando, ainda que mais tarde, deram alguns frutos através
da incorporação de grupos de Aimorés ao projeto "manso" da ca-
tequização.
E na mesma localidade do Espírito Santo as autoridades que
combateriam os índios Botocudos ainda guardavam relíquias no ano
da chegada da Corte portuguesa ao Brasil (1808), como um dente de

10
José de Anchieta. Cartas. . , p. 340 (Carta ânua da Província do Brasil de
1583).
11
Cf. Carta ânua de 1617-1619, apud Serafim Leite, VI, p. 163.
ALDEAMENTOS: ENTRE MORTANDADES E MILAGRES 59
São Tiago e a canela do Venerável Anchieta. 12 Como corolário dessas
tradições hostis aos índios, pode-se ver ainda no século XXI na cida-
de de Anchieta (onde no século XIX havia um aldeamento para Bo-
tocudos), Espírito Santo, um monumento à beira-mar composto das
estátuas de dois personagens: uma, mais elevada, representa o lendá-
rio missionário jesuíta, diante do qual há um índio rebaixado, a indi-
car veneração ou submissão.
Não era exatamente a ausência de "pensamento mágico" que
fazia a diferença entre europeus e Aimorés, nem o "conservadorismo"
cultural marcado pela persistência de crenças que ultrapassavam con-
textos históricos. E pode-se dizer que tanto nas culturas indígenas,
quanto nas europeias, assim como no entrelaçar de ambas, existem
permanências de representações simbólicas que atravessam os sécu-
los e sobrevivem mais tempo que as formas de vida e organização
social que as engendraram. E neste exemplo citado, talvez não seja
ousado associar a preservação de partes mutiladas do corpo como
relíquias católicas à prática de mutilação dos corpos dos adversários
pelos indígenas, ambos com forte significado simbólico.
Se os seguidores de Santo Inácio de Loiola causaram embara-
ços, aliaram-se ou alteraram a vida dos Aimorés, a recíproca, em
certa medida, existiu.
Os jesuítas tiveram de abandonar a localidade de Camamu, em
fins do século XVI, em razão dos ataques desses índios que, também,
destruíram um engenho sob os cuidados desta Ordem em 1633, do
mesmo modo que missionários ficaram por longos anos isolados em
Ilhéus sem poder expandir as atividades fora da vila, por causa da
hostilidade dos Aimorés. 13 O referido engenho, aliás, pertencera à
mãe de um dos jesuítas que sabia a língua dos Aimorés, Domingos
Monteiro. O que evidencia que, ao lado da força e Conquista espiri-
tual, que dominava corações e mentes, os jesuítas estavam também
envolvidos em interesses bem palpáveis de posse de terras.
Na capitania de Porto Seguro, no início do Seiscentos, os colo-
nos chegaram a passar fome pelo temor de cultivar roças fora dos

12
Cf. "Relação da Prata pertencente ao Collegio que foi dos Extinctos Jesuítas
da Ilha da Vittoria", onde se relacionava "hum caixotinho de prata com o dente de S.
Tiago" e "hum caixotinho de prata lavrada, [que] tem dentro a canella do Venerável
Anchieta", AN, Série Ministério do Reino/Ministério do Império- Correspondências
dos governadores da capitania e presidentes da província do Espírito Santo, 1808.
13
Serafim Leite, V, pp. 206, 220 e 222.
60 OS "VIS AIMORÉS"

limites da vila, em razão dos constantes ataques dos Aimorés. O pro-


vincial da Companhia de Jesus no Brasil, Pero Rodrigues, pronun-
ciou-se sobre este caso do seguinte modo:

A terra está já ocupada dos Aimorés, nem teem já os moradores


onde cavarem mantimentos, porque lhes teem mortos estes bár-
baros seus escravos e a muitos dos moradores. E como se não
podem sustentar a si, menos podem acudir a sustentar os pa-
dres.14

A carta acima foi enviada às autoridades da Companhia de Je-


sus em Roma, que se mostravam preocupadas com a perda de terreno
(concretamente) para os Aimorés. Este testemunho ressalta que os
Aimorés causavam problemas de subsistência e de sobrevivência para
a Conquista, colonização e para a Ordem de santo Inácio.
A inexistência de Missões jesuíticas na capitania de Porto Se-
guro, nesta época, foi atribuída pelo mesmo provincial à ação dos
Aimorés:

Não se pode tratar acerca de missões, porque se não pode daí


fazer nenhuma: e a razão é estarem postas em grande aperto há
muitos anos e a gente ir aos poucos desamparando [... ] tanto
aperta com a gente uma praga de gentio bravo, cuja língua não
se pode entender, e que chamam Aimorés. 15

Ou seja, tais índios, com sua resistência, atingiam o âmago do


projeto colonizador por meio da catequese.
Ao mesmo tempo, este raiar do século XVII seria momento de
aproximação de alguns grupos dos Aimorés com os colonos na Bahia,
sobretudo por intermédio dos jesuítas. Foi, simultaneamente, momento
de guerras violentas entre grupos (ou garfos, como se dizia em portu-
guês arcaico ... ) de Aimorés e as frentes de expansão. De um lado
índios que, acossados pelos embates, aceitavam aldear-se com os pa-
dres. De outro, os colonizadores portugueses que, além das refregas

14
Carta de Pero Rodrigues ao superior geral da Companhia de Jesus, Bahia, 15
de setembro de 1602, apud Serafim. Leite, I, p. 204.
15
Carta de Pero Rodrigues, Bahia, 19 de dezembro de 1599, apud Serafim
Leite, I, p. 212.
ALDEAMENTOS: ENTRE MORTANDADES E MILAGRES 61
com indígenas, viam-se ameaçados por holandeses, espanhóis e fran-
ceses. Nesse quadro construíam-se alianças onde cada parte procura-
va a melhor maneira de proteger-se dos respectivos inimigos. Daí
que uma das táticas dos colonizadores foi utilizar outros grupos indí-
genas no combate aos Aimorés, como os Potiguares.
O envolvimento dos Potiguares nessa trama, além de possíveis
animosidades preexistentes entre grupos indígenas, foi intermediado
pelos jesuítas. A catequização, embora trabalhando com dimensões
pedagógicas, psicológicas, culturais, místicas e espirituais, ligava-se
diretamente à atividade bélica e aos interesses de posse da terra, ape-
sar dos conflitos com colonos e com a Coroa em razão da forma de
tratar os índios e de ocupar suas terras. Daí que o historiador e jesuíta
do século XX, Serafim Leite, tenha resumido de maneira discreta,
embora honesta:

E assim, depois de meio século de lutas, vieram os Aimorés a


ser reduzidos pela intervenção conjugada da autoridade civil e
dos Jesuítas, nos primeiros anos do século XVII. 16

É preciso esclarecer que apenas uma parte dos Aimorés inte-


grou-se a este projeto de catequese. A experiência de pacificação foi
precedida de duros embates. "Tambem neste tempo se levantou outro
gentio chamado os aymorés em a capitania dos Ilhéus, que a poz em
muito aperto", narra frei Vicente do Salvador. Durante o domínio espa-
nhol sobre Portugal e seus territórios a guerra contra os Aimorés conti-
nuou. O governador-geral Manuel Teles Barreto (1583-1587) dedicou
grandes esforços para combater essas tribos. Se os primeiros guerrei-
ros portugueses haviam sido derrotados, os que vieram em seguida
tentaram ampliar o leque das alianças. Engajou-se para esse fim os
colonos Diogo Correia de Sande e Fernão Cabral de Ataíde, espécie
de caudilhos que lideravam um contingente de escravos e índios forros
em armas. Formavam tropas pluriétnicas, com o objetivo de combater
os indígenas que se apresentavam mais refratários aos europeus. Para
reforçar esse pequeno exército, o mesmo governador engrossou-o com
tropas regulares comandadas pelos irmãos Diogo e Lourenço de
Miranda, castelhanos. Diversos combates foram travados emJuguaripe,
Camamu e Tinharé. Em todos os Aimorés saíram vitoriosos.

16
II, p. 123.
62 OS "VIS AIMORÉS"

Os Conquistadores ibéricos acabavam de ter uma experiência


(para eles, bem-sucedida) de pacificação das tribos Potiguares que
ocupavam áreas da Paraíba e Pernambuco. Durante a gestão do go-
vernador-geral do Brasil, D. Francisco de Sousa (1590-1602) e, so-
bretudo, na gestão interina do capitão-mor Álvaro de Carvalho, seu
sucessor, foi também ensaiado um modo de convivência com estes
Aimorés, apoiado pelo trabalho missionário da Companhia de Jesus.
A rebelião dos Potiguares fora aplacada a ferro e a fogo e seguida de
um acerto de paz. A meta era repetir a façanha com os Aimorés.
Buscando ao mesmo tempo evitar que a chama da revolta se reaquecesse
e solidificar essa trégua, os ibéricos resolveram propor aos Potiguares
que fizessem a guerra, juntos, contra os Aimorés.
Assim, formou-se um improvisado exército com as hostes guer-
reiras encabeçadas pelo chefe Zoroabe e pelas tropas do capitão por-
tuguês Francisco da Costa. Marcharam até Ilhéus para dar, segundo
eles, "caça" aos Aimorés, considerados como "bichos do matto". Já
aqui percebe-se um recurso que seria constantemente usado, ao lon-
go da História, não só contra índios, mas também nas diferentes lutas
políticas entre integrantes de uma mesma civilização. As metáforas
de animais como maneira de criar uma lógica de depreciação do
adversário, de privá-lo até das características humanas. Mais que um
recurso de retórica, esta animalização simbólica é uma prática de
combate e de poder que sempre frutificou nas relações políticas as
mais diversas.
O episódio envolvendo Zoroabe é curioso e mostra que as ex-
periências envolvendo diferentes etnias podiam acarretar outro tipo
de problemas para os colonizadores. Os guerreiros de Zoroabe trava-
ram alguns combates contra os Aimorés, mas ao que parece sem su-
cesso. Há indícios de que os Potiguares não se animaram muito em
continuar a combater, provavelmente pelas dificuldades da empreita-
da. Ao mesmo tempo outra frente de combate foi aberta, e que trazia
sérias ameaças ao domínio europeu na região açucareira: o 0!-tilombo
dos Palmares. Zoroabe e seus guerreiros foram deslocados para lá e
causaram consideráveis baixas entre os africanos rebelados. Fizeram
numerosos prisioneiros. Mas ao invés de entregarem os escravos aos
antigos proprietários ou à Coroa, os Potiguares vendiam eles mesmos
os detidos pelo caminho. Com o dinheiro arrecadado e com a impor-
tância crescente em face dos Conquistadores, este chefe índio come-
çou a reivindicar para si e para os seus privilégios e poderes. Com-
ALDEAMENTOS: ENTRE MORTANDADES E MILAGRES 63
prou bandeira de campo, à moda medieval, enfeitou cavalos com ri-
cos jaezes, fez formar um cortejo musical e entrava nas cidades triun-
fante, como uma espécie de imperador dos bugres. Exigia, ainda, que
a Igreja, as autoridades civis e a população formassem cortejo para
homenageá-lo e, à sua frente, caminhava um imponente guerreiro
brandindo uma espada. O resultado da exibição deste ritual - que
indica uma clara tentativa de ocupação de poder, de disputa pela so-
berania - foi a prisão do chefe indígena e seu envio a Portugal, onde
morreu no fundo de uma masmorra. A aliança entre diferentes gru-
pos étnicos, embora tenha ocorrido no período colonial, não ficava
isenta de contradições. 17
Um dos principais focos de tensão era o intento de utilizar os
índios não apenas como braço armado, mas como força de trabalho
na agricultura. Tal ocorreu envolvendo Potiguares trazidos de Pernam-
buco para combater os Aimorés na Bahia, em 1602. 18 Foi momento
crítico para a Conquista, pois os Aimorés, depois de reconquistarem
a maior parta das capitanias de Ilhéus e Porto Seguro, começaram a
investir na direção de Salvador, capitania da Bahia, ameaçando assim
a empreitada colonial. Nada menos que oitocentos guerreiros
potiguares de arco e flecha foram arregimentados, sob a promessa de
prêmios e de voltarem às suas terras, depois da guerra.
Qyando esse contingente de Potiguares chega a Salvador, o pe-
rigo imediato estava afastado, pois os Aimorés haviam recuado. En-
tretanto, os colonos pretendiam utilizar-se dos recém-chegados não
mais como arqueiros, mas para trabalharem em suas terras. Os
Potiguares recusaram e resolveram regressar a suas aldeias, no que
foram impedidos por colonos armados. Criou-se o impasse e os índios
estavam prontos para o combate com os aliados da véspera, quando
os jesuítas interferiram. Os potiguares, que já haviam passado por
recentes e traumáticas experiências de massacres e abrigavam-se nas
Missões, acabaram aceitando a intermediação dos padres e aceitaram
ficar sob o controle dos colonos.
Porém, mesmo sem chegar à capital baiana, os Aimorés conti-
nuaram a fazer estragos na colonização. Arrasaram mais engenhos
em Santo Amaro e em Ilhéus. Porto Seguro ainda mantinha certa

17
O episódio de Zoroabe (também chamado de Zorobabé) está narrado nas
obras de Frei Vicente do Salvador, Southey e Varnhagen.
18
Southey, II, pp. 39-41.
64 OS "VIS AIMORÉS"

estabilidade, pois estava povoada e fortificada não só por colonos


europeus, mas por indígenas aldeados por jesuítas. Entretanto, ines-
perada decisão das autoridades locais e de colonos sedentos de rique-
zas fez com que os índios aldeados fossem distribuídos pelas diversas
propriedades da região, dispersando-lhes assim as forças. Isso facili-
tou os ataques dos Aimorés, que acabaram tornando-se senhores de
quase toda capitania naquele momento. 19
Em relação aos Aimorés esse episódio teria outras consequên-
cias. Num dos combates (onde se aliavam portugueses, espanhóis e
Potiguares) foram aprisionadas duas "fêmeas" Aimorés. 20 Uma delas
morreu, mas a outra foi recolhida. Em face da evidente ineficácia das
batalhas, os portugueses resolveram tentar outra fórmula de conquis-
tar os arredios adversários. A índia foi tratada com todas as regalias
possíveis. A tarefa ficou a cargo de Álvaro Rodrigues da Cachoeira,
experimentado colono português, que tomou para si a proteção da
prisioneira, logo batizada com o nome de Margarida. O diálogo não
foi fácil. Diante dos finos vinhos portugueses que lhe ofertavam, foi
preciso primeiro convencer a índia de que não era sangue de seus
irmãos que ela estava sendo induzida a beber... Este detalhe é pre-
cioso e nos traz uma amostra de que a construção de mitos sanguiná-
rios existia dos dois lados: no olhar dos colonizadores em direção aos
Aimorés e na visão destes em relação aos Conquistadores. De um
lado e de outro o inimigo era apresentado como desumano, mons-
truoso e antropófago. A guerra aparecia a ambos -europeus e indí-
genas - como um gesto de destruir e até de devorar o inimigo,
sugar-lhe a força, a carne ou o sangue.
Aos poucos a Margarida Aimoré foi vestida, alimentada, apren-
deu o português, enfim, teve tratamento dos mais atenciosos das da-
mas e fidalgos lusitanos - que, por sua vez, viam diante de si a índia
constituir-se como um ser humano a sua imagem e semelhança. Car-
regada de presentes, panos coloridos com a tinta do pau-brasil, uten-
sílios como espelhos, redes, facas, pentes, etc., Margarida (nunca sou-
bemos como era seu nome indígena) foi enviada de volta como
emissária de paz à sua tribo. Ia andando pela floresta gritando que os
portugueses eram amigos e que queriam viver bem com os índios.
Atacados numa guerra sem tréguas pelos Conquistadores, já
fazia quase um século, alguns Aimorés mostraram-se sensíveis ao

19
Southey, II, p. 40.
ALDEAMENTOS: ENTRE MORTANDADES E MILAGRES 65
gesto. Grupos, tímidos, começaram a se dirigir à casa de Álvaro Ro-
drigues, em Salvador, onde foram igualmente bem tratados. A notícia
espalhou-se e logo a casa de Rodrigues viu-se cercada de Aimorés
carentes de paz e convívio amistoso, pedindo proteção. Alguns que-
bravam suas flechas em sinal de amizade.
Esta não seria a última vez em que os colonizadores acredita-
riam que esses grupos indígenas estariam definitivamente pacifica-
dos. Mas a escassa população da capital do Brasil entrou em pânico,
diante de guerreiros que teriam condição de causar sérios estragos.
Eram cerca de 1.600 índios.
A solução encontrada foi abrigar-lhes na ilha de ltaparica, então
despovoada. Criaram-se quatro Missões a cargo de três jesuítas, entre
eles Domingos Rodrigues (do convento da Ordem em Salvador), que
aprendeu a língua dos Aimorés. Mas o que parecia ser um final feliz
começou a ganhar ares de tragédia. Pouco mais de dois meses depois
de instalados em Itaparica, em contato mais estreito com os colonos,
os Aimorés foram dizimados pelas doenças. A peste foi avassaladora.
Os cadáveres amontoavam-se e os padres mal tinham tempo de enco-
mendar os corpos e promover enterros. A paradisíaca ilha virou uma
estação do inferno e os jesuítas, em vez de anjos salvadores, pareciam
os cavaleiros do apocalipse. Na experiência destes índios, batismo e
doença se associavam. Esse sacramento, como um rito de passagem,
pretendia sinalizar a transição do paganismo ao cristianismo, da civili-
zação à barbárie mas significava, concretamente, a destruição da vida.
Os Aimorés sobreviventes não tiveram muitas saídas. Uns, te-
merosos da guerra e da doença, continuaram sob a proteção dos colo-
nos, foram transferidos para outras localidades, misturaram-se com
outras tribos, inclusive tupis, e foram aprendendo a chamada língua-
-geral e o português. Outros embrenharam-se pelas selvas, para lon-
ge, sem deixar rastro imediato. E outros, atacaram os portugueses,
mais uma vez tentando derrotá-los. 21 Nesses comportamentos, temos
duas estratégias distintas de sobrevivência: um pela resistência ou
isolamento, outro pela adaptação e convivência ao adversário. 22

20
A narrativa sobre estas mulheres Aimorés foi registrada por Frei Vicente do
Salvador, capítulo Trigésimo Quinto, pp. 333-4.
21
O aldeamento provisório de Itaparica e suas trágicas consequências está
referido nas obras de F. Vicente e Southey.
22
Sobre as estratégias de alianças e resistências envolvendo índios, colonos e
jesuítas, v. o trabalho de J. Monteiro. Negros da terra . . ., 1996.
66 OS "VIS AIMORÉS"

O rei Filipe III escreveu de Castela (centro de seu império me-


diterrâneo e atlântico) ao governador-geral do Brasil, D. Gaspar de
Sousa, preocupado com o "bem comum de meus vassalos por os gentios
Aimorés estarem levantados".23 Chegavam à Espanha (era a época da
união ibérica sob predomínio espanhol) notícias alarmantes sobre esse
levante dos Aimorés em 1613 e os próprios colonos da Bahia envia-
vam cartas pedindo ajuda da Coroa, como explica o rei, ao registrar
que um grupo de fazendeiros "me presentou petição dizendo que elles
tem fazendas e outros emgenhos em J aguaribe quatorze legoas da mes-
ma çidade fronteira do sertão as quaes por muitas vezes, e em muitas
ocasiões se tiverão perdido, e ouvera muitos alevantamentos dos Indios,
e morte de gente branca e fogidas de negros dos engenhos [... ]". 24
É interessante notar que este ataque dos Aimorés narrado por
Filipe III se deu num contexto determinado: na Bahia (sede da admi-
nistração do Brasil) e numa época em que floresciam as Missões
jesuítas. O que mostra que havia parcela significativa de índios que
não se deixava controlar pela máquina administrativa - mediante
alianças ou sujeição pelas armas - nem se envolvia com as Missões.
Aliás, essa investida dos Aimorés acabou gerando uma crise envol-
vendo a Coroa, os religiosos e os fazendeiros. Situada nos arredores
de Jaguaribe, naquilo que o rei chamava de "fronteira do sertão",
estava a Aldeia de Santo Antônio, uma Missão de índios "mansos"
mantida pela Companhia de Jesus. A localização desse aldeamento
era estratégica. O rei insistia:

[... ] esta fronteira de Jaguaribe e a de Peroassu são bocas, e


entradas do sertão em que cumpre ter guarnição assyrn pera
defenção e guarda dos engenhos, fazendas e moradores[ ... ].25

Entretanto, os indígenas aldeados não desejavam ficar neste cru-


zamento explosivo (e nisso contavam com o apoio dos jesuítas), ca-
minhos criados e frequentados por índios arredios ao contato, escra-
vos fugidos e exploradores portugueses. Os índios aldeados, assim,
foram se mudando para outra localidade, mais próxima da cidade, até
que os jesuítas pediram oficialmente permissão à Coroa para muda-

23 Cartad'el Rey ao Senhor Gaspar de Sousa sobre a aldea dos Índios de Santo
Antonio de Jaguaripe, 24 de maio de 1613, mimeo. Biblioteca do Ministério das
Relações Exteriores, Rio de Janeiro.
24 25
Ibidem. lbidem.
ALDEAMENTOS: ENTRE MORTANDADES E MILAGRES 67
rem definitivamente o local do aldeamento para as proximidades do
povoamento. Tal iniciativa descontentou os colonos que viam suas
propriedades desguarnecidas, já que entre os aldeados havia "Indios
frecheiros que são de muita utilidade pera as ocasiões de guerra,
forteficações e obras publicas e outras cousas alem de guardarem a
fronteira". Em outras palavras, a Coroa e os colonizadores queriam
utilizar os índios catequizados como mão de obra e força guerreira
contra os Aimorés ou contra os escravos rebelados ao passo que aqueles
índios, apoiados pelos jesuítas, buscavam preservar-se. As ordens ré-
gias foram no sentido de manter a Missão de Santo Antônio nas
bocas do sertão. Nesse conflito entre colonizadores, a espada da Co-
roa se sobrepôs ao carisma da Cruz. Mas ambos não tardariam a ficar
de acordo diante do inimigo comum.
Em algumas situações, como na Aldeia São João, no Espírito
Santo, o padre Sebastião Gomes refere-se aos combates contra "uma
nação de gentio, que chamam Tapuias ou Aimorés" praticados por
"Índios cristãos", os quais, no momento do ataque, "arvoravam logo
uma cruz e, antes de pelejar, se punham todos de joelhos diante dela.
Feito isso, arremetiam aos inimigos com tanto esforço e confiança na
vitória que sempre Nosso Senhor lha deu". 26 Era, como tudo indica,
uma postura de sincretismo da parte desses índios, que aliavam sua
experiência guerreira a expressões da simbologia (também guerreira)
católica, expressando uma aliança com os colonizadores contra ou-
tros grupos indígenas.
A investida dos Aimorés atingiu ainda um importante ponto da
política filipina: a liberdade dos índios. O governador-geral D. Gaspar
de Sousa, depois de discutir o tema com os colonos e os padres da
Companhia de Jesus (ao que parece todos ficaram de acordo) escre-
veu a Filipe III pedindo que a lei sobre a liberdade dos índios ficasse
suspensa naquele local e momento, ou seja, na Bahia durante o levan-
te dos Aimorés. A resposta do monarca ao governador foi clara: "te-
nho por bem considerado a resolução que tomastes em não dar exe-
cução a dita ley, e vos encomendo sobresteis nella, até terdes outra
ordem minha advertindo que tenhais esta em segredo" _27

26
Relato de 1597 do jesuíta Sebastião Gomes, apud Serafim Leite, I, p. 242.
27
Carta d'el Rey para o Senhor Gaspar de Sousa em que lhe agradece o que
ordenou contra o navio estraniero que foi à Parruba e outras cousas acerca dos índios,
23 de junho de 1613, mimeo. Biblioteca do Ministério das Relações Exteriores, Rio
de Janeiro.
68 OS "VIS AIMORÉS"

A legislação do período colonial, como é sabido, oscilou bas-


tante no caso da liberdade dos índios (proibição de escravizá-los),
alternando proibições, permissões e criando exceções. Em 1609, por
exemplo, fora decretada lei que proibia o cativeiro indígena, por ser
contra o Direito Natural. 28 Mas quatro anos depois, como se vê no
documento acima, não só o rei concordava como recomendava que o
desrespeito à sua lei continuasse, pois pedia segredo de tal autoriza-
ção, em vez de decretar uma guerra justa. Diante da presença dos
Aimorés, desarticulava-se o arcabouço teológico, bulas papais e o
respeito às Ordenações Filipinas. Restava, nua e crua, a ferocidade
dos colonizadores ibéricos que pretendiam exterminar ou escravizar
os que não se submetiam.
Pela guerra, catequese ou pelas doenças, os Aimorés saíram
enfraquecidos com as Missões, embora alguns tenham encontrado
nelas espaço de proteção e sobrevivência.
Esse movimento de pacificação, ainda que parcial e acompa-
nhado de novos conflitos, deixou frutos, à sua maneira, na sociedade
que se formava. Em análises do fim do século XIX e começo do XX,
isso era perceptível. Nas páginas clássicas em que analisa a formação
histórica do homem sertanejo no interior da Bahia, Euclides da Cunha
destacaria a importância dos diversos grupos tapuias na base da arga-
massa étnica e cultural da região, deixando traços na toponímia, no
tipo físico, na linguagem e em hábitos culturais - que não derivam
somente do romantismo europeu ou da cultura tupi. A mesma indica-
ção fora dada por Capistrano de Abreu para a região chamada hoje
de Nordeste. 29 Mesmo os índios que comumente aparecem como
derrotados ou submissos, não teriam de alguma maneira sobrevivido
ou deixado sua marca genética e cultural, apesar de todos os revezes
que sofreram? Negar-lhes essa presença e herança não seria subme-
ter-lhes a um novo esmagamento?
A capitania da Bahia, por ser a sede da administração no Brasil,
possuía um aparato religioso e bélico mais importante, o que acabou
fazendo que os Aimorés fossem afastados dessa área, indo mais para o
interior (oeste e sudoeste) ou para o sul, onde nas capitanias de Ilhéus,

28
Cf. B. Perrone-Moisés. Inventário da legislação indigenista 1500-1800, in
Maria M. Carneiro da Cunha (org.), 1998, p. 530.
29 E. da Cunha. Os sertões. "O Homem", caps. I e II; C. de Abreu, Caminhos

antigos epovoamento do Brasil.


ALDEAMENTOS: ENTRE MORTANDADES E MILAGRES 69
Porto Seguro e Espírito Santo não havia as mesmas condições de
combatê-los, adentrando também pelos sertões do que seriam as Minas
Gerais. De qualquer forma, como já foi dito, em época próxima da
chegada dos europeus, parcela expressiva dos Aimorés já estava no
interior locomoveu-se em direção ao litoral. Essas migrações foram
rastro de uma forma do povoamento da região, cuja gênese se encon-
tra, em certa medida, também nos aldeamentos jesuíticas .

• ••
O padre Domingos Monteiro acabara de rezar a missa das 6
horas da manhã pelos idos de 1619, na igreja da Missão dos Reis
Magos, encravada na Mata Atlântica, quando alguém se aproximou e
gritou a novidade:
-Chamam-te os Tapuias! Ei-los, ali estão! ...
Há cinco meses o padre Monteiro esperava por esse momento,
pela aproximação dos Aimorés. Mesmo sentindo o estômago leve, ain-
da em jejum, ele não hesitou e desabalou a correr em direção à floresta,
no que foi seguido por outros portugueses e índios aldeados que, tal-
vez por prudência, mantiveram-se mais atrás, enquanto o padre Do-
mingos tomava dianteira. Começava uma jornada que o próprio jesuíta
descreveria, em seu relatório, como o primeiro dos sete dias do
Gênesis.
Chegando ao local indicado o padre Domingos não encontrou
mais os índios, apenas objetos que eles haviam deixado. Inconformado
o jesuíta clama em alta voz, chama pelos Aimorés, mas diante do
próprio eco logo sente-se como pregador no deserto, apesar da ferti-
lidade da floresta que o cercava. Havia pelo chão restos de fogo, de
moquém (carne assada) ainda na fogueira, tocos de madeira cortados,
tipoias (com as quais as índias carregavam os filhos) ... De posse de
tais objetos o padre Monteiro leva-os de volta à Missão e (antes de
alimentar-se, ele mesmo ressalva!) coloca-os diante da imagem de
Santo Inácio de Loiola como oferenda. Ainda não estava de posse das
almas, nem dos corpos, mas tinha aqueles despojos. O jesuíta encar-
regado da catequese dos Aimorés começava a vislumbrar uma luz.
Ou melhor, as trevas, para ele, começavam a separar-se da luz. Era o
fim do primeiro dia.
No dia seguinte os Aimorés esperavam-no no mesmo lugar,
não fugiram, mas não se aproximaram a ponto de se tocarem: obser-
vavam prudentemente de cima das árvores. O padre Domingos não
70 OS "VIS AIMORÉS"

se deixou abater, pelo contrário, mas lembrou da passagem evangélica


quando Zaqueu subiu numa árvore para poder enxergar Jesus Cristo.
No segundo dia separavam-se as águas, embaixo do céu, das águas
que cobriam o firmamento.
O jesuíta tocou para Vitória, sede da capitania do Espírito San-
to, a fim de dar a Boa-Nova da "conversão" iminente dos Aimorés.
Diante do túmulo de Anchieta, que décadas antes acolhera na Com-
panhia o então jovem Domingos Monteiro, este agradeceu ao "santo
Padre Joseph" a graça que alcançava. Agradecia aos céus as sementes
que começavam a brotar na terra. Terminava o terceiro dia.
O padre Domingos foi então nomeado diretor da Missão, pois
o jesuíta que até então exercia o cargo desinteressava-se do contato
com os indígenas arredios. A viagem a Vitória foi assim proveitosa.
Sobretudo porque a almejada pacificação dos Aimorés era esperada
muito além de Vitória, mas em Salvador, Lisboa, Madri e Roma. No
quarto dia o Sol passa a governar os céus durante os dias e a Lua
governa o firmamento nas noites.
0!.-tatro Aimorés aguardavam o padre Domingos Monteiro cal-
mamente na varanda da casa central da Missão dos Reis Magos. O
novo diretor recebeu-os entusiasmado, como se fossem os embaixa-
dores das quatro partes do mundo. Era véspera de Santíssima Trinda-
de. Os demais índios do aldeamento - calejados das longas guerras
tribais que assolavam a região- estavam inseguros com tais visitan-
tes. Mas o jesuíta encheu os recém-chegados de presentes e manifes-
tações de afeto, para que eles se multiplicassem. Era o quinto dia.
Depois chegaram mais sete índios, a princípio sem mulheres e
crianças, mas com presentes: ceras, almécegas e macacos. Tentavam,
a seu turno, pacificar os "brancos". Logo vieram as mulheres Aimorés
que às vezes amamentavam macacos, criando-os no peito como colaços
dos próprios filhos - mesmo que isso contrariasse o preceito de que
toda a criação da natureza tem como fim ser subjugada para servir ao
ser humano. No fim do dia cerca de 60 Aimorés já tinham aparecido.
O jesuíta aproveitou o dia de Corpus Christi e fez a procissão com os
índios aldeados, seguida de danças e bailados. Os Aimorés gostaram
dos festejos e entraram no circuito. Completava-se o sexto dia.
Há muitos anos o padre Domingos se dedicara ao aprendizado
da língua dos Aimorés através de "hum ladino mui christao" que
conhecera na casa de um português. Ladinos, como se sabe, eram os
escravos batizados, que sabiam português e já tinham adquirido qua-
ALDEAMENTOS: ENTRE MORTANDADES E MILAGRES 71
lificação nos trabalhos domésticos ou produtivos. O jesuíta passa então,
no pátio da Missão e aproveitando o embalo dos festejos, a pregar o
catecismo para os Aimorés que ficaram admirados e contentes a ouvi-
rem a própria língua na boca de um europeu. A aproximação dos Ai-
morés causa espanto e dezenas de colonos da região dirigem-se para
lá querendo ver para crer. Entra em cena o capitão Manuel Maciel
Aranha que oferece para a Missão considerável soma da Caixa de
Imposição da vila. Os Aimorés trazem duas crianças para serem ba-
tizadas. Estas, no dia seguinte, morreram- embora o padre Domingos
Monteiro não tenha compreendido por quê. Talvez porque já estives-
sem doentes e os pais tivessem esperança de que os colonos, possíveis
transmissores da doença, pudessem curá-las. Mesmo sem registrar
nenhum nome indígena, o jesuíta batizara as duas crianças: Maria e
Domingos, ou seja, uma simbolizando a mãe de Cristo e outra o próprio
nome do eclesiástico. Ele considerou essas duas crianças os cordeirinhos
apartados e oferecidos como primeiro sinal da terra prometida.
Os Aimorés quebravam suas flechas e ofereciam-nas ao missio-
nário e cada um deles executou conscienciosamente tal gesto. Depois
foram nas matas buscar frutos e cocos de sapucaia como novas ofertas
retiradas do seio da floresta. A paz parecia fixada. Era um evento que
parecia transcender tempo e espaço: Roma (sede do governo "espiri-
tual") e Madri (sede do governo "temporal") se rejubilariam. O túmulo
de Anchieta e a relíquia de São Jorge pareciam ganhar vida. E ale-
grava-se o coração dos colonizadores que capturavam e buscavam
eternizar esses acontecimentos na narrativa histórica, como o
franciscano Vicente do Salvador que se rejubilava:

[... ] e se fez paz com os aymorés em toda esta costa. 01teira


nosso Senhor conservai-a e que não demos occasião a outra vez
se rebellarem. 30

Assim, no sétimo dia, completava-se a gênese dos Aimorés se-


gundo o padre Domingos Monteiro, que agora podia descansar da
tarefa que lhe fora confiada.
A narrativa continua. Como que arrancados do Jardim do Éden,
estes Aimorés seguiram em fileira o capitão Manuel Aranha que

30
Esta é a última referência aos Aimorés no texto de frei Vicente do Salvador,
p. 334.
72 OS "VIS AIMORÉS"

voltou para a vila carregando os presentes (inclusive arcos e flechas)


e os Aimorés que passariam a ser inseridos na sociedade colonial.
Evidenciava-se nesse caso a ligação estreita entre catequese, o poder
da Coroa, o interesse dos colonos e a escravidão indígena - fatores
que nem sempre estariam em harmonia em outras circunstâncias.
Logo sobreveio a primeira epidemia e começaram as mortandades. O
jesuíta dissuadia aos que queriam fugir e batizava-os in extremis. Mas
outros grupos de Aimorés, que moravam nas serras, não estavam re-
duzidos (estabelecidos na redução, na Missão) e continuavam a mo-
ver guerra sem tréguas contra portugueses e índios cristianizados. A
própria grandeza dos edifícios da Missão dos Reis Magos tinha um
sentido de fortaleza, de fronteira contra os Aimorés que permane-
ciam arredios ao contato.
Esse relatório do padre Domingos Monteiro, de 1619, é um
dos primeiros escritos mais extensos que se conhece sobre os Aimorés
(ele escreve Gaimorés). Discípulo direto de Anchieta, o padre Do-
mingos era natural de Lisboa e sua atividade na Companhia de Jesus
era mais missionária do que administrativa - isto é, dedicava-se à
catequese dos índios, ao trabalho de terreno. Posteriormente, tornou-
-se superior do Convento de Ilhéus e visitador da Ordem em Vitória
e pertencia, como foi visto, a uma família de proprietários de enge-
nhos. Ele redigiu um texto de fragilidade etnológica (percepção e
descrição do grupo contatado), mesmo se comparado com outros es-
critos quinhentistas ou seiscentistas. 31 Dizer que estava impregnado
de eurocentrismo e também de uma acentuada religiosidade (rituais
de culto, veneração de santos e imagens, invocações da Providência
no desenrolar dos acontecimentos) é afirmar o óbvio para esse caso.
Mas mesmo num sentido utilitarista (conhecer para controlar) res-
sente-se da falta de registras e informações sobre os Aimorés - a
não ser que tais observações estejam em textos ainda não localizados.
Aqui a atividade intelectual dos jesuítas aparece diretamente engajada
nas tentativas de colonização e sujeição dos índios.
Os jesuítas chegaram a estabelecer dez Missões na capitania do
Espírito Santo. As Missões eram acompanhadas de fazendas e de pe-
quenos aldeamentos. Mas duas Missões apenas sobreviveram nesta ca-
pitania: Reritiba e Reis Magos. Esta última, fundada ainda no século

31
O texto em questão é um relatório em forma de carta ao superior da Compa-
nhia de Jesus no Brasil para os anos 1617-1619, apud Serafim Leite, VI, pp. 159-67.
ALDEAMENTOS: ENTRE MORTANDADES E MILAGRES 73
XVI, também chamada de Missão de Santo Inácio Mártir, tornou-se
um centro irradiador de catequese e Entradas, sobretudo em direção
aos índios Aimorés e Paranaubis (grupos de tupis que habitavam a
região).
Para compreender esses contatos entre índios e os missionários
de Santo Inácio temos ainda a trajetória dos Gueréns (ou Grens,
Krens), nome aplicado a grupos de Aimorés que, depois de guerrearem,
aceitaram o caminho da pacificação mediante a catequese na Bahia.
O que aconteceu a esses índios que deixaram de lado a atividade
guerreira e buscaram, pela via pacífica, uma estratégia de sobrevivência?
Na Freguesia de Santa Cruz da Vila de São Jorge (o santo-
-guerreiro), Ilhéus, foi estabelecida em 1602 uma Missão para índios
Gueréns sob a invocação de Nossa Senhora da Conceição, fruto da
aliança entre grupos de índios com os colonizadores, por intermédio
dos jesuítas. Os índios ganharam porções de terra e ajuda para cons-
truir casas e plantar lavouras. Tudo parecia apontar futuro promissor
e estável para a convivência entre as tribos e os colonizadores.
Esse momento em que parcelas dos Aimorés parecem ter vivi-
do em paz com os colonizadores nos dá oportunidade para reflexão.
Dois grandes caminhos foram tomados por esses índios, formando
duas grandes tendências de estratégias de sobrevivência em face dos
colonizadores. De um lado, os que aceitaram incorporar-se à chama-
da vida civilizada, abdicando paulatinamente de sua identidade étnica
(ou transformando-a substancialmente) em troco, supõe-se, de con-
tinuarem vivos. Outros, mais "conservadores", não aceitaram abrir
mão de seus costumes e embrenharam-se pelo mato. Entre os que
escolheram o caminho da convivência pacífica, estava este grupo
de Gueréns.
A expulsão dos jesuítas do Brasil no governo do marquês de Pom-
bal traria fortes consequências para a vida dos índios aldeados. Os
decretos da legislação pombalina sobre a questão indígena (incluindo
o famoso "Diretório") foram publicados entre 1755 e 1759. Eles se
inspiravam numa visão leiga - e em parte mitificada - dos índios,
típica dos intelectuais da "República das Letras" do século XVIII.
Resumindo, os decretos incentivavam o casamento dos índios com os
brancos, tentavam abolir (por decreto!) as atitudes e palavras
preconceituosas em relação aos índios e seus descendentes (que não
deveriam mais ser chamados de "bárbaros" ou "caboclos"), proibiam
a escravidão indígena, enfim, desejavam que o índio se integrasse sem
74 OS "VIS AIMORÉS"

reservas aos possíveis benefícios e chances de riqueza da civilização


ocidental, para que pudessem também se tornar súditos livres da Coroa.
Esta postura pombalina não chegava a ser uma novidade nas
políticas públicas aplicadas no Brasil, pois a escravidão dos índios
fora abolida ou reintroduzida em momentos anteriores e já eram nu-
merosos os exemplos de índios que de alguma maneira se incorpora-
vam à sociedade portuguesa. O peso da iniciativa pombalina estava
sobretudo na expulsão dos jesuítas e na tentativa de implantação de
um sistema leigo e autônomo de administração das aldeias. Ou seja,
pretendia-se que os próprios índios fossem os responsáveis por sua
integração à sociedade portuguesa, adaptando-se aos moldes da civi-
lização ocidental- o que era um paradoxo que acabaria apontando
para uma incorporação subalterna dos índios como mão de obra.
A não hostilidade aos índios (pelo menos quanto a propostas
governamentais) se explica dentro de uma determinada tendência cultu-
ral. Havia aí o toque de um certo relativismo cultural que brotara num
Montaigne e aparecia nos escritos de Jean de Léry, da crítica veemente
de um frei Bartolomeu de Las Casas à violência da Conquista, das
atitudes protecionistas como a dos padres José de Anchieta e Manuel
da Nóbrega- todos do século XVI. Sem falar de contemporâneos do
século XVIII que, a seu modo, buscavam ter uma visão mais compreen-
siva dos indígenas, como o lendário francês abade Raynal ou o mon-
ge beneditino pernambucano Loreto Couto, que, de alguma maneira,
exaltavam a "nobreza do selvagem'' e do "homem primitivo americano"
em oposição à truculência dos colonizadores europeus. Ou seja, che-
gava mesmo a haver uma certa valorização do "homem do Novo
Mundo" em relação ao "homem do Velho Mundo", por mais que isso
parecesse contraditório com a empreitada mercantilista colonial.
Na prática, em muitos casos, a transformação de aldeamentos em
vilas (como prescrevia o Diretório) significou paulatina ocupação das
terras habitadas pelos índios por novos proprietários, urbanos e rurais.
Com a saída dos jesuítas o aldeamento de Nossa Senhora da
Conceição, habitado por Gueréns, seria transformado na vila de Almada.
~ando foi decretado o Diretório Pombalino, João Ferreira de
Bettencourt e Sá, por ordem da administração régia, fez levantamento
dos quinze aldeamentos da capitania da Bahia que deveriam transfor-
mar-se em Vilas, anotando em 11 de outubro de 1758 a ''Aldeia Nova
da Conceição do Gentio Greim''. E o Conselho Ultramarino, a 24 de
abril de 1759, confirmou que a Aldeia Nossa Senhora da Conceição,
ALDEAMENTOS: ENTRE MORTANDADES E MILAGRES 75
"habitada do Gentio da Nação Gren'', passava a se chamar Vila da
Nova Almada.J2 Mais uma vez o ato de nomear, desta vez um espaço
territorial, implicava uma forma de controle, de transformação da
identidade do local e de apropriação de terras que desaguavam numa
interferência direta nos modos de vida das populações indígenas até
então abrigadas sob o manto da Companhia de Jesus. Tribos,
aldeamentos e vilas compunham uma hierarquia diferenciada no espaço
do território colonial e, de certo modo, representavam, nos moldes da
época, uma escala progressiva em direção ao policiamento civilizatório.
Almada ainda contava, segundo Baltasar da Silva Lisboa, com
95 casais de Grens, muitos ainda usando o botoque nos anos 1780,
isto é, quase dois séculos depois do início do aldeamento (e duas dé-
cadas após a saída dos jesuítas)- o que revela até ali um certo sucesso
de tal estratégia de sobrevivência desses indígenas, mantendo aspec-
tos de suas identidades, apesar das transformações no modo de vida.
Entretanto, o movimento da parte dos colonizadores se intensifi-
cava: a cidade foi crescendo, fazendas florescendo prósperas e os Gueréns
tornando-se intrusos na própria terra. Os temidos Aimorés haviam
aceitado não só depor as armas, como a sedentarização, o contato perma-
nente e a paulatina incorporação à vida do colonizador. A tal ponto
que o desembargador Francisco Nunes da Costa, ouvidor de Ilhéus,
ao solicitar ao governo estabelecer um aldeamento para um gruyo de
Pataxós no Funil do Rio das Contas, em 1782, pede ajuda dos "Indios
mais hábeis" para ensinar aos recém-chegados a agricultura, comércio
e trabalho de abertura de estradas. O ouvidor se referia aos "Grens,
que são os melhores para auxiliar o fim a que se dirige esta ação de
trazer ao Gremio da Igreja o dito Gentio Pataxo". 33 Assim, vemos
este grupo indígena usado como força auxiliar para contato com outras
tribos- o que desmistifica uma visão que parece atribuir a tais gru-
pos um caráter guerreiro de origem genética, instintiva e hereditária.
Dezessete anos mais tarde, em 1799, Baltasar da Silva Lisboa,
novo ouvidor de Ilhéus, em viagem de inspeção por toda a comarca,
ainda encontra, no meio do caminho entre Tayapé e Almada, a "Aldeia
dos Indios Gueréns". Eram apenas vinte casais. As razões desta queda

32
Dossiês sobre aldeamentos e Missões Indfgenas, 1758-1807. Seção de Arquivo
Colonial e Provincial, n.0 603, cadernos 9 e 14, Apeb.
33
Informafóes e documentos vários relativos ao aldeamento de fndios e divisão da
comarca de Ilhéus, Bahia, 23 de fevereiro de 1782. Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro,
Divisão de Manuscritos.
76 OS "VIS AIMORÉS"

demográfica são narradas pelo próprio ouvidor: o sargento-mar Inácio


de Azevedo Peixoto encheu vários cestos com roupas pertencentes a
bexiguentos (infectados pela varíola) e distribuiu-as aos Gueréns. Os
que não morreram ficaram deformados e não ousavam mais aparecer
nas cidades de Ilhéus ou Almada. Sem falar que, dez meses antes da
visita de Baltasar, o bacharel José de Sá Bettencourt organizou um
arremedo de Bandeira, matando alguns índios (cujas crianças fugiram
apavoradas para os matos) e desfilou orgulhoso em Camamu com seis
índios acorrentados, todos "chorando e lastimando sua sorte". 34 Seria
parente ou homônimo do mesmo que, quarenta anos antes, fizera o
relatório prévio para a transformação do aldeamento em vila? De qual-
quer forma, os índios assim tratados eram, como se depreende, descen-
dentes dos que, após expulsarem os primeiros colonos de Camamu,
acabaram integrando-se à colonização por intermédio da catequização.
Os indígenas encontrados por Silva Lisboa não tinham mais pá-
roco para assisti-los. O último padre que ali estivera não rezava missa
e dedicava seu tempo a dirigir os trabalhos da lavoura e de extração de
pau-brasil, lucrando com o trabalho indígena. A capela de taipa co-
berta de palha do século anterior, com o nome de N. S. da Conceição,
ruíra. Estes Gueréns sobreviviam de caça e pesca, não retornaram
mais à floresta, embora ainda mantivessem contato intermitente com
um grupo de sua tribo que permanecia na região e evitava os colonos.
Num relatório sobre os índios de Ilhéus em 1803 (portanto,
quatro anos depois da visita de Silva Lisboa) não se fala mais dos
Gueréns que assim, oficialmente, eram dados como inexistentes, ex-
tintos. Era a marca da invisibilidade na (eloquente) ausência dos Grens
deste relatório. Há apenas referências aos Pataxós, tidos apressada-
mente como "inteiramente civilizados". 35
Em 1817, o viajante naturalista e príncipe de Wied-Neuwied
encontrou nos arredores de Ilhéus os últimos sobreviventes desses
Gueréns aldeados desde o século XVII pelos jesuítas. Eram quatro

34
Oficias e mapas do rio Doce,Jequitinhonha, etc., 28 de janeiro de 1805, pp. 186-
8-227; Estado de Ilheos, pp. 106-51; Trabalho dos primeirosjesuitas no Brasil, s.d., does. de
autoria de Baltasar da Silva Lisboa, enviados a D. Rodrigo de Sousa Coutinho. Relatorios,
descrições e mapas da Capitania de Porto Seguro, does. de autoria do capitão João da Silva
Santos enviados ao governador e capitão-general da Bahia, Francisco da Cunha Meneses,
28 de janeiro de 1805, Arquivo do IHGB.
35 Oficias e relatorios sobre o estado atual dos fndios de Ilhéus e Sergipe D'EI Rey, 1803.

Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, Divisão de Manuscritos.


ALDEAMENTOS: ENTRE MORTANDADES E MILAGRES 77
velhos (o "capitão" Manuel e três mulheres) habitando uma cabana
miserável: sobreviveram a todo rol das violências. Retirados enfim
das terras que lhes foram destinadas em Almada, encontravam-se na
localidade de São Pedro de Alcântara. O naturalista alemão falou-lhes
algumas palavras que aprendera semanas antes com as tribos de Bo-
tocudos do rio Doce. Manuel emocionou-se e abriu um sorriso, expli-
cando que não ouvia sua própria língua há muitos anos (o que mais
uma vez comprova a identidade entre Aimorés, Gueréns e Botocudos).
Levou o viajante germânico para o interior do casebre e mostrou-lhe
arco e flecha, que guardava apenas como recordação. Contou que ha-
via perdido o contato com outros membros de sua tribo que viviam
nas selvas. Os quatro velhos lembravam vagamente de sua língua de
origem e estavam confinados numa pequena roça de subsistência. 36
Dois séculos depois, aí estava o resultado da "cristandade dos
tapuias" iniciada com a catequese e as Missões. Existe a tese de que
os aldeamentos não aparecem como locais favoráveis à preservação
dos grupos indígenas, mas sim a sua extinção paulatina como índios.
O caso desses Grens comprova essa perspectiva (ainda que o declínio
tenha ocorrido após a extinção da Missão), embora outros casos pos-
sam apontar em sentido contrário.
Foram dois séculos iniciais de contato, vitórias, derrotas e estra-
tégias de sobrevivência e pacificação recíprocas. Apesar de alguns re-
sultados, os jesuítas não conseguiram, com os Aimorés, o êxito missio-
nário que alcançaram com outros grupos no território do Brasil. As
atitudes "mansas" e as iniciativas "bravas" não se alternavam e, sim,
eram quase sempre simultâneas ou encadeadas. E partiam tanto dos
colonizadores, no intento de subjugar e integrar, quanto dos índios em
suas tentativas de defesa, resistência e sobrevivência. Ambos, colonizado-
res e Aimorés, ensaiavam essas variadas formas de contato - que
variava segundo as diferentes concepções, ou pelos indivíduos, grupos,
locais e experiências, variando as estratégias de resistência. Enxergar
os índios que aceitavam se aproximar das Missões como "submetidos"
pode ter uma conotação que reproduza o estigma de passividade im-
pingido por seus adversários. Ou seja, índios e "brancos" (considerando
ambos como sujeitos históricos) dividiam-se e alternavam-se entre
"mansos" e "bravos".

36
Cf. M . Wied-Neuwied, t. 2, p. 341.
Capítulo 3
TERRAS E CORPOS RASGADOS
NAS ROTAS DO GADO E MINERAÇÃO

A vida dos Aimorés entre meados dos séculos XVII e XVIII


foi marcada por pesada investida das frentes de expansão para ocupar
o interior do território. As rotas do gado e da mineração rasgaram
parte importante dos domínios desses grupos indígenas, levando-os a
novos deslocamentos e a enfrentar uma época de massacres de gran-
des proporções, custando milhares de vidas. Foram conflitos violen-
tos tocando áreas e populações equivalentes ou maiores do que as
guerras na Europa da mesma época, de maior abrangência do que o
Qyilombo dos Palmares ou das rebeldias no meio urbano nas Minas
Gerais, por exemplo. Olhados em conjunto, esses episódios envol-
vendo índios constituem uma das gestas mais dramáticas e impressio-
nantes na história do Brasil, embora não estejam ainda devidamente
dimensionados em boa parte das narrativas sobre esse período. A
guerra gerou também escravização em massa de Aimorés capturados.
A Conquista e colonização, no avanço do litoral para noroeste e
norte, causou maciços ataques contra populações indígenas nos ser-
tões da Bahia até o Piauí, de modo mais agudo durante pelo menos
cinco décadas, encadeamento de ações conhecido como Guerra dos
Bárbaros. Assim como os tupis foram atacados anteriormente, por
estarem mais próximos do litoral, agora era a vez dos tapuias. As
cenas de crueldade e extermínio de tribos inteiras foram fruto de
iniciativas de particulares e de políticas oficiais.
Começava outra fase da colonização na América portuguesa,
após a expulsão dos holandeses e o fim do domínio espanhol em
1640. Ficava claro que para garantir a conquista do território pela
79
80 OS "VIS AIMORÉS"

Coroa era necessário consolidar o Estado e sua administração e ocupar


as áreas do interior- já ocupadas por centenas de grupos indígenas.
Nos episódios chamados de Guerra dos Bárbaros, os mais atin-
gidos foram os Cariris, no Ceará, destroçados na região que domina-
vam, assim como os Janduís, no Rio Grande do Norte. Mas o impul-
so inicial dos embates ocorreu a partir do Recôncavo Baiano, onde,
como já foi visto, predominavam Aimorés. Tanto que um dos primei-
ros grupos atacado era de Gueréns, em 1651, quando o conde de
Castelo Melhor expediu uma Entrada chefiada por Francisco da
Rocha. Partindo de Ilhéus, percorreu a região do rio das Contas e
Camamu, atacando tribos identificadas também como Mongoiós,
Pataxós e Aimorés. 1
Estudo recente sobre a Guerra dos Bárbaros divide-a em duas
grandes áreas e épocas: as Guerras do Recôncavo (entre 1651 e 1679)
e a Guerra do Açu (entre 1687 e 1692), além da entrada em cena dos
Bandeirantes "paulistas", havendo ainda combates no século XVIII.
Tomando a parte que nos interessa aqui, o mesmo estudo assinala,
nas Guerras do Recôncavo, os seguintes movimentos: Jornadas do
Sertão (1651-1656), Guerra do Orobó (1657-1659), Guerra do Aporá
(1669-1673) e guerras em torno do rio São Francisco (1674-1679). 2
Outro historiador chegou a classificar esstes trágicos episódios
do sertão baiano de Confederação dos Gueréns, aludindo a momen-
tos de unificação desses grupos para combater o agressor. 3 É certo
que os índios efetivaram importante reação à investida que recebiam
e há registros de grupos tribais que se federavam, isto é, se uniam
momentaneamente contra o inimigo comum, superando rivalidades
tradicionais. O que não significava exatamente uma Confederação
nos moldes em que esta palavra é concebida atualmente, com organi-
zações formalizadas e fixas da política ocidental moderna.
Os índios não efetuavam apenas resistências defensivas nem se
deixavam subjugar passivamente, mas partiam também para a ofensi-
va. Os relâmpagos guerreiros continuavam a manchar o cotidiano da
vida em colônia. No governo de Francisco Barreto (1656-1663), uma

1
Cf. Berta Ribeiro. O índio na História do Brasil, p. 64 e Francisco Borges de
Barros. A confederação dos Guerens ... , p. 180
2
Pedro Puntoni. A guerra dos bárbaros, cap. 3.
3 Francisco Borges de Barros. A confederação dos Guerens . . . Tal levantamento

histórico é tradicional, com referência imprecisa de fontes e de critérios de pesquisa,


mas baseia-se em ampla documentação e é um dos trabalhos pioneiros sobre o tema.
TERRAS E CORPOS NAS ROTAS DO GADO E MINERAÇÃO 81
investida chocou colonos e autoridades em 1659. A plantação do
sargento-mar Bartolomeu Lopes da França foi atacada de surpresa
pelos Aimorés, que primeiro mataram os escravos que se encontra-
vam no campo. Em seguida, se aproximaram sorrateiramente da casa
e crivaram de flechas o proprietário, sua mulher e quatro filhos me-
nores, que não tiveram tempo nem de levantar da mesa de refeição.
Os empregados da casa tiveram o mesmo fim. Alertados pelo baru-
lho, os vizinhos acorreram armados e não encontraram mais nenhum
atacante, restando-lhes enterrar as vítimas. A solução encontrada pe-
las autoridades foi militarizar a região de forma que julgava adequada
às distâncias e dispersão do povoamento: para cada família de colo-
nos seria destinada uma guarda de três a seis soldados. Buscava-se o
[racionamento das tropas para enfrentar o [racionamento das tribos.
Mais uma tentativa de Conquista fracassou. Pois durante oito anos
esses efetivos militares não conseguiram capturar um só índio. 4 Perto
de completar dois séculos de presença no território, os portugueses
ainda não haviam derrotado totalmente os Aimorés.
Os embates entre índios e frentes de expansão, pela amplitude
que tomaram, acabaram envolvendo amplos setores da sociedade. Na
formação das tropas para combate aos "bárbaros" foi comum o recur-
so a grupos pluriétnicos. O vice-rei e conde dos Óbidos, Vasco
Mascarenhas, ordenava ao capitão-mar de Ilhéus, Manuel Pereira de
Sá, em 1664, para o combate aos tapuias, "que reconduza todos os
Indios de quaisquer Aldeas, e os mulatos livres, e gente que volunta-
riamente quiser ir a essa Entrada". 5 Havia, portanto, arregimentação
no interior da população colonial, que correspondia a uma mobilização
em tempos de guerra. Nesse caso evitavam-se os escravos, mas eram
incorporados índios dos aldeamentos, mulatos livres e outros que
pudessem juntar-se às tropas. A estratégia, de acordo com o mesmo
vice-rei, era "destruir os Tapuyas e aterrorizar os que escaparem de
maneyra que nam tornem mais a ella [capitania de Ilhéus], ou o me-
lhor os obrigue a hua pas perpetua". Precedida de ordem para matar,
esta paz perpétua aparentava-se com a dos cemitérios.
Há referências de que esta arregimentação ocorria também do
lado dos indígenas, abarcando etnias diferentes. Numa das fases aguda

4
R. Southey, t. 4, pp. 297-8.
5
Carta de 1.• de abril de 1664, apud F. Borges de Barros. A confederação dos
Guerens ... , p. 178.
82 OS "VIS AIMORÉS"

da Guerra dos Bárbaros, teria havido união entre grupos de Gueréns,


Paianases, Aramarizes, Orizes e outras tribos vindas de Pedra Branca,
Jaguaripe e Maragogipe. Além disso, uma expedição partiu de Cairu,
comandada por Francisco de Sousa Almeida, para combater índios e
escravos negros que, aliados, atacaram em vários pontos do rio São
Francisco, destruindo até mesmo feitorias de madeira. Da mesma for-
ma, João Roiz Vieira reprimiu tapuias e escravos negros fugidos, que
se juntaram no rio das Contas. 6 Se havia escravos e negros utilizados
no combate aos índios, ocorreram também casos de negros e escravos
que se aliavam aos indígenas contra os colonizadores.
O governador Alexandre Sousa (1667-1671) construiu um for-
te perto da igreja matriz de Cairu, com o objetivo de fazer frente aos
Aimorés ou Gueréens. Certo dia, 1671, numa solenidade religiosa no
centro do vilarejo, todos os habitantes estavam presentes. O comandante
do forte, Manuel Barbosa de Mesquita, deixou a guarnição acompa-
nhado de sete soldados e dirigiu-se à igreja, para encontrar-se com as
autoridades civis, religiosas, esposas, crianças. De repente, um cala-
frio de terror atravessou a todos os colonos, que escutaram o "horren-
do grito de guerra" dos Aimorés, que atacaram a vilarejo com ímpeto.
O capitão e dois soldados caíram mortos sob flechadas e o desfecho
do combate parecia imprevisível. Foi quando o chefe dos índios mor-
reu com um tiro, o que ocasionou a retirada dos atacantes. 7
Sucediam-se combates e escaramuças de ambos os lados. O epi-
sódio do ataque à cidade de Cairu, no Recôncavo Baiano, área primor-
dial da colonização, causou comoção nos domínios portugueses. Foi
a vez do governador seguinte, Monso Furtado de Mendonça (1671-
1675), executar uma "justa e leal guerra" decretada por D. Pedro II
contra os Aimorés, na qual os prisioneiros seriam considerados legíti-
mos escravos. Os Aimorés começavam a enfrentar nova fase da guerra,
que entrava decididamente na era dos Bandeirantes. Chegara a hora de
os "paulistas" mostrarem sua experiência no combate e na caça ao índio.
Os colonos se cotizaram para dividir as despesas de tais em-
preitadas com a Coroa. Durante dois anos tratou-se de organizar as
tropas, lideradas por Bandeirantes e integradas de portugueses, mula-
tos, caboclos e índios de outras tribos. O chefe da empreitada, João
Amaro, viera de São Vicente para este fim. Segundo testemunhas, os
integrantes da Bandeira igualavam-se em ferocidade aos inimigos

6
Cf. F. Borges de Barros. A confederação dos Guerens ... , p. 176.
7
R. Southey, t. 4, pp. 298-9.
TERRAS E CORPOS NAS ROTAS DO GADO E MINERAÇÃO 83
que buscavam combater. Em 1673 essa violenta milícia "civilizadora"
atravessou os sertões do norte do rio São Francisco e, chegando a
território dos Aimorés, empreendeu verdadeiro extermínio. Grupos
inteiros foram dizimados e os prisioneiros conduzidos aos milhares.
Chegou até a haver excesso de oferta de escravos Aimorés, o que
abaixou o preço da "mercadoria", quando índios escravizados chega-
ram a ser vendidos a 10 cruzados por cabeça para os engenhos. Num
misto de vingança e exploração, os prisioneiros de guerra foram utili-
zados em trabalhos tão pesados e tratados de tal maneira que em
pouco tempo não restou praticamente nenhum sobrevivente. A feroci-
dade dos colonizadores foi maior do que a dos índios. Antes de voltar
para suas terras, João Amaro tratou de colonizar a região devastada,
criando inicialmente o povoado de Santo Antônio. Mais tarde, em
homenagem ao seu fundador, o local foi rebatizado de Santo Amaro.8
Esses episódios fazem parte do ciclo das Bandeiras, que inclui a
caça aos índios a partir de São Vicente, a guerra contra as Missões
Guaranis dos jesuítas no sul e destruição do Qyilombo dos Palmares
em Alagoas. Seria também obra desse tipo de pioneiro (pois os Ban-
deirantes eram aguerridos) a abertura dos caminhos para oeste, em
busca das riquezas minerais, muitas vezes seguindo trilhas e cami-
nhos já criados pelos índios. Agora, nesta metade do século XVII, o
desafio era dizimar as tribos que impediam a expansão das fazendas
de gado e do império português pelo sertão.
As tribos Paiaia tiveram o mesmo destino trágico. E foram im-
plantando-se fazendas no interior de Sergipe, Pernambuco e Rio Gran-
de do Norte. No começo do século XVIII, os rancheiros chegariam
ao Piauí (berço dos vestígios de presença humana mais antiga das
Américas e onde hoje não resta nenhuma aldeia indígena). Assim,
em fins do mesmo século, um administrador local podia afirmar com
tranquilidade em relação ao caminho do sertão que partia de Ilhéus:

Abundam os ditos Sertões de gado cujas estradas livres do Gen-


tio e beneficiadas, podem fazer um extenso commercio com a
Commarca e com a Capital. 9

8
Ibidem, pp. 300-2 e F. Borges de Barros, op. cit., p. 173.
9
Oficios e mapas do rio Doce,Jequitinhonha, etc. , 28 de janeiro de 1805, pp. 186-
8-227; Estado de Ilheos, pp. 106-51; Trabalho dosprimeirosj esuitas no Brasil, s.d. - does.
de autoria de Balthazar da Silva Lisboa, enviados a D . Rodrigo de Souza Coutinho.
Arq. 1.1.20, IHGB.
84 OS "VIS AIMORÉS"

Depois de três séculos, a Conquista triunfara em Ilhéus e


adjacências. Essa frente de expansão, rasgando o território onde antes
predominavam os índios, acabou por conquistar um pedaço impor-
tante da região dos Aimorés, cujo território foi ficando restrito a al-
guns pontos nos vales dos rios Doce, Jequitinhonha e Mucuri -
constituindo, ainda assim, área considerável. Pode-se dizer que essa
Guerra dos Bárbaros foi o coroamento de uma guerra mais longa,
que vinha desde os primeiros tempos da Conquista, e que marcou
nova fase na vida dessas tribos até então chamadas de Aimorés.

***
As legendas do Eldorado povoavam corações e mentes. Mas na
porta destas visões de paraísos de montanhas de esmeraldas, lagoas
encantadas e douradas, minas e rios onde prata e ouro brotariam aos
borbotões, havia obstáculo que amedrontava os que ousavam penetrar
em suas selvas. 10 O apogeu da mineração não foi marcado apenas
pelos Bandeirantes desbravadores de "fronteiras" que exterminavam
índios, rompiam florestas e descobriam pedras e minerais valiosos.
Em muitos momentos a cobiça das riquezas esbarrava concretamente
no "Gentio bravo".
Desde o século XVI corriam notícias da existência de jazidas e
já no início do século seguinte aparecem os primeiros indícios de
pedras e metais preciosos. Mas só no princípio do século XVIII co-
meçaria a corrida do ouro na região que passaria a ser conhecida por
Minas Gerais, incluindo também trechos de Mato Grosso, Goiás,
São Paulo, Espírito Santo e Bahia. Tal busca causou explosão demo-
gráfica sem precedentes na América portuguesa: dezenas de milhares
de forasteiros vindos de Portugal e de capitanias brasileiras invadiam
a região, erguendo e desmanchando povoações, escavando a terra,
arrastando consigo comércio, escravos, plantações de subsistência,
contrabandos e administração pública. Fácil imaginar a consequência
desse movimento sobre as populações indígenas. Há registres dessa
expansão em regiões onde a presença de Aimorés ou Botocudos esta-
va indicada, como em torno dos rios Doce, Cuieté e Castelo.

Rio Doce. Entre as mais persistentes buscas de riquezas algu-


mas alcançavam dimensões de lenda e utopia, como a serra das Es-

10
O livro de S. B. de Holanda. Visão do paraíso é referência fecunda para a
compreensão desse viés da colonização.
TERRAS E CORPOS NAS ROTAS DO GADO E MINERAÇÃO 85
meraldas, situada em cheio no território dos Aimorés. As primeiras
indicações sobre esta "serra verde" vinham do século XVI, a busca foi
longa e, ao fim, inócua. A famosa Bandeira de Fernão Dias Pais (que
morreu com um punhado de turmalinas nas mãos, nas margens do
rio Doce, acreditando ter encontrado uma serra de esmeraldas) en-
frentou por diversas vezes índios hostis.
Em 1675 o Conselho Ultramarino, em Lisboa, emite carta pa-
tente nomeando José Gonçalves de Oliveira para o posto de capitão-
-mor "de toda a gente que vay ao descobrimento das Esmeraldas". A
justificativa desta nomeação foi dada pelo próprio Conselho:

ha tradiçam haver Esmeraldas na altura da Capitania do Espírito


Santo, se façam todas as deligencias possiveis por se descobri-
rem.U

A Coroa portuguesa determinou que se fizesse esta Entrada de


José Gonçalves por conta e risco dos desbravadores e de seus asso-
ciados, sem despesas para o Erário Real. Por isso o mesmo José Gon-
çalves (que acumulava o cargo de capitão-morda capitania do Espí-
rito Santo) pediu e o Conselho Ultramarino ordenou ao governador
do Rio de Janeiro que fossem enviados 150 índios para a expedição
de busca das esmeraldas. 12 A utilização de índios nas Entradas e
Bandeiras era frequente: mão de obra para o carregamento pesado,
guias nas matas, caçadores de alimentos e também como guerreiros
para enfrentar as tribos hostis aos exploradores, a exemplo do que já
vinha ocorrendo desde o século XVI.
Seis décadas depois, em 1731, Francisco de Melo Coutinho
Souto Maior pede para ser nomeado com o quilométrico título de
"Mestre de Campo dos Descobrimentos das Esmeraldas do Rio Doce
e Capitania do Espírito Santo". As autoridades em Lisboa concedem
o pedido mas, escaldadas, advertem: o prazo para que se fizesse as
descobertas era limitado a cinco anos, não haveria despesas para a

11
Carta Patente {de Affonso Furtado de Castro do Rego de Mendonça} do posto de
Capitão Mor de toda a gente que vay ao descobrimento das Esmeraldas, provido em José
Gonçalves de Oliveira, CapitamMor da Capitania do Espirito Santo, 13 de agosto de 1675,
1,2,9 n. 259, FBN/MSS.
12
Carta de Affonso Furtado de Castro do Rego de Mendonça a Matias da Cunha,
Governador do Rio de janeiro, ordenando a entrega de 150 indios a José Gonçalves de
Oliveira, Capitam Morda Capitania do Espirito Santo, encarregado do descobrimento das
esmeraldas, 14 de agosto de 1675, 7, 1, 32 n. 55, FBN/MSS.
86 OS "VIS AIMORÉS"

Coroa e além da busca de pedras preciosas era preciso formar núcleos


de povoação (arraiais)Y Na mesma época as riquezas minerais al-
mejadas no rio Doce ainda não haviam sido exploradas.
Não só esmeraldas, mas também ouro era encontrado no Espí-
rito Santo já no início do século XVIII, embora ainda não explorado.
Francisco Ribeiro de Miranda, capitão-mor do Espírito Santo, foi à
frente de uma expedição em busca das minas auríferas no rio Doce.
Partindo de Vitória no dia 25 de março de 1702 com vinte homens
brancos, cinquenta escravos africanos e quarenta índios (supostamen-
te pagos pela capitania, já que a Coroa proibia a escravidão dos índios
e não queria ter despesas com a empreitada), o desbravador enfrentou
condições ásperas. Chegando à barra do rio Doce, doenças e epide-
mias começaram a derrubar, um a um, os membros da expedição.
Vendo isso, a maioria dos índios fugiu para a floresta carregando
tudo que podia:. ferramentas, pólvora, munição e mantimentos. Os
sobreviventes começaram a voltar. Qyatro meses depois da partida,
cinco brancos, três índios e quatro escravos negros chegavam esgota-
dos e em farrapos a Vitória, carregando penosamente algumas amos-
tras de pedras preciosas. Francisco Ribeiro escreve a Lisboa afirman-
do que era preciso retornar ao rio Doce e seus afluentes, "por me
parecer que todos elles estão cheios de ouro" .14
Testemunhos assim só faziam crescer a cobiça e a legenda em
torno dessas áreas então inacessíveis aos colonos. É de se notar que o
capitão-mor, em seu relato detalhado, não faz nenhuma menção a
ataques de índios hostis - o que talvez se explique pelo fato de ele
não ter ultrapassado a barra do rio. As autoridades portuguesas não
perderam tempo. Foi enviado ofício ao padre reitor das Missões, exi-
gindo a punição dos índios fugitivos da expedição que voltaram aos
aldeamentos.
Aparece aqui (novamente) o conflito entre as autoridades da
Coroa e os jesuítas em torno das populações indígenas. Qyanto ao
ouro, o Conselho da Fazenda, reunido na Bahia em outubro de 1702,
de posse do relatório vindo da capitania do Espírito Santo, discutia as

13
Provisão Régia ordenando que o Conde de Sabugosa, Vice-Rei do Brasil, informe a
respeito da Entrada realizada por Francisco de Melo Coutinho SoutoMaior, 5 de dezembro de
1731, II-33, 21, 53, FBN/MSS.
14
Carta de Francisco Monteiro de Moraes para Francisco Ribeiro, Capitão Mordo
Espírito Santo, 7 de julho de 1702, FBN/MSS.
TERRAS E CORPOS NAS ROTAS DO GADO E MINERAÇÃO 87
formas de administração "a cerca das minas que se tem principiado a
descobrir naquella Capitania". 15
Mas esses primeiros sinais de riquezas não prosperaram em
algumas partes de Minas Gerais e em todo Espírito Santo em razão,
entre outros fatores, da presença maciça dos índios Aimorés ou
Botocudos.
As descobertas de minas continuaram. O mesmo Conselho Ul-
tramarino tratava, na reunião de 7 de junho de 1738, do "descobri-
mento que tem feito o Mestre de Campo João da Silva Guimarães,
das Minas Novas, do Rio São Matheus, conquistas dos gentios e suas
reduções ao gremio da Igreja". 16 Esse rio, como se sabe, corre pela
capitania do Espírito Santo, distante cerca de 80 quilômetros do rio
Doce. E a busca de fortunas minerais aparecia ligada ao extermínio
de grupos indígenas.
Outras legendas de riquezas giravam em torno da região. Como
a da lagoa Encantada, assinalada por Sebastião Fernandes Tourinho
ainda no século XVI, no rio Piauí, afluente do Jequitinhonha. Ou a
famosa lagoa Dourada, a noroeste de São João del-Rei, onde mais
tarde se constatou que argilas e areias continham quantidade ínfima
de matéria aurífera, sem valor exploratório, mas cuja coloração atiçou
a cobiça de muitas gerações. O paraíso do ouro e o inferno das selvas
e dos índios hostis se mesclavam nas mentalidades dos exploradores
durante quatro séculos, formando aura de ambição e mistério em
torno da região.

Rio Cuieté. No período da mineração ao longo do século XVIII


nas Minas Gerais as tribos de Botocudos tiveram presença marcante.
Talvez o caso mais evidente de confronto ocorreu durante a Conquis-
ta do Cuieté, nome do afluente do médio rio Doce: foi, na verdade,
uma guerra localizada e de longa duração (mais de um século) entre
Botocudos/Aimorés de um lado e a administração portuguesa e as
frentes de expansão mineradoras, de outro. Neste caso a lenda trans-
formou-se em realidade: havia ouro e buscava-se dizimar índios -
processo longo e penoso para ambas as partes.

15
Assento do Conselho da Fazenda reftrente àforma de se administrarem as minas de
ouro descobertas na Capitania do Espfrito Santo, 23 de outubro de 1702, II -9, 17, 1 n.
139f, FBN/MSS.
16
Minas no Rio São Mateus e Conquista do Gentio, 7 de junho de 1738, p. 37,
Arquivos do Conselho Ultramarino, Arq. 1.1.16, IHGB.
88 OS "VIS AIMORÉS"

A descoberta das primeiras jazidas datava de 1701. Começava a


se mover uma máquina de exploração e guerra que traria violências
às terras que escondiam tantas riquezas.
Três décadas mais tarde ainda havia referências aos "grandes
destroços que executavão os gentios bravos" na freguesia do Forquim,
na mesma região. Por isso uma das primeiras providências do gover-
nador André de Melo e Castro, conde de Galveias (chegando às Mi-
nas em outubro de 1732 depois de uma viagem de cinco meses que
começara nas margens do rio Tejo), foi ordenar a saída de uma expe-
dição na parte mineira do rio Doce, com três objetivos centrais: con-
quistar o "Gentio", estabelecer povoações e procurar ouro. O chefe
da empreitada foi o mestre de campo Matias Barbosa da Silva que
percorreu os rios Doce e Cuieté durante dois anos. Ele encontrou
algumas tribos como os Coroados e Guaniuris que, segundo ele, eram
mais fáceis de lidar. Matias Barbosa achou também ouro e foi obri-
gado a acrescentar à sua descoberta um comentário: "mas he necessario
comquistar o Gentio de hua e outra parte da Serra, que não he possível
fazerse nada por andarmos com medo delles"Y Aqui, o medo toma-
va conta dos colonizadores.
O mesmo Matias, em seu relatório de viagem, afirma que os
índios organizaram "tres entradas em que matarão bastante gente"
explicando por que era difícil explorar a região, já que os mesmos
indígenas eram "naturalmente indomitos e [por] viverem vezinhos".
É interessante como este conquistador chama os ataques dos índios
de Entrada (as ferocidades se equivaliam) e qualifica a resistência
dos grupos atacados como algo de natural ou congênito. Matias Bar-
bosa partiu com setenta homens, cinquenta escravos e amplo carre-
gamento de pólvora, chumbo e bala. Mas os guerreiros indígenas
saíram vitoriosos. As tentativas de exploração e mineração fracassa-
riam nesta área nos anos 1730, marcando, assim, outra vitória dos
Aimorés.
Mais três décadas se passaram. A Coroa portuguesa, com o
declínio da produção aurífera, decide então nova investida em torno
do rio Cuieté. Entre 1764 e 1766 ocorreu importante mobilização
envolvendo administradores régios, mineradores e proprietários de
terras, buscando resolver a questão indígena, isto é, eliminar a pre-

17
Mathias Barboza da Silva. "Expedição na wna do Rio Doce pelo Mestre de
Campo ... " [1734], RAPM, III, 1898, pp. 769-72.
TERRAS E CORPOS NAS ROTAS DO GADO E MINERAÇÃO 89
sença deles do território onde havia riquezas a explorar. Note-se que
era o apogeu do governo de D. José I e do marquês de Pombal, cujo
ideário iluminista não permitiria discursos pregando guerra justa ou
extermínio dos povos indígenas. Entretanto, o governo dificilmente
poderia ignorar o declínio da mineração e a existência de vasta área
das Gerais inexplorada, como o Cuieté. Surge então a iniciativa de
organizar expedições armadas contra os índios, no governo de D.
Luís Lobo da Silva em Minas Gerais. 18 Os mais atingidos pelos
ataques dos Botocudos eram os moradores das seguintes fazendas e
sesmarias: Beira do Rio Doce, Sacramento, Santa Rita, São Barto-
lomeu, Rio Sem Peixe, Rio do Peixe, Guarapiranga e Freguesia da
Barra. Chegaram recursos de todas essas localidades (na forma de
dízimos ou contribuições em material, alimentos e homens para as
expedições) e até da Câmara de Mariana, das localidades de Forquim,
Vila do Príncipe, Rio Pardo, Pitangui e São João del-Rei, entre ou-
tras.19 O resultado dessa mobilização não se faria esperar.
Um grupo de cento e cinquenta homens, comandados pelo ca-
pitão Antônio Pereira da Silva, seguiu pelo rio Piracicaba. Outro,
comandado pelo capitão José Gonçalves Vieira, com cem homens,
embarcou pelo rio Doce. Essa empreitada de 1766 teve o nome de
"Expedição Geral e Conquista do Gentio Silvestre". 20 Ora, homens
armados pela Coroa portuguesa, pelos fazendeiros e mineradores da
região, certamente não pretendiam cobrir de gentilezas os índios com
os quais estavam em guerra há décadas. Mesmo que os documentos
oficiais dessa empreitada apregoassem intenções pacíficas e civili-
zadoras, é difícil acreditar que isso tenha ocorrido efetivamente na
prática. Consta dos relatos que alguns índios "encontrados" no cami-
nho passaram a ser sustentados pela Coroa.
O resultado dessa investida foi diversificado. Havia, em 1768,
um aldeamento de Nossa Senhora da Conceição dos Índios Botocu-
dos (rio Cuieté). 21 No local fora criado por Martinho de Mendon-
ça e Proença o Presídio de Cuieté que, posteriormente, seria a base
de uma das divisões militares do rio Doce na guerra contra esses

18
RAPM, VIII, pp. 475 e II, p. 313.
19
Cf. artigo de Christina Tareia. "Vai começar a caça aos índios Botocudos.
Cuidado: eles são antropófagos". ln: O Estado de Minas, Belo Horizonte, 20-9-1983,
que não dá indicações de como localizar a documentação consultada.
20 Ibidem.
21
Ibidem.
90 OS "VIS AIMORÉS"

índios. 22 O presídio, encravado na região, tinha duplo propósito: um


local para guardar os "desclassificados" do ouro e, também, uma forma
de marcar presença em pleno território de índios que resistiam ao con-
tato, sem pôr em risco a vida dos colonos e proprietários. Nunca é
demais lembrar que estamos na era pombalina. Ainda aqui os Botocudos
parecem desconcertar as políticas oficiais: o governo ilustrado envia-
va expedições de Conquista. Os setores subalternos das atividades
extrativistas eram os escravos, camadas pobres e indivíduos margina-
lizados.23 Mas mesmo esses grupos ainda eram mais úteis e assimiláveis
à sociedade do que índios que resistiam, como os Botocudos. Tanto
que a administração colonial setecentista acaba criando uma catego-
ria sugestiva, a de "Vadios uteis", que serviam para combater os índios.
O desembargador da Relação, José João Teixeira Coelho, visi-
tando o Presídio do Cuieté em 1780, faz comentário interessante. Ele
lembra que desde a criação desse presídio pelo conde de Valadares,
os presos, "a excepção de hum pequeno numero de brancos, são todos
Mulatos, Caboclos, Mestiços e Negros forros" .24 Muitos, aliás, não
estavam atrás das grades e compunham a população fixada nas proxi-
midades do estabelecimento. Estes "homens atrevidos" eram os úni-
cos, segundo o desembargador, que podiam enfrentar a "irrupção do
Gentio barbaro", pois que também "penetrão, como feras, os matos
virgens, no seguimento do mesmo Gentio". Assim, havia "Vadios"
que ficavam dentro das prisões e outros fora dela, ao redor. Ambos,
porém, integravam as chamadas Esquadras, milícias que entravam
em ação em caso de necessidade. Por isso esses detentos eram vistos
pelo desembargador como "Vadios uteis", na medida em que partici-
pavam da Conquista do Cuieté contra os índios e também eram usa-
dos para atacar quilombos de escravos fugidos. Diante dos índios que
defendiam suas terras e dos negros quilombolas, mesmo setores su-
balternos acabavam encontrando uma forma de incorporação à or-
dem, uma estratégia de sobrevivência. Não era uma aliança entre "ex-
cluídos", mas sim entre variados setores das hierarquias da sociedade
colonial brasileira, chamados de Povos da Conquista.

22 Diogo Pereira de Vasconcelos. Hist6ria antiga das Minas Gerais, vol. I, p. 235.
Sobre estes presídios, v. ainda RAPM, VI, p. 846.
23 V. Laura de Melo e Souza. Os desclassificados do ouro. ..
24
José João Teixeira Coelho. "Instrucção para o Governo da Capitania de
Minas Geraes por... , Desembargador da Relação do Porto" [1780], RAPM, VIII,
1903, pp. 487-8 .
TERRAS E CORPOS NAS ROTAS DO GADO E MINERAÇÃO 91
Tais embates tiveram expressivo registro iconográfico numa
pintura de Rugendas que, no início do século XIX, desenhou um
desses confrontos envolvendo tropas pluriétnicas e índios nas selvas
brasileiras (Figura 2).

Figura2

Embora não tenha deixado indicações específicas desta imagem,


Rugendas escreveu texto explicativo sobre os conflitos que retratava.
Numa das partes de seu livro, intitulada "Usos e costumes dos índios",
ele descreve as Entradas contra grupos indígenas, baseando-se, como
se percebe, em relatos históricos, em documentos, bem como em suas
próprias observações, informações orais e pesquisas durante viagem
pelo Brasil.25
Um dos grupos a que o artista alemão mais se refere é o dos
Botocudos. E dois dos homens indígenas que aparecem neste quadro
(canto à direita, atirando de arco e flecha) assemelham-se aos Botocu-
dos desenhados por ele em outras figuras, também pelos ornamentos
nas orelhas. Rugendas diz que as Entradas visavam massacrar índios,
o que muitas vezes acontecia. Embora, em outras vezes, os atacantes

25
]. M . Rugendas. Viagem pitoresca através do Brasil, pp. 122-3.
92 OS "VIS AIMORÉS"

eram surpreendidos por indígenas mais aguerridos e sofriam sérias


baixas. Ou seja, por um lado o artista explicitava (e a seu modo denun-
ciava) a violência da Conquista e, por outro, apontava os índios tam-
bém como agentes históricos que resistiam e não eram, apenas, vítimas
de violências. O que constitui uma visão moderna em termos históri-
cos, afinada com a sensibilidade romântica expressa por Rugendas no
conjunto de sua obra. Na qual entra, também, a valorização da natu-
reza em sua vegetação exuberante, em geral associada à vida indíge-
na. Nessa composição, como há uma rede de armar bem no centro da
imagem e uma habitação de palha à esquerda (meio encoberta pela
fumaça), sugere-se que o acampamento indígena sofreu o ataque.
Pode-se observar nessa Figura 2 as tropas pluriétnicas no com-
bate aos índios hostis, ou seja, os chamados Povos da Conquista (no
centro e à esquerda do quadro), compostos de brancos, mulatos e
negros, trajando roupas (mas não uniformes militares) e portando
armas de fogo. Rugendas, ao que parece, absteve-se de incluir aí os
índios aldeados que em geral compunham tais grupos. Segundo o
desembargador José Coelho, citado acima, estes Povos da Conquista
embrenhavam-se com ferocidade pelas florestas no combate ao "Gen-
tio", sendo, por isso, considerados vadios úteis. Note-se que é um
homem negro o único dos atacantes que aparece alvejado por uma
flecha, no centro da tela, com seu corpo rasgado.
No tocante à população indígena, esse quadro de Rugendas
como que sintetiza três situações. No centro do quadro, há uma mu-
lher morta, cujo corpo deitado e com certo destaque, em primeiro
plano e ao lado de uma criança pequena (provavelmente um filho),
ganha aura de martírio, de extermínio, de corpo também rasgado. Ao
fundo, um casal (ladeado e de certa maneira associado esteticamente
a duas palmeiras) é perseguido: a mulher ergue os braços em pânico
e o homem aponta sua arma. Esse conjunto representa a condição de
vítima, a violência sofrida.
Uma segunda atitude aparece ao centro do quadro onde um
índio, em tempo de ser trespassado por uma baioneta, resiste com
vigor e ainda tenta enfrentar o atacante e, a poucos passos, dois ho-
mens empunham arcos e flecha contra os agressores. Esse segundo
conjunto expressa a resistência indígena. Uma terceira condição não é
nem de vítima, nem de confronto direto, mas dos que conseguem
escapar e buscam sobrevivência recuperando os feridos e embrenhan-
do-se pela floresta, evitando o contato - como os que batem em
TERRAS E CORPOS NAS ROTAS DO GADO E MINERAÇÃO 93
retirada carregando no colo os atingidos e as crianças (canto direito
do quadro).
Mais do que narração neutra ou registro "exato" das cenas,
Rugendas compôs uma significativa narrativa pictórica, ou melhor
dizendo, uma pintura histórica, à maneira dos quadros de batalhas
tão tradicionais na arte europeia. Note-se que o epicentro da tela
sintetiza o drama que se espalha pelo resto do quadro. A seu modo o
pintor traçou, com senso artístico, técnicas e sensibilidade apuradas,
parte importante da saga dos Botocudos, condensando numa imagem
aquilo que, até então, os livros de história raramente narravam desta
forma, isto é, a dimensão da presença indígena naquele período, seus
comportamentos, a dramaticidade dos embates, a paisagem, os movi-
mentos e o perfil dos atores históricos envolvidos nos diversos lados
dessas guerras de longa duração.
A Conquista do Cuieté, que fez parte deste conjunto de episó-
dios, foi árdua, eliminando em parte a Reconquista que os Botocudos
haviam conseguido nas Minas Gerais durante pelo menos catorze
anos em meados do século XVIII. Sabe-se, porém, que algumas tri-
bos permanecem no Peçanha (uma centena de quilômetros do Cuieté)
ainda por algumas décadas, em contato com os "brancos" e com seus
terrenos reduzidos. Ao longo do século XIX a região continuaria
palco de conflitos entre Botocudos e colonos. E para se ter uma di-
mensão da resistência indígena, vemos que o território mantido pelos
Krenak nos séculos XX e XXI, no município de Resplendor, fica na
beira do rio Doce, distante cerca de cinquenta quilômetros da barra
do rio Cuieté.
Há ainda referências a combates com índios em Caeté (e não
Cuieté), região próxima a Sabará e à atual Belo Horizonte. Na sessão
de 22 de setembro de 1704, os membros do Conselho Ultramarino,
que em Lisboa tinham o poder de decidir os rumos do Brasil, reuni-
ram-se para tratar de uma carta que acabara de atravessar o oceano e
pousava sobre a mesa de reuniões. Manuel Borba Gato, um dos mais
conhecidos Bandeirantes, pedia às autoridades auxílio para continuar
"o descobrimento das minas de prata nos matos de Caythé". 26 Foi dos

26
Descobrimento das minas de prata nos matos de Caythé, 22 de setembro de 1704,
p. 161, Arq. 1.1.23- Arquivos do Conselho Ultramarino, IHGB. Diogo Pereira de
Vasconcelos. História antiga . .. cit., I, p. 160, faz referência a combates de Borba
Gato com "botocudos".
94 OS "VIS AIMORÉS"

conflitos torno do Caeté que surgiu a primeira iconografia sobre os


Botocudos (Figura 1).

Rio do Castelo. Outro foco importante do conflito com Boto-


cudos foi em torno das minas do rio Castelo, afluente do Itapemirim,
no Espírito Santo. Em 1783 essas minas eram exploradas regular-
mente e havia um povoado ao redor, com igreja matriz, casas, fazen-
das, plantações agrícolas e pomares frutíferos. Neste ano e no seguin-
te os Botocudos e também os Puris investiram com toda força sobre a
localidade. As minas do Castelo, casas, fazendas, tudo foi abandona-
do pelos colonizadores. A Reconquista triunfava mais uma vez, ge-
rando raridade: ruínas não de tribos, mas da civilização ocidental que
aí fracassara naquele períodoY 0!-Iatro décadas mais tarde, depois de
sangrentas guerras, o local foi revisitado pelo olhar dos civilizado. O
relato é interessante:

Nestas planícies achão-se os restos da antiga Povoação, com


paredes da Igreja Matriz, Pomares viçosos, que o Espírito de
abandono e incultura de trinta e seis anos, ainda aparecem com
frutas e bastantemente frondosas. [.. .] O sol he mui fresco e
saudavel; o local aprazível; os corregos abundantes de Oiro em
granito. [.. .] Existem lavras antigas, que depois de quase todo
o trabalho vencido forão deixadas pela invasão do Indio Antro-
pofago. [... ]. Não tendo mais nada a temer do antigo inimigo
o Botocudo porque este mesmo quer tambem Aldear-se [... ).28

Esse testemunho confirma que a ação de tribos de Botocudos


impediu, durante algum tempo, que fossem exploradas lavras de ouro
em Minas Gerais, transformando em ruínas um local que pretendia
irradiar progresso, fazendo que um incipiente núcleo urbano voltasse
à condição de selva, enfim, desafiando a lógica do progresso e pondo
para o passado aquilo que os "brancos" costumam enxergar como
germe do futuro.

27
Correspondências dos Governadores da Capitania e Presidentes da Provín-
cia do Espírito Santo com o Ministério do Reino. Ofício de 20-6-1808, AN. V.
também Minas do Gaste/lo, 27 de novembro de 1761, p. 87, Arq. 1.1.28, IHGB.
28
Correspondências dos Governadores da Capitania e Presidentes da Provín-
cia do Espírito Santo para o Ministério do Império. Ofício do tenente-coronel Ignácio
P. Duarte, de 8/3/1824, AN.
TERRAS E CORPOS NAS ROTAS DO GADO E MINERAÇÃO 95
Sabe-se quais os códigos de comportamento e de valores que
guiavam os exploradores que entravam na região atrás de riquezas
minerais. Se eles faziam guerra, era visando as pedras, metais precio-
sos e civilização. Mas como se expressavam os valores e códigos de
comportamento dos índios Aimorés/Botocudos, que também guerrea-
vam, mas não pela sede de riquezas? Encontramos mais uma vez as
duas principais opções: ou a tentativa de um convívio pacífico ou a
guerra frontal.
Além dos casos citados acima, nas regiões do rio Doce, Cuieté
e Castelo, ocorreram outros contatos e conflitos.
Em Minas Gerais, 1794, houve vigorosa investida dos Boto-
cudos contra as frentes de mineração e de expansão agrícola. Cerca
de quatrocentas fazendas (segundo estimativas oficiais) e outras pro-
priedades foram abandonadas. Ou seja, no declínio da mineração,
importantes áreas são reconquistadas pelos índios. As autoridades ten-
tam resolver a situação enviando reforço de tropas: quarenta soldados
e vinte índios Manaxós e Malalis vão para os presídios de Belém, do
Casca, do Guanhans e do Peçanha, às margens do rio Prata, para for-
mar barreira contra os ataques dos Botocudos que "tem feito consi-
deraveis estragos em nossa gente". 29 Qlatro anos depois (1798) há
registros, entre as despesas da Casa dos Contos, sediada em Vila Rica,
de gastos com tropas e munição para a guerra aos Botocudos. 30
É interessante notar que as duas datas (1794 e 1798) marcam,
respectivamente, as chamadas Conjurações do Rio de Janeiro e da
Bahia. Tais combates contra os Botocudos, se comparados às Conju-
rações, mobilizaram contingente mais expressivo de tropas, amea-
çando concretamente a ordem social e econômica. Foi a partir dessa
investida das tribos que a administração régia intensificou a milita-
rização da região. Entre 1794 e 1806, foram estabelecidos um Qlar-
tel-Geral nas cabeceiras do rio Prata, além dos Presídios de Belém,
do Casca, do Guaranhuns e do Peçanha - cujo objetivo era formar
uma "barreira de defesa contra os ataques de botecudos" _31
Mesmo durante a mineração nas Gerais ocorreram contatos
não hostis com os Botocudos. Entre os anos 1770 e 1790 alguns

29
RAPM, VI, 2.•, p. 846.
30Casa dos Contos. ConstituifáO de tropas que combatem os Botocudos (1796-1798}, F.
72.8/10, AN.
31
RAPM, VI, p. 846.
96 OS "VIS AIMORÉS"

desses índios apareciam no quartel e aldeamento de Lorena dos


Tocoiós, onde criaram laços com alguns militares, como o cabo de
esquadra Manuel Luís de Magalhães e o alferes Jerônimo Xavier de
Sousa. Estes recebiam os índios com cortesia e davam-lhes sempre
ferramentas ou mantimentos. Na mesma localidade grupos de
Botocudos, certa vez, invadiram uma fazenda e não atacaram nin-
guém, mas levaram uma serra e outros instrumentos de ferro, como
machados e facões. Os contatos sucederam-se por mais de uma gera-
ção e só foram interrompidos com a Guerra de 1808.32 Percebe-se
então no século XVIII a introdução de ferramentas e utensílios de
ferro entre essas tribos, o que alterava suas relações com a natureza,
seja na caça, colheita ou desmatamento.
Também no século XVIII administradores tocados pelas ideias
da Ilustração se relacionaram com esses índios e sobre eles projeta-
ram, agiram e escreveram, até mesmo no período pós-pombalino. 33
O Diretório dos Índios chegou ao fim. Em 1798 o ministro do Ul-
tramar, D. Rodrigo de Sousa Coutinho, futuro conde de Linhares,
abole as leis pombalinas, encerrando projeto (que se mostrou contra-
ditório, de difícil realização e que parecia não atender mais aos inte-
resses da colonização) de transformar em súditos livres da Coroa
portuguesa, por decreto, os índios que viviam em antigos aldeamentos
jesuíticos. No entanto, as consequências da legislação pombalina na
formação da sociedade podem ser vistas de maneira diferenciada para
outras regiões, sobretudo no espaço amazônico, que compreendia Ma-
ranhão e Grão-Pará, do qual não nos ocupamos neste estudo. 34
Depois do fim das Missões e da falência da política pombalina,
o que viria pela frente? No que se refere a diretrizes oficiais, come-
çam a surgir iniciativas diversas (em torno dos índios em geral e dos
Botocudos em particular) que buscavam equacionar tais questões le-
vando em conta a experiência histórica dos jesuítas e de Governo
Pombal. Ao mesmo tempo, despontavam novas frentes de expansão
que, na prática, iam cercando e estrangulando territórios até então
sob hegemonia indígena.

32 RAPM, II, pp. 28-31.


33 Existe considerável bibliografia sobre a relação entre os índios do Novo
Mundo e a Ilustração setecentista. V., entre outros, Levis-Strauss (entrevista em}. de
Léry, 1994) e F Lestringant (1994); A. A. de Melo Franco (1976).
34
Sobre os Diretórios Pombalinos e os índios, v. R. H. de Almeida (1997).
TERRAS E CORPOS NAS ROTAS DO GADO E MINERAÇÃO 97
Os projetos e as frentes de expansão visavam, essencialmente,
três pontos:
- realização plena da Conquista;
- colonização do território e exploração das riquezas;
-possíveis formas de incorporação/submissão dos grupos in-
dígenas pela sociedade que os cercava.
Havia diferentes matizes de pensamento e de ação, que trilha-
vam caminhos diversos e às vezes antagônicos entre si. Mas tinham
em comum a perspectiva de realizarem uma tensão entre os índios e
a civilização ocidental, partindo sempre do pressuposto da superiori-
dade e do inevitável predomínio dela sobre os grupos indígenas -
mesmo que, até então, a Reconquista destes houvesse obtido espaços
não desprezíveis.
Uma das primeiras formulações dessa fase veio de Domingos
Alves Branco Moniz Barreto, que sistematiza alguns pontos-chave,
incluída a divisão (vinda do século XVI) entre índios "mansos" e "bra-
vos", tomando posição do ponto de vista das elites locais no Brasil, a
partir das ideias da Ilustração. 35 O texto é de 1788, ano em que seu
autor era capitão de infantaria do Regimento de Estremoz. Esse mi-
litar baiano faria longa carreira (até o generalato) e se destacaria na
vida política: maçom, seria dele a ideia de conceder o título de Impe-
rador a D. Pedro I em 1822.
A análise de Moniz Barreto sobre os índios era precisa e ope-
racional do ponto de vista das frentes de civilização. O foco era centrado
na Bahia- de onde ele se baseou na experiência histórica e onde pre-
tendia aplicar suas ideias. Mais que um plano detalhado, havia diretrizes
gerais. Logo de início o autor reconhece a "oppressão" em que viviam,
naquele momento, os "habitantes" achados no continente pelos euro-
peus. Reconhecer a situação de opressão dos índios e considerá-los
habitantes já é um ponto significativo - pois não faltam registros,
também de historiadores, que nomeiam apenas os não índios (ou os
aldeados) como habitantes ou moradores de determinada área, muitas
vezes chamada de despovoada quando contém apenas indígenas. Ou

35 Domingos Alves Branco Moniz Barreto. "Plano sobre a civilisação dos indios

do Brazil e principalmente para a Capitania da Bahia, com uma breve noticia da


Missão que entre os mesmos indios foi feita pelos proscritos jesuitas, Dedicado ao
Serenissimo Sr. D. João, Principe do Brazil, Pio, benefico e magnanimo" (1788].
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, t. XIX, 1856.
98 OS "VIS AIMORÉS"

seja, o autor já assumia perspectiva diferente da visão até então predo-


minante (legenda de ferocidade e denúncia unilateral da violência come-
tida apenas pelos índios) e se punha do ponto de vista das "novas ideias".
Após reconhecer essa situação de opressão para todos os índios,
Moniz Barreto explicita as duas categorias-chave para os coloniza-
dores (entre os quais ele se colocava): índios mansos e índios bravos.
·Os primeiros eram os mais "dóceis" e fáceis no trato, os quais, repe-
tindo os antigos registros, ele situava como tupis, do litoral e falando
a língua geral. 0!-tanto aos segundos, logo de início, o autor diz com
quem se preocupava: "Entre os índios a que chamam de bravos os
mais temíveis são os Aymorés". Ele incluiu nesta categoria os Tapuias
e outras tribos desconhecidas; considera-os canibais e não deixa de
chamar a atenção para as guerras que travam entre si.
A tônica desse projeto de Moniz Barreto é a crítica à experiên-
cia das Missões e aos métodos dos jesuítas. Em contrapartida, elogia-
va o sistema pombalino e propunha a retomada do cargo de diretor
de Aldeias. Entretanto, ele defende a implementação da catequese,
ainda que apregoasse o afastamento dos clérigos do poder temporal
sobre as aldeias. Conhecedor do terreno, o militar adverte que entre
as intenções e a prática havia o "escabroso caminho que é necessario
trilhar na conversão do gentio bravo". Diante deles, ensinava, era
preciso "cautela, astucia e sagacidade". Ele pretendia que a aproxi-
mação inicial fosse feita com o acompanhamento de tropas militares.
Uma vez estabelecido o contato, propunha um praw de dez anos para
que os índios fossem considerados civilizados, desde que estivessem
todo o tempo em contato com os "brancos" e aprendendo ofícios. Não
pregava guerra de extermínio, embora não a descartasse. Ou seja,
Domingos Alves Branco Moniz Barreto era adepto, sempre que pos-
sível, dos chamados métodos brandos, da chamada pacificação. Se
fôssemos reverter e aplicar a mesma classificação sobre o autor, o
futuro general estaria no rol dos colonizadores "mansos".
No alvorecer do século XIX o padre Francisco da Silva Cam-
pos (de Mariana, Minas Gerais) pegou da pena e, a seu modo, elabo-
rou outro projeto, um dos mais "redondos" sobre o tema: claro, explí-
cito, ambicioso e abrangente. 36 Tocava nas questões econômicas,

36 Francisco da Silva Campos. "Catechese e civilisação dos indígenas da


Capitania de Minas Geraes" [1800].n RAPM, II, 1897 pp. 685-733. Agradeço a
indicação desse documento ao historiador Renato Pinto Venâncio.
TERRAS E CORPOS NAS ROTAS DO GADO E MINERAÇÃO 99
culturais, religiosas e bélicas de maneira vigorosa e sem meias palavras.
Datado de 1800, tornou-se, de certa maneira, um texto premonitório
do que viria a ocorrer na região do rio Doce ao longo do século XIX.
O padre Silva Campos fora um dos que, depois da expulsão dos
jesuítas, dedicara-se ao trabalho de catequizar índios, trabalhando
por longos anos em diversas aldeias de Minas Gerais: entre os Pataxós
de 1781 a 1795 e entre os Coroados até 1800. O padre dirigiu seu ·
plano à rainha D. Maria I e o dossiê foi enviado ao Conselho Ultrama-
rino para que desse parecer. Uma síntese crítica dessa longa petição
nos indica que três propostas essenciais eram postas pelo clérigo:
1. a criação de um polo agroexportador na região fronteiriça
entre Minas Gerais, Espírito Santo e Rio de Janeiro;
2. a catequese dos índios da região;
3. a construção de uma nova estrada que ligasse Minas Gerais
ao mar.
Esses três itens, reunidos, resultariam na implantação de uma
grande Colônia, a ser transformada em cidade (Vila).
Em relação ao primeiro ponto, o padre pedia para a sua família
(composta de proprietários rurais e administradores públicos) o mo-
nopólio, por dez anos, de todo o comércio da região, além do mono-
pólio por tempo indeterminado do comércio de tabaco e madeira.
Consta do documento uma lista das plantas nativas utilizadas para
fins medicinais e suas formas de extração. Ele se propunha, também,
criar um engenho de farinha e de açúcar e uma serraria para extração
de madeira. O requerente pedia ainda o apoio da Coroa para a com-
pra de 72 escravos africanos, sendo dez mulheres, que serviriam para
mão de obra inicial.
Para o segundo ponto, que nos interessa mais de perto neste
trabalho, o padre Silva Campos traçava o seu diagnóstico da questão
indígena na região:

Comtudo o mais importante objeto desta empreza he segurar


todos aquelles contornos de incursoens dos Gentios que tem
tomado dez estas grandes fazendas, que seus donos abandona-
rão por não poderem rezistir aos contínuos roubos e mortes
[... ], para o que importa muito arranjar, não so arranjar, o
Indio Coroado, mas tãobem domesticar o Indio Pori residente
na mesma Costa[ .. .]; e estando nós seguros da sua amizade,
senhores do seu terreno, e ajudados de sua força poderemos
100 OS "VIS AIMORÉS"

repulsar (senão domesticar) o Indio Botocudo, que hé de todos


o mais feroz e antropophago.

Os Botocudos, assim, estavam no cerne dessa proposição. Mais


do que isso, eram a pedra no caminho. Se não fosse possível dominá-
-los, que se tratasse do extermínio. Diante dos Aimorés/Botocudos a
eliminação poderia ser mais adequada do que a colonização - era o
que se depreendia da proposição. O padre Silva Campos acreditava
poder impor pacificamente às tribos o progresso e a civilização, mas
fazia exceção aos Botocudos, para os quais ele propunha a princípio
um tratamento mais duro, uma vez que estes não se mostravam nem
pacíficos nem passivos às tentativas de sujeição. Ainda aqui essas tri-
bos pareciam desnortear as trilhas retas e ascendentes do progresso.
O caminho para derrotá-los passava assim pela guerra e pela busca
de aliança com tribos vizinhas, como os Coroados e Puris. Para isso
o padre propõe que se retome "o antiquíssimo Diretorio estabelecido
em favor dos mesmos indios", ou seja, o Diretório pombalino, mas
reestruturado da seguinte forma: um Capelão Cura como autoridade
suprema, um Mestre e Inspetores Gerais proporcionais ao número de
índios, que não deveria ser menor que 150.
A ideia era ainda induzir, gradativamente, os índios a "coad-
juvarem" os escravos africanos nos trabalhos de produção e constru-
ção. Ou seja, reintroduzir a escravidão indígena, nivelando-a à mão
de obra africana. Tratava-se, pois, essencialmente, de submeter os
índios pela exploração do trabalho e pela transformação em seu modo
de vida. O padre apregoava o implemento da Catequese (para "trans-
formar os selvagens malfeitores em Christãos e cidadãos úteis") e
insistia na importância do ensino da Üngua dos conquistadores -
fator fundamental, segundo ele, para a completa realização da Con-
quista de um povo sobre outro. Os índios passariam, segundo o mes-
mo projeto, a serem tributáveis, isto é, deveriam pagar dízimos à Coroa.
No tocante à estrada, ela deveria ser construída com o braço do
escravo africano e indígena, ligando este núcleo de povoamento e o
interior de Minas ao litoral através da cidade de Campos dos Coita-
cases, no norte do Rio de Janeiro.
A colônia, no desejo dos idealizadores desse empreendimento,
deveria transformar-se numa cidade, a ser batizada de "Villa India de
D.João VI", em homenagem antecipada ao príncipe regente que ainda
não subira ao trono. Seria então construída uma fundição de ferro e
TERRAS E CORPOS NAS ROTAS DO GADO E MINERAÇÃO 101
aço, instalada uma botica acompanhada de um cirurgião, uma igreja,
uma escola e um quartel com soldados. Propunha também a introdu-
ção dos brancos na população e o casamento deles com os índios -
medida que, como se sabe, constava da legislação pombalina.
Esse ambicioso projeto era uma espécie de utopia às avessas
para os índios, uma Cidade Ideal para os colonizadores. O autor ins-
pirava-se no exemplo das Missões dos jesuítas, mas punha-se sob a
imediata tutela da Coroa. Levava em conta a experiência dos Diretórios
pombalinos, mas buscava marcá-la com o controle clerical. Propu-
nha um regime de monopólio equivalente ao das Companhias das
Índias num tempo em que as pressões em favor do livre-comércio se
faziam sentir. E buscava incorporar-se ao desenvolvimento tecnológico
mais recente, propondo a criação de fundições e abertura de estradas.
E, sobretudo, almejava destruir o sistema de aldeias ou tribos para
adotar um modo de vida urbano - que serviria como centro de poder
para as atividades agrícolas e exportadoras. Em suma, tratava-se de
um caminho para ir da barbárie à civilização. Vê-se que o padre
Silva Campos rejeitava nitidamente a linha de pensamento de um
abade Raynal, de um Marmontel, bastante lidos na época não só em
Minas Gerais, mas em todos os círculos letrados, e que de alguma
maneira propunham a visão do "homem americano" repleto de bra-
vura e nobreza diante do embrutecido colonizador ibérico.
O ministro Francisco da Silva Corte Real, em nome do Conse-
lho Ultramarino, rejeitou em bloco toda a petição do padre Silva
Campos, por considerá-la descabida. Mas não deixou de alertar no
seu parecer que o requerente tocava num ponto que deveria merecer
especial atenção das autoridades: a questão indígena na região. No
fundo, tratava-se de decidir a quem caberia a iniciativa (e os privilé-
gios) de projetada Conquista das terras e dos corpos indígenas.
Com efeito, a estratégia da Coroa, em 1808, seria a de retomar
dois itens dentre os colocados acima: guerra implacável e escravização.
Em vez de escolher o caminho, digamos, "desenvolvimentista" pro-
posto pelo padre Silva Campos, ou a "via pacífica" de Moniz Barreto,
as autoridades monárquicas acabariam optando pela ênfase na ativi-
dade militar, deixando que a colonização se desse posteriormente pela
iniciativa de particulares.
Os índios deixavam seu testemunho acerca da expansão mine-
radora nas Gerais, mesmo sem palavras escritas. O discurso podia ser
de gestos, atitudes, com o corpo e com a própria vida.
102 OS "VIS AIMORÉS"

No ano da Graça de 1755, uma tribo composta de cinquenta


Aimorés semeou terror entre os Povos da Conquista (índios aldeados,
garimpeiros e militares) instalados em suas terras, batizadas de Vila
do Bonsucesso das Minas Novas. O mestre de campo João da Silva
Guimarães (que há dezessete anos guerreava contra indígenas) orga-
nizou com os moradores uma tropa de 240 homens armados até os
dentes e foi ao encalço do Gentio. O encontro foi na barra da Utinga.
Os guerreiros da mineração ficaram impressionados com a fereza dos
índios que, em minoria, lutaram com vigor, sem recuo. A situação
tornou-se inaturável. A reação estupenda e paradoxal assustava os
vitoriosos. Os Aimorés não se renderam. Exemplo único em toda
História, resistiram até o esgotamento completo, até acabarem suas
flechas. Eram poucos, desarmados e feridos, na frente dos quais ru-
giam raivosamente os soldados do ouro. 37
Um vencido foi poupado nesta batalha da Utinga: guardado
como espécime raro e testemunha da Conquista. O prisioneiro, que
lutara até a última flecha e que presenciara sua tribo ser dizimada,
preferiu matar-se a ficar nas mãos adversárias. Foi amarrado ao tron-
co de uma árvore para que continuasse a presenciar o espetáculo da
derrota. Durante três dias, recusava qualquer alimento. E batia sem
cessar a cabeça contra a árvore. Revelava, assim, integridade em seus
valores que lhe permitiam resistir aos adversários: derrotado, mas
não dominado. Até que, por sua própria determinação e coragem,
expugnado, caiu o último defensor dessa tribo Aimoré.
A frente de expansão mineradora chocou-se com os Aimorés
que, ao final do século XVIII, já estariam rebatizados de Botocudos e
com o território ainda mais limitados, embora ainda ocupando gran-
des áreas, sobretudo nos vales dos rios Doce e Jequitinhonha. A ex-
ploração de riquezas não traria apenas o martírio de um Filipe dos
Santos ou de um Tiradentes e não se nutriria unicamente da arre-
cadação fiscal, da exploração do trabalho do escravo africano e do
empobrecimento de setores subalternos da população luso-brasilei-
ra. Também correu sangue indígena nesta sede de ouro das Gerais.

37
Episódio narrado por José Pereira Freire de Moura. "Noticia e observações
sobre os indios Botocudos . . .", cit. O Conselho Ultramarino referia-se às "conquistas
dos gentios" feitas por João da Silva Guimarães em 1738, cf. Minas no Rio São Mateus
e Conquista do Gentio, 7 de junho de 1738, p. 37, Arq. 1.1.16, IHGB. Na redação deste
trecho inspirei-me da narrativa de Euclides da Cunha sobre o massacre final de
Canudos, n'Os sertões, "Canudos não se rendeu", p. 351.
TERRAS E CORPOS NAS ROTAS DO GADO E MINERAÇÃO 103
Verde esmeralda, amarelo ouro e vermelho sangue pareciam regar o
solo rasgado.
"Esta Tribu por muitos annos não apareceo a alguem", escreve-
ria no século XVIII, um fazendeiro e administrador colonial. 38 Em-
bora falando de um grupo específico de Aimorés/Botocudos, tal co-
mentário pode ser estendido a outros agrupamentos. Essa observação
nos leva a perguntar: como viveram ao longo do século XVII e parte
do XVIII? É certo que viveram. Existem registras, sobretudo relati-
vos a combates. Mas sempre convém lembrar que os índios que man-
têm algum tipo de contato com uma sociedade são visualizados com
mais nitidez nas inscrições elaboradas por essa mesma sociedade.
Sejam catequizados, incorporados ou até em guerra, os índios têm o
"privilégio" de aparecerem documentados.
As tribos que vivem longe das vistas de seus oponentes, que
conseguem mantê-los afastados durante tempo significativo, ocupan-
do largos espaços de terra, banindo os Conquistadores e colonizado-
res, impedindo a Conquista ou garantindo a Reconquista, acabam
por sua vez banidas dos registras- até que sejam "descobertas", de
novo. Porém, quanto mais ausentes de documentos, mais os índios
sobreviviam- e este é um paradoxo que não deve escapar ao pesqui-
sador em busca de fontes documentais sobre as populações indígenas.
De acordo com relatos posteriores, pode-se saber que estes ín-
dios tinham cantigas e danças para o Sol, para a Lua e para as estrelas.
Mantinham suas organizações familiares e sociais e também criavam
novos grupos familiares e tribais. Amavam, brigavam, alimentavam-
-se, tinham filhos. Nada que fosse estranho à espécie humana. Gos-
tavam de cantar, segundo um missionário que os conheceu de perto
no século XVII:

De maravilha se achará um entre eles que não seja cantor. Têm


seus tiples, tenores, contrabaixos, cantraaltas, e tomam qualquer
tom, que lhe dão. 39

Ao findar o século XVIII o contato das frentes de colonização


com os índios chamados Aimorés ou Botocudos completava quase

38
José Pereira Freire de Moura. "Noticia e observações sobre os indios Botocudos
que frequentam as margens do rio Jequitinhonha e se chamão Ambarés ou Aymorés"
[1809] . RAPM, II, 1897, pp. 28-36.
39
Jácome Monteiro, apud Serafim Leite, VIII, p. 407.
104 OS "VIS AIMORÉS"

três séculos. Foi uma guerra de longa duração, embora o contato não
tenha se limitado ao confronto. Durante esse tempo, Conquistadores
e colonizadores tentaram as mais variadas fórmulas, sem conseguirem
o objetivo principal, a sujeição completa desses grupos, a exemplo do
que ocorrera com outras tribos. As armas mais poderosas, do bacamarte
ao canhão, foram utilizadas. Patrulhas formadas, fortes construídos,
igrejas erguidas, engenhos de açúcar instalados. Armadilhas as mais
diversas tentadas. Estratégias de persuasão, como catequese ou pacifi-
cação, surtiram efeitos relativos. Missões de jesuítas foram estabele-
cidas, guerras justas declaradas, o espírito das Cruzadas revivido, a
escravidão foi consentida e praticada. Foram fomentados exércitos
regulares europeus, tropas pluriétnicas de índios, africanos e brancos
e disputas entre tribos. As rotas do gado penetravam pelas terras. En-
tradas e Bandeiras aventuravam-se na caça ao índio e aos metais pre-
ciosos. Portugueses e espanhóis, mas também holandeses, franceses e
ingleses acumularam suas experiências bélicas. Relíquias milagrosas
foram desenterradas. Campanhas sistemáticas clamando contra cani-
balismo e ferocidade levaram-se a cabo. O extermínio puro e simples
foi tentado muitas vezes. Epidemias mortais espalharam-se. Chefes
de Estado, administradores, militares, religiosos, homens de letras,
jogaram as cartas que possuíam. Ou seja, tudo foi tentado, mas ao
final de trezentos anos Conquistadores e colonizadores ainda não
haviam aniquilado os Aimorés, habitantes nativos, muitas vezes Re-
conquístadores, inimigo que continuava, em parte, indomável e inde-
cifrável, mantendo o controle hegemônico de considerável parcela do
território. Por outro lado, pode-se perceber que alguns índios dessa
denominação, nos séculos XIX e XX, se tornariam exímios vaqueiros
e pequenos criadores de gado, mostrando capacidade de adaptação e
incorporação de novos valores em seus modos de vida.
O desafio então era buscar outros meios de domá-los e decifrá-
-los, com base nas Luzes do progresso e da civilização. A sociedade
que se constituiu no território do Brasil em fins do século XVIII era
bem diferente da que existira nos primeiros tempos da Conquista. A
modernidade formando seus primeiros contornos no seio de uma elite
letrada e urbana (falando o português e conhecendo bem a Europa)
só fazia aumentar a decalagem diante das tribos remanescentes. En-
gendrou-se então uma espécie de grande laboratório de experiências,
não só de práticas guerreiras, mas de hipóteses e teorias da civiliza-
ção ocidental. Essa "máquina" cresceria de maneira assustadora sobre
TERRAS E CORPOS NAS ROTAS DO GADO E MINERAÇÃO 105
estes índios, aglutinando em diferentes níveis homens de letras, das
ciências, da administração e das armas. O sistema de civilização tor-
nar-se-ia mais complexo, o que equivale dizer: mais controlador.
Assim, a partir do século XVIII, a denominação Aimoré desa-
parecia aos poucos dos registros, como já foi visto. Parecia que os
colonizadores, sem conseguirem aniquilá-los de fato, suprimiam-lhes
o nome ou apelido, como se assim pudessem superar o inimigo que
tanto atemorizava, quase invencível. Essa mudança de nome, não de-
cretada oficialmente, correspondia a uma nova fase da relação entre
esses índios e a sociedade, uma nova (e decisiva) etapa da longa guerra.
Mas se a legenda dos Aimorés foi esmorecendo, relegada a longínquo
e superado passado colonial, os Botocudos continuaram a ocupar parte
dos mesmos territórios. Daí nasceriam, então, outros mitos ainda mais
complexos e difundidos para denominar (estigmatizar) os "temíveis
Botocudos". A legenda de ferocidade em torno dos Aimorés da época
colonial chega a parecer ingênua ante o que ainda seria elaborado.
No entardecer do Setecentos como os Aimorés/Botocudos es-
tariam percebendo o raiar do século XIX? Em primeiro lugar é bom
relembrar que nessa época havia já uma longa trajetória de contatos
entre os Aimorés e as frentes de expansão. Mesmo que o viés guerrei-
ro predominasse, esse contato nem sempre era hostil e já ocasionara
importantes transformações na vida dessas tribos, pela invasão de ter-
ritórios e também introdução de ferramentas e utensílios de madeira
ou de ferro - que de alguma maneira alteravam a organização social
dessas populações indígenas. Assim, as tribos que seriam descobertas
pela ciência nos anos seguintes de alguma maneira já teriam seus
modos de vida alterados por esse contato secular com a sociedade
luso-brasileira. Falar em passagem de século XVIII para XIX pode
parecer inadequado do ponto de vista dos índios que não partilhavam
a concepção de tempo dividida em anos; mas eles viviam, refletiam e
reagiam diante de mudanças na sociedade que (cada vez mais) lhes
cercava - mudanças que os códigos históricos registram por esta
contagem do tempo como as passagens dos séculos.
A presença dos não índios ao longo desses três séculos geraria
também uma tradição entre os índios, um saber transmitido oralmen-
te, onde se mesclavam concepções sobre o adversário, sobre a guerra
e sobre os contatos em geral.
Um grupo de militares e funcionários da Coroa portuguesa,
em 1804, promoveu na região do Jequitinhonha uma Bandeira não
106 OS "VIS AIMORÉS"

ofensiva, mas de "meyos brandos". 40 Numa zona intermediária entre


as tribos arredias e os núcleos de colonização, foi instalada uma tenda
de ferreiro que fabricava machados e anzóis distribuídos para os Bo-
tocudos/Aimorés. Até um intérprete foi providenciado. Depois de
muitas idas, vindas, recuos e temores de lado a lado, um grupo de
índios certo dia tomou a decisão e foi se aproximando cautelosamente
dos "brancos" que estendiam presentes e chamavam insistentemente.
O!Iando o contato estava quase se estabelecendo, os Aimorés
foram detidos por um de seus companheiros. Todo pintado de negro,
com jenipapo, ele vociferava, gesticulava, desesperado. O intérprete
da expedição ia traduzindo como podia. O índio, de pé sobre um
barranco do rio, com arco e flecha nas mãos, dizia aos membros de
sua tribo para não se aproximarem, para desconfiarem, garantindo
que todos acabariam mortos se estabelecessem o contato. Ele gritava
e atirava flechas para o ar, lembrando que sua mulher e todos os seus
filhos tinham sido mortos pelos brancos. Estamos diante da palavra
proferida e gritada pelos índios. Aqui as flechas não eram dirigidas à
carne. As palavras desse índio (cujo nome desconhecemos) não fo-
ram registradas pelos códigos letrados. Mas elas constituíram ativa-
mente a história desses grupos. Aqui, os registras do Conquistador
deixam entrever essas falas que, assim, driblam os códigos dominan-
tes e se perpetuam de alguma forma por meio deles. Tais palavras
indicam que havia intensa discussão nas tribos sobre qual estratégia
seguir diante do agressor. Nesse momento cruzavam-se não só a pas-
sagem de duas épocas, como os Botocudos/Aimorés estavam diante
da encruzilhada onde tanto a via pacífica quanto a via guerreira não
apontavam futuro promissor.
A advertência desse índio, feita de palavras e gestos (vibrantes,
ambos), se opunha ao contato pacífico com os colonizadores e era
fruto de uma experiência de três séculos. Advertência isolada naquele
local e momento, mais do que presságio, o ponto de vista desse índio
se transformaria na expressão coletiva das tribos diante dos embates
sangrentos que ocorreriam nos anos seguintes, quando o Reino por-
tuguês declararia guerra aos Botocudos. Suas palavras isoladas, lançadas
como suas flechas, estariam em sintonia com o destino, ainda que
trágico, pelo qual passaria o seu grupo nas épocas seguintes.

40
Cf. testemunho do responsável pela expedição, José Pereira Freire de Moura,
"Noticia e observações sobre os índios Botocudos . . .", cit.
II
CERCO AOS BOTOCUDOS
NO SÉCULO XIX

[... ] até os Botocudos estão persuadidos que


nós somos Botocudos e Antropófagos.
- WILHELM LuDWIG voN EscHWEGE,
em 1811.

K.raí Unhak Ynhanmo (Qye homem branco


bravo!).
- Cartilha Conne Panda. Ríthioc Krenak,
em 1997.
Capítulo 4
GUERRA DE 1808-1824:
O IMPÉRIO LUSO-BRASILEIRO
CONTRA OS ''ANTROPÓFAGOS"

No raiar do século XIX a persistência de numerosos gru-


pos de Botocudos numa área cada vez mais valorizada do território
era um dos principais desafios para o império luso-brasileiro. As
atividades de mineração nas Gerais, a transferência da capital da Bahia
para o Rio de Janeiro em 1763 e, ainda, a vinda da Corte para esta
localidade em 1808, consolidavam novo centro de poder. As frentes
de expansão se enraizavam neste amplo polo geográfico, fortalecendo
teias administrativas, mercantis e escravistas e redefinindo a posse da
terra. Aguçava-se o atrito com as tribos indígenas.
Corresponde a este momento a Guerra de 1808-1824 decreta-
da pelas autoridades luso-brasileiras contra os índios Botocudos. Essa
conflagração (que ocorreu no Espírito Santo e Minas Gerais, com
reflexos na Bahia) expressa a fase aguda dos embates ocorridos desde
a Carta Régia de 1808, até 1824, data do malogrado cerco da cidade
de Vitória pelos Botocudos e, também, do decreto assinado pelo mi-
nistro do Império marquês de Qyeluz (João Severiano Maciel da
Costa) traçando diretrizes em relação a esses índios. Tal Guerra, en-
tretanto, só seria oficialmente revogada em 1831 com as Regências
- embora, como se sabe, embates sangrentos ocorreram do século
XVI ao XX.
Assim como haviam enfrentado as consequências bélicas do
peso da economia e da administração nos arredores da Bahia nos
primeiros tempos da Conquista e colonização, esses índios se veriam
cada vez mais cercados pelas novas condições da sociedade brasileira.
O eixo do poder deslocava-se de Pernambuco e Bahia para o Rio de
109
110 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

Janeiro, São Paulo e Minas Gerais, acompanhando o deslocamento


que parcela dos Aímorés fizera anteriormente para a região que viria
a ser denominada de Sudeste.
Uma das primeiras medidas tomadas pela Corte portuguesa logo
após sua chegada ao Brasil, não por acaso, foi estampar uma declara-
ção de guerra ofensiva a essas tribos - texto assinado pelo príncipe
regente D. João a 13 de maio de 1808, ao lado de outros "melhora-
mentos" que visavam modernizar a sociedade e consolidar a inusitada
presença de uma tradicional Coroa ibérica em terras de além-mar.
Trata-se de gesto significativo. Essa guerra contra os Botocudos, em
sua mobilização de contingentes humanos, pela duração e, sobretudo,
pela amplitude da área atingida (e de sua proximidade da Corte)
pode ser posta, em importância, ao lado das outras guerras que o
império luso-brasileiro praticou no território americano, como no
Rio da Prata ao sul (contra a Espanha) e na Guiana (contra a França)
ao norte. Ou seja, um conjunto de ações de tendência expansionista,
visando ampliar o controle sobre o território, consolidar novas fron-
teiras internas e externas e atacar diferentes adversários deste império
luso-brasileiro. 2 A Guerra aos Botocudos equivaleu, ou até superou
em amplitude territorial e cronológica, às demais guerras desse pe-
ríodo, incluindo a repressão à República de 1817 nas províncias do
que viria a ser chamado Nordeste brasileiro.
Parece-nos importante relembrar: os anos que antecederam a
declaração bélica de 1808 foram marcados por embates e ofensiva
entre índios e colonizadores, em que as tribos muitas vezes tomavam
a iniciativa e conseguiam expressivas vitórias. E, ao mesmo tempo,
estabelecia-se lento e sólido processo de militarização da região.
A posse da terra estava no cerne desse embate, mas não deve ser
menosprezado o interesse pela mão de obra indígena no século XIX
que se acentua quando da crise do tráfico de escravos africanos em
meados do Oitocentos. Como já foi visto, a Reconquista indígena em
áreas de potencial econômico crescente gerou despovoamento de ter-
renos já Conquistados. Tal quadro ainda persistia na época da chega-
da da Corte Real, como nas Minas do Castelo, quando os habitantes
de Barra do Rio do Castelo, Caxixe, Arraial Velho, Salgado e Ribei-
rão, às margens do rio ltapemirim, não resistiram aos ataques, aban-

1
Sobre esta perspectiva de expansão imperial "para dentro" no Brasil do
período, v. llmar de Mattos. Construtores e herdeiros . .. (2005).
1808-1824: O IMPÉRIO CONTRA OS "ANTROPÓFAGOS" 111
clonaram tudo e foram se estabelecer no litoral. A investida maciça e
eficaz dos índios parece ter tocado nos brios e bolsos dos colonizado-
res, que começaram a traçar uma nova política de ocupação.
Os entraves postos pelos Botocudos à mineração, comércio e agri-
cultura geraram pressões sobre a Coroa. A ponto de a Junta de Adminis-
tração e Arrecadação da Fazenda Real, com sede em Vila Rica (no
prédio da Casa dos Contos), realizar reunião no dia 1. de fevereiro de
0

1806 para tratar dessas tribos, a partir da qual o governador da capitania,


Pedro Maria Xavier de Ataíde e Melo, elaborou o seguinte documento:

Cançado e orrorisado de ouvir o grito dos miseraveis Povos,


que confrontão com a Matta geral de Aquem do Rio doce no
termo da Cidade Marianna, pela carnagem brava e insaciavel
com que tem sido atacados, mortos e devorados pelo Barbaro
Antropofago Gentio Botocudo, sendo obrigados a abandonar
suas Fazendas de cultura, e mineração, depois de cultivadas a
preço de seu trabalho [. . .).2

O pronunciamento é interessante não só por representar uma


das reivindicações que levariam a Coroa a realizar a guerra ofensiva.
Em princípio ele demarca o espaço da cidade como próprio da civi-
lização, ao passo que a floresta, inculta, era território dos índios e da
selvageria. Ele destaca também como esta fronteira da civilização era
ainda próxima, neste princípio do século XIX, de centros urbanos
importantes, como Vila Rica e Mariana. Dentro do registro tradi-
cional da Conquista (ressaltando a ferocidade destes índios) o do-
cumento confirma a força da Reconquista indígena na região e mos-
tra os Botocudos como elementos ativos do processo. Coloca-se
também o antagonismo entre Povo e Gentio - povo civilizado e
gentio selvagem. Povo/miséria/cidade/civilização de um lado e Gen-
tio/floresta/selvageria/antropofagia do outro.
Também por iniciativa do governador Pedro Xavier Ataíde o
território indígena em Minas Gerais fora dividido em seis Divisões
Militares em 1806 que contavam com quarenta soldados e mais vinte
índios Manaxós e Manalis prontos para guerrearem as tribos hostis
aos colonizadores. Isso porque, desde 1794, cerca de quatrocentas
fazendas e outras propriedades em torno da Vila do Príncipe tinham

2
RAPM, III, pp. 743-8.
112 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

sido abandonadas devido à investida dos Botocudos- marcando mais


um momento de Reconquista indígena, conforme relato do historia-
dor oitocentista Diogo Pereira de Vasconcelos, pertencente, aliás, à
mesma família de proprietários do padre Caetano Vasconcelos, autor
da aquarela (Figura 1) retratando os Botocudos. 3
A militarização na região de Minas e Espírito Santo fora refor-
çada sem cessar ao longo do século XVIII. 4 Em Minas o aparato
administrativo - também militar- teve grande crescimento no de-
correr da mineração, onde a presença das tribos Aimorés/Botocudos
desempenhou papel importante, como já foi visto.
No Espírito Santo, a princípio, a fortificação militar surgiu para
prevenir novas invasões francesas ou de outros corsários, ganhando
intensidade a partir dos episódios de Reconquista indígena dos anos
1780. Desde 1718, quando a Coroa compra do último donatário a
falida capitania do Espírito Santo e anexa seu território à Bahia, acen-
tua-se a fortificação militar. Em primeiro lugar, no litoral, onde a
cidade de Vitória numa ilha servia de base mais segura. No governo
do vice-rei conde de Sabugosa, em torno de 1726, foram construídas
seis fortalezas na capital capíxaba: São João, Nossa Senhora da Vitó-
ria, Nossa Senhora do Carmo, Santo Inácio e São Diogo. Dessa vez
não bastava a invocação simbólica dos santos guerreiros contra o dra-
gão-da-maldade, mas se edificava sobre pedras sólidas as armas que
deveriam trazer o Apocalipse para os índios. Havia, sobretudo, a pre-
ocupação por prevenir invasões estrangeiras, como a dos franceses.
Mais tarde, na administração do vice-rei marquês do Lavradio,
tratou-se de reforçar a mobilidade e a quantidade desses guerreiros
do império português. Criou-se no Espírito Santo, sucessivamente:
em 1788 um Regimento de Infantaria, com 90 infantes e o Regímen-
to de Milícias e Cavalarias; em 1793 uma Companhia de Infantaria
de Linha com 114 praças; em 1798 inaugurou-se um Hospital Mili-
tar. Em 1800, organizou-se um Corpo de Pedestres em Sousa, às
margens do rio Doce, com o objetivo de "evitar a sorpresa do gentio
antropophago" -local onde seria criada Línhares. 5

3
Diogo P. R. de Vasconcellos. "Breve descrição geographica, physica e poli tica
da capitania de Minas Geraes" [1806]., RAPM, VI, 2.•, 1901, p. 846.
4
Sobre a militarização em Minas Gerais e o combate aos índios no século
XVIII e início do XIX, v. L. C . Resende. Gentios bras{/icos: índios coloniais em Minas
Gerais setecentista. Doutorado em História. Campinas: Unicamp, 2003.
6
Francisco Alberto Rubim. "Memoria estatística da provincia do E spirito
Santo no ano de 1817". Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, t. XIX, 1856.
1808-1824: O IMPÉRIO CONTRA OS "ANTROPÓFAGOS" 113
Portanto, havia um conjunto de fatores geopolíticos e econômi-
cos, acompanhados de uma insistente campanha antiindígena e de
estratégia militar longamente elaborada. Elementos que, somados,
redundaram na Guerra de 1808-1824.
Entre os motivos imediatos que podem ter funcionado como a
gota d'água para a "guerra ofensiva" está o fato de que em abril de
1808 (portanto um mês antes da Carta Régia de D.João) os Botocudos
atacaram o Qyartel de Sousa e colocaram o oficial e seis soldados em
fuga pelas selvas, apavorados. 7 Um dos soldados foi morto. Os índios
destruíram as roças, quebraram todos os utensílios e encheram a casa
de pedregulhos. Assim, a declaração de guerra de 1808 foi também
ofensiva dos Botocudos. Como se fosse uma resposta, a Coroa portu-
guesa fala em guerra ofensiva.
O texto assinado pelo futuro D. João VI sobre os Botocudos
merece atenção. 8 Em primeiro lugar, traz uma estranha dose de
alteridade. Contra os gentios, proclamava-se guerra justa, empreen-
diam-se expedições, mas poucas vezes houve um tratamento tão sole-
ne, quase como se fosse de uma nação para outra- embora a Carta
não fosse dirigida aos índios, mas às autoridades luso-brasileiras. As
sucessivas derrotas impostas aos colonizadores ao longo de três sécu-
los, e a impossibilidade de exterminar facilmente as tribos, acabaram
por gerar um tratamento peculiar para esses índios.
Essa significação não escapou a Hipólito da Costa, que redigia
o Correio Braziliense em Londres:

Entre os Documentos recebidos, se acha uma Declaração de


Guerra da Corte do Brasil contra os lndios Botecudos. Ha muitos
tempos que não leio um papel tão celebre; e o publicarei quan-
do receber a resposta que S. Excellencia o Secretario de Estado

6
Braz da Costa Rubim. "Memorias historicas e documentadas da província do
Espírito Santo". Revista do Instituto Hist6rico e Geográfico Brasileiro, t. 1 (3), pp. 171-
271, 1839.
7
Carta régia do príncipe regente D.joão, dirigida a Pedro Maria Xavier de Ataide e
Melo, governador das Minas Gerais, ordenando queforme um corpo de soldados pedestres para
luta contra os fndios Botocudo. Rio de Janeiro, 13 de maio de 1808, Arquivo Nacional
(AN),Junta da Real Fazenda da Capitania do Rio de Janeiro (4B- 206). Ver o mesmo
documento em: Carta Régia de D.joão VI dirigida a Pedro Maria Xavier deAtaide e Melo,
governador das Minas Gerais, ordenando queforme um corpo de soldados pedestres para luta
contra os fndios Botocudo. Rio de Janeiro, 13 de maio de 1808, FBN/MSS, II, 36,8,14 e
I, 28, 31, 20.
114 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

dos Negocios Estrangeiros e da Guerra da Nação dos Botecudos,


dér a esta grande peça da Diplomacia; porque he natural que
este longo papel que contem 8 paginas, seja dirigido aquella
Nação: he verdade que ella inda não sabe lêr, mas aprenderá,
julgo eu, para responder a isto. 8

Hipólito não estava preocupado em defender os índios, mas em


fazer oposição ao governo e criticar atitude que lhe parecia inusitada.
O redator do Correio Braziliense ironizava os dois lados do conflito:
os índios e a Coroa portuguesa. Tais Botocudos, mesmo sem terem
um ministro da Guerra, como anotava Hipólito, eram tratados como
membros de uma nação - revelando a polissemia desse termo que,
na época, servia também para designar identidades étnicas. Tais
Botocudos, aliás, embora o redator luso-brasileiro não registrasse,
tinham rosto, nomes e eram estrategistas militares também, ofere-
cendo resistência e fazendo a ofensiva joanina, embora violenta, não
lograr êxito rápido em dizimá-los.
Entre grupos de civilizações distintas - como é o caso dos lu-
so-brasileiros em face dos Botocudos - é raro verificar comporta-
mentos guerreiros pautados por um código formalmente estabelecido.
Ou seja, seria mais compreensível ver os portugueses declarando guerra
a uma outra nação europeia, ou a uma república sul-americana, por
exemplo, do que a um conjunto de tribos de índios que, embora tam-
bém sejam guerreiros, não partilham dos mesmos códigos de conduta
e não possuem efetivamente um Estado organizado e sequer um alfabeto
onde possam responder, por meios diplomáticos, à referida declaração.
Mas quando as ferocidades se equivaliam, engendrava-se uma
guerra tão violenta quanto dissonante, entre dois agrupamentos tão
diferentes, mas que se aproximavam e trocavam energias ao se
entredevorarem. 9 Os troféus de guerra e as mutilações dos corpos
dos inimigos ocorriam dos dois lados.

8
Correio Braziliense, junho de 1808, vol. I, p. 421.
9
Existe vasta bibliografia antropológica sobre as guerras e as sociedades indí-
genas: estudos clássicos como o de M. Davie (1931), P. Clastres (1977) e F. Fernandes
(1975), baseados mais numa perspectiva funcionalista ou de determinismo material.
Para a elaboração do presente livro consultei também a edição especial do journal de
la Société des Américanistes, Paris, LXXJ, 1985 com artigos de vários autores (Viveiros
de Castro, Menget, Saignes e Taylor) trazendo visões mais atualizadas e complexas
sobre o tema.
1808-1824: O IMPÉRIO CONTRA OS "ANTROPÓFAGOS" 115
O príncipe regente D. João fundamenta a formalização da guerra
em 1808 nas queixas constantes dos moradores (luso-brasileiros, en-
tenda-se) da região, vítimas de constantes ataques. Era uma resposta
direta à petição dos colonos de Minas expressa pelo governador Pedro
Xavier de Melo dois anos antes. Diz a Carta Régia:

Sendo-Me prezentes as graves queixas que da Capitania de Minas


Geraes tem sabido a Minha Real Presença sobre as invawens
que diariamente estão praticando os Indios Botocudos Antro-
pophagos [.. .).1°

Ou seja, era o monarca ouvindo o clamor de seus súditos -


operação política fundamental para o funcionamento dos regimes
do tipo Absolutista. O texto se inscreve, assim, num registro tradi-
cional, semelhante aos discursos dos tempos da Conquista - a
ponto de chamar os efetivos militares de Bandeira, a exemplo das
expedições de caça ao índio feita pelos Bandeirantes. D. João faz
questão de destacar a legenda de ferocidade que envolve essas tri-
bos, garantindo que os índios "sorvem depois o sangue" das vítimas,
portugueses ou índios aldeados, "dilacerando os corpos e comendo
seus tristes restos". Ao canibalismo se acrescenta o vampirismo. Este
trecho da declaração régia parece inspirado pela carta e aquarela
(Figura 1) enviadas pelo padre Caetano Vasconcelos que, nesse mes-
mo período, manifestara-se à Coroa portuguesa, expressando as de-
mandas e temores de grupos familiares importantes entre as elites
locais, conforme já citado. A simbologia do vampirismo está asso-
ciada a um adversário híbrido entre o humano, animal e monstro -
e que habitualmente suga a energia das vítimas através do sangue.
Essa imagem de vampirismo associada aos Botocudos se enquadra
na concepção da guerra como uma busca de absorver a energia do
adversário.
Tal Carta Régia refere-se diretamente à região das Minas Gerais,
o que deixa entrever a ação política coordenada pelo governador da
capitania para o combate aos índios e ocupação de seus territórios.
Diante de tal quadro, a Coroa conclui pela "inutilidade de todos os

1
°Carta Régia do prfncipe tegente D.João, dirigida a Pedro Maria Xavier de Ataide
eMelo, governador das Minas Gerais, ordenando queforme um corpo de soldados pedestres para
luta contra os fn dios Botocudo. Rio de Janeiro, 13 de maio de 1808, AN, cit.
116 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

meios humanos", como pacificação ou aldeamento. Da mesma


maneira, o monarca afirma que o sistema de guerra defensiva não
apresentava resultados satisfatórios. Assim sendo, D. João suspendia,
por decreto, "os efeitos de Humanidade, que com elles Tinha Man-
dado praticar". O príncipe regente agia da mesma forma que seu
antecessor Filipe II que, no século XVII, autorizara suspender a lei
que proibira a escravidão indígena quando se tratasse dos Aimorés.
Animais, vampiros, canibais ou monstros são incompatíveis com os
critérios de humanidade. Ora, a suspensão, por decreto, desses prin-
cípios de Humanidade invocados pelo regente equivalia, no mesmo
tom, a proclamação justa e legítima do extermínio destes povos. As-
sim, podemos dizer que D. João implementa uma política genocida
quando chega ao Brasil. E abria caminho para que as violências se
equivalessem:

[... ] deveis considerar contra esses Indios Antropophagos huma


guerra offensiva, que continuareis sempre em todos os annos
nas estaçoens secas, e que não tera fim se não quando tiveres a
felicidade de vos senhorear das suas Habitaçoens e de escapacitar
da superioridade das Minhas Reais Armas, de maneira tal, que
movidos daquele terror das mesmas peção a Paz e sugeitando-
-se ao doce jugo de ley, e prometendo viver em sociedade, possão
vir a ser Vassalos uteis [.. .].

Era uma declaração de guerra que se pretendia eterna, atemporal:


deveria ecoar até que o adversário estivesse aniquilado ou submisso,
ponto final no longo conflito. O texto tem toque épico, profético. As
armas e os barões assinalados, entre guerras e perigos (mais do que
prometia a força humana), pretendiam edificar o Reino onde ele ain-
da não havia se implantado. Texto contundente e claro em seus obje-
tivos ao decretar a escravidão e o extermínio com todas as letras.
As novas tropas formadas para estes combates serviriam de re-
forço às já existentes. Elas seriam subdivididas em seis Divisões, sediadas
em tomo do rio Doce. Já no texto da declaração constam os nomes
dos novos comandantes das Divisões que deveriam aniquilar os índios:
o alferes Antônio Rodrigues Taborda, João Monte da Fonseca, José
Caetano da Fonseca, Lizandro José da Fonseca,Januário Vieira Braga
e um morador conhecido como Arruda. Cada um deles recrutaria os
soldados como bem entendesse.
1808-1824: O IMPÉRIO CONTRA OS "ANTROPÓFAGOS" 117
Essa mesma Carta Régia reintroduzia o direito à escravidão
dos índios. Todos os Botocudos pegos de armas na mão, considerados
prisioneiros de guerra, poderiam ser usados para o serviço dos coman-
dantes militares, sem nenhum salário, pelo praw de dez anos - ou
por tempo indefinido, enquanto manifestassem ferocidade ... Os pri-
sioneiros poderiam ser até acorrentados, caso os chefes militares julgas-
sem necessário. Numa sociedade escravista, instituía-se na prática o
cativeiro indígena nos primeiros anos do século XIX, atitude que não
parece ter sido drasticamente interrompida na fase nacional brasileira.
Está claro que não havia, nesse período, um complexo sistema escravis-
ta baseado no trabalho indígena, embora as guerras tenham propicia-
do e estimulado tal forma de servidão em atividades agrícolas, domés-
ticas e na administração pública, sobretudo em Minas Gerais, Espírito
Santo e Rio de Janeiro, para nos atermos ao recorte deste livro.
Ao final, em duas linhas, a declaração de guerra encerra-se
com as motivações econômicas da Coroa portuguesa: estabelecer a
navegação do rio Doce e explorar preciosos terrenos auríferos. Além
disso, os colonos que se dispusessem a ocupar essas terras ficariam
isentos de dízimos e das taxas de importação e exportação. As lógicas
mercantil e bélica alimentavam-se mutuamente.
Essa Guerra de 1808 revela estratégia bem traçada da Coroa.
Entre a declaração assinada por D. João no Palácio do Rio de Janeiro
e os embates de soldados e índios nas selvas havia uma rede complexa
de mediações e hierarquias, incluindo diferentes níveis das administra-
ções central, regionais e locais de quatro províncias, mobilização do
aparelho militar, apoio e envolvimento de moradores das wnas atingi-
das (sobretudo os proprietários e seus braços armados), projetos de co-
lonização e povoamento, sem falar da liberação de recursos em todos
esses setores. A máquina de guerra movia as engrenagens contra os ín-
dios Botocudos. A articulação central era da Secretaria da Guerra e
dos Negócios Estrangeiros, cujo titular era D. Rodrigo de Sousa Couti-
nho, futuro conde de Linhares- principal estrategista e articulador da
ofensiva contra os Botocudos (o mesmo que, dez anos antes, abolira os
Diretórios pombalinos). Do Rio de Janeiro se constituía a conexão com
os governadores de Minas Gerais, Espírito Santo e Bahia que, por sua
vez, comandavam e traçavam ações nas respectivas jurisdições. As tribos
viram-se tratadas na esfera dos que não pertenciam à pátria, ou de seus
inimigos: guerra e estrangeiros. D. Rodrigo, apesar de seu notório re-
formismo ilustrado, poderia ser classificado entre os colonizadores "bravos".
118 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

Ao abrir sobre sua mesa de trabalho o mapa (Mapa 4) da re-


gião conflagrada (pois era possível chamar assim a área com presença
dos Botocudos) D. Rodrigo e os militares que o assessoravam tinham
clareza de um aspecto singular da situação: a cidade de Vitória estava
encurralada. Traçando uma linha que começa (nas atuais localidades)
em Mucuri, passa por São Mateus, Linhares, Aimorés e vai até
Cachoeiro de ltapemirim, percebe-se que em 1808 havia um verda-
deiro cinturão de florestas e territórios indígenas em torno da capital
do Espírito Santo e de regiões ainda pouco exploradas das Minas
Gerais. O objetivo da guerra era basicamente destruir esta fronteira
interna, a fim de ocupar o território onde havia florestas e índios.

I
1
I

I
I
I.

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Mapa4
1808-1824: O IMPÉRIO CONTRA OS "ANTROPÓFAGOS" 119
Os Arquivos do Exército brasileiro guardam os registras deste
conflito contra os Botocudos, revelando mortandades e estratégia bé-
lica cuidadosamente montada. Uma das providências básicas era acio-
nar as autoridades locais. Para isso, foram enviados ofícios às Capita-
nias da Bahia, Minas Gerais e Espírito Santo, delimitando assim a
zona do conflito e encurralando o inimigo, dificultando sua mobilidade
e obrigando-o a combater tropas cujas armas eram mais mortais.
O conde de Linhares buscou organizar um cerco maior, que
abarcasse o vasto território indígena. Ele ordenou primeiro um ata-
que sincronizado das tropas mineiras e capixabas, "para que aquelles
Gentios se vejão na necessidade de ceder completamente o simultaneo
ataque". O objetivo, nas palavras de D. Rodrigo, era "para que o mes-
mo Gentio bravo ceda em fim vendo-se por toda parte acoçado" .11
Outra especial atenção do ministro português foi com a cidade
de Campos dos Goitacases (então pertencente ao Espírito Santo, mas
fronteira com a província do Rio de Janeiro e um dos caminhos para
a capital do império): as autoridades deveriam estar alertas contra
possíveis incursões dos Botocudos que porventura fugissem das tro-
pas mineiras e capixabas. 12 D. Rodrigo preocupava-se em alertar a
força militar de Campos dos Goitacases "para que faça cortar a pas-
sagem do dito Gentio"Y Era evidente: o ministro da Guerra queria
prevenir a possibilidade de uma investida maciça dos índios que se
aproximasse da capital do império.
A guerra ao "índio bravo" ia (re)começar. Os guerreiros luso-bra-
sileiros se prepararam de maneira especial (Figura 3). Passaram a usar
uma espécie de armadura ou couraça, chamada de "gibão d'armas". 14
Era um tecido espesso, cerca de uma polegada, feito de várias camadas
de algodão costuradas, para proteger das flechas. Os soldados vestiam
esse colete que lhes protegia o tórax, braços e ia até o joelho. Era um
ornamento tão sólido que ficava em pé sozinho. Mas a cabeça e as
pernas restavam desprotegidas. Além disso, o peso da vestimenta
cansava os soldados, retardava-lhes a marcha e deixava-os abafados
de calor. Os soldados partiam em campanha usando, além dessa
armadura, os seguintes apetrechos: chumbo, pólvora, fuzil, facão e

11
Livro da capitania do Espírito Santo, correspondências de 28-2-1810 e 30-9-
1809, AHE
12
Ibidem, 22-7-1811.
13
lbidem, 10-10- 1810.
14
M. Wied-Neuwied, t. 1, p. 326 e A. Saint-Hilaire (1830), t. 1, p. 435
120 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

provisão para doze dias. Nota-se também, na Figura 3, desenhada


para o livro de Wied Neuwied, que os dois soldados (assim como os
índios) estavam descalços e o que está à esquerda era mulato. Porta-
vam, ainda, uma pele de onça ou gato do mato sobre os ombros.
Se a ferocidade dos soldados luso-brasileiros aparecia em rela-
tos escritos, ela em geral não se expressava na iconografia- ao con-
trário do que ocorria com os indígenas, dos quais o aspecto feroz era
facilmente destacado em imagens e escritos. Pode-se perceber, na Figura
3, uma composição que opta pela simetria estética dos dois soldados
com a vegetação, seja com as duas palmeiras (ao fundo, à direita), seja
formando um "par" com as plantas em primeiro plano à esquerda. De
um lado, tal composição pode indicar, em termos de registro material,
a tentativa de adaptação desses soldados ao meio ambiente onde de-
viam combater. De outro lado, de alguma maneira naturalizava e har-
monizava a presença de tais soldados na floresta.

Figura3

As tropas assim formadas tinham estabelecido uma tática de


guerra que consistia num processo semelhante ao da caça aos ani-
mais. Aliás, anos mais tarde, conversando com um militar veterano
dessas guerras, Teófilo Ottoni deixou, perplexo, o seguinte depoi-
mento:
1808-1824: O IMPÉRIO CONTRA OS "ANTROPÓFAGOS" 121
Eu conheci um official das Divisões do Rio Doce, aliás pessoa
de boas qualidades, e excellente militar, que não era mais homem
quando se lhe falava em Botocudos. Ouvi-lhe a medonha de-
claração de que quando os seus caens davão no rastro de algum
destes infelizes sentia elle as mesmas emoções que os outros
caçadores quando os caens dão na batida do veado. 15

Nessa caçada, os cães eram adestrados sendo alimentados com


carne dos índios assassinados. Isso configura uma forma de antropo-
fagia realizada por iniciativa dos guerreiros da civilização ocidental.
A tática das tropas luso-brasileiras, nessa guerra de extermínio,
seria a mesma repetida ao longo do século XIX: era o que se chama-
va de "matar uma aldeia" (v. Figura 2). Localizava-se um acampa-
mento indígena, geralmente com a ajuda de índios "mansos" que ser-
viam de guia. Durante a noite, os soldados aproximavam-se o máximo
possível sem serem percebidos e formavam um círculo em volta do
acampamento. Ao amanhecer o grupo cercado era acordado com a
fuzilaria de surpresa. Os tiros, evidentemente, não distinguiam alvo,
fossem mulheres, velhos, crianças ou homens adultos. O quadro era
terrível: gritos, imprecações, cadáveres amontoando-se, choros, berros
de crianças, lamentos de moribundos, poças de sangue espalhadas.
Passado o susto, quando os índios conseguiam articular uma reação,
os soldados partiam para o combate corpo a corpo. Os sobreviventes
eram acorrentados e vendidos como escravos.
A ferocidade estava patente no comportamento dos Povos da
Conquista. Veja-se esta descrição do príncipe de Wied-Neuwied:

A crueldade dos soldados nesses encontros supera tudo que se


possa imaginar. No último ataque que tinha precedido minha
chegada a Linhares, uma mulher não quis se render; ella tenta-
va se defender mordendo e arranhando. Um soldado abriu-lhe
o crânio com um golpe de facão, que atingiu também a cabeça
da criancinha que ella carregava no colo. 16

A violência contra as crianças parecia ser uma constante dessa


guerra. Anos mais tarde, índios sobreviventes, ainda traumatizados,

15
T. Ottoni. "Noticias sobre os selvagens do Mucuri" ... , 1858 e 2002.
16
M. Wied-Neuwied, cit., p. 253
122 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

contariam ao francês Guido Marliere outras cenas de atrocidades que


sofreram, como as crianças que eram arrancadas dos braços das mães
para serem abertas a facão pelo meio das pernas. Era um dos resultados
práticos da política de "melhoramentos" de D. João no Brasil.
Num ataque em outubro de 1816, perto de Linhares, trinta sol-
dados chefiados pelo guarda-mor Cardoso da Rosa, comandante dos
postos militares da região, realizaram um destes cercos a uma tribo.
Apesar das couraças, três soldados saíram feridos. Mas pelo menos
uma dezena de índios foram mortos, entre eles o chefe, reconhecido
entre os cadáveres pelos cordões e plumas especiais que portava. Os
soldados resolveram possuir um troféu da caça: cortaram as orelhas
dos mortos e enviaram o macabro presente ao governador em Vitó-
ria, além dos arcos, flechas e botoques recolhidosY Como se vê, a
mutilação do corpo do adversário não era exclusividade dos índios,
mas se fazia também da parte dos luso-brasileiros.
Tal gesto confirma como a guerra, para ambos os lados, tinha o
sentido simbólico de se apossar da energia do inimigo, arrancando-
lhes pedaços do corpo como troféus. Os índios faziam isso com os
animais, usando dentes de feras e plumas de pássaros como adorno e há
também notícias de que descarnavam, esfolavam e mutilavam os cor-
pos dos adversários. Os não índios, por sua vez cortaram as orelhas dos
vencidos num significativo ritual de guerra. E ainda (em nome da ciên-
cia... ) passariam a colecionar os crânios e esqueletos dos índios. Cortar
cabeças de quilombolas, indígenas e de outros rebeldes derrotados foi
prática recorrente ao longo da história do Brasil, mesmo quando não
fundamentada numa legislação, mas sim em costumes não escritos.
Esse comportamento violento chocava algumas consciências da
época, sobretudo de estrangeiros (não luso-brasileiros). O cientista
francês Saint-Hilaire, que presenciara as guerras da Revolução Fran-
cesa, lamentava: "a guerra contra os Botocudos é um absurdo digno
dos tempos mais bárbaros". 18 No mesmo tom, o germânico Wied-
-Neuwied, que participara diretamente dos combates contra a Revo-
lução Francesa, afirmava: "A guerra deplorável que se faz contra os
Botocudos nas margens do rio Doce atrapalha o conhecimento que
se possa ter destes homens dignos de atenção". 19 Ou seja, apontava,

17
T. Ottoni. "Noticias sobre os selvagens do Mucuri"... , cit.
18 A. Saint-Hilaire (1830), t. 1, p. 436.
19
Wied-Neuwied, cit. t. 1, p. 335
1808-1824: O IMP ÉRIO CONTRA OS "ANT ROPÓFAGOS" 123
de modo pragmático, à incompatibilidade entre os parâmetros da ati-
vidade científica (tida como essencialmente civilizadora) e a estraté-
gia de guerra de extermínio efetivada naquele momento, além de res-
saltar a condição humana dos índios. Marcava-se aqui a diferença
entre colonizadores "bravos e "mansos".
Da parte dos índios, não há depoimentos ou testemunhos ex-
pressamente elaborados. Mas as atitudes dos Botocudos aparecem
nas fontes históricas de diversas formas. Podemos verificar que os
índios, pela resposta prática da resistência efetiva, além dos lances
ofensivos, defensivos ou vingativos que praticavam, também exprimiam
sua perplexidade diante dessa guerra. Saint-Hilaire recolheu uma
canção, da qual, infelizmente, não oferece a versão na língua original,
mas apenas a tradução em francês e português, que é a seguinte:

Os Brancos estão furiosos I A raiva é grande I Vamos fugir


rápido I Mulher, pega as flechas I Vamos matar índios. 20

Destacam-se nesta cantiga: a ferocidade do adversário não ín-


dio, a movimentação rápida das tribos na selva, o apelo à solidarie-
dade do chamado grupo doméstico e, o que é mais significativo, a
conclusão com a matança de outros índios. Essa última frase traz,
consigo, uma das chaves para explicar a atitude dos índios, cujo com-
portamento guerreiro estruturante impedia, com frequência, a forma-
ção de alianças com outras tribos. Uma vez que suas relações sociais
pareciam ser fundadas na facciosidade (o que se verifica em outros
grupos Jê, como os Xavantes), 21 o ataque dos brancos não gerava
necessariamente laços de união com os Outros das tribos vizinhas.
Ao contrário, verificava-se, nesses momentos, que os conflitos
interétnicos podiam se acirrar, como maneira de levar ao extremo a
tentativa de solução de um conflito não resolvido com os adversários
não índios. A guerra era, ao mesmo tempo, o ponto fraco e o ponto
forte desses índios.
Tal tendência à facciosidade é também indicada no relato de
um administrador colonial, que conviveu longos anos com os índios
da região e afirma que em 1810 os Botocudos moveram guerra contra

20 A. Saint-Hilaire (1830), t. 2, p. 166.


21
Sobre as sociedades Xavante, v. os trabalhos de D . Maybury-Lewis (1984)
e A. Silva (1998).
124 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

outras tribos. Chegando mesmo a se formar, no Jequitinhonha, uma


aldeamento "em que se ajuntarão os restos das Naçoens Cammachos,
Capoches, Pantimes e Maguari fugindo da sua total destruição pelos
Botocudos do Rio-doce". 22 Também no mesmo período os índios
Camacãs (de Minas Gerais e Bahia) foram usados pelos portugueses
na guerra contra os Botocudos por suas habilidades no uso do arco e
flecha. Ao passo que entre os Pataxós (representados na Figura 4)
foram achadas cabeças reduzidas e mumificadas de Botocudos (Fi-
gura 5), levadas ao Rio de Janeiro como objeto de curiosidade. 23 Os
Pataxós aqui retratados estavam nos arredores do rio Pardo em 1817
e combinavam a utilização de seus utensílios tradicionais com instru-
mentos como machados, o que revela um grau de convivência ou
mesmo aliança com setores da população luso-brasileira diante do
adversário comum, no caso os Botocudos.

Figura4

22
José Pereira Freire de Moura [1810]. RAPM, II, pp. 31-6. Informação
reforçada pelo testemunho de Wied-Neuwied, t. 1, p. 273.
23
Jean-Baptiste Debret. Viagem pitoresca . .. , Prancha 28, n.• 10, "Cabeça de
Botocudo mumificada pelos Patachós". O mesmo autor refere-se aos Camacãs que
combatiam os Botocudos.
1808-1824: O IMPÉRIO CONTRA OS "ANTROPÓFAGOS" 125

FiguraS

Ou seja, a investida dos luso-brasileiros causou redução dos


terrenos por onde transitavam variados grupos indígenas, levando,
por conseguinte, a um acirramento dos conflitos das tribos de Bo-
tocudos entre si e com outras etnias que frequentavam o mesmo ter-
ritório, cada vez mais estreito devido à crescente investida das frentes
de expansão, situação acirrada durante a Guerra de 1808-1824.
A forte impressão causada pela ferocidade dos colonizadores,
expressa na cantiga acima, permanecerá na memória deste grupo ét-
nico ainda no final do século XX. A primeira frase da cartilha de
educação elaborada pelos jovens professores índios da aldeia Krenak
é: "Kraí Unhak Ynhanmo" (O!Ie homem branco bravo!).
Os Botocudos também se preparavam para os combates à sua
maneira (Figura 6). Eles possuíam três tipos de flechas. Uma, cha-
mada de "ouagicki", era específica para a guerra: tinha a ponta mais
alongada e aguda e era encerada, o que lhe dava mais firmeza. Ou-
tra flecha era a "ouagicki bacannumock", mais fina, porém feita da
mesma madeira do arco, mais resistente: era farpada como um arpão,
também encerada, servindo tanto para guerra quanto para caça de
grandes e pequenos animais. E havia a flecha chamada "ouagicki
nigméran'', utilizada apenas para a caça de pequenos animais. Havia
ainda dois tipos de arco: um longo, para as duas primeiras flechas e
outro menor, usado sobretudo na pesca e para o aprendizado das crian-
ças. Possuíam também uma vara comprida, utilizada como lança.
126 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

Figura6

Estes índios tinham como armadura a própria pele, de aspecto


rijo, bronzeado, curtida pelo sol e caminhadas no mato. Sua pele era
espessa e evitava arranhaduras das folhagens e espinhos - mas não
lhes protegia das balas dos fuzis, dos facões dos soldados, nem das
flechas do inimigo.
Wied-Neuwied distinguiu três formas de pintura corporal, ba-
seadas nas tintas negra (de jenipapo) e vermelha (de urucum), a exem-
plo da maioria das tribos existentes no Brasil (Figura 7).
1808-1824: O IMP ÉRIO CONTRA OS "ANTROPÓFAGOS" 127

Figura 7

Alguns pintavam só o rosto de vermelho, da boca para cima, o


que lhes dava uma aparência de que a face estaria maior, inflada, o
que poderia ter efeito intimidador - a exemplo das máscaras de
monstros usadas tradicionalmente para estes fins em outros povos.
Outros, dividiam o corpo em duas partes, de alto a baixo, com traço
vertical: metade vermelho, metade preto. Outros, enfim, pintavam o
rosto de vermelho e o resto do corpo de negro, menos os braços,
antebraços e a perna do tornozelo para baixo, que ficavam sem pintu-
ra. Pode-se supor que essas três maneiras de pintar o corpo estariam
ligadas a algum tipo de proteção simbólica, ou ainda de pertencimento
a clãs, linhagens ou posições na hierarquia da tribo, mas isso não foi
devidamente verificado.
A preocupação de diversos desenhos de índios neste período,
como os das Figuras 6 e 7 (feitos para a viagem de Wied Neuwied),
era de caráter etnográfico, isto é, de reproduzir da maneira a mais fiel
possível aspectos de sua aparência física e cultura material. Entretan-
to, também o comportamento dos índios e, acima de tudo, a percep-
ção que os artistas e cientistas tinham deles, aparecem de maneira
acentuada em tais imagens.
O aumento considerável de ícones sobre os Botocudos cor-
responde ao período da Guerra de 1808-1824. Estabelecemos assim
uma relação entre reprodução da guerra e produção da imagem, entre
128 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

a possibilidade de fixação dos corpos pelas imagens com a possibili-


dade de domínio ou destruição desses mesmos corpos pela guerra.
Ambas provinham do mesmo movimento civilizatório, embora com
atitudes diferentes no contato direto com os índios.
Qyais os primeiros passos desta guerra? Se o príncipe regente
D. João foi o signatário da Carta Régia, D. Rodrigo de Sousa Cou-
tinho, todo-poderoso ministro português, era o articulador central e
o capitão-general de Minas Gerais constituía-se num executor e
mentor do conflito, coube também ao governador da capitania do
Espírito Santo, Manuel Vieira de Albuquerque Tovar, a tarefa de ser
um dos executores iniciais da ofensiva aos índios: ele instalou quar-
téis e organizou tropas de acordo com as diretrizes traçadas.
Em agosto de 1809 Tovar vai à frente de uma expedição com
dezenas de soldados subindo o rio Doce, com canoas carregadas de
munições, armas e mantimentos. 24 A expedição deparou-se primeiro
com os militares da 13! Divisão encurralados numa ilhota, exaustos,
depois de terem passado a noite em claro defendendo-se dos ataques
dos Gentios. Por todo lugar onde passava, Tovar registrava traços re-
centes da presença dos Botocudos, mas em nenhum momento foi
atacado - o que indica que os índios haviam percebido a superio-
ridade numérica e de armas da expedição e se deram conta de que
estavam diante de um elemento novo. A declaração de guerra che-
gava às tribos.
Inspecionando as redondezas através de uma picada no meio do
mato, o governador achou um terreno plano, perto da lagoa do Ria-
cho, que lhe pareceu adequado para estabelecer povoação e abrir no
futuro uma estrada. Ordenou aos soldados que saíssem da ilhota e
deixou-lhes víveres e munições suficientes para se instalarem na área,
estratégica. Tovar criou assim um novo Destacamento, que deveria
servir de base para outros quartéis. A terra lhe pareceu fértil. "Aquelle
Destacamento puz o nome de Linhares", assinalava o governador,
que mandou logo construir uma capela. Estava fundada a cidade de
Linhares, homenagem a D. Rodrigo de Sousa Coutinho. Mas para

24
Diário de viagem ao rio Doce pelo governador Manoel Vieira Albuquerque Tovar,
abril de 1809. ln: Correspondências dos governadores da capitania e presidentes da
província do Espírito Santo ao Ministério do Reino (IJJ9), AN. E, do mesmo perso-
nagem, "Navegação do rio Doce". Revista do Instituto Histórico e Geogr4fico Brasileiro, t.
1 (3), pp. 134-8, 1839.
1808-1824: O IMPÉRIO CONTRA OS "ANTROPÓFAGOS" 129
evitar surpresas os membros da expedição de Tovar dormiam nas
ilhas ao longo do rio Doce. Durante vários dias o grupo dedicou-se a
cortar madeira para construção de barcos, quartéis e armazéns. A
destruição da floresta e a perspectiva de urbanização acompanhavam
a guerra aos índios. Logo se juntaram a eles os soldados da 12! Divi-
são, fugidos, pois "o Gentio os tinha perseguido". A numerosa expe-
dição de Tovar voltou a Vitória sem ter combatido os Botocudos, mas
deixando as bases para que o embate fosse feito de maneira eficaz.
Logo depois da passagem da expedição de Tovar eram erguidos
os quartéis de Aguiar e Anadia, sempre visando a "Guerra ao Gen-
tio". Entusiasmado, o governador escreve ao conde de Linhares in-
formando que o quartel que leva seu nome já tinha forja de ferreiro,
tecelão, olaria e novas casas não paravam de crescer, com derrubada
de matas para plantações de mandioca, milho e feijão. "Em poucos
annos sera hua das grandes Povoações do Brasil". 25 Três meses depois
de criado o Oliartel de Linhares, já se haviam estabelecido no local,
em pleno território indígena, 235 pessoas, sendo 172 livres (77 ho-
mens e 95 mulheres) e 63 escravos (58 homens e 5 mulheres). Sabe-
-se que a criação de núcleos urbanos sempre foi elemento básico para
a Conquista: era a cidade se opondo à floresta, como a civilização à
barbárie. A floresta capixaba em 1809 vivia em clima do século XVI:
Conquista de selvas nativas, guerra contra o Gentio e batismo de
lugares até então não colonizados. A capitania do Espírito Santo pos-
suía, em 1816, 76 engenhos e 65 engenhocas- o que era uma quanti-
dade semelhante à dos primeiros tempos da chegada dos portugueses.
Mas ao contrário do que o governadorTovar buscava dizer, não
se tratava exatamente de colonizadores voltados apenas para atividades
agrícolas. Pelo menos o sucessor de Tovar no governo, Francisco Al-
berto Rubim, não deixaria de assinalar: ''A Povoação de Linhares teve
principio com a gente mais ínfima: criminosos e desertores mandados
estabelecer naquelle lugar por meos antecessores". 26 A falta de um
povoamento colonizador é atestada pelo fato de que, oito anos depois
de criada, a povoação contava com 224 habitantes, ou seja, um ligeiro
decréscimo demográfico. Em 1810 foi criado um Batalhão de Arti-
lharia de Milícias na mesma localidade. Mas até meados de 1817 a

25
Cf. nota anterior.
26
Ofício de 12-11-1817, Correspondências dos governadores da capitania e
presidentes da província do Espírito Santo ao Ministério do Reino (IJJ9), AN.
130 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

povoação limitava-se ao acampamento militar e às atividades de subsis-


tência. Linhares era comparável em tamanho a uma aldeia indígena.27
As primeiras investidas das tropas luso-brasileiras contra os
Botocudos não foram bem realizadas. Sucede-se da parte dos índios
uma série de ataques a fazendas no Espírito Santo, em localidades
diferentes.
A fazenda Santa Maria foi atacada pelos índios, em bando nu-
meroso. E também os "Assassinatos que tem praticado os Botocudos
na Villa de Benevente [atual Anchieta], pondo ali os Povos na mais
cruel situação". 28 Em 1817 o Gentio Barbaro atacou uma residência
de índios no Qyartel de Benevente, matando seis pessoas. Dois que
escaparam testemunharam que os corpos das vítimas foram despeda-
çados - o que mais uma vez indica a prática de descarnar ou mutilar
cadáveres. 29 Era, aliás, a localidade da antiga Missão jesuítica de
Reritiba, onde o padre Domingos Monteiro acreditara, dois séculos
antes, que os Aimorés estavam pacificados. Ainda na década de 1810
os Botocudos deixaram mortos e feridos na fazenda de D. Ana Ino-
cência (viúva do sargento-mor Antônio Mariano Borges), na locali-
dade de Santa Cruz, no rio Santo Antônio. E foram também registrados
ataques simultâneos a propriedades rurais em torno do rio Pardo. 30 A
estratégia política dos índios estava clara: o alvo eram as proprieda-
des agrícolas, cerne da ordem econômica e social naqueles territórios.
Assim, atiçados por investidas sangrentas, mas ainda senhores
do terreno, os Botocudos, sentindo-se acuados pela estratégia da Co-
roa (que justamente buscava traçar um cerco em torno do território
indígena, como já foi visto), responderam com mais força às investidas
e passaram, também, à guerra ofensiva- dentro de suas possibilida-
des e raio de alcance e nos limites de seus conhecimentos da sociedade
luso-brasileira. Percebe-se, nos ataques quase simultâneos às fazendas,
atitude articulada dessas tribos que, em resposta aos ataques militares
revigorados com a Carta Régia de 1808, traçaram sua estratégia de
combate ao tentarem destruir a principal base social da colonização.
Mais uma vez os Botocudos tentavam a Reconquista de seus territórios.

27A Saint-Hilaire (1974), pp. 90-2.


28
Livro da capitania do Espírito Santo, correspondências de 28-2-1810 e 10-10-
1810, AHE
29 Ofício de 16-2-1817, Série Accioly, livro 67, p. 34, Apes.
30
Guerra aos Botocudos. Carta de Balthazar da Silva Lisboa ao conde de Linhares,
1810, Lata 109, Doe. 14, n.0 1, Arquivo do IHGB.
1808-1824: O IMPÉRIO CONTRA OS "ANTROPÓFAGOS" 131
Algumas tribos atacam pequenas povoações. Grupos de Boto-·
cudos chegaram em 1808 até a freguesia do Serro e em Carapina, nos
arredores de Vitória - mas às portas da capital foram rechaçados,
num verdadeiro massacre, obrigando-os a recuar para o rio Doce. 31
Tovar envia carta para o conde de Linhares dando conta do
clima de pânico entre os moradores luso-brasileiros do Espírito San-
to depois da contraofensiva dos índios. O governador chega a adver-
tir que "em breves dias toda a Capitania sera atacada e destruhida" e
que "toda tropa e habitantes tem desgostado e afligido a ponto de
todos quererem dezertar". 32 Talvez a autoridade local exagerasse no
alarme como forma de obter mais recursos, mas se suas demandas
fossem infundadas, poderiam ser facilmente desmascaradas. No mo-
mento inicial da guerra ofensiva aos Botocudos os atacantes chega-
ram a temer pela derrota e pela Reconquista indígena em toda a
capitania, onde ainda era frágil a presença do colonizador.
A mobilização foi impressionante e durante anos o Espírito San-
to transformou-se num campo de guerra. O governo local passou a
exigir que a população masculina civil vivesse em constante estado de
mobilização bélica. Todos os moradores eram obrigados a praticar treina-
mento militar e a se incorporarem ou contribuírem às tropas regula-
res na luta contra os Botocudos. A situação gerava descontentamentos,
pois desviava os colonos de suas atividades agrícolas ou comerciais
para o treinamento militar, para os quais muitos não tinham aptidão
ou não queriam correr o risco. Essa mobilização guerreira da popula-
ção civil durou pelo menos oito anos, pois em 1817 foi presenciada
pelo estupefato viajante francês Auguste de Saint-Hilaire. 33 Era uma
guerra travada dentro do território brasileiro, simultânea, aliás, à efêmera
República de 1817 em Pernambuco e capitanias vizinhas.
As prisões capixabas ficaram repletas de índios durante a Guer-
ra de 1808-1824. Na Vila Nova de Almeida, 1815, dois índios fugi-
ram carregando armamentos, o que bastou para que o juiz Vicente
Pereira emitisse ordens para "prender quantos lndios achou nesta Vila
a torto e direito, [o] que encheo a cadea". 34 As condições de cárcere

31
Braz da Costa Rubim. "Memorias historicas e documentadas ... ", pp.
271.
32
Ofício de 18-4-1809, Correspondências dos governadores da capitania e
presidentes da província do Espírito Santo ao Ministério do Reino (IJJ9), AN.
33
A. Saint-Hilaire (1974), cap. I.
34
Ofício de 20-4-1815, Série Accioly, livro 67, p. 9, APES
132 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

eram desumanas e até as autoridades admitiam que os indígenas


passavam fome na cadeia de Guarapari, como nessa correspondência
dirigida ao governador Rubim:

Os Índios que ficão ao contrario na Cadea desta Villa para


serem remetidos a Va. Sa. Sofrem algumas vezes fome, não só
pela demora, que podem ter na mesma enquanto se apronta a
sua condução [... ] como pela grande viagem que tem a fazer
para essa Villa. 35

Embora os Botocudos fossem constantemente acusados de ca-


nibalismo, o certo é que passavam fome quando encarcerados na so-
ciedade luso-brasileira. Indica-se também que os índios aprisionados
eram remetidos para Vitória.
Os conflitos não ocorriam apenas com os índios ou entre estes.
O facciocismo e a autofagia política estavam presentes entre os guerrei-
ros luso-brasileiros. Arvorado em chefe da guerra, Tovar se transforma
no todo-poderoso homem da província: além de dispor da população
civil para o treinamento militar, prende militares seus desafetos, per-
segue e ameaça os notáveis da política local que questionam seu do-
mínio ou reclamam de seus atos. Chovem cartas e reclamações para a
Corte. A crise política agrava-se e Tovar acaba demitido do cargo.
O governador interino, Luís José Pereira, indica que a Guerra
não tinha trégua ao relatar que em Guarapari os Botocudos mataram
duas índias "mansas", cujos corpos foram esfolados. 36 A crer nesse
relato, os índios em guerra estariam atacando o adversário em suas
diversas faces, procurando também destruir a presença dos Conquis-
tadores no interior dos grupos indígenas, consubstanciada na incor-
poração dos "mansos" à sociedade luso-brasileira. Tal gesto parece
ser também uma advertência interna entre as tribos, visando fortale-
cer o elo entre os índios e ameaçando os que se passavam para o lado
do inimigo. Nesse momento e local predomina, entre luso-brasilei-
ros e índios, o comportamento guerreiro.
Napoleão Bonaparte e os Botocudos eram inimigos simultâ-
neos do Reino português. Qyando chega a Vitória a notícia de que o

35 Ofício de 7-6-1815, Série Accioly, livro 67, p. 9, Apes.


36
Ofício de 30-3-1809, Correspondências dos governadores da capitania e
presidentes da província do Espírito Santo ao Ministério do Reino (IJJ9), AN.
1808-1824: O IMPÉRIO CONTRA OS "ANTROPÓFAGOS" 133
Exército francês fora expulso de Portugal, o combate aos índios é ·
momentaneamente interrompido para os festejos. Entretanto, a notí-
cia mais alarmante na capitania nesse momento, agosto de 1809, era
a de que quatro soldados haviam sido mortos pelos Botocudos no
Destacamento de Piraquê. E para celebrar a derrota do inimigo (na
Europa) houve te-déum com a presença do Clero, da Nobreza e do
Povo capixabas, em que não faltaram aclamações e vivas a essa nova
Restauração portuguesa do outro lado do oceanoY
A Guerra de 1808-1824 desencadeia uma série de mudanças
importantes entre as tribos de Botocudos. Uma delas é o movimento
crescente de remessa desses índios aos núcleos urbanos, sobretudo
para a capital do império, como bárbaros conquistados. Por vezes
eram prisioneiros de guerra, ou então outros que se rendiam ou que
buscavam aproximação pacífica para tentar escapar à violência dos
combates. Mas de qualquer maneira eram moradores das selvas que
se dirigiam aos espaços urbanos.
Ainda em novembro de 1808 sabe-se de dois Botocudos captu-
rados no Espírito Santo e levados para o Rio de Janeiro. A tribo deles
fora dizimada pelas tropas do governadorTovar, que preservou a vida
apenas de "três pequenos", dos quais dois remetidos ao Rio de Janei-
ro, onde ficaram sob a custódia da Secretaria de Estado dos Negócios
Estrangeiros e da Guerra. Por pedido de D. João, "que se dignou tomallos
debaixo de sua especial Proteção", foi solicitada ao Real Erário a quantia
de 120 réis diários para despesas com esses índios. 38 É de imaginar o
trauma e a dificuldade de adaptação de jovens que viram os familiares
serem mortos e em seguida serem levados por seus assassinos para
instituições sociais completamente diferentes das que conheciam, sendo
obrigados a viver numa cultura para eles estrangeira - e inimiga.
Outro registro indica que Botocudos, vindos desta vez de Mi-
nas Gerais, estavam em 1811 sob os cuidados do coronel Francisco
Manuel da Silva e Melo, da mesma Secretaria dos Estrangeiros e da
Guerra, que solicitava ao Real Erário a diária de 400 réis para cada
índio, com a obrigação de sustentar-lhes (alimento, roupas, etc.) e
cuidar de sua educação. 39 Observe-se que a diária aumentara mais de

37
Ofício de 6-8- 1809, idem, ibidem.
38 L ivro da capitania do E sp frito Santo, correspondência de 19-11-1808, AHE.
39
Livro da capitania doEsp frito Santo, correspondências de 22-7 e 10-10-1811,
AHE.
134 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

seis vezes em relação ao pedido anterior, o que sinaliza que tomar


conta de índios poderia ser negócio tão rentável quanto ter escravos
de ganho, por exemplo. A tutela tornava-se lucrativa ao tutor.
O próprio conde de Linhares solicitou ao governo de Minas
um inventário das aldeias indígenas "donde se tiravão os Indios, que
se achão empregados no Real Serviço indicando se he praticavel que
sem vexame maior se possão tirar mais alguns para os escaleres das
Fortalezas, onde com effeito há grande precisão de tal gente". 40 Do
mesmo modo, o marquês de Aguiar ordenaria às autoridades minei-
ras o envio de seis índios da aldeia de São Lourenço para servirem no
Arsenal Real do Exército.41 Como se vê, havia uma política oficial e
deliberada de aproveitar a guerra para incorporar os índios ao serviço
militar luso-brasileiro.
Entretanto, a chegada desses "troféus de caça" poderia causar
mal-estar. É o que parece ter sido o sentimento no Palácio do Rio de
Janeiro. O governador capixaba, Tovar, enviara dois presentes a D.
João: um amostra de café finalmente transportado pelo rio Doce e
uma "Selvagem Boticuda". O príncipe regente agradeceu o café, feli-
citou o êxito no combate aos "barbaros", mas condenou "actos violen-
tos e despoticos" - o que indica que o estado físico da índia devia ser
deplorável. 42 Os membros da Corte preferiam não sujar as mãos no
sangue da guerra, deixando a tarefa para os guerreiros nas frentes de
combate.
Reforçando este contraponto entre a sensibilidade cortesã dos
grupos dirigentes e os embates que ocorriam sob orientação oficial,
vemos que um certo João do Monte da Fonseca recebera elogio do
governador da capitania de Minas Gerais como "hábil e valoroso",
pois matara treze Botocudos e apreendera número ainda maior deles. 43
Além do café (estímulo da crescente ocupação das terras na
região Sudeste), havia outras buscas de riqueza na terra dos índios. 44
Em 1810, aproveitando o ímpeto da guerra, uma expedição
chefiada por José Pereira Freire de Moura partiria em busca da La-
goa Dourada. O chefe da empreitada guardava um roteiro elaborado

40 Livro da capitania de Minas Gerais, correspondência 30-1-1810, AHE.


41
Livro da capitania de Minas Gerais, correspondência de 28-9-1815, AHE.
42
Livro da capitania do Espírito Santo, correspondência de 13-11-1811, AHE.
43
RAPM, III, p. 1077.
44
Sobre a intensa tomada de terras indígenas para a produção cafeeira no
Sudeste brasileiro, v. M. Sant'anna Lemos. O índio virou pó de café?. ..
1808-1824: O IMPÉRIO CONTRA OS "ANTROPÓFAGOS" 135
por um primo de seu pai, José Roiz Betim, que ainda era vivo na
ocasião. Betim participara da expedição do bandeirante paulista José
de Sousa Caldas, em meados do século XVIII e afirmava que, che-
gando à tal Lagoa, os bandeirantes recolheram de suas águas e dos
ribeirinhos ao redor meia arroba de ouro em folha, coletados de
maneira rudimentar, com pratos de madeira ou só com as mãos. Betim,
que já devia ter idade avançada, guardara de memória o trajeto, um
tanto impreciso: seguia-se o rio Jequitinhonha até seu fim, continua-
va-se por mais três dias de viagem, encontrava-se uma tromba de
serra, depois outra mais alta, a qual não se devia subir, mas acompa-
nhar, com "a cara para o Norte". Era preciso percorrer um total de 27
dias nas matas beirando a serra chamada dos Aimorés. Em 1810
sabia-se apenas que a Lagoa Dourada deveria estar em algum ponto
entre Porto Seguro e o vale do Jequitinhonha ... Mas o que essa
expedição de Freire Moura encontrou, no distrito de São Domingos,
foi um território exposto "às invazoens dos Botocudos", que impe-
diam assim a exploração das fortunas almejadas. 45
Com o tempo o movimento de índios em direção à capital do
império foi aumentando. O índio Inocêncio, em 1820, aparece em
Vitória acompanhado de outros doze Botocudos que se dirigiam à
Corte, "por causas que ele explicará a V. Excia", adiantava o governa-
dor do Espírito Santo ao ministro Tomás Vilanova de Portugal. 46 Por
essa época o conde de Linhares já falecera e corria à boca pequena
que sua morte fora por envenenamento: são as possíveis autofagias
cortesãs. Ocorre que esses índios estavam nus e o governador capixaba
tratou de pedir verba suplementar para poder vesti-los, evitando es-
cândalos entre os cortesãos. De qualquer maneira, há a indicação de
que esses índios, por intermédio de um porta-voz, pretendiam nego-
ciar com a Corte, solicitar algum tipo de benefício ou proteção -
caracterizando assim a existência de uma relação que buscava nego-
ciar pela sobrevivência, diferente da guerra ofensiva.
Na mesma época o governador do Espírito Santo notificava ao
Palácio do Rio de Janeiro que passava por Vitória o alferes Julião
Fernandes Leão, então comandante da 7." Divisão de Minas Gerais,

45
José Pereira Freire de Moura. Exploração no Jequitinhonha [1810]. RAPM,
II, pp. 31-6.
46
Ofício de 13-7-1820, Correspondências dos governadores da capitania epresiden-
tes da prov íncia do Espírito Santo ao Ministério do Reino (IJJ9), AN.
136 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

"conduzindo trinta e tantos Indios, a maior parte Botocudos, dos quaes


elle tem domesticado pelos meios da brandura e docilidade". 47 Julião
seria logo promovido a coronel e teria atuação de destaque, durante o
Império, no contato com os Botocudos. Aqui não seriam prisioneiros
de guerra, mas exemplo de índios pacificados ou, mais precisamente,
"domesticados", embora também pressionados pela guerra existente.
Essa presença de Botocudos na Corte pode não ter sido muito
significativa do ponto de vista demográfico, nem para as tribos e muito
menos para a capital brasileira. Muitos deles pareciam estar apenas
de passagem. Porém, a importância dessa movimentação, que se in-
tensifica com a Guerra de 1808-1824 e com a chegada da Corte
portuguesa no Brasil, exprime a força de atração do polo centraliza-
dor de poder implantado no Rio de Janeiro. Levados neste primeiro
momento como troféus ou atraídos em busca de armistício, estes
Botocudos eram recebidos como uma espécie de povo guerreiro que
começava a se submeter ao domínio do império luso-brasileiro.
Curiosidade havia alguma, mas não ainda os olhares mistos de espe-
táculo e curiosidade-científica, que só começaria a se acentuar entre
o público urbano décadas depois. Entretanto, as viagens serviam para
aplacar alguma curiosidade em torno dessa tribo legendária e até
então praticamente desconhecida pelas populações urbanas. Vê-se
ainda que cabia aos militares e à Secretaria da Guerra, além do com-
bate, uma improvisação de política indigenista, na qual militares es-
cravizavam ou se ocupavam dos índios sobreviventes. E as autori-
dades interessavam-se também na inclusão ao serviço militar, na
preparação de índios como mercenários de guerra a serem usados
contra suas próprias tribos, como ocorrerá alguns anos depois.
Em torno da guerra havia também a perspectiva de testar a
adaptação de tais índios não apenas nas casernas, arsenais, escaleres e
outros serviços militares, mas como mão de obra em diferentes tra-
balhos urbanos, sobretudo obras públicas. Sem falar das tentativas de
incorporá-los à sociedade por meio da educação, quando os que eram
trazidos serviriam como uma espécie de balão de ensaio para uma
incorporação progressiva. Havia, pois, movimentos dos dois lados:
dos índios, que buscavam canais de intermediação como estratégia
negociada de sobrevivência e dos luso-brasileiros tentando dominar

47
Ofício de 16-1-1821. Correspondências dos presidentes da província do Espírito
Santo ao Ministério do Reino e do Império (IJJ9), AN.
1808-1824: O IMPÉRIO CONTRA OS "ANTROPÓFAGOS" 137
inimigo antigo e obter novas fontes de poder militar, de mão de obra
e de predomínio civilizador.
Mas a ida de Botocudos à cidade imperial também poderia ter
um impacto pedagógico (no sentido amplo) para as tribos: os índios
que empreendiam essa viagem presenciam pela primeira vez, com os
próprios olhos, a dimensão de uma cidade grande e da sociedade que
se desenvolvia após a chegada da Corte portuguesa - que não se
limitava às frentes de expansão e pequenos aglomerados urbanos que
lidavam diretamente com os grupos indígenas.
A província do Rio de Janeiro tinha cerca de 230 mil habitan-
tes e pelo porto da capital passaram, em 1810, 1.634 navios portu-
gueses e de outros países. O impacto desta visão de uma metrópole
em plena expansão pode ter alterado a própria concepção que os
Botocudos tinham sobre seus adversários luso-brasileiros e sobre a
amplitude de sua presença no território. Os índios que voltavam da
capital certamente traziam esse impacto e essa discussão para o inte-
rior das tribos. Os grupos de Botocudos que, nos anos subsequentes,
passam a buscar convivência pacífica com as frentes de expansão,
podem ter chegado a tal conclusão a partir da visão que iam adqui-
rindo sobre a amplitude da presença dos colonizadores muito além
das fronteiras dos territórios tribais.
A estratégia desencadeada pela ofensiva de 1808 não dera os
resultados fulminantes esperados pela Coroa nos três primeiros anos.
Os Botocudos estavam acuados, sofreram baixas e viram surgir cla-
rões de colonização no interior de seus territórios. Porém, além de
não dizimados, continuavam ocupando parcelas importantes da re-
gião e até reagiram de forma violenta aos ataques.
A demissão de Tovar do governo do Espírito Santo conduz à
administração da capitania um capitão de mar e guerra da Armada
Real, Francisco Alberto Rubim. Entretanto, a formação de militar
não o leva a continuar a guerra na maneira até então predominante.
Rubim toma novas iniciativas em relação aos Botocudos. Começa a
haver uma tendência de mudança de atitude das autoridades, que não
se limitam mais ao confronto. A guerra não fora abandonada, nem a
mobilização forçada da população civil capixaba. Mas para vencer os
índios, a administração Rubim começava a lançar mão, também, de
ações que visavam o desenvolvimento econômico mais imediato. O
progresso da região era não apenas objetivo final, mas meio essencial
para a submissão dos índios.
138 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

Para essa área ainda repleta de "índios bravos" foram enviados


cinquenta casais vindos dos Açores para colonizar a região em 1813.
A localidade onde eles se instalaram deu origem ao povoado de Viana
no norte do rio Santo Agostinho. As frentes de expansão acossavam
os Botocudos, mas estes também se impunham. Para as autoridades
locais, os colonos vindos das ilhas dos Açores corriam risco, mas o
"perigo que temem do Gentio he o que geralmente temem todos os
Lavradores". 48
Ou seja, verificava-se aí um processo (que se repetiria em ou-
tras províncias no século XIX) de substituição da presença indígena
pelos imigrantes europeus- jogando uns contra os outros. E, com o
predomínio dos colonos de origem europeia, cria-se memória e iden-
tidade regionais que buscam silenciar os traços da presença indígena
e de seus descendentes, como ocorreu no Espírito Santo e em Santa
Catarina, por exemplo.
No ano seguinte, 1814, começa a construção de uma estrada
entre Vila Rica e Vitória, velho sonho dos colonizadores. As obras
foram conduzidas pelo capitão Inácio Pereira Duarte Carneiro (mais
tarde se tornaria governador do Espírito Santo). O trajeto teria 32
léguas e começaria nas cachoeiras do rio Santa Maria, nos arredores
da capital capixaba, indo mato adentro até o destino almejado. Em
pleno território indígena. Em seus relatórios, o capitão Carneiro
narraria que os trabalhadores estavam o tempo todo "cheios de um
terror pânico". Para surpresa geral não encontraram nenhuma hosti-
lidade e a obra pôde ser concluída. Mas ao que parece a estrada não
trouxe os efeitos esperados ao progresso da região. Num relatório de
dezessete anos mais tarde, o governador capixaba Gabriel Getúlio
Monteiro de Mendonça afumaria que o caminho se encontrava aban-
donado, coberto de mato, praticamente não utilizado: apenas três
boiadas tinham se aventurado de Minas ao Espírito Santo durante
todos esses anos. 49
Ao fazer um balanço no fim de seu governo, em 1818, Francis-
co Rubim reconhece que a questão indígena ainda estava longe de ser
equacionada pelos colonizadores. Ele ainda vê "os povos de toda a

48 Ofício de 11-6-1822. Correspondências dos presidentes da provfncia do Espfrito

Santo ao Ministério do Reino e do Império (IJJ9), AN.


49 Francisco Alberto Rubim. "Memoria estatística da provincia do Espírito

Santo .. .", pp. 180-4.


1808-1824: O IMPÉRIO CONTRA OS "ANTROPÓFAGOS" 139
Capitania com horror ao lugar [distrito de Rio Doce] por causa dos
insultos e perseguições do Gentio bravo". Depois de uma década de
guerra ofensiva, as autoridades reconheciam as limitações. Os luso-
-brasileiros não haviam exterminado os Botocudos e estes ainda apa-
reciam como perseguidores. Os índios tinham atuação política, uma
vez que forçavam alteração das estratégias de seus oponentes. Isso
explica a mudança da linha política efetuada pelo governo Rubim.
No mesmo relatório ele valoriza "medidas pacificas e vigilantes", o
incentivo à agricultura, ao comércio e a realização de melhorias ur-
banas. No tocante aos índios, ele destaca a "persuasão" e a "valente
trincheira que formou em torno da povoação de Linhares". 50
Essa trincheira era impressionante: não só o núcleo urbano,
mas as plantações e mesmo pastos para gado que circundavam
Linhares foram literalmente entrincheirados numa extensão de mais
de uma légua com troncos, galhos e vegetação espessa arrancados e
arrumados ("entrincheirado de mataria groça derribada"). Só assim
era possível manter uma cidade no interior do território indígena. Ou
seja, mais do que atividade bélica isolada, o governador Rubim en-
tendia que só erguendo fronteiras da civilização seria possível enfra-
quecer a resistência indígena e instalar um centro urbano no local. A
própria estratégia de pacificação tinha como fim desarmar os
Botocudos evitando os combates que, afinal, eram desgastantes tam-
bém para os guerreiros da Coroa.
É importante assinalar: algumas vozes surgiram contra essa
guerra ofensiva, embora isoladas. E na maioria das vezes, significati-
vamente, partiam de estrangeiros (não luso-brasileiros). O que de-
monstra como era uma questão crucial e difícil de ser tratada pelos
que se viam diretamente envolvidos na luta da "civilização" contra a
"barbárie". A visão predominante entre portugueses da Europa e da
América (como então se denominavam os nascidos no Brasil) era a
de perceber os índios como inimigo a destruir ou obstáculo a superar.
Era mais fácil para alguém vindo "de fora", isto é, de outro país, ter
uma percepção diferente desse processo.
Um dos primeiros e mais contundentes críticos da guerra ofen-
siva contra os Botocudos foi o engenheiro germânico Wilhelm Ludwig
voo Eschewege, futuro barão do mesmo nome: militar, cientista,

50
Ofício de 5-12-1818, Correspondências dos governadores da capitania epresiden-
tes da prov íncia do Espírito Santo ao Ministério do Reino (IJJ9), AN.
140 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

administrador público e um dos pioneiros da metalurgia no Brasil.


Em ofício de 1811 dirigido de Vila Rica a D. Rodrigo de Sousa
Coutinho, Eschewege mostrou abertamente sua indignação: "Civiliza-
ção com espada na mão he contradição". 51 Conhecedor do terreno,
Eschewege percorria os sertões de Minas Gerais e Espírito Santo
em missões profissionais, sobretudo de pesquisas mineralógicas, acom-
panhado do militar francês Cuido Marliere, que se ocupava do contato
com as tribos Puris e Coroados. Eschewege foi dos primeiros a registrar
por escrito uma apreciação que contradizia a legenda de ferocidade
em torno dos índios do rio Doce. Para ele o Botocudo é "suscetível de
sentimentos humanos" e a atitude dos brancos "não deveria ser de
Conquista, mas sim de conservação da amizade". Mais do que defen-
sor da paz, Eschewege mostrou capacidade de compreensão e aceita-
ção do Outro, das diferenças culturais, afirmando no mesmo ofício:

O lndio tem os seos costumes, tem sua Religião, seja qual ella
for, he muito natural que elle [a]defenda com a sua vida, em
quanto não está persuadido do contrario.

Nos contatos que travou com essas tribos, ele demonstrou esta
abertura à cultura dos índios tentando se colocar do ponto de vista
deles, expressando suas visões dos homens brancos:

[... ] até os Botocudos estão persuadidos que nós somos Boto-


cudos e Antropophagos.

Esse testemunho assemelha-se ao que fora registrado pela ín-


dia Margarida, no tempo dos Aimorés no século XVII, que enxerga-
va no vinho português o sangue dos índios mortos. Na verdade, como
já foi visto, essa percepção de um "canibalismo" praticado pelos luso-
-brasileiros nos parece coerente diante dos atos desses guerreiros da
civilização ocidental, que incluíam mutilações de cadáveres e cole-
ções de pedaços dos corpos dos índios como troféus de guerra. E o
termo "Botocudo" ganha aqui seu significado mais forte e é aplicado
tanto aos índios quanto a seus adversários.

51 Copia de huma carta feita pelo sargento mor Eschewege acerca dos Botocudos e das

divisões da Conquista, com notas pelo deputado da junta Militar, Matheus Herculano Monteiro,
1811, 8, 1,8, n.• 166, f. 135, FBN/MSS.
1808-1824: O IMPÉRIO CONTRA OS "ANTROPÓFAGOS" 141
O engenheiro Eschewege, assim, parecera compreender o
perturbador jogo de alteridades desencadeado por esse conflito entre
os luso-brasileiros e os Botocudos: ele dizia que se os atos de violên-
cia desta guerra "são capazes de reduzir uma Nação civilizada ao
estado de barbárie, também o effeito contrário farão com uma Nação
bárbara". Com lucidez, ele alertava que o progressismo desenfreado
poderia levar as nações que se queriam civilizadas ao estado de barbárie.
Por isso, em vez de pregar o extermínio indiscriminado dos povos
indígenas, Eschewege acreditava que só os chamados métodos pací-
ficos, envolvendo diálogo e paciência, poderiam resolver essa guerra
entre Nações de civilizações distintas. E previa que apenas a guerra
ofensiva não resolveria a questão indígena do rio Doce. O futuro lhe
daria razão nestes pontos. Eschewege assinala que estas tribos deno-
minavam a si mesmas de Arari.
Ainda em 1811, ocorreram outras tentativas de fixação de colo-
nos nas áreas dos Botocudos. O coronel Bento Lourenço Vaz de Abreu
e Lima fez uma viagem pelo rio Mucuri, a mando do conde da Barca,
visando fundar uma cidade. Foi atacado pelos índios e não levou adiante
a empreitada como desejaria- mas de sua presença resultou a insta-
lação de uma fazenda, uma serraria e um quartel para proteger os
moradores.
No mesmo ano o colono João Filipe de Almeida Calmon teve
mais habilidade. Começou a instalar uma fazenda nos arredores de
Linhares, mas levava consigo um grupo de quarenta homens bem
armados e municiados. Logo que os trabalhos começaram eles foram
atacados por 150 Botocudos, reagiram, matando um índio. Em seguida,
passaram a fazer muito barulho com as armas para intimidar, mas
não atacaram mais as tribos e passaram a lhes oferecer presentes e
acenar com uma convivência pacífica. Usando esse estratagema, Calmon
conseguiu conquistar a confiança e ter uma convivência pacífica com
os índios, sendo durante muitos anos o único fazendeiro da região.
Logo ele construiu engenho, e tinha 25 pessoas trabalhando em sua
propriedade. Anos depois da morte de Calmon, os Botocudos ainda
se lembrariam dele como alguém que não buscou massacrá-los siste-
maticamente, ao contrário de outros fazendeiros. A fazenda de Calmon
se transformaria num ponto de encontro entre os Botocudos e a soci-
edade luso-brasileira durante esses anos cruciais. 52

52
A. Saint-Hilaire (1974), p. 92.
142 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

Também em 1811 chega ao local o militar Julião Fernandes


Leão, que por longos anos seria encarregado de lidar com esses ín-
dios. Lentamente, o cerco começa a se apertar em torno das tribos
que ainda resistiam.
A situação do contato com os Botocudos na Bahia era diferente
do que se passava no Espírito Santo e em Minas Gerais, onde a
guerra ocorria de maneira violenta pelos luso-brasileiros. Até porque
a Bahia não se incluía na região em torno do Rio de Janeiro que
crescia em importância econômica e administrativa.
Um dos elementos para essa situação diferenciada foi a atuação
em terras baianas do capitão João da Silva Santos, também fazendeiro,
que parece ter tido convivência pacífica com os Botocudos. Ou seja,
os índios encontraram um luso brasileiro "manso" e conseguiram paci-
ficá-lo. É o próprio capitão quem atesta: "[ ... ] no anno de 1786 em
que o dito gentio me sahio de paz pela primeira vez [ . . .]". Esses
primeiros índios que lhe saíram de paz (ou seja, a iniciativa coube a
eles) procuraram o capitão em sua fazenda. O chefe deles se apresentou
como cabo Tomé e, para comprovar a patente, apresentou papel assina-
do por D. Manuel, ex-governante de Vila Rica, onde se lia: "Ao cabo
Thomé da nação do gentio barbaro, deixarão andar esquadrinhando
com sua patrulha, as cabeceiras do Ribeiro Sancta Barbosa". Ou seja,
o grupo indígena recebera um salvo-conduto, desde que assumisse a
condição de patrulha das forças portuguesas-oque implicava, no mí-
nimo, não hostilizar os colonos. Em contrapartida se delimitava um
território onde os índios pudessem transitar- o que era um sinal de
paz, mas ainda distante de reconhecer aos índios a posse do território. 53
Em 1798 os mesmos índios voltaram à fazenda de João da Silva
Santos, pediram (e ganharam) machados, foices, facões e facas - o
que comprova que já em fins do século XVIII os instrumentos de
ferro eram introduzidos entre os Botocudos. Por essa época um es-
cravo negro desse fazendeiro fugiu. Capturado e conduzido de volta
ao dono em 1800, este constatou que o fugitivo ficara entre os Boto-
cudos, onde aprendera a língua e travara bom relacionamento. O ca-
pitão então pode saber que os Botocudos estabelecidos na latitude
18°,47 e longitude 323°,0 eram em torno de 2.000, dados confirma-
dos pelo "língua" (índio intérprete) Antônio José. 54 Temos aqui outro
exemplo de integração, individual, entre negros e Botocudos. Como

53 Manuscritos Arq. 1.1.20 e Arq. 1.1.19, Arquivo do IHGB .


54
Ibidem.
1808-1824: O IMPÉRIO CONTRA OS "ANTROPÓFAGOS" 143
já foi visto, havia relações de conflito e repulsa, mas também possibi-
lidades de aproximação, sendo, por isso, impossível ftxar um com-
portamento de tipo "racial" entre negros e Botocudos.
Por esse tempo, havia membros das elites culturais e administra-
tivas baianas, como Baltasar da Silva Lisboa, que eram adeptos dos
"meios brandos" para a submissão dos índios. Foi então que o governa-
dor conde dos Arcos encarregou a tarefa da pacificação ao mesmo
capitão João da Silva Santos, que procurou usar como intermediários
índios "mansos" e o seu escravo negro para chegar aos Botocudos "bra-
vos". Por ordem do governador, o capitão-fazendeiro João da Silva
Santos realizou uma expedição entre junho de 1802 e abril do ano se-
guinte. A expedição percorreu o litoral sul da Bahia e internou-se no
sertão, passando pelos rios Belmonte, Grande, Jequitinhonha e Are-
puaí (Araçuaí?), indo até a barra do rio Doce na fronteira capixaba.
Nos arredores de São Mateus (povoado com cem casas de telha e onze
de palha) o capitão enviou índios "mansos" para procurar as tribos da
região, que, segundo ele, depois dos conta tos estabelecidos, "passaram
a viver em paz comigo". Embora seja importante guardar a sutileza
do militar e fazendeiro- a paz era com ele e não com a sociedade-
a medida parece ter tido melhor efeito, evitando que o impulso guer-
reiro da Coroa em 1808 tivesse maiores consequências no local.
Mas a Bahia não estava isenta de conflitos com os Botocudos.
Carta Régia de D. João ao conde dos Arcos em 1813 ordena a cria-
ção de um destacamento de vinte homens para "cohibir qualquer
insulto que intentava fazer o Gentio Botocudo, que habita aquellas
imediações". As queixas partiram do ouvidor da comarca de Porto
Seguro, José Marcelino Cunha e referiam-se à localidade de Arcos,
na ilha da Cachoeirinha. Note-se que o documento usa o termo "in-
tentava", intencionava, o que indica um clima de tensão ou hostilida-
de- mas não fala em conflitos armados. A relação com os Botocudos
na Bahia recebeu reflexos do ímpeto guerreiro da Coroa. Porém, nes-
ta época de lutas tão cruentas entre Botocudos e a sociedade luso-
-brasileira, parece ter predominado uma certa trégua na Bahia, como
testemunharia o viajante Wied-Neuwied. 55

55 lbidem. Carta Régia dirigida ao conde dos Arcos, governador da Bahia, autorizan-

do o levantamento de um destacamento de vinte homens na Povoação dos Arcos, nessa capitania,


para proteção dos colonos aí estabelecidos e repressão do provavel abuso dos vizinhos Botocudos,
Rio de Janeiro, 21 de novembro de 1813, II-33, 29, 98, FBN/MSS. M. Wied-Neuwied,
cit., t. 1, pp. 274-5.
144 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

Em 1816 D. João assinava outra Carta Régia que não descarta-


va a intenção de extermínio, mas fazia um certo recuo na ofensiva, ou
pelo menos acrescentava uma nuance à política oficial que se mostra-
ra tão agressiva. Sem abandonar a cantilena contra a "feroz e barbara
raça dos índios Botocudos", o monarca fazia uma concessão, decisão
talvez influenciada pelas sugestões vindas de um Eschewege (que
gozava de prestígio na Corte), pela política do governador Rubim, ou
no caso da Bahia. Baseado, pois, na diversidade de experiências, D.
João admitia na Carta Régia de 1816 que os Botocudos podiam "en-
contrar os attractivos de civilização, sendo convidados com brandura
ao reconhecimento e sujeição às minhas leis, e castigados prompta-
mente os que cometterem hostilidades". 55
Como já foi visto, continuavam a se esboçar duas linhas diferentes
para conduzirem ao mesmo objetivo, que era submeter os índios. Uma,
pela destruição direta, pela atividade bélica. Outra, implementando
um certo progresso econômico na região e procurando incorporar os
índios com "brandura". Com as Cartas Régias de 1808 e 1813, a
Coroa optara exclusivamente pela primeira tendência. Com a de 1816,
admitia as duas possibilidades. Difícil parecia ser abrir mão da índole
guerreira, tão arraigada na tradição das armas e brasões da ocidental
praia lusitana... Como os Botocudos, em sua maioria, também não
pareciam dispostos a depor as armas, as hostilidades continuariam.
A Guerra decretada em 1808, com ares apocalípticos, serviu
para que os colonizadores ganhassem mais espaço na região, mas não
produziu os resultados definitivos esperados. Diversas dificuldades
apareceram para as tropas luso-brasileiras. Em primeiro lugar, aqui-
lo que é elementar em qualquer combate, especialmente numa luta de
escaramuças à maneira de guerrilhas: o conhecimento do terreno, no
qual os índios levavam vantagem. Pesava também o tradicional senti-
mento de medo diante da legenda de invencibilidade de tais índios,
arrefecendo o ânimo dos soldados, que não lutavam com o afinco de
quem defende as próprias terras. O fato de que as tribos de Botocudos
vivessem fracionadas em bandos pequenos ou médios dificultava um
ataque conjunto das tropas organizadas - impossibilitava uma ação
militar coordenada e unificada dentro dos padrões bélicos ocidentais.
O nomadismo destas tribos continuava como entrave ao bom êxito

56
Francisco Alberto Rubim. "Memoria estatística da província do Espírito
Santo . . .", p. 189.
1808-1824: O IMP ÉRIO CONTRA OS "ANTROPÓFAGOS" 145
das tropas regulares - que dificilmente tinham alvo fixo para atacar.
A própria organização social dos Botocudos (e seu desconhecimento
pelos adversários) era até então um trunfo dessas tribos.
Mais do que falar de vencidos ou vencedores, neste momento,
parece adequado perceber que a partir daí estabeleceu-se um novo
equilíbrio de forças, abriu-se outra etapa de relação entre essas tribos
e a sociedade que as cercavam. Os Botocudos saíram enfraquecidos,
mas não dizimados. Houve muitas mortes e demarca-se nova fase do
contato com tais índios, mas não ainda o fim do longo conflito. O
comportamento das tribos foi diverso. Alguns grupos foram derrota-
dos, com muitos mortos e até desapareceram. Outros acabaram acei-
tando convívio intermitente. Sem esquecer os que se incorporaram
aos postos indígenas e à vida da sociedade, como agregados, forman-
do famílias, trabalhando em instituições públicas ou, ainda, como
escravos. E alguns continuaram arredios, embrenharam-se nas ma-
tas. Mas de qualquer maneira abriu-se à força caminho para uma
aproximação com os Botocudos - o que implicava mais conheci-
mento sobre eles, mais controle e importantes alterações na vida des-
tes povos.
A violência sangrenta da guerra abriu caminhos para as Luzes
do progresso e da ciência (seria, a seguir, o tempo onde se forjavam a
Independência, a modernidade política e os primeiros esforços de
construção nacional do Brasil), dando continuidade à tarefa de deci-
frar e dominar esses grupos indígenas até então arredios.
A ofensiva do "Reino Unido de Portugal e do Brazil e Algarves
d'aquem e d'alem Mar em Africa, de Guine e da Conquista, Navega-
ção, Commercio em Ethiopia, Arabia, Persia e da India" abalou mas
não destruiu as nações de Botocudos. Daí por diante, o desafio estaria
colocado para o Império do Brasil.
Vale assinalar que o estudo dessa guerra contra grupos indíge-
nas no Espírito Santo e Minas Gerais no começo do século XIX
permite reflexão sobre elementos importantes para a compreensão
das relações dos índios com a sociedade luso-brasileira, que em breve
se transformaria em brasileira. Apesar da guerra de extermínio ofi-
cialmente decretada e praticada, das múltiplas violências e dos pre-
conceitos existentes contra as populações indígenas, elas deixavam
sua marca na sociedade, não só no âmbito das políticas oficiais e das
atividades administrativas e bélicas, como é evidente, mas também de
forma cultural e social.
146 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

A guerra significava confronto, mas havia encontro e convivên-


cia desses diferentes grupos humanos num mesmo espaço geográfico,
onde as condições de isolamento poderiam levar a aproximações, vo-
luntárias ou não.
Veja-se a curiosa experiência do soldado Raimundo Ferreira de
Araújo, que desertou da 7.• Divisão do Rio Doce para não ser punido
por falta grave de disciplina e acabou refugiando-se numa tribo de
Botocudos. Conviveu entre eles por muitos anos, abandonou as rou-
pas, passou a pintar o corpo de urucum e jenipapo e a cortar o cabelo
à moda dos índios. Com a morte do chefe do grupo, Raimundo tor-
nou-se cacique e acabou reaparecendo no quartel, foi perdoado e
promoveu a aproximação da tribo com as frentes de expansão, levan-
do os índios a construírem casas, praticarem agricultura, isto é, a
ficarem sedentários e conviverem permanentemente com a sociedade,
integrando-se a elaP O soldado Raimundo foi, assim, um agente de
intermediação, ainda que de maneira informal e não prevista.
Além dos soldados, essta aproximação entre índios e não índios
era marcante por meio de uniões matrimoniais. Houve por exemplo
situação constrangedora envolvendo Manuel Álvares Tomé, que teve
seu ingresso vetado na Irmandade da Ordem Terceira do Carmo, em
Vitória, "por ser filho de huma Mãy que tem sangue Indio com o de
negro", além de ter sido prostituta, a qual, por sua vez, "nasceu d'huma
mulher quasi em tudo semelhante, que afinal teve um pretto cativo
por consorte". 58 Entretanto, Manuel Álvares deveria ser personagem
influente, pois recorreu judicialmente e politicamente contra tal me-
dida e obteve até intervenção direta da Corte para que fosse admitido
na Irmandade.
Registra-se ainda outro caso que traz à tona a inserção dos
índios na sociedade luso-brasileira no início do século XIX quando
Antônio Gomes da Cunha Braga, escrivão da Câmara da Vila de
Benevente (atual Anchieta, onde havia aldeamentos dos Aimorés/
Botocudos), revelou sua frustração quando saiu a campo para apreen-
der a índia Manuela, fllha do capitão-mor Manuel Pedro e casada
com o índio Domingos Pereira, sem poder encontrá-la, pois ela esta-
va "em outras terras". 59

57
A Saint-Hüaire (1830), t. 2, p. 227.
58
Ofício de 17-2-1819, Correspondências dos governadores da capitania epresiden-
tes da prov{ncia do Espfrito Santo ao Ministério do Reino (IJJ9), AN.
59
Ofício de 30-8-1815, Série Accioly, Livro 67, p. 15, APES.
1808-1824: O IMPÉRIO CONTRA OS "ANTROPÓFAGOS" 147
Estes exemplos, simultâneos à guerra ofensiva e mesclando pre-
conceito, ascensão social e disputas no interior das hierarquias esta-
belecidas, seriam apenas casos isolados? Tudo leva a crer que não.
O relato de Saint-Hilaire sobre a capitania do Espírito Santo é
sintomático: o viajante francês respirava a presença indígena não só
no meio rural ou nas frentes de combate no rio Doce, mas sobretudo
no ambiente urbano. Ele destacava essa influência na alimentação, no
vocabulário, no sotaque e entonação das falas, nas roupas, nos com-
portamentos e costumes e no aspecto físico, marcando, segundo ele,
especificidade em relação a outras capitanias que conhecera. 60
Reforçando esses registros, é impressionante verificar como le-
vantamentos demográficos capixabas, além dos dados de batizados,
casamentos e óbitos, ainda nos anos 1840 e 1850, revelam considerá-
vel presença indígena numa província situada entre os dois principais
polos de poder do Brasil nos séculos XVIII e XIX, Bahia e Rio de
Janeiro. 61 Os índios e seus descendentes imediatos eram parte inte-
grante e ativa da sociedade que se formava, em posição subalterna ou
disputando espaços nas hierarquias estabelecidas.
Ou seja, os Botocudos e outras tribos, mesmo quando derrota-
dos militarmente ou forçados à vida sedentária, não desapareciam de
uma hora para outra. Estavam nas residências urbanas, nas fazendas,
mesclando-se à vida doméstica e do trabalho. Entretanto, na segunda
metade do Oitocentos, sobretudo a partir do reforço das levas de imi-
grantes europeus vindos como colonos, diminui a visibilidade da pre-
sença indígena nesta vasta área que passaria a ser parte da região
Sudeste - o que é também uma questão de memória e ocultação
histórica coletiva, de escolhas e identidade.

A Saint-Hilaire (1974), cap. I.


60

61
V. documentação na Série Accioly, vol. 311, APES. Para a presença indíge-
na na região Sudeste no século XIX, v. o trabalho preliminar de Bessa Freire &
Malheiros. Aldeamentos ilndígenas no Rio de janeiro. . ., 1997 e a dissertação de M.
Santanna Lemos, cit.
Capítulo 5
VIAJANTES DESCOBREM A
"CORDIALIDADE DOS SELVAGENS"

Ü primeiro contato entre os Botocudos e um lídimo re-


presentante das Luzes da ciência e da civilização ocidental foi prosai-
co, cordial e pacífico.
De um lado, estava um dos exemplares mais puros e tradicionais
desta civilização: o príncipe Alexandre Philippe Maximilien, debutante
naturalista. 1 Oriundo de uma das mais antigas linhagens da nobreza
europeia (vinda do século XII), nascera em 1782 e fora criado no cas-
telo da família, às margens do rio Reno. Na verdade, nunca contara
herdar a coroa do principado de Wied Neuwied: oitavo fllho, pare-
cia não ter chance na escala sucessória. Dedicara-se, com paixão, ao
que realmente o empolgava: as Ciências Naturais, que englobavam,
como se sabe, o estudo dos minerais, das plantas, dos animais e dos
"povos selvagens". Deixando para os mais velhos da família as intri-
gas e disputas palacianas, ele reservara para si o livre trânsito nas
Cortes europeias e o aprendizado em torno da República das Letras,
onde considerava Alexandre Humboldt seu grande mestre. Isso
correspondia, no campo científico, a uma visão herdada do Século
das Luzes, do enciclopedismo, mas que se dirigia para uma dimen-
são historicizante e social dos elementos naturais, tão ao gosto do
século XIX. Assim, pode-se dizer que a formação do príncipe
Maximilien representava de maneira típica, no campo das ideias

1
Os trechos a seguir foram retirados de M. Wied-Neuwied, tomos I e II. Para
a biografia deste autor e análises de sua obra, v. H . Baldus,J. Roder e Oceanos (Revi sta,
n.• 24, 1995).
148
VIAJANTES DECOBREM A "CORDIALIDADE DOS SELVAGENS" 149
científicas, esta passagem entre os séculos XVIII e XIX, entre a Ilus-
tração e cientificismo historicista.
Mas a tempestade da Revolução Francesa, a guerra contra Na-
poleão Bonaparte, doenças, mortes prematuras e acasos diversos acaba-
ram por colocar Maximilien na condição de príncipe de Wied-Neu-
wied. Ele não fugiu à luta nem à solidariedade com a aristocracia, à
qual pertencia. Oficial das tropas monarquistas, esteve à frente de
episódios decisivos. Foi preso na batalha de lena, trocado por outros
prisioneiros, voltou a combater. Vitoriosos os restauradores da mo-
narquia, ele participou da ocupação de Paris ao lado das tropas con-
trarrevolucionárias austríacas e inglesas em 1814. Os canhões ainda
fumegavam em 1815 e o príncipe Maximilien nem vacilou: aprovei-
tando a abertura do Brasil às nações amigas, partiu imediatamente
para realizar seu velho sonho. Equipado de outras "armas", ele não
pensava mais em combater revolucionários e só queria coletar pássa-
ros, animais, plantas e minerais raros, além de conhecer povos exóti-
cos. Zarpou para o Rio de Janeiro, de onde pretendia realizar uma
ambiciosa expedição pelo interior do Brasil. Ao chegar nos trópicos,
ele apresentou-se com papéis adulterados, escondendo sua identidade
principesca: para todos os efeitos era apenas o erudito cidadão
Braunberg.
Do cerne da luta entre Revolução e Restauração o príncipe
Maximiliano mergulharia em outro ponto nevrálgico daqueles tem-
pos, onde se dava o encontro e o confronto entre os índios e a civili-
zação ocidental. Ao contrário de outros viajantes, que evitavam o ter-
ritório dos "índios bravos", o príncipe Maximilien foi quase em linha
reta para a região dos rios Doce e Belmonte, almejando conhecer de
perto os tão falados Botocudos, contra os quais o rei de Portugal
declarara guerra, sem conseguir, entretanto, aniquilá-los. À frente de
uma pequena tropa (Figura 8) de mulas carregadas de caixas, vidros e
gaiolas, o príncipe Maximilien (Figura 9) era figura curiosa adentran-
do nas selvas tropicais: sempre vestido de casaca, botas e uma
indefectível cartola (substituída nos momentos de mais calor por lar-
go chapéu de palha). Com tal ar inofensivo, lembrava o viajante na-
turalista alemão Meyer, personagem do romance Inocência, do vis-
conde de Taunay.
150 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

Figura 8

Figura 9 (detalhe da Figura 8)


VIAJANTES DECOBREM A "CORDIALIDADE DOS SELVAGENS" 151
Na Figura 8, o príncipe de Wied-Neuwied aparece como uma
espécie de sol em torno do qual giram satélites e planetas, em meio
ao amplo universo da natureza tropical. Tomando o plano central
onde está retratado, temos, atrás do personagem principal, uma cons-
telação de três civilizados (ou pelo menos, vestidos): um dorme com
fuzil, outro escreve e o terceiro observa as ações do príncipe. Os três
sintetizam, à sua maneira, as atividades de sobrevivência e de controle
civilizador em meio à selva, encarnadas pelo naturalista: caça /coleta,
registro escrito e observação - são como os braços ou olhos do
cientista. Diante de Maximilien, estão dois índios que vêm lhe trazer
uma caça, espécime que servirá para suas coleções ou quem sabe
alimento para a expedição. Maximilien, como um imperador dosa-
ber, mantém-se sentado, agente, fala e aponta para os índios que, por
sua vez, são objetos também de seu olhar. Mais ao fundo, à esquerda,
o conjunto de mulas, ladeando o improvisado abrigo de folhas, dá à
cena um ar de presépio, de natividade das Luzes em meio à natureza.
Maximilien costumava deixar o grupo cuidando dos equipa-
mentos e saía sozinho à cata de espécimes de aves ou borboletas, re-
tardando a marcha de muitas horas. Foi numa dessas ocasiões que ele
se viu, inesperadamente, face a face com os temíveis índios que afinal
buscava. Topando com um acampamento abandonado, o pesquisador
não resistiu à tentação e já se dispunha a cavar uma sepultura indíge-
na para coletar restos arqueológicos. Deixemos com o próprio via-
jante a narrativa do encontro:

Nosso plano era terminar a busca com a maior rapidez, mas nos
caminhos estreitos que serpenteiam entre as árvores gigantes-
cas desta floresta, uma multidão de pássaros interessantes atra-
sou nossa caminhada; nós matamos alguns e eu me preparava a
recolher uma ave no chão quando uma voz rouca me chamava
de um tom breve e duro; eu me retornei rapidamente e imagi-
nem a minha surpresa quando vi atrás de mim vários Botocudos
nus e morenos como os animais das florestas, todos com gran-
des placas de madeira branca nas orelhas e no lábio inferior;
reconheço que fiquei um pouco estupefato.

Aí estava o primeiro contato entre o olhar científico ocidental e


os índios que, desde a época em que eram chamados de Aimorés, nun-
ca haviam sido descritos e decodificados assim de perto de forma mais
152 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

detalhada e por alguém que não se colocava, apriori, como seu inimigo,
colonizador ou catequizador. A crer na lógica das narrativas existentes,
o príncipe de Wied-Neuwied seria trucidado e devorado. Mas o altivo
germânico, verificando que nenhuma agressão se consumava e passado
o primeiro susto, caminhou direto para os índios, as mãos estendidas,
disse-lhes duas ou três palavras que aprendera previamente no idio-
ma deles. Procurou não mostrar nem rancor nem pânico, sentimentos
que geralmente guiavam os homens brancos diante desses índios.
Do outro lado do encontro estava a tribo do chefeJune, ouJuné,
cujo nome indígena era Kerengnatnouck (retratado nas Figuras 10 e
11). Além do desenho, o naturalista traçou-lhe retrato escrito: já idoso,
rosto sulcado de rugas, dava a impressão de ter a cara sempre zangada,
mas facilmente se tornava expansivo e generoso. Seu botoque no lábio
era maior que o dos demais, media cerca de quatro polegadas e apesar
da idade era musculoso, rijo e carregava dois pesados fardos nas costas,
além do arco e flechas . Logo, vieram outros guerreiros igualmente
armados e com os cabelos negros e lisos cortados rente, em forma de
coroinha no alto da cabeça. As mulheres, carregadas de pacotes e
crianças, eram as mais curiosas. Eles já haviam percebido a presença
do viajante muito antes do que este pudesse imaginar, mas não pensa-
ram em atacar alguém que andava tão sozinho e despreocupado pela
floresta, com trajes diferentes dos que costumavam ver. O grupo olhava
curioso aquele espécime raro que lhes cruzara o caminho. Eles mira-
vam o naturalista de alto a baixo e trocavam comentários entre si.

Figura 10
VIAJANTES DECOBREM A "CORDIALIDADE DOS SELVAGENS" 153

Figura 11

Cada um dos lados já havia feito o exame inicial. Os olhares


penetrantes, em rápidos segundos, cruzaram-se reciprocamente. De
repente os índios mostram que haviam concluído sua análise e classi-
ficação: partem na direção do príncipe de Wied-Neuwied e lhe dão
calorosos abraços, desses de estalar o peito. Todos riem, os abraços se
repetem, os índios lhe dão amistosos tapas nos ombros. Em vez da
ferocidade, o príncipe Maximilien, embevecido, deparou-se com a
cordialidade dos selvagens. Era o ano de 1815, que marcou definiti-
vamente o fim da Revolução Francesa com a Restauração da monar-
quia em toda Europa. O século XIX começava a projetar as Luzes da
ciência sobre as tribos dos Botocudos - e seria um tempo decisivo
também para a história desse povo.
Note-se que este encontro deu-se em plena guerra ofensiva de-
clarada por D. João, que reinava como príncipe regente. Nem nessa,
nem em nenhuma outra ocasião, se tem notícia de que os chamados
Botocudos do rio Doce tenham atacado algum homem branco que
tenha se aproximado deles com intuitos de estudo, de conhecê-los,
sem envolvimento direto com guerras ou projetos de colonização e
catequese. Teria sido justamente este viés cordial que, paradoxalmen-
te, ajudou a fazer o que as armas ainda não haviam plenamente con-
seguido, decifrar e derrotar esses guerreiros?
É interessante perceber como os viajantes europeus dessa épo-
ca, em suas narrativas, desenvolviam uma estratégia de inocência, que
154 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

consistia justamente em atribuir a eles mesmos e seus empreendi-


mentos um caráter ao mesmo tempo curioso e pitoresco, científico e
atraente, exótico e exato. Entretanto, sabe-se que tais homens de ciência
engajavam-se num projeto de dimensões planetárias, que consistia
em conhecer, classificar e, também, controlar, o conjunto do "mundo
natural" ainda não codificado pela civilização. Nesse sentido, apesar
de aparecerem como neutros ou até humanitários, os viajantes cien-
tistas eram também os olhos de um grande império, o da civilização
ocidental. 2
Com a leva dos cientistas e viajantes europeus em direção ao
Brasil desde princípios do século XIX, começou a surgir um novo
tipo de contato com as tribos de Botocudos, agora com estes repre-
sentantes da cultura europeia. Os povos indígenas ocupariam lugar
privilegiado no interesse desses cientistas, artistas e homens de letras.
E os Botocudos mereceriam especial atenção.
A partir daí foi sendo criado, e divulgado de forma sistemática
pela primeira vez, um corpo de conhecimentos em torno dessas tribos.
Desaparecia a denominação de Aimorés, mas os Botocudos não fica-
riam isentos de serem envolvidos em outras legendas. Viajantes cien-
tistas como Wied-Neuwied, von Martius e Auguste de Saint-Hilaire;
pintores como Jean-Baptiste Debret e Maurice Rugendas- cada
um, a seu modo, contribuiu para o conhecimento e fixação de deter-
minadas imagens dos Botocudos.
Ao longo do século XIX, este "invólucro" científico cultural-
que paradoxalmente produzia um discurso humanizador em relação
aos índios - ajudaria a articular o cerco em torno desses povos. Os
agentes culturais que entravam em campo não eram, certo, extermina-
dores de indígenas, nem seus colonizadores diretos. Mas contribuíram
para o conhecimento deles, possibilitando, ainda que indiretamente,
novas formas de controle. Num primeiro momento, surgiram descri-
ções e algumas interpretações sobre a vida e os costumes desses grupos.
Eram os embriões dos estudos etnológicos no século XIX tendo o
Brasil como um dos campos privilegiados de investigação. Foi, assim,
mais uma descoberta, pela civilização ocidental, de agrupamentos
humanos até então mal conhecidos pelos homens de ciências e letras.
Neste momento se produziram ícones desses índios. Utilizando
técnicas como desenho, pintura, aquarela, litogravura ou quadro a

2
M. L. Pratt. Os olhos do império. Relatos de viagem e transculturação.
VIAJANTES DECOBREM A "CORDIALIDADE DOS SELVAGENS" 155
óleo, alguns dos principais nomes da arte, no Brasil, deram sua con-
tribuição para o conhecimento visual dos Botocudos. Durante muito
tempo essas imagens foram tidas como "documentos" ou reproduções
fiéis e realistas da aparência e dos costumes desses índios. Entretanto,
com a distância de quase dois séculos, a tendência é de compreender
esses primeiros ícones não só como "retrato" e registro da cultura
material, mas também como produto de determinadas concepções
artísticas e culturais daquela época, geradoras de imagens.
A comparação, por exemplo, entre as duas imagens do índio
June (Figuras 10 e 11) traz aspectos interessantes. Na Figura 10, feita
originalmente a partir de indicações do próprio príncipe de Wied-
-Neuwied, existe como que um equilíbrio entre registro etnográfico
e composição artística. O índio aparece com seu corte de cabelo,
ornamentos, armas e mergulhado na natureza (água e vegetação) e
com o produto da caça. Da mesma forma sua mulher, atrás, carregan-
do os filhos (um nas costas), além dos respectivos utensílios orna-
mentos e características físicas, como representante do grupo domés-
tico na divisão de tarefas. O grupo em caminhada reforça a ideia de
nomadismo.
Entretanto, na Figura 11, refeita para publicação e difusão, pa-
rece haver uma concessão ao gosto do mercado editorial, visando um
público mais amplo e correspondendo a determinados lugares-co-
muns relativos à vida selvagem: destaca-se a expressão de ferocidade
de June (que não existe tão acentuada na Figura 10, onde há uma
expressão severa) e o órgão genital masculino é escondido. Dessa
forma, entre a percepção do artista ou cientista (carregada com seu
conjunto de valores e conhecimentos) e a veiculação da iconografia
impressa existe uma teia de mediações que ajuda a compor a imagem
dos índios.
Wied-Neuwied anotou a existência de cinco tribos (ele grafava
"Botocoudys") na região de Belmonte: as que eram chefiadas por
Gipakein (chamava-se de Mariênghiêng em sua própria língua),
Jéparack e por }une ouJuné (Kerengnatnouck) viviam em paz com os
luso-brasileiros. Enquanto as tribos chefiadas por Jonué Iakiiam (nas
margens setentrionais do rio Belmonte) e por Iakiim recusavam qual-
quer contato com os brancos e mesmo com outras tribos. Logicamente,
ele (e todos os que lhe sucederam) escreve baseado nas tribos que
aceitavam o contato. Mas não explica, entre outras coisas, o motivo
dessa duplicidade de nomes dos chefes, que serviam para batizar as
156 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

respectivas tribos. Nem esclarece se a associação entre o nome do


chefe e o da tribo era feita pelos "brancos" ou pelos próprios índios.
Além da guerra com os portugueses, algumas tribos entravam
em luta com outras vizinhas. Em 1815-1817, havia também confronto
entre Botocudos e as tribos Malalis, Maconis, Pataxós e Maxacalis,
segundo o mesmo viajante que retratou a cena de um índio Maxacali
aprisionado por um Botocudo (Figura 12). Note-se, nessa iconografia,
a recriação das rivalidades tribais atribuindo papel de vencedor aos
Botocudos, cujo índio, na figura, aparece com ar vigoroso e resoluto,
ao contrário da expressão de abatimento do prisioneiro. Tal dicotomia
é visualmente reforçada pela posição de uma palmeira altiva, em frente
e próxima ao Botocudo, comparada à palmeira mais baixa e parcial-
mente escondida pela figura do Maxacali capturado. Da mesma for-
ma a vegetação avermelhada aparece sob o braço direito do Botocudo,
em cor semelhante às penas de sua flecha, ao passo que a vegetação
que cerca o Maxacali é homogênea cromaticamente.

Figura 12
VIAJANTES DECOBREM A "CORDIALIDADE DOS SELVAGENS" 157
Eram antagonismos sangrentos que podiam ter longa duração.
Anos mais tarde Teófilo Ottoni confirmaria o teor da guerra entre os
Nacknenukes (tribo de Botocudos) com os Malalis. O conflito vinha
de 1787, quando os últimos, acossados, foram procurar proteção dos
portugueses em Minas Novas e aí se instalaram num quartel militar.
Recrutados à força, submetidos a constantes torturas e violências
pelos soldados, os Malalis foram aniquilados ao longo dos anos. Nos
anos 1820, os poucos Malalis que restaram acabaram fugindo do
quartel e voltando para as selvas. Aí, depararam-se com os Botocudos
e foram dizimados. Apenas alguns poucos voltaram ao quartel onde
contaram a história. Esse relato, acompanhado de outros, confirma a
importância da facciosidade na vida destes grupos, originando con-
fronto com outras tribos, acirrados durante a Guerra de 1808-1824,
quando as divisões territoriais tradicionais entre as etnias eram despe-
daçadas pela presença maior de tropas luso-brasileiras.
O príncipe de Wied-Neuwied teve oportunidade de presenciar
um combate ritual (Figura 7), sem mortes, entre duas tribos rivais de
Botocudos- e não pôde evitar que na sua mente surgissem compa-
rações com os torneios da Europa medieval, o que revelava já um
traço da sensibilidade romântica. O motivo da rivalidade foi o fato de
o chefe June ter caçado porcos-do-mato (pecari) nos terrenos de
Juparack. Como o limite das áreas de caça era importante para essas
tribos, o gesto foi considerado ofensa, crescendo assim a rivalidade
entre os dois grupos, que dividiam, também, a atenção dos brancos. 3
O encontro entre os dois grupos foi marcado para uma clareira
próxima ao quartel na beira do rio Mucuri. Os não índios assistiam
guardando distância e armados para qualquer eventualidade. Arcos e
flechas foram depositados à parte e os homens de cada tribo porta-
vam grandes varas. Os homens de June estavam com o rosto pintado
de vermelho e negro. Juparack adianta-se e entoa longa canção, que
devia ser um desafio: ele mantinha os olhos bem abertos e fixos e
seus homens formavam um círculo em torno dele. As mulheres e
crianças permaneciam de fora, mas formavam suas respectivas torci-
das, manifestando-se por gritos e gestos. Terminada esta parte
introdutória, um homem de cada lado avança e ambos se batem com

3
Esses combates rituais para resolver disputas foram registrados entre Ai-
marés no século XVII, cf. o jesuíta Jácome Monteiro, apud Serafim Leite, VIII, p.
406.
158 CERCO AOS BOTOC UDOS NO SÉCULO XIX

as varas. O embate é cheio de ímpeto. Eles se esbordoam, caem,


levantam, brigam por longos minutos. Qyando os dois se cansam -
ou se ferem - são substituídos por dois outros, ou por dois pares,
que continuam o confronto. Enquanto isso, em volta, as mulheres
ensaiam alguns ataques entre si, se insultam, se puxam os cabelos,
trocam tapas e se arrancam os botoques. Os homens não batem nas
mulheres do grupo oposto, mas se elas se aproximam muito podem
levar um empurrão ou um pontapé. O entrevera dura cerca de uma
hora, pontuado de pancadas, gritos, lamentações. O cansaço cresce e
os feridos vão caindo ou desistindo. O abatimento é geral, quando
June abandona a batalha, seguido de seus aliados, e atravessa a nado o
rio. Juparack continua a brandir sua vara, querendo combater mais.
Aos poucos o terreno fica deserto, coberto apenas por botoques e
varas partidas. Os combatentes, feridos, estão calmos, e sentam-se
para comer farinha e comentar o episódio.
Esse tipo de comportamento guerreiro seria classificado por
antropólogos do século XX como "troca de energias", muito mais do
que relação de destruição ou morte. 4
Além da belicosidade, chama atenção no relato de Wied (ele
faz questão de destacar) a afetividade que percebeu nesses índios. O
cientista germânico tornou-se defensor da "cordialidade dos selva-
gens", depois de conhecê-los de perto. Chegou até a ser ironizado
por outros cientistas em sua época por comparar os Botocudos com
os gauleses que desafiavam o império romano, numa analogia bem ao
gosto do Romantismo. Na verdade o registro, ainda que agradavel-
mente surpreso, de uma atitude mais afetiva ou cordial dos índios, se
insere no quadro das legendas de selvageria. Ou seja, a afirmação da
cordialidade aparece como contraponto ou complemento à visão es-
tereotipada e preconcebida de barbárie e desumanidade. Era como se
dissessem: os selvagens, afinal, também têm sentimentos.
Depois de ter recebido o abraço do chefe June no seu contato
inicial, Wied diz que a primeira preocupação do índio foi indagar
por notícias de um membro de sua tribo que tinha sido levado ao Rio
de Janeiro. Ao saber que o índio estava de volta (são e salvo) June
demonstrou satisfação ("todo seu rosto exprimiu a alegria mais viva")
e apressou o passo para encontrar o índio no posto militar. Em segui-

4
J.-P. Chaumeil. Echange d'énergie: guerre, identité et reproduction sociale
chez les Yagua de I' Amazonie Péruvienne.
VIAJANTES DECOBREM A "CORDIALIDADE DOS SELVAGENS" 159
da: "O encontro foi muito afetivo. O capitão June canta uma canção
para testemunhar sua alegria, e alguns viram-no chorar de prazer."
Ol"tando foi apresentado a outro chefe, Gipakein, Neuwied con-
ta: "Ele me aperta diversas vezes contra seu peito".
Mesmo que Wied-Neuwied olhasse para os índios impregna-
do de seus valores culturais europeus e românticos, está claro que as
manifestações de afetividade que ele presenciou eram traço marcante
do comportamento dos Botocudos e não fruto da invenção ficcional
do naturalista. Desse modo, há um contraste entre a impressão colhi-
da no terreno e registrada por escrito e outros relatos (escritos e
iconográficos) que apontam os Botocudos como bestiais e ferozes.
Neuwied narra ainda: os Botocudos que conheceu gostavam muito
de brincar e cantar, sobretudo depois da caça ou da pesca. Eles usavam
a pele da preguiça amarrada e dobrada como uma espécie de bola
para jogar: em círculo, arremessavam-na entre eles sem deixá-la cair.
Em relação às crianças, o naturalista testemunha: "Eles amam
muito seus filhos enquanto são pequenos e têm um grande cuidado
com eles". Eles tratam as crianças com benevolência ou, na sua visão,
"lhes deixam fazer todas as suas vontades", mas quando elas exageram
nos gritos e barulhos levam uma advertência, que pode ser empurrão,
sacudida, tabefe ou até um golpe de vara. E mesmo em plena guerra
ofensiva do período joanino, os Botocudos ainda sabiam brincar, como
testemunhou o mesmo viajante, com preferência para os divertimen-
tos quando tomavam banho de rio (Figura 13). Acrescentava-se as-
sim mais um traço ao perfil de cordialidade desses índios percebido e
composto por Neuwied, em palavras e ícones.

Figura 13
160 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

Essas tribos praticavam a poligamia, isto é, os homens tinham


geralmente três ou quatro mulheres, podendo chegar até doze o
número de esposas, caso houvesse espaço para tanto. Na visão de
Neuwied, os casamentos se faziam e desfaziam "sem grandes ceri-
mônias", mas as adúlteras eram espancadas e geralmente ostenta-
vam cicatrizes pelo corpo, como resultado de tais castigos. A mulher
do chefe Gipakein, por exemplo, tinha as orelhas e o lábio inferior
cortados, o que lhe dava aparência de estar sempre com sorriso
macabro. O viajante informa que uma tribo era composta de vá-
rias famílias, mas ele não buscou estabelecer os laços de parentesco
nesses grupos.
De qualquer maneira, percebe-se que havia no interior de cada
tribo o chamado grupo doméstico, composto pelas mulheres e crian-
ças, de um lado, e os homens adultos como guerreiros e caçadores,
de outro.
Moldando-os a seus valores pessoais, Neuwied via estes índios
da seguinte maneira:

Suas faculdades intelectuais são dominadas pela sensualidade a


mais grosseira; entretanto, percebe-se com frequência entre eles
provas de um julgamento muito saudável, e mesmo de um espí-
rito fino.

Animal ou racional... ? Nessa avaliação ambígua parecem con-


viver os princípios rígidos do príncipe da civilização europeia e o
cientista aberto à diversidade do conhecimento humano.
Wied-Neuwied registra ainda o nomadismo desses índios, que
estavam sempre em acampamentos provisórios. Mesmo os que se
instalavam no quartel mantinham a movimentação constante. Os
motivos de tal nomadismo não estão bem claros e podem ter origens
diversas, mas nem sempre estão ligados a razões estritamente econô-
micas. Um dos hábitos registrados é que eles costumavam enterrar os
mortos pertos do acampamento e, passadas as cerimônias de luto,
tratavam de mudar de local. O viajante presenciou um desses episó-
dios. Com a morte de duas índias, os índios queimaram as cabanas
(preservando as plantações) e se mudaram para a outra margem do
rio, por não quererem morar onde estavam enterrados os dois corpos.
A tribo se locomovia também em determinadas épocas para colher
VIAJANTES DECOBREM A "CORDIALIDADE DOS SELVAGENS" 161
frutos nas florestas. E quando um terreno de caça se esgotava, eles se
deslocavam para outras áreas próximas.
O príncipe afirma que estas tribos em torno do rio Mucuri
tinham o nome comum de "Engerecmoung". É interessante ressaltar
que essa referência não se encontra nenhuma vez em registras poste-
riores. "O nome de Botocudo lhes desagrada muito", afirma Neuwied
- o que é uma observação importante, já analisada neste trabalho.
Ciosos de sua identidade, esses índios irritavam-se com o estigma
imposto pelos colonizadores.
Falando da cor da pele destes índios (fator considerado impor-
tante para classificação de tipo racial), Neuwied testemunha uma cor
"morena avermelhada", alguns com a tez mais clara, outros, mais es-
cura. Os cabelos são negros, finos e lisos e muitos arrancavam as
sobrancelhas e, segundo ele, a barba. As mulheres não tinham pelo e
todos tinham aparência robusta, musculosa, vigorosa. Raspavam-se
na parte de trás da cabeça até três dedos acima das orelhas, restando
apenas um pequeno tufo sobre o crânio.
Os homens protegiam as partes genitais com um ornamento
trançado em palha (giucann). Os botoques da boca (gnimato) e do
lábio (houma) eram colocados na idade de sete ou oito anos, ou mes-
mo antes, dependendo da vontade do pai. A princípio eram peque-
nos pedaços de madeira, que vão aumentando sucessivamente. A ma-
deira era a chamada "barriguda" (Bombax ventricosa). Podia-se retirar
e colocar este ornamento, que não ficava preso fixamente. Com a
idade, o buraco aumentava e às vezes a orelha ou o lábio rasgavam.
Nesse caso, eles amarravam as partes rasgadas com um barbante e
recolocavam o botoque. As mulheres usavam este ornamento menor
e o do chefe geralmente era o maior de todos. Havia também os
colares feitos de sementes pretas, tendo no meio dentes de animais-
usados com mais frequência pelas mulheres e crianças. Os chefes
usavam os dentes mais vistosos em seus colares. Qyando chegavam
num local, vinham com plumas de pássaros na cabeça e em partes
do corpo.
Os Botocudos fabricavam utensílios diversificados, feitos à base
de vegetal (palha e madeiras), para transportar e armazenar víveres e
objetos, além de outros artefatos, revelando considerável saber acu-
mulado nesse sentido, como registrou o mesmo Wied-Neuwied com
acuidade etnográfica (Figura 14).
162 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

Figura 14

Os Botocudos visitados por Neuwied conheciam o fogo, assa-


vam e cozinhavam de forma rudimentar alguns alimentos, principal-
mente carnes. Sem esquecer que mamão na brasa era um dos frutos
mais apreciados. Eles faziam fogo friccionando dois pedaços de pau.
Depois que a fogueira estava acesa, as mulheres construíam as caba-
nas provisórias com folhas de coqueiros e bananeiras, fincando na
terra as pontas enquanto as palmas, flexíveis, dobravam para o inte-
rior, formando uma cúpula (Figura 15, desenho de Debret).

,I
Figura 15
VIAJANTES DECOBREM A "CORDIALIDADE DOS SELVAGENS" 163
Eram cabanas simples, algumas arredondadas, no meio das quais
se conservava o fogo e várias famílias dormiam juntas. Qyando ficavam
mais tempo no mesmo lugar acrescentavam galhos e grandes folhas,
aprimorando a habitação. Mas não havia aldeias fixas. Depois de três
séculos de pouca visibilidade, o interior da habitação dos Botocudos
reproduzia-se impresso e a cores pelos quatro cantos do mundo.
Os Botocudos conheciam a cerâmica. Entre os utensílios esta-
vam potes para cozinhar (feitos de argila e cinza), grandes cantis para
guardar água fresca, cabendo às mulheres e crianças buscarem a água.
Os vasos e copos (kêkrock) eram feitos de pedaços de bambu corta-
dos, utilizando os nós como fundo; quando estes últimos estão racha-
dos, as rachaduras são vedadas com cera da abelha. Cada tribo pos-
suía, já nessa época, pelo menos um machado de ferro e os facões
eram bem recebidos - o que mostra alguma espécie de comércio
entre os Botocudos e os luso-brasileiros, apesar da guerra ofensiva
ainda em vigor. Paralelo ao afrontamento, havia formas de convivên-
cia e de troca que se estabeleciam. Possuíam alguns cães magros como
animais domésticos.
Entre os alimentos, a carne de macaco é considerada a melhor
iguaria. Comem toda espécie de animais, como o jaguar (couparack
ou Kuparak) ou jacaré, mas entre as cobras só aceitam a carne da
sucuri. Alimentam-se também de larvas de insetos, de aves e colhem
frutas selvagens e mel de abelhas. Não usam sal nos alimentos.
Wied-Neuwied fez ainda investigações sobre o canibalismo,
uma das questões centrais no relacionamento com os luso-brasilei-
ros, que usavam essa afirmação como argumento para legitimar as
guerras de extermínio. O cientista germânico não chega a conclu-
sões definitivas, embora tenha a tendência a responder afirmativa-
mente, pela existência desse hábito, por motivos rituais e não para
alimentação.
Um dos Botocudos ficou sendo auxiliar, guia e companheiro de
viagem de Neuwied. Era Qyêck, que num deslize possessivo o natu-
ralista chamava de "meu Botocoudy", o qual narrou ao viajante o
seguinte caso: o chefe Jonué Coudji, filho de Jonué Iakiiam, prendeu
um índio pataxó. Toda a tribo se reúne diante do prisioneiro, de mãos
amarradas. O chefe o mata com uma flechada. O fogo é aceso. Os
braços, as coxas, primeiro, e por fim todas as partes do corpo do
prisioneiro são cortadas em pedaços e assadas. Todos comeram e de-
pois se puseram a dançar e cantar. A cabeça foi suspensa a uma corda
164 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

que entrava pelas orelhas e saía pela boca. Os jovens atiravam flechas
contra esse alvo e a cabeça era posta a secar.
Entretanto, não se conhece registro de nenhum testemunho direto
desses rituais, nem nunca foi encontrado despojo de cabeças ressecadas
entre os Botocudos.
Esses índios usam remédios à base de plantas medicinais, que
servem também para o preparo de venenos. Para dor de barriga, por
exemplo, esfregam casca de tatu ou de tartaruga sobre o ventre.
Em relação à morte, já foi dito que o enterro ocasionava mudan-
ça do local do acampamento. O enterro é feito na cabana ou perto.
No primeiro dia, segundo Neuwied, o morto é carpido com gritos e
choros dos parentes, cuja intensidade espantou o europeu. "As mulheres
parecem loucas", afirmou. O cadáver tem as mãos amarradas com cor-
da, sem ornamentos e objetos entre as tribos no rio Mucuri, mas com
armas e víveres no rio Doce. O túmulo era cuidado durante algum
tempo, a fim de afastar os "maus espíritos", e às vezes erguia-se sobre
a sepultura uma pequena cabana de folhas de coqueiro. As mulheres
cortavam os cabelos em sinal de luto. Os "maus espíritos" eram dois:
Janchon Gipakeiu (grande) e Jauchon Coudji (pequeno). Note-se que
esses nomes coincidiam com os nomes de dois chefes de tribos na
época. Neuwied disse ter ouvido dos índios que os "espíritos" eram
presentes na vida das tribos por diversos meios: atravessavam as caba-
nas, causando mortes; batiam nos cachorros até matar; matavam crian-
ças que fossem buscar água. O medo dessas manifestações os impedia
de sair à noite na floresta. 5
Nos dados colhidos por Neuwied, eles veneravam a Lua (tarou).
O Sol chamava-se taroudipo; o trovão, taroudecouvoung; o vento,
toutoutatouo. Os dois últimos seriam gerados pela Lua, que influen-
ciava as colheitas e o tempo.
O viajante estabeleceu um vocabulário com algumas palavras e
frases, que foi assim o primeiro publicado da língua desses índios. Ao
final de sua viagem, o príncipe Maximilien de Wied-Neuwied leva
Qyêck (ambos retratados na Figura 16), o "seu" Botocudo, para o
Rio de Janeiro e depois para Europa. Esse Botocudo morou por muitos
anos no castelo de Wied-Neuwied, onde está enterrado.

5
Para uma visão de conjunto sobre as concepções cósmicas, espiritualidade e
xamanismo desse grupo étnico, v. o pioneiro trabalho de A. Métraux (1930) e, recen-
temente, o levantamento e análise sistemática de I. M. Mattos. Civilização e revolta.
Os Botocudos e a catequese na província de Minas . .. , capítulo 3.
VIAJANTES DECOBREM A "CORDIALIDADE DOS SELVAGENS" 165

Figura 16

O quadro representando o príncipe Wied-Neuwied e o Botocudo


(Figura 16) é uma alegoria que sintetiza os sentidos da viagem do
naturalista germânico e de suas pesquisas. Aparecendo na frente, de
frente e em primeiro plano, o europeu empunha numa das mãos a
espingarda e na outra uma arara vermelha - é o próprio símbolo da
força da civilização. Ao mesmo tempo, sua presença é informal, não
violenta ou arrogante: a cartola com plumas e as pernas cruzadas
emprestam-lhe um ar entre descontraído e generoso. Em segundo
plano, Qyêck está devidamente vestido (o tecido branco traz uma
aura de pureza), mas ainda empunhando arco e flecha, descalço e
mantendo corte de cabelo tribal. O pintor teve o cuidado de colocar
166 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

os olhares em direções diferentes: o príncipe Maximilien mira em


frente, para seus interlocutores e para o futuro, enquanto Qyêck está
voltado (e apontando) para a floresta. Os dois personagens, entretan-
to, estão próximos, fixados no tempo do raiar do século XIX e no
espaço da floresta, destacando-se dela e marcando-a com suas pre-
senças irmanadas e hierarquizadas.

***
Logo depois de Wied-Neuwied, em fins de 1817, foi a vez do
francês Auguste de Saint-Hilaire passar algum tempo entre os Boto-
cudos, dessa vez em torno dos rios Doce e Jequitinhonha. A obra de
Saint-Hilaire só veio a ser impressa treze anos depois, isto é, em 1830.6
Baseado em sua viagem ao Brasil e em estudos a anotações posterio-
res, este francês construiu uma notável carreira no mundo da ciência:
membro da Academia Real de Ciências do Instituto da França, da
Sociedade de História Natural de Paris, da Academia de Lisboa, da
Sociedade de Ciências Físicas de Genebra, entre muitas outras institui-
ções. Tratado com grande respeito pelas elites culturais brasileiras, a
obra de Saint-Hilaire foi durante muito tempo uma das principais e
mais completas referências de tudo que se escrevia sobre o Brasil no
vasto âmbito das Ciências Naturais.
Na primeira edição das viagens de Saint-Hilaire, nos dois tomos
que tratam das províncias do Rio Janeiro e Minas Gerais, não passam
despercebidas duas interessantes homenagens prestadas pelo autor.
Abrindo o primeiro tomo, há uma litogravura mostrando não uma
pessoa, mas uma casa. Na legenda, explica-se que era a residência do
duque de Luxemburgo no Rio de Janeiro. Tratava-se do embaixador
extraordinário da França no Brasil, responsável pela vinda de Saint-
-Hilaire que, assim, dedica o trabalho a seu protetor, prática comum
nos Antigos Regimes, quando os nobres eram mecenas de artistas e
escritores.
Na abertura do segundo tomo há outra homenagem icono-
gráfica, que desta vez traz a litogravura de um homem (Figura 17).
Trata-se de um jovem, com traços mongólicos, olhar meio estrábico,
expressão séria, compenetrada, vestindo casaca, colete e blusa desa-
botoada no peito. Percebe-se um furo grande na orelha e outro menor

6
As viagens ao Rio de Janeiro, Minas Gerais e Espírito Santo estão publicadas
em A. Saint-Hilaire t. I e II, 1830, e [1833] 1974.
VIAJANTES DECOBREM A "CORDIALIDADE DOS SELVAGENS" 167
no lábio inferior, cabelos escuros, lisos e curtos, com franja caindo
sobre a testa. A expressão, no fundo, não é das mais sorridentes e
parece estar implícito, discreto, um certo ar de contrariedade na boca
vincada ou no olhar direto, quase desafiante. Na legenda da litogravura,
lacônica, apenas um nome: "Firmiano".

Figura 17

É preciso ler atentamente o volume para descobrir que Firmiano


Durães era o nome (de batismo cristão) de um índio Botocudo que
servira de guia e auxiliar a Saint-Hilaire. Ao longo do texto, são
incontáveis as referências a Firmiano. O cientista francês não esconde
admiração e gratidão pela inteligência do índio, que lhe desvelou
importantes segredos das plantas, dos animais, da vida e costumes das
tribos. Embora não esteja declarado com todas as letras, Firmiano foi
o principal auxiliar de pesquisa (na linguagem de hoje) de Saint-Hi-
laire e suas informações e apreciações aparecem em certos pontos
como estruturantes do trabalho desse viajante europeu. Firmiano ti-
nha cerca de quinze anos e era ftl.ho de um chefe conhecido por
"Capitão Branco" - que, segundo o francês, tinha a pele mais clara
que os demais, podendo tratar-se de um caso de albinismo ou de
m1sc1genação.
Ao prestar esta homenagem a Firmiano, Saint-Hilaire parecia
dividido. De um lado, ele se via impelido a reconhecer o valor e a
importância cultural desse índio, com o qual ele aprendera e que
O RIGOR DA CIÊNCIA: IMAGENS E ESQUELETOS VIAJANDO 295
Antropologia Física incorporando as tecnologias mais atualizadas da
época a fim de obter as reproduções as mais "realistas" possíveis. Dentro
desta Galeria, havia também "desenhos naturais". As primeiras foto-
grafias que se incorporaram ao acervo do Museu foram as dos lnuits
e estas dos Botocudos. Os daguerreótipos provavelmente foram feitos
em Paris. Não se sabe exatamente onde nem em que condições foram
tirados e as informações são desencontradas sobre a data exata de sua
aquisição pelo Museu.
Percebe-se assim que tais imagens foram uma das peças-chave
no momento de fixação de parâmetros científicos no campo do estudo
das populações humanas. Esses dois índios, retirados da periferia e
da floresta, estiveram no epicentro metropolitano das Luzes, como
novos Jonas levados ao ventre do grande cetáceo de onde se geravam
paradigmas que se espalhavam pelo mundo. "Tudo" sobre eles foi
decodificado, dentro daqueles parâmetros do conhecimento, como
que servindo de modelos vivos para uma tipologia de saberes insti-
tucionalizados.
Diante dos daguerreótipos a pergunta costuma surgir como que
instintivamente: o que foi feito desses índios depois de fotografados?
Tal pergunta já escapara do médico Phillipe Rey em 1878 e várias
pessoas atualmente quando olham os retratos ainda repetem-na, qua-
se invariavelmente. A resposta, até o momento, nos é desconhecida:
depois de descobertos, desapareceram sem deixar rastros. Mas vale
indagar sobre este interesse: de onde vem esta associação entre a ob-
jetividade rigorosa dos estudos de que foram objetos e a subjetividade
quase sentimental da indagação sobre o destino individual desse ho-
mem e dessa mulher fotografados? Talvez seja pelo deslocamento tão
profundo a que foram submetidos, de tempo, espaço e cultura. Talvez
por serem "outros" que foram, simbolicamente, como que antropofa-
gicamente devorados por "nós", depois de eternizados pela imagem.
Esses daguerreótipos não deixam de ser um ritual de sacrifício em
nome do progresso. Talvez esta reaproximação entre observador e
observado se deva também como que a uma subversão do significado
através do signo, onde o olhar dos que foram fotografados passa a nos
interrogar também.22 Tal movimento de interesse, de certo modo
afetivo (que afeta), pode advir da constatação de que aprendemos

22
Para esta perspectiva de "subversão do signo" pela pose do fotografado, v. o
conhecido estudo de R. Barthes (1980).
VIAJANTES DECOBREM A "CORDIALIDADE DOS SELVAGENS" 169
antropofagia era uma mentira inventada pelos portugueses como pre-
texto para destruir seu povo. Ele admitiu, no entanto, que esta calúnia
pode ter sido originada pelo hábito de se descarnar e mutilar os cor-
pos dos inimigos mortos em combate.
Saint-Hilaire registrou que as tribos em torno dos rios Doce e
Jequitinhonha se autodenominavam "Crecmun" ou "Cracmun". Cada
tribo tinha entre cinquenta a cem guerreiros, além das mulheres e
crianças. Ou seja, confirma-se a divisão entre o grupo doméstico e o
grupo caçador-guerreiro, mas o francês acrescenta que os velhos (ho-
mens e mulheres) eram muito respeitados e sempre ouvidos nas ques-
tões de importância, além de exerceram a função de sentinelas duran-
te a noite, enquanto os demais descansavam dos trabalhos diurnos. O
chefe era homem e o posto não era hereditário.
Ao contrário de Neuwied, Saint-Hilaire afirma que o principal
culto desses índios era ao Sol, a quem pediam forças para vencer os
inimigos. A Lua serviria para proteger as caminhadas noturnas -
outro ponto de diferença entre as observações do germânico e do
francês .
Para o francês, a pele dos Botocudos tinha cor de "bistre" (mar-
rom enegrecido).
Diante da morte, os Botocudos choravam muito, confirma Saint-
-Hilaire. E acrescenta que eles enterravam os mortos de braços do-
brados sobre o peito, com as pernas dobradas sobre o ventre. Como
as covas eram rasas, os joelhos às vezes saíam fora da terra. Os paren-
tes plantavam quatro varas iguais em torno da sepultura e acrescenta-
vam mais uma em forma de travesseiro, além de construir um peque-
no abrigo com folhas de palmeira. O local era ainda limpo e enfeitado
com penas de pássaros e peles de animais selvagens, mas o luto dura-
va pouco tempo.
Outra característica destacada em diversas oportunidades pelo
viajante francês é que os Botocudos gostavam de cantar. Constante-
mente expressavam-se por meio do canto, letra e música, incorporan-
do tal hábito em diversos momentos da vida cotidiana. Qyando estão
emocionados, tristes, magoados, alegres, enfim, quando querem ex-
primir algum sentimento mais importante, eles põem-se a cantar, tom
monocórdio, voz anasalada gutural.
Saint-Hilaire presenciou certa vez uma dessas cantorias. Um
índio chamado Agostinho, da tribo de Joahima, ficou por muitas
horas diante da porta do posto militar cantando tristemente. Em seu
170 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

lamento ele queixava-se de que não havia ganhado presentes, apesar


de ter trabalhado muito para os portugueses. Finalmente, depois da
longa lamúria cantada, ele disse apenas: "Vou me embora para a flo-
resta e vocês não me verão nunca mais. Adeus". E partiu bruscamen-
te, cumprindo a promessa. Depois de ter vivido um processo de in-
corporação à sociedade que o rodeava, esse índio experimentara um
sofrido desengano e retornava à sua cultura de origem, desviando-se
dos trilhos do progresso oitocentista.
Saint-Hilaire notou ainda que os luso-brasileiros, por intermé-
dio do coronel Julião, buscavam manipular as brigas e alianças entre
as tribos, para melhor dominá-las. Assim, teria sido incentivada a
disputa entre os chefes Joahima e Jan-oé, do mesmo modo que pro-
movidas as pazes entre Tujicarama e Jan-oé. Aproveitando-se dessas
desavenças e alianças, em 1817, os colonizadores conquistaram cerca
de 50 léguas de terra em volta do rio Doce e trataram de estabelecer
aí casas, construir fazendas e criar rotas de comércio.
Ao regressar ao Rio de Janeiro, Saint-Hilaire trouxe Firmiano.
Pretendia levá-lo para a Europa, mas perguntou ao índio o que ele de-
sejava. Firmiano escolheu voltar para sua tribo. Saint-Hilaire diz ter-
-se inquietado sobre o destino do jovem e lhe dado dinheiro, além de
cartas de recomendações para moradores não índios ao longo do trajeto.
Porém, informa ainda, quando estava em meio do caminho, Firmiano
ficou doente e teve de interromper a viagem. Saint-Hilaire afirma
que mandou emissários tentando localizá-lo e não conseguiu, desco-
nhecendo, portanto, seu destino - o que ele lamentava em seu livro.
Entretanto, uma leitura mais atenta no próprio relato de via-
gem do cientista francês, e consulta à documentação correlata, revela
outra trama, trágica, envolvendo o índio Firmiano. 7 Na verdade Saint-
-Hilaire mentiu em seu livro, como anotou a historiadora Leônia
Chaves Resende, talvez preocupado em forjar de si mesmo uma ima-
gem de proteção aos índios na figura do seu auxiliar de pesquisa,
talvez sem querer admitir o fracasso da tentativa de convertê-lo à
civilização ocidental. Durante os sete anos em que acompanhou o
francês, Firmiano o fez contrariado, ludibriado e tentou várias vezes
fugir, sendo recapturado em diferentes ocasiões. Ao término da estada

7
Informações e análises contidas em Leônia C. Resende. Gentios brasílicos:
índios coloniais em Minas Gerais setecentista . . ., capítulo 6; agradecemos à autora que
gentilmente cedeu o texto ainda inédito.
VIAJANTES DECOBREM A "CORDIALIDADE DOS SELVAGENS" 171
no Brasil, Saint-Hilaire permitiu que ele voltasse a Minas Gerais,
mas expressou por escrito ao compatriota e diretor dos Índios, Cuido
Marliere, que impedisse o jovem Botocudo de retornar às selvas,
mantendo-o retido no aldeamento. Diante de tal situação, Firmiano
reagiu com ousadia, incitando os índios aldeados à rebelião e atacan-
do gado e propriedades, o que levou Marliere a tomar uma medida
drástica: prendeu-o em 1826 e remeteu para o Rio de Janeiro; desta
localidade o jovem Botocudo deveria seguir, alistado à força, como
soldado para lutar na Guerra Cisplatina (1825-1828), no extremo sul
do país - de onde, ao que se saiba, não voltou.
Saint-Hilaire, entretanto, passa a assumir uma postura intelec-
tual de defensor da condição humana dos índios, isto é, da capacidade
deles de raciocinar, ter e expressar sentimentos e de ascenderem ao
progresso civilizado nos moldes europeus - postura que não corres-
pondia ao comportamento "bravo" de boa parte da população não
índia brasileira e que encontraria resistência e geraria atritos no inte-
rior de instituições científicas europeias, como se verá adiante.
Os conhecidos Carl voo Martius e voo Spix, viajantes entre
1817 e 1820, deixaram registro mais superficial sobre os Botocudos. 8
Superficial e preconceituoso. Entretanto, a cena que eles vislumbra-
ram não podia ser mais simbólica da situação em que viviam esses
índios no século XIX. Numa trilha de terra batida que cortava aquele
trecho da Mata Adântica, um bando de índios, homens e mulheres,
caminhava silenciosamente. Taciturnos, calados, mas caminhando. As
faces estavam pintadas de vermelho, com traço negro atravessando de
orelha a orelha sob o nariz. Alguns traziam facão pendurado no pes-
coço com uma corda fina. Eram índios originários do rio Doce que,
depois de contatados, haviam sido transferidos para a confluência dos
rios Jequitinhonha e Araçuaí, onde havia outros Botocudos que re-
cusavam o contato. Considerados "meio mansos", eles foram enviados
para servirem como ligação e facilitar o trabalho de incorporação.
Depois de percorrerem o trajeto de ida, estavam voltando ao rio Doce,
mas ainda no meio do caminho entre a civilização ocidental e suas
identidades culturais. Era um caminho árduo, onde idas e vindas pa-
reciam não ter volta, nem chegada. Estavam sérios, calados, amargu-
rados e caminhavam. Cruzaram pelos dois viajantes europeus e não
os atacaram, nem os adularam. Continuaram andando. O encontro,

8
Spix & Martius. Viagem pelo Brasil. ..
172 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

fugaz, se deu entre Minas Novas e Vila do Bom Sucesso. Mas parece
ter sido suficiente para a publicação de uma gravura no livro de Martius
com um rosto masculino de Botocudo (Figura 18).

Figura 18
f'l CJ'I' OI '!' D I J

Na figura destacam-se o corte de cabelo e os botoques como


mescla de registro etnográfico e objeto de curiosidade, além de a
expressão do rosto, ainda que de perfil, apresentar-se dura, típica de
um "índio bravo". Não havia, aí, idealização neoclássica ou românti-
ca, mas um reforço da legenda de selvageria. Além do ícone, há im-
pressões "científicas" registradas em palavras por Martius e Spix, desses
índios: semblante assustador, quase nenhum traço de humanidade,
indolência, estupidez, selvageria animal; rostos quadrangulares e acha-
tados, pequenos olhos esquivos: voracidade, preguiça e grosseria evi-
dentes pelos lábios estufados, ventre, assim como o torso atarracado;
andar incerto. Talvez esta última observação tenha sido a mais exata:
a incerteza do andar, em tempos e caminhos tão difíceis. Resta per-
guntar: quem devorou quem? Seres descritos como tão horrendos
não deixaram um arranhão nos dois germânicos. Entretanto, apesar
da precariedade específica dessa observação de campo, não se pode
negar a importância e profundidade do trabalho de classificação
linguística e étnica dos índios do Brasil realizado por Martius. 9
VIAJANTES DECOBREM A "CORDIALIDADE DOS SELVAGENS" 173
......
Em seguida foi a vez do pintor Johann Moritz Rugendas dar
sua contribuição para aquilo que já começava a se tornar verdadeira
sensação entre as revelações do mundo da cultura e da ciência: o
conhecimento das tribos de Botocudos. 10 Rugendas, como se sabe,
percorreu o interior do Brasil em 1825, a princípio acompanhando a
malograda expedição Langsdorff, como desenhista. 11 Langsdorff, in-
forma-nos Saint-Hilaire, também tinha um índio Botocudo como
seu auxiliar, embora se lhe desconheça o nome. Em seguida, des-
vinculando-se da iniciativa, Rugendas passou a visitar outras regiões
não incluídas no roteiro inicial.
Rugendas retratou uma cena de Botocudos caçando animais
selvagens. Trata-se de composição artística, ou seja, cena onde paisa-
gem e personagens são compostos com cuidado, rigor e senso estéti-
co (Figura 19).

Figura 19

9
C. Martius. Glossarios de diversas lingoas e dialectos quefallão os indios no Imperio
do Brazil. .. (1867).
10
J. M. Rugendas. Viagem pitoresca através do Brasil. . .
11
Sobre este artista, v. P. Diener. Rugendas e o Brasil .. , 2002; para a circula-
ção e recepção da obra brasileira do pintor, com suas diferentes leituras, v. o artigo de
C. Zenha, O Brasil de Rugendas ... 2002.
174 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

Embora os índios e a floresta sejam elaborados em perspectiva


naturalista e até realista, eles formam determinada composição, cujas
figuras lembram os quadros mitológicos. O traço dos corpos - cla-
ros e bem delineados- reforça o estilo neoclássico. Os quadros com
cenas de caça são tradicionais na pintura europeia, mas aqui cenário e
personagens são diferentes do ambiente europeu. A valorização da Na-
tureza e dos índios tem o toque do exotismo do Novo Mundo, tendên-
cia revigorada com o Romantismo da época. No centro da imagem
aparecem dois homens, uma mulher e uma criança Botocudos (com-
põem conjunto de forma triangular), cujas faces, porém, não evocam
belezas clássicas e, seguindo o realismo neoclássico, têm a aparência
próxima aos índios retratados - que o olhar ocidental em geral con-
siderava feios. O pintor reproduz aspectos da cultura material, como
ornamentos, armas, cortes de cabelo e modo de carregar as crianças.
Aos pés dos Botocudos, o animal abatido - enquanto o outro
índio, de pele mais escura e de costas, mantém na mão uma colorida
arara morta. Ao contrário dos quadros de caça europeus, onde oca-
çador aparece com ares de triunfo, serenidade, força ou alegria, os
índios parecem revelar uma certa empatia com os animais abatidos:
expressão de tristeza e dor (reforçada pelo tom sombrio da floresta
em contraste com a luminosidade dos três corpos), como se fossem,
eles mesmos, também vítimas de uma caçada. Nesse desenho combi-
nam-se a sensibilidade do cidadão europeu e homem das artes, preo-
cupado com a sorte dos índios, com o desenhista-cientista, empenha-
do em documentar a vida nos Trópicos. As ideias da Ilustração sobre
os bons selvagens e o romantismo indianista épico de Chateaubriand
associados às Ciências Naturais.
Rugendas desenhou ainda cinco rostos de índios deste grupo
(um deles na Figura 21), além de um rosto feminino (Figura 20) .

Figura20 Figura21
VIAJANTES DECOBREM A "CORDIALIDADE DOS SELVAGENS" 175
Neste caso, a exemplo do que fizera também com escravos afri-
canos, a pintura de Rugendas tinha intenções etnográficas, de regis-
trar características físicas de diferentes "raças" ou "nações" no Brasil,
além de artefatos de sua cultura material. Era a arte-ciência, ten-
dência de vanguarda na época, quando a fotografia ainda não fora
desenvolvida. Porém, a Figura 20 chama atenção por alguns aspectos
mais estéticos e subjetivos do que propriamente de anotação objetiva
e científica. Seria fácil dizer que o rosto dessa mulher foi desenhado
com traços europeizados, românticos e embranquecidos e represen-
taria, portanto, uma deturpação do pintor. A expressão feminina tem
até uns olhos de ressaca, como na personagem Capitu, de Machado
de Assis. Entretanto, esse tipo de crítica só faria sentido se consi-
derássemos a pintura em questão como documento fidedigno (ou
falso). Mas o desenho, visto como produção artística em todas as suas
implicações, reforça de maneira marcante a expressão sentimental da
índia retratada e, assim, contribuía naquele contexto para humanizar
a imagem desses índios: contrapunha-se à legenda de ferocidade
então predominante e associava-se aos relatos que destacavam a cor-
dialidade. Ao mesmo tempo, não se enquadrava na "feiúra" tão
comumente associada aos Botocudos daí por diante. Posteriormente,
fotografias e relatos escritos reforçariam esta percepção humanizada.
Algumas mulheres Krenak, além de ainda fabricarem um colar bem
semelhante ao da figura, têm, como pude captar, este mesmo tipo de
olhar entre nostálgico e meigo - que, aliás, não é apenas caracterís-
tico das pessoas classificadas como índias. O rosto masculino (Figura
21) também aparece despojado do ar de ferocidade, apesar dos vincos
no rosto, que lhe dão um toque realista e aparência sofrida.
Já o pintor francês Jean-Baptiste Debret (discípulo e primo de
Jacques-Louis David, o neoclássico que se destacara nos salões dos
fins do Antigo Regime francês, se integrara às atividades artísticas
da Revolução Francesa e tornara-se artista oficial de Napoleão
Bonaparte) teve um projeto ambicioso. Um dos fundadores da Escola
de Belas-Artes no Rio de Janeiro, responsável pelas principais pintu-
ras de temas históricos contemporâneos da época da Independência
(como a coroação de D. Pedro I), Debret associou sua atividade pic-
tórica à formulação de uma imagem nacional para o Brasil. Co-
meçando sua viagem - que batizou de pitoresca e histórica -
pela nação que se formava, realizou "viagens" sem sair da Corte. E
estabeleceu rigoroso plano para seguir o que chamava de "marcha
176 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

progressiva da civilização". Nessa linha Debret transpôs para a cria-


ção artística um amplo mosaico da hierarquia da sociedade: partindo
"do começo" (leia-se: índios selvagens), passando pelos índios incor-
porados e indo até o topo hierárquico, o retrato da Família Imperial,
sem esquecer a escravidão africana e os hábitos urbanos, temas que
tornaram sua obra mais conhecida. 12
''A obra que ofereço ao público é uma descrição fiel do carater
e dos hábitos do brasileiro em geral", afirmava o conhecido artista. E
embora seja comum ver referências à pintura de Debret como "do-
cumentos fidedignos", é preciso ter cautela com tal perspectiva. Não
se pode esquecer que a criação artística envolve concepção estética e
elaboração, que resultam na escolha de cores, na posição dos perso-
nagens e nos traços que recriam os homens e a natureza. Não são
simples "documentos" no sentido de descrição fiel ou realista- como
pretendia o autor. Por meio de suas imagens dos "brasileiros em ge-
ral" Debret contribuiu na formulação de uma identidade nacional.
Mesmo quando se colocava na perspectiva da arte-ciência, do dese-
nho científico, de cunho etnográfico, quem desenhava era o artista
marcado pelo neoclassicismo e pelo romantismo, assim como o inte-
lectual europeu do século XIX engajado na construção de imagens
para o Império brasileiro.
Pintar "a história particular dos selvagens" sempre foi uma das
preocupações marcantes de Debret que, assim, inseria os índios den-
tro de sua narrativa visual da história do Brasil. E como tal interesse
foi despertado? Ele próprio nos conta:

Qyanto à história particular dos selvagens, uma circunstância


feliz forneceu-me os primeiros materiais: dois dias apenas de-
pois de nossa chegada, foi-nos dado ver indígenas botocudos
recém-trazidos ao Rio de Janeiro por um viajante que me faci-
litou desenhá-los com cuidado, acrescentando a essa amabili-
dade informações tão fidedignas quão interessantes acerca dos
costumes desses índios entre os quais vivera. O acaso levou-me
a iniciar, no centro de uma capital civilizada, essa coleção par-

12
Sobre o "retrato do Brasil" por Debret, v. Lima, Uma viagem com Debret. ..
(2004). Consultar também T. Hartmann. A contribui;ão da iconografia para o conheci-
mento de índios brasileiros do século XIX . .
VIAJANTES DECOBREM A "CORDIALIDADE DOS SELVAGENS" 177
ticular dos selvagens, que eu deveria acabar nas florestas vir-
gens do Brasil. 13

O olhar do artista, desde o começo de sua estada nos Trópicos,


foi marcado pela presença dos Botocudos, que despertaram sua sensibi-
lidade para o que considerava os "começos" ou origens do Brasil. Pelo
menos seis pranchas de Debret retratam os Botocudos. A mais conhe-
cida ele deu o título de "Família de Botocudos em Marcha" (Figura 22).

Figura22

Para compor este quadro Debret explica que "imaginou" a cena


a partir de um grupo de Botocudos que conheceu pessoalmente no
Rio de Janeiro, trazidos por um militar da região de Belmonte para
se apresentarem diante do príncipe regente D. João em 1816. Na
ocasião, segundo testemunho do pintor francês, os índios trajavam,
além de seus habituais ornamentos, calça e colete, para não ferir a
decência da Corte. 14 Entre o testemunho ocular e a publicação de
sua obra dezoito anos depois, Debret não só teve tempo para elaborar
o ícone, como se beneficiou de relatos etnológicos publicados por
Wied-Neuwied e Saint-Hilaire.

13
J.-B. Debret. Viagem pitoresca e hist6rica ao Brasil. ..
14
Ibidem.
178 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

A pintura (Figura 22) pode ser compreendida, inicialmente,


na vertente proposta pelo próprio autor, isto é, como descrição et-
nográfica por meio do chamado desenho científico. Temos então re-
gistro da cultura material: armas, botoques, trançados de palha, corte
de cabelo, cor da pele, modo de carregar as crianças, entre outros
itens. Chama atenção - e o pintor francês a reforça no comen-
tário escrito que acompanha a prancha- o manto de pele de ta-
manduá usado pelo chefe indígena, que Debret informa ter visto e
que seria atributo exclusivo do chefe. Embora, por razões de vi-
sualização, o artista tenha acrescentado o mesmo manto ao filho do
chefe no quadro. Curiosamente, não se verifica em nenhum outro
relato sobre os botocudos esse hábito de usar um manto de pele de
tamanduá.
Outro modo de compreender esse mesmo ícone é como uma
obra de arte, isto é, resultado de um conjunto de fatores criativos e
históricos, com suas composições, escolhas e enfoques. A visão dos
Botocudos ganha aí outros sentidos. A começar pela vista geral do
quadro e da posição dos índios na tela, que formam uma espécie de
espiral evolutiva, desde os que se encontram agachados no canto es-
querdo, lembrando homens da idade da pedra pelo aspecto mais opa-
co e embrutecido, acocorados sobre rochas, espiral que avança pelas
mulheres e crianças, colocadas num plano inferior no canto direito e
subindo até o topo, onde gradativamente o olhar sobe ao filho do
chefe até o chefe, que ocupa o centro do quadro, em primeiro pla-
no, acima dos demais. Não seria o chefe, dentro da concepção hie-
rárquica tão cara ao pintor francês, uma representação da majestade
imperial de seu próprio povo? Do homem primitivo ao imperador-
afinal este era o plano geral das pinturas de Debret sobre o Brasil. E,
nessa linha, o manto de tamanduá pode sugerir de modo mais con-
vincente essa concepção progressiva. As duas vegetações discretas nos
cantos direito e esquerdo do quadro dão a ambientação tropical ne-
cessária, embora os rochedos predominem, seja por questões de fi-
delidade etnográfica (os grupos Tapuias conseguiam habitar regiões
áridas) ou estéticas, representando o caminho duro que as tribos
enfrentavam para passar da barbárie à civilização (a "marcha dos Bo-
tocudos", como indica o título do quadro). Sem deixar de lado a
aproximação cromática entre a cor da pele dos índios e o solo rocho-
so, ambos como elementos naturais da terra. A concepção evolutiva
da espécie humana parece estar sugerida no quadro, embora, nesse
VIAJANTES DECOBREM A "CORDIALIDADE DOS SELVAGENS" 179
período, ainda predominassem as concepções fixistas no ambiente
científico ocidental. 15
Ainda no relato do testemunho ocular sobre esses índios Debret
registrou que, após o encontro com o monarca português no palácio,
os Botocudos trataram de tirar as roupas que os incomodavam. Em
seu quadro ele procura manter a nudez, em geral amenizada, a não
ser pelo filho do chefe e de uma índia que lhe segue, ambos em nu
frontal- ao passo que do chefe propriamente vemos mais o manto
de tons dourados. Esse quadro de Debret pode ser visto como expres-
são iconográfica da visão civilizadora e ilustrada desses índios, já co-
locada, entre outros, por José Bonifácio de Andrada e Silva (como se
verá adiante) e pelos citados viajantes europeus, que se demarcavam
da postura de violência mais direta e da eliminação pura e simples do
índio tido como bravo, ao mesmo tempo que classificavam os indíge-
nas numa posição inferior da escala humana, embora passível de as-
cender à civilização ocidental.

Figura23

15
Para o predomínio da concepção foosta das espécies no início do século XIX,
v. o artigo de F. Tinland. "Les limites de l'animalité et de l'humanité selon Buffon".
180 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

Na Figura 23 vemos detalhe do conjunto no qual Debret retra-


tou onze "cabeças" de índios. O rosto do Botocudo, à direita, é o
único que aparece com duas imagens laterais ao fundo, representando
perfis, possivelmente para permitir uma percepção mais completa do
efeito estético dos botoques. Afinal, os mais indomáveis e inatingíveis
agora podiam ser vistos sob diferentes ângulos. Destaca-se novamen-
te a mescla entre o registro etnográfico e a criação estética: os deta-
lhes dos ornamentos (sobressaindo botoques e colares) estão emol-
durados na visão do rosto com olhar fixo, sobrancelhas erguidas,
expressão séria e dentes à mostra denotando certo ar de ferocidade.
Percebe-se (ainda Figura 23) no canto esquerdo do quadro uma
cabeça de Botocudo mumificada por Pataxós, conforme já citado. A
cabeça, decepada, pode trazer efeitos diferentes: colocada próxima do
rosto masculino do Botocudo, aponta um contraste entre vida e mor-
te, ao mesmo tempo que sugere a possibilidade de eliminação física
da figura ameaçadora e feroz. Como informação etnográfica, assinala
a existência de rivalidades interétnicas e envolve os rostos numa certa
aura de exotismo marcada por costumes "bárbaros", tão a gosto do
público leitor oitocentista.
Apesar de certas características etnográficas se assemelharem
no conjunto desses registros, havia especificidade entre as criações
intelectuais: o Botocudo atarracado e imperial de Debret (que evo-
luía da condição de homem da caverna à de chefe ornamentado),
os Botocudos helênicos e sentimentais de Rugendas (que denuncia-
vam a destruição da Natureza e deles próprios), os Botocudos vigo-
rosos e em harmonia com a natureza de Neuwied (que enfrentavam
corajosamente os combates) e o Botocudo compenetrado, auxiliar de
cientista, passível de civilização e cantor de Saint-Hilaire. Mesmo
com singularidades, tais produções foram publicadas nos anos 1820-
1830, isto é, pertenciam a um mesmo contexto e compunham uma
determinada imagem desses índios, gerando um ponto de vista ou
sensibilidade comum. Obras de repercussão marcante, como a de
Ferdinand Denis, reproduziam imagens de indígenas feitas pelos
referidos artistas e viajantes. 16 Entretanto, a recepção de tais imagens
entre as elites culturais e políticas brasileiras não seria imediata, isto
é, passaria por mediações consideráveis. Fica difícil falar, neste pon-
to, numa influência cultural europeia agindo de forma linear e retilí-

16
F. Denis. Descripção histórica do Brasil. .. , 1845.
VIAJANTES DECOBREM A "CORDIALIDADE DOS SELVAGENS" 181
nea, pois a condição dos índios no território brasileiro envolvia inte-
resses e visões complexas.
Durante e depois da guerra ofensiva, veio o contato com a leva
de intelectuais europeus nas duas primeiras décadas do século XIX
- artistas e cientistas. Depois da Igreja e das armas, as ciências e as
artes descobriram os Botocudos. É interessante notar que na percep-
ção de homens como Wied-Neuwied, Saint-Hilaire, Rugendas e
Debret ressalta-se a humanização e, até, a cordialidade dos índios
encontrados, em contraste com os tradicionais registras de ferocida-
de. Oriundos ou herdeiros da República das Letras europeia, im-
pregnados da tradição humanista do Renascimento ou universalista
da Ilustração, suas sensibilidades contrastavam com as dos homens
das letras, administração e armas do universo luso-brasileiro, para os
quais os índios eram prioritariamente um problema a ser resolvi-
do, um obstáculo a ser superado, um inimigo a ser combatido ou
escravo a ser dominado. A perspectiva eurocêntrica dos homens de
letras e artes, uma espécie de vanguarda intelectual da época, caracte-
rizava os mesmos índios como: imperfeitos, inferiores, incivilizados,
mas interessantes objetos de estudo, humanos e passíveis de afeto e
aprimoramento.
Ao mesmo tempo, tal descoberta estava vinculada à Guerra de
1808-1824 e ao recrudescimento das frentes de expansão, sem as quais
não teria sido possível a tais europeus se aproximarem dos índios,
como representantes da mesma civilização ocidental.
A partir de então estes índios passam a ser objetos de pesquisas
e estudos, fossem estéticos, fossem científicos - afora os contatos
explicitamente colonizadores. Era o ponto de partida para verdadeira
avalanche cultural em torno dos Botocudos que, expandido-se pelas
fronteiras nacionais e internacionais, estaria em voga pelo menos até
a primeira década do século XX. Surgem daí mutações significativas
nas imagens e representações sobre esses índios, permeadas por com-
plexas interações entre a percepção dos agentes culturais e a propaga-
ção do material produzido por eles para diferentes públicos, contex-
tos e mentalidades. Manter a legenda de ferocidade atribuída aos
índios que se submetiam (sem maiores reações) a tais atividades de
pesquisa só fazia aumentar a aura de exotismo e o interesse em torno
deles - que, ao que se sabe, nunca mataram um artista ou cientista.
A transformação dos Botocudos em objetos dessas pesquisas talvez
tenha ocasionado uma das faces mais paradoxais dentre as formas de
182 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

sujeição, pois se alimentava da fama de selvageria e ferocidade embo-


ra lidasse, em muitos casos, com índios controlados ou despojados de
suas tradições e das possibilidades guerreiras. Ao final das contas o
conhecimento desses Botocudos não serviu como desmistificação. Ao
contrário, levou à mudança de paradigmas e fortaleceu outro tipo de
mitificação, substituindo paulatinamente o medo pela curiosidade,
pelo deboche e pelas tentativas crescentes de controle, desqualificação
e aniquilação. O Aimoré ameaçador e feroz cederia lugar ao Botocudo
feio, incômodo e rústico.
Se na Corte dos Trópicos não havia um "Jardin des Plantes"
destinado ao conjunto das Ciências Naturais como em Paris (o Jar-
dim Botânico no Rio de Janeiro ocupava-se dos vegetais), os índios
trazidos para a capital eram instalados no Campo de Santana- que
então marcava um dos limites urbanos e abrigava as principais unida-
des militares. Como povos bárbaros que se submetiam ao imperador,
os indígenas vindos das selvas eram levados à presença de D. João VI,
D. Pedro I e D. Pedro II, quando ofereciam ornamentos, utensílios e
armas de suas tribos. "O Museu de História Natural do Palácio de
São Cristóvão melhora dia a dia sua preciosa coleção", afirmava com
sutil ironia Jean-Baptiste Debret, acrescentando que as famílias de
índios que traziam os objetos não iam para o museu, mas eram
conduzidas para trabalharem na agricultura, nas obras públicas e nas
forças militares. Eis uma síntese do contato com os indígenas no
Brasil do século XIX (além das selvas e dos confrontos com as fre ntes
de expansão): a História Natural abrigada no Palácio do monarca, o
conhecimento dos índios separado do conhecimento da Natureza, os
objetos indígenas se transformado em peças de museu e de interesse
cultural, ao passo que os índios se viam sem tribo, inseridos nas ativi-
dades produtivas ou escravizados.
Havia, pois, paradoxo instigante na multiplicidade de registras
em torno desses índios, vistos num mesmo tempo como obstáculo ao
progresso, potencial mão de obra, cordiais selvagens e valiosos obje-
tos de estudos científicos e artísticos.
Capítulo 6
INDEPENDÊNCIA E MORTE:
O IMPÉRIO DO BRASIL SUBMETE OS
"ÍNDIOS BRAVOS"

No período da Independência no Brasil ocorreram não só


guerras contra as tropas portuguesas que resistiram à separação (como
na Bahia, Maranhão, Piauí e Pará), mas, também, batalhas contra
outros adversários do Império: os "índios bravos" do Espírito Santo e
Minas Gerais. Após a Independência, o governo central brasileiro
passaria a ter atitude (próxima à da Ilustração europeia do século XVIII)
que visava integrar os índios à nação e à civilização por meios ditos
"brandos". Mas os ataques contra essas tribos continuam e partem de
milícias organizadas por proprietários rurais e comerciantes, embora
se registrassem violências cometidas ou apoiadas por militares das
tropas efetivas e autoridades locais. Os casos de escravidão de Boto-
cudos são frequentes neste raiar da nação brasileira, acompanhados
de situação de miséria e fome, além de epidemias.
O conflito com as tribos ocorreu simultaneamente, também, à
mobilização guerreira do Império brasileiro contra republicanos e
oposicionistas da Confederação do Equador (Pernambuco, Alagoas,
Ceará, Paraíba e Rio Grande do Norte) e houve até casos de as mes-
mas tropas - como na fronteira de Bahia e Minas - ficarem de
prontidão pelos Botocudos e contra os rebeldes do liberalismo exal-
tado. Evidentemente eram adversários díspares (uma vez que estes
últimos pertenciam à mesma civilização e sociedade dos governantes
do Império), mas que exprimiam as contradições enfrentadas no iní-
cio da formação de uma ordem nacional - que não foi pacífica.
Encerrava-se, assim, a Guerra de 1808-1824, que geraria uma nova
fase da relação entre os Botocudos e a sociedade nacional.
183
184 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

Ao mesmo tempo, as acusações de antropofagia praticamente


desaparecem, após terem sido recorrentes durante três séculos - o
que parece ser resultado da nova mentalidade civilizadora em relação
a esses índios. Caso eles fossem realmente canibais (o que nunca foi
efetivamente comprovado ou registrado em testemunho direto), teriam
subitamente abandonado tal hábito, com medo de represálias ou por
conversão aos hábitos ocidentais? Pode-se deduzir que a proximidade
forçada desses grupos indígenas com a sociedade nacional, o conhe-
cimento mais detalhado de seus costumes pela arte e ciência e, ainda,
o enfraquecimento paulatino do seu potencial guerreiro, tenham le-
vado ao abandono do estigma de ferocidade desumana, ao qual a
imputação de antropofagia se ligava. O estereótipo do invencível ca-
nibal foi sendo substituído pelo do nativo atrasado, bravo e tolo.
Para melhor compreender os contatos entre Botocudos e a so-
ciedade brasileira ao longo do período imperial, pode-se ter em mente
o seguinte esquema: de um lado as forças que atacavam esses índios
(vinculadas às frentes de expansão), de outro lado, índios que guerrea-
vam (ofensiva e defensivamente) e, como intermediários do conflito,
buscando integrar tais tribos pela via da pacificação, estavam dirigen-
tes da Corte, alguns brasileiros, europeus e índios que então escolhiam
essa maneira negociada de convivência. 1
Desde os momentos iniciais da Independência colocava-se tal
relação. Entre os primeiros papéis que recebeu após assumir o minis-
tério em 1822, José Bonifácio de Andrada e Silva deparou-se com
uma correspondência da Junta Provisória do Governo do Espírito
Santo, assinada pelos seis integrantes, em termos inquietantes:

[.. .] os quotidianos insultos do Gentio barbaro, que incessan-


temente destroe a agricultura e tem morto muitos Lavradores ,
causa lastimosa do atraso desta miserável Provincia. [... ] E
desta forma todos temem estabelecer-se no interior, onde os
Lavradores se vem obrigados a guardarem suas forças para vi-
giarem em sua defesa. 2

1
Essa contradição entre agentes da sociedade brasileira oitocentista é apontada
por M. M. C. da Cunha. "Política indigenista no século XIX". ln: Idem (org.). História
dos índios no Brasil. .. , p. 134, que, entretanto, afirma que tal dicotomia diminuiu a
partir de 1808, o que não nos parece comprovado para o caso aqui estudado.
2
Correspondência da Presidência da província do Espírito Santo. .. , 12-4-1822, AN.
O IMPÉRIO DO BRASIL SUBMETE OS "íNDIOS BRAVOS" 185
O quadro traçado pelos governantes provinciais era semelhante
ao das épocas anteriores. Desta vez, apresentava-se de maneira mais
clara a preocupação com a falta de progresso, isto é, do atraso do
Espírito Santo, no qual os Botocudos tinham papel decisivo. Estava
evidente, mais uma vez, que a ofensiva guerreira não alcançara plena-
mente êxito. Porém, um dos efeitos desta Guerra de 1808-1824 con-
tinuava a se fazer sentir: o movimento de alguns grupos de Botocudos
em direção às cidades, para tentar trégua, aliança ou ataques.
Os mesmos governantes testemunhavam a permanência do
conflito:

[... ] que o obstaculo que havia a vencer-se na Povoação de


Linhares cita no Rio Doce era o gentio Antropophago que se
acha pacifico e alguns ja vierão a Capital desta provincia onde
este governo se tem disvelado para que de h uma vez fique aquelle
ponto isento das invazões destes barbaros, que só procuravão a
sua total ruina, comettendo frequentes hostilidades, e por esse
motivo se achava estagnada a Cultura, e Commercio [... ).3

Aparecem aqui as duas atitudes dessas tribos durante e após a


guerra ofensiva: manter os ataques e resistência ou tentar um contato
- quem sabe a pacificação dos guerreiros brasileiros?
Exemplo dessa última tendência - de tentar pacificar ambos
os lados da guerra - está na ação do alferes do Corpo de Pedestres,
Antônio Leite Barbosa, e no cabo Bernardino de Freitas, do Q9artel
de Sousa (Linhares), que em 1822 já haviam conseguido arregimentar
considerável contingente de Botocudos "mansos" que, por sua vez,
trabalhavam na "pacificação" - termo então usado - dos demais
índios e mantinham bom relacionamento com os militares. Nesse
mesmo ano o alferes conduziu, orgulhoso, 44 Botocudos a Vitória,
acompanhados do chefe da tribo, desejosos de obter ferramentas, roupas
e recursos para subsistência e sedentarização. 4
Seja pela guerra ou pela via pacífica, o desafio estava posto para
a Coroa brasileira. De um lado, pois, a pressão das frentes de expansão
e seus representantes políticos provinciais. Na outra ponta, na sede do
Império, as concepções ilustradas de dirigentes como José Bonifácio.

3
Correspondência da Presidência da prov{ncia do Espfrito Santo . .. , 22-8-1822, AN.
4
Ibidem.
186 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

Exercendo seu papel de "Patriarca da Independência" e preocu-


pado em formar um povo e uma nação no país que se engendrava,
Bonifácio escreveria longa e interessante dissertação sobre o assunto:
Apontamento para a civilização dos indios bravos do Imperio do Brasil,
impresso no Rio de Janeiro em 1823 e dirigido à Assembleia Cons-
tituinte.5 Texto, aliás, que viria a ser resgatado pelos positivistas re-
publicanos do início do século XX, entre eles o general Rondon,
como exemplo e bandeira para defesa dos índios e de modelo de sua
integração à sociedade. A ideia-chave que guiava José Bonifácio era
a necessidade de construção de uma nação brasileira, homogênea,
integrada - e para isso era preciso eliminar ou suavizar as diferenças
e contrastes. Transformar os antigos povos num povo. Os desafios
eram consideráveis. Em outras ocasiões, Bonifácio se ocuparia de
diferentes problemas para este processo de unificação nacional, como:
a diversidade regional, a centralização administrativa, a influência
dos portugueses e o papel da escravidão dos africanos, entre outros. 6
Debruçando-se sobre os índios, o Andrada se baseia evidente-
mente na literatura que existia até então: cronistas coloniais, relató-
rios administrativos e, ainda, a experiência histórica das Missões e
dos Diretórios pombalinos. Qyanto às referências intelectuais, José
Bonifácio tinha matrizes definidas pelos autores das Lumieres do sé-
culo XVIII sobre os "selvagens": exprimia afinidade com Georges
Buffon, o tradicional naturalista francês cujas ideias representavam
não só a negação do evolucionismo emergente como a classificação
das "raças inferiores" e a aproximação delas com os animais, ponto de
vista não muito distante do abade Cornelius de Pauw, outro eminente
naturalista cujas teorias estavam em voga e foram apropriadas por
José Bonifácio. 7
Desse substrato múltiplo o deputado da Constituinte e todo-po-
deroso ministro de D. Pedro I esboçou uma proposta de política indi-
genista para o Brasil recém-independente. Política essa que não se efeti-
varia de maneira abrangente, mas apenas de forma esparsa e incompleta.
De que "índios bravos" tratava Bonifácio? Uma simples leitura
nos indica que ele cita duas vezes os Carijós do século XVI, uma vez

5
José Bonifácio de Andrada e Silva, 1998, pp. 89-149.
6
Ibidem.
7
Para uma análise das ideias de Bonifácio sobre os índios, v. Maria M . C. da
Cunha, 1986, pp. 165-73.
O IMPÉRIO DO BRASIL SUBMETE OS "íNDIOS BRAVOS" 187
"os indomitos Caiapós" e "os cruéis Chavantes" e três vezes os "Bo-
tocudos" do Espírito Santo, o grupo mais citado no texto. Os três
últimos eram grupos não tupis que, avessos à pacificação, ainda resis-
tiam à civilização em diferentes pontos do território.
Como o "Patriarca da Independência" via em geral esses anti-
gos habitantes do território? Eram, segundo suas palavras, vagabun-
dos, preguiçosos, ladrões, sem freios religiosos, dominados pelas pai-
xões, sem leis e costumes regulares, dados a bebedeiras e instabilidades
nas relações conjugais, sempre envolvidos em violências e rivalida-
des. Esse o perfil do índio brasileiro traçado por José Bonifácio, em-
bebido aqui nos tradicionais relatos de selvageria e depreciação dos
colonizadores. Percepção ainda compatível com a perspectiva civili-
zada moderna, já que Bonifácio reproduzia quase literalmente a defi-
nição da Encyclopédie sobre os sauvages (selvagens): "peuples barbares
qui vivent sans loix, sans police, sans religion, & qui n'ont point
d'habitation fixe" (povos bárbaros que vivem sem lei, sem polícia,
sem religião e que não têm habitação ftxa). 8
Entretanto, a visão do mais velho dos Andradas não se limitava
a esses aspectos negativos. Em seus Apontamentos ele assume ver-
tentes diversificadas, como o pensamento generoso e um tanto ideali-
zado de europeus da República das Letras do século XVIII ao afir-
mar que "o Indio do América parece um homem novo", capaz dos
sentimentos de coragem e valentia. Estava aí outro ramo de sua con-
cepção, que indicava linhagem da Ilustração vinda de Voltaire e Diderot,
por exemplo. Essa exaltação de um "bom selvagem", todavia, nunca
foi formulada ou defendida por Jean-Jacques Rousseau, ao contrário
do que com frequência se afirma. 9
Afinal: homem novo americano ou ladrão preguiçoso, violen-
to e amoral? Bom ou mau selvagem? Chegando a uma resposta des-
sa equação e sintetizando sua visão sobre o indígena, Bonifácio é
lapidar:

8
D'Alembert. Encyclopédie ou dictionnaire raisonné. . .
9
Para a desconstrução da afirmativa de que Rousseau exaltava o "bom sel-
vagem", v. a lúcida entrevista de Lévi- Strauss (em J. de Léry, 1994). Rousseau,
efetivamente, formulou em termos filosóficos a figura ideal de um "homem em estado
natural" que, entretanto, o mesmo autor reconhecia como inexistente em termos
históricos, cf. seu conhecido texto Discurso sobre a origem e osfundamentos da desigualdade
entre os homens [1753].
188 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

Com efeito o homem primitivo nem é bom, nem é mau natu-


ralmente, é um mero autómato, cujas molas podem ser postas
em acção pelo exemplo, educação e benefícios.

Assim, buscando equidistância da linha do "bom selvagem'',José


Bonifácio criticava, ao mesmo tempo, o extermínio dos índios e os
"maus colonizadores". Sua perspectiva era a de incluir os indígenas
na argamassa de um povo nacional brasileiro, com a condição de que
deixassem suas identidades tribais e se tornassem cidadãos perten-
centes à civilização ocidental e ao trabalho. Não estava na perspectiva
de Bonifácio desenvolver ainda mais o trabalho escravo no Brasil,
mas, ao contrário, extingui-lo gradualmente. Daí ele tinha o cuidado
em não apregoar a escravidão dos índios. Pode-se dizer mesmo que
estava imbuído das ideias de modernidade ao comparar os indígenas
aos autômatos ...
Bonifácio passa a lamentar abertamente as violências cometidas
pelos colonos, discordando (embora sem citá-la) da guerra ofensiva
de D. João VI que ainda vigorava. Ou seja, o Andrada era coloniza-
dor do tipo "manso", embora seu principal protetor e orientador, D.
Rodrigo de Sousa Coutinho, tivesse sido um dos "bravos" em relação
aos Botocudos - ambos imbuídos das ideias Ilustradas, o que difi-
culta uma associação automática dos iluministas com o controle dito
pacífico dos índios. Para José Bonifácio, o índio não estava irreme-
diavelmente embrutecido e poderia aceder às Luzes da razão, mediante
os já citados benefícios e educação - tornando-se, assim, um cida-
dão útil ao sistema produtivo. Ele citava como exemplo histórico
bem-sucedido a famosa experiência das Missões dos Guaranis sus-
tentadas pelos jesuítas no sul do Brasil, Paraguai e Uruguai no século
XVII. Mas, "déspota esclarecido" à maneira de um Pombal, o Andrada
não deixava de criticar "a teocracia absurda e interessada" dos jesuítas
e o fato de não permitirem a miscigenação com os brancos. Nesse
sentido, ele reconhece que o Diretório dos Índios dos tempos de
Pombal tinha "benignas e paternais intençoens", mas que no fim das
contas, com a destruição das Missões, os índios passaram a viver em
mais pobreza e ignorância. Depois desse retrospecto histórico, que
deveria servir de lição, o Andrada chegava ao presente.
José Bonifácio desenvolveu então 44 proposições para uma po-
lítica indigenista no Brasil, mesclando elementos do ideário pombalino
(como o incentivo ao casamento entre brancos e índios e a gradativa
O IMPÉRIO DO BRASIL SUBMETE OS "íNDIOS BRAVOS" 189
transformação deles em súditos prósperos e livres da Coroa), com o
exemplo das Missões (criando um Colégio de Missionários especia-
lizados em catequizar os índios e induzi-los às atividades produtivas,
sobretudo na lavoura), sem desprezar a formação de novos Bandei-
rantes que caçariam os índios para trazê-los aos aldeamentos, mas
pregando sempre cautela e paz. O trabalho cultural deveria merecer
atenção destacada: substituição dos costumes indígenas pelo culto
católico e ensino massificante do português escrito e falado, tudo na
base da persuasão e convencimento, com paciência e sem violência,
segundo suas palavras. Seria criado ainda um Tribunal Superior para
reger e legislar os aldeamentos, composto de autoridades civis, mili-
tares e eclesiásticas de cada província. Bandeirantes, missionários,
administradores e iluminismo: eram elementos já tradicionais, mas
Bonifácio inovava pela mescla e pelo momento em que expunha tais
proposições - não pregava a guerra ofensiva, mas propunha outras
formas de sujeição, mais modernas.
No entanto, o projeto também não teve futuro imediato. Como
se sabe, a Assembleia Constituinte foi dissolvida pelo imperador que
outorgou, ele mesmo, uma Constituição. Diversos deputados e reda-
tores de jornais foram presos e exilados, entre eles José Bonifácio que
passou sete anos fora do Brasil.
Com a dissolução da Constituinte, o país recém-independente
começa a se organizar - não pelo exercício do debate no Poder
Legislativo, nem pelas polêmicas na imprensa ou na prática das asso-
ciações, pois todos esses canais se encontravam reprimidos com o
verdadeiro golpe militar que marcara o fim dos trabalhos dos depu-
tados da Constituinte em 1823. A reorganização política inicia-se
pela via da imposição do Poder Executivo concentrado na mão de D.
Pedro I, do chamado grupo cortesão e dos aliados provinciais.
Um dos homens que passa a exercer as funções-chave na nova
situação é João Severiano Maciel da Costa, marquês de Qyeluz. Maciel
era natural de Minas Gerais e, por isso, conhecia de perto o proble-
ma dos Botocudos. Além disso, ele se distinguira na ocupação portu-
guesa na Guiana Francesa ao tempo de D. João e se notabilizara por
valorizar a importância das Ciências Naturais no estudo e recolhi-
mento de plantas economicamente importantes. Maciel era o princi-
pal signatário da Constituição de 1824, que ajudara a elaborar, torna-
ra-se o ministro mais influente (ministério do Império) com a saída
de cena de José Bonifácio, além de membro do Conselho de Estado.
190 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

Por sua mão passaram assuntos vitais, como a reforma ministerial e a


lei de imprensa, entre outros.
Maciel decide também se dedicar à questão dos Botocudos,
cada vez mais aguda para o país que buscava consolidar-se interna-
mente e obter lugar destacado no cenário internacional- a começar
pelo reconhecimento da Independência pelas grandes potências.
Pelo decreto de 28 de janeiro de 1824, o ministro Maciel publi-
cou o Regulamento interino para o aldeamento e civilisação dos Indios
Botocudos do rio Doce, da província do Espfrito Santo. 10 Tratava-se de
mais uma investida contra a resistência dessas tribos, desta vez com
efeitos consideráveis. O decreto (que não tinha a mesma profundida-
de e alcance do projeto de Bonifácio, engavetado) criava três aldea-
mentos nas margens do rio Doce, que teriam um diretor responsável,
um secretário, um cirurgião com botica, um prático-mor para a barra
do rio Doce e uma guarda com oitenta soldados. Essas aldeias estariam
subordinadas ao Ministério do Império, com a mediação do governo
da província. Entre os objetivos, estava o de ensinar aos índios a agri-
cultura e permitir a navegação pelo rio Doce. A previsão era separar
"terrenos" para os índios e "Sesmarias" para os colonos que aí quises-
sem estabelecer-se. Havia a preocupação de não dizimar ou expulsar
os índios e, sim, de integrá-los paulatinamente à sociedade brasileira,
embora sem maiores detalhes dos meios de tal integração. Era, pois,
uma incorporação subalterna que se oferecia aos Botocudos, antigos
senhores das terras. 11
Assim, com tal medida, a Coroa brasileira atacava em várias
frentes e operava, à sua maneira, uma síntese das diversas propostas já
elaboradas em torno desses índios. O estilo leigo, a predominância da
administração pública e o nome de diretor mostrava a influência
pombalina, já que a Igreja era deixada de lado da empreitada. A preo-
cupação com a navegação e a agricultura evidenciava as demandas
dos grupos econômicos locais e o resgate do sonho de se criar uma
colônia próspera na região - privilegiando, pois, a linha do desen-
volvimento econômico e do apoio às frentes civilizatórias para obter
o controle do território. Embora não revogada oficialmente, a ênfase

10 ]. S. Maciel da Costa. "Ofícios sobre a existencia de indios botocudos as

margens do Rio Doce" [1824] . Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, t. 6


(24), pp. 480-3, 1845.
11
Registro da correspondência do Espírito Santo . .. , 28-1-1824, AN.
O IMPÉRIO DO BRASIL SUBMETE OS "fNDIOS BRAVOS" 191
na guerra ofensiva era deixada de lado. Mas a militarização estava
presente ainda, não só no corpo de soldados que formava a maioria
do pessoal, mas pela escolha do diretor dos aldeamentos, que recaiu
sobre um militar, o coronel]ulião Fernandes Leão, que já atuava com
os índios da região desde a época de D. João VI.
Buscando completar a estratégia traçada em relação aos Bo-
tocudos, o governo do Primeiro Reinado nomeia como diretor-geral
dos Índios do Espírito Santo, em 1824, o francês Guido Marliêre,
que fora o companheiro de Eschewege em 1811. Marliêre (do qual
se falará mais adiante) partia de uma atitude de certo respeito e até de
alguma empatia com os índios - sempre tentando atraí-los para a
civilização ocidental, mas privilegiando meios pacíficos. E dessa ma-
neira o governo central brasileiro mantinha uma porta aberta para a
mentalidade científica europeia que não via nos índios um adversário,
mas um interessante objeto de estudo ou uma manifestação original
do "homem americano", além da chance de poder aproveitá-los no
sistema produtivo.
Com o coronel Julião no comando das tropas e com Marliêre à
frente do contato, os Botocudos continuavam diante de duas opções:
a espada e a pluma; ou partiam para o confronto ou buscavam inte-
grar-se (e se entregar) pacificamente. As duas tentativas foram feitas
pelos índios. Também dos brasileiros, diversas movimentos surgiram:
eliminar os índios pela guerra, submetê-los à escravidão, ou integrá-
-los de maneira mais ou menos pacífica à sociedade dominante. A
Coroa, no Primeiro Reinado, definiu-se pela última opção - o que
geraria um certo descompasso dos dirigentes da Corte com as duas
partes, imersas num conflito sangrento e tricentenário: de um lado os
colonos capixabas, mineiros e autoridades provinciais, que desejavam
maciçamente usar o trabalho escravo indígena e se apossar das terras;
de outro lado os Botocudos, que não deixariam de reagir a mais uma
investida.
O governo do Espírito Santo chegou mesmo a solicitar à Corte
autorização para o recolhimento de "porções destes barbaros para se-
rem destribuidos no serviço de casas particulares e dos Arsenaes e obras
publicas, com o que mais depressa se civilizarão, sem tanta despesa"Y
Percebe-se assim que tipo de integração era oferecido aos
Botocudos: a escravidão mal disfarçada. O!Jando pediam autorização,

u Correspondência da Presidência da prll'lJÍncia do Espirita Santo . .. , 12-4-1822, AN.


192 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

os governantes locais pretendiam legitimar uma situação instalada.


Tanto que o governo imperial respondeu ao pedido ordenando que os
índios já capturados e repartidos entre as fazendas como escravos
fossem imediatamente devolvidos aos aldeamentos. A correspondên-
cia subsequente não menciona mais o destino dos índios em questão
- talvez tenha prevalecido um silêncio tácito entre as divergentes
autoridades e permanecido a escravidão.U
Com os trabalhos de construção do aldeamento e implantação
do novo esquema de controle, além da manutenção e reforço dos
quartéis, os Botocudos logo perceberam que estavam diante de uma
investida de grande vulto (era o primeiro passo da política indigenista
do Brasil independente sobre essas tribos). E perceberam de várias
maneiras, algumas dramáticas, este novo tempo de fundação da na-
cionalidade que chegava.
Como o Brasil recém-proclamado chegou até esses índios?
Entre os primeiros sinais veio uma epidemia de bexiga (varíola). Uma
tribo inteira, a do chefe Jacu, foi dizimada pela peste, que começou a
ceifar vidas, num quadro apocalíptico. 14 A primeira trombeta foi soada
pelo próprio Jacu, cambaleante, que chegou ao aldeamento e quartel
da Onça Pequena em dezembro de 1823 amparado por seu filho
Kijame. Era a época das chuvas violentas na Mata Atlântica: granizo,
fogo e sangue, misturados, caíam na terra, destruindo árvores e relva
verde. Atrás dos dois índios vinha o resto da tribo, todos infectados.
O aldeamento se transformou num purgatório: gemidos e agonia pelo
chão, corredores e cômodos. ~ando a segunda trombeta tocou,Jacu
e sua mulher Punanj foram as primeiras vítimas, seguidos, poucas
horas depois, de uma filha pequena: uma parte das criaturas morria,
parte das águas e montanhas se abriam para recebê-las. Ao soar a
terceira trombeta, Kijame, à maneira de todas as nações, tribos, povos
e línguas, coloca o corpo do pai nos joelhos e entoa canção fiínebre.
Em seguida, veste-o com a farda de capitão (que o chefe recebera
recentemente como signo de sua adesão à sociedade brasileira), cujos
galões e botões tornavam o corpo como um astro ardente que caíra
em facho do céu. ~ando tocou a quarta trombeta, até soldados do
quartel choravam diante da cerimônia fiínebre: os habitantes da terra,
feridos, aguardavam as outras trombetas que ainda iam soar. Tocou a

13
Registro da correspondência do Espírito Santo . . . , 4-6 e 18-9- 1824, AN.
14
As informações contidas no trecho a seguir foram extraídas de G. T. Marliêre,
ofício de 5-1-1825. RAPM. . ., 1905, pp. 541-2.
O IMPÉRIO DO BRASIL SUBMETE OS "íNDIOS BRAVOS" 193
quinta trombeta. Kijame chamou os sobreviventes para fugirem en-
quanto era tempo, mas eles, sem forças, não atenderam. O tormento
não era morrer, mas sofrer: a morte fugia, prolongando o sofrimento.
A sexta trombeta soou. Desgarrados, tropeçando, os sobreviventes
tentavam escapulir pelos matos e, tocados pela praga, iam caindo.
Exalavam fogo, enxofre e fumaça. Horas depois, ao redor de duas
léguas, todos estavam mortos. Fez-se silêncio nos céus, mas a sétima
trombeta não soou ainda. Os povos, as tribos, as línguas e as nações
verão os cadáveres insepultos pelos séculos dos séculos. Até que o
sétimo anjo toque a trombeta sobre as nações que se haviam enfure-
cido, recuperando o tempo de julgar os mortos, de dar recompensa
aos pequenos e grandes e exterminar os que corrompem a terra.
O ministro Maciel, informado do ocorrido, limitou-se a lamentar
"o descuido de não terem sido vaccinados" os índios e ordenou a
retirada do local dos que não estivessem infectados. 15 Entretanto, nos
anos seguintes, novas epidemias de varíola atingiriam estes índios. 16
Uma epidemia de oftalmia deixou pelo menos oito Botocudos
cegos na região do CuietéY
Além das epidemias, ocorriam outros problemas. Os contatos
com os Botocudos se intensificaram após a Independência e a Guerra
de 1808-1824, mas logo faltaram recursos para manter essa dispen-
diosa e demorada fase de adaptação das tribos à vida sedentária e
produtiva. As correspondências do presidente da província do Espí-
rito Santo para a Corte entre 1824 e 1826 batem sempre nesta tecla
da falta de dinheiro para se efetuar a integração dos índios. É o que
diz o presidente Inácio Accioli para o ministro Maciel:

[...] accomodar com mais despesa de trinta mil reis um magote


de Gentio, que sahio de paz em outro ponto desta Província,
por não achar ainda no Rio Doce o commodo, e alimento que
buscão. [... ] por outro lado os magotes que de dia em dia
apparecem em outros pontos com grave damno dos Lavradores,
que exigem despesas para se conservar com elles amisade e
chama-los a civilisação. 18

15 Registro da correspondência do Espfrito Santo . .. , 18-9-1824, AN.


16
Oficios de 31-1 -1834, p. 299 e de 3-3-1835, p. 327, Série Accioly, Livro
67, Apes.
17
G. T. Marlíêre, ofício de 26-12-1825. RAPM.. .
18
Correspondência da Presidência da provfncia do Espfrito Santo para oMinistério do
Império . . ., 5-4-1824, AN.
194 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

Além da falta de recursos, o relato acima mostra como a pre-


sença crescente dos não índios, no que até então era território predo-
minantemente indígena, causou abalo na vida das tribos, que vaga-
vam de um lado para outro não mais dentro dos comportamentos
nômades que marcavam sua organização social, mas em busca de
awa1ios que não chegavam e deparando-se a toda hora com novos
invasores, proprietários e frentes de expansão (Figura 24). A ocupa-
ção do território por mais colonos desestruturava a vida desses gru-
pos. As delimitações territoriais entre as tribos- elemento básico da
vida desses povos - se pulverizavam, desarticulando os limites e
códigos: subsistência pelos terrenos de caça e colheita, relações in-
tertribais, trocas, vinganças, alianças - tudo parecia ruir e a esperada
ajuda dos "brancos", que pretendia substituir estes modos de vida, não
chegava a contento. Era momento difícil na vida das tribos chamadas
de Botocudos. A perspectiva dos governantes locais, entretanto, era
outra: "da visinhança de Collonos civilisados resultão grandes bene-
ficios a civilisação dos selvagens". 19
Em julho e agosto de 1824, diante da instabilidade da situação,
que persistia, o presidente capixaba previa o pior ("hum terrível mal
vai cahir"): a pacificação dos índios paralisada pela falta de dinheiro,
as tribos vagavam de um lado para o outro alimentando-se das plan-
tações e criações dos fazendeiros (que se irritavam com isso) e novas
epidemias de varíola se manifestavam ceifando a vida de muitos ín-
dios. O quadro era tenso e potencialmente explosivo. 20
A resposta dos Botocudos ao novo impulso dado às frentes civi-
lizatórias foi à altura das iniciativas do governo brasileiro. Diversas
tribos vindas dos rios Doce e Itapemirim começaram não mais a vagar
de um lado para outro, mas agora com destino definido. Ao mesmo
tempo, bandos vindos dessas duas localidades deslocaram-se numa
marcha em direção ao litoral, mais precisamente para Vitória. 21 Tudo
indica que houve acerto entre eles, pois a marcha foi quase simultânea.

19
Correspondência da Presidência da província do Espírito Santo para oMinistério do
Império . . ., 25-5-1824, AN.
2
°Correspondência da Presidência da província do Espírito Santo para oMinistério do
Império . .. , 1.0 -7, 22-7 e 4-8/1824, AN.
21
A documentação sobre esta ida dos Botocudos a Vitória não se encontra na
correspondência oficial da província no AN, há uma lacuna na sequência cronológica
do acervo, como se tais papéis tivessem sido retirados. Outros documentos, entretan-
to, como as Atas das Sessões do Conselho do Governo, aparecem transcritos nas
Notas . .. de Rubim, 1856, de onde extraímos as referências dos parágrafos seguintes.
O IMPÉRIO DO BRASIL SUBMETE OS "íNDIOS BRAVOS" 195
Desta vez o peso das ameaças externas parecia superar a facciosidade,
levando as tribos a tentar uma ação conjunta contra o inimigo comum.
No dia 1. 0 de outubro de 1824 o Conselho de Governo do
Espírito Santo reuniu-se às pressas. O "gentio do Rio Doce" estava às
portas da capital. Eles não atacavam, mas pareciam aguardar as tribos
do rio ltapemirim, que também caminhavam para lá. Porém, houve
decalagem entre as caminhadas dos grupos indígenas que partiram
dos dois locais diferentes. Aproveitando-se desta brecha, as autoridades
procuraram contornar a situação. O governo decidiu alojá-los na ilha
do Príncipe e eles aceitaram. As autoridades ofereceram alimentos,
provisões, e os índios receberam. E o governo pediu para que eles re-
tornem ao rio Doce- aí, eles não aceitaram. A lógica era cortante. Os
Botocudos atravessavam a fronteira da floresta na tentativa de ocupar
a cidadela urbana. No momento em que a civilização ocidental instala-
va-se no coração do território indígena, as tribos se instalavam na ca-
pital da província. Mais uma vez a alteridade perturbava a lógica de
uma Conquista que, ao longo de três séculos, ainda não se consumara.
No dia 16 de outubro a crise persistia. Os índios recusavam-se
a voltar. Os moradores de Vitória estavam vivendo "em grande alar-
ma e terror pânico". Muitas fazendas dos arredores e casas dentro da
capital foram abandonadas. Os moradores que não fugiram "armaram
uma Bandeira", ou seja, pegaram em armas, reacendendo o espírito
do Bandeirantismo. Os quartéis estavam em prontidão permanente.
No dia 21 as tribos do Itapemirim chegam e ocorre o massacre.
Os recém-chegados são rechaçados à bala, com numerosas mortes -
o que confirma, apesar da escassez de detalhes sobre tal fuzilada, que
durante o Primeiro Reinado brasileiro ainda ocorriam combates san-
grentos entre autoridades e índios. A partir daí, as tribos vindas do rio
Doce se veem na posição de prisioneiras na ilha do Príncipe. Por três
vezes elas tentam desembarcar no litoral e são impedidas. E assim,
durante quatro meses, a situação foi tensa. O presidente do Espírito
Santo, neste meio tempo, enviava longos relatórios à Corte, endereça-
dos ao ministro Maciel, fazendo malabarismos verbais para defender
a política de pacificação do Império e, ao mesmo tempo, justificar as
violências praticadas e anunciar que outras agressões poderiam ocorrer. 22
É interessante notar que em 1824 o governo do Espírito Santo
não pôde contar com uma ajuda efetiva das tropas imperiais para

22 Correspondência da Presidência da prov(ncia do Espfrito Santo para o Ministêrio do

Império . .. , 20-10-1824, AN .
196 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

reprimir essa sublevação dos Botocudos. No mesmo ano as atenções


estavam principalmente concentradas em outra rebelião, em Pernam-
buco, que buscava separar-se do regime monárquico e se tornara sede
provisória da República, proclamada com o nome de Confederação
do Equador, envolvendo as províncias vizinhas, sobretudo Ceará,
Paraíba e Rio Grande do Norte. Mal saído dos combates com as
tropas portuguesas que resistiram à Independência até 1823, o governo
imperial brasileiro se via às voltas com o federalismo e o liberalismo
exaltado, reivindicações dos que pegavam em armas. Era a reação
contra a centralização administrativa e os rumos que tomava a nova
nação. Entretanto, seria um equívoco pensar que Botocudos e repu-
blicanos poderiam formar uma frente comum contra o Império. Ao
contrário, a Câmara Municipal de Caeté, em Minas Gerais, preten-
dia até utilizar os guerreiros Botocudos pacificados como tropas im-
periais para atacar possíveis incursões dos rebeldes da Confederação
do Equador na província- o que não chegou a ocorrer. 23
Somente em 31 de janeiro de 1825 esvazia-se a tensão em Vi-
tória: as autoridades capixabas conseguem negociar uma solução com
as tribos que ainda se encontravam na ilha do Príncipe. Os índios
recebem consideráveis provisões de milho e mandioca e se retiram
para o rio Doce. O retorno desses índios que intentavam assediar a
capital da província marca o fim da Guerra de 1808- 1824 e o início
do declínio dos guerreiros Botocudos, que não puderam Reconquis-
tar o território nem abalar a cidadela urbana. Vitória estava definiti-
vamente nas mãos dos vitoriosos.
Tal investida sobre a capital capixaba, caracterizando uma ten-
tativa de insurreição dos índios, foi o último lance grandiloquente da
guerra praticada desde os remotos tempos da chegada dos portugue-
ses, encerrando a Guerra de 1808-1824. A partir daí os combates
ainda ocorreriam, mas esporádicos e acompanhados de uma política
civilizatória de mais em mais consistente que paulatinamente iria es-
trangulando as tribos que restavam. Muitas mortes ainda ocorreriam.
Continuavam, nesta fase nacional brasileira, o massacre, o movimen-
to de extermínio e destruição e as resistências indígenas - pois a
guerra começava a ser perdida pelos Botocudos, num processo que
ainda levaria em torno de um século.

23 C. T. Marliere. RAPM.. ., ofício de 10-11-1824.


O JMPÉRJO DO BRASIL SUBMETE OS "íNDIOS BRAVOS" 197

Integração à sociedade brasileira: a violência


por "meios brandos"24

Após a Guerra de 1808-1824, os grupos de Botocudos vivem


cotidiano de tensões e dificuldades: embates bélicos intermitentes e
a constante expansão das atividades agrícolas, mineradoras, comerciais
e administrativas sobre suas terras. Forçava-se, assim, uma integração
de tipo subalterna à sociedade brasileira que se consolidava,
enfraquecendo o potencial guerreiro das tribos, mas realçando outras
formas de resistência, como o aprendizado de iniciativas econômicas
e a casarem ou terem filhos com não índios, que levavam a transfor-
mações na identidade étnica, mas não necessariamente à sua extinção,
dada, porém, como inelutável pela perspectiva progressista típica dos
Oitocentos.
Depois dos episódios do cerco a Vitória e do decreto do mar-
quês de O!Jeluz em 1824, mais três aldeamentos foram criados ao
longo do rio Doce, a fim de melhor controlar as tribos e consolidar a
presença militar na região. Estradas eram abertas mantendo o binômio
caminhos e povoamento. Os quartéis serviam como ponto de apoio
às frentes de expansão. Nos anos que se seguiram à Independência,
grupos de mineradores nacionais e internacionais, comerciantes, fa-
zendeiros, coletores de plantas medicinais ou mesmo "vadios" (de-
linquentes, desertores, desempregados, etc.) ganhavam espaço e des-
bravavam a Mata Atlântica (Figura 24). 25
A mineração foi retomada, entre outros, pelo coronel Julião
Fernandes Leão, que pede licença do seu cargo de diretor dos Índios
e vai explorar as famosas Minas do Castelo, desativadas desde os
tempos dos Aimorés. Julião monta sua expedição: dewito escravos
negros, três índios Botocudos, oito homens assalariados e dois velhos
que haviam trabalhado nestas minas. O grupo instala-se nas ruínas

24
A integração dos índios à sociedade nacional no século XX, com suas formas
de coerção e violência, foi estudada, entre outros, por Darcy Ribeiro (1996), que
desenvolveu importantes considerações teóricas e metodológicas sobre o tema.
25
Sobre a devastação da Mata Atlântica e sua relação com as vidas dos grupos
indígenas, bem como os projetos de exploração e preservação, v. as obras de W . Dean,
1997 e J. Augusto Pádua, 2002; especificamente sobre os Botocudos e a devastação
ambiental em Minas Gerais, v. R. H . Duarte (2002) e, no Espírito Santo, R. Medeiros
(1983).
198 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

Figura24

causadas pela Reconquista dos índios e começa a trabalhar recolhendo


ouro e recuperando o local para a Conquista. Eram, segundo as palavras
do militar, "Sertões habitados de Feras e de Selvagens unicamente".
Durante oito meses o grupo abriu cinco novas minas e mais seis léguas
de estrada, recolhendo considerável quantidade de ouro. Os Botocudos,
que normalmente frequentavam o local para se alimentarem nos po-
mares e hortas que sobraram, não apareceram nenhuma vez durante a
estada do grupo, embora fossem vistos sempre rastros frescos e outros
indícios da presença deles nos arredores. O coronel Julião, depois
dessa jornada, parece ter feito seu pé-de-meia: abandona o serviço
militar e a vida pública e vai viver tranquilamente na sua Fazenda
Regência, nos arredores de Vitória. Saía de cena um dos importantes
guerreiros e pacificadores dos Botocudos nesta fase crucial que en-
globa os governos de D. João Vl e D. Pedro I. Na mesma época o
tenente-coronel Inácio Pereira Duarte Carneiro (construtor da estra-
da Vitória-Vila Rica e futuro presidente do Espírito Santo) ganha
concessão para explorar outras minas na mesma região do Castelo. 26

26 Correspondência da Presidência da província do Espírito Santo para o Ministério do

Império ... , 31-8-1824 e 2-8-1826, AN.


O IMPÉRIO DO BRASIL SUBMETE OS "íNDIOS BRAVOS" 199
Penetravam pelos territórios indígenas - no século XIX -
grupos que se autodenominavam de Entradas e Bandeiras. Entre
elas, a Bandeira capitaneada por Francisco Teixeira Guedes que per-
correu o rio Todos os Santos em 1829 para fazer mineração na serra
das Esmeraldas. Mal começou o garimpo, os Botocudos atacaram
pondo-os em retirada. Isso mostra que a resistência indígena con-
tinuava de maneira significativa, apesar da situação que lhe era
desfavorável. 27
A crescente presença do capitalismo inglês no Brasil nas primei-
ras décadas dos Oitocentos teria peso sobre o destino das tribos de
Botocudos de Minas Gerais. Não foi apenas em torno da abolição do
tráfico de escravos da África que a Inglaterra marcou presença, mas
também sobre os índios, embora de maneira menos ostensiva e ainda
mal conhecida.
Já em 1825 (decreto de 6 de maio) o governo de D. Pedro I
aprovara a concessão da Sociedade de Agricultura, Mineração e
Navegação do Rio Doce para capitalistas ingleses. Entretanto, o Con-
selho de Governo da Província de Minas Gerais opôs-se com vigor a
tal medida. O presidente desse Conselho era Bernardo Pereira de
Vasconcelos, que se destacou como um dos políticos mais antibritânicos
do período, fazendo oposição sistemática à predominância inglesa e
também ao imperador, ao mesmo tempo que defendia os interesses
escravistas e comerciais brasileiros. A concessão acabou revogada. 28
Com a saída de D. Pedro I do poder em 1831, a Regência que
se instalou decretou a abolição do tráfico de escravos da África -
medida que só seria efetivamente cumprida em torno de 1850, mas
que naquele momento visava atender às pressões britânicas e de parte
das demandas oriundas de setores reformistas da sociedade brasileira
e, ainda, da pressão indireta dos cativos através de resistências di-
versificadas.
Nos primeiros tempos da Regência foi revogada a guerra ofen-
siva decretada em 1808 por D. João contra os Botocudos da região do
rio Doce e contra os "Bugres" de São Paulo. Na verdade, durante o
Primeiro Reinado, a guerra ofensiva desaparecera do discurso oficial.
Cabe perguntar: por que tal gesto de abolir a guerra ofensiva tantos
anos depois? Um surto humanitário atingira subitamente as elites

27
Cf. T. Ottoni, cit.
28
O . T. Sousa. Bernardo Pereira de Vasconcelos . .. , p. 26
200 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

dirigentes da Corte? A preocupação com a sorte dos índios era uma


das prioridades da Regência?29
O decreto em questão (27 de outubro de 1831) revogava as
Cartas Régias joaninas "na parte em que autoriza na Provincia de
Minas geraes a essa guerra e servidao dos Indios Prisioneiros". 30 Ou
seja, eliminava a guerra declarada formalmente pela Coroa e também
a escravidão- mas mantinha a militarização do território indígena,
ponto básico das Cartas Régias. Assim, pelo menos juridicamente, o
Estado brasileiro se eximia da responsabilidade da guerra contra os
índios e também proibia a condição servil deles, embora os mantivesse
sob a tutela oficial e militar. A mesma lei afirmava que os índios em
estado de servidão seriam "desonerados" dela e, ainda, estendia aos
índios do Brasil em geral a condição jurídica de órfãos, que deveriam
ser amparados pelo Estado até que aprendessem ofícios. O decreto,
porém, não detalhava meios nem a fiscalização necessária para rever-
ter a escravidão dos índios - e tal prática continuaria a ocorrer de
forma espalhada e mais ou menos disfarçada ao longo do século XIX.
Em rápidas pinceladas, sem aparato erudito e dispensando alen-
tados projetos civilizatórios tradicionalmente dirigidos aos Botocudos,
a Regência traçou sua posição. A preocupação do governo brasileiro
com a escravidão dos índios não produziu maiores consequências. Os
anos 1830 e 1840 foram marcados pela continuidade da escravização
e tráfico de Botocudos, como se verá adiante, e não se conhecem
medidas efetivas da Regência ou do governo de D. Pedro II para
coibi-la. Mas além de abolir formalmente a servidão, o decreto
regencial apontava para o aprendizado de ofícios como forma de
integração dos índios à sociedade nacional. Ora, a preocupação em
abolir a escravidão (ainda que apenas formalmente) e ao mesmo tem-
po formar mão de obra livre especializada atendia a que interesses?
Para quem o terreno estaria sendo preparado?
Menos de um ano depois (6-7 -1832), novo decreto regencial
determina a transferência de aldeias para novos estabelecimentos e a
venda pública de terras indígenas, o que geraria uma verdadeira
investida sobre tais áreas. 31

29
Sobre o contexto, v. M. Morel, O período das R egências (1831-1840} .. .
°Collecção das Leis do Imperio do Brazil. . .
3

31
M . M . C. da Cunha. "Política indigenista no século XIX". ln: Idem (org.),
História dos índios no Brasil. .. , pp. 144-5.
O IMPÉRIO DO BRASIL SUBMETE OS "íNDIOS BRAVOS" 201
Não tardou para que fosse apresentado à Regência um plano
para organização da Companhia Brasileira do Rio Doce, definida
como "uma Sociedade pela união de Capitalistas Brazileiros e Inglezes",
cujo objetivo era estabelecer a navegação entre o Rio de Janeiro e a
foz do rio Doce e em todo o seu curso, além de promover agricultura,
colonização nas terras das margens fluviais, mineração, extração de
sal à beira-mar, abrir caminhos terrestres, etc. O responsável pelo
projeto chamava-se João Diogo Sterz Stockexchange (o sobrenome
comporta curiosa associação de palavras). Mas desta vez, para evitar
reações protecionistas em defesa do mercado interno, apareciam in-
corporados como sócios da empreitada os nomes mais expressivos da
política brasileira, a fina flor da elite dirigente das Regências e dos
liberais Moderados: Evaristo da Veiga, Hermeto Carneiro Leão,
Chichorro da Gama, Limpo de Abreu, Antônio Ferreira França,
Miguel Calmon Du Pin e Almeida, Francisco Jê Acaiaba Montezuma,
além de Estêvão Ribeiro de Resende (barão e futuro marquês de
Valença), marquês de Inhambupe e outras figuras da monarquia.
E quanto aos Botocudos? O referido plano de colonização afir-
mava: os que aparecessem seriam logo empregados como canoeiros,
lavradores e lenhadores. Pretendia-se, a princípio, uma colonização
"mansa", na qual os índios seriam tratados "com todo o melindre,
circunspecção e justiça". 32
Os capitalistas ingleses também se faziam presentes na minera-
ção nos arredores de Caeté, Mariana, Ouro Preto e São João del-Rei
- áreas que, anos antes, ainda eram em parte ocupadas pelos
Botocudos. A Brazilian Company (1832-1844) e National Brazilian
Mining Association (1833-1851) funcionavam nestes locais. 33 Ain-
da que tardiamente (em relação ao apogeu da extração), a mineração
era feita nas áreas onde a presença indígena até então a impedira ou
dificultara.
Da mesma maneira que as pesquisas históricas falam da influência
britânica na escravidão africana no Brasil, é importante também con-
siderar como os interesses econômicos ingleses afetaram a vida das
populações indígenas - deixando às autoridades nacionais o ônus de
"limparem o terreno" e nem se dando ao trabalho, neste caso, de

32 ]. D. S. Stockexchange. "Plano para a organização de uma sociedade com a

denominação de «Companhia Brasileira do Rio Doce»" [1832] . RAPM, IV, 1899.


33 F. Iglésias. "Minas Gerais" . . . , p. 396.
202 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

elaborar grandes argumentos humanitários para exploração dos ter-


ritórios e da mão de obra indígena. Se no caso dos escravos africanos
a passagem para o trabalho livre, ainda que apenas hipoteticamente,
pudesse ter uma conotação humanitária, no caso dos índios, a passa-
gem da vida tribal para a inserção no mercado de trabalho represen-
tava uma violência mais evidente, dado as resistências que muitos
opunham. Nesses casos o interesse poderia ser de eliminá-los, já que
não se prestavam para mão de obra.
Nessa prática de extermínio dois índios Botocudos ficaram fa-
mosos na região: Cró e Crahy. Feitos prisioneiros pelos soldados e
"adestrados", tornaram-se temíveis mercenários, a soldo dos brasilei-
ros, cuja missão profissional era matar índios e dizimar tribos. Esses
dois índios excediam em violência os mais ousados soldados brasilei-
ros. Da atividade desses dois surgiu o termo, usado na época, de "ma-
tar uma aldeia", que constituía em dizimar de uma vez um grupo
inteiro de Botocudos, sem poupar velhos, mulheres e crianças.
Em 1830 houve um desses episódios trágicos. Um grupo de
índios, reagindo contra trabalhos forçados numa fazenda em Córrego
Novo, distrito de Calhão (MG), assassinaram diversas pessoas da
família do proprietário. Os moradores "brancos" da região, sedentos
de vingança, formaram uma verdadeira tropa, chamaram alguns sol-
dados para reforçá-la e colocaram à frente Cró e Crahy- que eram,
aliás, originários da tribo em questão. Marcharam para a localidade
chamada Capivara. Nenhum dos atacantes foi morto. Ottoni resumiu
o que se passou do lado dos índios, enojado: "A aldeia foi um açou-
gue, não um lugar de combate". Contam que Crahy, numa prova de
fidelidade, matou com as próprias mãos a mãe de sua mulher. Ainda
em 1854, na localidade de Guariba, às margens do rio Jequitinhonha,
os mesmos mercenários "mataram'' outra aldeia - em represália ao
assassinato, pelos índios, de um morador branco da região. 34 Este foi
um exemplo de como os colonizadores conseguiram canalizar a energia
guerreira de índios contra os próprios grupos indígenas aos quais
pertenciam. Belicosidade acrescida da desagregação dos valores cultu-
rais e sociais dos mesmos índios, a ponto de fazê-los matar a própria
tribo ou grupo familiar. O laço que ligava esses dois índios guerreiros
e exterminadores de seu próprio grupo aos assépticos capitalistas ingle-
ses e aos poderosos interesses econômicos brasileiros podia não ser

34
T. Ottoni. "Noticias sobre os selvagens do Mucuri" . ..
O IMPÉRIO DO BRASIL SUBMETE OS "íNDIOS BRAVOS" 203
visível ou formalizado legalmente, mas era o mesmo que buscava
estrangular a resistência indígena em nome do triunfo da civilização
ocidental e da sociedade nacional em busca do progresso. Aqueles dois
índios converteram-se em braços dos impérios britânico e brasileiro.
Três décadas depois da declaração da guerra ofensiva de D.
João, alguns Botocudos, de temidos guerreiros que infringiam medo,
tornaram-se miseráveis, a ponto de causar incômodo na população
brasileira que vinha se instalar nas áreas que até então pertenciam às
tribos. O contato com as frentes de expansão, quando não ocasionava
chacinas, acabava por inserir os índios na sociedade nacional. Mas
era uma inserção geralmente subalterna e parcial. Em palavras cla-
ras: tornavam-se famintos.
A fome crônica nos territórios brasileiros. Em 1830, por exem-
plo, um grupo de cerca de cem Botocudos atacou o quartel do Porto
de Sousa (ES), resultando do conflito dois soldados feridos a flechas
e dois índios mortos a tiros (entre eles o cacique Araque, "por serem
os mais teimosos em investir o quartel"). O motivo do ataque, segun-
do as autoridades locais, foi "a fome que os Botocudos sofrem". 35
O mesmo relato contém uma frase lapidar dirigida ao ministro
do Império:

"Tenho a honra de participar a V. Exca. que os Boticudos não


estão satisfeitos."

Desse modo, a insatisfação dos índios e suas iniciativas, ainda


que não registradas em escrito por eles, expressavam-se em palavras e
gestos que, por sua vez, ganhavam tradução e forma escrita nos regis-
tros oficiais, permeados assim pelas presenças e vontades indígenas.
Grupos destes índios foram vistos em torno de Belmonte em
1838 mendigando pelas fazendas, infectados por diversas doenças,
nus ou vestindo farrapos (Figura 25). Um abaixo-assinado dirigido
ao imperador chamava atenção para o "lamentavel estado de desleixo
e abandono total em que vivem os Botecudos, que andam vagando à
direção pelas margens deste rio". Ou então uma carta dirigida ao
chefe de polícia pela comarca da Vila do Rio Grande do Belmonte,
do mesmo ano, referindo-se a um grupo de "Buticudos, ja quase

35
Oficio deJoão Antonio Santana para oMinistro e Secretario dos Negócios do Império,
1-10-1830, Série Accioly, Livro 67, Apes, p. 253.
204 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

domesticos, no Estado antiquíssimo de sua criação [... ] reduzidos


de nudez e falta de todos os socorros". 36
O clima de tensão evidenciado no testemunho é localizado:
Belmonte, 1838. Eles resultaram de uma experiência malsucedida de
sedentarização de um grupo de Botocudos que, na localidade conhe-
cida por Capoeirinha, haviam se estabelecido em regime de peque-
nas plantações, com suas roças, três anos antes. Estes índios eram
tidos como "meio selvagens" pelos brasileiros, ou seja, estavam numa
situação híbrida. Mas estes Botocudos atacaram e mataram vários
índios de outras tribos (não especificadas nos registros), provavel-
mente por antigas rivalidades tribais ou posse de territórios. Depois
do conflito, os Botocudos largaram as roças e voltaram a se embrenhar
nos matos, mas apareciam sempre nas fazendas pedindo alimentos e
auxílios. Oltase domésticos ou meio selvagens - onde o "quase" e o
"meio" parecem significar uma espécie de limbo, purgatório da civi-
lização, mas também indicam resistência à dominação e permanên-
cia, ainda que com transformações, das identidades culturais indíge-
nas diante das frentes civilizatórias.
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1
1 ·-i 1,4 '''• ~I;, 1
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Figura 25

36
Carta da Comarca do Rio Grande de Belmonte. .. , 3-4-1838, FBN/MSS.
O IMPÉRIO DO BRASIL SUBMETE OS "íNDIOS BRAVOS" 205
Em 1840, desta vez na região do rio Doce, houve registro de
"alguns casais de Botocudos pertencentes a huma família" que esta-
vam "sofrendo a miséria da fome". 37 O testemunho confirma, ao mes-
mo tempo, a escravidão e a fome, associadas, nos sete adultos e duas
crianças Botocudos.
E chegando até o final da década de 1840 ainda há referências
de escravidão mal disfarçada de Botocudos. A amplitude destas prá-
ticas de posse de indígenas pelos brasileiros levou a um pronuncia-
mento do presidente da província capixaba em 1848 que, com certo
melindre, assinalava aos deputados da Assembleia provincial: "[ ... ]
há hoje muitos Botocudos espalhados por casas e fazendas particula-
res, onde trabalhão". Para em seguida comentar que era preciso
"acautellar os abusos e falta de boa fé". 38 Mantinha-se, no Segundo
Reinado, a mesma disparidade entre a visão ilustrada de alguns di-
rigentes com as violências cotidianas no convívio entre índios e bra-
sileiros. 39
Também na Bahia a escravização não declarada de Botocudos
existiu com frequência, pelo menos até 1846, quando as autoridades
provinciais tinham por hábito distribuir os índios aprisionados ou reti-
rados das florestas "por alguns amigos em perpétua domesticidade". 40
Além das terras, fica claro que a mão de obra indígena ainda
interessava a parcela expressiva da sociedade brasileira em meados do
Oitocentos. No caso dos Botocudos, bem como de outras tribos, regis-
tra-se ao longo de todo século XIX a incorporação cotidiana de índios
arrancados das tribos ao trabalho não remunerado em fazendas, resi-
dências urbanas e obras públicas, prática que se generalizou em provín-
cias próximas ao centro de poder imperial, verificando-se, assim, que
a força de trabalho era ainda um componente importante do interesse
sobre tais indígenas, ao lado da posse de suas terras. Os testemunhos
acima (e outros citados a seguir e nos capítulos seguintes) apontam
esta tendência de escravização e mesmo de tráfico de indígenas.

37
Ofício de João Rodrigues dos Santos Azevedo, Diretor das Aldeias do Rio
Doce, 5-3-1840, Série Accioly, Livro 67, APES, p. 400.
38
Relatório do Presidente da Província do Espírito Santo, o Doutor Luiz Pedrosa de
Couto Ferraz . .. , 1848.
39
A permanência da escravidão indígena em meados do século XIX é também
assinalada por M .M . C . da Cunha. "Política indigenista no século XIX". ln: Idem
(org.). História dos índios no Brasil. .. , p. 146.
40 Cf. T. Ottoni. "Noticias sobre os selvagens do Mucuri" ...
206 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

Nos anos posteriores à Independência vemos índios que, após


uma fase de contato com a sociedade brasileira, acabaram por se tor-
nar miseráveis, despojados de suas terras e com suas formas de vida
alteradas e ameaçadas. O que gerava tal arremedo de piedade entre os
colonos era, sobretudo, o incômodo pela nudez, o temor de doenças
com os quais os índios haviam sido infectados e a indisfarçável inse-
gurança diante dos mendicantes que, premidos pela fome, poderiam
voltar ao "antiquíssimo" estado guerreiro e atacar as propriedades -
pois a memória da Reconquista indígena ainda estava acesa na re-
gião. Os referidos colonos apelavam ao Estado monárquico para que,
através da retomada da catequese ou da interferência mais direta da
administração pública, houvesse uma solução para a questão indígena.
Os comerciantes também estão presentes nessa invasão das ter-
ras indígenas. Diversas pessoas pedem ao governo capixaba autoriza-
ção para se instalarem no Aldeamento de São Pedro de Alcântara, nas
margens do rio Doce, sobretudo no ramo de secos e molhados. As
autorizações são sempre concedidas sob o parecer de que o aumento
da população branca vai "contribuir muito a civilisação dos Botecudos".
O novo motor deixava de ser a guerra justa ou ofensiva para visar o
progresso. Mas que civilização era essa na prática? Entre os comer-
ciantes havia taverneiros. Começou a introdução da aguardente de
cana entre as tribos, muitas vezes como pagamento de serviços pres-
tados. O resultado, trágico, não se fez esperar: a cachaça "matta mais
destes infelizes que a peste"Y
Outra consequência deste contato mais intenso entre os Boto-
cudos e a sociedade brasileira foi a presença, no território indígena,
não só de grupos econômicos, mas de malfeitores, desertores, enfim,
"vadios" que entraram de cheio na vida das tribos já fragilizadas e
desestruturadas. Agrediam os homens, abusavam sexualmente das
mulheres, escravizavam jovens e crianças e chegavam a formar ban-
dos armados com alguns índios para cometer assaltos e outras formas
de banditismo. 42
E, sobretudo, são as fazendas que vão ter papel marcante entre
as frentes de expansão. Pelo relatório de uma visita de inspeção ao
Aldeamento de São Pedro de Alcântara (feita pelo presidente do Es-

41
G . T. Marliêre. RAPM.. ., ofício de 11-7- 1825 e Correspondência da Presi-
dência da Província do Espírito Santo para o Ministério do Império . .. , 11-6-1825, AN.
42
G. T. Marliêre. RAPM. . ., ofício de 11- 7-1825.
O IMPÉRIO DO BRASIL SUBMETE OS "íNDIOS BRAVOS" 207
pírito Santo, Inácio Accioli, em junho de 1825) pode-se perceber
como era o cotidiano dos grupos aldeados, as transformações que
ocorriam em seus modos de vida e a influência que as propriedades
rurais podiam ter sobre as tribos. O governante pretendia encontrar
os mais de cem Botocudos (pertencentes, segundo ele, a quatro famí-
lias - o que poderia equivaler a clãs ou mesmo a fragmentos de
quatro tribos que se juntaram) que moravam lá, mas estes, cinco dias
antes da chegada da autoridade, haviam pedido licença para saírem a
caçar e colher cocos de sapucaia. Estavam no aldeamento apenas
dezesseis índios, homens e mulheres, que não quiseram acompanhar
os demais. A crer na observação de Accioli, estes que ficaram estariam
mais adaptados à sedentarização, pois "vivem contentes e entretidos
na Pescaria". Q.tanto aos demais, que formavam um considerável gru-
po, foram seguindo pelas margens do rio Doce até a fazenda da viúva
de João Filipe Calmon, onde compraram a dinheiro bananas, canas e
laranjas, já que os mantimentos fornecidos no aldeamento estavam
acabando. Como haviam se passado apenas cinco meses do desfecho
da invasão de Vitória pelos Botocudos, Accioli tratou de evitar con-
flitos ou reações da parte de colonos e autoridades locais e, para isso,
expediu mensagens recomendando bom tratamento e mesmo auxilio
à centena de Botocudos que se locomovia. 43
O relato acima traz elementos importantes para o período pos-
terior da guerra de 1808-1824 e da Independência. Esse aldeamento
se transformara num verdadeiro centro de treinamento e adaptação
dos Botocudos à sociedade brasileira- onde, estrategicamente, esta-
va a fazenda de Calmon, que nos tempos da Guerra de 1808 fora uma
das únicas pontes de ligação entre os dois lados do conflito. Os índios
eram conduzidos a aprender os códigos básicos da civilização oci-
dental: desde as formas de ir e vir, passando pela relação com a flo-
resta, com as maneiras de morar, vestir e até o uso do dinheiro e da
prática regular do comércio. Embora, ao que parece, ainda não hou-
vessem incorporado a produção agrícola.
Entre estes Botocudos que aceitavam convivência constante e
pacífica, havia diferentes gradações de comportamento e adaptação.
Uma minoria tinha aceitado a sedentarização, parecia se satisfazer com
a pesca e alimentos fornecidos no aldeamento, embora não praticassem

43 Correspondência da Presidência da Provfncia do Espfrito Santo para o Ministêrio do

Império . . ., 11-6-1825, AN.


208 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

agricultura. Outros, em maioria neste local, ainda guardavam traços


do nomadismo, da caça e da colheita, mas de uma forma híbrida e
controlada: para sair pediam autorização, pareciam regular estas saí-
das apenas pela subsistência (deixando de lado o nomadismo referen-
te a valores rituais, como o abandono de um acampamento após a
morte de algum membro da tribo ou pelo temor de "espíritos" da
floresta), limitavam a colheita a determinado produto (o coco da
sapucaia) e - o mais significativo - haviam introduzido o dinheiro
nas suas relações de troca e passaram a adquirir nas fazendas frutas
que até então eram colhidas livremente pela Mata Atlântica. As qua-
tro "famílias" citadas pela autoridade capixaba, por exemplo, não es-
tavam praticando agricultura.
Registra-se também nestes primeiros anos posteriores à Inde-
pendência uma intensa atividade extrativista da ipecacuanha, ao lon-
go das margens do rio Doce, envolvendo índios Botocudos a uma
considerável rede de comércio em torno deste produto. Tratava-se de
uma forma de exploração da flora da Mata Atlântica. A ipecacuanha
(também conhecida por poalha ou poaia) é uma planta medicinal
utilizada em larga escala, com efeitos expectorantes e, em doses maiores,
vomitório. Alguns brasileiros enriqueceram com essa atividade lu-
crativa e que, por ser extrativista, deixava aos índios que a praticavam
uma certa liberdade de movimentação na floresta, poupando-os da
sedentarização e da agricultura, embora mantendo-os vinculados ao
comércio, na medida em que se transformaram em "poalheiros". Ha-
via fartura dessa planta nas florestas da região, o que parece ter levado
a uma colheita predatória e indiscriminada. A poaia era um produto
de grande procura nas boticas (farmácias) dos centros urbanos. Para
que fizesse o efeito desejado era preciso mastigá-la bastante antes de
engolir e depois tomar uma dose de raiz-de-guiné para cessar a
expectoração ou os vômitos. 44

Ndiv Nosso Senhor disse: Não há água. No mundo inteiro não


há água. Então Ndiv Nosso Senhor falou: Eu vou lá à casa do
beija-flor, vou beber água. Aí o beija-flor não deu. Então Ndiv
Nosso Senhor disse à irara: Ó valentão, vá tomar água na casa
do beija-flor. A irara falou: Se você me pagar, eu a tomo toda.

44
Há vários registros sobre a colheita da poaia: G. Marliere, RAPM. .. , ofício
de 6-4-1825; W. Dean, 1997, pp. 147, 177, 380; Debret, 1940, prancha 9, 38.
O IMPÉRIO DO BRASIL SUBMETE OS "íNDIOS BRAVOS" 209
Ndiv Nosso Senhor falou: Pode tomar, eu dou vinte contos a
você. A irara foi à casa do beija-flor. Foi lá pedir água primeiro.
Então o beija-flor falou: Você traga dinheiro, senão eu não dou
água. Depois a Irara entrou, tirou o pote e quebrou-o. Qyebrou
o pote e o mundo inteiro tinha água. Então Ndiv Nosso Senhor
falou: Agora nós temos água. O mundo inteiro tem água. Fez
um festão de vinte dias de festa. 45

Esse relato mitológico traz elementos interessantes para co-


nhecermos de que maneira as tribos de Botocudos perceberam a in-
trodução de regras e valores comerciais para os produtos da floresta
-fatores que ocasionaram mudanças na relação entre índios e brasi-
leiros, mas também na própria relação dos grupos tribais com a natu-
reza. Percebe-se aqui que a presença do dinheiro e da exploração
comercial da floresta não destruiu a identidade étnica indígena, em-
bora tenha servido para transformá-la profundamente. Esse mito de
origem da água foi narrado de maneira sincrética, mesclando ele-
mentos da civilização ocidental (catolicismo e comércio) com tradi-
ções destes grupos, cujas relações com a Mata Atlântica eram antigas
na época da chegada dos europeus. O beija-flor (que posteriormente
será escolhido pelos ecologistas brasileiros como símbolo da Mata
Atlântica), a exemplo de outros mitos recolhidos entre os Botocudos,
aparece como o elemento criador da água. Mas aqui as relações estão
pautadas pelo dinheiro e foi preciso que o pote da água fosse quebra-
do, rompendo também a lógica comercial, para que a água se espa-
lhasse pelo mundo inteiro. Assim, invertendo o mito, a origem se
transforma em utopia e a visão do passado condicionava a expectativa
do futuro: só depois de quebrada esta relação mercantil que se im-
plantava é que todos poderiam usufruir da água, fonte da vida e de
uma relação harmônica entre os homens e a floresta.
O conjunto de contatos com Botocudos mencionado nas pá-
ginas anteriores caracteriza, como já foi dito, uma forma de inclusão
subalterna à sociedade nacional que se edificava. Pode-se constatar
que as próprias frentes de expansão, muitas vezes, incorporavam os
índios em suas flleiras como batedores, trabalhadores braçais para
abrir caminhos na floresta e mesmo como proteção contra os índios
hostis (Figura 26). Foi uma tendência que se acentuara durante a

45
Narrativa recolhida por Egon Schaden, 1947.
210 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

Guerra de 1808-1824 e que ganharia ainda mais força após a Inde-


pendência, persistindo no raiar do século XX: a utilização do traba-
lho indígena, inclusive de Botocudos, nas frentes de expansão.

Figura 26

Havia simultaneamente Botocudos que não aceitavam esta


pacificação (e suas consequências) oferecida pelo Império e conti-
nuavam a guerrear. Os relatos de ataques a propriedades e quartéis
e outras formas de resistência dos índios são constantes nas décadas
de 1820-1830, o que mostra que os Botocudos continuavam a in-
terferir como agentes históricos vigorosos no período pós-Inde-
pendência.
Ainda em 1825 autoridades capixabas lamentavam a grande
despesa com construção de casas para Botocudos que fugiam para as
selvas, deixando os imóveis vazios. Qlatro anos depois constava de
dados oficiais que não havia nenhum Botocudo aldeado em Sousa
(Linhares), localidade construída para este fim duas décadas antes. 46

46
Ofícios de 4-8-1825, p. 62 e de 25-12-1829, p. 179, Série Accioly, Livro
67, Apes.
O IMPÉRIO DO BRASIL SUBMETE OS "íNDIOS BRAVOS" 211
Dois soldados brasileiros foram mortos pelos índios no Al-
deamento de São Pedro de Alcântara em 1826, o que ocasionou uma
mensagem quase atrevida do governante capixaba ao governo central.
Escreveu Inácio Accioli ao ministro José Feliciano Fernandes Pi-
nheiro, visconde de São Leopoldo:

"V. Excia. terá a bondade de fazer presente a S.M.I. [Sua Ma-


jestade Imperial] certificando à V. Excia. que estes Selvagens
apesar do bom acolhimento que se lhe faz não se esquecem as
vezes de nos atraiçoar quando podem."47

Em outros termos, o que o chefe do governo local dizia era


algo como: é muito fácil querer ser progressista e civilizado no con-
forto da Corte, enquanto nós aqui é que temos de enfrentar os confli-
tos. O governante capixaba não parecia interessado em coibir as vio-
lências cometidas contra os índios e as determinações do governo
central nesse sentido eram visivelmente dribladas.
Na mesma época registram-se confrontos nos arredores de
Linhares. Dois Botocudos que serviam de intérpretes aos militares
foram mortos a flechadas por outros Botocudos que, vindos da parte
norte do rio Doce, mantinham a guerra com os brasileiros. 48 Mais
uma vez se verifica o ataque contra índios que não só aceitavam con-
viver com os brasileiros, mas que funcionavam como agentes das po-
líticas civilizatórias. O gesto de matar os índios que assumiam tal
papel é expressivo e certeiro: da mesma maneira que a presença da
sociedade brasileira destruía os modos de vida e as próprias vidas em
muitas tribos, havia um movimento de vingança e de revide, buscan-
do destruir justamente os índios que simbolizavam, na prática, o êxito
da colonização e da Conquista.
A resistência guerreira dos índios às frentes de expansão per-
manecia. A fazenda Moribeca, no Espírito Santo, ficara conhecida
na região como local de escravidão indígena, chegando a haver re-
clamações do governo imperial a este respeito, sem falar que foi nela
que surgiu uma das epidemias de varíola que matou muitos índios.
Em 1825 esta propriedade foi atacada pelos Botocudos, que fizeram

47
Correspondência da Presidência da Província do Espírito Santo ao Ministério do
Império, 12-6-1823, AN.
48 Ibidern, 22-4-1825, AN.
212 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

grandes estragos. No mesmo momento mais uma estrada estava sen-


do aberta, ligando Itapemirim a Minas Gerais. Trabalhavam na cons-
trução desta via alguns índios Puris que foram atacados pelos Bo-
tocudos. O sargento-mar Manuel José Esteves Lima perseguiu o grupo,
matou três índios e prendeu uma mulher e um menino. O barão de
Valença escreveu, do Palácio do Rio de Janeiro, lamentando o ocor-
rido e reiterando as propostas de civilização pela pacificação, porque
desta "resultta o maior proveito a este Império". 49 Não consta dos
documentos oficiais nenhuma punição ao referido sargento-mar.
Qyanto ao aspecto proveitoso citado pelo ministro do Império, vale
lembrar que ele próprio, Estêvão Ribeiro de Resende, futuro marquês
de Valença, era natural das Minas Gerais, proprietário de terras na
província e um dos sócios da Companhia Brasileira do Rio Doce,
associação entre investidores brasileiros e ingleses que pretendia ex-
plorar as riquezas das terras indígenas. O assassinato dos Botocudos
poderia servir como "limpeza do terreno" feita pela administração
pública, visando interesses dos proprietários.
Mas persistia a reação dos índios, exasperando militares que
deveriam combatê-los. Veja-se as correspondências de João Antônio
Lisboa, comandante do Qyartel de Sousa (Linhares), que em 1829
enviou sucessivas mensagens ao presidente da província do Espírito
Santo, Inácio Accioly Vasconcelos, dando conta "das afflições que
tenho por ver a abundância dos botecudos que sahem do matto" e
que, premidos pela fome, alimentavam-se nas roças de propriedades
locais, além de cercarem constantemente o quartel- o que levava o
referido comandante a sentir-se inseguro e pedir com insistência re-
forço de mais soldados e orçamento para alimentar os índios. Por fim,
o mesmo João Antônio Lisboa solicita demissão ou transferência do
cargo, por não aguentar a pressão dos Botocudos. 50
A resistência indígena continuaria no período Regencial, diante
das legislações e projetas que intensificavam o cerco. Mesmo entre os
que aceitavam convivência com a sociedade nacional, explodiam situa-
ções de conflito localizado. Como no episódio do Qyartel de Divisão
da V Linha, em Linhares, quando um soldado deu uma bofetada num
chefe Botocudo em 1834. Do entrevera resultou que os índios atacaram

49
Registro da Correspondência do Espírito Santo . .. , 18-10-1825, AN.
50Ofícios de 10-3, 14-3, 2-5, 15-9 e 4-10 de 1829, pp. 145-60, Série Accioly,
Livro 67, APES.
O IMPÉRIO DO BRASIL SUBMETE OS "íNDIOS BRAVOS" 213
a unidade militar levando alimentos e espingardas e matando dois sol-
dados, enquanto outros dois conseguiram escapar a nado agarrados em
troncos de madeira pelo rio Doce. O corpo de um dos soldados teve
a carne da perna arrancada, gesto que parece reiterar uma tradição
guerreira dessas tribos, descarnar corpos de adversários. É sugestivo
notar que a acusação de antropofagia não aparece mais no discurso
das autoridades, embora a vista de cadáveres mutilados ou descarnados
pelos índios tenha sido o principal indício de acusação de canibalismo
em outros tempos. No ano seguinte, na mesma localidade, o clima de
tensão permanecia, como se percebe nas queixas de que os índios Bo-
tocudos "vêm e vão quando querem, andam nus, o que sem duvida he
uma grande indecência para o povo desta villa". 51 O conflito permane-
cia, mesmo que assumisse dimensões bélicas apenas em momentos
agudos. Aparecem nestas falas de autoridade local do Brasil oitocentista
a resistência indígena através do nomadismo, traço marcante de suas
culturas, resultando em modo de utilização das terras antagônico ao re-
gime de propriedade privada que se alastrava, além de se contrapor aos
códigos culturais básicos da civilização ocidental ao permanecerem nus.

***
Vimos nas páginas anteriores o efeito das frentes de expansão
(mineração, comércio e agricultura) na vida dos Botocudos, causan-
do perda de territórios, escravidão e mesmo fome crônica. Mas a
integração desses índios à sociedade nacional no período pós-Inde-
pendência, consequência também da Guerra de 1808-1824, tinha mais
duas vias: a ida aos centros urbanos e a captura de crianças.
Ao longo do Primeiro Reinado continua e se intensifica o mo-
vimento de índios em direção à capital do Império, semelhante ao
que ocorrera no período joanino. O pintor francês Jean-Baptiste Debret
presenciou vários índios, entre eles Botocudos, trazidos para a capital
do Império, onde eram objeto de curiosidade da população (inclusive
do próprio artista) e, depois de ficarem hospedados no Campo de
Santana, eram levados para trabalhar nas obras públicasY
D. Pedro I se ocuparia diretamente dos Botocudos. Seguindo o
exemplo de seu pai e antecessor, o imperador também incentiva a

51 Ofícios de 31 -1- 1834, p. 299 e de 3-3-1835, p. 327, Série Accioly, Livro

67, APES.
52 Debret (1940, pp. 7-8) .
214 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

vinda de alguns Botocudos para a capital do Império, de acordo com


a correspondência do ministro Estêvão Ribeiro de Resende, marquês
de Valença, ao governo do Espírito Santo:

Manda Sua Magestade o Imperador, pela Secretaria d'Esta-


do dos Negocios do Imperio, que o Presidente da Província
do Espírito Santo remetta a dita Secretaria dous Indios, que
não excedão a doze annos de idade, e manifestem bem formada
constituição, e viçosa; para serem educados em um Collegio
[... ].

Tal pedido de D . Pedro I fora feito na véspera do Natal de


1824, como se, mesmo sem perceber, estivesse propondo o nascimen-
to de um novo tempo para esses índios, que deveriam ser retirados
das aldeias e dos conflitos que as envolviam para, de alguma manei-
ra, se incorporarem à sociedade nacional. Semanas depois, o impe-
rador acusa a "remessa" de dois índios menores de idade que foram
recolhidos ao Seminário São Joaquim, onde seriam submetidos "com
todo zelo de discrição no trato" ao ensino, à educação e à religião
católica. 53
Em seguida D. Pedro solicita que mais oito índios fossem envia-
dos à Corte nas mesmas condições. Os pedidos também se referiam a
jovens, meninos. Foram reunidos apenas cinco Botocudos, julgados
em condições de atenderem à demanda, por já estarem numa fase
inicial de contato com a sociedade brasileira. A Portaria Imperial de
24 de dezembro de 1824 acusa a remessa de José Ponamgran (batiza-
do e até então criado na casa do soldado da 6.• Divisão do Rio Doce,
Joaquim de Sousa), José Haume (batizado e oferecido pelo cabo da
mesma Divisão, José Monteiro), Lino Bokeune Tanuk (batizado e
oferecido pelo soldado da mesma Divisão, Manuel de Araújo), Ik-
nuk (apontado como catecúmeno e oferecido pelo cabo Simplício
Roiz de Medeiros) e Krene-mang (também chamado de catecúmeno
e oferecido pelo alferes Joaquim Roiz de Vasconcelos). 54
Esta simples lista oferece aspectos interessantes. Primeiro, quanto
aos nomes, confirmando que estes índios batizados ganhavam um

53
Registro da Correspondência do Espírito Santo . .. , 24-12-1824 e 22-5-1825,
AN.
54
G . T. Marliere, RAPM.. ., ofício de 6-4-1825.
O IMPÉRIO DO BRASIL SUBMETE OS "íNDIOS BRAVOS" 215
prenome português e mantinham o sobrenome indígena, embora apa-
rentemente esta regra não se mantivesse para os descendentes. Ou
seja, o sobrenome indígena não virava identidade familiar e nem se
transmitia hereditariamente, como os sobrenomes de origem europeia:
pareciam funcionar como etiqueta étnica e como expressão da fase
lubrida que estes jovens índios recém-batizados viviam, mal saídos
da tribo e ainda não incorporados à sociedade brasileira. Qyanto aos
não batizados, ostentavam somente o nome indígena. O batismo apa-
recia como forma de incorporação, mas também de proteção dos ín-
dios diante dos que pretendiam eliminá-los: o índio batizado era cristão,
tinha alma e portanto sua vida deveria ser preservada.
Se o batismo visava evitar o extermínio, ele significava ao mes-
mo tempo uma incorporação subalterna e uma tentativa de negação
ou ocultação da identidade étnica. O contato mais estreito com os
não índios poderia significar a destruição pelas doenças ou pela con-
dição social, associando assim o batismo com a morte. A lista desses
cinco jovens Botocudos requisitados por D. Pedro I mostra também
que, na medida em que os índios eram "oferecidos" ao imperador, é
porque eles pertenciam a alguém- o que mais uma vez indica rela-
ção de posse de vidas humanas no período nacional brasileiro. Den-
tro da perspectiva ocidental, o homem civilizado tinha direito de
possuir a Natureza, os animais e os selvagens, isto é, tudo aquilo que
lhe fosse inferior ou não civilizado. Pode-se neste caso até especular
se haveria uma relação de violência, de trabalhos forçados, ou de
proteção e educação, ou todos estes aspectos misturados nesta posse
de crianças indígenas. Mas o que havia aqui era escravidão e não
incorporação à família - pois ninguém ofereceria um membro de
sua própria família como doação. Isso mostra também que havia en-
tre os soldados que cercavam os índios Botocudos este hábito de
guardar para si as crianças - das quais é possível que os pais tenham
sido mortos em combate. O que significava, para esses jovens índios
- curucas, como eram chamados no idioma dos Botocudos, expres-
são repetida pelos não índios - não o extermínio de suas vidas, mas
um tipo de inserção subalterna na sociedade.
Essa preocupação de utilizar as crianças indígenas como veícu-
los de incorporação era típica na formação da sociedade, hábito que
vinha desde os primeiros tempos das Descobertas. Gilberto Freyre,
ao analisar a presença indígena no seu modelo de formação da famí-
lia e da sociedade patriarcal, destacou que as crianças (e as mulheres)
216 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

foram principais responsáveis pelas marcas da presença indígena na


sociedade brasileira. 55 Segundo o sociólogo, os homens, em geral, ou
eram eliminados na guerra ou dizimados no trabalho escravo. Mas os
curucas tapuias ou curumins tupis, desde os tempos das Missões
jesuíticas, eram levados para os Colégios (Conventos). Esses Colé-
gios exerciam papel semelhante ao da Casa-Grande para os jovens
indígenas - local onde eles faziam sua incorporação na sociedade
conquistadora e também, de alguma maneira, deixavam sua influên-
cia na cultura, nos jogos, brincadeiras, comportamentos e na "mistu-
ra" com os não índios. O que predominava em relação às crianças dos
Botocudos era a escravidão - cujo tráfico chegou a se tornar consi-
derável em Minas Gerais e Espírito Santo no século XIX.
Em fins do Primeiro Reinado, por exemplo, autoridades ca-
pixabas registraram em Linhares a captura de "dous machos e três
fêmeas" Botocudos. Esclareceu-se a seguir que eram crianças de três
a doze anos destacadas para "aprender officios". O mesmo relatório
indicava que a menor de todas, com três anos, estava muito doente e
que duas meninas de doze anos ''já tiverão maridos". Nas entrelinhas
colocava-se, com disfarce precário pelas palavras, a exploração sexual
e do trabalho de crianças índias. 56
"Ha muitos Portuguezes Indios em Minas", alertava o francês
Guido Marliere. A integração do índio à família patriarcal no Brasil
ocorreu marcada pela escravidão e pelo esmagamento da identidade
cultural - embora ainda não tenha sido bem dimensionado o outro
lado da moeda, isto é, a presença e a herança indígenas na identidade
nacional. A denúncia do preconceito contra os índios e seus descen-
dentes não era uma quimera do Diretório do marquês de Pombal,
mas ocorria de maneira vigorosa. Apesar desse processo de opressão,
é possível falar em resistências e permanências indígenas.
Mas o momento de fundação do Estado nacional brasileiro não
precisa ser visto, sempre, do ponto de vista das mudanças. A nação
recém-independente estava enraizada numa sociedade que não se trans-
formava tão rapidamente. Independência podia também estar ligada à
tradição. A questão da pluralidade de etnias, comunidades e identida-
des no território que se transformava institucionalmente em nação

55 G. Freyre. Casa-grande e senzala ... , pp. 88-187.


56 Ofício de João Antonio Lisboa em 12-1-1830, Série Accioly, Livro 67, p.
87, Apes.
O IMPÉRIO DO BRASIL SUBMETE OS "íNDIOS BRAVOS" 217
brasileira era bem complexa. Sobretudo diante do conceito moderno
de nação, que implica homogeneidade e progresso. 57
Aqui valem rápidas palavras - no âmbito deste trabalho -
sobre a complexa relação entre os grupos étnicos presentes no território
brasileiro em fins do século XVIII e começo do XIX. Para citar apenas
alguns elementos, lembramos diferentes grupos indígenas, diversas
origens entre escravos africanos, ciganos, sem esquecer os vários tipos
de mestiçagem e a inserção dos mestiços na sociedade luso-brasileira
e, ainda, o papel desempenhado pela Coroa e por outras instituições.
Essa teia de relações foge a esquemas explicativos simplistas ou ma-
niqueístas e tem sido estudada sob vários aspectos. No tocante aos ín-
dios, se fica difícil conceber o predomínio de um processo pacífico de
integração com a sociedade (e a visão de Gilberto Freyre está eivada
de uma certa docilidade patriarcal e também da afl.fmação da passivida-
de indígena), não é possível também abordar exclusivamente o antago-
nismo, a destruição - o que acaba levando ao negativismo de anular
a força dos índios que deixaram suas marcas na sociedade. Por outro
lado, fica difícil aplicar para a época esquemas triunfalistas que ten-
tam construir a imagem de uma aliança entre alguns destes grupos
"dominados"- unificação que praticamente não ocorreu na época
- sobretudo no caso dos Botocudos, a não ser em casos individuais.
Dois anos após a Independência, as mentalidades e as institui-
ções não haviam mudado tanto assim, pois o ministro Estêvão Ribei-
ro de Resende, marquês de Valença, talvez sensibilizado pela véspera
de Natal em que escrevia a correspondência, recomendava que Bo-
tocudos conduzidos ao Rio de Janeiro fossem "tratados de maneira
propria a fazer-lhes menos sensível a reprovação dos lugares em que
nascerão".58 Reprovados pelo local onde nasceram. Esta simples fra-
se do ministro (que nasceu em Minas Gerais, seria senador pela pro-
víncia e conhecia bem a mentalidade de seus conterrâneos) mostra,
ao mesmo tempo, a matriz ilustrada de suas concepções e o peso que
a sociedade brasileira jogava sobre os índios. Além da guerra feita
com pólvora, chumbo, bala e armas brancas, havia outra peleja, de
gestos, palavras e atitudes, mas também com efeito destrutivo.

57
Sobre as concepções modernas de nação diante de sociedades multifacetadas
e os processos de Independência no mundo ibero-americano, v. F.-X. Guerra. Modernidad
e independencias . .. , 1992.
58
Registro da Correspondência do Espfrito Santo . .. , 24-12-1824, AN.
218 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

Simultânea ao preconceito e à guerra, as alianças ocorriam,


mesmo entre soldados e índias das tribos de Botocudos. Num relato
sobre deserção no Q!artel de Linhares, Espírito Santo, fala-se do
soldado Inácio que fugiu acompanhado de sua esposa "Marianna India"
e de seu ftlho "Marianno", como de "Florinda Maria India" que tam-
bém morava no local. 59 Entre segregação e incorporação, entre guer-
ra e casamento, dava-se o contato dos Botocudos com a sociedade
luso-brasileira, contatos que caracterizam as relações humanas ao
longo dos tempos. O mito do Botocudo indomável e inatingível, criado
nos tempos coloniais como justificativa para violências desmedidas
sobre as tribos, pode significar mais uma tentativa de negar-lhes a
condição humana.
Em meio à troca de correspondências sobre o combate aos Bo-
tocudos, as autoridades se preocupavam também com outros grupos
tidos como desviantes. Em Campos dos Goitacazes foi detectada
ameaça:

[...] bando de Siganos de mais de vinte pessoas armadas, entre


brancos, mulheres e escravos, que no Districto de sua Jurisdi-
ção roubavão e espancavão, sem temor e respeito da Authoridade
de Vossa Mercê. 60

Havia, portanto, escravos entre os ciganos, embora não se saiba


aqui qual tipo de relação se estabelecia entre ambos. O referido ban-
do acabou detido pela polícia em Cantagalo (RJ).
Em regiões ainda ocupadas pelos Botocudos após a Indepen-
dência registra-se também o aparecimento de quilombos e rebeliões
escravas. Num desses casos, dezesseis cativos negros (sendo cinco
mulheres) fugiram de fazendas nos sertões de Biririca, nos arredores
de São Mateus, Espírito Santo, em abril de 1823. 61 De posse de
armas, os quilombolas atacaram o Q!artel dos Macacos, ocasião em
que morreram um soldado, três escravos e uma escrava, e duas foram
capturadas vivas. As tropas brasileiras adentraram no mato com o
objetivo de destruir o quilombo que principiava, "para soccegar o

59
Correspondência da Presidência da Província do Espírito Santo . . ., 11-11-1817,
AN.
60
Registro da Correspondência do Espírito Santo. .. , 4-7-1815, AN.
61
Correspondência da Presidência da Província do Espírito Santo . .. , 19-4-1823,
AN.
O IMPÉRIO DO BRASIL SUBMETE OS "íNDIOS BRAVOS" 219
Povo das Roças, que vive muito amedrontado dos taes Negros, que
não respeitam a ninguem". Apenas quatro fugitivos, dois homens e
duas mulheres, foram encontrados e os outros seis estavam ausentes
na hora do ataque. O tenente João Antônio Lisboa, comandante do
Destacamento do Qyartel dos Macacos, cortou a cabeça dos quatro
prisioneiros e espetou-as em estacas que foram espalhadas em dife-
rentes partes da cidade de São Mateus. Era o espetáculo punitivo
para aterrorizar outros escravos e acalmar os proprietários. Mais uma
vez se constata que a mutilação de cadáveres não era praticada ape-
nas pelos Botocudos. Esta saga guerreira de militares brasileiros foi
narrada em ofícios enviados ao Comandante das Armas da Provín-
cia e ao ministro José Bonifácio de Andrada e Silva- que não fize-
ram, ao que consta, nenhuma condenação ou reprimenda aos seus
subordinados. 62
A relação entre escravos africanos e Botocudos era complexa.
Segundo o relato de uma autoridade colonial, em 1798, um grupo de
Ambarés/Botocudos se aproximou de alguns negros aquilombados
no riacho Jenipapo, afluente do Jequitinhonha, convidando-os a irem
a um local onde haveria ouro. Lá chegando, os três escravos que
haviam acompanhado os índios foram atacados traiçoeiramente. Um
dos cativos, ferido, conseguiu escapar e contou o que ocorrera. Um
grupo armado seguiu para o local e encontrou ossadas tostadas e
roídas. O "testemunho desta abominavel comida", de acordo com o
mesmo relato, foi enterrado no cemitério do aldeamento dos Tocoiós. 63
Em contrapartida, entre os intérpretes dos contatos entre os índios e
não índios, Saint-Hilaire registrou em sua viagem ao rio Doce em
1817 um negro escravo que dominava o português e a língua dos
Botocudos - o que indica que havia também espaços de convivência
e que os escravos de origem africana poderiam servir de intermediá-
rios culturais entre índios e nacionais.
Assim, superar a pluralidade de grupos étnicos era um dos de-
safios que se punham aos construtores da nação brasileira no século
XIX. Neste alvorecer da nacionalidade não houve escolha entre In-
dependência ou morte para os índios: a perspectiva oferecida era a

62
Ibidem.
63 J. P. Freire de Moura. "Noticia e observações sobre os índios Botocudos que
frequentam as margens do rio Jequitinhonha e se chamão Ambarés ou Aymorés"
[1809]. ln: RAPM, II, 1897, pp. 28-36.
220 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

morte, cultural ou física. Entretanto, os índios, enquanto agentes his-


tóricos, dariam respostas inusitadas a estes mesmos desafios.
A síntese da situação dos Botocudos nos anos que sucederam a
Independência pode estar no desabafo de Cuido Marliere que vivia
imerso nesta questão. Ao saber de mais um desses episódios de vio-
lência, quando "huns Brazileiros endiabrados" invadiram o aldeamento
Cachoeirinha, em Belmonte, e mataram dois índios Botocudos, em
1824, o francês desabafou:

Pois quando S.M. [Sua Majestade] o Imperador manda dar


agazalho aos seus Indios, os seus proprios Soldados lhes attirão,
sem provada necessidade? 64

Justamente quando as autoridades da Corte rejeitam as guerras


ofensivas e passam a assumir um discurso civilizatório pacifista e
"desenvolvimentista" (colonizadores "mansos"), para os índios, entre-
tanto, este momento significa, na prática, recrudescimento da coloni-
zação "brava". Agrava-se o aniquilamento dos grupos indígenas nos
vales dos rios Doce e Jequitinhonha: acossados pelas frentes de ex-
pansão, controlados pelos aldeamentos, atacados por autoridades e
proprietários locais, contaminados por epidemias, induzidos a se in-
serirem nas atividades produtivas, escravizados, embriagados, sofren-
do abusos sexuais, desterritorializados, cooptados para atividades mi-
litares, enviados para trabalhos urbanos e colégios religiosos ... A
sociedade hierárquica e escravista do Império brasileiro, buscando se
estabelecer num modelo progressista de nação - monárquico cons-
titucional, homogêneo e unitário -tentava esmagar as pluralidades.
O auriverde pendão não se rasgava numa batalha, mas servia a estes
povos de mortalha, à qual os índios chamados de Botocudos ainda
resistiam e não se deixavam facilmente destruir.

64
G. T. Marliere, RAPM. . ., ofício de 14-12-1825.
Capítulo 7
O MAU SELVAGEM: ROMANTISMO,
HISTÓRIA E CIVILIZAÇÃO

Seria possível romantizar os Botocudos? A resposta predo-


minante, no plano literário, foi transformá-lo em vilão, estereótipo
do mau selvagem, sugestiva herança recuperada dos autores coloniais
por seus "descendentes" brasileiros do século XIX, que não pareciam
dispostos a assimilar os recentes relatos etnográficos de cientistas e
pintores europeus que compunham uma imagem razoavelmente cor-
dial para os "índios bravos". Ainda assim, ocorreram tentativas de
romantização dos Botocudos, seja no terreno das relações diretas, atra-
vés do francês Guido Marliere, quanto nas páginas de um dos primeiros
romances publicados no Brasil por Teixeira e Sousa. Havia conver-
gência entre o aparecimento de um ideário romântico indianista e a
perseverança, neste sentido incômoda, de populações indígenas que
mantinham atitudes de resistência, gerando uma situação paradoxal.
A mesma pergunta talvez tivesse um prerrequisito: seria possí-
vel civilizar os Botocudos? Além de Marliere, a questão mereceu
tentativas práticas de envergadura, destacando-se as ações de Teóftlo
Ottoni. E nesta fronteira difusa entre letras e empreendimentos, uni-
dos na gestação de nacionalidade, autores românticos tiveram visões
díspares e travaram debates em história e literatura, nos quais trans-
parecia a presença contemporânea dos "índios bravos" nos territórios
continentais do Brasil. Como os intelectuais letrados e os índios
Botocudos lidaram, respectivamente, com tais desafios?
O indianismo, literário ou alegórico, foi de algum modo esva-
ziado ou contido nas quatro primeiras décadas do século XIX no
Brasil em razão da presença ainda expressiva do "problema" indígena
221
222 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

em amplas partes do território- também no que seria a região Su-


deste. A presença de índios vivos e ao vivo ocupando expressivas fai-
xas de terra, corporificados nos centros urbanos, opondo resistências
e mantendo importantes aspectos de suas identidades culturais, a nar-
rativa constante de conflitos, mortes e escravidão envolvendo popula-
ções indígenas e brasileiros, não apenas na periférica região amazô-
nica, mas em províncias próximas do centro de poder imperial, se
constituíram em obstáculo a ser considerado para a elaboração de um
imaginário indianista que pudesse brotar livre de constrangimentos
ou de contradições evidentes. E mais particularmente quanto aos ín-
dios que apresentavam formas mais e contundentes de resistência aos
padrões civilizadores da sociedade nacional, gerou-se um antagonis-
mo que se expressava, também, no plano do ideário Romântico. Como
transformar tais "índios bravos" em personagens históricos ou estéti-
cos? Essa questão, gerada em boa medida pelas próprias iniciativas
dos índios, ocupou considerável espaço entre a intelectualidade e os
homens de poder da época.
Para ficarmos no âmbito geográfico deste trabalho, vimos nos
três capítulos anteriores a significativa visibilidade de índios em Minas
Gerais, Bahia e Espírito Santo com diversos modos de vida: contatos
intermitentes ou permanentes, tribos nômades ou sedentárias, destriba-
lizados ou guerreando, escravizados ou incorporados como cidadãos.
Sem esquecer que na província do Rio de Janeiro ainda existiam quin-
ze aldeamentos com etnias identificadas ao longo do século XIX, além
dos indivíduos que afluíam às cidades, desgarrados das tribos.1 As
elites culturais e políticas não poderiam estar alheias a esse contexto.

***
É verdade que surgiram ensaios de representação indianista,
embalados pela sensibilidade patriótica e mesmo romântica que dis-
cretamente ganhava terreno nas três primeiras décadas do século XIX.
Mas se tratava em geral do índio alegórico, não do índio persona-
gem, para retomar a terminologia de Antonio Candido. 2 No caso do
poema épico Uraguai (1769), de Basílio da Gama, a alegoria indianista
situava-se mais no plano de uma identidade cultural geograficamente
1
Cf.levantamento em Bessa Freire &Malheiros.Aideamentos indígenas no Rio de
janeiro. .. cit.; v. também M. S. Lemos. O índioviroupódecaft?. .. eJ. N. S. e Silva. Me-
mória lústórica e documentada das aldêas dos índios da província do Rio de Janeiro...
2
A. Candido. Formação da literatura brasileira. .. , vol. 2, p. 21.
O MAU SELVAGEM: ROMANTISMO, HISTÓRIA E CIVILIZAÇÃO 223
localizada, mas não usava o elemento indígena como base simbólica
de uma identidade nacional.
Não é curioso, por exemplo, que o jovem príncipe português
Pedro de Alcântara, ao entrar para a maçonaria em 1822, tenha esco-
lhido o pseudônimo Guatimozim, o último "imperador" asteca morto
pelos espanhóis? O mesmo D. Pedro, como imperador, submeteria os
"índios bravos" do Brasil, aos quais, por isso, não poderia erguer em
símbolo pátrio. Daí que a escolha de seu apelido tenha recaído para
os índios que resistiam. . . aos espanhóis no século XVI, não aos
brasileiros do XIX.
Na mesma linha vale lembrar o talentoso baiano mulato, Fran-
cisco Gomes Brandão: optou pelos sobrenomes de Jê Acaiaba Mon-
tezuma, temperando a nova identidade simbólica tapuia com dois
sobrenomes igualmente oriundos de indígenas da América espanho-
la, aludindo ao soberano asteca que morreu de maneira heroica de-
pois de capturado pelo conquistador espanhol Cortez. Escolha feita,
aliás, antes de Francisco Gomes Brandão se tornar visconde de Jequi-
tinhonha, nome do território habitado, entre outros, pelos Botocu-
dos, justamente na época em que estas tribos foram mais combatidas
e espoliadas na região. A opção por um certo "anticolonialismo" cultu-
ral direcionado para os indígenas da América espanhola parecia ser
uma tentativa de escapatória, no plano simbólico, para uma questão do
tempo presente do Brasil na época da Independência. E mesmo os
títulos de nobreza que, no primeiro Reinado, tinham nomes oriun-
dos de palavras indígenas (como José da Silva Lisboa, visconde de
Cairu e José Egídio Gordilho, visconde de Camamu, por exemplo),
em geral referiam-se à toponímia e não diretamente à nomenclatu-
ra indígena.
Sem esquecer o jornal O Tamoio, do Rio de Janeiro em 1823,
inspirado politicamente por José Bonifácio e seus irmãos Andradas
(formados e oriundos na constelação luso-brasileira de fins do século
XVIII), mas que, apesar do título, não aprofundava em suas páginas
as metáforas indianistas. Ao contrário, esse jornal mantinha uma dose
de ambiguidade, pois tamoio era um dos nomes atribuídos às tribos
tupis estabelecidas no Rio de Janeiro no século XVI- grupos que
ficaram conhecidos por combaterem os portugueses, daí a oportuni-
dade da comparação na época da Independência. Entretanto, em ou-
tros momentos, grupos chamados de tamoios também se aliaram aos
portugueses.
224 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

Outro dado interessante são as mudanças de nomes, quando


indivíduos passaram a adotar sobrenomes patrióticos após a Indepen-
dência. Entretanto, em lista onomástica publicada em jornais do Rio
de Janeiro e Pernambuco logo após a aclamação de D. Pedro I como
imperador, dos onze nomes alterados, quatro foram para animais (Peri-
quito, Papagaio, etc.) e sete para vegetais (Jacarandá, Malagueta, etc.).
E nenhum novo sobrenome indígena neste caso. 3 A representação
simbólica da pátria parecia estar mais vinculada, nestas opções, ao
chamado reino da Natureza (fauna e flora), evitando-se sobrenomes
indígenas, embora estes tenham ocorrido. Veja-se, nesta linha, o caso
do major pernambucano Emiliano Filipe Benício, mulato e simpati-
zante da revolução dos escravos do Haiti, que adotou o sobrenome
Mundurucu, relativo aos índios conhecidos por sua resistência guer-
reira aos colonizadores na Amazônia. Ou ainda outro major, Joaquim
Antônio de Macedo, que no Rio de Janeiro incorporou o sobrenome
Tupinambá. Estes dois últimos exemplos de metamorfose onomástica
referem-se a personagens dos anos 1820-1830 identificados aos libe-
rais Exaltados, participando em tentativas de insurreição armada e
com críticas mais agudas ao poder vigente. O que permite formular a
hipótese de que a adoção de cognomes indígenas, neste contexto ime-
diato pós-Independência, poderia estar vinculada a posições poüticas
mais radicais. Ou seja: o conflito entre as populações indígenas e a
sociedade nacional, quando transposto para a instância simbólica das
metamorfoses de nomes, corresponderia a uma posição poütica tam-
bém de contradição mais evidente.
As alegorias indígenas, em contrapartida, apareceram em al-
gumas iconografias e obras literárias desde o período do governo de
D. João VI, sobretudo alinhadas a uma certa tentativa de construir
uma identidade brasileira de moldes americanos, diferenciada da
europeia, mas não configuraram um movimento orgânico e substan-
cial, nem propriamente uma expressão nacionalista. Qyase sempre
retratavam um índio sem etnia definida ou referenciado em épocas
remotas.
O embrião do Romantismo e a preocupação de civilizar dos
índios confluíam no sentido de se edificar uma nação moderna no
Brasil. É interessante, porém, lembrar que o termo nação sempre foi

3
Cf. Gazeta Pernambucana. Recife: Typographia Cavalcante & Companhia, n."
5 (27-11-1822), transcrevendo Diário de Rio de janeiro, n.0 9 (10-10-1822).
O MAU SELVAGEM: ROMANTISMO, HISTÓRIA E CIVILIZAÇÃO 225
4
polissêmico. Até então tinha vários sentidos, mas podemos destacar
os que predominavam. Um dos mais tradicionais entendia nação como
"nome coletivo que se diz da Gente". 5 Ou seja, não se tratava de um
corpo político ou territorial definido, mas remetia à noção ampla de
coletividade. De algum modo, os demais sentidos derivam desse, ain-
da que modificados ou mais definidos.
"Nação" servia também para designar uma mesma origem ou
identidade étnica. Assim, havia referências aos escravos africanos da
"nação Mina", por exemplo, bem como era comum falar da "nação
dos Carijós", ou seja, para designar tribo ou conjunto de tribos per-
tencentes a um mesmo grupo etnolinguístico ou oriundas de uma
mesma região. Havia também a concepção tradicional de "Nação"
europeia que, por sua vez, era também diversificada. Nessa linha,
temos a "Nação" dos tempos medievais, plural, formada por um con-
junto de reinos, senhorios, principados ou províncias. Esta concepção
era anterior ao Estado-Nação absolutista, que predominava ainda no
começo do século XIX, baseado na unificação nacional em torno de
um Estado centralizador. E o que marca esse período é justamente a
expansão das "novas ideias" que desembocaria num Estado-Nação
fundado no liberalismo constitucional, ou seja, a ideia moderna de
nação homogênea como expressão da união (ainda que por alcançar)
do conjunto de indivíduos soberanos, livres e iguais.
A própria Encyclopédie, obra referencial da Ilustração francesa,
definia sauvages (selvagens) como "peuples indiens quine sont point
soumis au joug du pays, & qui vivent à-part'' (povos indígenas que
não são submetidos ao domínio do país e que vivem à parte). Desse
modo, cada grupo indígena "forme une petite nation" (forma uma
pequena nação). 6
Assim, levando em conta os significados que se cruzavam, pode-
-se dizer que havia conflito entre as nações dos Botocudos e a nação
brasileira - que herdava da nação portuguesa o antagonismo com
estes índios, no plano social, mas também no cultural, apesar das
políticas civilizadoras se diferenciarem na passagem de colônia a

4
Para a pluralidade ou mosaico político e social das sociedades ibero-america-
nas nas primeiras décadas dos oitocentos: F.-X. Guerra (1999/2000) e I. Jancsó &J.
P. G. Pimenta (1999); para a polissemia e mutações do conceito de nação, v. os textos
de A. Hespanha e F.-X. Guerra em I.Jancsó (org., 2003).
5 R. Bluteau. Vocabulario portuguez e latino . . .
6
Encyclopidie. . ., cit.
226 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

império. Ainda que seja importante não perder de vista que tais tri-
bos de Botocudos não formavam um grupo coeso e articulado entre
si: ao contrário, fracionavam-se em "bandos", de acordo com suas
organizações sociais. Todavia, estas tribos apresentavam alguma
homogeneidade pela língua, aparência física, costumes, artefatos e,
sobretudo, pela localização numa mesma e vasta área geográfica -
o que emprestava-lhes coerência. 7 No mesmo sentido, a nação bra-
sileira, embora apresentada e desejada como unívoca, era também
heterogênea.
A sociedade brasileira tinha entre seus desafios completar a
Conquista nos pontos onde ela não se resolvera nos tempos (então
bem próximos) das "trevas coloniais". E transformar um inimigo in-
terno em símbolo nacional não era tarefa que se fizesse sem contradi-
ções, sobretudo num tempo que se pretendia de Luzes. A tarefa, pois,
dos construtores da nacionalidade brasileira oitocentista colocava-se
na perspectiva de retirar os índios das pequenas nações: seja remeten-
do-os simbolicamente ao passado ou integrando-os concretamente
na argamassa da grande nação, onde, aí então, poderiam até ser er-
guidos em símbolos e alegorias nacionais.
Para que o indianismo literário e patriótico se afirmasse era
preciso resolver (ou pelo menos elaborar determinadas representa-
ções culturais e ocultações para) a questão dos "índios bravos", que
desafiava o novo Império americano. Só então o Romantismo indianis-
ta brasileiro poderia florescer sem riscos de se transformar em Rea-
lismo ...
O que aparecia nos documentos da época do processo de con-
solidação da Independência era a distinção entre índios e brasilei-
ros, sobretudo no que se refere aos Botocudos. Fala-se, por exemplo,
de um grupo de 78 mineradores compostos "entre Indios e Brasilei-
ros", em 1825. 8
A própria Constituição de 1824, ao definir no título II os crité-
rios de cidadania brasileira, ignorava a especificidade da condição
indígena, embora levasse em conta libertos, portugueses e colonos
estrangeiros. Mesmo vinculando o direito à cidadania ao local de

7
Para a identificação étnica e diversidade dos Botocudos, v. I. M . de M attos
(2004), Introdução e capítulo 3 eM. H . Paraíso (1998a e 1998b).
8
Correspondência do Presidente da Província do Espírito Santo para o Ministério do
Império, ofício de 4-8-1824, AN.
O MAU SELVAGEM: ROMANTISMO, HISTÓRIA E CIVILIZAÇÃO 227
nascimento, de residência e de propriedade, a primeira Carta brasi-
leira não considerava os índios nessas três categorias nas quais eles
poderiam ter evidente primazia. Sem direitos civis, os índios não ti-
nham direitos constitucionais e, muito menos, direitos políticos.
A visão de José Bonifácio sobre os índios era compartilhada
por grande parte das elites políticas e culturais (sobretudo nos aspec-
tos negativos, da preguiça, violência, amoralidade, etc). Sem esquecer
que o Andrada, nos seus Apontamentos sobre os índios bravos, em
nenhum momento os considera brasileiros, embora reivindique para
eles a progressiva incorporação à civilização e à nacionalidade, mas
ainda como algo por se realizar, desde que deixassem de ser índios e
se tornassem cidadãos nacionais.
Ainda na variedade das concepções de nação temos outro exemplo
em Cipriano Barata, tido como "homem de todas as revoluções" de
seu tempo e o principal expoente dos liberais Exaltados, cuja concep-
ção e tentativas práticas de Revolução eram das mais arrojadas dentro
do seu contexto. 9 Barata reivindicava, nas Cortes de Lisboa em 1822,
direitos políticos e de cidadania para os "caboclos ou índios naturaes
do país", como também para a "os mamelucos que são o produto dos
brancos misturados com os referidos caboclos" e não esquecia de in-
cluir também "mestiços que são a prole dos indios combinados com a
gente preta". Cipriano, mesmo lutando pela ampliação da cidadania
aos índios e descendentes sem exigir que eles antes se tornassem na-
cionais, mesmo com sua vigorosa busca de forjar uma identidade na-
cional brasileira através de géstos, vestuário e discursos, mesmo com
seu combate inglório contra o expansionismo inglês e contra as per-
manências do monopólio comercial português, não se vangloriava
das origens indígenas do Brasil. Percebe-se isto na citação:

[...] a pouco eramos um mixto de Tupinambás, Caités, Boti-


cudos e outros Caboculos, e gentes brancas e morenas, mistura-
dos com Portuguezes na aparencia forros, na realidade escra-
vos; mas hoje todos somos Brasileiros e formamos um só corpo,
e povo de irmãos livres, uma só palavra abrange tudo. 10

9
M . Morel. Cipriano Barata na Sentinela da liberdade. .. , 2001.
10
Sentine/la da Liberdade na Guarita do Quartel General de Pirajá. Alerta!, 12-1-
1831
228 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

Percebe-se que Barata não renega ou esconde a presença indí-


gena na formação da sociedade. Mas ele não coloca esta presença
como fator de formação da nacionalidade, o que era diferente. Im-
buído da ideia moderna de nação, homogênea, formada por um con-
junto de indivíduos livres e iguais, o político baiano destaca como
passo fundamental para realização desse projeto nacional superar a
condição pluralista e heterogênea do conjunto de etnias ou comuni-
dades (ele não esquece de citar os Botocudos) que até então compu-
nham predominantemente a tradicional sociedade da América portu-
guesa. Ainda aqui se demarca o antagonismo entre os índios e o Brasil.
Nesse sentido se compreende o escape de parcela das elites cul-
turais brasileiras em direção ao índio hispano-americano. Esta for-
mulação já constituía uma razoável tradição cultural e tinha como
uma das fontes inspiradoras um autor na época tão célebre quanto
René de Chateaubriand e cujos títulos eram verdadeiros best-se//ers
nos anos 1820, sobretudo na América do Sul: o francês Jean-François
Marmontel, cujas obras eram traduzidas para o português e espanhol.
Autor de ensaios literários como Éléménts de littérature ou do roman-
ce Be/izario, Marmontel tinha como carro-chefe o volume Os Incas
ou a destruição do Império do Peru, lançado em 1777.11 Os livros de
Marmontel representaram uma das bases de construção de uma iden-
tidade americana moderna. Este autor, típico intelectual da Repúbli-
ca das Letras do século XVIII, tinha um traço singular em seus tra-
balhos. Ele valorizava ao mesmo tempo o papel dos índios (sobretudo
da civilização inca, que foi um fenômeno pré-colombiano tardio na
América do Sul) e não condenava a ação dos Conquistadores espa-
nhóis nem rejeitava em bloco a Conquista. Ou seja, propunha conce-
ber as novas nações, no campo do imaginário político, como fruto
desta "irmandade", ainda que forçada a princípio, entre o indianismo
e a europeização. Ele criticava a "tirania" de ambas as partes, indíge-
na ou espanhola, atacava a sujeição de um povo a outro e deplorava os
"maus governos". Além do mais, o estilo de Marmontel se caracteri-
zava por uma sensibilidade dramática e grandiloquente constituindo-
-se num gênero híbrido entre o romance poético, a narrativa históri-
ca e a discussão moral. A influência deste autor sobre as concepções
indianistas das elites nacionais americanas, hispânicas e portuguesas,
foram consideráveis.

11
J.-F. Marmontel. Los Incas.. ., 1777.
O MAU SELVAGEM: ROMANTISMO, HISTÓRIA E CIVILIZAÇÃO 229
Este tipo de construção da memória era oportuno no nascente
Império brasileiro. Sobretudo porque deslocava a delicada relação
entre indígenas e Conquistadores para o contexto hispânico e para
eras remotas, poupando assim os portugueses e brasileiros de se ve-
rem representados como protagonistas deste conflito. Sem falar que
valorizava um tipo de nobreza (ainda que ameríndia), o que de certa
forma legitimava a nobreza brasileira como herdeira simbólica de
outra nobreza "original" do Novo MundoY Além disso, cristalizava-
-se a noção que atribuía às populações indígenas da América hispâ-
nica feições mais "adiantadas", por causa dos relatos dos primeiros
conquistadores e de registros de uma cultura material mais palpável e
imponente e que se contrapunha, por isso, ao "atraso" ou "primitivo"
das populações indígenas do lado da América portuguesa.

Botocudo, herói romântico?

O olhar romântico esteve mesclado, em certa medida, com o


neoclássico, no resgate de origens primitivas. Em relação aos Botocu-
dos ele parece começar com Wied-Neuwied (que os compara aos
gauleses em luta contra o Império romano), desponta de maneira
mais discreta em algumas passagens de Saint-Hilaire, surge com certa
majestade em Debret e ganha tons trágicos em Rugendas; passa por
Guido Marliere (que lhes enaltece a coragem e altivez e projeta
germanizá-los) e culmina, de maneira ambivalente, com o romancis-
ta Teixeira e Sousa. Até no célebre Madame Bovary, de Gustave Flau-
bert (1856), característico da mescla entre Realismo e Romantismo,
há rápida passagem onde a própria personagem central cita os Bo-
tocudos. Entretanto, pode-se concluir que foi descartada do projeto
nacional hegemônico a produção científica e iconográfica que pre-
tendia moldar uma imagem cordial e positiva para os "índios bravos"
contemporâneos. Apesar desses ensaios, não houve casamento feliz
entre os Botocudos e o Romantismo brasileiro.
Entre as tentativas malogradas, mas sugestivas para se compre-
ender as relações e propostas estabelecidas, temos as do francês Gui-
do Thomaz Marliere que realizou abrangente e sistemático contato
com os Botocudos nas décadas de 1810-1820, com ênfase nos méto-
dos de pacificação, não de guerra ofensiva. Ao se instalar na explosiva

12
L. Schwarcz. As barbas do imperador. .. , pp. 132-41.
230 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

fronteira dos territórios indígenas, Marliere tinha como objetivo jus-


tamente alargar as fronteiras da sociedade luso-brasileira. E nesse
sentido ele desempenhou papel importante também na época da In-
dependência e nos anos posteriores, uma vez que destoava da atitude
bélica predominante que tinham então portugueses e brasileiros nas
frentes de expansão diante destes índios. 13
Marliere destacou-se também pela "veia literária": gostava de
escrever e deixou vasta documentação (sobretudo de relatórios, mas
também artigos em jornais e até um vocabulário português-botocudo).
Entretanto, sua acuidade "etnológica", isto é, de percepção da espe-
cificidade das culturas alheias, era bem menor que a simpatia e es-
forços que dedicava ao trabalho de incorporação desses grupos à ci-
vilização ocidental. Marliere se colocava como civilizador e amigo
dos índios (não como observador científico ou adversário que visava
ocupar terras) e seus relatos, ainda que valiosos, devem ser compre-
endidos dentro de tal perspectiva: era um agente civilizador europeu,
humanista, teoricamente disponível a valorizar os índios, admirador
da cultura germânica, tocado pela sensibilidade Romântica e com
formação militar.
De onde surgiu tal figura? Nascido emJarnage, Manche, Fran-
ça, 1767, alistou-se aos dezoito anos nos exércitos de Luís XVI. Sua
juventude fora marcada pelos tempestuosos períodos da Revolução
Francesa, como ele mesmo salientou:

[...] a minha mocidade tormentoza, principiada no tumulto


dos combates e das Revoluçoens. 14

Ou ainda, numa significativa autocrítica, típica do período pós-


-revolucionário do século XIX:

[ ... ] se na minha mocidade, em lugar de ler Ponjsegur,


d'Alembert, Clairac e outros matadores de gente, tivesse estu-
dado Raynal, Pene outros amigos do Genero Humano[ .. .]_15

13
Para trabalhos com outros enfoques sobre o personagem, v. L. P do Coutto
Ferraz. Biografia de Cuido Marliêre e Pocrane ...
14
Documento de 7-1-1825, RAPM, X.
15 Documento de 11-7-1825, RAPM, X.
O MAU SELVAGEM: ROMANTISMO, HISTÓRIA E CIVILIZAÇÃO 231
Se ele possuía simpatias pelas ideias revolucionárias (ou pelo
menos Ilustradas), como deixa entrever, entretanto, em 1791, deserta
e abandona o país natal. Este ano marca um momento de radicalização
do processo revolucionário francês, com a prisão do rei e o enfraque-
cimento dos Girondinos ou revolucionários moderados, que defen-
diam a manutenção da monarquia constitucional. A saída de Marliêre
neste momento permite de alguma maneira associá-lo a esta tendên-
cia. Ele passa então a integrar as tropas de Emigrados (nobres fran-
ceses no exílio que combatiam a Revolução) e nesta condição chega
a Portugal em 1799. Teria lutado contra as tropas francesas em Portu-
gal? Sabe-se porém que ele acabou incorporando-se às tropas portu-
guesas e em 1808 vem na frota que traz a Corte Real ao Brasil. Fica
no Rio de Janeiro por dois anos e segue para Minas Gerais.
Em 1810 é nomeado capitão do Regimento de Cavalaria de Li-
nha de Minas Gerais (sediado em Vila Rica) e recebe da Coroa uma
sesmaria de meia légua de terras em quadras no caminho para o Rio
de Janeiro, na passagem do rio Nova Pia. Isso indica que ele preten-
dia instalar-se definitivamente. Já em 1811 começa a percorrer as
selvas em companhia do mineralogista germânico Wilhelrn Eschwege
e pela primeira vez entra em contato direto com a questão indígena.
As críticas abertas à religião católica feitas por Marliêre (então
um francês marcado pelas "abomináveis" ideias de seu país) causaram
má impressão nas elites locais, marcadamente mergulhadas no uni-
verso católico tradicionalista da Monarquia portuguesa. Logo che-
gou da Corte um aviso do próprio conde de Linhares afirmando que
Marliêre "he um Emissario de Bonaparte, e ligado com elle para
subverter estes Estados". Marliêre foi preso, seus papeis vasculhados.
O conde da Palma, governador de Minas Gerais, intercedeu em seu
favor, alegando que, irreligiosidade à parte, era um súdito fiel. O que
havia, esclareceu o conde da Palma, é que Marliêre era odiado pela
elite de Vila Rica pelo simples fato de ser francês, já que o trauma da
invasão napoleônica em Portugal era recente, gerando reação de xe-
nofobia. Nos anos seguintes Marliêre confirmaria essa fidelidade à
Coroa e chegaria mesmo a denunciar por escrito dois franceses que,
segundo ele, mantinham conversas suspeitas. 16
Em 1813 Marliêre era nomeado diretor-geral dos Índios das
freguesias de São Manuel da Porta, de São João Batista e do rio da

16 Documento de 11-7-1825, RAPM, X e RAPM, XI, p. 13.


232 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

Pomba. Ele dirige então aldeamentos de Puris, Coroados e alguns


Maxacalis. Dois anos mais tarde, passa a integrar a Junta Militar da
Conquista e Civilização dos Índios, onde treinava os índios Coroados
(também chamados de Coroatos ou Croatos) para atacarem o "Gen-
tio Bravo", particularmente os Botocudos, que ameaçavam os fazen-
deiros da região. Era ainda o tempo da guerra ofensiva de D. João e
Marliere integrou-se a essas atividades. Nomeado inspetor da 1.• e da
4.• Divisões Militares do rio Doce, era o responsável, entre outras
coisas, a controlar para que pólvora e chumbo fossem utilizados ex-
clusivamente no combate aos Botocudos. Em tal função Marliere
reorganizava e deslocava patrulhas, abria picadas e caminhos de co-
municação e cadastrava os colonos que se encontravam na região. O
militar francês chegou mesmo a propor a criação de mais um quartel
nas cabeceiras do rio Sassuí, afluente do rio Doce, para fazer frente às
"incursoens dos Botecudos".
Enviado à região para combater militarmente os índios, Marliere
passaria por uma conversão: viria a ser, como ele gostava de se apre-
sentar, defensor e amigo dos Botocudos. De guerreiro, tornou-se pa-
cificador, mas sempre civilizador, isto é, colocando-se numa perspec-
tiva eurocêntrica e exercendo sua autoridade. Marliere passaria a
resumir sua visão sobre os índios ao dizer que a melhor maneira de
conquistá-los para a civilização era com balas de milho e não com
balas de chumbo. Tratava-se, pois, de submeter os povos indígenas.
Mas num contexto de conflitos tão violentos, tal atitude fez com que
o militar francês conseguisse a amizade e confiança de muitos índios,
que buscavam aliar-se com ele. Ao ser nomeado diretor dos Índios
do Espírito Santo em 1823 ele continuaria a pôr em prática suas
concepções, que, aliás, eram afinadas com os métodos pregados por
José Bonifácio.
Por meio dos relatos de Marliere, é possível conhecer os no-
mes, algumas histórias de vida e também atitudes e testemunhos de
índios Botocudos nestes princípios do século XIX, sobretudo dos que
cruzaram com os caminhos da civilização ocidental.
As tribos que conheceu se autodenominavam em 1824 de
Kracmun, Pejaurum, Nacnenile e Naknenuk, as três primeiras na parte
meridional do rio Doce e a última na margem norte do rio Caieté.
Importante ressaltar que Marliere defendia a legalização da proprie-
dade da terra em nome dos índios. Ele não demora em solicitar ao
governo títulos de posse de terras para estes grupos. E especifica as
O MAU SELVAGEM: ROMANTISMO, HISTÓRIA E CIVILIZAÇÃO 233
seguintes localidades para os Botocudos na região do rio Doce, pro-
pondo em geral uma légua para cada uma:
-Aldeamento de São Pedro, margem meridional do rio Doce;
-Bananal Grande, antigo caminho de Cuieté, ponto de en-
contro de quase todos Pejauruns e Krakmuns (o que indica que ainda
eram nômades; na localidade fica hoje o município de Tarumirim);
-Barra do Rio Caieté para índios na margem meridional (in-
cluindo os três aldeamentos nos arredores de Mariana);
-Margem norte do rio Caieté, para os Naknenuks;
-Barra do rio Sassuí, também para os Naknenuks, estes dois
nos arredores da Vila do Príncipe.
Entretanto, estas demandas de legalizar as terras não foram aten-
didas. Marliere procurava estabelecer o contato com as tribos sempre
por intermédio do chefe de cada grupo, valorizando assim o poder
político desses "capitães" (os chefes indígenas eram chamados de ca-
pitães desde os tempos iniciais da Conquista, denominação que per-
maneceu até o século XX) e colocando-os como intermediários da
relação, além de deixar a estes a nem sempre fácil tarefa de adminis-
trar as contradições internas e distribuir presentes e mantimentos.
Marliere propunha, pois, o fortalecimento do poder dos chefes e sua
aliança com os não índios.
Eis como Guido Marliere descreve em 1825 um destes capi-
tães Botocudo que conheceu, chamado Paqueju Orotinon:

Com 42 ou 43 anos, saúde robusta, cinco pés e cinco polegadas


de altura, corpulento, rosto nobre e animado, olhos pretos e
bem rasgados, nariz grande, sizudo por natureza. [... ] Este
Indio se não he Rei, cuida que o hé: não pode sofrer que na sua
presença se trata a outro qualquer indio de Capitão. 17

Paqueju se traduzia por "pai grande". Orotinon foi um dos que


escolheu viver em contato pacífico com a sociedade nacional buscan-
do nitidamente preservar sua condição indígena. O francês conta que
teve "a honra de o hospedar" no aldeamento, onde o convidou a cear
na mesa com pão, carne e vinho - hábito não usual entre brancos e
índios. Orotinon não agradecia na forma da polidez ocidental, mas
dançava para Marliere após cada refeição. Sempre no tom de quem

17 RAPM, X, pp. 569-70.


234 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

dava ordens, Orotinon pegou uma canoa do aldeamento, colocou nela


pessoas de seu grupo (mulheres e parentes), pediu roupas e manti-
mentos e foi se instalar no quartel de N aknenuk. Qyando apareciam
por lá outros índios, Orotinon tratava de se vestir com as melhores
roupas que ganhara e ostentar boné militar. Assim, buscando se de-
marcar ao mesmo tempo dos "brancos" e dos demais índios, Orotinon
forjou sua estratégia de resistência, num registro híbrido, buscando
salvaguardar a integridade de seu grupo.
Já o capitão Qystote (ou Qyitote), zeloso "como um tigre" de
suas quatro mulheres, era visto como "o mais atrevido que há no
mato" e causava inquietação aos soldados da 1.' Divisão do rio Doce.
Ao contrário do chefe precedente, este mantinha contato intermiten-
te com os não índios e ficava ainda no tênue fio que separava a paci-
ficação e o confronto.
Mas os Botocudos não se limitavam a contatos constantes ou
intermitentes. A guerra ainda estava em perspectiva. Este terceiro
comportamento dos índios diante da presença da civilização ociden-
tal ficou caracterizado pelo chefe Naknenuk Makuen que atacou o
Qyartel D. Manuel no dia 8 de janeiro de 1825 disposto a eliminar os
adversários que invadiam suas terras. Makuen fez ataque surpresa na
tentativa de desarmar os soldados. Mas não conseguiu. Ao ver sua
investida frustrada e dois de seus guerreiros mortos, subiu numa ár-
vore de onde atirava flechas nos soldados e desafiava-os a atirarem
nele, exibindo o peito aberto. Foi morto pela descarga de quatro fuzis.
Marliere comoveu-se com a bravura e fez o elogio de Naknenuk,
dentro do espírito Romântico: "O mais helio instante de sua vida foi
o mais vizinho da sua morte".
Mas entre os diferentes contatos que Marliere estabeleceu com
chefes Botocudos o que mais frutificou - e ganhou maior repercus-
são - foi com Pokrane. O primeiro encontro com o índio Pokrane
deu-se ao longo do rio Doce, onde Marliere navegava em companhia
de uma guarnição chefiada pelo sargento-mar Antônio Pereira do
Nascimento. Numa das margens avistam grande número de índios
armados de arcos e flechas. Dos barcos, carregados de víveres e pre-
sentes, batem palmas e por meio de intérpretes explicam as intenções
pacíficas. Os índios conversam entre si e pedem que os "brancos"
deponham as armas. Exigência cumprida, os índios ainda vacilam.
Entre avanços e recuos alguns chegam até a canoas e sobem, entre
eles o jovem Prokrane, filho do cacique. O clima vai ficando
O MAU SELVAGEM: ROMANTISMO, HISTÓRIA E CIVILIZAÇÃO 235
descontraído e ao final alguns vão até o posto militar espontanea-
mente. Estava nascendo ali uma sólida aliança entre Pokrane (que se
tornaria chefe da tribo pouco mais tarde) e Guido Marliere.
Pokrane acabaria mesmo por incorporar diversos hábitos da
civilização ocidental e se tornaria importante ligação entre os brasi-
leiros e os Botocudos. Acrescentou a seu nome uma homenagem a
seu aliado e protetor francês, passando a se chamar Guido Pokrane.
Para alguns historiadores (comprometidos com a perspectiva de in-
corporação dos índios à sociedade nacional) Pokrane passou a ser
figura exemplar, modelo de passagem bem-sucedida da barbárie à
civilização. 18 No entanto, estes mesmos historiadores parecem sur-
preender-se com o que lhes parecem "contradições" no comporta-
mento deste índio que mantinha a poligamia e os combates intertribais.
Na verdade, na fórmula encontrada para seu novo nome, acres-
centando "Guido" ao "Pokrane", pode estar a chave para a compreen-
são da atitude assumida por este índio: tratava-se de uma posição
cultural híbrida, mesclando as permanências de suas tradições tribais
com a aquisição de algumas técnicas e comportamentos do homem
"branco" e que visavam sua sobrevivência como índio, ainda que fa-
zendo consideráveis concessões. À sua maneira, Pokrane buscou uma
saída de sobrevivência para os conflitos seculares e sangrentos - em
vez de ser um quase perfeito "homem civilizado".
De saída Guido Pokrane abandonou o uso do botoque, que era
a característica mais marcante de seu grupo. E, segundo relatos dos
não índios, ele estava sempre empenhado em convencer outros índios
a fazerem o mesmo, dando mostras de contentamento quando conse-
guia demover alguém do uso do ornamento de madeira nos lábios e
orelhas. Por um lado, agindo assim, ele eliminava um dos mais fortes
componentes de sua identidade tribal. Por outro lado, os índios que
abandonavam o botoque deixavam de ser Botocudos, isto é, buscavam
se livrar do estigma e das perseguições externas. Tanto que Pokrane
chegou a ser recebido, no início dos anos 1840, por D. Pedro II na
Corte, ganhando presentes e uma proteção imperial que, diga-se de
passagem, parece ter ficado só na palavraY
Essa aliança entre o monarca e índio Botocudo Pokrane ge-
rou tentativa de elaborar o indianismo pela iconografia, ou mais

18
Cf. biografia escrita por L. P. C . Ferraz (1855).
19
Idem e J. Durco (1989).
236 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

precisamente pela numismática (Figura 27). Uma medalha foi cu-


nhada, no ano da coroação de D. Pedro II, tendo por efígie o rosto e
o nome de Guido Pokrane que, assim, era apresentado como exemplo
bem-sucedido de Botocudo civilizado. Note-se que o perfil de Pokrane
eternizado na medalha imperial apresentava elementos híbridos. Na
orelha via-se o furo para o botoque, embora tal ornamento não apa-
recesse mais. Pelas costas da efígie estavam cunhadas as armas tribais,
arco, flecha e borduna; pela frente, como que sinalizando o futuro, o
machado e a pá, símbolos do trabalho agrícola produtivo e da incor-
poração aos hábitos da sociedade nacional. O rosto de Pokrane mes-
clava a orelha furada com traços visivelmente helênicos, como o na-
riz retilineo. Era o emblema do selvagem que caminhava em direção
à civilização, buscando ao mesmo tempo celebrar e associar o início
do reinado de D. Pedro II à incorporação dos Botocudos, antigo pro-
blema que os colonizadores ainda não tinham conseguido resolver.20

Figura 27

Nesta corda bamba, tênue fio do hibridismo cultural, Pokrane


parecia forjar estratégia de sobrevivência. Os índios da tribo de Pokrane
destacaram-se na produção agrícola, além de terem construído casas.
Abandonavam o nomadismo e a sobrevivência com base na caça, pes-
ca e colheita, incorporando-se à agricultura e ao sistema de trocas
comerctats.

20
Imagem do Museu Mariano Procópio. ln: L. Schwarcz. As barbas do impera-
dor. .. , p. 81
O MAU SELVAGEM: ROMANTISMO, HISTÓRIA E CIVILIZAÇÃO 237
Certa vez Pokrane armou-se com sua tribo para deixar o aldea-
mento por alguns dias a fim de combater os Puris. Marliere pediu
que ele não fosse, mas não conseguiu demovê-lo. O francês procurou
então saber as causas do ataque e recebeu a explicação de que, quando
morre um chefe Botocudo, isto ocorre por malefícios dos Puris, aos
quais eram atribuídos tais poderes. Tratava-se assim de um código de
vingança e de uma crença nos poderes imputados a outros grupos
étnicos. 21 Isso ocorreu em fevereiro de 1825. No mês anterior morrera
o chefe Naknenuk Makuen- mas atingido por soldados brasileiros.
Atribuir a causa dessa morte a outras tribos era a reprodução de com-
portamentos tradicionais dos grupos Botocudos, que já haviam sido
notados no período colonial e nos tempos da Guerra de 1808. Nessa
incursão Pokrane matou alguns Puris e trouxe outros prisioneiros e
ficou constatado que este grupo atacado não mantinha contato per-
manente com a sociedade nacional. Dessa maneira, através de antigos
conflitos intertribais, Pokrane também era útil à Conquista.
Com a morte de Guido Pokrane em 1843, um irmão dele, Mavan
Patinan assumiu a chefia do grupo. Foi sucedido por Junac, sobrinho
de Pokrane, sucedido por um índio chamado Antônio em 1855. O
aldeamento, que se encontrava então na localidade de Bananal Gran-
de, foi transferido para o Ribeirão do Qyeiroga Montina. Dessa for-
ma, a tribo de Pokrane fora banida do território onde hoje é a cidade
que tem seu nome - o que significa que nem em suas origens este
núcleo urbano foi formado pelos índios da tribo de Pokrane ou seus
descendentes. Essa é uma das características de longa duração do
indianismo no Brasil: a valorização simbólica dos índios se entrelaça
com a destruição física e cultural deles.
Muitas vezes as observações de Marliere sobre os Botocudos
eram rápidas como flashes, mas fixavam momentos da vida de índios
que, sem isso, não teriam marcado presença nos registros escritos. Foi
o caso de Merarang, uma das mulheres de Pomatu que, cega, apare-
ceu três vezes no aldeamento guiada pelo filho de seis anos e carre-
gando uma cesta feita de folhas de palmito (tang). Merarang, possi-
velmente infectada em uma das epidemias de oftalmia que atingiu os
Botocudos no período, recusava as ofertas para ficar e se tratar e

21 Para uma síntese sobre os sistemas de vingança como código de conduta

primordial nas sociedades indígenas, v. o verbete "Systeme de vengeance" em P.


Bonté. Dictionnaire de l'ethnologie et de l'anthropologie. . .
238 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

voltava para as selvas: sua figura não deixa de ter semelhança com a
do "velho Timbira", personagem criado décadas depois por Gonçal-
ves Dias no seu célebre poema "1-Juca-Pirama".
Merece atenção a morte de um casal de índios e também a
maneira romântica como Guido Marliere perpetuou o episódio. Ha-
gemm foi um dos primeiros Botocudos a aceitar a pacificação do mi-
litar francês e a acompanhá-lo constantemente. Mas acabou se afas-
tando para se casar com Gemm-táne, que era filha do já citado capitão
Orotinon. Este casal de índios, quando estavam besuntados de
unguentos quentes usados para o tratamento de alguma doença, mer-
gulharam no rio Santo Antônio e tiveram, com o choque térmico,
morte instantânea. Marliere ficou arrasado com a perda e plantou um
cipreste no lugar do túmulo, sobre o qual chorou copiosamente. Pas-
sou a denominar o local de "Mausoléu Indiático no Deserto do Rio
Doce". 22 Cada vez que voltava a este Qyartel de Naknenuk, Marliere
não deixava de visitar as sepulturas de Hagemm e Gemm-táne. Em
outras palavras: semeava um lugar de memória e criava símbolos vi-
síveis de afetividade, valorizando o enredo amoroso deste casal indíge-
na. Diferente, portanto, da preferência por casais de brancos e índias,
mais ao gosto conciliatório e harmonizador do indianismo literário.
Marliere foi elo entre índios e brasileiros que permitiu que
alguns nomes do idioma dos Botocudos se perpetuassem na toponímia
da região. A toponímia é uma forma de memória histórica e, como
tal, resulta de uma elaboração que pode servir para escamotear con-
flitos e diferenças. Basta ver as cidades de Nanuque e Pocrane -
todas nos territórios onde antes habitavam índios, que acabaram ex-
pulsos das mesmas terras. Tarumirim, por exemplo, onde ficava o
aldeamento Bananal Grande, é nome tupi-guarani e existe nesta pe-
quena cidade uma rua dos Aimorés ... A própria cidade de Aimorés
também evoca o nome hostil tupi-guarani atribuído, como já foi cita-
do, a estas tribos que pertencem ao grupo Macro-Jê. O nome dessas
cidades foi mantido não porque os novos moradores fossem ou se
considerassem, no tocante a identidade, como descendentes dos
ocupante's anteriores do território. Mas porque - e Marliere foi um
dos pontos de partida para isso - foi possível idealizar uma certa
tradição indígena com valores originais, nobres e sentimentais, rele-
gando os índios que estavam sendo varridos de suas terras a um pas-

22
Documento de 26-12-1824, RAPM, X.
O MAU SELVAGEM: ROMANTISMO, HISTÓRIA E CIVILIZAÇÃO 239
sacio remoto e até heroico. Rendendo homenagem aos "primitivos"
habitantes, os novos moradores conseguiam dois objetivos: de certa
maneira se isentavam das violências cometidas, apresentavam-se como
herdeiros (ainda que apenas simbólicos) dos ocupantes anteriores do
território e ainda contribuíam para forjar uma identidade regional
peculiar, comprometida apenas simbolicamente com os índios. Assim,
a toponímia indígena aparece nestes casos específicos como instru-
mento cultural de consolidação da Conquista. Dessa maneira, os te-
míveis (e intragáveis) Botocudos, vistos como antropófagos, passa-
ram a ser, em parte, palatáveis para a memória coletiva dessa região.
Os colonizadores acabaram em grande parte devorando a digerindo a
presença indígena.
O próprio militar francês recebeu homenagem póstuma, com o
Posto Guido Marliere criado pelo SPI nos anos 1910 às margens do
rio Doce. 23
Guido Marliere era, como se pode perceber, marcado pela sen-
sibilidade Romântica então emergente, pois Renê de Chateaubriand
publicara naqueles anos suas obras-primas do indianismo literário. O
Romantismo, aliás, seria uma expressão artística fundamental para as
tendências conservadoras da época, como a Restauração monárquica
francesa ou o Império Germânico, uma vez que valorizava as tradi-
ções culturais e o retorno às "raízes" históricas das sociedades como
forma de legitimar as monarquias e os impérios diante da vaga liberal
ou revolucionária.
Dessa forma, compreende-se a "conversão" de Marliere nos ser-
tões das Minas Gerais nos princípios do século XIX: sem muito es-
paço entre as elites urbanas (católicas, ibéricas e manifestando ten-
dências liberais), buscando apoio na monarquia luso-brasileira e
deixando-se sensibilizar pelas populações indígenas, o militar francês
acabaria por abandonar as ideias politicamente revolucionárias e as-
sumiria radicalmente a proteção aos índios e o apoio à monarquia
portuguesa.
Mais tarde, Marliere manteria sua adesão ao Império brasilei-
ro, referenciando-se numa visão marcada pelo exemplo imperial rus-
so. E não deixaria de buscar uma maneira de inserir os grupos indí-
genas como parte integrante do Império do Brasil. A originalidade
de Marliere estava no fato de que seu indianismo não era urbano,

23 Cf. Capítulos 10 e 11 do presente livro.


240 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

abstrato nem fruto apenas de leituras ou aspirações idealizadas. Ele


manteve e forjou sua sensibilidade Romântica ao longo das décadas
em que esteve no meio dos Botocudos e também dos Puris, Coroados
e Maxacalis. Assim, é preciso ter em mente que naquele momento
histórico no Brasil a rejeição da hostilidade aos índios era sobretudo
um signo de conservadorismo político. Basta lembrar outro exemplo,
o do viajante e príncipe prussiano Wied-Neuwied, conservador poli-
ticamente, tocado pelo Romantismo. Pois os revolucionários, monar-
quistas constitucionais, modernizadores e liberais de diferentes ten-
dências estavam mais preocupados em avançar o progresso nacional
- diante do qual os índios apareciam como obstáculo.
Condecorado como "Chevalier de l'Ordre de Saint Louis" {Ca-
valeiro da Ordem de São Luís) na França e posteriormente como
"Cavaleiro da Ordem de Christo" (comenda criada em Portugal e
mantida no Brasil), Marliêre chegaria a coronel da Cavalaria do Es-
tado-Maior do Exército Brasileiro. Ele pediu ainda uma condecora-
ção a D. Pedro I e não foi atendido, o que o teria deixado desgostoso
do trabalho com os índios. Engenheiro com formação técnico-cien-
tifica das Academias Militares, Guido Marliêre foi um dos expressi-
vos representantes dessa formação profissional e ideológica que tor-
nava os militares agentes do progresso e da civilização com perspectiva
humanista - da qual o marechal Cândido Rondon seria expoente
um século mais tarde.
Afinal, como se dava mais precisamente a relação {mediada
pelo Romantismo) desse militar francês com os Botocudos? Além
dos lugares-comuns que o apontam ora como uma espécie de apósto-
lo humanista, ora como mais um Conquistador de índios, é interes-
sante averiguar o tipo de contato que havia e o que Marliêre preten-
dia e pensava em relação aos Botocudos.
Toda ênfase na postura de Marliêre em defesa dos Botocudos
não basta para compreender as múltiplas dimensões dessa relação e
mesmo qual sua visão desses índios e da sociedade em geral. Se o
coração de Marliêre parecia estar do lado dos Botocudos, sua cabeça
funcionava com outros parâmetros: no fundo ele sonhava com uma
espécie de modelo de perfeição social e humana fundado na rigidez
simétrica tão marcante nas culturas prussiana e russa, inspirado pelo
Romantismo e concretizado politicamente num poder imperial. Em
alguns de seus testemunhos fica uma certa impressão de que os índios
seriam assim como uma matéria-prima ideal para a realização dessa
O MAU SELVAGEM: ROMANTISMO, HISTÓRIA E CIVILIZAÇÃO 241
utopia, por não estarem ainda impregnados da civilização em sua
vertente ibérica- à qual ele nutria discreto mas perceptível desprezo.
Marliêre permanecia fiel à ideia imperial de poder. Acusado de
bonapartismo, elogioso diante de D. Pedro I e II, enviando índios à
proteção de Francisco II (imperador germânico) são evidentes os si-
nais de sua lealdade à forma imperial de governo. E que não se limi-
tava às vertentes germânica, francesa ou brasileira, mas se estendia
também ao Império Russo. Diante do Império brasileiro que se for-
mava, Marliêre projetava a inserção dos Botocudos nessa ordem im-
perial à luz da experiência russa.
Ao colocar no papel um projeto que denominava de "Educação
Religiosa, Civil e Militar dos Indios", Marliêre não escondia elogios
às instituições políticas do Império da Rússia que governava "muitas
Nações ainda pouco civilisadas", citadas textualmente: Cossacos,
Calvenkos e Tártaros. O imperador russo concedia títulos honoríficos
("Hettman") aos chefes dessas nações caracterizadas pelos comporta-
mentos guerreiros. A mensagem de Marliêre é direta: "O Imperador
do Brazil tem muitos Cossacos e pode tirar delles, com o tempo, o
mesmo partido". 24
Ou seja, era isso que Guido Marliêre pretendia fazer com os
Botocudos: inseri-los na ordem nacional imperial como os Cossacos
na Rússia. Isso explica o cuidado de não transformar radicalmente os
hábitos e costumes dos Botocudos, sobretudo a prática guerreira, que
poderia ser canalizada não contra o Império brasileiro, como ocorria
até então, mas a favor dele. As companhias de Coroados organizadas
por Marliêre em 1815 para atacar os Puris bravos, suas constantes
tentativas de incorporar Botocudos às tropas militares, sua política de
privilegiar os chefes das tribos - tudo no fundo parecia ter como
motivação essa utopia prussiana e militarista tropical.
Por isso, não é de surpreender que uma discussão onomástica
tenha ocupado grande parte dos escritos de Guido Marliêre: qual
nome deveria ser dado ao principal Aldeamento sob sua responsabi-
lidade? Inicialmente o local se chamava Aldeamento São Pedro de
Alcântara. Mas Marliêre achava que tal denominação não soava
bem ... Village de Pierre não lhe parecia tampouco adequado. E
sem querer desautorizar a homenagem ao imperador Pedro I, o fran-
cês propõe que o local passe a ter o nome de Aldeamento Petersdoff.

24
Documentos de 7-1-1825, RAPM, X.
242 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

Tanto fez, insistiu, enviou cartas a autoridades provinciais, à Corte,


aos ministros, ao próprio imperador que os brasileiros acabaram con-
cordando em que o aldeamento dos Botocudos se chamasse de
Petersdoff. Mas ninguém - além de Guido Marliere e do ministro,
nas correspondências oficiais - chamava a aldeia com este nome.
E quando Marliere saiu de lá a denominação desapareceu.
As tentativas de germanização dos trópicos seguiram adiante.
Marliere conseguiu enviar à Confederação Germânica o índio Botocu-
do batizado de João Boquejune (ainda aqui se verifica a regra de dar
prenome português aos índios, mas manter como sobrenome sua deno-
minação tribal ou familiar), que permaneceu cerca de dois anos na
Europa. O francês parecia depositar esperanças nesse índio como cobaia
para a civilização, mas decepcionou-se. João recebeu a proteção imperial
de Francisco II, de quem ganhou dinheiro, presentes e sustento. Mas
a esposa de João, uma índia de sua tribo, morreu nessa estadia. Ele
retornou ao Brasil para arranjar outra esposa na tribo. Para desalento
de Marliere, João fizera poucos progressos na língua alemã, perdera
a espingarda e os presentes e ainda por cima "tudo quanto recebeo da
generosidade de S.M.I. Teutonica bebeo". João ganhou nova espin-
garda, pela qual Marliere emitiu diversos documentos oficiais, a fim
de justificar e garantir que um índio Botocudo pudesse andar armado.
Mas Boquejune envolveu-se com dois capitães Botocudos, os
irmãos Inocêncio e Filipe, que eram incorporados às forças militares
brasileiras. Esses dois acabaram tomando tudo que João possuía e
mais uma vez ele ficou na penúria, malogrando a tentativa de ger-
manizar os Botocudos. 25
Nunca é demais lembrar que se Marliere mantinha sua sensibi-
lidade e convicções intelectuais marcadas pelas matrizes culturais re-
feridas (e era com esses olhos que via o mundo), ele vivia literalmen-
te cercado pelos Botocudos. Como ele desabafou em carta a seu
compatriota, o famoso cientista Auguste de Saint-Hilaire:

Continuamente cercado de Botecudos, pouco me he possível


escrever; se fecho a porta, entrão pella janella; n'huma palavra,
elles me põe as vezes fora do assunto; [ ...] a sua impertinencia
h e excessiva. 26

25 Documentos de 1-3 e 18-2-1825, RAPM, X.


26
Documento de 6-12-1824, RAPM, X.
O MAU SELVAGEM: ROMANTISMO, HISTÓRIA E CIVILIZAÇÃO 243
A ausência de noção de individualidade entre os índios inco-
modava a Guido Marliere, que se sentia invadido em sua privacidade.
Autocentrado em seus próprios valores, o militar francês pretendia
civilizar e proteger os índios, mas parecia pouco disponível para com-
preender as diferenças culturais. Entretanto, ele teve a capacidade de
perceber aspectos importantes deste universo do Outro. Anotou que
"cada Horda ou Tribu tem nome diferente" 27 e que os nomes gerais
eram impostos pelos não índios. Da mesma maneira, ao registrar que
o comportamento dos Botocudos se baseia "na sua vingança, a qual
religiosamente excitão" 28 ele estava percebendo que os códigos de
vingança eram um dos fundamentos que estruturavam a vida destes
grupos. Marliere registrou ainda a presença, entre as crenças dos
Botocudos, do "espírito mau", Natshone, que ele associava ao Tupã
da cultura católica tupi-guarani. E anotou ainda a existência de dan-
ças ao Sol, à Lua e às estrelas. Uma sensual canção de amor de uma
índia solteira foi por ele traduzida da seguinte maneira:

Tu que diz sou feia,


Porque vens de noite,
Depois de meu fogo accezo,
Deitar-se de vagar nas minhas costas?

A mulher do chefe Nho-une, do Cuieté, dançava e cantava:

Não posso mais dançar


Vou-me sentando;
Kejah está em suor,
já está chorando.

Havia, portanto, a iniciativa de registrar um cancioneiro


Botocudo. Marliere elaborou até um vocabulário português-botocudo,
que permanece inédito e pode ser consultado em manuscrito na Bi-
blioteca Nacional no Rio de Janeiro.29 Ele escrevia os nomes e ex-
pressões indígenas sem critérios fonéticos bem definidos, misturando
as sintaxes do francês, português e alemão. Sua percepção etnográfica
era inferior à dos viajantes europeus da época. Mas sua atuação no

27
Documento de 26-10-1824, RAPM, X.
28
Documento de 14- 12-1825, RAPM, X.
29
Vocaóularioportuguez-botocudo p or Cuido Thomaz Marliere. . ., 1835.
244 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

terreno, junto dos índios, teve dois efeitos: de um lado colaborou na


desintegração dos modos de vida tradicionais de parcelas considerá-
veis destas tribos; de outro, significou uma linha de confronto com as
frentes de expansão que pretendiam dizimar os Botocudos, possibili-
tando para eles um espaço de aliança e sobrevivência.
A política de Marliere encontrava forte resistência entre as diver-
sas frentes de expansão - fazendeiros, mineradores, comerciantes, e
outros- que desejavam aniquilar os índios, tomar suas terras ou utilizá-
los como mão de obra escrava. O fato de Marliere ter recebido uma
sesmaria da Coroa não o alinhava automaticamente com as reivindica-
ções de outros proprietários rurais. Ao contrário, tal relação era mais
de conflito. As queixas dos moradores se acumulavam e o clima conti-
nuava tenso entre Botocudos e colonos, com escaramuças constantes.
As atitudes de antagonismo em face dos índios permaneciam
como herança dos tempos luso-brasileiros para a época posterior à
Independência. Pode-se perceber tal fator na Representação dos habi-
tantes de Ponta Nova para D. Pedro I, de 1826, que combatiam aberta-
mente"[ ... ] a Direcção d'aquella barbaresca nação às mãos do Te-
nente Coronel Guido Thomaz Marliere, que faz hum errado sistema
de civilização [e] tem reduzido aquelles povos quasi ao antigo tempo
de callamidades, roubo e mortes". 30
A citação acima é sugestiva: ao lado do interesse pela posse das
terras, expressa-se também o conflito de uma concepção de nação
que se queria moderna com as sociedades acusadas de barbárie ou
arcaísmo e que, por isso, deveriam ser eliminadas.
Os colonos proprietários de terras moviam sistemática campa-
nha contra o francês Guido Marliere. Como se pode ver nesta outra
Representação dos moradores de várias localidades da freguesia de São
Miguel, termo do Caeté, solicitando providências contra as incursoens dos
indios Botocudos, de 1827, onde os "Desgraçados Povos Habitantes da
Ribeira de Santa Anna da Onça" reclamavam que Marliere não to-
mava providências para evitar os prejuízos dos fazendeiros e negocian-
tes e nem estaria realizando a "catequese" desejada.Jl Os moradores

30
Representação dos habitantes da região de Ponte Nova, dirigida ao Imperador Pedro
I, 1826, II, 36,5,21, FBN/MSS.
31
Representação dos moradores de várias localidades dafreguesia de São Miguel, termo
de Caeté, solicitando providências contra as incursões dos indios Botocudos, 7 p., 17 de outubro
de 1827, II, 36,4,44, FBN/MSS.
O MAU SELVAGEM: ROMANTISMO, HISTÓRIA E CIVILIZAÇÃO 245
pediam mais soldados para atacar os Botocudos. Ou seja, preferiam
optar pela via guerreira em vez da chamada via pacífica.
Não faltava disposição ao militar francês para enfrentar tais rea-
ções e se colocar em defesa de sua própria postura em face dos Boto-
cudos. O!tando dois brasileiros foram flechados por índios da Aldeia
de Cachoeirinha, Marliere diz que "infelismente não morrerão", pois
eram "homicidas e perturbadores do socego publico" e constantemente
atacavam os índios. E quando um fazendeiro pedia reforço militar para
atacar as tribos, Guido Marliere não tinha meias palavras:"[ ... ] este
estupido não sabe que por hum Indio que manda matar, attrahe sobre
si, e sua Fasenda, hum seculo de Represalias". 32 No ano da Indepen-
dência, ele afirmaria por escrito à Corte, alinhando-se às ideias racio-
nalistas da Ilustração europeia: "Os Indios estão ao desamparo, mortos,
perseguidos, e expoliados alguns de suas terras. Os opressores descul-
pão-se dizendo que elles não são Baptizados, e isto no Seculo XIX!!"33
Diante de tantas pressões, Marliere encontrava algum apoio no
governo central. Ele chegou mesmo a afirmar em carta ao compatriota
Saint-Hilaire que D. Pedro I era seu protetor e amigo dos índios. Mas
o que ocorreu é que o extermínio desses índios passou a ser praticado
menos pelos governos e mais por iniciativa de fazendeiros, negociantes,
garimpeiros e outros- contra os quais o governo imperial não pretendia
se indispor. Em 1830 Marliere acabou deixando o cargo que exercia,
escrevendo, cinco anos depois, seu vocabulário botocudo-português. A
maioria de seus escritos permaneceu inédita na época, lidos apenas pelas
autoridades a quem os endereçava, à exceção de algumas colaborações
na imprensa mineira e de correspondências privadas. Na época da fim-
dação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, as propostas e exem-
plos de Marliere seriam utilizados como referências importantes por
dirigentes da instituição, como o cônego }anuário da Cunha Barbosa. 34

•••
Mas a tendência de associar positivamente os Botocudos ao
nascente Romantismo brasileiro teria outro defensor além de Marliere.

32
Documento de 14-12-1824, RAPM, X.
33
Documento de 24-4-1822, RAPM, X.
34
J. da C . Barbosa. Qyal seria hoje o melhor systema de colonizar os Indios
entranhados em nossos sertões. Revista do Instituto Histórico e Geognifico Brasileiro, t. 2,
vol. 2, 1840.
246 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

Sabe-se que o indianismo romântico teve seu apogeu no Brasil entre


os anos 1850 e 1860. De modo geral este indianismo significava uma
busca do específico brasileiro e, como destacou Antonio Candido, a
preocupação dos românticos brasileiros era sobretudo equiparar quali-
tativamente os índios aos colonizadores em cavalheirismo, generosi-
dade e força poética. 35 E o Romantismo marca neste terreno a passa-
gem do índio-signo para o índio-personagem (da ficção literária,
entenda-se). Seria possível enquadrar os Botocudos nessa tendência?
Tal tentativa foi feita, de certa maneira, no romance Asfatalida-
des de dous jovens - Recordações dos tempos coloniais, publicado em
1856, por Antônio Gonçalves Teixeira e Sousa, autor considerado
cronologicamente como o primeiro romancista brasileiro, embora
geralmente visto como de baixa qualidade literária pela maioria dos
contemporâneos e críticos posteriores. 36 O herói do livro é Gonçalo
Pereira Dias, nome tão português atribuído a um filho de mãe indí-
gena (de tribo não especificada na trama) e pai luso. O cognome
desse personagem é Botocudo. Exercendo papel benéfico e salvador
no enredo, Gonçalo, o Botocudo, comete um assassinato por questões
de honra familiar e defesa de perseguições injustas, amargando por
isso longos anos de prisão. Numa passagem autobiográfica o perso-
nagem explica o próprio perftl e origem do apelido, depois de ter
sido preso:

Dalli por diante os meus inimigos me chamaram uns, o assas-


sino, e outros, por me tornarem ridículo, o botocudo: cumpre
notar que eu sempre fui feio como me vêem [... ].

Assim, o nome de Botocudo aparece ligado ao estigma da bru-


talidade, ridículo e feiúra: características da percepção sobre essas
tribos que passa a ser propagada à medida que vão tornando-se objeto
de estudos culturais e de interesse pelo exotismo -isto é, quando são
mais visivelmente derrotados ou despojados de suas terras, de sua
capacidade guerreira e de resistência aos colonizadores. Mas a solu-
ção romanesca buscada por Teixeira e Sousa (na perspectiva de colo-
car o índio como elemento regenerador da identidade brasileira) foi a

35
A. Candido. Formação da literatura brasileira. .. , vol. 2, p. 21.
36
Antonio Gonçalves Teixeira e Sousa.Asfotalidades de dousjovens: recordações dos
tempos coloniaes. 3 t., Rio de Janeiro: Typ. Dous de Dezembro, de Paula Brito, 1856.
O MAU SELVAGEM: ROMANTISMO, HISTÓRIA E CIVILIZAÇÃO 247
de, por trás dessa aparência feia e feroz, criar um personagem Botocudo
que tivesse tanto ou mais virtudes do que os melhores luso-brasilei-
ros que aparecem também como personagens no livro. Ou seja,
considerá-los como capazes de aprimoramento: converter a fera aos
belos sentimentos.
O olhar romântico sobre os Botocudos teve um representante de
peso no pintor francês François-Auguste Biard (1799-1882). Em seu
livro Deux années au Bresi/, 37 narrando a viagem empreendida entre
1858-1859, há 180 desenhos de Riou, conhecido ilustrador (desenha-
va, entre outros, para a coleção das Viagens Extraordinárias de Jules
Verne) que trabalhou a partir de croquis realizados in loco por Biard.
François Biard era artista que partilhava com Vítor Hugo a
tendência romântica politicamente revolucionária da geração de 1848:
pintou cenas de escravidão urbana no Rio de Janeiro, índios na flo-
resta amazônica e foi autor do quadro que retratava, de forma alegó-
rica e comemorativa, a abolição da escravidão nas colônias francesas
no mesmo ano. Registra-se em sua biografia que compartilhava com
Vítor Hugo não apenas convicções, mas ao chegar em casa certo dia
o pintor encontrou a esposa nos braços do célebre escritor. Incon-
formado, processou-a por adultério, num episódio rumoroso nas rodas
parisienses, que acabou levando a ex-madame Biard à prisão. A partir
daí François Biard empreendeu constantes viagens pelo mundo, pin-
tando, entre outros, os !apões do norte da Europa.
Ao passar pela província do Espírito Santo, Biard tinha em
mente visitar os famosos Botocudos do rio Doce. Em seu texto e nas
iconografias, o artista francês destacava a natureza exuberante com
descrições bem ao gosto do Romantismo e do mercado editorial: ao
mesmo tempo ameaçadora, misteriosa e plena de surpresas romanes-
cas, como o encontro com animais estranhos, cobras gigantescas, in-
setos desconhecidos, entre outros. Os dramas humanos não faltaram
em seu relato, como o desenho do índio Almeida morto sobre uma
esteira de palha, no interior de uma rústica choupana, velado pela
própria mãe, cena à qual o artista devotou um sentimento intenso,
embora não tenha identificado a etnia do referido índio, de quem
traçou também o perfil, recriando-o vivo.
Biard testemunhou ainda a constante captura e utilização do
trabalho indígena na província. Afirmou que era usual entre as famílias

37
F. A. Biard. Deux années au Brés{/. .. , 1862.
248 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

pegar índios jovens, considerados como crianças abandonadas, para o


trabalho doméstico ou agrícola. Porém "não como escravos, mas na
qualidade de servidores", ressalvou, sem, entretanto, explicar a dife-
rença.38 Ele próprio teve um grupo de índios a seu serviço durante
toda estadia, "emprestados" por um brasileiro que o hospedara. E
pareceu particularmente impressionado pelo "pequeno Manoel", um
indiozinho que lhe servia de cozinheiro e também para carregar os
fardos mais pesados durante a excursão, desenhando-lhe o rosto, mas
igualmente sem identificar-lhe a etnia.
O encontro com um grupo de cerca de uma dúzia de Botocudos
na floresta deixou forte impressão em Biard. Estes índios retornavam
de Vitória, onde haviam se encontrado com o presidente da província
para solicitar auxílios e vinham, segundo testemunhou, com muitas
roupas e promessas vazias. Biard presenciou e descreveu em palavras a
cena: eles se desfizeram das roupas, juntaram-nas em forma de trouxa
e, assim nus, continuaram a marcha pela floresta, despojados da princi-
pal característica da civilização, numa espécie de reação contra o ho-
mem vestido que parece ter impressionado o artista romântico euro-
peu. Entretanto, ao desenhar uma índia desse grupo de Botocudos,
Biard estampou um discreto retrato da cintura para cima, realçando o
botoque (Figura 28). Optava assim pelo registro de cunho etnográfico
e evitava, talvez, reações escandalosas que poderiam advir da visão mais
explícita da rejeição das roupas e nudez coletiva deste grupo indígena.

Figura 28

37
F. A . Biard. Deux années au Brésíl. . ., 1862.
O MAU SELVAGEM: ROMANTISMO, HISTÓRIA E CIVILIZAÇÃO 249
Na iconografia e nas palavras de Biard (cuja obra teve conside-
rável repercussão no Brasil da época) sobre os índios, estes aparecem
emoldurados por uma natureza vistosa e avassaladora, envolvidos por
sentimentos e dramas, ou ainda rejeitando as roupas da civilização
europeia sobre seus corpos. Ao mesmo tempo, Biard tendia a escamo-
tear a relação de sujeição e violência a que os mesmos índios estavam
expostos, e nisso ele se parecia com os românticos brasileiros do pe-
ríodo. E quanto aos índios que, como os Botocudos, ainda resistiam
aos padrões ocidentais, Biard, também à maneira dos românticos da
época, tinha dificuldade em enquadrá-los como personagens roman-
tizados, ficando tal vertente para os índios percebidos sem uma iden-
tidade étnica precisa.
Os exemplos acima citados, na verdade, indicam que os Boto-
cudos não mereceram atenção especial no cenário Romântico. Mas o
mesmo não se pode dizer da antiga denominação de Aimorés, que
esteve sob o foco do indianismo brasileiro.
O poema "I-Juca-Pirama", do maranhense Antônio Gonçalves
Dias, escrito em 1851, é um dos marcos do indianismo literário no
Brasil. Ao compor, com reconhecida beleza e qualidade estética, a
imagem mítica dos povos chamados primitivos, o autor, ao mesmo
tempo que valoriza o papel nobre e guerreiro dos Tupis, não esquece
de incluir neste poema duas referências aos "vis Aimorés". Numa
delas, no trecho do "Canto de Morte", saem da boca do personagem
tupi os seguintes versos:

Andei longes terras


Lidei cruas guerras,
Vaguei pelas serras
Dos vis Aimorés;
Vi lutas de bravos,
Vi fortes - escravos!
De estranhos ignavos
Calcados aos pés.

Notável pesquisador da história e da etnografia indígena, Gon-


çalves Dias sabia que dos encontros destes "ignavos" com as frentes
de colonização (ou com adversários indígenas) saíram chispas guer-
reiras que custaram milhares de vida, durante três séculos. Aimorés
apareciam como espelho invertido, paradigma negativo na composição
250 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

de um índio bom e selvagem no âmbito do nacionalismo romântico


brasileiro.
Avançando na mesma trilha, José de Alencar dedica aos Aimorés
páginas ferozes em seu romance e expressão maior do Romantismo,
O Guarani, de 1856. Em oposição ao comportamento cavalheiresco
do fidalgo português D. Antônio Mariz e do índio (Tupi) Peri, herói
do livro, os Aimorés, que não têm nomes ou personagens individuais
na trama, aparecem como o inimigo coletivo e modelo de atitudes
embrutecidas e animalizadas, quase fora da condição humana. As
passagens são muitas, mas algumas delas mais marcantes, como a
descrição que faz dos Aimorés (capítulo VII da Terceira Parte):

Homens quase nus, de estatura gigantesca e aspecto feroz, co-


bertos de peles de animais e penas amarelas e escarlates, arma-
dos de grossas clavas e arcos enormes, avançavam soltando gri-
tos medonhos.

Perpassa boa parte do romance a tensão iminente de um ataque


dos Aimorés, que assim se constitui num dos artifícios literários cen-
trais do livro, criando suspense, definindo o enredo e gerando alian-
ças. O refrão se repetia nas páginas do romancista cearense, em tom
de pavor:

- Os Aimorés! ...

Os ataques a propriedades rurais são descritos como cenas in-


fernais, de horror, colocando-se assim o autor do ponto de vista do
colonizador português, ao mesmo tempo que direcionava seu india-
nismo para os índios que se aliavam aos europeus. O contraste entre
o bom Tupi (Peri) e o mau (Aimorés) selvagem é reiterado (capítulo
1, Parte III):

Peri lhe havia contado com todas as particularidades de seu


encontro com os Aimorés; e o cavalheiro, que conhecia a fero-
cidade e espírito vingativo dessa raça selvagem, esperava a cada
momento ser atacado.

José de Alencar, um dos fundadores da literatura brasileira, as-


similava e reproduzia, como se percebe, as formulações típicas dos
O MAU SELVAGEM: ROMANTISMO, HISTÓRIA E CIVILIZAÇÃO 251
escritos do período colonial em relação a estes índios. Retomava a
legenda depreciativa dos Aimorés, elaborada nos séculos anteriores:
invencíveis, indomáveis, intangíveis, inomináveis e desumanos, ape-
nas captados em relâmpagos guerreiros. Insistia, na estratégia de
desumanização dos Aimorés, em associá-los às feras, mediante re-
cursos estilísticos como: adjetivos, gritos inarticulados, vestimentas,
maneira de andar nas selvas, enfim, no ímpeto com que ameaçavam o
que a civilização apresentava de bom, nobre e honrado.
Essa herança cultural dos primeiros cronistas e historiadores
portugueses, no tocante à imagem dos índios, se constituía num pro-
blema, ou dilema, para alguns Românticos brasileiros. Para tratar
especificamente desse assunto, outro destacado autor indianista do
período, Gonçalves de Magalhães, escreveu o texto Os indígenas do
Brasil perante a História, 39 em 1859, direcionado a criticar a maneira
como os índios eram concebidos pelo historiador Francisco Adolfo
de Varnhagen, em sua História geral do Brasil. Baseado em boa parte
na obra quinhentista de Jean de Léry, Gonçalves de Magalhães bus-
cava valorizar a cultura e os índios tupi, defendendo-os como protó-
tipo do bom selvagem e como elementos importantes "na riqueza e
prosperidade" da sociedade que se tornara brasileira. Olianto aos ín-
dios do tempo presente, porém, sua atitude era sintomática. Logo na
abertura do ensaio, ele considera os índios em geral como "povo ven-
cido e subjugado" (p. 157), alertando, por isso, para a postura crítica
que os historiadores deveriam ter ao analisar documentos produzidos
pelos conquistadores sobre as vítimas, para não repetirem os mesmos
equívocos e preconceitos. Mais adiante (p. 229), ele volta a se referir
à condição indígena contemporânea nos seguintes termos:

Si podessemos ir por todas as Províncias do Império, contando


as aldeias, e numerando os Índios christianizados e domestica-
dos, em serviço das cidades, villas, fazendas, navegação, excur-
sões militares em prol da civilisação, veríamos o quanto em
maior cópia se fundiram na actual população do Brasil [.. .).

A ideia de uma escrita da história em defesa dos "vencidos",


pelo autor da famosa e polêmica obra A Confederação dos Tamoios e

39
D. J. Gonçalves Magalhães. Os indígenas do Brasil perante a História...
(1865). Texto publicado no número 23 da Revista do IHGB em 1860.
252 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

protegido direto de D. Pedro II, pode parecer à primeira vista gene-


rosa ou solidária com as populações indígenas. Havia, porém, um
aspecto a ser levado em conta: os índios não estavam completamente
subjugados. Permanecia, como o próprio Magalhães explicita, uma
considerável presença e visibilidade dos índios em todas as províncias
do Império. Apenas ele realiza a sutil (e bem-sucedida) operação intelec-
tual de colocar os conflitos indígenas para um remoto passado colo-
nial, enquadrando, a seguir, todos os índios seus contemporâneos do
Brasil na condição de domesticados e cristianizados. Não foram poucos
os autores dos séculos XX e XXI que embarcaram nesta armadilha
romântica. Os índios que conviviam de forma constante com a socie-
dade nacional não perdiam, imediatamente, suas identidades étnicas
(embora as transformassem), nem deixavam de desenvolver estratégias
de hibridismo cultural e resistência, mesmo que abandonassem o con-
fronto bélico. É certo que muitos morriam pela onda de violência ou
perdiam identidade étnica. Atritos e explosões intermitentes de violên-
cias ainda ocorriam. É preciso uma certa imersão naquele contexto
para entender o que Magalhães, visconde e frequentador assíduo dos
palácios imperiais, queria dizer com o apoio dos índios tidos como
domésticos a "excursões militares em prol da civilisação". Era a utili-
zação de índios "mansos" no combate a índios "bravos". Os silêncios
de Gonçalves de Magalhães eram eloquentes. Eles apontavam para a
presença de populações indígenas não plenamente enquadradas nos
moldes civilizadores da sociedade nacional, em confluência com o
Romantismo indianista. 40 Se os índios não deveriam mais ser aniquilados
pelo Estado, nem poderiam desaparecer repentinamente, tratava-se, pelo
menos, de fazê-los perder a visibilidade ou de considerá-los totalmente
controlados e em via definitiva de extinção, enquanto identidade es-
pecífica. Ou, para retomar a perspectiva enciclopédica e ilustrada,
retirar os índios das pequenas nações e dissolvê-los na grande nação.
A questão dos índios contemporâneos, pois, era crucial para a
elaboração do indianismo, fosse no plano literário, alegórico ou his-
tórico. O paradoxo permanecia: como defender a escolha das popu-

40 A presença de populações indígenas na segunda metade do século XIX no


Brasil como agentes históricos com diversificadas estratégias de resistência aparece
em vários estudos, como os de I. M. de Mattos (2004), J. R. B. Freire (2004) e nos
capítulos de A. L. Silva, M. K.arasch eM. H. Paraíso, in: M. M . C . da Cunha (org.),
História dos índios no Brasil. . . (1998).
O MAU SELVAGEM: ROMANTISMO, HISTÓRIA E CIVILIZAÇÃO 253
lações indígenas em símbolos da singularidade cultural e das origens
da nacionalidade no Brasil se, naquele mesmo tempo, os índios ainda
estivessem sendo subjugados, como na época (não tão longínqua) dos
portugueses? Os defensores do indianismo, como Gonçalves de Ma-
galhães, buscavam solucionar essa equação negando as opressões dos
índios no presente. Outros, como o historiador e visconde Francisco
Adolfo de Varnhagen, tinham posição oposta e rejeitavam o indianis-
mo justamente baseados na experiência de uma relação ainda confli-
tuosa e mal resolvida entre os índios e a sociedade nacional.

~al o lugar dos índios na (história) pátria?

Antes de tratarmos das divergências entre os viscondes de Ara-


guaia (Magalhães) e de Porto Seguro (Varnhagen) sobre os índios e
suas representações culturais, que envolveram outros nomes expressi-
vos do período romântico, como Gonçalves Dias e João Francisco
Lisboa, vamos nos ater ao lugar destinado aos Botocudos na elabora-
ção de um campo intelectual e, mais especificamente, de uma história
nacional no Brasil na primeira metade do século XIX.
Até onde constatamos, não houve nenhum estudo histórico ou
científico sobre os índios Botocudos feito ou publicado por brasilei-
ros antes da década de 1870, quando tais índios seriam abordados
pela nascente antropologia, como se verá no capítulo seguinte. Apa-
receram apenas relatos e apreciações, desiguais, relacionados às ativi-
dades administrativas ou projetos de civilização.
Entretanto, do outro lado do Atlântico, em Paris, no verão de
1843, a sensação no mundo científico foi a discussão em torno dos
índios Botocudos do Brasil, mobilizando o venerável Institut de France,
a Société de Géographie e outros grupos, gerando publicações em
francês (cf. capítulo seguinte). Ou seja, os Botocudos se transformavam
em reconhecidos objetos de estudo no cerne das instituições científi-
cas europeias que serviam como paradigma às congêneres brasileiras.
O debate sobre os Botocudos na Academia de Paris não pode-
ria passar despercebido entre as elites intelectuais brasileiras. Os di-
rigentes do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB, fun-
dado cinco anos antes) parecem então ter se dado conta: um tema que
girava no centro das mais recentes polêmicas científicas no Velho
Mundo (cuja "matéria-prima" era oriunda do Brasil) não havia ainda
sido tratado ou sequer considerado como tal no próprio país. Curiosa
254 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

triangulação, que fez os Botocudos entrarem no mundo da produção


intelectual e científica brasileira via Paris.
Como que buscando suprir tal lacuna, a Revista do IHGB começa
a imprimir os primeiros textos sobre os Botocudos no Brasil (os traba-
lhos de Saint-Hilaire, Wied-Neuwied e Debret foram impressos na
Europa e não haviam sido traduzidos). Inicialmente aparecem no tomo
6 da Revista (1845) nada menos que os relatórios elaborados na época
da Independência pelo ministro João Severiano Maciel da Costa, mar-
quês de Qyeluz. O primeiro texto foi intitulado "Ofício sobre a existên-
cia de índios botocudos às margens do rio Doce", título aliás significa-
tivo, que não consta no original e parece instaurar oficialmente o
reconhecimento, para o meio intelectual brasileiro, da existência de
tais grupos indígenas. No mesmo volume aparece outro relatório do
mesmo ministro, trazendo o projeto de colonização a ser imposto aos
Botocudos na mesma data. Temos, pois, dois textos estritamente admi-
nistrativos, sem caráter etnográfico ou histórico, embora importantes
para compor a documentação sobre a relação daqueles índios com a
sociedade brasileira. Era o que tinha a oferecer o então denominado
Instituto Histórico, Geográfico e Etnográfico do Brasil. Acrescente-
-se que a caracterização como documento histórico de um texto admi-
nistrativo de apenas vinte anos antes, e cujas determinações até então
vigoravam, tinha a sutil consequência de sugerir uma dimensão de
passado histórico à relação entre os Botocudos e o Império do Brasil.
Aparece depois, no tomo 9 da mesma Revista (de 1847), uma
tradução do "Notes sur les Botocudos", escrito pelo barão Edme
François de Jomard, célebre egiptólogo e publicada no ano anterior
no Bulletin de la Société de Géographie de Paris (da qual Jomard era o
presidente) e que, a bem dizer, consiste num trabalho superficial, que
retoma algumas citações de Wied-Neuwied e analisa um vocabulá-
rio botocudo-francês elaborado por um certo Marcus Porte (ao que
tudo indica um traficante de índios), baseado nos dois Nacknenucks
fotografados e levados à Europa.
A produção historiográfica do IHGB no período caracteriza-
va-se pela idealização do futuro à custa da manipulação do presente e
da construção de um passado a serviço da política, como definiu a
historiadora Lúcia Guimarães. 41 Essa resistência das elites intelectuais

41
L. M. P. Guimarães, Debaixo da imediata proteção de sua Majestade Imperial: o
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro ... (1995).
O MAU SELVAGEM: ROMANTISMO, HISTÓRIA E CIVILIZAÇÃO 255
brasileiras, a tratarem os índios chamados de Botocudos (e mesmo
outras tribos) como objetos de estudos nos anos 1840 está, justamen-
te, ligada às resistências que tais indígenas ainda apresentavam. O
lugar dos índios no campo cultural não se dissociava do espaço que
ocupavam no território nacional. Era o mesmo dilema que se mante-
ria na década seguinte para a geração romântica: como conciliar, si-
multaneamente, a valorização cultural (científica, estética ou políti-
ca) destes e de outros grupos indígenas, com as relações de contradição
que permaneciam?
E mesmo a lição do reconhecido von Martius (que pregava a
incorporação primordial dos índios à composição de uma história do
Brasil baseada na "mistura das raças", embora premiada em concurso
como "projeto de história do IHGB") não foi, paradoxalmente, se-
guida pelo próprio instituto no período imperial. Tal texto, intitulado
"Como se deve escrever a história do Brasil", depois de laureado, foi
alvo de restrições dos membros da instituição, que afirmaram: "talvez
seja inexequível na atualidade". E a presença indígena foi mitigada
nas páginas da Revista do IHGB em seus primeiros tempos. 42 Era,
ainda, o mesmo quadro intelectual que gerava defasagem entre as
"novas ideias" europeias e as formulações das elites culturais brasilei-
ras, que, por sua vez, faziam uma triagem nas "influências" que dese-
javam acolher.
Seria preciso aguardar algumas décadas, ainda no século XIX,
para solucionar a dupla e interligada equação. A literatura e as alego-
rias indianistas afloraram em fartura nos anos 1850-1860, conforme
foi demonstrado e analisado por Lilia Schwarcz. 43 Mas deixavam de
lado os Botocudos e destacavam positivamente os Tupis ou imagens
indígenas sem identificação étnica. E somente quando os Botocudos
deixavam de ser um problema contemporâneo, poderiam ser admiti-
dos no cenário científico. Em fins do Oitocentos e primeiras décadas
do século XX uma considerável quantidade de estudos nacionais e
estrangeiros, bem como textos que ganhavam o status de documentos
históricos, foram compilados, selecionados e impressos não só pelo
IHGB, mas pelos Institutos Históricos de outras províncias (sobretudo
Espírito Santo e também pela Revista do Arquivo Público Mineiro, no

42
Ibidem, pp. 573-8. A autora analisa do ponto de vista quantitativo e quali-
tativo a produção da Revista do IHGB sobre os índios no período.
43
L. Schwarcz. As barbas do imperador. . ., pp. 132-41.
256 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

caso tratado aqui) e pelo Museu Nacional. Era, ao mesmo tempo, o


ocaso dos Botocudos enquanto guerreiros.
Evidente que tais tribos já eram bem conhecidas, fosse porque
ocupavam ainda parcelas do território brasileiro numa região próxi-
ma da Corte, ou porque já tinham sido visitadas por autores euro-
peus. Mas justamente pelo fato de se manterem em áreas estratégicas
(que como tal não podiam ser plenamente incorporadas ao território
nacional) esses índios constituíam desafio presente e não eram perce-
bidos como objetos de estudo ou passíveis de se transformarem em
símbolos alegóricos, a não ser os pejorativos. Os Botocudos eram (a
contragosto de todos, até mesmo deles próprios) agentes históricos
da sociedade nacional, apesar das tentativas de desqualificação ou de
invisibilidade pelas elites intelectuais e políticas que tinham como preo-
cupação central contribuir para a elaboração de uma homogênea nacio-
nalidade brasileira. Elaborar identidade nacional é como construir
espelho onde uma coletividade possa se enxergar. Os Botocudos, nesse
caso, apareciam como imagem invertida, avesso do que não se pre-
tendia, origem ao mesmo tempo renegada e que se buscava superar. 44
Os historiadores de então não ignoraram - nem poderiam
ignorar - a presença indígena na sociedade, mas conceberam de
diferentes pontos de vista a maneira como esses povos entrariam na
construção da narrativa. E, por se tratar de uma história voltada para
a elaboração de uma identidade nacional, tratava-se indiretamente de
definir a inserção dos grupos indígenas no corpo da nacionalidade
brasileira.
Episódio marcante na vida pessoal do então jovem Francisco
Adolfo de Varnhagen foi quando, na fronteira entre Paraná e São
Paulo, caminhando ao lado de "bugreiros" (caçadores de índios ou de
"bugres"), na espreita dos índios inimigos, chegou a carregar duas
pistolas, com a intenção de atirar. Mas as pistolas não foram dispara-
das e o embate acabou não ocorrendo. 45 Porém, a guerra feita de
palavras foi adiante, detonada com vigor. A predisposição de Varnhagen
de atirar para matar revelava traços arraigados em suas convicções
acerca do "problema" indígena no Brasil, delineando a escrita do futuro

44
Sobre o papel dos Botocudos nas representações raciais brasileiras do século
XIX,]. M. Monteiro. fu raças indígenas no pensamento brasileiro durante o Império...
45
F. A . de Varnhagen. Os índios bravos e o Sr. Lisboa . . ., 1867. fu citações a seguir
de Varnhagen são dessa mesma fonte.
O MAU SELVAGEM: ROMANTISMO, HISTÓRIA E CIVILIZAÇÃO 257
historiador, que literalmente se colocava ao lado das frentes de ex-
pansão do século XIX.

O estudo da História pátria veio a contribuir a radicar em meu


ânimo as ideias que acerca da civilização dos nossos Índios, já
professava, como cidadão e como político, pela simples obser-
vação do que se passa no país.

Ou seja: foi, também, na percepção do contato com os índios


seus contemporâneos que Varnhagen desenvolveu sua visão sobre tais
povos na história do Brasil, numa posição clara, a favor das violências
que se cometiam contra os indígenas.
Ainda quanto aos índios de sua própria época, o visconde de
Porto Seguro criticava abertamente a postura adotada pelo governo
central após a Independência, isto é, a incorporação à sociedade na-
cional e à civilização por meios ditos brandos:

Precisamos civilizar o Império, fazer todos em sua extensão


obedecer ao pacto proclamado, e a experiência de mais de meio
século tem provado a insuficiência dos meios brandos, que são
justamente os mais gravosos para o Estado.

Nessa perspectiva se compreende o elogio histórico que fazia à


Guerra de 1808-1824, como se verá a seguir, além de formular sua
atualização. Isto é, apregoava a retomada oficial do combate ofensivo
e da escravização dos índios. Ou seja: para superar a dicotomia entre
a postura civilizadora do governo central e a iniciativa guerreira das
frentes de expansão e autoridades locais, o historiador-cidadão inci-
tava a adesão da Coroa imperial à violência explícita. Varnhagen,
dando seguimento ao mesmo raciocínio, propôs (escrevia em 1866)
que os heróis da Guerra do Paraguai, então em curso, ao voltarem
dos campos de batalha recebessem como prêmio as terras onde ainda
estavam "índios bravos", bem como seus "braços" para trabalhar.
A ação de diversos grupos indígenas - entre eles os Botocudos
- aparece na obra e na elaboração das ideias que nortearam o his-
toriador Francisco Adolfo de Varnhagen- presença nem sempre
admitida claramente, mas que se percebe num exame mais atento dos
diversos textos do autor, que aliás dedicou grande parte dos seus
esforços a estudos sobre o passado indígena no Brasil. Varnhagen,
258 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

normalmente chamado "pai da história oficial", elaborou uma das


mais bem estruturadas obras de história do Brasil, com ampla base
documental, mesmo sendo conhecidas suas intenções apologéticas
em relação à Monarquia e o caráter acentuadamente conservador,
contrarrevolucionário e racista de sua visão de mundo, segundo al-
guns de seus próprios contemporâneos. Sabe-se que a preocupação
central de Varnhagen ao escrever história era a construção da na-
cionalidade - daí o título de visconde de Porto Seguro outorgado
por D. Pedro II a este que, relendo o passado, redescobria e elaborava
um Brasil.
A maneira como Varnhagen registrou e analisou a presença dos
índios na História permanece ainda nos dias atuais, em alguns li-
vros didáticos, nos meios de comunicação e mesmo num certo senso
comum. Suas posições a esse respeito são fáceis de resumir: defen-
dia sempre o ponto de vista do conquistador, do branco, da civiliza-
ção, da guerra e da sujeição dos índios, que por sua vez eram associ-
ados à barbárie, ao primitivismo, à violência, irracionalidade e
ferocidade. Poder-se-ia dizer que Varnhagen retomava neste tema a
abordagem dos chamados "cronistas coloniais" (legenda de feroci-
dade, defesa do extermínio). Mas afirmar apenas isso seria inexato e
empobrecedor. Inegavelmente ele herdara e reforçava em grande parte
essa perspectiva, mas sua obra se pautava pela busca de cientificida-
de e exatidão nos estudos históricos e pela perspectiva de fundar
uma nação homogênea dentro dos parâmetros da modernidade li-
beral conservadora.
Ao contrário de muitos historiadores da nação do século XX
(também marxistas), Varnhagen não começa sua História geral do
Brazil (primeira edição de 1854) em 1500, com a chegada dos por-
tugueses. Mas dedica uma Seção inicial ao meio geográfico, forma-
ção do solo, fauna e flora, seguida de mais três Seções sobre a vida
dos índios no período pré-cabralino, onde fala das tribos em geral,
mas refere-se apenas aos Tupis: língua, usos, armas, indústria, ideias
religiosas e organizações sociais. Ainda no tomo I, escreve outra Se-
ção sobre os primeiros contatos entre colonos e índios. Não cabe aqui
analisar exaustivamente a posição de Varnhagen sobre os índios, mas
apenas algumas referências que situem o tema estudado.
Uma síntese lapidar da visão de Varnhagen sobre os índios é
feita por ele próprio:
O MAU SELVAGEM: ROMANTISMO, HISTÓRIA E CIVILIZAÇÃO 259
Essas gentes vagabundas que, guerreando sempre, povoavam o
terreno que hoje é do Brasil, eram pela maior parte verdadeiras
emanações de uma só raça ou grande nação (p. 24).

Assim, colocava-se: a vagabundagem, contraponto do trabalho


produtivo; o caráter guerreiro, que caracterizava muitas destas tribos
e que representava também a resistência contra os colonizadores; a
homogeneização racial, eliminando a pluralidade de grupos e etnias
existentes; e a ideia de simples ocupação de um terreno opondo-se à
uma organização nacional.
Há um ponto na obra de Varnhagen bem curioso. Na polêmi-
ca que travaria com João Francisco Lisboa acerca dos índios bravos,
ele tenta criar um "fato histórico" ou uma "data histórica" (pois datas
e fatos também passam pelo crivo da subjetividade). Varnhagen afir-
ma com sua habitual ênfase e apoio nas fontes documentais que a
primeira agressão entre portugueses e índios no Brasil ocorreu por
iniciativa destes. Descendo a detalhes, ele situa o episódio no dia 27
de agosto de 1501, quando a expedição de Américo Vespúcio aporta
na costa onde hoje é o Rio Grande do Norte, um dos membros da
tripulação desembarca e é cercado por um grupo de índias que o
atingem na cabeça com tacape, morrendo na hora. 46 O restante dos
portugueses volta correndo para a nau em meio a uma chuva de flechas.
Foi aí que, segundo Varnhagen, tudo começou. O "fato" tem conclusões
lógicas e é apresentado para legitimar todas as posteriores agressões
cometidas pelos colonizadores, pois, afinal, os índios é que começa-
ram a guerra. Esta "data histórica", ao contrário de outras, não vin-
gou na memória ou nos estudos históricos, provavelmente por sua
fragilidade e pela avalanche de iniquidades que ela procura justificar.
Varnhagen não poderia ignorar a importante presença dos
Aimorés ao longo de todo período colonial. E realmente diversos
episódios envolvendo esses grupos são citados na sua História geral.
Mas o nome ''Aimorés" raramente aparece (salvo para os "cruentos
Aimorés"), 47 ou melhor, não é escrito para nomear e identificar agen-
tes históricos. Varnhagen utiliza largamente a noção de "Bárbaros",
que ele aplica aos índios em geral e aos Tapuias em particular, evitando
também esta última classificação. Mesmo os episódios notoriamente

46
F. A. de. Varnhagen. Os fndios bravos e o Sr. Lisboa. . ., 1867.
47
Hist6ria geral do Brasil. .. , t . 1, seção I, p. 28.
260 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

envolvendo os Aimorés, como o fracasso das capitanias de Ilhéus,


Porto Seguro, São Tomé e Espírito Santo são narrados com referên-
cia genérica aos "Bárbaros", sem cara, sem palavra e sem nome.
Os Aimorés são nomeados na obra do visconde de Porto Segu-
ro sobretudo nos Anexos, onde se transcrevem documentos das épo-
cas estudadas, ou ainda em edições póstumas, nas notas e comentários
de Capistrano de Abreu e Rodolfo Garcia. Com tal operação intelec-
tual de usar uma expressão genérica (Bárbaros) englobando todas as
tribos, Varnhagen demonstra uma dimensão de suas posições ideoló-
gicas menos evidente que seus discursos veementes contra os índios,
dimensão que permanece nos dias de hoje, em que o progresso, a
modernização nacional e homogeneizadora tendem a apagar a plu-
ralidade étnica das populações do Brasil. Os índios são muitas vezes
percebidos de maneira estereotipada e uniformizada, além de terem
negada ou minimizada sua presença como atores do processo históri-
co. Ignorar o nome equivale a negar identidade e recusar a presença
desses grupos como atores do processo histórico. Entretanto, numa
escorregadela semântica e anacrônica, ao referir-se a um castelhano
que no século XVI, no Rio Grande do Norte, passou a viver entre os
índios, Varnhagen afirma que ele "se fez Botocudo". 48
Mesmo ao tratar da declaração de guerra ofensiva em 1808
pela Coroa portuguesa, Varnhagen não escreve "Botocudos" e sim
"índios bravos" e refere-se a essas tribos nômades como "quilombos
de índios", acrescentando a sugestão de que tais "quilombos" de índios
deveriam ser tratados da mesma forma que os formados por escravos
africanos, ou seja, perseguidos e dizimados. No vocabulário desse histo-
riador nacional permanecia a tradição de considerar os índios como
"negros da terra". E Varnhagen defendia (ainda em 1854) a iniciativa
de D. João VI sob a argumentação de que a guerra apenas defensiva
era inócua e improdutiva, uma vez que deixava a iniciativa com os
atacantes e permitia que estes guerreassem em seus próprios terrenos.
Varnhagen era um "colonizador bravo" que não se furtava em
criticar os "colonizadores mansos". Assim, ainda a propósito da guer-
ra ofensiva de 1808, ele reprova a experiência das Missões jesuítas,
afirmando que elas só fizeram reduzir os territórios da Conquista em
benefício dos territórios indígenas. E afirma que, para o Brasil do
século XIX, não queria o que considerava o exagero dos Estados

48
Hist6ria geral do Brasil. .. , t. 1, p. 197.
O MAU SELVAGEM: ROMANTISMO, HISTÓRIA E CIVILIZAÇÃO 261
Unidos, onde havia uma política deliberada de extermínio das popu-
lações indígenas. Para Varnhagen, era preciso colocar as forças mili-
tares e as frentes de expansão de caráter privado em contato com os
índios, fazendo que estes se submetessem à força e levando-os para
reformatórios educacionais e trabalhos forçados, onde aos poucos eles
iriam se integrando à sociedade e ao trabalho produtivo e deixando
de serem índios.
Como foi visto, não só o Varnhagen historiador trataria dos
índios, mas também o polemista, escrevendo panfletos e defendendo
suas posições. 49 Nesses escritos ele atacaria os "philotapuias", que
consideram os índios como "verdadeiros donos da terra", ironizando
que, se assim fosse, todos os brasileiros seriam "criminosos" que esta-
riam "de posse do que é de outrem". Explicitando seu ponto de vista
como cidadão, o visconde-historiador faz questão de lembrar que, no
momento em que ele escreve suas obras, ainda existem "índios bravos"
que fazem uma "guerra civil" em pelo menos dez províncias do Im-
pério: Santa Catarina, Paraná, Maranhão, Amazonas, Goiás, São Pau-
lo, Rio Grande do Sul, Pernambuco, Minas Gerais e Espírito Santo,
onde ele não deixa de assinalar o problema da região do rio Doce.
Para comprovar a existência desses conflitos com indígenas Varnhagen
citava os relatórios dos presidentes destas províncias entre 1834 e
1850, por ele estudados minuciosamente- documentação, aliás, ainda
hoje facilmente disponível para verificação. Diante desta "guerra ci-
vil" (entra aí exagero, pois os índios a esta altura não colocavam em
perigo a nação como um todo, mas sim em conflitos localizados,
embora ainda abrangentes e portadores de situações de violência) o
historiador-cidadão-visconde-patriota não podia deixar de tomar
partido e essa posição prévia, ou preconceito, reflete-se em suas obras.
Confirmando mais uma vez que o historiador olha para o passado
com os pés no presente. O visconde de Porto Seguro encontrava res-
paldo para seus argumentos pragmáticos aproveitando-se da fragili-
dade da idealização e do gosto pelo exotismo que caracterizava mui-
tos dos "defensores" ou simpatizantes dos índios nos meios urbanos
- que de um modo geral desconheciam as condições de vida das
tribos e se inspiravam num Romantismo europeizado.
Varnhagen, por sua vez, servindo como diplomata em Lima,
deplorava os ataques que índios haviam feito naquele momento (em

49
F. A. de. Varnhagen. Os {ndios bravos e o Sr. Lisboa. .. , 1867.
262 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

1866) no rio Javari à Comissão de Limites Brasil-Peru, lamentando


"os insultos feitos à humanidade, aos interesses internacionais e até as
ciências". Para o historiador-diplomata-visconde-cidadão, os índios
eram um problema de Estado, no passado e no presente.
Se românticos como Gonçalves de Magalhães buscavam mini-
mizar os conflitos contemporâneos com os grupos indígenas para
justificar o indianismo literário, outros românticos de matiz diverso,
como Varnhagen, realçavam os mesmos conflitos, para criticar a opção
indianista nacional. Neste caso, apesar do exagero ao enfatizar uma
guerra civil contra os índios, o conservadorismo anti-indígena do
visconde de Porto Seguro era mais coerente do que as alegorias do
indianismo oficial do Segundo Reinado brasileiro. Os grupos indí-
genas não estavam completamente domesticados e cristianizados
(como pretendiam Gonçalves de Magalhães e outros) e ainda apre-
sentavam resistências, mesmo diante do massacre cotidiano que per-
sistia contra eles.
Tais ideias de Varnhagen, embora expressassem práticas sociais
da monarquia brasileira, dificilmente passariam incólumes num mo-
mento de ascensão do Romantismo - onde a figura do indígena,
ainda que mitificada, era valorizada em algumas circunstâncias.
E foram precisamente as ideias do visconde de Porto Seguro
sobre os "índios bravos" que geraram uma polêmica com um historiador
e jornalista, o maranhense João Francisco Lisboa, redator do conhecido
jornal de Timon, onde fazia oposição liberal ao Segundo Reinado.
Com este autor temos uma visão distinta do tema. Francisco Lisboa
acusava Varnhagen (de quem fora amigo próximo) de fazer apologia
da guerra, de ter ideias retrógradas e de demonstrar não só animosi-
dade, mas de pregar o extermínio dos índios. A polêmica teve réplicas
e tréplicas. Mas o escritor maranhense, embora criticasse os "coloni-
zadores bravos" do tipo de Varnhagen, não se preocupava em propor
nenhuma política indigenista: seu objetivo era situar a questão indí-
gena dentro da escrita da História. Partindo também do ponto de
vista da civilização ocidental, que era a sua, Lisboa concebia a Histó-
ria como "longa narração de crimes e atrocidades de todo gênero". E
sobretudo procurava destacar, dentro dos paradigmas de seu tempo, o
caráter científico, objetivo e verídico da escrita da História.
Francisco Lisboa também considerava os índios como bárbaros,
mas defendia o direito de se conservarem enquanto tal e de permane-
cerem de posse das terras. O que era uma considerável diferença com
O MAU SELVAGEM: ROMANTISMO, HISTÓRIA E CIVILIZAÇÃO 263
seu antagonista visconde. E desejava que não houvesse incompatibi-
lidade entre a permanência dos índios e a ocupação simultânea do
território pelo colonizador europeu, enquanto agente da civilização,
que poderia até, nessa perspectiva, trazer melhores condições de vida
para as populações autóctones. O que Francisco Lisboa condena com
veemência são as guerras, extermínios e escravidão a que os índios
foram submetidos. (Seria esta uma das razões pela qual ele nunca
escreveu sua história geral do Brasil, obra que tantos esperavam dele?
Enquanto patriota convicto ele não gostaria de escrever uma longa
narrativa de crimes e atrocidades?) Em seguida o autor faz reflexões
sobre a guerra e sobre as relações entre esta e o progresso, concluin-
do, contra Varnhagen, que embora a guerra possa trazer algum estí-
mulo ao progresso e à civilização, ela possui um caráter eminente-
mente destruidor e tanto pode servir à civilização quanto à barbárie. 50
João Francisco Lisboa coloca-se numa espécie de equihbrio, ou
juste milieu, como se dizia então nos meios intelectuais e políticos. Se
ele critica o conservadorismo de Varnhagen, também se opõe, embo-
ra num tom mais respeitoso, ao indianismo literário do poeta Gon-
çalves Dias - seu contemporâneo e conterrâneo maranhense. Fran-
cisco Lisboa faz questão de lembrar que o Brasil era fruto da civilização
ocidental, dos portugueses colonizadores, dos quais herdara a língua
e os costumes. No mesmo trabalho ele lamenta que Gonçalves Dias
fizesse o que lhe parecia ser a apologia dos índios:

[... ] confundindo a historia com a poesia e a ciências dos fatos,


e o juízos severos da razão com os devaneios da imaginação,
quis identificar a atual nação brasileira com essas tribos ferozes
e pos a nossa prosperidade dependente da sua completa reabili-
tação [... ].

Mas qual seria então a perspectiva de Gonçalves Dias? Além de


Gonçalves Magalhães, Varnhagen e Francisco Lisboa, temos aí uma
quarta visão sobre os índios e a História do Brasil no mesmo período
romântico.
Antônio Gonçalves Dias, primordial poeta do Romantismo bra-
sileiro, teve sua obra marcada pelo indianismo literário. Numa atitu-
de típica do Romantismo (mas que neste poeta maranhense ganhou

50 F. A. de. Varnhagen. Os índios bravos e o Sr. Lisboa . .. , 1867.


264 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

forma original, sobretudo pelo vigor e qualidade de sua poesia), os


índios foram por ele considerados como símbolo das "origens" na-
cionais que se buscava valorizar. Mais do que valorizar, tratava-se de
elaborar estas tradições no século XIX. E seus textos poéticos foram
precedidos de longas pesquisas históricas.
A pretexto de escrever a Introdução para a reedição dos Annaes
Historicos do Estado do Maranhão, um clássico da narrativa histórica
do século XVIII escrito por Bernardo Pereira de Berredo, Gonçalves
Dias acaba escrevendo um verdadeiro manifesto com suas concep-
ções sobre a dimensão dos índios na escrita da história do Brasil. 51
Eis um trecho:

O primeiro topico de que havemos de tratar na historia do


Brasil é dos lndios. Elles pertencem tanto a esta terra como os
seos rios, como os seos montes e como as suas arvores. [. .. ]
Elles forão o instrumento de quanto aqui se praticou de util e
de grandioso; são o princípio de todas as nossas coisas; são os
que derão a base para o nosso caracter nacional, ainda mal de-
senvolvido, e será a coroa da nossa prosperidade o dia de sua
inteira reabilitação.

Dessa maneira, Gonçalves Dias colocava como indispensável a


presença indígena na escrita da História no Brasil. Usava um argu-
mento que dava a tal presença um direito, digamos, natural, ao lado
dos demais elementos da natureza. Em seguida, valoriza os indígenas
como instrumentos do que se produziu de útil, subtendendo-se pro-
vavelmente daí a utilização como mão de obra na colonização. Em
seguida, destaca a base para o "caráter nacional" (não é um ponto
muito claro: estaria ele falando das contribuições cultural ou genética
na formação da sociedade?). E ressalta o que considera como a in-
completude da identidade nacional brasileira - deixando entrever
que determinada valorização do elemento indígena poderia contri-
buir para o futuro da elaboração de tal identidade. O poeta e pes-
quisador critica ainda a brutalidade das guerras, da Conquista c da
escravidão (vendo nos índios, cm contraponto, o "amor ardente da
liberdade").

51
A. G . Dias. Introdução aos Annaes Históricos do Maranhão por Berredo. ln:
Bernardo Pereira de Berredo. Annaes Históricos do Estado do Maranhão . .. , 1849.
O MAU SELVAGEM: ROMANTISMO, HISTÓRIA E CIVILIZAÇÃO 265
Na mesma medida em que propunha esses fatores, Gonçalves
Dias criticava outros pontos de vista na própria elaboração do passa-
do histórico brasileiro. Ainda a propósito de Berredo, ele atacava
determinado modelo historiográfico e afirmava:

O que lhe importa é a Conquista, o que lhe interessa são aquellas


insignificantes commoções de uma cidade dividida em classes
tão disparatadas - são as representações da C amara do Senado
- as exigências dos colonos, as ordens da metropole, os com-
boios annuos, as digressoes dos Governadores, os resgates dos
Indios. O que é portuguez é grande e nobre, o que é de índios é
selvatico e irracional, o que é de extrangeiros é vil e infame.

Assim, além de criticar a concepção de uma História escrita do


ponto de vista dos Conquistadores e colonizadores, o poeta maranhense
propunha, também, a presença dos grupos indígenas neste processo.
Presentes como símbolos ou como personagens? Tudo leva a crer que
como personagens da narrativa histórica, da mesma forma que ele
fazia em seus poemas ou romances. "Eis porque as primeiras paginas
da historia do Brasil estão alastradas de sangue, mas de sangue
innocente vilmente derramado".
Em seguida, Gonçalves Dias defende o estudo sistemático dos
povos indígenas, suas culturas, suas línguas, etc. E passa a fazer um
rápido resumo dos principais grupos do Brasil. Procurando não
explicitar o binômio Tupis e Tapuias e evitando o estigma de bravos
ou mansos, ele fala das tribos tratadas aqui (e que correspondem a
uma parcela dos que são atualmente considerados como Macro-Jê):

Goitakases, Aymorés, Cramcrans ou Botocudos erão talvez ou-


tras raças que vierão do Peru; habitavão os certões [... ] os
aymorés tinhão medo a agua, o que prova quam pouco affectos
estavão elles a vista do mar.

A possibilidade dos índios do território brasileiro terem emi-


grado da região do Peru apresentava-se para Gonçalves Dias plena de
possibilidades: ao mesmo tempo ele associava-os às civilizações andinas
materialmente mais complexas e aventava a hipótese de que tais gru-
pos teriam vindo para o Brasil a fim de escapar da "tirania" dos incas,
atribuindo-lhes assim mais uma vez, ainda que implicitamente, o gosto
266 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

pela "liberdade". Sendo assim, o poeta maranhense estaria afinado ao


já citado escapismo em direção aos indígenas da América espanhola.
Por outro lado, é significativo destacar que nesta rápida referência aos
Aimorés e Botocudos o escritor maranhense não retoma as denúncias
de selvageria, antropofagia e barbárie ainda vigentes. Entretanto,
Gonçalves Dias não esconde sua predileção pelos Tupis e Guaranis,
considerados por ele numa visão de conjunto como a "tribo mãe" do
Brasil, como, aliás, deixou transparecer em suas obras poéticas.
Nesse ponto, aliás, Gonçalves Dias e Varnhagen estariam de
acordo. Verdade que ambos tinham percepções diametralmente opostas
ao papel do índio na história, na invenção das tradições nacionais e
mesmo nas políticas indigenistas contemporâneas. Mas por detrás
dessas diferenças ambos se viam marcados pela produção intelectual
(oriunda dos antigos cronistas, dos relatórios dos administradores e
das tradições orais) que estigmatizava os índios "bons" (Tupis-Guaranis)
e os "maus" (Aimorés-Botocudos).
Neste cruzamento entre História, Romantismo e Nação a socie-
dade brasileira continuava seu embate "simbólico", isto é, de símbo-
los culturais, ao mesmo tempo que mantinha, na prática, atitude vio-
lenta no âmbito das relações sociais, nas tentativas de domesticação
ou destruição dos modos de vida das populações indígenas.

Minas Gerais no tempo do Romantismo:


ainda entre civilização e conflito

Enquanto tais polêmicas historiográficas e literárias perfaziam


caminho de idas e vindas entre os índios do passado e do presente,
entre os símbolos criados e as relações estabelecidas, o contato direto
com os Botocudos continuava gerando iniciativas registradas em tes-
temunhos escritos.
O principal registro para o conhecimento dessas tribos nos anos
1830 (embora só tenha sido impresso em 1903) veio do francês Pierre
Victor Renault (fixou residência em Minas e passou a se chamar
Pedro), encarregado de trabalho na região dos Botocudos em 1837.52
Renault era médico homeopata e engenheiro responsável por estudos
geográficos e topográficos para a escolha do local de construção de
uma "colonia de degredados e vagabundos". Repetia-se a fórmula do

52
Pedro Victor Renault. RAPM, VIII, pp. 1049-56 [1836].
O MAU SELVAGEM: ROMANTISMO, HISTÓRIA E CIVILIZAÇÃO 267
século XVIII, quando da criação de presídios de "vagabundos úteis"
para ocuparem territórios indígenas.
Agora, fins dos anos 1830, os Botocudos ainda impediam a
mineração em Minas Novas, sobretudo a tribo dos Jiporocas (Gypo-
rocks, referidos por Ottoni). A localidade tinha jazidas de crisólitas e
águas marinhas, mas vivia na pobreza. Os índios causavam temor e
sua presença não incentivava a colonização. Mas eles não eram os
únicos causadores da falta de desenvolvimento: o solo estava gasto
por anos de agricultura predatória.
Os fazendeiros da região exultaram com a chegada de Renault,
esperando que ele fosse livrá-los dos índios, e se cotizaram para fi-
nanciar sua expedição, que incluía os rios Mucuri, Todos os Santos e
afluentes. O principal financiador foi Antônio José Coelho, dono da
maior propriedade rural da região, com mais de cem escravos, mas
cujas terras na fronteira da floresta eram as mais atingidas pelos
Naknenuks, outro importante grupo Botocudo, que matava gado e
destruía plantações. O francês conseguiu arrecadar cerca de 300$000,
os quais seriam usados para abertura de uma estrada e para compra
de brindes aos índios. O governo colaborou com o envio dos milita-
res da 2. • Divisão, reforçados com mais vinte praças. Mas para sur-
presa dos militares e dos financiadores da empreitada, o engenheiro
Renault reuniu-se e avisou que não se tratava de uma expedição guer-
reira ou punitiva. E foi além: quem atirasse contra os Botocudos
levaria um tiro dele próprio.
Descendo o rio Preto (onde deságua o Mucuri) em canoas, o
grupo penetrava em pleno território ainda ocupado pelos índios. Logo
eles se deparam, numa das margens, com um grupo de oitenta índios,
em atitude hostil, mas que não atiram flechas em razão da extensa
largura do rio. Mas, com gritos, avisam aos outros, que se encontram
mais adiante, da presença dos exploradores. Assim, as canoas iam
avançando pelo rio sem poderem aportar, cercadas de índios que os
ameaçavam. Os grupos de Botocudos se sucediam, causando pavor
aos invasores. Eram ainda, nas palavras do francês, "mattas tão vastas,
gigantescas, bellas e ricas regadas por tão abundantes rios". Dessa
forma, impedidos de parar para se abastecer, a expedição passou a
viver em estado de penúria, sobrevivendo, como os índios, de caça,
pesca e colheita feitas em fugazes paradas. O grupo dirigido pelo
francês experimentava, ainda que temporariamente, o que era viver
como essas tribos viviam.
268 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

A situação se prolongou por vários dias, pois a maioria do gru-


po ainda aguardava a volta de mensageiros que retornaram, pelo rio,
para buscar reforços. Numa das paradas, porém, se viram cercados
por Botocudos. Choviam flechas. Renault insistia com os soldados
para não atirarem. As flechas silvavam cada vez mais perto, o pânico
e a tensão aumentavam. Os "línguas" que acompanhavam a expedição
gritavam para os atacantes que o grupo era de paz, mas os apelos não
faziam efeito. Renault, numa última cartada, lembrou-se das referên-
cias que ouvira sobre a facciosidade do grupo e teve súbita inspira-
ção: pediu aos intérpretes para dizerem que a expedição estava ali
para guerrear a tribo encontrada anteriormente. As flechas cessaram.
Os índios, após alguns momentos, apareceram rindo, descontraídos,
pedindo vingança contra o grupo anterior, aceitaram os presentes e
deixaram a expedição passar. Renault prometia ser um bom pacificador.
No rio Setúbal, ele encontrou-se com trezentos Botocudos, alguns
ainda "bravos", mas que acompanhavam os "mansos" para buscar os
presentes e se internarem nas matas de novo.
Renault conviveu largamente com os índios, incorporando os
"mansos" à sua expedição. Seu convívio foi com os Naknenuks (que
segundo ele significava: habitantes da serra). Os Jiporocas recusavam
o contato: rondavam a expedição, deixavam rastros evidentes mas não
aceitavam os presentes deixados na floresta nem respondiam aos cha-
mados dos intérpretes. Estes dois grupos eram nômades.
O francês recolheu dados de interesse etnográfico, também um
vocabulário. O que lhe impressionou foi a semelhança desses índios
com os chineses, não só na aparência física, mas na "linguagem muito
aspirada". Ele foi tocado também pela relação carinhosa entre os pais
e filhos, citando um caso onde uma criança bateu no pai e este fingiu
chorar de dor, sem repreendê-lo - o que contrastava com a rigidez
familiar e educacional das sociedades ocidentais do século XIX. Renault
registrou também, ainda que de forma rudimentar, a transmissão da
identidade cultural de geração em geração, notando que os adultos
ensinavam aos filhos a "nunca deixar impune qualquer offensa" e re-
forçavam o "genio extraordinariamente vingativo e independente".
O médico e engenheiro francês afirma a antropofagia desses
grupos, embora não dê indícios de que tenha testemunhado algo nem
explica de quem ouviu tal afirmativa, se de índios ou de colonos. Mas
diz que a carne humana preferida seria a dos negros, cujo nome, an-
korá, significaria "macaco do chão". Renault colheu várias espécies
O MAU SELVAGEM: ROMANTISMO, HISTÓRIA E CIVILIZAÇÃO 269
de plantas para homeopatia, algumas já conhecidas, outras cuja apli-
cação ele desconhecia, apropriando-se, assim, de saberes desse grupo
indígena.
Do ponto de vista religioso, o francês anotou a existência de um
"ente supremo", associado por ele a Tupã, cujo nome era Krenhouh
Jissa Kiju, traduzido simplificadamente por Chefe Grande. Qyando
trovejava, os índios lançavam flechas para o ar e gritavam: "Krenhouh
Jissa Kiju Jemes!" ("Chefe grande está bravo, é preciso acalmá-lo").
Ele anota também o Nantchou (que traduz como "Diabo").
O engenheiro notou ainda que a maioria dos índios não usava
barba, mas, ao contrário dos observadores precedentes, supõem que
eles a arrancavam, cabendo apenas aos mais bravos a prerrogativa de
portar pelos no rosto. Cita como exemplo o "capitão" dos Naknenuks
que tinha cavanhaque. Não seria um caso de descendência de brasi-
leiros ou africanos? Aliás, este mesmo chefe, cujo nome ele não cita,
pouco tempo depois acabou largando a selva, tornou-se empregado
doméstico numa residência.
No vocabulário feito por Renault encontra-se um dado interes-
sante. Ele registra cozinhar como "kitote" ou "kitute". Os dicionários
brasileiros atribuem origem africana à palavra quitute, cujo sentido
original seria indigestão, mal-estar causado pela alimentação. É difí-
cil sair do terreno das suposições. Os observadores teriam anotado o
que seria uma influência ou empréstimo linguístico africano entre os
índios? Ou a palavra incorporada à üngua portuguesa teria vindo dos
Botocudos, onde o sentido de cozinhar se aproxima mais da conotação
positiva, de iguaria e sabor, associada à palavra quitute? Neste caso,
na diferença entre o cru e o cozido, teria se cristalizado uma das
influências (ainda que não reconhecida) das tribos de "índios bravos"
à cultura brasileira.
Mesmo produzindo seu conhecimento etnográfico a partir de
uma perspectiva de colonização, Pedro Renault formulou, com fir-
meza, a condição humana e inteligente desses índios, até então predo-
minantemente vistos e caçados como animais, bárbaros e desprovidos
de características humanas básicas. Este engenheiro francês manti-
nha-se, assim, na perspectiva intelectual da Ilustração europeia pre-
sente nos primeiros viajantes do século XIX, de afirmar o caráter
potencialmente humanizado (e até mesmo criativo e cordial) e passí-
vel de civilização dos índios, o que encontrava oposição entre os gru-
pos letrados brasileiros.
270 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

He incrível a facilidade com que os Botocudos inventam palavras


para designar objectos desconhecidos; he como por uma inspira-
ção e acclamação unanime e sempre no meio de risadas e alaridos.

Ao contrário da imagem de embrutecimento e ignorância dian-


te da civilização, percebe-se aqui estes Naknenuks tocados pelo mais
fino espírito de inteligência, reelaborando e reinventando os nomes
dos objetos que até então lhes eram desconhecidos, criando para eles
novos códigos, assimilando o novo à sua visão de mundo já sedimentada,
rindo diante do desconhecido e transformando essas situações com
criatividade, alegria e gritos.
As palavras registradas por Renault entre os Naknenuks são
expressivas. Bravo (máiokomme). Tocaia, emboscada Uiiomme).
Guerra, briga, tomar tudo do adversário, até mulheres (iipamme).
Apaziguar (ampang-nu-tepp). Ir, andar (mu). Estar vivo, existir
(knang). Relacionava, assim, a atividade guerreira, de resistência, com
a própria sobrevivência.

***
Se os contatos anteriores contribuíram para desarticular a prepon-
derância indígena no vale do rio Doce, ainda havia tribos de Botocudos
hostis mais ao Norte, em torno dos rios Mucuri e Jequitinhonha. Foi
aí que entrou em cena o mineiro Teófilo Ottoni, um dos nomes mais
expressivos da vida política do Império brasileiro. Ele teve papel de
destaque no contato com os Botocudos. Conseguiu estabelecer alianças
e recebeu de alguns índios o tratamento de "Capitão Paqueju" (Capitão
Grande). E, tendo em mãos este trunfo, implantou uma colônia e
conseguiu construir em plena selva dos "índios bravos" a cidade que
hoje tem seu nome, contribuindo assim para incorporar ao mapa do
Brasil uma parcela do território que antes era ocupada pelos Botocudos.
A ação de Ottoni, embora de método em geral pacificador, con-
tribuiu para a aniquilação dessas tribos, uma vez que conseguiu esta-
belecer um expressivo polo de atividades comerciais e urbanas numa
região que até então vivia sob a hegemonia dos índios. Mas foi da
pena de Ottoni que partiu um dos mais vigorosos e indignados pro-
testos contra os maus-tratos a que esses índios eram submetidos, con-
tribuindo para esclarecer violências narradas de forma contundente e
detalhada. Na medida em que era um "colonizador manso", ele não
media esforços em denunciar e criticar os "colonizadores bravos".
O MAU SELVAGEM: ROMANTISMO, HISTÓRIA E CIVILIZAÇÃO 271
Aliado e civilizador dos índios, Ottoni distribuía presentes e ví-
veres e quase sempre evitava, dentro de seu raio de poder, que se ofen-
desse, ferisse ou matasse os índios. Estes, em contrapartida, mesmo
quando atacavam os brancos, pouparam-lhe a vida por mais de uma
vez. O móvel dessa iniciativa de Ottoni precisa ser compreendido dentro
de sua trajetória política e da trajetória de embates vividos pelas tribos.
A carreira de Teófilo Ottoni começa marcada por seu perten-
cimento aos liberais Exaltados. Em 1831, é um dos partidários do
combate às tendências absolutistas de D. Pedro I. Filiando-se então
aos ideários de um Cipriano Barata, o principal líder dos Exaltados
dos anos 1820-1830 no Brasil, Ottoni redige em Minas A Sentinela
do Serro, incorporando-se assim à rede de jornais "Sentinelas" que
apareceram em diversos pontos do país. É eleito deputado provincial
entre 1835 e 1838, quando consegue uma vaga na Câmara dos Depu-
tados no Rio de Janeiro. Envolvendo-se na vida política da Corte,
participa do grupo que articula a antecipação da maioridade de D.
Pedro II e integra a associação conhecida como Clube da Maiorida-
de, dirigida pelo ex-padre Martiniano de Alencar, que combatia o
chamado grupo palaciano. Membro proeminente, em Minas, do grupo
político que viria a ser o embrião do chamado Partido Liberal, Ottoni
envolve-se de corpo e alma na rebelião armada de 1842, que tenta
combater os grupos mais conservadores que se haviam apossado do
poder. Na rebelião, age como um líder militar e político audacioso,
fazendo seu nome associar-se às legendas em torno do episódio.
Esmagados os liberais, Teófilo Ottoni continua seu combate
político, mas vai perdendo cada vez mais espaço. Em 1847, decide
então dar um novo rumo à sua vida pública e dedicar-se aos negócios.
Os ventos estavam mudando e Ottoni não se envolve mais nas tenta-
tivas revolucionárias de 1848. Era a hora de trocar a vida pública
pela iniciativa privada. Abandonando (por alguns anos) a luta parla-
mentar e jornalística na Corte, Ottoni, acompanhado dos membros
de sua numerosa e influente família, mergulha pelos sertões mineiros
e decide começar um empreendimento, batizado de Companhia de
Navegação e Comércio do Mucuri. Entre os acionistas dessa empre-
sa estava Irineu Evangelista de Sousa, o barão de Mauá, sócio e ami-
go de Ottoni: ambos partilhavam o mesmo ideal progressista e
civilizatório, o mesmo espírito empreendedor.
Visitando o terreno, Ottoni viu logo que o principal problema
que poderia impedir o florescimento de sua empresa era a presença
272 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

maciça dos índios Botocudos. Partidário do desenvolvimento econô-


mico como instrumento civilizador, Ottoni mostrou-se chocado com
a violência que se abatia sobre esses índios, da parte dos moradores
ou de tropas regulares, e passou a combater tais atitudes.
Entre 1847 e 1860, Otttoni conheceu as seguintes tribos de Bo-
tocudos: os N acknenukes (os quais ele chamava de federação, por
se constituírem de vários bandos interligados), que se deslocavam
entre as cabeceiras do sul do rio Mucuri e do alto rio Todos os San-
tos, os mesmos que haviam sido contatados por Marliere décadas
antes; as tribos dos chefes Casimiro e João lmmá, aliadas entre si,
nas cabeceiras do norte do rio Mucuri e no vale do rio Preto; pe-
quenos bandos que vagueavam entre os rios Preto, Pampam e Santa
Clara; a tribo chefiada por Pojichá, na margem esquerda do rio Mu-
curi, descendo pelo vale do rio Todos os Santos, nos arredores de
Filadélfia; os Gyporoks, no vale do rio Urucu; e entre o vale do ribei-
rão da Pedra e Santa Clara, as tribos de Batata, Poronhum e diversos
outros pequenos bandos.
As denúncias que Ottoni fez de violências servem para levan-
tar uma tipologia de práticas repressivas sobre os índios, mas são bem
escassos e superficiais os dados etnográficos sobre a vida dos gru-
pos (língua; costumes, etc.). O que indica que o político mineiro
estava mais propenso a defender o próprio modelo de colonização
do que valorizar os índios. Num texto em forma de carta ao escri-
tor Joaquim Manuel de Macedo, Ottoni fez substancial relato, até
hoje muito citado, de seu contato com os Botocudos. 53 E desse texto
é possível depreender, entre outras coisas, uma tipologia das violên-
cias cometidas contra tais indígenas durante o período monárquico
brasileiro:

- cães treinados na caça aos Botocudos, alimentando-se da


carne de índios assassinados;
-grupos organizados para "matar uma aldeia", cf. já foi visto,
inclusive, na pintura de Rugendas (Figura 2);
-índios (inclusive Botocudos) recrutados como soldados eram
estimulados a praticarem violências contra Botocudos;
- comércio de crianças, onde uma kuruca valia uma espingar-
da, e também de crânios de índios, vendidos para Museus;

53 T. Ottoni. Notícias sobre os selvagens do Mucuri . .. , (1858).


O MAU SELVAGEM: ROMANTISMO, HISTÓRIA E CIVILIZAÇÃO 273
- invasão de terras e utilização da mão de obra indígena, in-
clusive em trabalho escravo. 54

Na verdade, o projeto civilizador de Ottoni tinha qualquer coi-


sa não de socialismo, mas de um "mercantilismo utópico". Ele tinha
em mente a imagem do progresso ascendente e da prosperidade dos
Estados Unidos da América do Norte. Inspirado também em algu-
mas experiências regionais bem-sucedidas de convivência entre colo-
nos e índios na Filadélfia, Ottoni pretendia lançar no interior de Minas
Gerais as bases de uma sociedade onde pudessem conviver pacifica-
mente os índios e os brancos, onde cada um teria terras e atividades
respeitadas e poderiam realizar uma profícua parceria entre comér-
cio, artesanato e agricultura- ficando porém o trabalho mais pesa-
do por conta do escravo africano.
O ideal formulado por Ottoni era de que a coexistência entre
índios e brancos deveria ser pacífica e na base de trocas, da reciproci-
dade, todos com suas propriedades delimitadas e enriquecendo-se à
custa do trabalho produtivo e do comércio. Nem sempre o ideal se
concretizou.
Teófilo Ottoni se bateu por tais premissas. Estabeleceu ligações
com diversas tribos de Botocudos, denunciou as violências cometidas
contra eles. Levou adiante sua empresa de comércio e navegação até
onde pôde, chegando a construir uma cidade que batiwu de Filadélfia.
Mas em 1860 o governo liquidou sua empresa (atolada em problemas
e denúncias de irregularidades), que, entretanto, servira para implantar
de maneira sólida a civilização nacional em pleno território indígena.
Estes, continuaram a ser massacrados, espoliados de suas terras, restan-
do apenas o registro impotente dos protestos de Ottoni, desbravador
de florestas, aliado, protetor e indiretamente destruidor de índios.
Em 1878, reconhecendo que não havia nenhuma Filadélfia ali, os go-
vernantes mudaram o nome da cidade para Teófilo Ottoni, numa ho-
menagem a seu fundador. Homenagem paradoxal, pois a utopia capita-
lista e de certo modo solidária do fundador também acabou derrotada.
A própria memória local- que se expressa, assim, na afirma-
ção da superioridade do civilizador sobre os índios - se constrói
também pela iconografia.

54
Essa tipologia foi sistematizada, a partir do texto citado de Ottoni, por S. A.
Marcato (1979).
274 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

Figura 29

No desenho aquarelado de Shirner feito em 1860 (Figura 29),


retratando a Filadelfia que surgia nos sertões mineiros, é de se notar
que os índios estão, literalmente, na periferia: vê-se um grupo no
canto direito do quadro, na extremidade, próximo a fronteira visual
da imagem - e também na fronteira do incipiente núcleo urbano
que, por sua vez, ocupa o centro do espaço desenhado. É sugestivo
reparar, ainda, que tais índios aparecem em estado selvagem, isto é,
sem roupas e portando arcos e flechas. Ou seja, como se não fizessem
parte da nova forma de povoamento e organização do espaço territorial.
E também como se ficassem, além de apartados, intactos em sua "sel-
vageria", sem serem utilizados como mão de obra, nem incorporados
de maneira violenta ou subalterna à sociedade nacional.

Figura 30
O MAU SELVAGEM: ROMANTISMO, HISTÓRIA E CIVILIZAÇÃO 275
Da mesma forma, o quadro de Santa Rosa (Figura 30), do sé-
culo XX e pertencente à prefeitura local, retrata o civilizador em
primeiro plano, tendo ao fundo uma locomotiva e um prédio ou fá-
brica (chaminé soltando fumaça), emblemas do progresso. Nesse tra-
ço, um dos mais expressivos do modernismo brasileiro, vê-se em se-
gundo plano um casal de índios com criança no colo: além de
apresentarem certo ar sombrio (rostos divididos pela sombra), apa-
rência de vitimização ou tristeza, os índios não têm feição própria,
nem identidade étnica ou ornamentos específicos. Aparecem como
índios genéricos, sem face definida, ao contrário de Ottoni, que teve
sua fisionomia recriada com traços de veracidade a partir de dese-
nhos anteriores.
Temos, nas Figuras 29 e 30, a ideia de dominação dos povos
indígenas e da natureza pelo progresso. O povoamento urbano aparece
em sua centralidade, dinâmico, a mover homens, veículos e animais,
domesticar plantas, destruir florestas, erguer casas e fábricas. A vio-
lência sobre os índios é escamoteada nessas imagens (o que é, aliás,
típico do indianismo): empurrados para a periferia e representados
apenas em estado "selvagem", sem fisionomia própria, perpetuam-se
como objeto da benevolência do protetor e civilizador Teóftlo Ottoni.

Os índios persistem e as frentes de expansão também

Os índios não eram apenas personagens literários, símbolos ou


alegorias no Brasil de meados do século XIX e continuavam como
um desafio aos projetos de civilização e expansão interna do Império
brasileiro.
Entre os anos 1830 e 1870 as frentes de expansão, como bola de
neve, ampliavam-se na esteira de atuações bem-sucedidas dos brasi-
leiros- fossem colonizadores "mansos" ou conquistadores "bravos".
A força do progressismo do século XIX pressionava os Botocudos.
As primeiras décadas do Império marcam um certo vazio no
que se refere a políticas, ainda que localizadas, para os índios no
Brasil. Desde a extinção dos Diretórios Pombalinos em 1798 até 1845,
quando o governo imperial regulamenta em termos administrativos a
questão indígena, ocorriam definições e decretos no varejo e mul-
tiplicavam-se situações híbridas e indefinidas. A partir de 1845 o
governo central opta por uma administração laica, mas com a presen-
ça de padres e ordens religiosas sob a supervisão dos representantes
276 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

civis. 55 No caso dos Botocudos, o fim da presença dos intermediários


das décadas anteriores, como Marliere e Julião, faria que ocorresse
contato (e conflito) mais direto entre as tribos e as frentes de expansão.
Este contato muitas vezes aliava a atitude guerreira de alguns
índios com interesses das frentes de expansão. Foi o caso, entre ou-
tros, do índio José que, depois de ter sido soldado nas tropas regula-
res, desertou e tornou-se "Capitão" de uma tribo na serra do Chifre e
praticava atos de banditismo, além de atacar outros grupos de Boto-
cudos para vender crianças e prisioneiros como escravos, segundo
testemunho de Ottoni. Desde a ofensiva guerreira dos luso-brasilei-
ros em 1808 já se verificava o crescente número de Botocudos escra-
vizados- mulheres e crianças sobretudo, mas também homens, prá-
tica que continuaria nas décadas seguintes.
A escravidão e a utilização da mão de obra de Botocudos é
confirmada em documentos oficiais. Como este ofício do presidente
da Província do Espírito Santo para o Ministério do Império:

Varios fasendeiros tem conseguido domesticar os Botecudos e


os empregão em suas lavouras a troco de sustento e vistiario e
além d'outros desses Indígenas que vivem em casas particulares
ha uma maloca no Sertão do Rio de São Matheus com planta-
çoens a qual vem as vezes a Villa vender poaia e outros generos. 56

Nesses casos citados havia dois tipos de trabalho: a escravidão


(doméstica e do eito) e os serviços de empreitada, no qual em geral
os índios não eram pagos com dinheiro, mas na base da troca de
mantimentos, roupas e apetrechos - numa permanência do regime
de escambo ainda no século XIX. Os índios faziam colheita de poaia,
de cocos, caça de animais para comércio de peles ou aves exóticas que
alcançavam bom preço nos centros urbanos nacionais e internacionais.
Além de trabalhar para proprietários, os Botocudos passam a
ser incorporados como mão de obra para obras públicas, como a
abertura de estradas. Foi o caso dos índios do aldeamento fundado
por Guido Pokrane que, desde 1845, passaram a ter a companhia
constante do alemão Frederico Willner, engenheiro da Companhia

55
M. M. C. da Cunha. Política indigenista no século XIX . . .
56Relatório do Presidente da Prov(ncia do Espfrito Santo, o Doutor Luiz Pedrosa de
Couto Ferraz, na Abertura da Assembléia Legislativa Provincial, 1 de março de 1848. . .
O MAU SELVAGEM: ROMANTISMO, HISTÓRIA E CIVILIZAÇÃO 277
do Rio Doce e também diretor do Aldeamento Mansinho, onde
moravam sobretudo índios Puris. 57 A dupla condição de diretor de
aldeamento indígena e responsável pela construção de uma estrada
que ligasse este trecho de Minas Gerais ao litoral do Espírito Santo
não deixa muitas dúvidas quanto à atuação de Willner: seu objetivo
era usar a mão de obra indígena.
O próprio diretor-geral dos Índios do Espírito Santo em 1848
era Joaquim Marcelino da Silva Lima, primeiro barão de ltapemirim,
dono dos dois maiores engenhos da província. À medida que a
militarização cumpria seu papel, os representantes de interesses eco-
nômicos passavam a assumir a administração dos grupos indígenas.
Tal presença da administração pública, entretanto, acabou ge-
rando um conflito com os proprietários locais, que se beneficiavam
do trabalho dos Botocudos. Referindo-se aos remanescentes dos
Pokranes contatados por Marliêre, o engenheiro alemão afirma:

Todos os Indigenas me forão entregues nus, e achão-se hoje


vestidos de brins, riscados, algodões Americanos, de boas chi-
tas, chales e lenços, tendo todos os homens carapuças e alguns
deles espingardas. 58

Ele lembrava as despesas que fizera com os índios, mas nem


ousava pedir reembolso por elas. Em seguida, reconhece que os índios
utilizados no trabalho de abertura da estrada "não deixarão de fazer
falta a algumas pessoas d'aquella Provincia que por meio d'elles tem
augmentado a sua fortuna". Isto é, através desta "briga de brancos"
percebe-se como os até pouco tempo temíveis Botocudos eram utili-
zados como mão de obra escrava ou de empreitada no Segundo Rei-
nado - pois não há referência a trabalho assalariado, nem a guerras
justas ou ofensivas. O que se discutia aqui era se os Botocudos e Puris
deveriam ser usados preferencialmente como mão de obra nas pro-
priedades privadas ou em obras públicas. Defendendo este último
interesse, Willner apresenta tal atividade como benemérita: aos índios,
por terem a chance de serem civilizados, de ganharem roupas, ali-
mentos e eventualmente espingardas. E aos brasileiros, por motivos

57
Trabalho de índios no Espírito Santo. Carta de Frederico Willner ao Dr. Luiz
Pedreira do Couto Ferraz, 13 de novembro de 1846, Arquivo do IHGB.
58
Ibidern.
278 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

mais evidentes: "algum serviço se tem feito com os Indigenas à mar-


gem da mesma estrada, cuja utilidade tem revertido em beneficio dos
mesmos [proprietários locais] e dos viandantes".
Por esse conflito de interesses foi possível perceber que a proi-
bição do trabalho servil indígena decretada pela Regência em 1831
ficara letra morta.
Estava em jogo nas regiões onde ainda havia Botocudos nos
anos 1840 e 1850, a consolidação de uma rota comercial, onde em-
barcações vindas do Rio de Janeiro pudessem penetrar na barra do
rio Doce até Linhares, para vender sal para Minas Gerais. Neste
ponto entravam a estrada construída por Willner e a visão estratégica
das autoridades capixabas - ainda que contrariando interesses ime-
diatos de alguns proprietários locais. Mas, empecilho para este pla-
no, em 1845 nos arredores de Linhares (Porto de Sousa, São João e
Guandu) ainda havia tribos de Botocudos que recusavam a sedenta-
rização e insistiam em permanecer nas florestas. A resistência contra
as frentes de expansão continuava, preservando ainda fronteiras dos
territórios indígenas. A violência normalmente cometida pelos ex-
ploradores da mão de obra dos Botocudos "occasionou a retirada de
muitos para as matas do Mucury", segundo documento oficial. 59
Mesmo entre índios que mantinham contato com a sociedade
nacional havia também uma postura de resistência. Iam às vezes até
os centros urbanos, mas numa estratégia de preservar sua sobrevivência,
coesão social e identidade cultural. E o que indica uma testemunha:

Apresentou-se em Linhares não pequeno numero de Botecudos


das mattas do Juparanan, havendo entre elles alguns já baptizados,
porem ainda na sua vida selvagem. 60

Eram batizados, porém mantinham a vida selvagem. E iam até


a cidade- polo civilizador- na tentativa de entabular negociações.
Nesse momento se cruzavam os diversos fatores. Do lado da
sociedade nacional, interesses econômicos gerenciados pela adminis-
tração pública e ganância imediatista de proprietários locais. Do lado
dos índios, diante das opções que lhes eram oferecidas pelas frentes

59
Correspondência do Presidente da Província do Espírito Santo para o Ministro do
Império, ofício de 11-10-1847, AN.
60
lbidem.
O MAU SELVAGEM: ROMANTISMO, HISTÓRIA E CIVILIZAÇÃO 279
de expansão (escravidão ou trabalho de empreitada), havia os que se
internavam nas florestas e os que tentavam negociar ou pacificar os
colonizadores. Explica-se desse modo o relativo sucesso das alianças
propostas por Teófilo Ottoni aos índios: mais uma opção destes do
que simples benevolência daquele.
A iniciativa de negociação dos índios podia ser vista em outro
relatório do governo capixaba de 1848:

Diariamente os Indios do Rio Doce deixão as florestas e procurão


os povoados, sendo, porem, estes nimiamente pobres, e não en-
contrando elles hum funcionamento regular, voltão de novo para
as matas; entretanto, muitos d'elles se tem batisado em grande
parte [... ] e estão domesticados. 61

As idas e vindas desses índios às cidades e propriedades -


núcleos da civilização ocidentalizada- mostravam-lhes que tal ca-
minho estava fechado, que a sociedade nacional só pensava em
eliminá-los, culturalmente ou fisicamente. Não se conseguia ainda
compreender nessa sociedade nacional, mesmo da parte de seus ele-
mentos mais generosos, esta dimensão pluralista que alguns desses
Botocudos - como outras etnias indígenas - haviam compreendi-
do e tentavam pôr em prática. Desse modo, os índios que optavam
pela "via pacífica" não encontravam resposta imediata e o próprio
comportamento dos colonizadores incentivava a tendência guerreira
destas tribos. Nestes dois caminhos - da guerra e da tentativa de
pacificação da sociedade nacional- iam e vinham os Botocudos em
suas andanças que os brasileiros (enquanto membros da civilização
ocidental) muitas vezes consideravam sem sentido.
Nessa região onde ainda permaneciam áreas consideráveis da
Mata Atlântica e onde o conflito entre índios e as frentes de expansão
da sociedade nacional era marcante, o espírito de 1848 não era o
mesmo da Europa nem de grandes centros urbanos como Recife -
onde estouravam revoltas e revoluções liberais levantando bandeiras
dos socialismos ou da modernidade política. Mostrando a plurali-
dade de questões de uma mesma época, vê-se que neste mesmo ano o

61
Correspondência do Presidente da Província do Espírito Santo para o Ministro do
Império, ofício de Antonio Pereira Pinto para o Visconde de Monte Alegre, 20-1-
1848, AN.
280 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

governo capixaba registra "existencia de varios quilombos, que


definhão e matão a Lavoura, e incitão tão conhecidamente a insubor-
dinação dos escravos". Tanto que, em março de 1848, uma insurrei-
ção de trinta escravos portando armas de fogo chega às portas de
Vitória. Diante desses desafios colocados pelas resistências de escra-
vos negros e de índios, uma solução encontrada pelas autoridades foi
a criação da Colônia Santa Isabel, de alemães, que chegam como
colonos livres e povoadores da sociedade que se pretendia edificar. 62
A instalação de imigrantes europeus em territórios indígenas foi cons-
tante no Brasil do século XIX, fazendo que aqueles servissem de
ponta de lança no combate às tribos. Qyando estas eram dizimadas
ou enfraquecidas, em geral com muitas mortes, elaborava-se em se-
guida uma memória local privilegiando o papel "fundador" dos colo-
nos europeus.
Importante assinalar que o tráfico de crianças de Botocudos foi
intenso nesta época e tornou-se fonte de renda considerável em Mi-
nas Gerais e no Espírito Santo. A tal ponto que a palavra usada por
estas tribos para designar as crianças (curuca ou kuruka) acabou in-
corporado ao vocabulário brasileiro. Teófllo Ottoni refere-se a esse
tráfico de escravos como largamente expandido, lucrativo e generaliza-
do e seu relato é um dos mais pormenorizados sobre tal comércio de
índios escravos no Brasil do século XIX, citando vários casos, nomes
e localidades. As crianças eram utilizadas no trabalho doméstico.
O engenheiro francês Renault trocou uma criança índia por um
pedaço de rapadura oferecido à mãe dela. 63 Logo depois, ficou surpreso
quando a mãe apareceu de volta querendo levar o filho. O francês
afirmou que a mãe se arrependera e queria desfazer a troca. Teria a
índia dos Botocudos realmente efetivado uma troca definitiva? Não
pode ter ocorrido um problema de compreensão entre as duas partes?
O fato é que Renault tratou de procurar outro curuca, a quem batizou
de Monso. O garoto teria ficado extremamente apegado ao seu "dono"
a ponto de, quando este empreendeu uma viagem, a criança entriste-
ceu, definhou e morreu, segundo registrou o europeu. Ou teria morrido
por outras razões, incompreensíveis para o engenheiro?

62
Correspondência do Presidente da Província do Espírito Santo para o Ministro do
Império, ofício de Antonio Pereira Pinto para o ministro José Pedro Dias de Carvalho,
25-8-1848, AN.
63
P. V. Renault, cit.
O MAU SELVAGEM: ROMANTISMO, HISTÓRIA E CIVILIZAÇÃO 281
Esses exemplos localizados no Espírito Santo (e que se espalha-
vam por pelo menos dez províncias, como alertara o diligente Varnha-
gen) mostram o árduo e conflituoso trabalho de edificação nacional:
um mosaico de etnias e grupos- índios, negros, europeus, descen-
dentes de portugueses e diversas mesclas. Mesmo marcado por vio-
lências e opressões, vale perguntar: até que ponto o tráfico de crian-
ças contribuiu para integrar, apenas genética ou também cultural (ainda
que parcialmente), esses índios à sociedade nacional? Até que ponto a
sociedade brasileira não foi formada também por estes índios trazi-
dos à força e que, apesar da negação em termos de memória coletiva,
participaram da composição dessa sociedade, que se pretende espelhar
preferencialmente em modelos da colonização europeia?
Na segunda metade do século XIX os Botocudos ainda se cons-
tituíam num problema para a expansão interna do Império brasileiro.
Mesmo sem um levantamento sistemático, que foge aos objetivos deste
trabalho, é possível perceber a presença expressiva de populações in-
dígenas ainda não completamente submetidas aos padrões da socie-
dade nacional em áreas na Bahia, Minas Gerais e Espírito Santo. A
dificuldade de contabilizar demograficamente esses índios era, justa-
mente, um dos principais indícios de suas resistências.
Na Bahia, em 1861, registrava-se a presença de 478 índios
"Botocudos, Camacans e outros" aldeados em Catolés, Barra do Sal-
gado e Lagoa do Rio Pardo. 64 No entanto, o mesmo relatório apon-
tava que havia "nas mattas ainda muitos selvagens", tidos como "bra-
vios que assim convém atrahir".
No relatório de 1869, o presidente da província baiana admitia
que a presença indígena era tratada com esquecimento:

Há alguns annos como que se tem esquecido este assumpto


aliás bem interessante para o futuro da Província ante a neces-
sidade de braços para a lavoura, cada vez mais sensível e objecto
de serias apprhensões.65

Tal esquecimento, que facilmente empurrava os índios para a


condição de invisibilidade, aflorava aqui na medida em que outro

64
Mapas das Aldeias Indígenas da Província da Bahia . . ., 1861, Apeb.
65
Relatorio que apresentou aAssembléa Legislativa da Bahia o excellentissimo senhor
Barão de S. Lourenço, presidente da mesma província . .. , 1869.
O RIGOR DA CI~NCIA: IMAGENS E ESQUELETOS VIAJANDO 327
Mutum "e mesmo para os que costumam aparecer vindo de outros
lugares". 43
Entre o apagar do Oitocentos e o raiar do século XX, experiên-
cia marcante no contato com os Botocudos ocorreu nos aldeamentos
de Itambacuri, em Minas Gerais, por iniciativa de frades capuchinhos,
na mesma região onde décadas antes Teófilo Ottoni intentara seu
malogrado projeto capitalista utópico.
A iniciativa missionária de Itambacuri, detidamente estudada
pela antropóloga I. Misságia de Mattos, começou em 1873 e chegou
a contar com mais de mil Botocudos aldeados ao lado de número
equivalente de brasileiros. 44 Foi inicialmente liderada e construída
por dois capuchinhos também "mestiços", isto é, de origem italiana e
austríaca, e incorporou grande número de índios à sociedade nacio-
nal, destacando-se os professores indígenas como intermediários.
Durante duas décadas a ação missionária floresceu, encravada no que
até então se constituía como um dos últimos bolsões de grupos Boto-
cudos no território brasileiro. Entretanto, uma vigorosa rebelião dos
índios contra a missão e os padres, em 1893, causou surpresa, como-
ção e gerou violenta repressão sobre os indígenas que muitos acredi-
tavam devidamente cristianizados e pacificados. A partir daí, a pre-
sença indígena, ou seu reconhecimento, foi declinando no local, que
ainda em 1894 contabilizava cerca de mil índios entre "puros e mes-
tiços" e nos primeiros anos do século XX falava-se indistintamente
em "habitantes", gerando um considerável crescimento populacional
para as cidades que ali se ergueram, também com a vinda de famílias
de imigrantes europeus. Em pouco mais de dez anos os índios desa-
pareceram por completo dos registras demográficos de Itambacuri.
Era a República nascente que, herdeira do Império, intensificava a
consolidação da homogenei;dade para a nação brasileira.
43
Relatorio apresentado áAssembléa Legislativa Provincial do Espírito-Santo pelo
presidente da província, desembargador Antonio Joaquim Rodrigues, em 5 de outubro de
1886 . ..
44
I. M. de Mattos. Civilização e revolta . .. , cit.
O MAU SELVAGEM: ROMANTISMO, HISTÓRIA E CIVILIZAÇÃO 283
demografia nem para a produção. O discurso oficial que se consoli-
dara sobre tais índios não submissos ao longo do século XIX não era
mais o de enquadrá-los como ferozes e temíveis, mas, sim, colocá-los
na postura de vítimas, de infelizes por viverem nas trevas da ignorân-
cia, longe dos propalados benefícios da civilização. Era o registro da
filantropia, um dos principais motores do movimento associativo
oitocentista, que implicava o movimento de levar os que detinham
tais benefícios a alcançar os despossuídos deles. Ou seja, uma relação
de poder e de superioridade para com os que seriam carentes de tais
benesses. E que visava, em última instância, enquadrar os beneficia-
dos nas formas de vida e produção da sociedade vigente.
No ano seguinte as autoridades mineiras tomaram providências
mais efetivas e de tendência menos filantrópica quanto aos indígenas.
Em primeiro lugar, se reconhecia a existência, ainda, de "milhares de
selvagens, que habitão muitas das frondosas mattas desta bella provín-
cia". E, em seguida, enviava-se circular a todos os juízes municipais
exigindo que informassem quais as terras que estavam de fato ocupadas
e aproveitadas pelos índios, para que as demais pudessem ser conside-
radas devolutas. 68
A exemplo da Bahia e Minas Gerais, e com presença indígena
ainda mais intensa, no Espírito Santo, o relatório do presidente da
província de 1854 alertava:

[... ] existem hordas selvagens nos sertões e margens do rio


Itabapoana, bem como nos sertões de Benevente, no rio Doce e
em São Matheus.

Na mesma província, no ano seguinte, o governo se surpreendia


com a "descoberta de uma aldeia de Botocudos" perto da estrada para
Santa Teresa. 70
E ainda em 1871 o relatório oficial do presidente da província
capixaba arriscaria um prognóstico: calculava em 4.500 os índios

68
Relatorio que d Assembléa Legislativa Provincial de Minas Geraes apresentou no
acto da abertura da sessão ordinaria de 1870. ..
69
Relat6rio com que o Senhor Dr. Sebastião Machado Nunes, Presidente da Provín-
cia do Espírito Santo, Abriu a Assembléia Legislativa Provincial. .. , 1854. Apes.
70
Relat6rio com que o Senhor Dr. Sebastião Machado Nunes, Presidente da Provín-
cia do Espírito Santo, Abriu a Assembléia Legislativa Provincial. .. , 185 5. Apes. Sobre
a questão das terras indígenas no Espírito Santo nos anos 1850, v. o artigo de V. L.
Moreira (2002).
284 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

"selvagens" que vagueavam pelas margens do rio Doce. 71 O que


corresponderia a aproximadamente cinco por cento da população pro-
vincial e que ocupavam áreas abrangentes, pelo [racionamento em
bandos e nomadismo dos grupos. As estimativas oficiais brasileiras
apontavam, em 1869, a existência em todo o território de quinhentos
mil índios "errantes", número que poderia ainda estar menosprezado,
mas que correspondia também, aproximadamente, a cinco por cento
do total da população estimada do país. Os índios sedentários ou
tidos como "mansos", isto é, que mantinham contato mais frequente
com a sociedade nacional, não eram arrolados entre os "errantes".72
A estratégia das autoridades provinciais, a partir da segunda me-
tade do século XIX, parece ter sido atribuir, gradativamente, invisibi-
lidade aos índios, seja pelo silêncio omisso, pelo argumento de falta de
verbas para administrá-los, mas sobretudo visando ocupar suas terras
e aproveitar sua força de trabalho, baseando-se na presunção de que
deixavam de ser índios à medida que se incorporavam à sociedade,
mantinham contato permanente ou, no vocabulário da época, civiliza-
vam-se. Entretanto, nesta passagem para a condição de invisíveis cida-
dãos ou mesmo escravos disfarçados, os índios, com suas presenças e
gestos, seja de ataque, negociação ou submissão, ainda infiltravam-se
nos documentos oficiais, mostrando-se, paradoxalmente, visíveis e
presentes. É certo que muitos índios morreram por causa de violências
ou deixaram de se identificar como indígenas, dissolvidos na argamassa
da construção da nacionalidade. A queda demográfica das populações
indígenas no século XIX é evidente no Brasil, como resultado das
múltiplas formas de opressão. Todavia, os próprios relatos oficiais se
encarregavam de contestar a afirmação de intelectuais do Romantismo,
como Gonçalves de Magalhães, que garantiam precipitadamente na
década de 1850 que os índios não eram mais problema no Brasil, por
já estarem todos domesticados e cristianizados. Qyase na mesma pro-
porção e no mesmo momento em que alegorias indianistas floresciam
nos meios urbanos da sociedade imperial brasileira, os índios exis-
tentes iam sendo cobertos com o manto da invisibilidade.

71
Relatório lido no Paro daAJJembléia LegiJiativa da Prov íncia do EJpírito Santopelo
prezidente. .. , 1872. Apes.
72 IBGE. &tatúticaJ hiJtóricaJ do BraJil. . .
Capítulo 8
SOB O RIGOR DA CIÊNCIA:
MÚLTIPLAS IMAGENS E ESQUELETOS
VIAJANDO

As lentes de Daguerre

Uma série de sete daguerreótipos (cinco imagens, pois duas


são repetidas) tirada na França em 1844 por E. Thiesson e que se
encontra guardada na Phototheque du Musée de l'Homme, Paris, retra-
ta um homem e uma mulher Botocudos (Nacnenucks) trazidos do
Brasil. 1 Essas fotografias engendram "descobertas" que se cruzam
através de diferentes olhares.
O encontro entre a fotografia e os índios no século XIX tem
qualquer coisa de impressionante. Trata-se de campo de análise
instigante, que envolve abordagem interdisciplinar englobando a di-
mensão iconográfica e remete ao contato entre tecnologia surgida
numa Europa tão marcada pela preocupação com o progresso com
populações que viviam em tribos. A diferença de culturas e a plu-
ralidade assimétrica de tempos num mesmo momento histórico. Uma
leitura dessas primeiras fotos nos põe diante da relação entre guerra,
expansão da civilização ocidental e imagem. O instante eternizado
remete a um momento de passagem crucial para as transformações da
civilização europeia e seu mundo da ciência, também para a trajetória

1
Os dagucrrcótipos pertencem à Colcção Jacquart c têm os seguintes códices:
D-80-1317, D-80-1318, D-80-1319; D-80-1315 c E-79-1396 (repetidos); E-79-
1397 c D-80-1320 (repetidos). Em 1995 estas imagens não constavam de nenhum
dos fichários do Musée de l'Homme disponíveis ao público, só cheguei a elas por re-
ferências de documentos do século XIX. Mas diante do meu pedido à instituição não
tive dificuldade em consultá-las e reproduzi-las.
285
286 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

histórica das tribos indígenas enfocadas pelas lentes e para a história


de vida dos que foram fotografados - dimensões como que unidas
através da fixação das imagens.
Esses daguerreótipos dos Botocudos são umas das primeiras fo-
tografias de índios feitas no mundo. Possivelmente as primeiras. Instaurar
esse tipo de primazia não é importante: outras fotos de seres humanos
classificados como "índios" podem ter sido tiradas antes e isso não al-
teraria em nada a dimensão dessas imagens naquele contexto e as inter-
pretações que podemos fazer delas hoje. De qualquer maneira, vale
ressaltar o pioneirismo (sem nenhum sentido valorativo) da realização.
Sabe-se que a invenção da fotografia fora anunciada oficialmente
em 1839 no Institut de France, sacramentando e difundindo pelo mundo
a invenção de Jacques Daguerre, cujo nome batizou a primeira solução
técnica para tirar e reproduzir fotos. Dois anos depois os irmãos Bisson
registraram em daguerreótipos uma série de duzentas litogravuras de
indígenas da Nova Zelândia, ou seja, transpuseram para a nova técnica
retratos feitos de forma tradicional. 2 Em 1847 o chefe índio Watchful
Fox teve seu retrato em daguerreótipo feito por T. M. Easterly, dos
Estados Unidos. 3 Ainda neste domínio hoje chamado de "etnofo-
tografia" sabe-se de outros daguerreótipos: do esqueleto de um homem
negro em 1847, do crânio de um árabe na mesma época e do rosto de
Caesar, o último escravo negro de New York, em 1850. 4 Fotografias
de lnuits estão entre as primeiras a serem incorporadas à coleção do
então Muséum d'Histoire Naturelle de Paris, mas não há informações
sobre a data em que foram realizadas. 5 As fotos mais antigas que se
conhece de índios feitas no território do Brasil são de 1865, de auto-
ria do suíço A. Frisch, que viajou ao longo do rio Amazonas. 6

2
T. Starl. Un nouveau monde d'images. Usage et diffusion du daguerréotype. ln:
Michel Frizot (dir.). Nouvelle histoire de la photographie. Paris: Adam Biro, 1994, p. 47.
3 M. Oppitz. Anthropologie visuelle. Verbete no Dictionnaire de l'ethnologie et

de l'anthropologie, org. por P. Bonte & M. Izard. 2.' ed., Paris: PUF, 1992, pp. 742-3.
J. Scherer. Documento fotográfico: fotografias como dado primário na pesquisa antro-
pológica. Cadernos de Antropologia e Imagem, n.• 3, Núcleo de Antropologia da Imagem,
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 1996.
4
T. Starl, op. cit., p. 43; M . Frizot. Corps et délits. Une ethnophotographie
des différences. ln: M. Frizot, op. cit., p. 267.
5
Cf. M. E. Conduché. La photographie au Muséum d'Histoire Natrurelle. La
Lumiere-Revue de Photographie, n.• 16, 17-4-1858.
6 J. R. Bessa Freire (coord.). Os índios em arquivos do Rio de janeiro. Rio de

Janeiro: Uerj, vol. II, 1996, p. 401 .


O RIGOR DA Cl"tNCIA: IMAGENS E ESQPELETOS VIAJANDO 287
Em que circunstâncias ocorreu o encontro entre os índios do
Brasil e a fotografia, que resultou nos daguerreótipos parisienses de
1844?
A fotografia recém-nascida tinha uma dimensão de lazer,
consumismo, modismo tecnológico, empolgação pela novidade, mas
sobretudo de possibilidade de "reprodução do real". E aí tinha usos
mais "sérios". Ligou-se estreitamente à medicina e ao controle da
criminalidade. Doentes mentais, prisioneiros, pessoas com deformi-
dades físicas e povos considerados exóticos (ex-optico, fora da ótica)
passaram a ser enquadrados pelas lentes implacáveis. A fotografia
torna-se uma forma de conhecimento, fixação e controle dos corpos
por meio da imagem. 7
A "Cidade-Luz" vivia os tempos da Monarquia de Julho, sob a
efígie do "rei cidadão", onde ideólogos e doutrinários do liberalismo
buscavam fortalecer o primado das classes médias na sociedade fran-
cesa. No]ardin de Plantes (próximo ao Quartier Latin e à Sorbonne) o
Muséum abrigava esqueletos humanos, espécies animais, vegetais e
minerais em torno de agradáveis e bem cuidados jardins, onde esta-
vam as casas que (ainda em plena atividade, como até hoje) haviam
servido de residência e gabinete de trabalho para George Buffon,
Carl von Lineu e outros criadores das Ciências Naturais. E no mesmo
recinto do anúncio da invenção da fotografia, cinco anos depois, esses
daguerreótipos de Botocudos estavam no cerne do debate de uma
disciplina que se transformava, inclusive metodologicamente: as Ciên-
cias Naturais, marcadas pela Ilustração do século XVIII, privilegia-
vam o "desenho científico", ao passo que a emergente Antropologia
Física se impregnaria do evolucionismo e passaria a usar a foto. 8
No caso desses daguerreótipos há uma relação entre ciência,
guerra de extermínio étnico e escravidão. As tribos de Botocudos
viviam um contato de três séculos com as frentes de expansão no
território brasileiro e havia forte componente bélico nesta relação,
mesmo que as dimensões de diálogo, negociações, miscigenação e
submissão estivessem também presentes de maneira clara, fazendo
parte deste encontro mais que secular. Era um confronto de longa

7
M . Frizot. Corps et délits. Une ethnophotographie des différences, cit., pp.
259-71.
8
Uma síntese do estado da discussão sobre as relações entre história, etnologia
e antropologia encontra-se no Dictionnaire de /'ethnofogie et de /'anthropologie, org. por P.
Bonte & M . Izard. 2.' ed. Paris: PUF, 1992.
288 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

duração. E nos anos 1840 o conflito era conjugado no presente: ainda


resistiam e sofriam verdadeiro genocídio por parte da sociedade bra-
sileira, havia tráfico de escravos dessa tribo nas províncias de Minas
Gerais, Bahia e Espírito Santo em benefício de trabalho agrícola,
obras públicas, construção de estradas e trabalho doméstico. Sobre-
tudo levando-se em conta que suas terras situavam-se numa região
próspera e com reservas de riquezas minerais exploradas por firmas
britânicas. A sede do progresso cobiçava estas faixas de florestas
tropicais próximas ao litoral brasileiro conhecidas hoje como Mata
Adântica, da qual foi destruída noventa e cinco por cento de sua
superfície original.
Nesse contexto os dois índios foram levados de Minas Gerais a
Paris em 1843 por um certo Marcus Porte. Enquanto o então obscuro
dinamarquês Peter Lund desencavava, nas grutas do interior de Mi-
nas Gerais, os esqueletos do chamado Homem da Lagoa Santa, os
dois Botocudos estavam sob os holofotes das luzes da ciência na ca-
pital francesa.
As placas registrando os corpos vivos dos dois índios causaram
viva impressão, também pela qualidade técnica. "Depuis cette époque,
dix-huit ans se sont écoulés, on n'a rien fait de plus pur, de plus
limpide, de plus franc", exclamava com certa volúpia visual um críti-
co da arte fotográfica da época. 9 Apesar de toda carga de objetividade
típica do século XIX, a apreciação dessas imagens (do ponto de vista
estético, técnico ou científico) não era vinculada às condições de vida
dessas pessoas fotografadas.
Há na pioneira La Lumiere- Revue de la Photographie 10 alguns
dados sobre esses daguerreótipos. Consta que foram feitos por um
fotógrafo chamado Thiesson (provavelmente um francês) em 1844.
Confirmando esta proposição pode-se ler gravado nas próprias ima-
gens, no canto esquerdo embaixo: "Thiesson 1844". Eram, portanto,
os mesmos índios que motivaram as discussões na Academia de Paris
em 1843, pois os registros da Academia também falam das fotos de
Thiesson e de Botocudos (Nacknenuks) trazidos do Brasil.
Antes mesmo de serem fotografados, os Botocudos trazidos das
selvas brasileiras ganharam notoriedade graças ao debate que ocupou

9
M. E. Conduché, op. cit. Na verdade, haviam se passado catorze anos e não
dewito.
10
La Lumiere- Revue de la Photographie, Paris, abril de 1858.
290 CERCO AOS BOTOCUDOS NO Sl~CULO X IX

mongólicos que o surpreenderam, representam um "rebaixamento da


raça americana". Considerando a relação homem - mulher como um
dos importantes parâmetros civilizatórios e acrescentando a este quadro
as análises físico-raciais, Serres concl ui propondo que os Botocmlos
sejam estudados dentro da Zoologia. Note-se que Serres procurou
aproximar os Botocudos de seu objeto preferencia l de estudo, os
chamados homens das cavernas, dando o ponto de partida para uma
afirmação que seria reiterada ao longo do século XlX c mesmo no
XX: a aproximação entre esse grupo étnico e os chamados homens
pré- históricos.
Nesse ponto pede a palavra um dos mais antigos membro·' da
Academia, cujos cabelos brancos caídos sobre os ombros atestavam
que ele não se enquadrava no padrão de comportam ento da cmer~c n ­
te burguesia parisiense, mas que pertencia à geração do Antigo R t:gi-
me, das Ciências Naturais ainda marcada pelo Iluminismo do sécu lo
XVIII c combatida como descritiva e literária pela "objctividade" dos
novos cientistas da Antropologia física. Era Augustc de Saint- Hilairc
(ver Capítulo 5) que, um quarto de século antes, estudara demorada-
mente e convivera com os Botocudos nos sertões do Brasi l - c cujos
trabalhos, então já publicados há mais de uma década, não mere,·e-
ram nenhuma citação no relatório de Serres.' 1 Havia aí, implici ta,
uma tensa disputa de poder intelectual.
Falando de improviso, Saint-Hilaire fez um breve resum o de
seu contato com esses índios, defendendo-se, ressaltando que os atu-
lisara com todo cuidado c atenção de que era capaz. Sem polemizar
de maneira contundente com Serres, Saint-Hilairc lembra que -;cu
principal auxiliar de pesquisas no Brasil durante cinco anos fo i um
índio Botocudo, Firmiano. E que também na mesma ocasião outro
conhecido cientista c viajante, o russo Langsdorti, teve outro índio
Botocudo como auxiliar nas pesquisas que reali zou . M es mo sem
explicitar, ficava a contestação: corno enquadrar ern categoria de in -
ferioridade seres humanos que revelavam inteligência considerável a
ponto de serem não apenas guias, mas coadjuvantes das mais impor-
tantes expedições científicas da época? Percebe-se que Saint-Hilaire
mantinha a mesma linha de reafirmar a humanidade e a possibil id.ule

11
A. de Saint- llilairc, vóyage dam !es provim·es de Rio d,·.fantiro et de 1\lznw
Geraes, 1 ct 2, Paris: Grimbcrt cl Dorcz, 1830. A es tad ia deste viajante entre os
t.
Botocudos foi entre 18 l6 c 181 7.
O RIGOR DA CIÊNCIA: IMAGENS E ESQUELETOS VIAJANDO 291
de desenvolvimento e civilização dos índios, em contraponto aos tra-
dicionais discursos colonizadores que depreciavam as "raças indíge-
nas". Mas tal postura de Saint-Hilaire, embebida na perspectiva ilus-
trada de unidade da espécie humana, esbarrava nas novas classificações
raciais que se cristalizavam com base na Antropologia Física e, tam-
bém, na nova fase de expansão colonialista europeia pelo mundo.
Saint-Hilaire também apontou, apenas na base da intuição e
observação empírica, a semelhança física entre estes grupos indíge-
nas brasileiros e as populações orientais, especificamente chinesas. 14
Alongando-se sobre a semelhança dos Botocudos com os traços mon-
gólicos, à qual Serres fizera referência sem se aprofundar, Saint-Hilaire
faz alguns comentários. Sempre remetendo ao que escrevera em seus
livros - citando tomo, capítulo e página - Saint-Hilaire lembra
que havia um grupo de chineses no Rio de Janeiro na época de sua
visita (Figura 31).

Figura 31

14
Os atuais estudos de antropologia biológica tendem a referendar a percepção
esboçada por este cientista-viajante. Ver, por exemplo, a obra de divulgação Tous
parents, tous dijférents, de A. Langaney et alii. Paris: Chabaud, Muséum National
d'Histoire Naturelle, Musée de l'Homme, 1992.
292 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

Eram plantadores de chá que foram trazidos da China para


trabalharem no Jardim Botânico carioca (então um jardim de
aclimatação de plantas), onde se pretendia adaptar e explorar comer-
cialmente esta erva oriental. Vindo de uma longa permanência nas
selvas, Saint-Hilaire ficou impressionado com a semelhança física que
lhe apareceu entre os chineses e os índios do Brasil, especialmente os
Botocudos do Jequitinhonha. O cientista francês resolveu então apro-
ximar ambos, levando seu auxiliar Firmiano para conhecer os chineses.
"Aí estão teus primos", disse-lhe Saint-Hilaire. Firmiano, que em
geral evitava a convivência com os negros escravos, mostrou-se con-
tente em conhecer os chineses e passou a referir-se a eles como seus
primos. Os chineses, ao que parece, responderam sorridentes às aproxi-
mações do índio -levando Saint-Hilaire a concluir que havia certa
afinidade entre ambos. O fato de esse Botocudo evitar a convivência
com os negros escravizados pode ser entendido como atitude defensiva
- colocado também numa posição subalterna ou pelo menos fora
dos padrões predominantes (onde muitos de sua tribo eram escravizados
também), este índio certamente não queria ser associado aos que eram
tratados ainda pior do que ele - os cativos de origem africana. Diante
dos chineses, além da semelhança física, Firmiano percebeu pessoas
"diferentes" que, embora tratadas como tais, não eram maltratadas ou
desconsideradas como os escravos. Daí a simpatia mútua que pode
ter surgido entre os imigrantes chineses que viviam num certo estado
de reclusão e este índio que bem ou mal transitava pela sociedade
luso-brasileira, aproximação talvez reforçada pela empatia resultante
da semelhança física.
A intuição de Saint-Hilaire sobre a aproximação entre chineses
e índios do Brasil pode ter parecido absurda para parâmetros da ciência
da época. Mas em fins do século XX já se sabia - graças a estudos
genéticos combinados a pesquisas arqueológicas - que os índios das
Américas e os povos asiáticos têm identidades genéticas bem próximas
e em alguns casos semelhantes, o que indica uma das possíveis origens
do povoamento das Américas por grupos asiáticos, sobretudo a partir
do estreito de Behring. Ou seja, asiáticos e indígenas são da mesma
"raça" - afirmação que se chocava com as teorias raciais do século
XIX. Talvez Saint-Hilaire tenha promovido um dos primeiros reencon-
tros destes "primos" separados por milênios de movimentos migratórios.
Voltando ao caso dos dois Botocudos fotografados em Paris,
vemos que foi exemplar e interdisciplinar: além de fotografados e
O RIGOR DA Cll! NCIA: IMAGENS E ESQUELETOS VIAJANDO 293
alvo de debates na Academia de Ciências, viram-se medidos, apalpa-
dos e objetos de outros ramos das ciências. O clima de curiosidade
em torno desses índios expressava significativa mistura de espetáculo
atraente e seriedade científica: a tênue fronteira entre o exato e o
exótico. De certa forma eram tratados como animais selvagens que
precisavam ser mais bem conhecidos O primeiro gorila "descoberto"
pelos europeus na África em 1840 causara sensação .. .15
Esses dois índios foram examinados também por uma Comis-
são da Société de Géographie, cujo interesse principal foi de ordem
linguística, dentro da tendência globalizante das ciências geográficas
do período. 16 Ou seja, foram extraídas (é a palavra adequada) 194
palavras do idioma dos Botocudos. Tal extração deu-se em várias
etapas. Inicialmente, por Marcus Porte, classificado no relatório da
Société como um viajante sem critérios metodológicos adequados para
registrar um vocabulário. Em virtude de tal insuficiência, os comis-
sionários encontraram-se pessoalmente com os dois índios para tirar
dúvidas quanto a fonemas e significados das palavras, recomeçando o
que foi chamado de interrogatório. Exaustivo, pois incluía quase duas
centenas de expressões. Tal método de enquete foi executado por Edme
François Jomard, barão e presidente da Société de Géographie, que en-
carregou-se pessoalmente de interrogar os índios e redigir o relató-
rio: "les voyageurs doivent bien se pénétrer de la nécessité qu'il y a
non seulement de les interroger sur ce point, mais de revenir à la
charge três souvent pour ne pas se méprendere sur la nature de la
réponse". 17 Realçando o papel da insistência e de "revenir à la charge",
temos a relação entre ciência e poder, no ato mesmo do exercício
científico e da relação entre entrevistadores e entrevistados. Jomard
era então um dos mais célebres cientistas europeus: orientalista, ar-
queólogo e egiptólogo. Seu relatório sobre os Botocudos termina
com a recomendação de que tal vocabulário serviria "à aider les
voyageurs futurs dans leurs recherches, et même à les servir puissam-
ment". Ou seja, integrava-se de maneira clara na perspectiva de pro-
dução de um saber científico por viajantes tendo como meta uma

15
F. Tinland. Les limites de l'animalité et de l'humanité selon Buffon et leur
pertinence pour l'anthropologie contenporaine. ln: E. Mayr (org.). Bt1fon 88 - Actes
du Colloque International, Paris: 1992.
16 Cf. Joma.rd. Notes sur les Botecudos. ln: E xtrait du Bulletin de la Société de

Géographie, Paris: novembre et décembre 1846.


17
lbidem, p. 3
294 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

conquista planetária do homem e da natureza pelos cânones da civi-


lização europeia ocidental. 18 Tanto Serres quanto Jomard confirmam
que esses dois índios identificavam-se como pertencentes a um grupo
Nacknenuck e uma comparação do vocabulário recolhido na ocasião
com outros vocabulários mostra que se trata da mesma língua dos
demais grupos de Botocudo, com pequenas variantes.
Coincidência ou não, os primeiros textos publicados por brasi-
leiros e no Brasil sobre essas tribos de Botocudos só começaram a
surgir em 1844, logo depois desta exposição a que os dois "espéci-
mes" foram submetidos em Paris (ver Capítulo 7) por Jomard, barão-
-presidente da Société de Géog;raphie e por Serres, um dos criadores da
paleontologia humana. 19 Ou seja, após a "exportação" de índios do
território brasileiro, vinha a "importação", pelas elites letradas do
Brasil, dos debates científicos e culturais elaborados a partir da pre-
sença de tais índios, num curioso caminho de dois sentidos, onde a
triangulação com a vanguarda científica parisiense como que induzia
o contato dos homens de letras brasileiros com tais índios.
A peregrinação científica dos dois Botocudos em Paris não pa-
rou por aí. Eles serviram ainda de modelos para portraits feitos por
Werner e "moulages de la tê te et des membres" que teriam sido guarda-
dos, junto com os daguerreótipos, na Galeria Americana do Muséum. 20
A ponta de lança científica e tecnológica francesa se constituía
no contato com os chamados povos primitivos. Nos anos 1850 come-
çava a se organizar no Muséum d'Histoire Naturel/e de Paris uma
Galeria especial, dedicada a colecionar reproduções de imagens "na-
turais" como: esqueletos, bustos moldados sobre corpos, reprodução
em plástico de pés, mãos e órgãos, enfim, tudo que pudesse servir a
um estudo comparativo entre as "raças" humanas. 21 Era a chamada

18
Ver sobre este aspecto a interpretação da canadense M. L. Pratt. Os olhos do
império: relatos de viagem e transculturação. Bauru: Edusc, 1999.
19
Ofício sobre a existência de índios botucudos às margens do rio Doce.
Revista do Instituto Histórico e Geogr4fico Brasileiro, t. 6, 1845. A mesma revista publi-
cou a tradução do relatório do barão de Jomard no t. 9 de 1847. Era a "descoberta"
deste grupo indígena pelas elites letradas brasileiras.
20
P. Rey. Etude Anthropologique sur les Botocudos. Paris: O ctave Doin Éditeur,
1880, p. 13. Sobre a relação entre as culturas indígenas e os museus enquanto
instituições, ver o ensaio de]. Clifford. Muséologie et contte-histoire. Voyages sur la
Côte Nord-Ouest. R évue d'Histoire et d'archives de l'anthropologie, Séction Histoire de
l'ethnologie du Musée de l'Homme, Paris, 11, 1992, pp. 81-101.
21
Conduché, op. cit.
O RIGOR DA CIÊNCIA: IMAGENS E ESQUELETOS VIAJANDO 295
Antropologia Física incorporando as tecnologias mais atualizadas da
época a fim de obter as reproduções as mais "realistas" possíveis. Dentro
desta Galeria, havia também "desenhos naturais". As primeiras foto-
grafias que se incorporaram ao acervo do Museu foram as dos lnuits
e estas dos Botocudos. Os daguerreótipos provavelmente foram feitos
em Paris. Não se sabe exatamente onde nem em que condições foram
tirados e as informações são desencontradas sobre a data exata de sua
aquisição pelo Museu.
Percebe-se assim que tais imagens foram uma das peças-chave
no momento de fixação de parâmetros científicos no campo do estudo
das populações humanas. Esses dois índios, retirados da periferia e
da floresta, estiveram no epicentro metropolitano das Luzes, como
novos Jonas levados ao ventre do grande cetáceo de onde se geravam
paradigmas que se espalhavam pelo mundo. "Tudo" sobre eles foi
decodificado, dentro daqueles parâmetros do conhecimento, como
que servindo de modelos vivos para uma tipologia de saberes insti-
tucionalizados.
Diante dos daguerreótipos a pergunta costuma surgir como que
instintivamente: o que foi feito desses índios depois de fotografados?
Tal pergunta já escapara do médico Phillipe Rey em 1878 e várias
pessoas atualmente quando olham os retratos ainda repetem-na, qua-
se invariavelmente. A resposta, até o momento, nos é desconhecida:
depois de descobertos, desapareceram sem deixar rastros. Mas vale
indagar sobre este interesse: de onde vem esta associação entre a ob-
jetividade rigorosa dos estudos de que foram objetos e a subjetividade
quase sentimental da indagação sobre o destino individual desse ho-
mem e dessa mulher fotografados? Talvez seja pelo deslocamento tão
profundo a que foram submetidos, de tempo, espaço e cultura. Talvez
por serem "outros" que foram, simbolicamente, como que antropofa-
gicamente devorados por "nós", depois de eternizados pela imagem.
Esses daguerreótipos não deixam de ser um ritual de sacrifício em
nome do progresso. Talvez esta reaproximação entre observador e
observado se deva também como que a uma subversão do significado
através do signo, onde o olhar dos que foram fotografados passa a nos
interrogar também. 22 Tal movimento de interesse, de certo modo
afetivo (que afeta), pode advir da constatação de que aprendemos

22
Para esta perspectiva de "subversão do signo" pela pose do fotografado, v. o
conhecido estudo de R. Barthes (1980).
296 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

"muito" sobre aspectos linguísticos, históricos, geográficos e culturais


destes dois índios, mas nunca soubemos sequer seus nomes.

A subversão das imagens ou o monólogo do historiador

Esses daguerreótipos de Botocudos de 1844 podem ser inter-


pretados, trazendo à tona aspectos interessantes - objetivos e subje-
tivos. Mesmo sem palavras, eles apresentam elementos para compor
uma narrativa histórica - história muitas vezes sem palavras escri-
tas. Os sentimentos e dores que não cabiam nos parâmetros do dis-
curso científico ressaltam destas imagens mudas. Numa visão de con-
junto o que logo impressiona é o ar de tristeza, de melancolia e
abatimento que toma conta destes dois índios. Ainda que outras poses
de daguerreótipos deixassem nos fotografados esse ar de cansaço, pela
demora que a técnica ainda rudimentar causava, já havia, desde 1841,
meios de agilizar para poucos minutos o tempo de pose para fotogra-
fias. Para um olhar do século XXI, é inevitável a comparação com
prisioneiros dos campos de concentração: subnutrição (notadamente
no homem) e flacidez (na mulher), um toque de resignação trágica,
de raiva esmagada, de indignação contida e quase esquecida, um cer-
to desprezo com o interlocutor, um olhar entre mortiço e odiento, de
quem ainda resiste mesmo sem forças para resistir. O tom de despre-
w vem da altivez, da identidade cultural e da tradição da prática
guerreira que, mesmo abafadas pelas circunstâncias, persistem em
algum recanto desses índios como que enjaulados.
Os dois estão com o mesmo pano no colo, dobrado em posições
diferentes, no homem vê-se uma calça branca e na mulher algo que
se parece com uma longa saia, indumentárias que devem ter sido
impostas para a fotografia, para camuflar a nudez. Este velho pano
traz um toque "civilizado" para a composição e serve para despojá-los
mais ainda do que para cobri-los. Os torsos estão nus. Os dois encon-
tram-se sentados numa cadeira simples de madeira. O local das fotos
era, portanto, algo equivalente a um estúdio, onde as pessoas fotogra-
fadas são enquadradas em determinada composição visual e onde a
imagem é composta- veja-se o pano, o fundo neutro, a cadeira e a
posição sentada. Não havia cenários exóticos de palmeiras ou vegeta-
ção tropical colocadas ao fundo, como era comum para a imagem
internacional oitocentista brasileira e ocorreu também em fotos do
imperador brasileiro Pedro II - a intenção era o olhar científico,
O RIGOR DA CifNCIA: IMAGENS E ESQUELETOS VIAJANDO 297
rigoroso, exato, implacável. São fotos que trazem a marca registrada
do século XIX.
Não vou me reter aqui com um dos usos mais óbvios, ainda que
importante, da chamada fotografia etnográfica, ou seja, comparar
detalhadamente algumas características da cultura material com ou-
tras imagens, relatos e descrições, em relação ao colar, corte de cabe-
lo, furo nos lábios, etc.
Há duas imagens da mulher, uma de frente (Figura 32) e outra
de perfil (Figura 33).

Figura 32 Figura 33

Na primeira, ela olha direto seu interlocutor e seu olhar diz


muito: denuncia sem palavras a violência, olha sem rodeios para o
aparelho (e para tudo que está por trás dele, até hoje). 23 As mãos
cruzadas placidamente no colo contribuem para um ar de resignação,
de espera, mas ao mesmo tempo de harmonia - sem esquecer que
são mãos vigorosas. Essa mulher, ainda jovem, transmite sensação de
lucidez, serenidade, protesto indignado e aceitação trágica de seu des-
tino. É uma verdadeira "Gioconda" dos trópicos, a nos desafiar com
sua expressão enigmática e contundente ao mesmo tempo.

23
Cf nota 2. Trata-se aqui do daguerreótipo D 80 1319.
298 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

A circunferência do ventre desta mulher visível sob o pano, e o


volume dos seios, indicam alguma relação com maternidade. 24 Esta-
ria grávida ou parira recentemente? Haveria uma criança implícita na
foto? A espessura dos lábios um pouco aumentada e o matiz de
docilidade em sua expressão associam-na com o lado feminino e
materno, caracterizando a potência de sua delicadeza.
As fotos dessa índia nos revelam ainda algumas pistas, digamos,
materiais. O corte de cabelos, o colar no pescoço e o furo no lábio
inferior (onde antes devia estar o botoque) indicam que ela nasceu
nas selvas, no meio de uma tribo. O vigor e densidade do olhar da
mulher nos levam a indagar se ela não seria também uma xamã de
seu grupo, tendo desenvolvido sensibilidade mística.
Estabelecendo uma espécie de monólogo diante dos daguerreó-
tipos, pergunto- até que ponto é possível chegar ao diálogo? Trata-
-se de fronteira arriscada para ser transposta facilmente. Às vezes
quando encaro a imagem dessa mulher de 1844 tenho a impressão de
receber um olhar levemente irônico e superior, como se ela estivesse
relativizando o sofrimento pelo qual passava. Em outros momentos
parece-me que a índia fotografada sabe o tamanho da onda que se
abateu sobre ela e seu povo e exprime melancolia dolorida, acompa-
nhada de um certo ar de raiva e desafio. A aparência triste reforça a
constatação de que a mulher foi arrancada de seu modo de vida ori-
ginal e que se encontra num lugar estranho já há algum tempo e, por
isso, tal expressão facial pode ser considerada também como uma
"prova material". Tal "melancolia dos selvagens" já fora percebida no
século XIX, mas em geral era explicada por fatores climáticos, atávicos
e raciais - nem sempre percebida como resultado da condição social
de desenraizamento que poderia causar distúrbios psíquicos, em par-
te conhecidos hoje como depressão.
Percebo como historiador que esta índia deixou com seu silên-
cio vibrante e na força de seu olhar a marca de um testemunho mais
eloquente do que a maior parte dos textos que haviam sido escritos
até então sobre essas tribos. Uma flecha que atravessa os tempos com
docilidade, um vigor que incomoda, expressando algo que só aqueles
que foram muito oprimidos (mas não se deixaram abater totalmen-
te) sabem mostrar. Diante do naufrágio de sua vida e de sua coletivi-

24
Pode-se perceber isso também na foto D 80 1318, em que ela aparece de
lado.
O RIGOR DA CIÊNCIA: IMAGENS E ESQ!JELETOS VIAJANDO 299
dade ela pareceu reunir toda o sofrimento, solidão e colocá-los, como
oferenda, na expressão de seu rosto e de seus olhos que se eternizaram
nessa 1magem.
O rapaz de calças brancas parece ser ainda mais jovem, um
adolescente. Magro, com os ossos do tórax aparecendo, ainda mantém
um certo vigor físico, de quem era musculoso mas emagreceu. Em-
bora esteja de frente, manteve as pálpebras semicerradas no momento
da foto, o que lhe dá uma aparência fugidia, esquiva (Figura 34). 25

Figura 34 Figura 35

Figura 36

25
D 80 1315 e E 79 1396.
300 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

Parece ter engolido todo sofrimento e não espera mais nada de


ninguém. Ainda guarda certa altivez, quase apagada num rosto endure-
cido pela raiva muda e impotente. Sua face parece talhada em pedra
numa desolação que não se desmanchará jamais. Como se não quisesse
mais viver ou olhar em volta, embora sua personalidade, no fundo,
pareça permanecer intacta. Diversos depoimentos em outras ocasiões
falam de Botocudos que, quando aprisionados, deixam de comer ou
falar, definham e acabam morrendo. Esse jovem pode ter sido um des-
ses incontáveis casos de martírio anônimo. Ele ainda tem os botoques
circulares nas duas orelhas e o cabelo cortado à moda de sua tribo.
O rapaz aparece de "três quartos" com a mão esquerda estendida
sobre o colo e a mão direita fechada (Figura 36). 26 As manchas na
pele (face, braços e tórax) indicam que estava doente. Sua magreza é
ainda mais acentuada: percebe-se os ossos do peito, da clavícula e
costelas à mostra sob a pele. Pelo tamanho das mãos percebe-se que
era (ou se tomaria) alto. Nas três fotos em que aparece seu rosto expressa
raiva e revolta nítidas. De "três quartos", os olhos mortiços parecem ao
mesmo tempo arregalados e fulminantes. Tentando reconstituir a partir
dessas expressões sua recente trajetória de vida, já mencionada nos
documentos textuais que dão conta de sua remessa para a França,
vemos que ainda não teve tempo de se conformar com os revezes, nem
pretende se aquietar. A imagem de perfll (Figura 35), com o pescoço
virado bruscamente, dá a impressão que oferece a cara à tapa, como
para evidenciar a violência que sofria. 27 O corte de cabelo e os botoques
nas orelhas confirmam também que ele vivia na selva no meio de uma
tribo antes de ser retirado do seu meio. Recentemente encontrei, en-
tre os índios K.renak, rapazes cujos traços fisionômicos se parecem
com o desse índio e tal observação também afetou-me, como se o
personagem da foto tomasse de novo vida ou, mais simplesmente,
como se os jovens deste grupo retomassem a vida de seus antepassados,
num jogo universal de mudanças e permanências entre as gerações,
que não é característico somente dos chamados grupos indígenas.
Esses daguerreótipos foram, portanto, umas das primeiras fotos
de índios. Mais do que um registro neutro ou "real", trazem em si
uma carga civilizatória. Mesmo que a intenção inicial dos detentores
das imagens fosse fazer estudos "raciais" ou "científicos", as expressões

26
D 80 1320 e E 79 1397.
27
E 80 1317.
O RIGOR DA CitNCIA: IMAGENS E ESQUELETOS VIAJANDO 301
de sentimentos e condições de vida destes índios registradas pelos da-
guerreótipos (e cotejadas com outras fontes documentais) são também
significativas. Abandonando a condição de cobaias, estes índios se
expressaram através do registro de suas aparências. Como se os objetos
fotografados se apropriassem da imagem e subvertessem seu signifi-
cado, criando outros discursos não verbalizados que transcendiam o
movimento de fixação, conhecimento e controle contido no ato de fo-
tografar. À sua maneira, os dois índios posaram, responderam, ex-
primiram com o corpo tudo aquilo que não aparecia nas suas vozes.
Eles não foram apenas "descobertos", mas descobriram a fotogra-
fia e elaboraram seu discurso, contaram sua história, ainda que sem
palavras.
Muitos fatores convergiram para que essas fotografias fossem
realizadas. Elas sinalizam uma evolução tecnológica da civilização
ocidental e que foi possível levar tais recursos até esses índios. Indi-
cam, portanto, que eles não tinham condições de responder pela guerra,
pois estavam sendo derrotados neste campo: violência e imagem não
deixam de estar interligadas. Depois do relâmpago dos fuzis e do
corte dos facões, vieram as Luzes das ciências e logo era a composição
química das câmaras escuras que agia diante dos índios. Os guerreiros
Botocudos finalmente fotografados. Esfinges captadas pela tecnologia
e decifradas pela racionalidade científica, suas imagens guardam in-
tactas a opressão a que foram submetidos. Tão diferentes da imagem
mítica ou romântica do "homem novo americano", tão distintos das
alegorias patrióticas indianistas em voga nas Américas do século XIX
- estes índios retratados não apresentam tampouco a expressão feroz
de canibais devoradores, presente na maioria dos relatos escritos sobre
eles até aquela época. De certa maneira, esse homem e essa mulher,
ainda que classificados pelo membro da Academia de Paris no campo
da Zoologia, parecem nos dizer que seus "espíritos" e seus corpos
estavam irremediavelmente aprisionados ali, no momento em que se
realizou diante deles a alquimia dos daguerreótipos.

As diferentes imagens

Com a "descoberta" dos Botocudos pelos artistas e cientistas eu-


ropeus, no início do século XIX, surgiram variadas iconografias que
nem sempre se pautavam pela semelhança entre si ou pela verossi-
milhança com os índios retratados. Os primeiros daguerreótipos, de
302 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

1844, não foram impressos naquela época. Prevaleciam, pois, as técnicas


de pintura e desenho para a difusão das imagens dos índios. Os ícones
já existentes, apesar de pontos em comum, expressavam considerável
diversidade na aparência física dos retratados: apesar de característi-
cas etnográficas se assemelharem, havia certa distinção de aparência
e do modo como eram percebidos os Botocudos fixados por Debret,
Rugendas, Neuwied e Saint-Hilaire.
Essa tendência de diversificação aparece ainda mais nítida na
ilustração do livro History of the Brazil, de James Henderson, publi-
cado em Londres, 1821 (Figura 37). Trata-se de um visível caso de
desenho feito a partir de descrições textuais e incrementado pela "ima-
ginação" do autor, que não parece ter tido contato direto com os refe-
ridos Botocudos. O casal desenhado aparece prestes a entrar numa
rústica embarcação para atravessar o rio na província (sic) de Porto
Seguro e tem corpo longilíneo, cabelos longos caindo nos ombros e
botoques enormes apenas nas orelhas, lembrando vagamente algu-
mas imagens de índios norte-americanos. Em 1822, aliás, há registro
de que um grupo de Botocudos fora levado para Londres, onde fica-
ram em exposição. Talvez o ícone tenha alimentado a curiosidade e
favorecido a remessa de tais índios à capital inglesa.

Figura 37
O RIGOR DA CIÊNCIA: IMAGENS E ESQUELETOS VIAJANDO 303
Um típico viajante em cujo relato se cristalizavam em admirá-
vel síntese as imagens predominantes sobre os Botocudos no século
XIX foi Alcides D'Orbigny, que esteve no Brasil em 1841. 28 Ele
referia-se a tais índios como "os mais célebres do Brasil" e também
como "mais ferozes que todos seus adversários", classificando como
"hábito horrendo" o uso dos botoques. Entretanto, ao visitar o que
chamou de "país dos Botocudos", isto é, a vasta região entre Porto
Seguro e os rios Jequitinhonha e Doce, garantiu estar "dissipado o
perigo" destes grupos indígenas, uma vez que, segundo sua percep-
ção, havia grande contingente da população "meio portugueses, meio
índios" e considerável porção de florestas virgens. D'Orbigny reafir-
mava o canibalismo dos Botocudos, embora remetendo-o para "tem-
pos antigos", baseado, portanto, nos textos e tradições do período
colonial. O mesmo viajante registrava a hostilidade existente dos
Botocudos com outros grupos étnicos como Maxacalis, Malalis, Mo-
nochós e Mananis, qualificando-os de "inimigos encarniçados". Ao
chegar ao Rio de Janeiro, o viajante europeu, num misto de decepção
e surpresa, afirmou encontrar ali uma cidade europeia, diferente da
"América primitiva" que ele buscava no seu périplo pelo continente.
Até D. Pedro II teve seu quinhão na polissemia iconográfica
dos Botocudos que proliferou no século XIX. O olhar imperial incidiu
sobre cinco Botocudos do Espírito Santo em fevereiro de 1860, du-
rante viagem do monarca pela província, quando aproveitou para exer-
citar sua veia etnográfica e de desenhista, ainda que de modo rudi-
mentar.29 Cara a cara com os famosos Botocudos e contaminado pela
curiosidade irresistivel em torno desses grupos, o imperador dedi-
cou-lhes palavras e traços, escassos. Nos comentários escritos que
ladeiam as imagens D. Pedro II reproduzia os conhecidos estereóti-
pos sobre tais índios, embarcando nas novas percepções que não os
apontavam mais como temíveis canibais, mas, sim, como figuras bi-
zarras e esteticamente enquadradas nos padrões de beleza das socie-
dades ocidentais.
Ao lado do terceiro e último rosto (Figura 40) o monarca fez
sua apreciação: "Moço que não é feio". Já no desenho da "rapariga"

28
A. D'Orbigny. Voyage dans les deux Amériques. ..
29
Diário de viagem do Imperador d. Pedro II ao Espírito Santo de 01-02 a 11-
02-1860- Maço 37- Doe. 1057- cad. 06, AHMIP. Agradeço a Neibe Machado da
Costa, do AHMIP, a digitalização e remessa das imagens.
304 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

(Figura 39), a palavra é lacônica, mas os seios semidesnudos, os lábi-


os grossos, narinas dilatadas e olhar amendoado e incisivo sugerem
certa sensualidade, embora seja difícil saber se o governante via tal
aspecto com bons olhos ou como sinal de sensualização primitiva ...
Mais explícito, poucos anos depois, foi o cientista norte-americano
Charles Hartt, contratado pelo governo brasileiro e que, sem os im-
pedimentos do monarca, registrou sua impressão diante de uma jo-
vem Botocudo:

Os Botocudos, como raça, são muito feios, mas algumas das


moças adolescentes podiam, dando à palavra uma acepção mais
liberal, ser chamadas de bonitas. 30

Neste mesmo tipo de registro, Teófilo Ottoni verificara ao acom-


panhar o contato entre Botocudos e brasileiros que, mesmo quando
uma tribo inteira era dizimada de forma violenta, era comum guardar
"alguma índia moça mais bonita".Jl Embora nem sempre se escre-
vesse claramente, aparece indicada com insistência a violência sexual
sobre jovens índias.
Já o "menino" (Figura 38) desenhado pelo imperador, de ar
compenetrado, apresenta feições mais "embranquecidas". Transparecem
as pernas proporcionalmente finas e o ventre proeminente, mas sem
características de magreza acentuada no desenho, a indicar verminose
e má alimentação do jovem que deve ter ficado alguns momentos em
pé servindo de modelo vivo ao monarca, então com trinta e cinco
anos de idade e vinte de reinado.
Na Figura 40 D. Pedro II deu ênfase aos botoques no rosto do
alto, da "mulher já com ftlho" (cujos olhos arredondados, além de fa-
zerem par com os ornamentos da orelha e dos lábios, emprestam-lhe
certo ar assustado), registrando por escrito características do corte de
cabelo e do uso dos botoques. Para o rosto do meio (Figura 40), tam-
bém com botoques nos lábios e orelhas, limita-se a dizer que é uma
"velha". Pela estimativa da idade, com mais de sessenta anos, tratava-
-se de uma sobrevivente e testemunha da Guerra de 1808-1824. O
avô do monarca, assim como seu pai, também se encontraram pessoal-
mente com índios Botocudos quando reinavam, mas não chegaram a

3
°C. Hartt, p. 619.
31
T. Ottoni, cit., p. 47.
O RIGOR DA CI'tNCIA: IMAGENS E ESQUELETOS VIAJANDO 305
desenhá-los ou descrevê-los. Mesmo sem maior expressão artística
ou etnográfica, estes esboços feitos pela mão de D. Pedro II trazem a
carga simbólica do encontro entre o topo e a base da hierarquia da
sociedade imperial, entre aquele que se considerava na ponta do pro-
gresso com os que eram vistos como os mais primitivos, cujas ima-
gens, agora, podiam ser facilmente capturadas, até mesmo pelo olhar
diletante do imperador em viagem. Note-se que tal encontro se deu
no apogeu da escalada do indianismo romântico apoiada pelo mo-
narca que, entretanto, não associa os Botocudos a este movimento.


Figura 38
- .~~••*~--.--~-~~--~~~--~·--•c--cw-
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O RIGOR DA Clf'.NCIA: IMAGENS E ESQUELETOS VIAJANDO 307

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•• Figura 40
308 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

As primeiras fotografias que se conhece de Botocudos tiradas


em território brasileiro são do francês Marc Ferrez, em 1876, man-
tendo a aproximação entre fotografia e antropometriaY Trata-se de
série de doze daguerreótipos tirada no sul da Bahia, na colônia
Leopoldina, quando o fotógrafo estava contratado pela Comissão
Geológica do Império do Brasil, iniciativa oficial chefiada pelo profes-
sor e pesquisador norte-americano Charles Hartt, da qual participava
número considerável de integrantes. Foi o período das primeiras expe-
dições a utilizarem a fotografia como instrumento de pesquisa no
país. O parâmetro intelectual que predominava era o da Antropologia
Física, para a qual a descrição e reprodução a mais exata possível das
características físicas permitia uma classificação de tipo racial que,
por sua vez, era determinante para o conhecimento dos chamados
tipos humanos. Os próprios textos de Hartt, como se verá a seguir,
embarcam de cheio nessa perspectiva. Em várias das fotos pode-se
ver, ao lado ou abaixo das imagens dos corpos, uma escala de medidas
que permitiria um trabalho científico nessa vertente. Nas fotografias
em que os índios aparecem da cintura para baixo, encontra-se o mesmo
pano para cobrir a nudez, mostrando que o realismo etnográfico tinha
seus limites nos padrões morais vigentes. Havia, portanto, a intenção
de divulgar tais fotos- e Marc Ferrez, em seu estúdio, tirava consi-
derávellucro vendendo reproduções para o público urbano do Brasil
e do exterior, quando as imagens consideradas exóticas tinham boa
saída. Paisagens exuberantes, cidades nos Trópicos e povos selvagens.
Note-se que Marc Ferrez acrescentou rápidos comentários es-
critos embaixo de cada foto, enriquecendo-as assim de detalhes que
não foram realçados por Hartt. Desse modo, palavras e ícones alia-
vam-se nessas fotografias para compor determinadas imagens desses
índios, as quais, por sua vez, podem ser interpretadas.
Nas Figuras 41 e 46, apesar da evidente pose, buscava-se
reconstituir o modo tradicional com que as índias carregavam os fi-
lhos durante as caminhadas- posição, aliás, já registrada nos primei-
ros relatos e desenhos etnográficos de Neuwied, Saint-Hilaire e Debret.
Era assim que, geração após geração, esses índios nômades percorriam
as matas, inicialmente como crianças nas costas da mãe; as mulheres,
32
Marc Ferrez. Souvenirs de Voyage, 1876. Trata- se de um álbum com tais
imagens enviado pelo fotógrafo a um amigo na França e que se encontra guardado na
Bibliothêque Nationale de France, Códices G 61310 até G 61321. Existem cópias
feitas na época dessas fotos em acervos brasileiros.
O RIGOR DA CII!NCIA: IMAGENS E ESQUELETOS VIAJANDO 309
quando adultas, carregando os filhos. Observou-se até em outras oca-
siões que, com o hábito de caminharem assim apoiadas nas costas
maternas, as crianças, inicialmente amarradas com uma corda para
não caírem, acabavam ficando soltas e até dormiam durante a cami-
nhada, porém, agarradas, não escorregavam mais. Entretanto, para
que a fotografia fosse realizada, criança e mãe estavam ali paradas,
ftxadas, sem movimento. Embora, ainda que imobilizadas, expressa-
vam um saber de seu próprio grupo.
A observação escrita sob a foto da jovem índia de catorze anos
(Figura 42) é expressiva: destacava-se que ela não usava mais botoque.
Sugeria-se, assim, que tais índios estavam civilizando-se e que apenas
os mais velhos ainda usavam o ornamento, hábito que estaria em vias
de extinção. Realmente, em meados do século XX, tal grupo não usaria
mais esse ornamento, mas pelo menos quatro décadas depois das fotos,
isto é, nos anos 1910, ainda havia indígenas de outras tribos desse
grupo usando o botoque, o que desmentia, ainda, o otimismo civilizador
então em voga em fins do Oitocentos. A imagem dessa jovem remete
para a dimensão da sexualidade, ou dos padrões estéticos de beleza.
Como já visto, ainda que nos parâmetros predominantes na "boa socie-
dade", os velhos e sobretudo os que tinham orelhas ou lábios furados
eram considerados horrendos, percebia-se latente uma certa atração
pelas jovens, da qual nem o barbudo imperador parece ter ficado imu-
ne. Já foram citados acima relatos em que sugere-se a violência sexual
sobre mulheres jovens dos Botocudos pelos brasileiros, num contexto
em que havia escravidão mal disfarçada ou uso em trabalhos domésticos
não remunerados. Esboça-se assim, para tais índias, em meados do sé-
culo XIX, um quadro não muito diferente do traçado em Casa-grande e
senzala por Gilberto Freyre para o período colonial: complexas rela-
ções envolvendo sexualidade, exploração do trabalho, miscigenação e
violência, caracterizavam a chamada sociedade patriarcal brasileira.
A mulher "muito idosa" (Figura 43), bem como as mulheres
das Figuras 48 a 52, por sua vez, ainda usavam o botoque, indicando
hábitos culturais que permaneciam. Embora as palavras não regis-
trem, percebe-se a magreza de várias delas acentuada por doenças ou
provavelmente, em simultâneo, más condições de vida, lembrando os
constantes relatos de Botocudos que passavam fome e mendigavam
pelas fazendas. Pela estimativa de idade, elas foram contemporâneas,
ainda que jovens, da Guerra de 1808-1824 que, todavia, não foi tão
cruenta na Bahia quanto em Minas Gerais ou no Espírito Santo.
310 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

Sobreviveram a tantos reveses e, através de sua imagem, resistiam


ainda na sua identidade étnica. Nessa série de fotos apenas as mulhe-
res mais velhas tinham botoques nos lábios, ao passo que os homens
usavam ornamentos somente nas orelhas, característica conjunta que
poderia indicar alguma forma de organização cultural, mas que não
mereceu maior atenção ou explicação dos pesquisadores na ocasião.
A preocupação predominante, além de mensurar os corpos, era a de
medir os tamanhos dos botoques de cada índio.
Indica-se que o Botocudo retratado na Figura 45 era o chefe da
tribo. E o da Figura 47 mantinha sempre seu facão amarrado ao
cabelo, além de ter a orelha furada e deformada, mas sem o botoque.
Sabe-se que o uso do facão entre os índios, além de ser um instru-
mento útil, era também exibição de poder e importância, símbolo da
capacidade de barganha com os "brancos". Daí que trazê-lo assim à
mostra e preso ao cabelo emprestava ao utensílio uma conotação de
ornamento e signo demarcatório de aliança e força.
Do ponto de vista do fotógrafo-cientista, essas imagens preten-
diam servir a estudos acadêmicos, dentro dos parâmetros do determi-
nismo físico que então se afirmava. Daí que, nesse sentido, as poses
indicadas aos índios, bem como os comentários escritos, situavam-se
nos limites da antropometria e da descrição etnográfica (todas as índias
têm colares e todos os fotografados apresentam cortes de cabelos típicos
do grupo). Isso poderia explicar o ar sério de todos os doze fotogra-
fados, já que eram objetos de estudo científico. As posições em que
foram colocados pelo fotógrafo diante das lentes visavam realçar o
uso dos ornamentos e as deformações nos lábios e orelhas daí decor-
rentes. Ao mesmo tempo, ficava implícito o exotismo de tais caracte-
rísticas físicas, que poderia servir de chamariz ao crescente público
consumidor de fotografias e ávido por conhecer os notórios Botocudos.
Ainda que emudecidos e bastante restringidos pelas intenções
do autor das fotografias, esses índios, com seus corpos e expressões,
emitiam outras poses, expressando tristeza nas fisionomias sisudas,
ou mesmo indignadas (Figura 47), no brilho denso e intenso do olhar
cravado direto nos olhos da câmara e emoldurado por olheiras (Figuras
44 e 50) e na expressão facial de indignação ou impaciência mal
contida (Figura 48). Dificilmente seriam heróis literários oitocentistas,
símbolos indianistas ou amigos do rei: a penúria, a persistência nos
padrões culturais e a gravidade das expressões impediam. Ainda que
instados pelo fotógrafo a serem objetos de determinados enfoques, esses
O RIGOR DA CI~NCIA: IMAGENS E ESQUELETOS VIAJANDO 311
doze índios não estavam brincando ou sorrindo. Eram testemunhas
vivas de uma história trágica de matanças, espoliações, capturas, traba-
lhos forçados, preconceitos e outras violências. Compunham, com suas
presenças, um desafio silencioso aos que os pretendiam totalmente
enquadrados nos padrões da civilização ocidental ou mesmo invisíveis.

Figura 41 Figura 42

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Figura 43 Figura 44
312 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

' tif

•/ ,
-~ til;--

Figura 45 Figura 46

Figura 47 Figura 48
O RIGOR DA CltNCIA: IMAGENS E ESQUELETOS VIAJANDO 313

Figura 49 Figura 50

Figura 51 Figura 52
314 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

A tarefa de fotografar os Botocudos no século XIX não era das


mais simples e nem se dava na forma de uma relação unilateral. Curioso
episódio ocorreu com a princesa Teresa Carlota, então herdeira do
trono da Baviera, que em 1888 foi especialmente ao aldeamento
Mutum, no rio Doce, para fotografar tais indígenas. A princesa en-
controu dificuldades, pois eles se esquivavam e não queriam ser foto-
grafados sozinhos, apenas consentido a fixação de suas imagens em
grupo. 33 Havia, portanto, em fins do século XIX, um saber acumula-
do e criado por esses índios em relação ás fotografias, gerando deter-
minadas atitudes e reações, ao não deixarem capturar suas imagens
isoladas.

Esqueletos, crânios e laços institucionais

Um dos mais notórios cientistas a travar contato com os Boto-


cudos no século XIX foi o norte-americano Charles F. Hartt, cuja
obra e iniciativas representaram um decisivo impulso para o enfoque
da Antropologia Física no Brasil, embora ele atuasse sob o rótulo
interdisciplinar e abrangente da Geografia. Em seu livro sobre Geo-
grafia e Geologia Física no Brasil, resultado de suas primeiras expe-
dições em 1865-1866, após desenvolver justamente os aspectos geo-
gráficos e geológicos pesquisados em várias regiões do país, dedica
um último e destacado capítulo aos Botocudos, único grupo humano
a receber tal tratamento nessa obra. Pode-se ler neste capítulo como
que um duplo registro, contraditório.
Inicialmente, Hartt dialoga com os trabalhos até então existen-
tes: cita bastante, mas também critica, Wied-Neuwied, a quem acusa
de "branquear" os Botocudos, numa típica restrição dos novos parâ-
metros científicos evolucionistas e raciais em torno da década de 1870
aos considerados tradicionais e inexatos viajantes da geração anterior,
ligados às Ciências Naturais, às descrições literárias e ao Iluminismo
do século XVIII. Ao mesmo tempo, Hartt tomava como referência e
elogiava as análises descritivas e antropométricas de Friederic Blumen-
bach e Marcel de Serres, considerando-as como ponto de partida
para os novos cânones da ciência e modelo de análise a serem segui-
dos quanto aos Botocudos. E o norte-americano dedicou várias pági-
nas à análise comparativa de medidas de crânios desses índios.

33
Cf. L. Rocha. Viajantes estrangeiros no Espírito Santo . .. , 1971.
O RIGOR DA CI"tNCIA: IMAGENS E ESQ!JELETOS VIAJANDO 315
Hartt esteve com Botocudos em diversas oportunidades e lo-
cais: rio Doce, São Mateus, colônia Leopoldina, Urucu e Filadélfia
(Teófilo Ottoni). E desse contato no terreno parece ter brotado outra
percepção, de certo modo contraditória com os paradigmas intelec-
tuais que ele próprio apregoava. Depois de conhecê-los e manter
algum convívio, o norte-americano se disse surpreendido por achar
tais índios "muito dóceis", de "boa índole": riam e brincavam uns com
os outros. Ainda que discretamente, era mais um que se encantava
com a "cordialidade dos selvagens".
Entretanto, Charles Hartt não estava dissociado dos precon-
ceitos existentes em sua época. Afirmava que o uso de botoques re-
sultava numa "horrível careta" dos índios, comparando seus lábios a
aparência de um verme. E citava, sem contestar, o naturalista alemão
von Tschudi, para quem os Botocudos, quando pintados de urucum e
jenipapo, tinham aspecto demoníaco.
A escravização de Botocudos ainda era relatada pelo cientista
norte-americano:

As crianças são frequentemente trocadas com os fazendeiros,


que na realidade as conservam como escravas.

Em sua preocupação de rigor científico, Hartt não camuflava a


generalizada prática de escravizar índios ainda àquela altura do sécu-
lo XIX, mais particularmente os Botocudos. Ele chegou a constatar
que muitos deles trabalhavam ao lado dos negros cativos. Hartt tam-
bém anotou as resistências indígenas a este regime de trabalho força-
do, embora não as compreendesse como tais. Mas avaliou que os
Botocudos eram "muito preguiçosos" e que fugiam com frequência
para a floresta, onde muitos eram "perseguidos e mortos". Trata-se de
um relato insuspeito de um pesquisador que seria benquisto e finan-
ciado pelo governo imperial.
A teia histórica e cultural que se tecia em torno dos índios
Botocudos estava longe de acabar. Depois dos viajantes da primeira
metade do século XIX, da publicação dos primeiros documentos his-
tóricos relativos a essas tribos e dos dilemas do Romantismo e da
historiografia, foi a vez da Antropologia que se firmava como disci-
plina relacionar-se com tais grupos.
Os estudos sobre os Botocudos adquirem na segunda parte do
século XIX um lugar relevante no campo científico internacional,
316 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

sobretudo nas investigações e indagações sobre as origens da espécie


humana, dentro da perspectiva do evolucionismo e da Antropologia.
As instituições científicas brasileiras, que buscavam afirmar-se no
cenário internacional e se consolidarem nacionalmente, criaram la-
ços e redes de contatos mediante coleta e intercâmbio desses restos
mortais de indígenas, com destaque para os Botocudos.
Pelo menos cinquenta crânios de Botocudos fazem parte das
coleções de museus brasileiros e internacionais, material que foi ob-
jeto de intercâmbios, estudos e monografias que circulavam pela co-
munidade científica. No caso do Brasil, particularmente, esta refe-
rência aos Botocudos foi marcante - uma vez que apareciam como
uma das principais "contribuições específicas" na constituição da
Antropologia e nas indagações acerca das origens do "homem brasi-
leiro" e mesmo do "homem americano". Os Botocudos, então, eram
vistos como uma espécie de elo perdido ou de misteriosa perma-
nência do homem pré-histórico nos tempos ascendentes do progres-
so e da civilização - e como tal eram considerados precioso manan-
cial de pesquisa. 34
Estamos aí num outro domínio, não mais o dos viajantes natu-
ralistas tocados pela Ilustração e pela visão europeizante da universa-
lidade do gênero humano, mas de uma perspectiva que privilegiava o
estudo biológico, isto é, a coleta de esqueletos e fósseis, o estudo de
"espécimes" vivos, as medidas antropométricas e as comparações
morfológicas com o objetivo de conhecer e qualificar as diversidades
e buscar a unidade do gênero humano, reforçando assim uma classi-
ficação do tipo racial. Colocava-se a perspectiva evolucionista das
origens das espécies e o papel do homem neste quadro -tratava-se,
ainda aqui, de uma corrente intelectual de vanguarda. Em geral as
conclusões dos estudos de caráter físico (crânios, esqueletos, etc.) é
que determinavam e condicionavam a compreensão dos aspectos di-
tos "morais" ou "espirituais". Diante da diversidade das populações
humanas o estudo da raça passa a ser privilegiado e também aí são as
características físicas que servem para explicar as socioculturais. Ou
seja, uma ótica racial, que nem sempre se distinguia do racismo e cuja
prática não se dissociava do colonialismo europeu ou da ideia de
progresso civilizador nos países americanos, sem esquecer a partilha

34
Sobre este tema ver J. M. Monteiro. As raças indígenas no pensamento
brasileiro durante o Império . .. e L. Schwarcz. O espetáculo das raças. ..
O RIGOR DA CIÊNCIA: IMAGENS E ESQ!JELETOS VIAJANDO 317
territorial da África pelas potências europeias sacramentada no Con-
gresso de Berlim em 1885. Assim, estes estudos biológicos vincula-
vam-se ao contexto histórico e não apareciam como um ramo ou um
dos domínios da Antropologia, mas como a disciplina em si - afir-
mação demarcada com a força das identidades nascentes que buscam
conquistar seu espaço institucional.
Os estudos de caso de Botocudos têm papel significativo nesta
Antropologia que se firmava. No campo teórico, eram vistos como
uma das "mais primitiva das raças" americanas - o que por si já
evidencia sua relevância dentro de uma linha evolutiva da espécie
humana. E, na prática, também foram usados no Brasil para a con-
quista de apoio e legitimidade por parte desta ciência do homem
diante dos demais setores da sociedade. Fica difícil separar esta
reformulação do conhecimento sobre esses grupos indígenas das pró-
prias condições em que tais tribos viviam. A legenda de ferocidade e
os clamores de extermínio que vigoraram até início do século XIX
foram sucedidos pelos primeiros estudos tomando esses grupos como
objeto e por intensa campanha civilizatória, mediante pacificações,
colonizações e catequeses. Agora, da segunda metade do século XIX
para o início do século XX, era um outro discurso que se formulava,
caracterizado pelo rótulo primitivista que podia servir para a ciência,
mas também para o senso comum, na tênue fronteira entre o extrava-
gante e o rigoroso, entre o bárbaro e o grotesco, entre o saber e o
preconceito, entre a raça e o racismo.
O primeiro crânio de um índio Botocudo fora levado à Europa
ainda pelo príncipe de Wied-Neuwied em 1817 (Figura 53). Foi um
acontecimento na comunidade científica. Nomes como Friederic
Blumenbach (o "pai" da Antropologia Física) e Norton debruçaram-
-se sobre ele e publicaram trabalhos minuciosos. Era uma amostra
autêntica da "raça Botocuda", considerada então como verdadeira re-
líquia de um grupo pré-histórico vivendo em características acentua-
damente primitivas. Foi o início de uma série de estudos e publica-
ções em torno dos crânios de Botocudos, passando pelos já citados
Serres (1843) e Hartt (1870), por R. Virchow (Sociedade de Antro-
pologia de Berlim, 1873 e 1892), Retzius & Bernard Davis (1875),
G. Canestrini & Moschen (Pádua, 1879), Lacerda Filho & Peixoto
(Museu Nacional, 1876), Rey (Sociedade de Antropologia de Pa-
ris,1880), Peixoto (1885), P. Ehrenreich (1887), Jeffries Wyman
(Universidade de Cambridge, 1884), G. Sergi (1891), von lhering
318 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

(Museu Paulista, 1911) e Manizer (Sociedade Imperial Russa de


Antropologia, 1915).

~-

~
I, I
j \

Figura 53

Dessa maneira pode-se considerar que os primeiros estudos feitos


por brasileiros (que se colocavam numa perspectiva científica ou de
produção intelectual, sem ligação dircta com a adm inistração sobre
os índios ou projetas de colonização c catequese) sobre os Botocudos
surgiram a partir da Anthropologia, eminentemente física ou bio l,)gi-
ca cm fins do século XIX. E quem poderia considerar esqueletos
como sujeitos históricos? Só no Museu Nacional no Rio de Jan eiro
foram guardados 33 crânios de Botocudos. 35 Sem falar dos crânios
guardados no Muséum d'Histoire Naturelle em Paris (seis c també:m
diversos esqueletos doados por D. Pedro II), Sociedade de Antropo-
logia (Paris, quatro crânios, sendo dois de mulheres, levados por P.
Rey cm 1878), Museu de Estocolmo (entre eles um crânio de cria n-
ça), no Museu de Berlim (crânio de um homem adulto enviado como
presente por D. Pedro II cm 1876 e mais dois remetidos da Bahia) ,
Museu de Frciburg (remessa de 1878), Museu de Bonn (doado pelo

15
M. C. M. Alvim. Divenidade morfológica entre os índios "Hotowdo.r". .. , 1963.
O RIGOR DA CitNCIA: IMAGENS E ESQUELETOS VIAJANDO 319
príncipe Wied-Neuwied) e Museu de Gôttingen (1880). Verifica-se
uma significativa rede de sociabilidade científica alimentada pelos
ossos dos Botocudos.
Essas viagens de esqueletos podiam ser financiadas no âmbito
oficial ou por iniciativa privada. A administração pública brasileira, a
mesma que cuidava do controle direto dos grupos indígenas, era
mobilizada em várias instâncias para a coleta de ossos durante o Se-
gundo Reinado. Pode-se rastrear essa viagem dos restos humanos
desde a selva até as instituições culturais brasileiras ou estrangeiras
através do trâmite burocrático, como no caso de dois esqueletos mas-
culino e feminino solicitados em 1875 pelo Museu Nacional, via 2.•
Seção da Diretoria do Comércio do Ministério da Agricultura, ao
diretor do Aldeamento Central do Rio Doce que, por sua vez, reme-
tia o material (dois caixões com esqueletos) ao presidente da Provín-
cia de Minas Gerais, cabendo a este a remessa ao Rio de Janeiro. 36
Havia também a coleta e comércio de esqueletos para exportação por
particulares. Como no caso de um confronto armado entre Botocudos
e fazendeiros em Minas Gerais em 1846, resultando vários indígenas
mortos. Na ocasião, conforme relato da época:

Dezesseis crânios foram então vendidos (triste mercadoria) a


um francês que disse fazer essa aquisição por conta do Museu
de Paris. 37

Além de eliminados pelos que cobiçavam suas terras, os índios,


depois de mortos, poderiam servir como outra fonte de lucros. Havia,
pois, uma teia com laços administrativos, econômicos, culturais, béli-
cos e científicos, a enredar as tribos indígenas. Em alguns momentos
a ligação entre coleta para fins científicos e guerra de extermínio era
feita sem maiores mediações.
O que motivava esta avalanche craniológica (além da sociabili-
dade acadêmica embasada na administração pública ou em interesses
privados) era uma ampla indagação de fundo hamletiano: diante dos
crânios e esqueletos de Botocudos os cientistas procuravam indagar
sobre a identidade e as origens da espécie humana- onde tais índios

36
Esqueletos remettidos pela Presidência de Minas Gerais para o Muséo Nacional, 26
de abril de 1875 (IE 7-77), AN .
37
T. Ottoni, cit., p. 51.
320 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

eram considerados, entre os vivos, um dos mais antigos elos da cadeia


evolutiva. Para entender essa associação entre Botocudos e primitivismo
é preciso levar em conta duas explicações. Uma que aparece bem
explícita na época e era tida então como absolutamente científica,
vinculava tais índios ao Homem da Lagoa Santa e aos fósseis huma-
nos pré-históricos, baseada em determinados critérios antropométricos;
e outra, menos evidente, mas que hoje se sobressai, trazendo à tona
atitudes baseadas em preceitos civilizatórios, estratégias institucionais,
formas de sujeição destes grupos no presente e preconceitos raciais
que geravam tal visão sobre esses índios. A antiga e íntima relação
entre objetividade e subjetividade.
A associação entre homem pré-histórico e Botocudo era tida
como irrefutável e constava de manuais, como aquele que, editado na
França em 1912, afirmava a existência de uma "raça da Lagoa Santa"
como um "tipo marcado" e ainda presente em populações da América
do Sul como os Botocudos no Brasil e os Patagônios e Fueguinos na
Argentina. 38
Essa suposta proximidade entre os Botocudos e o Homem da
Lagoa Santa, apresentada com tanta ênfase científica durante décadas,
foi caindo em desuso ao longo do século XX, embora só tenha sido
formalmente contestada no campo da Antropologia biológica na tese
de Maria Alvim em 1963. 39 Neste trabalho a autora faz estudo compa-
rativo das características morfológicas dos crânios de Botocudos e os
da Lagoa Santa, concluindo: ''A antiga hipótese do estreito parentesco
entre os índios «Botocudos» e o «Homem da Lagoa Santa» não pode
ser comprovada pelo confronto das medidas e índices cranianos[ .. .].
Ao contrário, verificou-se que são as referidas séries morfologicamente
diferentes". A autora no mesmo trabalho afirma que os Botocudos não
existiriam mais como grupos tribais diferenciados da população brasi-
leira, reiterando a noção de que estariam extintos, corrente no período.
Estudar os Botocudos tornou-se um modismo intelectual con-
tagiante no século XIX. Era como se o tempo do progresso, da evo-
lução e da ciência necessitasse da referência a outro tempo remoto,
das origens, do primitivo e do atraso, para servir de contraponto e
reafirmar sua linha ascendente. Neste contato entre cientistas e os

38
H. Beuchat. Manuel d'Archéologie Américaine. .. , 1912,
39 M. C. M. Alvim. Diversidade moifológica entre os {ndios "Botocudos" do leste
brasileiro {século XIX) e o ''Homem de Lagoa Santa". .. , 1963.
O RIGOR DA CI~NCIA: IMAGENS E ESQUELETOS VIAJANDO 321
índios havia, por parte daqueles, a ênfase na coleta de restos humanos
- esqueletos completos, crânios, túmulos, sem falar nas medidas
antropométricas dos "exemplares" vivos. Verdade que desde os primei-
ros contatos, tal preocupação já existia. O príncipe Wied-Neuwied e
Saint-Hilaire recolheram crânios, mas não deram a eles grande im-
portância no panorama de suas observações e conclusões. Com os
primeiros antropólogos - e a distância já nos permite falar disso sem
rancores - havia um certo toque de necrofilia nesta busca e coleta de
ossos humanos, em certa medida insensível aos indivíduos vivos ou
ao modo como foram mortos.
Em qualquer época é difícil falar de uma "ciência pura". A co-
meçar pela própria perspectiva teórica de pesquisar as provas mate-
riais para chegar a conclusões culturais - os esqueletos seriam mais
"eloquentes". Índio bom é índio morto? Ao contrário do personagem
Hamlet, a maioria destes cientistas, quando tinham a caveira nas mãos
para interrogá-la, não se preocupavam em saber a quem pertencera,
em que condições o índio morrera (a não ser que o objeto estivesse
danificado), o que outros de sua tribo poderiam falar sobre a vida, a
morte e as tradições e muito menos se interessavam por saber que
proporções poderia assumir um comércio de esqueletos.
Um dos últimos crânios de Botocudos a ser recolhido foi o de
Tomkhé, filho do "capitão" Krenak e que morrera por volta de 1910
ou 1911. Em 1915, o jovem cientista russo Henri Manizer, em mis-
são da Sociedade Imperial Russa de Antropologia, de Petrogrado, foi
à região do rio Doce com o objetivo de coletar materiais e fazer um
relato sobre a vida das tribos de Botocudos no Posto Pancas (a cinquenta
quilômetros de Colatina) e num aldeamento em abandono nos arre-
dores de Lajão. Os Krenaks (que segundo Manizer se autodenomi-
navam Boruns), que até 1910 eram considerados, no dizer do russo,
"como os mais puros e conservados", estavam agora em estado la-
mentável. O grupo que se recusava a ir para o Posto Pancas, onde a
caça era muito pobre, permanecia acampado num terreno à beira da
estrada de ferro Vitória-Minas, vivendo de uma precária agricultura
de subsistência, recebendo rala ajuda governamental e pedindo esmo-
la aos passantes.
Ao perguntar a estes índios onde poderia recolher algum
esqueleto, Manizer não sabia que estava puxando a meada de um
fio que o levaria a águas mais profundas do que poderia imaginar.
O cientista russo chegara ao local impregnado do cientificismo
322 CEX.CO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

craniológico. Mas os índios lhe ensinaram outras dimensõe s do


conhecimento humano (antropológico) que ele ao menos teve a
disponibilidade para incluir em seu relatório. O pedido causou in -
tensos debates entre os poucos que restavam da tribo. Ali estavam
a velha Jarik, viúva de Krenak; Kapruk, viúva de Thomké; Knia-
nik, bem idoso e irmão de Thomké; Kristino e mais três ho me ns
jovens. Alguns eram fàvorávcis a permitir a colcta dos restos mortais .
Outros não.
Foi explicado então ao jovem russo (e ele traduziu a explica~·ão
para seu idioma e seus códigos) CJUe Nanitiong era um ser fantástico
no qual se metamorfoseavam os mortos. Para não encontrar um deve-
-se evitar ir ao local onde os mortos estão enterrados. O tcrw r da
presença desses espíritos às vezes levava pânico ao acampamento. en-
tre gritos, súplicas c correrias. As mulheres, que ainda andavam com -
pletamente nuas, aparecem como as defensoras da tradição c não que-
rem que os ossos sejam levados pelo russo. Mas acaba prcvalcccnd" o
ponto de vista dos que permitem que o material seja recolhido. ] 1or
que eles concordaram com o que aparentemente seria uma probn a-
ção? Por que os índios aceitaram se aproximar de Nanitiong? l\llani zer
não entendeu, nem procurou entender imediatamente, mas foi reg-is-
trando as falas c gestos dos índios cm seus papéis. Apesar da pe núria
em que viviam, as palavras c os atos desses índios eram vigorosos,
como se ainda herdassem c guardassem as energias de outros tem pos,
energias que integravam seu etho;- que ainda permanecia nos di fíce is
tempos presentes. Os preparativos para recolher os restos m ortais
foram demorados. Murmúrios, silêncios, tarefas intermin áveis, ares-
tas aparadas no interior do grupo. Finalmente a pequena comiti va se
põe a caminho conduzida por Knianik, que ainda usava botOt]U C.
Chegam ao topo de uma colina coberta de cactos c algumas acícias.
Dali, como numa síntese do tempo cm que viviam, avistava-se o rio
Doce que continuava seu curso e a ferrovia que atravessava o territó-
rio indígena.
Manizcr vê ossos deitados sob coberta de palha, folhas c g-a-
lhos, com os pés apoiados no solo. Em volta, garrafàs, arco e fle chas
espalhados. A maioria dos ossos estava também espalhada. O crán io
não tinha o maxilar inferior. Faltava também um fêmur. O "materia-
lismo" rigoroso do cientista russo contrastava com o "espiritualismo"
dos índios. Knianik explica que o corpo de Thomké tora colocado
naquela posição, recostado, para ficar olhando para seu assass in o (as
O RIGOR DA CifNCIA: IMAGENS E ESQUELETOS VIAJANDO 323
circunstâncias do assassinato não foram relatadas). Em seguida, de
maneira reverente, Knianik fala (em voz alta) dirigindo-se ao morto:

Nós viemos te buscar, Thomké! Não se aborreça, vem com a


gente. Nós iremos com você até a margem. Você vai com karaí
a ridianêre [Vai com homem branco para o Rio de Janeiro].
Você vai comer arroz e beber café. Não nos esqueça, Thomké.
Lembre a Henrique [Manizer] de nos trazer arroz, farinha, fei-
jão e milho.

O recado estava dado. Mesmo em tensão com suas próprias


estruturas culturais, mesmo revolvendo fortes laços afetivos, os índios
haviam concordado com a coleta dos ossos que para eles tanto signi-
ficavam (como também na cultura ocidental, basta ver a opulência
dos cemitérios católicos) na expectativa de fazer uma barganha, de
compor alianças que facilitassem a sobrevivência do grupo. Como se
dissessem a este representante da civilização: leve os ossos que lhe
interessam lá por seus motivos, mas colabore para que não sejamos
extintos, traga alimentos, ajude a nossa sobrevivência. Neste ponto
irrompe a outra vertente, apegada à tradição cultural pois, afinal, era
a identidade étnica que os mantinha vivos como grupo. Kapruk se
abraça com o crânio de seu marido e tem uma crise de choro. Era
também uma manifestação afetiva, saudosa, emocionada. Irada, re-
clama com os índios que estão revolvendo os restos mortais. Knianik
se abaixa e lentamente vai colocando os ossos num saco (não foi per-
mitido ao homem branco recolhê-los, os índios quiseram ter a prer-
rogativa de fazer esse gesto com as próprias mãos). Ele também tem
os olhos cheios de lágrimas. Vai recolhendo e falando, exaltando as
virtudes do morto: bonito, grande, forte ... "Perto dele eu sou apenas
uma criança", dizia Knianik, cujo rosto era coberto de rugas.
Depois da cerimônia, Manizer podia dar como cumprida sua
missão. Os ossos, junto com outros, seriam repartidos entre o Museu
da Academia Imperial de Ciências de Petrogrado e o Museu Nacio-
nal do Rio de Janeiro. Mas o russo ainda recebeu outra lição antropo-
lógica do velho Knianik, que passou a falar sobre o espírito civilizador
de sua tradição, Maret-Khmaknian e de como ele estava zangado das
ofensas que os brasileiros faziam aos Boruns.
Maret- Khmaknian estava zangado com os brasileiros. Ele era
um velho mais que humano. Mais alto que um homem comum e seu
324 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

pênis colossal podia sufocar uma mulher até a garganta. Ele tinha
cabeça branca, rosto coberto até os olhos de pelos vermelhos. Ele se
encontra no céu, as estrelas são dele, tem muitos ftlhos. Anda nas
nuvens e sobre as águas, mas os brasileiros não podem vê-lo. Ele não
usa sapatos, mas nem espinhos nem galhos podem machucá-lo. Sua
faca é longa como um arco e pode derrubar árvores, faz flechas muito
bem. Se alguém o irrita, atinge no coração com flecha invisível. Ama
os Boruns e se aborrece quando eles são ultrajados. Maret, o antigo,
promete vingança contra os brasileiros que passarem pelas terras in-
dígenas. Maret enviou o sol, como o governo enviou os trens. De
noite o sol entra no céu e fica com Maret o antigo. Ele esconde ou
mostra a lua, evoca chuva e tempestade. 40
O relato mitológico sobre o "espírito civilizador" destes Boruns
mostra que a resistência do grupo indígena continuava. Não mais na
prática guerreira, que se tornara impossível para eles nas condições
em que viviam, mas em práticas simbólicas, que acompanhavam e
estruturavam a identidade do grupo desde a época em que eram guer-
reiros, identidade que se transfigurava e permanecia - mesmo quan-
do eles já não eram mais considerados "índios bravos". A bravura,
aqui, era de outra ordem e a força de seus mitos era ainda maior que
sua força física, que durante tantos séculos aterrara os agentes da ci-
vilização ocidental.
Algum tempo depois, maio de 1916, Henri Manizer estaria
apresentando os resultados de sua pesquisa na Sociedade Imperial
Russa da Academia de Petrogrado (meses antes da Revolução Sovié-
tica). Manizer, homem de ciência e ligado às vanguardas culturais e
poüticas de seu país, estava próximo a grupos revolucionários russos.
Ele foi considerado, por alguns, como autor do primeiro trabalho
antropológico moderno, na transição da Antropologia Física para a
Cultural. Os cientistas paravam de desenterrar os ossos dos Boto-
cudos e estes, mesmo acossados, iam contribuindo com suas falas e
expressões para enterrar o cientificismo craniológico e racista.
Um expressivo e desconcertante exemplo da relação dos Boto-
cudos com as ciências do século XIX aparece na história de vida de
um desses índios, cujo nome não foi registrado pelo viajante alemão
Tschudi que recolheu o caso em fins dos anos 1850. Uma família da

40
Este relato foi traduzido e codificado por Manizer em russo, depois recebeu
uma versão resumida em francês, da qual tiramos esta versão em português.
O RIGOR DA CitNCIA: IMAGENS E ESQ!JELETOS VIAJANDO 325
Bahia recebera de "presente" um curuca Botocudo e criou-o como
ftlho: o rapaz teve ótimo desempenho nos estudos de nível médio e
entrou para a Faculdade de Medicina da Bahia, de onde saiu com o
título de doutor e exerceu durante alguns meses a profissão. Entre-
tanto, estava sempre tomado "por uma melancolia que não se dissipa-
va jamais", o que foi atribuído, na época, a estigmas raciais, ou seja, "à
marca doente de seu caráter". Certo dia ele desapareceu sem deixar
vestígios, para perplexidade de seus pais adotivos que, somente anos
mais tarde, descobriram seu paradeiro: voltara para sua tribo na flo-
resta, onde retomou seus antigos padrões culturais, caçando com arco
e flecha e vivendo sem roupa. O índio em questão, embora não se
adaptasse plenamente aos padrões ocidentais, era capaz de adquiri-
-los e usá-los, segundo palavras da época, com "brilhantismo". Além
da incompatibilidade existencial com o modo de vida imposto, que o
índio conheceu bem e até aceitou durante anos, e da identidade de
origem que não se perdera, apesar das experiências de contato vivi-
das, ele conhecera e dominara as ciências biológicas, um dos princi-
pais esteios de opressão e de estigma sobre seu povo. Para os parâmetros
civilizadores oitocentistas era praticamente impossível compreender
essa recusa na opção feita pelo Botocudo que se tornara médico e, em
seguida, preferiu voltar às suas origens culturais.

As invisíveis presenças

O engenheiro e explorador inglês William John Steains calcu-


lava em 1885 a presença de cerca de sete mil Botocudos em torno do
rio Doce e seus afluentes ao Norte.41 Trabalhando na construção de
ferrovias e, ao mesmo tempo, membro da Royal Geographic Society,
ele se mostrava impressionado em como tais índios "têm resistido
tenazmente a todas as tentativas de colonização". Steains constatou
em suas andanças a dificuldade em encontrar os Botocudos, em geral
percebidos por pegadas, rastros e vultos fugidios pela floresta. Ainda
assim, no mês de novembro, pôde ver de perto dois grupos, um com
cinquenta e quatro mulheres e crianças e outro com setenta pessoas.
Dois anos depois os Botocudos seriam em torno de cinco mil,
segundo estimativa de Paul Ehrenreich, 42 que em levantamento no

41
W. J. Steains. Uma exploração do rio Doce e seus afluentes no norte ...
42
P. Ehrenreich. Contribuições para a etnologia do Brasil. ..
326 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

terreno conheceu diversos índios e chefes, registrou dez grupos, [ra-


cionados em bandos pequenos e médios:

1. Nak-nenuk, entre os rios Mucuri, Doce, Suaçuí e na serra


dos Aimorés; subdivididos em: Posesa, bando hostil do Mucuri; Poté,
Pontora e Norek, no alto Mucuri; os Batum, "Menino", Pacho, Ma-
nuel Carneiro, Chique Unque, Filipe Giporok, Joaquim Giporok,
Maranca, Sargento Branco, Patu e Amanpan, na região do Suaçuí, já
fixados ao solo; Poding, Pruntrus, Jikagirum e Urucu;
2. Nak-eraha, alto e médio Guandu;
3. Etwet, rio Suaçuí Grande;
4. Takruk-krak, da serra dos Aimorés até Suaçuí Grande;
5. NepNep, a leste da serra dos Aimorés até próximo rio São
Mateus;
6. N ack-poruk, margem esquerda do rio Doce, entre Figeuira e
Guandu;
7. Arauan, médio Arauan, tributário do Urupuca;
8. Bakués, norte do Mucuri até afluentes meridionais do Jequi-
tinhonha;
9. Panpan, rio do mesmo nome, afluente do Mucuri;
10. Nocg-nocg, rio Pardo.

Ehrenreich, professor de Medicina e Filosofia, nascera na Prús-


sia em 1855 e realizou uma típica e alentada expedição antropoló-
gica oitocentista no aldeamento do Mutum, onde obteve quinze
medidas antropométricas de índios vivos, vinte e cinco "fotogra-
fias antropológicas", dois esqueletos, três crânios e material etnográ-
fico diverso.
Se estudiosos estrangeiros ainda anotavam a presença desses
índios com suas identidades étnicas no apagar do Oitocentos, os Bo-
tocudos, ao mesmo tempo que consolidavam notoriedade no mundo
da ciência, iam desaparecendo dos relatórios oficiais brasileiros. A já
citada teia de invisibilidade favorecia a tomada de suas terras e a
utilização de mão de obra, colocando-os na condição indistinta de
escravos não declarados ou de brasileiros pobres. Entretanto, por al-
gumas frestas oficiais, percebia-se a presença dos grupos indígenas
ainda não plenamente enquadrados pela sociedade nacional. O presi-
dente da província do Espírito Santo anotava em 1886 a verba para
compra de vestuário e ferramentas para os índios do Aldeamento de
O RICOR Di\ Clf.:NC!i\: !Mi\GENS E ESQ\Jl,LETOS Vli\.Ji\NDO 327
Mutum "e mesmo para os que costumam aparecer vindo de outros
lugares". 43
Entre o apagar do Oitocentos e o raiar elo século XX, experiên-
cia marcante no contato com os Botocudos ocorreu nos aldeamentos
ele Ltambacuri, cm Minas Gerais, por iniciativa ele frades capuchinhos,
na mesma região onde décadas antes Teófilo Ottoni intentara seu
malogrado projeto capitalista utópico.
A iniciativa missionária ele ltambacuri, detidamente estudada
pela antropóloga 1. Misságia ele Mattos, começou cm 1873 e chegou
a contar com mai s de mil Botocudos aldeaclos ao lado ele número
equivalente ele brasileiros. 44 Foi inicialmente liderada e construída
por dois capuchinhos também "mestiços", isto é, ele origem italiana e
austríaca, c incorporou grande número ele índios à socicclaclc nacio-
nal, destacando-se os professores indígenas como intermediários.
Durante duas décadas a ação missionária f1orcsccu, encravada no que
até então se constituía como um dos últimos bolsões de grupos Boto-
cu clos no território brasileiro. Entretanto, uma vigorosa rebelião dos
índios contra a missão c os padres, cm 1893, causou surpresa, como-
ção e gerou violen ta repressão sobre os indígenas que muitos acredi-
tavam devidamente cristianizados e pacificados. A partir daí, a pre-
sença indígena, ou seu reconhecimento, foi declinando no local, que
ainda cm 1894 contabilizava cerca de mil índios entre "puros c mes-
tiços'' e nos primeiros anos do século XX falava -se indistintamente
em "habitantes", gerando um considerável crescimento populacional
para as cidades que ali se ergueram, também com a vinda de famílias
de imigrantes europeus. Em pouco mais de dez anos os índios desa-
pareceram por com pleto dos registras demográficos de Itambacuri.
Era a República nascente que, herdeira do Império, intensiftcava a
consolidação da homoge nei;dade para a nação brasileira.

'' Rdat01·ia aprnentado áAs.remhléa L egislativa Provincial do E.rpirito- Santo p ela


presidmte da pw;.,incia, desembargador Antonio J oaquim R odrigue.r, em 5 de outubro de
1886.
" 1. l\1. de Mattos. Civilização e revolta . . . , cit.
Capítulo 9
ÍNDIOS NA VITRINE:
A Exposição Anthropologica Brazileira

Abertura

Ü leitor poderá visitar nas páginas a seguir a Exposição


Anthropologica Brazileira inaugurada na cidade imperial do Rio de
Janeiro em 29 de julho de 1882. As palavras impressas não têm a
força visual dos ícones nem o poder de levar-nos ao passado, mas
cabe lembrar que "exposição" tem vários significados e quer dizer,
também, relato (e não retrato). Vamos, pois, à exposição da Expo-
sição.
O maior atrativo da Exposição Anthropologica Brazileira foi a
presença de índios Botocudos vivos e ao vivo, expostos numa des-
tas grandes feiras da modernidade que marcaram os séculos XIX e
XX. Exposto, palavra polissêmica, indicava também as crianças
enjeitadas, numa época em que os índios tinham a condição jurídica
de órfãos.
Tal mostra, organizada pelo Museu Nacional, causou sensação
e foi resultado de convergências: o "imperador-filósofo" e chefe de
Estado D. Pedro II, patrono das ciências nos Trópicos; a Antropologia
que se afirmava como Disciplina; e a permanência, neste mesmo ter-
ritório nacional, de grupos indígenas que viviam dentro de seus pa-
drões culturais e enfrentavam conflitos armados. Com tais ingredientes
a mistura foi, pelo menos, original: poucos esforços de divulgação
científica marcaram de maneira tão nítida a interseção entre violên-
cia, espetáculo e ciência neste apagar do século XIX, da monarquia e
da escravidão no Brasil. Segundo seu principal organizador, a mostra
328
ÍNDIOS NA VITRINE: A Exposição Anthropologica Brazileira 329
foi uma "aplaudida festa scientifica" .1 Onde começa a separar-se o
lazer da ciência? Como definir a fronteira entre o exótico e o exato?
Hoje, passados mais de cento e vinte e quatro anos, podemos
revisitar a Exposição Anthropologica colocando nas vitrines não apenas
os índios, seus artefatos, imagens e ossos, mas igualmente a teia da
organização, os cientistas, os colecionadores, enfim, a própria socie-
dade que assistiu e gerou tal exibição, com suas mudanças e perma-
nências. Talvez não estejamos tão distantes.

Estande 1.
Teia administrativa na coleta dos artefatos nacionais

Para preencher os pavilhões da Exposição armou-se longa e


poderosa malha burocrática interligando diferentes setores da admi-
nistração pública (inclusive o Museu Nacional, como parte mais vi-
sível) à população indígena. A organização desse evento mostra duas
faces: de um lado rigoroso e definido projeto nacional-antropológico
e, de outro, certa dose de improvisação, de correrias contra o tempo e
súplicas de verbas aos detentores do orçamento (característica talvez
permanente na atividade científica... ).
O diretor do Museu, Ladislau Neto, estava à frente da iniciativa
"para a qual dos mais longínquos pontos do Imperio preparão-se nu-
merosas collecções ou interessantes objetos". 2
Desde novembro de 1881 o Ministério da Agricultura (ao qual
estava subordinado o Museu) espalhara ofícios por todo o Brasil
solicitando a coleta etnográfica. 3 E assim formou-se uma articula-
ção para o envio de materiais vindos de diferentes regiões do país.
Moviam-se tentáculos partindo de Ministérios, presidentes de
Províncias, Câmaras Municipais, chefes de Comissões, diretores
de colônias, de aldeamentos e serviços de catequese. Era como se
fosse a busca também de uma forma de integração nacional pela via
administrativa por meio dessa coleta que passava a ser denominada
de antropológica.

1
Ladislao Netto, diretor do Museu Nacional. "Ao Leitor". Introdução a Mello
Moraes Filho (di r.). Revista da Exposição . .. , p. VII.
2
Oficio do Diretor do Museu Nacional de 4-4-1882, Série Educação, IE7 -65, AN.
3 Ata da 19. • sessão ordindria da Câmara Municipal de Petrópolis, aos 30 dias de

novembro de 1881, sob a presidência do sr. majorJosé Cândido Monteiro de Barros, AHMIP.
330 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

Entre os integrantes das elites dirigentes que colecionavam ar-


tefatos etnográficos estava João Lustosa da Cunha, então visconde de
Paranaguá que, providencialmente, ocupava o ministério da Fazenda
em 1882 e mereceu especial agradecimento dos responsáveis pela
Exposição. Além de sua colaboração, seu filho, José Paranaguá, pre-
sidente da província do Amazonas, foi uma das autoridades que mais
se interessou em enviar artefatos para a mostra no Rio de Janeiro. 4
Assinale-se que essa família influente adotava sobrenome indígena,
atitude que ocorreu entre parcela das elites brasileiras na segunda
metade do século XIX.
Até abril de 1882 (três meses antes da inauguração) os
organizadores pareciam limitar a Exposição a objetos. Em maio, sur-
ge a ideia de confeccionar "várias figuras em tamanho natural de
alguns typos de nossos indígenas" para colocá-las sobre canoas, ubás
e outros utensílios que estavam a caminho. 5 Era uma tendência de
vanguarda no campo da museografia: de exibir formas de representa-
ções humanas as mais naturais ou realistas possíveis. E os anthro-
pologos organizadores perceberam que as instituições culturais do Novo
Mundo poderiam contar com um trunfo ainda mais "naturalista" e
"realista". Começava a delinear-se, ainda que simbolicamente, a exi-
bição de índios. E bastaram algumas semanas para que o salto fosse
dado em junho (pouco mais de um mês antes do evento) a ideia da
presença corporal dos índios veio à tona:

Sendo de facil e de prompta acquisição um certo numero de


indios coroados do Paraná, e de Botocudos do Rio Doce no
Espirito Santo com destino á Expoxição Anthropologica, rogo
a V. Exa. se digne providenciar para que as presidencias das
duas referidas provincias tomem a peito a remessa urgente a
esta Côrte do maior numero possivel de selvagens, os quaes,
devendo figurar na Exposição Anthropologica e servir aqui de
base a estudos rigorosos de anthropologia, e em particular de
craneologia comparada, poderão ser agazalhados nesta Côrte,
na hospedaria dos immigrantes. 6

4
Documento I-DPP-28.06. [1883], Net. C, Livro 169, AHMIP.
5 Oficio do Diretor do Museu Nacional de 2-5-1882, Série Educação, IE7-65, AN.
6
Ofício do Diretor do Museu Nacional de 6-6-1882, Série Educação, IE7 -65, AN.
I

ÍNDIOS NA VJTRINE: A Exposição Anthropologica Brazileira 331


A citação tem aspectos interessantes. Em primeiro lugar situa
os índios como elementos de aquisição fácil e rápida - e a escolha
desses grupos não era ingênua ou feita ao acaso, pois eram associados
à antiga legenda de ferocidade e invencibilidade. Facilidade e rapidez
revelam os resultados das frentes de expansão e das atividades gover-
namentais, de colonização e catequese que iam se sobrepondo à resis-
tência indígena. Tanto os Coroados como os Botocudos (classifica-
dos entre os Macro-Jê, os antigos Tapuias) tinham fama de índios
bravos, que opunham tenaz combate à sociedade desde os tempos
coloniais, cuja presença na Corte causaria grande curiosidade. Não se
tratava mais de guerreiros que formavam barreira contra o progresso
nacional, mas de povos facilmente captados pelas malhas administra-
tivas (que sete décadas antes eram mobilizadas na guerra ofensiva
contra essas mesmas tribos).
Em segundo lugar, no ofício do diretor do Museu, os índios são
equiparados aos objetos, isto é, passíveis de aquisição - não tanto
dentro da lógica escravista que transformava o escravo em mercado-
ria (embora a Abolição só ocorra seis anos depois), pois os cientistas
em questão não se colocavam como mercadores de escravos. Mas,
sobretudo, dentro da ideia de superioridade civilizatória e de uma
objetividade científica que isolava do contexto o objeto, fosse este de
cera, de carne e osso - ou apenas osso.
Em terceiro lugar, talvez a característica mais marcante da pe-
tição esteja na dupla justificativa para a remessa dos índios: figurar na
Exposição e servir de base para rigorosos estudos. Tanto que o parecer
(contrário) do Ministério da Agricultura tocaria neste ponto ao ques-
tionar o pedido: não seria mais barato enviar um pesquisador aos
aldeamentos para fazer um número muito maior de medidas antropo-
métricas? Tais objeções eram claras e eliminavam praticamente a se-
gunda alegação. Os índios deveriam vir, mas para brilhar na Exposição.
E não deixa de ser sintomática a proposta de abrigar os índios
entre os imigrantes: era o local dos estrangeiros, dos não brasileiros.
Nos dias seguintes, diante da amplitude que ganhava a mostra,
Ladislau Neto aproveita o momento e envia novo ofício, solicitando a
criação da Seção de Antropologia do Museu Nacional, que seria des-
tinada ao médico João Batista de Lacerda, então subdiretor da insti-
tuição. Tal pedido não foi então aceito, mas seu conteúdo revela pon-
tos-chave para a compreensão deste novo olhar da ciência (e também
da sociedade em geral) sobre os índios.
332 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

Dentro em poucos annos bem diminuta tornar-se-ha o numero


dos africanos actualmente restantes no Brasil, assim como re-
duzidos estarão nos recessos das mais longinquas florestas dos
affiuentes do Amazonas e do Prata os incultos primitivos do
solo brasileiro. O Museu Nacional ainda chegará a tempo ago-
ra de registrar os caracteres destes ultimos representantes da
família aborígene no Brasil. 7

A argumentação era bem articulada e se baseava em dois pon-


tos. Primeiro, na perspectiva de que tanto os escravos de origem afri-
cana (não incluídos na mostra, o que certamente seria problemático
diante da crescente campanha abolicionista) quanto os índios tende-
riam a desaparecer em face do progresso e da modernização da socie-
dade nacional. Ou seja, o que tais cientistas procuravam chamar a
atenção é que estes grupos - negros escravos e índios selvagens -
não deveriam mais ser tratados como inimigos ou obstáculos da civi-
lização, mas, uma vez que seriam como que espécies em extinção,
passariam a ser objeto de estudo antropológico, de investigação siste-
mática, de folclorização ou de curiosidade pública.
O segundo argumento era em torno da cidade imperial. A ca-
pital do país era vista como espaço adequado: "de facto o Rio de
Janeiro é o cadinho anthropologico em que ha tres seculos vivem e
fusionam-se as mais distintas raças humanas". 8 Ou seja, reafirma-
va-se o caráter nacional e "mestiço" da cidade-Corte, apontada aqui
como local privilegiado de gestação da nação moderna, através da
eliminação das diferenças não apenas regionais, mas étnicas. Claro
que havia aí uma visão teleológica, pois três séculos antes, isto é, em
fins do século XVI, seria difícil considerar a localidade do Rio de
Janeiro como "cadinho de raças". Tal visão oitocentista, entretan-
to, era a pedra de toque para legitimar a escolha do Rio de Janeiro
como a localidade mais indicada para abrigar um centro de estudos
nesse sentido. As "raças" que deveriam desaparecer diante do pro-
gresso homogeneizador da sociedade nacional estavam ali ao alcan-
ce da mão, na cidade imperial brasileira, cujo papel centralizador
ganhava mais esta relevância: um ambiente propício para o branquea-

7
Oficio do Diretor do Museu Nacional de 16-6-1882, Série Educação, IE7-65, AN.
8 Ibidem.
ÍNDIOS NA VITRINE: A Exposição Anthropologica Brazileira 333
mento. 9 A metrópole civilizada aparecia como contraponto e supera-
ção, na escala evolucionista, da selva com seus habitantes primitivos.
Como arremate, Lacerda reforçava a necessidade do "estudo da
antiguidade do homem e a filiação das raças humanas". Ou seja, uma
forma de publicizar, buscar apoio e legitimidade para a instituciona-
lização da Antropologia no Brasil. Era este um dos papeis reservados
aos índios trazidos à cidade imperial e assim se concebia a "contribui-
ção" indígena à formação nacional. Eram os primeiros passos da Antro-
pologia no país, evidenciando a ligação de ambos os projetos, o nacional
e o antropológico, 10 que se baseavam na suposta assimilação dos negros
e índios: de ameaça à civilização e a ordem se tornariam objetos de
estudo e tradição. E reafirmando o caráter do Rio de Janeiro não
apenas como capital nacional, mas cidade imperial, capaz de espelhar
e realizar em seu próprio espaço a configuração de uma identidade
nacional através da elaboração, por assim dizer, de uma nova carac-
terização racial para o restante do país. Os combates contra os ín-
dios não eram levados por motivos estritamente econômicos: a par-
tir das formulações destes cientistas percebemos ao mesmo tempo
uma formulação de extermínio das diferenças étnicas no Brasil do
século XIX.
Se a criação da Seção de Antropologia foi negada naquele
momento, os organizadores obtiveram a vinda dos índios Botocudos
para exibição in loco.

Estande 2.
Uma ciência respingada de sangue

Além da mobilização do aparelho administrativo como for-


ma de dar vida ao referido projeto nacional-antropológico, havia ou-
tra preocupação central na realização da Exposição: a busca de supe-
rar o descompasso (em relação à Europa) no campo da esfera pública
cultural no Brasil, surgindo daí iniciativas vanguardistas que acom-
panhavam as mais recentes tendências intelectuais, tecnológicas,

9
L. Schwarcz. O espetáculo das raças. . . Para uma abordagem distinta sobre esta
Exposição Antropológica, v. o artigo de J. Andermann. Espetáculos da diferença . . .
(2004).
10
M . M . C . da Cunha, 1986.
334 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

institucionais e museográficas. 11 Dentro dessa linha geral pode ser


entendido o verdadeiro mapeamento de coleções particulares (inclu-
sive a de D. Pedro II) para integrar um acervo aberto ao público e a
convocação da intelectualidade em torno destas bandeiras.
O envolvimento destes setores da população eminentemente
urbanos e numa dimensão cultural pode parecer desvinculado dos
conflitos e extermínios que ainda se praticavam com os índios. Mas a
própria documentação gerada pela mostra traz elementos que per-
mitem driblar a aparente ingenuidade de coleções vistas apenas como
exóticas, pitorescas ou cientificamente descompromissadas com o
contexto: expunha-se nos Trópicos uma ciência politizada e respin-
gada de sangue.
Mantinha-se a multiplicidade de registros e atitudes parado-
xais diante dos índios desde a época da Independência: a condição
ambígua, onde indígenas e seus artefatos eram considerados ao mes-
mo tempo objetos científicos, alegorias culturais e políticas, adversá-
rios de guerra e potencial mão de obra. A Coroa imperial brasileira,
também sob D. Pedro II, tolerava agressões aos indígenas em nome
do triunfo da civilização nos territórios ainda não dominados, o que
caracteriza uma linha de continuidade, neste aspecto, com os reina-
dos anteriores de D. Maria I, D. João VI e D. Pedro I.
Por exemplo: na Sala Vaz de Caminha da Exposição figuraram
flechas com as quais os índios Jurú "assassinaram a 2 de setembro de
1869 no alto Purus o português Cesario Jozé de Mesquita e a brazileira
Emelina de Freitas". Ou ainda as "flechas arrancadas do cadaver disse-
cado de Silverio da Costa Alecrim, morto pelos Botocudos na Lagoa
Grande, perto de Philadelphia", em 17 de maio de 1882, doadas por
João Ferreira de Andrade Leite. Sem falar das flechas "tomadas no
Ribeirão da Prata aos selvagens que atacaram a expedição de 30 ho-
mens do major Jorge Lajes da Costa Moreira, diretor da colonia mi-
litar de São Lourenço, de Mato Grosso". Como tais flechas teriam
sido tomadas? E na Sala Lund era possível ver o "craneo de um indígena
Chavante, morto por occasião do assalto da Fazenda do Jaguareté,
em 1876". E o senador Leitão da Cunha remetera setas com que
índios Matauanes mataram e decapitaram cinco cearenses no rio
Arapuana, Amazonas, em janeiro de 1882. Sem faltar um "fuzil dos

11
Sobre a esfera pública e cultural no Rio de Janeiro na primeira metade do
século XIX, v. M . Morei (2005).
ÍNDIOS NA VlTRINE: A Exposição Anthropologica Brazileira 335
Botocudos do Rio Doce", na Sala Gabriel Soares. Seria possível con-
siderar um fuzil como peça etnográfica? O próprio Guia da Exposi-
ção Anthropologica explicitava a origem destes itens.U
Está claro que tais artefatos e restos humanos eram apresenta-
dos como troféus de guerra com a intenção de aguçar a curiosidade
do público e mostrar a atualidade de um embate que ocorria, embora
distante dos principais centros urbanos. Note-se a persistência da di-
ferença entre brasileiros, portugueses e índios. Ou seja, os índios,
sobretudo os que resistiam, não eram considerados brasileiros. Além
de nacional e antropológica, a mostra caracterizava-se como uma
Exposição de Conquista. Havia aí um implícito mas vibrante apelo
para que o público testemunhasse os últimos episódios de um confli-
to ainda em curso, cujo desenlace deveria anunciar a supremacia da
ciência, do progresso, da civilização e da nação moderna - à custa
destes visíveis (e escolhidos entre os mais recentes) objetos de uma
guerra de longa duração. Em outras palavras: eles (os Outros) são os
derrotados em exposição, Nós somos os triunfantes, expositores e
observadores. Eles são os bárbaros primitivos e Nós os civilizados
progressistas. Entretanto, o esforço teatral de modernização não elimi-
nava os traços arcaicos: tratava-se de expor no centro do Império os
artefatos, restos mortais e mesmo os corpos vivos dos povos conquista-
dos, dentro da melhor tradição imperial romana. Os conflitos assim
expostos e realçados não eram inventados pelos organizadores da mos-
tra, mas ainda ocorriam em diversos pontos do território brasileiro.
Mesmo fora das vitrines da Exposição, as situações de confron-
to envolvendo populações indígenas eram tema contemporâneo, in-
clusive nas províncias onde havia Botocudos.
No Espírito Santo, o aldeamento de Mutum fora invadido em
12 de novembro de 1881 "por uma maloca de índios bravios em
numero superior a cem, com intenções hostis".B
Em Minas Gerais, o presidente da província lamentava em
1882:

12
No Arquivo Permanente do Museu Nacional, sobretudo nas pastas 20 e 21,
há diversos documentos que também indicam como os artefatos da Exposição
Anthropologica eram troféus de uma guerra atual, cf. a monografia de Oliveira (1994),
pp. 15-6.
13
Re/atorio apresentado áAssembléa Legislativa da provincia do Espirita-Santo em
sua sessão ordinaria de 8 de março de 1881 pelo presidente da prov{ncia . . .
336 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

As correrias dos indígenas contra o homem civilisado mostram


que em algumas regiões ainda não se extinguo o odio dos abo-
rigenes contra os que occupam hoje as terras de seus antepassa-
dos. Repetem-se as depredaçõe e o morticínio dos viajores iner-
mes e desprevenidos.14

E na Bahia, em 1881, registrava-se "a invasão dos índios selva-


gens da margem esquerda" do rio Pardo ao distrito de Boa Vista
fazendo "sortidas, praticando o roubo e o assassinato", embora o pre-
sidente da província admitisse "que os maus tratos e abusos de confi-
ança, infelizmente muito freqüentes da parte da população, concorrão
em grande parte para incitar os índios nas suas depredações". 15
Nestas três províncias foram obtidos reforços militares para
conter as resistências indígenas em 1882.
Tal relação entre guerra de Conquista imperial e coleções
museográficas já não era novidade. É bem conhecido o exemplo do
Museu do Louvre enriquecido com as guerras napoleônicas, quando
o próprio Bonaparte, no fragor das batalhas, propunha selecionar as
obras de arte que deveriam ser conduzidas à França como presa de
guerra. E as autoridades e artistas franceses forjaram então argumen-
tos justificativos, do tipo: as verdadeiras obras de arte são patrimônio
da humanidade e devem estar na pátria onde reina a liberdade e a
civilização, em detrimento dos territórios onde predominam o fana-
tismo e a idolatria. A tal ponto que a captura de artefatos culturais
passou a ser incluída nas atas de rendição dos países conquistados
pelo expansionismo napoleônico. Sobre o campo de batalha repleto
de cadáveres desfilavam os comboios das peças de arte, recebidas em
delírio na França, como provas de afirmação do orgulho e superiori-
dade nacionais. 16
No Brasil, não apenas esta ExposiçãoAnthropologica, mas as pró-
prias coleções etnográficas do Museu Nacional foram, em parte, de-
correntes das guerras de Conquista com as populações indígenas,
refazendo aqui o elo entre guerra, ciência e afirmação de identidade
nacional. Se não havia atas de rendição instituindo a captura dos

14
Falia que o exm. sr. dr. Theophilo Ottoni dirigia á Assembléa Provincial de M inas
Geraes. . . , 1882.
15
Falia com que no dia 3 de abril de 1881 abriu a 2.• sessão da 23." legislatura da
Assembléa Legislativa Provincial da Bahia. . .
16
Schaer, 1993.
ÍNDIOS NA VITRINE: A Exposição Anthropologica Brazileira 337
objetos etnográficos é porque não há este tipo de acordo nos conflitos
bélicos entre povos de civilizações diferentes - que são, em geral,
combates mais violentos, sem imposição de regras mútuas.

Estande 3.
Entre o público e o privado

A lista dos colaboradores da Exposição revela aspecto sugesti-


vo para o Brasil imperial: a existência de colecionadores, do tipo
antiquários, espalhados por diversas províncias, cujas coleções soma-
das suplantavam o acervo do Museu NacionalY E neste ponto, o
Brasil estava num descompasso de pelo menos dois séculos em rela-
ção à Europa, como nos mostra uma breve história dos museus em
seus traços gerais.
A lista começa pelos objetos pertencentes ao próprio D. Pedro
II - que era sem dúvida o detentor do maior acervo ali exposto.
Depois dele, mereciam destaque as coleções de seu genro, o conde
d'Eu e do barão de Tefé (Antônio Luís von Hoonholtz, comandante
da Marinha, cartógrafo e herói da Guerra do Paraguai). Três colecio-
nadores tiveram seus acervos particulares exibidos em separado no
interior da Exposição: Tommaso G. Bezzi, o botânico e pesquisador
João Barbosa Rodrigues e Joaquim Monteiro Caminhoá (do Paraná).
Também contribuíram com peças etnográficas e arqueológicas o con-
selheiro Carlos Monso de Assis Figueiredo, Amélia C. de Albu-
querque, P. Schutel (de Santa Catarina), Miranda de Azevedo (de
São Paulo), Ambrósio Leitão da Cunha (barão de Mamoré e senador
pelo Amazonas), além do próprio ministro da Fazenda, o visconde de
Paranaguá.
Este pequeno mas significativo conjunto de colecionadores de
artefatos etnográficos em pleno Brasil imperial remete à análise de
fundo histórico sobre a relação entre patrimônio cultural, acervos
particulares e exibições públicas, isto é, às relações entre o Estado e a
esfera privada mediadas pelas instituições culturais. 18
O hábito de juntar objetos antigos expandiu-se no século XVI,
quando se formam os chamados Gabinetes de Curiosidades, modelo
adotado por diversos monarcas humanistas, "reis filósofos" europeus

17
B. Ribeiro & Velthem, 1998.
18
Schaer, 1993.
338 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

do Renascimento e diversos nobres mecenas. Eram peças históricas,


antiguidades, mas também resultados de coletas de raridades exóticas,
fósseis, corais, vegetais de países longínquos, peças de ourivesaria, ani-
mais monstruosos, artefatos etnográficos recolhidos por viajantes. . .
Os soberanos colecionadores como que reconstituíam, em seus próprios
gabinetes, um microcosmo de maravilhas a serem contempladas, lugar
de meditação, leitura e posse simbólica do mundo em sua diversidade.
No século XVII o gosto pelas curiosidades amplia-se, no âm-
bito de coleções domésticas: médicos, advogados, juízes, altos fun-
cionários - uma legião vai à cata de artefatos, incluindo também
obras de arte. Estes amadores eram movidos por diferentes razões:
seja pelo gosto do estudo, por passatempo de juntar preciosidades ou
mesmo como forma de reconhecimento social e distinção diante de
um meio considerado inculto, já que seus patrimônios podiam ser
visitados por convidados especiais e chamar a atenção de autoridades
e pesquisadores ilustres.
E foi, como se sabe, a partir de fins do século XVII e sobretudo
até fins do século XVIII que se desenvolveram os Museus abertos à
visitação pública, oriundos de coleções dos monarcas ou mesmo de
colecionadores particulares, época em que as curiosidades dos antiquá-
rios passam a ser criticadas em nome do princípio de difusão das
Luzes: era preciso que o público olhasse para poder instruir-se, num
movimento de vulgarização da ciência, surgindo daí as coleções espe-
cializadas e a valorização institucional dos museus.
Para a montagem da ExposiçãoAnthropologica desponta o esbo-
ço de uma rede institucional de museus etnográficos, que contribuí-
ram com o envio de peças: o Museu Paraense, Museu Paranaense,
Lyceu do Ceará, Instituto Arqueológico e Histórico de Pernambuco
e Instituto Arqueológico de Alagoas. 19
Ora, apesar do Museu Nacional no Rio de Janeiro, as demais
instituições eram ainda pouco consistentes: o que se percebe na época
da Exposição Anthropologica Brazileira, em fins do reinado de D. Pedro
II, é um quadro típico da Europa renascentista, onde o monarca era o
maior colecionador com seu próprio e reservado Gabinete de Curio-
sidades e os colecionadores domésticos espalhavam-se sem mostrar
seus acervos de forma sistemática. E não havia uma política oficial a
esse respeito, mas, sobretudo, iniciativas de ocupantes de cargos pú-

19
L. Schwarcz, 1995.
ÍNDIOS NA VITRINE: A Exposição Anthropologica Brazileira 339
blicos (como o próprio imperador e o então ministro da Fazenda)
que demonstravam sensibilidade para a questão. E vale assinalar que
se formara um considerável público urbano ávido desses conheci-
mentos nos anos 1880, sobretudo na cidade imperial.
A própria postura do monarca diante da montagem da Expo-
sição é significativa. Além de ser ao mesmo tempo o principal patro-
no e colecionador (o que estava explícito), ele manteria uma relação
estreita com o evento, gerando ambiguidades nesta indefinição de
fronteiras entre o público e o privado. Em determinado momento, os
organizadores do evento solicitam ao imperador peças para exibição
e apoio institucional. Em outra ocasião, ao contrário, os mesmos or-
ganizadores remetem ao soberano objetos que seriam de seu interes-
se, revelando mais do que intercâmbio, uma certa simbiose entre o
Gabinete de Curiosidades pessoal de D. Pedro II e o acervo que,
exibido em público, deveria servir para ilustrar a população. 20
A Exposição Anthropologica toca em todas essas questões e é
através dela que seus organizadores tentarão, deliberadamente, enca-
minhar soluções. Tal mostra aparece como tentativa de captar, para o
domínio público, coleções que estavam sob o poder pessoal do impe-
rador ou de colecionadores particulares, reforçando assim o Museu
como instituição pública. Elogiando os doadores e ressaltando-lhes
os nomes e importância, dando realce ao monarca, os organizadores
com habilidade buscavam tirar do domínio privado todas aquelas
preciosidades etnográficas, arqueológicas, enfim, anthropologicas. Era
uma iniciativa, portanto, modernizadora, mas que indicava a decalagem
do Brasil na formação de um patrimônio cultural e público em rela-
ção ao parâmetro europeu, mesmo sob a fachada de um "rei fllósofo"
que ainda fazia, no fundo, seguir um modelo renascentista de mecenato.
Além da estratégia de mobilização de elites ao mesmo tempo
políticas, econômicas e culturais para a formação de acervos públicos,
os organizadores da Exposição manifestavam a intenção de formar e
mobilizar um público específico, isto é, as novas gerações de cientis-
tas "para a grande victoria do trabalho intelligente e aperfeiçoando do
que ha tanto mister a industria nacional"Y

20
Veja-se por exemplo as correspondências do diretor do Museu Nacional,
Ladislau Neto, a D . Pedro II, cf. maço 189, doe. 8608, AHMIP.
21
Discurso inaugural da Exposição Anthropologica. ln: Mello Moraes Filho
(dir.). Revista da Exposição. .. , p. 77.
340 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

O objetivo era superar um quadro onde até então os viajantes,


sobretudo europeus, tinham hegemonia sobre a produção intelectual
em torno da arqueologia e da etnografia das populações indígenas no
Brasil, formando-se para isso mão de obra especializada em meio à
intelectualidade nacional, com o apoio decisivo do Estado e de ou-
tros mecenas. Mais do que artefatos de palha e madeira, a Exposição
Anthropologica põe à mostra esta perspectiva moderna e nacional em
relação à atividade científica, entrelaçada não com uma Romântica
valorização do indígena como antepassado heroico ou fonte de inspi-
ração poética, mas com a tradição ainda viva de uma guerra de exter-
mínio e Conquista que continuava a se praticar sob diferentes ritmos
no Brasil em fins do século XIX. A atividade científica nos Trópicos,
na prática, apoiava e legitimava esta unificação étnica em nome da
evolucionista homogeneização nacional e buscava, para isso, formar
um patrimônio público cultural baseado na superação dessas diversi-
dades e, ao mesmo tempo, o aval de um público mais amplo para tal
projeto Este seria um dos objetivos centrais desta Exposição Anthro-
pologica Brazileira, sob a aura da festa e da ciência.

Estande 4.
Escada evolucionista: a modernidade exibe o primitivo

A ExposiçãoAnthropologica constituiu-se num ponto de encontro


entre a vertiginosa era das grandes Exposições e as populações indíge-
nas. Era como se o apogeu do progresso (vivido como tal pelos contem-
porâneos), para se reafirmar, exibisse o que era considerado mais primi-
tivo - visão coerente com o evolucionismo predominante, onde a
busca da origem das espécies (inclusive a humana) ia de par com a
insaciável descoberta das novas aquisições da ciência e da civilização.
Os índios apareciam como contraponto, espelho invertido e degrau
inferior de uma escada que conduziria aos céus do desenvolvimento
tecnológico. O Brasil vivia à sua maneira este momento febril e aí não
havia atraso, mas um vanguardismo que ia no encalço das iniciativas
europeias. Atualizados quanto a exibição e tecnologia - mas nem
sempre no mesmo compasso de transformações culturais ou sociais.
Como se sabe, a primeira Exposição Universal ocorreu em
Londres, 1851. Dez anos depois a monarquia escravocrata americana
organizava sua Exposição Nacional, seguida de outras em 1868, 1873
e 1875. O Brasil não se descuidou também de participar de impor-
tantes mostras internacionais, como a de Paris (1867), Viena (1873)
ÍNDIOS NA VlTRINE: A Exposição Anthropologica Brazileira 341
e Filadélfia (1876). A participação do Brasil nas chamadas Exposi-
ções Universais caracteriwu-se pelo aspecto do exótico. Apesar dos
esforços de mostrar um país que buscava a sintonia com o progresso
tecnológico, a atração ficava por conta de objetos "típicos": cerâmi-
cas, arcos e flechas indígenas. E quadros e fotos de índios chegaram
a ser exibidos. 22 E é oportuno lembrar que meses antes da Exposição
Anthropologica Brazileira realizara-se a Exposição de História do Brasil
(1881) na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. As duas exposi-
ções, a antropológica e a histórica, pertenciam ao mesmo contexto e
indicavam sugestiva repartição de campos e saberes.
Chama a atenção entre os itens exibidos na Exposição Anthro-
pologica (Sala Lund) os certificados de participação dos cientistas bra-
sileiros João Batista Lacerda e José Rodrigues Peixoto numa Exposi-
ção Antropológica de Paris de 1878. E na Sala Anchieta colocaram
as medalhas de participação neste mesmo evento. Porque afinal os
organizadores expuseram-se também nas vitrines? A resposta não é
difícil de achar: para buscar a legitimidade da Cidade-Luz como
precursora de evento semelhante. Entretanto, é preciso esclarecer que
não houve propriamente uma Exposição Antropológica em Paris em
1878 mas, sim, uma Exposição Universal, com uma seção de Antro-
pologia. E tal seção teve tamanha repercussão que o diretor do Labo-
ratório de Antropologia do Muséum d'Histoire Naturelle, Ernst Hamy,
obteve no mesmo ano a criação do Musée d'Etnographie du Trocadéro
(posteriormente rebatizado de Musée de I'Homme), utilizando os lo-
cais do prédio e incorporando boa parte dos objetos expostos. 23
Percebe-se logo que aí estava a fonte onde Ladislau Neto e
Lacerda foram beber e tentaram repetir o exemplo passo a passo:
desde a criação de um laboratório de antropologia do Museu, pas-
sando por uma exposição de impacto que resultaria no reforço do
Museu como instituição pública.
Entretanto, a inspiração dos brasileiros não estava estritamente
no campo da museologia. Sabe-se que no ]ardin d'Acclimatation, arre-
dores de Paris, funcionou um verdadeiro "wo humano" entre 1877 e
1893, onde seres humanos classificados como primitivos eram exibidos
para a curiosidade do público europeu. Foram centenas de pessoas, na
maioria oriundas da África e do oceano Pacífico, que ficaram por
detrás de cercados - numa área onde havia também exposição de

22
L. Schwarcz, 1999.
23
N . Dias, 1991
342 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

animais- com roupas típicas, em habitat original reconstruído, sen-


do alvo de curiosidade e riso da população europeia que até jogava
alimentos e bijuterias para entretê-los. Centenas de milhares de visi-
tantes por ano confirmaram o sucesso da iniciativa que reproduzia
estereótipos e preconceitos que ajudaram a reforçar, no grande públi-
co, a ideia de superioridade racial e civilizatória. 24 De passagem por
Paris em 1878 (ano de visitação recorde no ]ardin d'Acclimatation),
os brasileiros Lacerda e Peixoto, porém, não exibiram o bilhete de
entrada deste parque na Exposição Anthropologica Brazileira . .. En-
tretanto, a versão tropical do "zoo humano" estava também fadada ao
sucesso. O verbo se faria carne e o público carioca, torpedeado nas
últimas décadas de imagens, literatura e alegorias indianistas, poderia
ver de perto os espécimes mais "atrasados" do planeta.

Stand 5.
Curiosidades fora dos gabinetes

E no dia 29 de julho, um sábado, inaugura-se a Exposição


Anthropologica Brazileira com grande afluência de público. Era como
se todas as teias até então entrelaçadas (intelectuais, administrativas,
econômicas ... ) se juntassem para formar a tela de exibição, reparti-
da em Salas. O próprio D. Pedro II, além de patrono maior, foi o
visitante número 1, percorrendo a mostra com grande curiosidade,
postura, aliás, que não foi apenas do monarca.
É conhecida a imagem didática onde aparecem, em fila indiana,
as figuras representando as transformações evolutivas da espécie humana,
começando pelos símios e chegando ao homo sapiens. No dia de inau-
guração do evento era como se um desses "elos" da fila ganhasse vida e
aparecesse aos olhos dos visitantes da Exposição, que posicionava frente
a frente os habitantes mais "selvagens" do território e o habitante mais
elevado na hierarquia da sociedade imperial, isto é, o próprio imperador.
Antes de conhecer a mostra, entretanto, os presentes tiveram de
ouvir o discurso de abertura do diretor do Museu, Ladislau Neto.
Além dos protocolares elogios e frases retumbantes, a fala do orga-
nizador foi precisa em seus objetivos.
"Este é o certamen mais nacional que as sciencias e as letras
poderiam, comgratuladas, imaginar e realizar no fito de soerguer o
24
Sobre os zoológicos humanos na França, Guyolat, 2000.
25
Mello Moraes Filho (dir.). Revista da ExposiçãoAnthopologica Brazileira, . . .
1882. Org. Regina Horta Duarte.
ÍNDIOS NA VITRINE: A Exposição Anthropologica Brazileira 343
Imperio do Brazil ao nivel da intellectualidade universal", exclamaria
o diretor em meio a aplausos. Sintetizava, assim, a preocupação de
soerguimento nacional (leia-se: tirar o atraso) através da atividade
científica e numa Exposição que, no apogeu das exposições univer-
sais, visava não só articular internamente identidade e tradição para a
sociedade brasileira, mas atualizá-la no quadro internacional do pro-
gresso. Ou seja, o já velho sonho de tornar o Brasil uma nação civili-
zada à maneira europeia ou norte-americana.
Em seguida, o cientista afirmaria diante das demais autoridades
que o evento pretendia "ser o grande jubileu da anthropologia bra-
zileira". E aqui reforçava em público o enunciado de que tal Exposi-
ção serviria para legitimar a Antropologia como disciplina no país.
Depois de enunciados os princípios do almejado projeto nacio-
nal-antropológico, os visitantes estavam liberados para conhecer a
mostra, dividida em oito Salas que expunham 780 objetos, no antigo
prédio do Museu Nacional, no Campo de Santana. 26 A repartição
das Salas buscava ao mesmo tempo ilustrar, saciar a curiosidade e
prestar uma homenagem aos que seriam os paisfundadores da almejada
Anthropologia no Brazil, inventando assim uma tradição para esta Dis-
ciplina. As Salas eram divididas em etnografia, arqueologia e antro-
pologia - as duas primeiras seriam as fontes formadoras da terceira.
Na Sala Vaz de Caminha, que homenageava o autor do primei-
ro texto escrito sobre o território brasileiro (e também, nesta pers-
pectiva, o primeiro relato etnográfico), havia quarenta itens expostos,
dentro da classificação justamente de etnografia. Eram arcos, flechas,
lanças, zarabatanas, enfim, diversos instrumentos de caça e pesca, além
dos já citados troféus de guerra contemporâneos.
Passando para a Sala Alexandre Rodrigues Ferreira os visitantes
entravam no espaço nobre do evento. Os cento e treze artefatos aí expos-
tos compunham boa parte do próprio Gabinete de Curiosidades do im-
perador e englobavam dezenas de tribos das diversas regiões do Brasil,
da Amazônia ao Sul. Havia ainda aquarelas feitas pela expedição Rodri-
gues Ferreira, que entre 1783 e 1792 percorrera as capitanias do Grão-
Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá, a primeira iniciativa de enver-
gadura nesse sentido promovida pela Coroa portuguesa na região
amazônica.

26
Cf. a monografia de M . H . Cardoso de Oliveira, trabalho que usamos como
referência em diversos partes deste texto. Consultar também, do Museu Nacional,
Guia da Exposição. .. , 1882.
344 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

Encontrava-se aí também uma figura de gesso representando


um índio Xerente. A exibição de formas humanas em reproduções
"realistas" era a última palavra em museologia etnográfica, como já
demonstrara a Galeria do Muséum d'Histoire Naturelle formada nos
anos 1850 em Paris - fosse pelo desenho-científico, pela confecção
de modelos e manequins, como também pela fotografia. E a Exposi-
ção Anthropologica Brazileira incorporaria essas últimas novidades,
como que para compensar ou mascarar a decalagem na formação de
uma esfera pública cultural. Por exemplo: no começo de 1882 estive-
ra no Rio de Janeiro um grupo de índios Xerente. O escultor Despres
fez uma figura moldada em gesso a partir do modelo vivo (o indígena
José) que seria destaque nesta Sala da mostra. Cabe lembrar que no
mesmo ano era fundado em Paris um dos mais populares museus de
cera, o Grévin. E na cidade imperial brasileira as figuras moldadas e
exibidas eram de índios - que representavam uma tradicional e pri-
mitiva população ao mesmo tempo que eram, vivos, alvos de precon-
ceito, vistos como obstáculo à civilização e ao progresso nacional.
É interessante anotar que havia uma Sala Jean de Léry, o escri-
tor francês do século XVI que seria considerado no século XX como
um dos paradigmas da moderna antropologia por Claude Lévi-Strauss.
Nesta parte o público poderia ver trinta e nove peças representando
cerâmicas e ornamentos womorfos da região de Santarém.
E duzentos e sete artefatos de cerâmica compunham a Sala
Charles Harrt, pesquisador norte-americano que empreendera impor-
tantes expedições científicas pelo interior do Brasil (faleceu seis anos
antes do evento). A maioria dos objetos neste espaço, entretanto, foi
recolhida pelos próprios organizadores da Exposição nos meses que
antecederam a mostra- que serviu, como se vê, também como pretexto
para o empreendimento de mais uma expedição científica na Amazônia.
A Sala Peter Lund estava repleta com cento e quinze restos huma-
nos: crânios, ossos avulsos e esqueletos completos. (Lund fora justamente
o pesquisador dinamarquês que descobrira os vestígios arqueológicos
do famoso "Homem da Lagoa Santa" em Minas Gerais nos anos 1840,
sendo considerado o primeiro arqueólogo do Brasil.) Os visitantes da
Exposição poderiam contemplar o esqueleto do capitão Amaro, da tribo
Turuará, cujas circunstâncias da morte não foram esclarecidas. Havia
ossos de Xavantes, Botocudos, Tembés e ainda outros encontrados no
Rio de Janeiro, no bairro da ilha do Governador e na cidade de Macaé.
Dedicada à iconografia, a Sala Anchieta abrigava manuscritos
do próprio jesuíta espanhol que no século XVI dera impulso a um
ÍNDIOS NA VITRINE: A Exposição Anthropologica Brazileira 345
amplo trabalho de catequese da Igreja católica com as populações
indígenas, inclusive Aimorés. Mas esta era a seção que incorporava
as mais novas tendências museográficas de expor imagens etnográficas:
pinturas, estampas, aquarelas, gravações, desenhos a craiom, meda-
lhas e fotografias. Três séculos depois dos Autos teatrais de Anchieta
as representações simbólicas ainda envolviam diretamente os índios.
A captura da imagem indígena deu-se através de uma nova
tecnologia em expansão. Fotografias foram feitas especialmente para
a Exposição Anthropologica. E não eram inocentes reproduções do
"real", mas resultado do que podemos chamar de expedições fotográ-
ficas de "caça" ao índio e de curiosas composições de imagem.
O engenheiro Castro Meneses e o fotógrafo Joaquim Ayres par-
tiram para o rio Doce em princípios de 1882 a fim de obter fotos dos
famosos Botocudos para a Exposição, resultando em pelo menos seis
imagens em preto e branco, ampliadas em formato 21,5cm x 27cm,
exibidas nesta Sala Anchieta. 27

Figura 54

27 Arquivo Iconográfico do IHGB, códices IGlOO até IGlO e Museu Nacional,


Guia da Exposição . .. As referidas fotos encontram-se em precário estado de conservação.
346 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

A primeira dessas fotos (Figura 54) tinha como legenda "Cor-


reria de Selvagens Botucudos", numa referência ao nomadismo e à
tradição guerreira. Entretanto, a imagem mostra algo bem diverso:
um grupo de índios parado, posando para a foto, alguns vestidos e
todos com ar pacífico e resignado diante da câmara fotográfica. A
composição imposta pelo autor da foto resultava uma atitude estática,
onde os índios fotografados eram enquadrados pelas lentes e por toda
carga civilizatória que elas continham. Mas as próprias expressões e
poses forjadas pelos mesmos índios contrastam com a lenda de fero-
cidade e exibem a situação de opressão e penúria em que viviam,
desmentindo a legenda escrita e desarticulando as intenções dos au-
tores das fotos. O que parecia estar em jogo com a elaboração dessas
fotografias, mais do que documentos científicos realistas, era a tea-
tralização de uma guerra entre o progresso e a barbárie. Só que, neste
caso das fotos (diferente dos utensílios de guerra e restos humanos
apresentados na sala Vaz de Caminha), fantasiava-se um potencial
guerreiro que não se desenvolvia mais entre os índios enfocados pelas
lentes. Para realçar o contraste civilização/barbárie, a Exposição des-
tacava o conflito com os índios, mas em bases diferentes: às vezes
calcada em violências que ainda ocorriam, em outras inventando con-
frontos que já não cabiam de forma tão nítida entre índios cerceados.
Tal tendência fica ainda mais nítida em outra fotografia da mesma
séria com a legenda ''Artefactos de que o Engenheiro Castro Menezes
e o photografpho Ayres fizerão acquizição no Aldeamento dos
Botocudos no Mutum e destinados a Exposição Anthropologica"
(IG103). Vê-se na imagem diversos artefatos indígenas como arcos,
flechas, tacapes, cestos, artesanatos de palha e corda devidamente ar-
rumados para a foto e chamam a atenção no conjunto quatro caveiras
e esqueletos misturados aos objetos. Tais restos humanos que supos-
tamente serviriam apenas para um sisudo exame antropométrico ga-
nham ali, em meio às armas pontiagudas, uma extravagante dimensão
de ferocidade, sugerindo combates, rituais macabros, canibalismo e
sacrifícios humanos (os chamados Botocudos nunca fizeram, ao que
se saiba, este gênero de ritual com corpos dos adversários), mais uma
vez marcando, de forma espetacular, o contraste entre a jung/e e a
cidade civilizada.
Sugestivas são as legendas das fotos do mesmo conjunto, elabo-
radas pelos fotógrafos: "Casa à margem Sul onde se refugia o Diretor
dos Botocudos" (IG102); e "O intérprete refugiando-se dos Botocudos
ÍNDIOS NA VITRINE: A Exposição Anthropologica Brazileira 347
para a margem sul" (IG105). Nestes ícones permanece o contraste
entre as legendas e as imagens estampadas. Nas duas fotografias veem-
-se, respectivamente, uma tranquila casa em meio à vegetação e duas
pessoas numa margem do rio olhando para um grupo (provavelmen-
te de índios) na outra margem, fotografia esta tirada à distância. A
pergunta é simples: se havia necessidade de tanto refúgio, como os
índios puderam então ser pacificamente fotografados na mesma oca-
sião? Outras fotos da mesma série (IG101 e IG104) mostravam uma
canoa dos Botocudos e uma visão geral do Aldeamento, com índios
também posando para a câmara. Desse modo destaca-se, ainda no
período imperial, esta forma de aproximação sensacionalista sobre os
índios por meio de fotografia, isto é, que visava exacerbar sensações e
chamar atenção para a condição exótica e atrair interesse do público
urbano, distorcendo as tristes condições de vida dos índios enfocados.
Um dos conjuntos mais heterogêneos da mostra estava na Sala
Gabriel Soares de Sousa, nome do autor do século XVI que escreveu
uma das mais antigas descrições sobre o território brasileiro. Eram
cento e sessenta e dois itens, incluindo artes plumárias, adornos, teci-
dos, vestes e coleções arqueológicas.
Finalmente a Sala Von Martius onde, em quatro armários, es-
tavam objetos pré-colombianos oriundos do Peru e Bolívia (perten-
centes ao acervo pessoal de D . Pedro II), com a intenção de permitir
uma comparação com o Brasil. Expunham-se aí também artefatos de
palha como balaios, esteiras, tipitis, muitos dos quais já incorporados
pelas populações urbanas e rurais (não índias). Von Martius fora o
cientista viajante que, além de propor receitas para a escrita da Histó-
ria do Brasil, criou o primeiro sistema de classificação linguística
para as populações indígenas brasileiras, que serve de base às atuais
classificações.
Nesse sentido, os anthropologos brazileiros dos anos 1870-1880,
apesar da marca do determinismo biológico em suas interpretações,
aparecem como formadores de uma Disciplina que não era apenas
extensão da atividade médica. Arqueologia, cerâmicas zoomorfas,
imagens, estudos etnográficos, tudo ligado à uma visão de mundo
evolucionista: a Antropologia que firmava-se no Brasil não se apre-
sentava como exclusivamente "Física".
Mas ainda faltava a atração principal da Exposição: os índios
em carne e osso (vivos . . .).
348 CERCO AOS BOTO CUDOS NO SÉCULO XIX

Stand 6.
Vitrines: o lugar dos índios numa nação civilizada

O grande público queria ver mesmo os índios ao vivo e a cores.


Ainda mais tratando-se dos Botocudos, cuja fama de ferocidade e
invencibilidade atravessava mais de três séculos. É o que transparece
na visão irônica de uma testemunha, o jornalista italiano Angelo Agos-
tini, que preferiu visitar a Exposição no domingo dia 30, a fim de
evitar os discursos de inauguração:

O Museu é tomado de assalto:[ ... ]. Tanto interesse pela sciencia


espanta-me; mas eu acabo por verificar que toda essa curiosidade
dos visitantes é apenas para ver os índios. Com effeito, apenas en-
trados, percorrem, olham, caçam. Nada de índio, além de alguns
de papelão, que não satisfazem totalmente a cubiça publica.28

Agostini fez uma série de caricaturas (Figuras 55 e 56) onde sa-


tirizava D. Pedro II e seu envolvimento com o exotismo etnográfico e
ao mesmo tempo era preconceituoso e debochado em relação aos índios,
reproduzindo e realçando estereótipos de canibalismo, feiúra e inferio-
ridade.

Figura 55 Figura 56

28 Revista !Ilustrada, Rio de Janeiro, n.0 310, 1882, p. 2. Também a Gazeta de


Noticias e o Jornal do Commercio noticiaram a Exposição confirmando o interesse prin-
cipal dos visitantes e da própria imprensa em torno dos índios aí exibidos.
ÍNDIOS NA VITRINE: A Exposição Anthropologica Brazileira 349
Tamanho foi o tumulto da visitação que os índios tiveram de
ser retirados. Os organizadores sugeriram que os Botocudos fossem
exibidos no ~artel do Corpo de Bombeiros, ideia descartada. E os
índios acabaram expostos na própria ~inta de São Cristóvão, o que
ocorreu no domingo 6 de agosto das llh às 15h - inaugurando,
talvez, a visitação pública em torno da etnografia daquele lugar que
era a morada do monarca. Ainda em São Cristóvão, no dia 20, os
mesmos índios fariam uma sessão especial de cantos e danças para
seleto grupo de estudiosos e cortesãos.
Os Botocudos, então, eram vistos como uma espécie de elo per-
dido ou de misteriosa permanência do homem pré-histórico nos tem-
pos ascendentes do progresso e da civilização - e como tal eram
considerados precioso manancial de pesquisas. 29 Mais especificamente,
construi-se um elo "cientificamente comprovado" que pretendia des-
crever estas tribos de Botocudos como últimos remanescentes do cha-
mado "Homem da Lagoa Santa", isto é, dos até então mais antigos
vestígios pré-históricos da presença humana no território brasileiro,
tese bastante difundida e aceita pelas instituições nacionais e interna-
cionais durante muito tempo.
Os cientistas tiravam suas conclusões. Lacerda, em texto incluí-
do na Revista da Exposição . .. , trata da morfologia craniana do ho-
mem dos sambaquis e conclui pela semelhança entre os Botocudos e
os mais antigos habitantes do litoral brasileiro de que se tem notícia:

Ora, o Botocudo é actualmente uma das raças indigenas mais


brutalizadas do país. O homem dos sambaquis deveria, portan-
to, ser um dos mais infimos representantes da mesma especie
nos tempos prehistoricos.

Tais conclusões tinham outras bases, que seriam mais clara-


mente enunciadas por outro homem de letras que debruçou-se sobre
os Botocudos durante esta Exposição Antropológica de 1882. Ale-
xandre Melo de Morais Filho foi um dos pioneiros nos estudos fol-
clóricos no Brasil, deixando também significativa obra literária, de
estudos históricos e destacada atividade jornalística. Baiano, formado
em Medicina na Bélgica, Melo de Morais Filho fez sua descrição
sobre os Botocudos que viu na Exposição:

29
Nesta perspectiva ver, entre outros, os trabalhos de Lacerda & Peixoto
(1876) e Rey (1880).
350 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

[... ] o olhar é sem lume, os músculos da face sem mobilidade,


o que mais accentua a ferocidade cruel dessas physionomias
barbaras.

Ou seja, era o olhar do pesquisador que via selvageria, barbari-


dade e crueldade, olhar preconceitual que acabava predominando e
determinando as conclusões ditas científicas. Não ocorreu a esse estu-
dioso a percepção de que esses índios, a centenas de quilômetros de
suas terras, no meio de uma civilização estranha e hostil, exibidos
como curiosidade wológica, dificilmente poderiam apresentar expres-
são cordial. Melo de Morais- cujas observações e registros folclóri-
cos ainda hoje guardam interesse - fez um rápido estudo do "Dialecto
ds Botocudos" e acreditava que eles falavam uma língua tupi. Caíra
de pára-quedas na Anthropologia indígena e foi apenas mais um a se
aproveitar da moda em torno dos Botocudos no afã da mostra.
Por fim, formou-se uma comitiva de sábios, ao mesmo tempo
junta médica, que cercou os Botocudos em exposição. Estavam lá o di-
retor do Museu Nacional, Ladislau Neto, o subdiretor Lacerda, Pizar-
ro, Melo de Morais Filho e um certo major França Leite, chamado de
"indianólogo" e que recolhera um vocabulário entre os Botocudos do
aldeamento do Mutum. E "por um escrupulo todo scientifico", o grupo
acercou-se dos índios e passou a conferir, diante das fontes originais, as
palavras do vocabulário em questão. Esta cena - os Botocudos
bestializados, em exposição e cercados por homens de letras, das ciências
e das armas - era como uma alegoria da história do contato desses
índios no Brasil do século XIX. Alegoria que, evidentemente, não leva-
va em conta estratégias de sobrevivência e resistência desses índios.
Os próprios organizadores admitiam que optaram, na maior
parte da mostra, por não identificar de maneira precisa as identidades
étnicas aí representadas através de artefatos, agrupando "de modo mui
conciso, sem nomes indigenas e por grupo, os objetos que constituem
a E. A [Exposição Antropológica]". 30 O que contribuiu para divul-
gar uma imagem homogeneizada dos índios, esmaecendo suas identi-
dades e diferenças. Ao contrário, o nome dos colecionadores apareceu
sempre bem-definido. Diante da incorporação à nacionalidade os
índios iam perdendo, nos registros científicos de divulgação, suas
especificidades culturais.

30
Museu Nacional. Guia da Exposição . . ., 1882, p. 5.
ÍNDIOS NA VITRINE: A Exposição Anthropologica Brazileira 351
Havia outras formas de presença indígena no espaço da Expo-
sição Anthropologica Brazileira: um dos guardas do local era Anho-
rô, índio Cayapó, com vinte anos, que podia ser visto ao vivo exercen-
do suas funções e num quadro a óleo com seu busto, pintado por
Décio Vilares e pendurado na Sala Anchieta. Outro guarda que ser-
via aí era Chamocôco, também Cayapó, vinte anos, aprendiz de ar-
tilheiro da Fortaleza de São João, no Rio de Janeiro, fotografado e
com quadro a óleo pintado por F. A. de Figueiredo. Eram dois ín-
dios presentes de modo virtual e corporal e que, mais uma vez, sina-
lizam a presença de numerosos índios destribalizados, mas ainda com
identidade étnica, exercendo diferentes ofícios nas cidades do Brasil
imperial.
Estes eram os lugares reservados aos índios nesta Exposição
chamada de brasileira: ao mesmo tempo objeto de curiosidade exóti-
ca, estética e científica, mão de obra e inimigos da civilização.

Stand 7.
Uma janela entre o passado e o futuro

Teriam os objetivos pedagógicos da Exposição Anthropologica


Brazileira se diluído diante da curiosidade exacerbada do grande públi-
co que queria ver acima de tudo os índios em exibição? Ao contrário,
podemos afirmar que tais objetivos foram plenamente alcançados, uma
vez que os índios foram expostos como espelho invertido da civiliza-
ção, elos perdidos em via de extinção, legitimando assim seu desapa-
recimento como condição para se formar uma nação moderna.
Em outros aspectos, as tentativas dos organizadores não foram
tão bem-sucedidas. A pretensão de ampliar a iniciativa, realizando
uma Exposição Antropológica Internacional Americana, no Rio de
Janeiro, sob os auspícios do monarca e mecenas, não foi adiante, travada
por intrigas e disputas de poder em torno da atividade intelectualY
Ainda seguindo os passos dos colegas franceses, os cientistas brasilei-
ros pretendiam, com esta nova e ainda mais grandiosa mostra, cons-
truir um prédio que depois ficaria sendo a própria sede do Museu
Nacional. Mal poderiam imaginar que os aposentos onde o "rei filó-
sofo" acalentava seu Gabinete de Curiosidades é que se transforma-
riam no espaço do Museu - embora o Louvre tivesse passado por

31
Maço 187, Doe. 8508, POB, AHMIP.
352 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX

processo semelhante. Nem a ironia de um Agostini poderia prever


que os Botocudos tomariam o lugar do imperador.
Os Botocudos expostos foram levados de volta ao rio Doce em
setembro de 1882, finda a exibição. Mas quem viu os Botocudos
afinal e o que viram neles? O público urbano de uma sociedade com-
plexa - de 1882 e ainda mais a de hoje - em geral procura nos
índios, ávido de curiosidade, seu próprio espelho invertido, vê os ín-
dios revestidos de utopias naturalistas ou primitivismos exóticos ou
mesmo de uma certa inferioridade animal.
O desaparecimento dos índios, previsto com rigorosa cientifi-
cidade em fins do século XIX, não se verificou - ocorrendo recente-
mente, ao contrário, crescimento demográfico em populações que se
transformam histórica e culturalmente. Convém assinalar que tam-
bém os habitantes do Rio de Janeiro, por exemplo, da época da E xpo-
siçãoAnthropologica se distinguem dos atuais. E há grupos e indivíduos
indígenas que também mudaram e aprendem a desenvolver estratégias
de comportamentos relativos à produção de sua imagem, atuando e
interferindo diante dos meios de comunicação de massa, da indústria
cultural e até dos próprios museus. 32
Mais de um século depois desse evento (que buscava exibir a
demarcação entre o primitivo e o moderno) permanece a questão: es-
tamos muito distantes? Lembramo-nos dos astronautas do ftlme 2001,
uma odisseia no espaço que se mostraram tão perplexos quanto os ho-
mens pré-históricos diante da pedra indecifrável que liga as origens
ao futuro.

32
J. Clifford. Muséologie et contre-histoire.. . e J. R. Bessa Freire. A desco-
berta do museu pelos índios . ..
III
KRENAK, ALVORECER DO "POVO NOVO"

E agora, deu por fim, nós ganhou essas terra


toda, graças a Deus, mas os meus povo véio
antigo tá tudo morto, agora só tá os novo. [... ]
E .. . nos toleremos isso tudo e agora nós ga-
nhamos essa terra, é uma esperança muito boa.
Esperança pra eles, pra eles trabaiá, manter, casar,
possuir família ...
- TCHARN (MARIA SôNIA KRENAK),
em 1998.
Capítulo 10
DE BOTOCUDO A KRENAK:
CAMINHOS, PONTES E MUROS

Em plena Bel/e Époque, raiar do século XX e crescente


modernização urbana, grupos de Botocudos mantinham aspectos im-
portantes de seus padrões culturais, continuavam a resistir e ocupar
parcelas do território em Minas Gerais e Espírito Santo. O cerco
apertava em torno de tais índios, que se encontravam praticamente
encurralados. Confrontos entre colonos e índios sucediam-se, san-
grentos por vezes, marcando mais uma entre as heranças da monar-
quia na alvorada da República no Brasil.
Neste período de transformações históricas, temos as últimas fo-
tografias mostrando os Botocudos com aparência "selvagem": daí por
diante as fotos só os mostrariam com roupas, para destacar a pretendida
incorporação à nacionalidade e à civilização ocidental. Esta mutação
de imagem foi rápida: em cerca de dois anos, entre 1909 e 1911, os
índios retratados nus passaram a figurar definitivamente vestidos.
A série de fotos de Botocudos tiradas pelo então jovem Walter
Garbe em julho de 1909 em Cachoeiro de Santa Leopoldina (atual
município de Santa Leopoldina, na região serrana do Espírito Santo)
é marcante por várias razões. 1 Pela nitidez, qualidade e quantidade
das imagens, pelas poses dos retratados e por representar uma das
últimas fotos de um grupo de Botocudos ao mesmo tempo ambientados

1
Na parte de baixo de cada foto, nas próprias imagens, consta em letra
manuscrita da época a data (13 de julho de 1909), a localidade (Cachoeiro de Santa
Leopoldina) e o nome do fotógrafo, Walter Garbe. Cópias de segunda geração dessas
fotografias encontram-se na Divisão de Iconografia da FBN.
355
356 KRENAK, ALVORECER DO "POVO NOVO"

em floresta, sem roupas e com botoques, algumas vezes em instantâ-


neos, em outras em posições mais ensaiadas, mas em geral com
descontração, conjunto de características que traz um ar de verossi-
milhança e originalidade a tais imagens.
Walter Garbe atuou como fotógrafo de expedições científicas
(etnográficas, zoológicas e botânicas) até meados da década de 1930
no Brasil. Era filho de Ernesto Garbe, morador de Piracicaba, inte-
rior de São Paulo, que coletava animais vivos para zoológicos euro-
peus, até ser contratado em 1900 pelo diretor do Museu Paulista, o
célebre von Ihering, como pesquisador viajante para aumentar as co-
leções da instituição. 2 Walter viajou inicialmente acompanhando seu
pai: esteve na floresta amazônica em 1904 e apresentou fotos na Ex-
posição Nacional de 1908. Em 1929 seria ele próprio contratado
como fotógrafo pelo Museu Paulista.
As fotos até então conhecidas dos Botocudos (entre as quais os
daguerreótipos de 1844, a série de Marc Ferrez na Bahia e outros
retratos na Exposição Antropológica Brasileira de 1882) estavam
marcadas, em suas concepções, pela Antropologia Física e/ou pela
exibição do exotismo. Eram composições onde os índios apareciam
mais rigidamente enquadrados. Mas o jovem Walter Garbe (que em-
bora acompanhasse seu pai não pertencia formalmente a instituição
alguma em 1909) neste raiar do século XX se despojou, em suas len-
tes, do rigor descritivo e etnográfico característico do século XIX,
não estava imbuído de nenhuma missão governamental e estabeleceu
alguma empatia com os índios fotografados, trazendo para suas fotos
um certo ar de familiaridade e informalidade tão ao gosto do intimismo
e da privacidade modernos. Buscava, também, compor determinada
imagem desses índios através do registro visual. Houve também inte-
resse comercial: as fotografias foram transformadas em cartões pos-
tais, vendidos no mercado internacional.
A série de fotos dos Botocudos feitas por Walter Garbe pode
ser lida numa tripla dimensão, segundo o olhar que proponho aqui:

a) "cordialidade" dos índios;


b) cultura e vida cotidiana;
c) contatos com os não índios.
2
Informações biográficas sobre Ernesto e Walter Garbe nos endereços: <http:/
/zecovc.vilabol.uol.com.br/Psit/Am- kawalli-2.htm> e <www.biota.org.br/pdf/
v72cap0l.pdf> .
DE BOTOCUDO A KRENAK: CAMINHOS, PONTES E MUROS 357
Qyanto ao aspecto inicial, estas são possivelmente as primeiras
fotografias onde tais índios aparecem com sorriso, ainda que discreto
(Figuras 57, 60 e 61). Não olham para a câmara como se estivessem
engessados, nem demonstram rancor ou desconforto. Os olhares dos
fotografados são límpidos e diretos (Figura 58). Tal impressão é re-
forçada pelos instantâneos, provavelmente propiciados pela agilidade
técnica da aparelhagem, que dispensava longas esperas e permitia
colher flagrantes e poses informais de um grupo mais numeroso, como
os que estavam sentados num tronco abatido (Figura 59). Aqui não
importavam medidas antropométricas e aparecia até uma curiosidade
descontraída mas intensa dos sujeitos fotografados, cujos olhares con-
vergiam para as lentes, sem que seus corpos alterassem as posições de
descanso em que se encontravam (Figura 59). Eram, pelo menos na-
quele instante fixado, donos de seus corpos e vontades.
A afetividade aparece no gesto do índio afagando a cabeça de
uma índia mais velha, numa espécie de cafuné, imagem mais nitida-
mente produzida a partir de pose ensaiada, mas à qual os índios pare-
cem ter-se submetido de boa vontade e até com certa diversão, a
julgar pelas expressões faciais da foto, na qual há discreto sorriso no
jovem (Figura 60).
Sob tal perspectiva, é interessante ver o mesmo sorriso aflorando
nos rostos de pelo menos quatro das dez crianças agrupadas para foto
(Figura 61), encostadas em duas árvores altas (das quais só se vê
parte dos troncos) e rodeadas de folhas ao fundo e de vegetação ras-
teira no chão. Estaria o fotógrafo fazendo alguma brincadeira para
que elas rissem? A imagem deixa entrever a penúria infantil, magreza
e barrigas inchadas pela verminose. Mas o ar tranquilo desse grupo
de crianças contrasta com os relatos trágicos de rapto, morte e escra-
vização de curucas das décadas anteriores, violências que ainda ocor-
reriam nos anos seguintes. Naquele instante, eternizados na foto, os
jovens compunham com suas presenças uma imagem de leveza, emol-
durados pela floresta, testemunhas de duras condições, sementes in-
certas, toque de esperança para sobrevivência futura.
Note-se que tais imagens foram colhidas num período de tensões
e violências contra esses índios, para os quais contribuía, entre outros,
o próprio diretor do Museu Paulista e patrocinador do pai do fotógrafo,
que pregava naquele momento o extermínio dos índios que se opu-
sessem ao progresso nacional, como se verá a seguir. Mas as fotos, em
certa medida, contrariavam ou não se enquadravam totalmente nas
358 KRENAK, ALVORECER DO "POVO NOVO"

intenções deste dirigente institucional que, entretanto, trataria de usá-


-las como referência.
Aqui entramos na segunda dimensão proposta para tais ícones,
ou seja, a de registro etnográfico, sob certas feições. Nesses casos
aparecem as fotos mais nitidamente produzidas, buscando recriar cenas
do cotidiano e dos costumes daquele grupo. Se no conjunto anterior
os fotografados são mais senhores de suas poses, neste, eles aparecem
mais conduzidos, embora referenciados em seus próprios comporta-
mentos. A foto do casal com uma criança (Figura 62) mistura os dois
registros: a intenção do fotógrafo parecia ser a de registrar a cena
tradicional (presente nas pinturas de Debret e Wied-Neuwied) da
marcha de uma família de Botocudos, mas a criança parece ter
esperneado ou escorregado, a jovem mãe (com botoque nos lábios)
tentando segurá-la se interpõe na frente do homem (com botoques
nas orelhas) que portava ornamento na cabeça e armas na mão. De
qualquer maneira, ainda é possível ver o modo como as mulheres
carregavam seus fardos através de uma faixa presa à testa, anotado já
pelos viajantes do século XIX. Talvez o jovem Walter Garbe não te-
nha sido tão bem-sucedido no rigor que até então vigorava nas fotos
etnográficas, mas suas imagens, em compensação, trazem um certo ar
de cordialidade, tão negado a este grupo indígena em outros registros.
O uso de arco e flecha para atirar, tão antigo nesta e nas demais
tribos, presente com ares de ferocidade desde os primeiros relatos do
século XVI aos romances do século XIX, aparece num gesto vigoro-
so e igualmente posado, quando o mais velho aponta para um possí-
vel alvo no alto e, a seu lado, o mais jovem tenta enxergar, colocando
a mão na vista, cercados por densa vegetação (Figura 63). Diferente
da cena de caça composta por Rugendas um século antes, onde a mão
do pintor interferia de modo mais acentuado no tom romântico e de
denúncia, na tristeza dos corpos helênicos, temos nesta foto, ainda
que também conduzida por seu autor, os movimentos corporais dos
índios sem maiores idealizações.
Igualmente sugestiva é a cena da família (um casal e duas crian-
ças) sob um abrigo de folhas e tocando duas longas flautas de bambu,
conhecidas como flautas de nariz, por serem tocadas com o ar das
narinas também (Figura 64). Os atuais Krenak desconhecem tal
instrumento e parecem ter sabido dele por essa foto, segundo pude
constatar. Mas na vitrine dedicada aos Botocudos no Museu Nacio-
nal, no Rio de Janeiro, ainda há um exemplar desse tipo de flauta em
DE BOTOCUDO A KRENAK: CAMINHOS, PONTES E MUROS 359
exibição. Uma das crianças está com o rosto virado para o lado direito,
de perfil para a lente, a outra olha para o lado esquerdo, a cara do bebê
no colo da mulher não aparece, e esta não encara a câmara, gestos que
quebram a rigidez artificial das poses e reforçam o ar de realismo da
cena que foi, evidentemente, preparada, pelo menos no que se refere
ao uso da flauta. Estes olhares díspares dos fotografados dão a eles
uma certa expressão de autonomia diante da captura de suas imagens.
Uma das fotos mais propícia a usos diversos para os discursos
civilizatórios e depreciativos a tais índios é aquela em que eles apare-
cem, em trio, acendendo uma fogueira mediante o tradicional recurso
de fricção das madeiras (Figura 65). Os três jovens estão acocorados
e parecem familiarizados com a tarefa (o da esquerda está sorrindo).
Deste conjunto, esta talvez fosse a imagem que mais servisse para
reforçar, na mentalidade daquele contexto, o contraste entre o pro-
gresso tecnológico e as características "primitivas" de tais índios e
sugerir a incapacidade destes em acompanhar as novas conquistas da
civilização, tão arraigados estariam em seus padrões tradicionais. Ain-
da vigorava nos meios de difusão, científica ou não, a ligação evolu-
cionista entre os Botocudos e os homens pré-históricos.
A associação entre esses índios e a natureza, presente em várias
das fotos, é realçada na imagem em que cinco índios aparecem junto
das raízes gigantescas de uma árvore, seus corpos confundidos com
elas pela cor, forma e postura curva e retesada, de quem está atento à
caça (Figura 66).
A terceira percepção, isto é, o contato com os não índios, apa-
rece de modo menos ostensivo nesta série de fotos. A imagem predo-
minante, composta em estilo realista, é a de índios "selvagens", isto é,
vivendo na selva, nus e aparentemente felizes, com seus ornamentos e
utensílios, mantendo seus costumes tradicionais. Mas tais tribos, como
se sabe, tinham já uma experiência antiga e dolorosa de contato. No
flagrante em que os índios aparecem sob uma tenda de lona ou pano
(Figura 67), sem estarem posando, percebe-se um aspecto da conse-
quência desta convivência, nas próprias moradias e mesmo no caráter
provisório delas, acentuado pela perda de territórios.
Mas o contato com os não índios vem retratado de forma acen-
tuada (Figura 68) quando eles se aglomeram em torno de um homem
branco que distribuía brindes. A maior parte dos índios está de costas
para a câmara e o epicentro da figura, ao alto, é o homem de chapéu
que estende a mão ofertando os pequenos presentes, cercado pelos
360 KRENAK, ALVORECER DO "POVO NOVO"

índios que parecem ávidos de recebê-los. No canto esquerdo um ga-


rotinho, magro, enorme barriga de verme, olha a cena com interesse,
mas alijado, pois com sua pequena estatura não poderia entrar na
disputa pelas ofertas. E no centro do grupo, de costas para o fotógrafo,
vê-se uma mulher de extrema magreza, esquelética, indicando fome e
possíveis doenças. Esta mulher não aparece nas demais imagens da
série, mas inftltrou-se entre os que disputavam os brindes e assim seu
corpo maltratado e famélico, embora não destacado pelo fotógrafo
(que focava o distribuidor dos presentes), inftltra-se também na fo-
tografia.
Essas fotos de Walter Garbe dos Botocudos, portanto, podem
ser vistas em dimensões variadas: múltiplas e até contraditórias. Por
um lado, representam humanização desses índios, retirando-lhes o ar
de sanguinários ou tolos com que foram predominantemente vistos
no século XIX. Os próprios fotografados se encarregam de criar tais
frestas nas imagens, com seus gestos e expressões, transformando-se
em sujeitos com suas poses, ensaiadas ou não. Por outro lado, as mes-
mas fotografias compõem uma certa visão idealizada de "selvagens"
intactos em seu habitat. De qualquer modo, tais ícones propiciam um
exercício de imaginação e transposição cronológica, como se fossem
imagens dos séculos anteriores, registrando reações, comportamentos
e feições de índios que até então não tinham sido enfocados deste
modo pela fotografia. São fotos que representam o fim de uma era de
produção de imagens e das condições de vida desses povos. Pode-se
dizer que são as últimas fotos dos Botocudos, que antecederam as
primeiras imagens dos Krenak.
Existem três versões para identificar os índios retratados nessas
fotografias de Garbe. Uma, gerada pela tradição oral e depois regis-
trada por escrito, indica que eles são elos de memória visual ainda
presente entre os Krenak, que afirmam reconhecer neles alguns de
seus parentes, como os chefes Muim e Krembá, do subgrupo Gutkrak,
dos quais narram suas trágicas histórias de vida e identificam seus
atuais descendentes (Figura 69). 3 Cabe indagar: seria uma apropria-
ção simbólica, pelos atuais Krenak, que atribuem a esses índios foto-
grafados nomes e identidades de seus próprios antepassados? Ou eles
teriam identificado esta geração de seus avôs a partir do testemunho

3
Essa identificação, assumida por alguns Krenak mais velhos, foi registrada no
livro de G. Soares (1992).
DE BOTOCUDO A KRENAK: CAMINHOS, PONTES E MUROS 361
da geração intermediária de seus pais? Já o cientista von Ihering,
financiador da viagem de Garbe, afirma que são Botocudos das pro-
ximidades do rio Pancas, o que é incompatível com a versão dos
índios, pois se tratavam de dois grupos distantes e rivais. 4 Mas legen-
da manuscrita nas fotos aponta para uma terceira opção, como já foi
indicado acima, com locais e datas diferentes das apresentadas por
Ihering. Curiosamente, ao relacionar os grupos de Botocudos então
existentes, este não cita nenhum em Cachoeiro de Santa Leopoldina,
onde teriam sido feitas as fotos de Garbe, localidade que fica a cente-
nas de quilômetros dos pontos onde o cientista registra a existência
de grupos de Botocudos. Ao mesmo tempo, Ihering situa a viagem
etnográfica dos Garbe entre março e maio de 1909, embora as fotos
apareçam datadas de julho do mesmo ano. A legenda manuscrita que
acompanha tais retratos é bem precisa (traz até o dia em que foram
feitas, 13 de julho de 1909) e não parece inventada aleatoriamente. O
grupo de Botocudos fotografado em 1909 aparentemente era, a crer
em registros como os de Ihering, distinto do grupo de Botocudo
descrito por Manizer, dos quais descendem os Krenak contemporâ-
neos. Embora, para estes, seja significativo atribuir rostos visíveis a
seus ancestrais, que assim emolduram os significantes de fotografias
tão marcantes. Os registros escritos e os orais são contraditórios a
esse respeito e parece-me equivocado, a priori, proclamar a suprema-
cia de um sobre outro - até mesmo porque as informações escritas
são conflitantes entre si. São aspectos ainda por elucidar e que permi-
tiriam a identificação precisa dos índios fotografados.
Como síntese dessa série de fotos, temos uma curiosa cena de ca-
çada (Figura 70). Três índios agachados são enfocados de frente, com
seus instrumentos, em atitude de tocaia, emoldurados pela floresta.
Cabe indagar- o que eles estariam caçando? Numa primeira resposta,
caso seguíssemos a intenção do fotógrafo e dos fotografados que aceita-
ram posar, poderíamos dizer que se tratava da imagem de um grupo
de Botocudos nas matas e flagrados em plena caçada a algum animal.
Mas poderíamos alegar que a presença mesma do fotógrafo no local
seria um empecilho a tal atividade, pois espantaria os bichos. Uma
segunda resposta, mais literal ou realista, indicaria que eles só pode-
riam estar caçando ... o próprio fotógrafo, que se encontrava postado
à frente deles. Mas tal certamente não ocorreu, pois Walter Garbe

4
H . v. Ihering. Os Botocudos do rio Doce . . ., 1911.
362 KRENAK, ALVORECER DO "POVO NOVO"

parece ter saído ileso do contato com os Botocudos. Restaria então


uma terceira reposta, transpondo para o nível simbólico a pose reali-
zada de comum acordo entre autor e personagens: os índios estariam
naquele momento e com aquela postura, em busca de estratégias de
sobrevivência e da construção de suas próprias imagens e identidades.
DE BOTOCUDO A KRENAK: CAMINHOS, PONTES E MUROS 363

Figura 59

Figura 58
"OAON OAOd, OG ~3;)3~0A'IV ')!VN3~)! v9f
DE BOTOCUDO A KRENAK: CAMINHOS, PONTES E MUROS 365

Figura 62
.. OAON OAOd, OQ "M3::J3:"MOA'1V ')!VN3:"M)! 99t
DE BOTOCUDO A KRENAK: CAMINHOS, PONTES E MUROS 367

Figura 64

Figura 65
----
"OAON OAOd, OQ 1I3:J~HIOAT\f ')lVN31I)l 89f
DE BOTOCUDO A KRENAK: CAMINHOS, PONTES E MUROS 369

Figura 68

Figura 69
370 KRENAK, ALVORECER DO "POVO NOVO"

Figura 70

Nos tempos do SPI, a cabeça bate no chão

O debate em torno das identidades e sobrevivências das popu-


lações indígenas ganhou contorno intenso no Brasil republicano.
Relegado a relativo ostracismo nos vinte primeiros anos do novo re-
gime, tomou em seguida proporções consideráveis e envolveu setores
ampliados da sociedade. Três grandes tendências e grupos de interes-
se formaram-se em torno da questão no Brasil daquele momento. 5
Uma, de caráter mais crítico, leigo e humanista, embebida ao mesmo
tempo nas concepções positivistas e no ideário nacionalista e liberal,
reclamava uma intervenção do Estado no sentido de dar certa valori-
zação ou proteção aos grupos indígenas e, ao mesmo tempo, incorpo-
rar parte considerável de suas terras às atividades produtivas e de seus
braços à força de trabalho nacional. Essa tendência, como se sabe,
teve no então coronel Cândido Mariano da Silva Rondon seu princi-
pal expoente. Outra vertente defendia as tradicionais prerrogativas de
grupos religiosos de monopolizarem a catequese indígena, baseada
nos interesses consolidados de ordens missionárias e seus aliados,

5 ]. M. Gagliardi (1989)
DE BOTOCUDO A KRENAK: CAMINHOS, PONTES E MUROS 371
valorizando a vasta experiência, os métodos pedagógicos e culturais
das Igrejas envolvidas com tais práticas. Essa linha teve entre seus
casos mais notórios o martírio do monsenhor Claro Monteiro em
1901, missionário que atuara junto de diversos grupos indígenas, en-
tre eles Botocudos. E, como terceira linha, caracterizava-se o discur-
so institucional científico baseado no evolucionismo e nas teorias ra-
ciais oitocentistas e que pretendia que o Estado brasileiro adotasse a
atitude de enquadrar de forma definitiva e violenta os índios, uma vez
que eles seriam comprovadamente infensos e incapazes de se incor-
porar à civilização ocidental. Expoente dessa tendência foi o diretor
do Museu Paulista, Herman von Ihering, último grande representan-
te da Antropologia Física oitocentista e da truculência racial que em
geral a acompanhava.
A primeira tendência, como se sabe, saiu vitoriosa do embate,
pelo menos no que se refere a apoio de grupos urbanos e na definição
oficial e de mobilização do aparelho governamental nesse sentido,
embora os grupos missionários tenham continuado a atuar junto dos
índios, e a violência explícita e crua não deixaria de se manifestar.
No âmbito da catequese religiosa, a campanha também foi in-
tensa, gerando vastas publicações, entre as quais, exemplar é o folheto
A catechese dos índios. Ineficácia e perigo das Missões leigas. Necessidade
da catechese religiosa.6 Nesta publicação, como em outras, desenvol-
via-se a argumentação favorável a tal ponto de vista. Um dos defenso-
res mais ativos dessa linha foi o padre Claro Monteiro do Amaral,
que nascera em São Paulo, 1860, no âmbito de uma tradicional famí-
lia aristocrática (era sobrinho do barão Homem de Melo). Desloca-
do para a recém-criada diocese do Espírito Santo e promovido a
monsenhor, este clérigo, dotado de considerável erudição e também
de veia de polemista, conviveu entre 1898 e 1900 com os Botocudos
em torno dos rios Doce e Pancas, passando vários meses seguidos nas
selvas em contatos e tentativas de encontros com esses índios, aos
quais pretendia catequizar. Desse convívio resultou um Vocabulário
Português-Botocudo, um dos mais completos e detalhados, só publicado
em 1948.7 O religioso conviveu com o grupo Nak-Sapmã, entre os

6
L. C . de Castro, impresso na Typographia da Pátria Brasileira, Rio de Janei-
ro, 1910.
7
C. Monteiro. Vocabulário Português-Botocudo. .. org. e informações biográficas
de M . L. P. Martins.
372 KRENAK, ALVORECER DO "POVO NOVO"

rios Mutum e Pancas, embora tentasse alcançar, aparentemente sem


êxito, os Gutkrak8 e Minhanjiru, que estavam fora da experiência
missionária de Itambacuri. Em 1901, monsenhor Claro Monteiro,
que parecia atuar em sintonia com os pontos nevrálgicas dos confli-
tos pelas terras indígenas na região Sudeste, partiu para tentar contatar
outros grupos nomeados de Botocudos, em São Paulo, os Kaingangs,
ocasião em que foi assassinado quando navegava de canoa, possivel-
mente por tais índios, tendo seu corpo desaparecido.
Por seu turno, o cientista von Ihering publicou detalhado estu-
do etnográfico sobre "Os Botocudos do rio Doce", baseado nos rela-
tos e fotografias de Ernesto e Walter Garbe e também em estudos
anteriores. Ele fez uma leitura estritamente etnográfica e descritiva
de tais fotos (contabilizando homens, mulheres e crianças, anotando
o número e uso dos botoques, a flauta de taquara, a formação das
famílias e casais, etc.) acompanhada de discretos juízos de valor. O
diretor do Museu Paulista não deixou de anotar que recolheu o crâ-
nio de uma mulher de vinte e dois anos que, depois de fotografada,
morreu afogada. No mesmo número da revista do Museu Paulista em
que saiu o artigo sobre os Botocudos, von Ihering publica outro tex-
to, "A questão dos índios do Brasil", onde, entre outras afirmações,
defendia o extermínio dos índios refratários que não quisessem se
adaptar à civilização nacional e pregava a adoção pelo governo de
uma solução para o "problema" indígena, "humanitária ou não". 9 In-
seria-se, assim, na linha dos "colonizadores bravos", com argumentos
semelhantes, por exemplo, aos do historiador Francisco Adolfo de
Varnhagen, visconde de Porto Seguro, meio século antes.
Dois dos principais focos de conflitos indígenas no país ocor-
riam em regiões centrais para as atividades produtivas e com poder
político: com os Kaingang (Paraná e São Paulo) e com os Botocudos
(Espírito Santo e Minas), ambos em geral classificados no grupo
linguístico Macro-Jê. A situação tornava-se mais tensa porque estas
duas áreas estavam encravadas em regiões onde o desenvolvimento
econômico se dava de modo vertiginoso, inclusive com a construção

8
Este nome genérico, Gutkrak, que servia para nomear determinados subgrupos
de Botocudos aparentados entre si, aparece grafado na documentação da época de
diferentes maneiras: Guterecks, Guturacks, Butucrak, Buturak, etc. Optamos aqui
pela padronização ortográfica de Gutkrak.
9
Cf. von Ihering. A questão dos índios no Brazil . .. , 1911. Para uma crítica a
tais posições, ver D. Ribeiro (1996, pp. 149-51).
DE BOTOCUDO A KRENAK: CAMINHOS, PONTES E MUROS 373
de ferrovias para escoar produções (os corredores de exportação) e a
ampliação dos centros urbanos. Para resolver esse conflito com os ín-
dios ainda "bravos", não apenas na região Sudeste, os governantes
federais tomaram posição diante do debate que se formara: foi criado
em 1910 o Serviço de Proteção aos Índios e de Localização de Traba-
lhadores Nacionais (SPILTN), fins do governo Nilo Peçanha.
O próprio nome desse novo órgão público já era significativo
de seus propósitos: a proteção aos índios (leia-se, sua incorporação à
sociedade nacional, sem usar recursos bélicos) e a localização dos
trabalhadores nacionais estavam juntas, deixando claro qual o objeti-
vo diante das terras e mesmo da possível mão de obra indígena. Tra-
tava-se de permitir a ocupação (seria anacrônico chamar de Con-
quista ... ?), por empresas e proprietários, de áreas tão valorizadas
economicamente no território nacional. A direção geral do Serviço
ficou a cargo do tenente-coronel Cândido Mariano da Silva Rondon,
cujo desempenho no desbravamento de matas, implantação de telé-
grafos e habilidade de estabelecer relação com os grupos indígenas o
credenciavam para a tarefa. 10
Se com tal medida o governo republicano mantinha a tradição
de militarização no contato com os índios, por outro lado, a própria
postura de Rondon, a partir de uma leitura do positivismo e da imersão
na consciência crítica da época, inauguraria uma nova fase das rela-
ções entre os grupos indígenas e a sociedade nacional. E, mais uma
vez, os Botocudos (que passariam a perder este nome, que eles nunca
assumiram como deles) estariam na ponta dessas transformações, des-
tacando-se pelo vigor de suas atitudes e integrando, a contragosto,
mais este laboratório do progresso. Porque, como se sabe, a criação
do Serviço- em 1918 nomeado apenas de Proteção aos Índios (SPI)
- foi precedida de rumorosa polêmica sobre o tema tão antigo e
renovado: os caminhos e possibilidades de incorporar os índios à
civilização e à nação.
Dessa forma, o novo órgão governamental SPILTN e depois
SPI, tinha a incumbência de funcionar como intermediário entre as
populações indígenas e a sociedade nacional. Visava evitar violências
bélicas e massacres contra os índios, mas ao mesmo tempo buscava
meios mais eficazes e insistentes de incorporá-los à sociedade nacional,

10
Para diferentes interpretações sobre a criação do SPI em âmbito nacional
ver as obras de D. Ribeiro (1962 e 1996), A. C. S. Lima (1998) e Gagliardi (1989).
374 KRENAK, ALVORECER DO "POVO NOVO"

reservando-lhes algumas parcelas de terra e estimulando entre eles o


trabalho produtivo, o uso de roupas e o aprendizado de português, ao
mesmo tempo que aceitava dialogar com as tradições culturais indí-
genas e acenava com a possibilidade de preservar algumas delas. O
SPI pretendia monopolizar o ordenamento do espaço territorial por
meio da tutela dos índios, controlando de alguma maneira as terras
que estes perdiam ou mantinham, além da tarefa de negociação com
as partes envolvidas, como frentes de expansão, proprietários rurais,
outras instâncias governamentais e, claro, os próprios índios.
Para implantar mais esta frente de contato (que pretendia abrir
caminho para as frentes de expansão) no Espírito Santo e Minas
Gerais foi enviado o tenente Antônio Martins Viana Estigarribia,
colaborador próximo de Rondon e, como ele, positivista, republicano
e nacionalista. Em fins de 1910 Estigarribia encontrou um terreno
minado, onde "recíprocas violências" têm "ensanguentado aquella parte
do Estado" .11 Os próprios agentes do SPI reconheciam estar sendo
pressionados para realizar o contato a toque de caixa: as estradas de
ferro Bahia-Minas e Vitória-Minas estavam em construção e seu
traçado rasgaria os últimos territórios dos Botocudos. Era preciso
pois, antes de tudo, um trabalho de pacificação - mas dos grupos
econômicos que espreitavam a região. 12
Foi nesse sentido que agiram Estigarribia e seus companheiros
(entre os quais o inspetor Cândido de Freitas Chaves). Além disso,
uma empresa norte-americana de corte de madeira assinara contrato
com o governo do Espírito Santo e já estava atuando na região, uma
das últimas áreas de floresta nativa do estado. Temiam-se novos e
graves conflitos com os índios. Mais uma vez as duas destruições
andavam juntas: a da Mata Atlântica e a dos grupos indígenas que a
habitavam. O diretor da madeireira, Lichenfelds, já formara conside-
rável contingente de trabalhadores, entre brasileiros e índios sedenta-
rizados: procurado pelos inspetores indigenistas, comprometeu-se a
não atacar os Botocudos arredios.

11
Brasil. Ministério da Agricultura, Indústria e Commercio. Relatorio apresen-
tado ao Presidente da Republica dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro: Imprensa
Nacional, 1912, vol. I, pp. 131-37 e A. Estigarribia, 1934.
12
Sobre a relação do SPI e os Botocudos no Espírito Santo, tomamos como
referência o trabalho de M. E. Brêa Monteiro (2004) . Para o caso de Minas Gerais,
v. I. M. Mattos (1996). Para ambas as regiões, M . H . B. Paraíso (1998b).
DE BOTOCUDO A KRENAK: CAMINHOS, PONTES E MUROS 375
Em seguida Estigarribia procurou o "cidadão Governador"
Jerônimo Monteiro que, numa conversa franca, expôs a situação do
Espírito Santo: um estado pobre, de poucos recursos, que procurava
dar ênfase às atividades de exportação, sobretudo do café e madeira.
E que umas das últimas terras férteis da Mata Atlântica ainda conti-
nuavam em poder dos índios ao longo do rio Doce. Entretanto, o
"cidadão governador" mostrou-se solidário com o trabalho do SPI e
viu com bons olhos a perspectiva de preservar uma área - ainda que
não muito grande - para que os índios não fossem inteiramente
dizimados ou expulsos de suas terras. Estigarribia lamentou, pois con-
siderava os índios como "legítimos possuidores" de todo território,
mas considerou importante o apoio do governador e tratou de buscar
a negociação nestas bases para a preservação de uma parcela da área
indígena. A intenção dos representantes do SPI era conseguir con-
vencer o governo capixaba a negociar com o Syndicate norte-ameri-
cano uma fatia da terra para os índios.
Havia ainda outros elementos a pacificar. O engenheiro Antô-
nio dos Santos Neves, proprietário da Fazenda Neblina, na altura de
Pipnuc, estava em guerra com os índios há pelo menos doze anos.
Em 1898 e 1904 registraram-se conflitos graves onde morreram ín-
dios e parentes do fazendeiro. 13 Havia em diversos pontos de rio
Doce colônias de italianos - também queixosos de que os índios
constantemente invadiam suas roças e levavam parte das plantações.
Para todos, os representantes do governo federal pediam uma espécie
de trégua, dando como garantia de que seria possível obter a maior
parte das terras dos índios sem violências. Concluída então esta pri-
meira fase da pacificação - Estigarribia não a chamava assim - foi
dado o passo seguinte: fazer um levantamento in loco da situação dos
grupos indígenas.
Nesse momento Estigarribia sentiu-se como que imbuído da
importância da missão que tinha pela frente e começou por escrever
um breve histórico do contato entre estes grupos e a sociedade luso-
-brasileira. Considerou-os acertadamente como descendentes dos
Aimorés - e esta consideração não seria gratuita, pois Rondon e
seus seguidores, nos anos seguintes, passariam a referir-se a esses
índios sob esta denominação, na tentativa (bem-sucedida) de lhes

13
Re/at6rio apresentado pelo Inspector Estigarribia em exercfcio no Estado do Espfrito
Santo, IR4, 1910, flime 166, Funai, Museu do Índio (RJ), p. 104.
376 KRENAK, ALVORECER DO "POVO NOVO"

retirar o nome e o estigma de Botocudo - associado ao mesmo


tempo a selvageria e imbecilidade. Estigarribia reportou-se sobretu-
do aos trabalhos de catequese dos jesuítas na região- o que é signi-
ficativo em se tratando de uma proposta eminentemente laica; en-
quanto militar ele procurava distanciar-se da violenta tradição
militarista, buscando exemplo na "colonização mansa" da Compa-
nhia de Jesus. Ele citaria também José Bonifácio, os decretos de 1824
e o índio Guido Pokrane. Além desse pequeno histórico, Estigarribia
registraria aspectos relevantes da vida cotidiana e dos costumes des-
sas tribos, ainda que de forma não sistemática, pois não pretendia ser
antropólogo ou etnólogo. E tiraria fotos desses grupos. Desse modo,
além de agente indigenista, ele colocou-se também como intelectual
escrevendo e captando imagens dos Botocudos.
Percebe-se pela leitura das anotações de Estigarribia que ele
ainda guardava parâmetros do século XIX em relação aos Botocudos.
Indagava sobre a antropofagia desses índios para responder que ainda
não tinha "opinião assentada" sobre sua veracidade, embora verificas-
se que os grupos rivais se acusassem reciprocamente desta prática.14
Em outra resposta às indagações, o chefe Tetchuc, Gutkrak, perce-
bendo a insistência e interesses dos agentes do SPI sobre o tema,
afirmou que gostava de comer "especialmente perna de crianças". No
que foi logo desmentido pelo índio José, afirmando que "isso é troça
do Tetchuc". 15 Isto revela, na verdade, uma manipulação dos códigos
dos não índios pelos próprios índios, que buscavam assim desqualificar
seus adversários tribais ou impressionarem seus interlocutores não
índios, talvez ironizando-os, e se fortalecerem nas alianças com a
sociedade nacional, tentando reverter, em seu próprio benefício, as
antigas acusações de canibalismo. E como contraponto a esta ainda
impregnada legenda de ferocidade, o mesmo inspetor do SPI se mostra-
va encantado com a descoberta da cordialidade dos indígenas e com a
capacidade deles em demonstrar afeto:

E quanta festa, quanto carinho, quanta alegria ao me encon-


trarem!l6

14
Relatório apresentado pelo Inspector Estigarribia em exercfcio no Estado do Espírito
Santo, IR4, 1910, fUme 166, Funai, Museu do Índio (RJ), p. 20.
15
Ibidem.
16
Ibidem, p. 22.
DE BOTOCUDO A KRENAK: CAMINHOS, PONTES E MUROS 377
O mapeamento inicial da situação dos Botocudos (narrado em
relatório ao "Cidadão Tenente Coronel" Rondon) em 1910 mostra
um quadro diversificado. Havia grupos sedentários, muitos nômades,
outros em contato intermitente ainda pelas florestas e alguns que re-
cusavam qualquer contato e não falavam o português. O trabalho dos
agentes da lnspetoria Regional4 (IR4) do SPI seria dirigido sobre-
tudo a estes dois últimos.
Nas margens do rio Doce, arredores de Colatina, havia dois
aldeamentos. Um, em fase inicial, mantido pelo padre Gruber, do
Verbo Divino, contava apenas com dois irmãos do grupo Minhageruns.
Légua e meia adiante estava o outro aldeamento, de Lage, onde en-
contraram cerca de dezesseis índios (haveria mais uns quinze ou vin-
te, ausentes), dos quais cinco minhageruns e o restante nacknenucks.
Os homens vestiam apenas uma pequena tanga e as mulheres às vezes
tinham peças de roupa, como blusas ou vestidos. Segundo o observa-
dor, moravam aí dois chefes, os "capitães" Nazaré e Lucas, mas quem
chefiava na prática a aldeia era a índia Benedita, que tinha grande
influência sobre os demais e cuidava das roças de milho e da criação
de galinhas. Era a predominância feminina no interior do grupo.
Diante desses índios, como dos demais que encontraria, o ins-
petor usaria com insistência a palavra simpatia e seus derivados (sim-
páticos, simpáticas, etc.). São termos que ressaltam de seu relatório. Ou
seja, também ele deparou-se com a cordialidade dos índios. Ao expor
para o primeiro grupo acima descrito sua missão de pacificação, a
reação deles foi imediata: "Ficaram muito satisfeitos com a boa nova
e os brindes que lhes eu levava e, em regozijo, dançaram e canta-
ram" Y Além de guerreiros - ou por isso mesmo - os Aimorés ou
Botocudos sempre foram grandes estrategistas. Mesmo havendo sig-
nificativas discordâncias internas entre os grupos nesse sentido, não
se pode negar a eles um senso de ação política bem nítido, que resul-
tou na potencialidade das resistências e na sobrevivência como grupo
étnico, mesmo diante de avalanches de violências. A resposta que
deram a Estigarribia foi significativa: de um lado aceitavam a proposta
de convivência pacífica com a sociedade brasileira como estratégia de
sobrevivência e, de outro, dançaram e cantaram para comemorar, mos-
trando que, ao celebrar dessa maneira, mantinham identidade cultu-
ral. Ou seja, aceitavam transformar (mas não eliminar) sua identidade

17
Ibidem, p. 95.
378 KRENAK, ALVORECER DO "POVO NOVO"

étnica para não desaparecerem. Colocavam-se dentro da linha cha-


mada de transfiguração étnica, aceitando em parte mudar para sobre-
viverem como etnia.
A tribo seguinte encontrada foi a dos Giporocas, ou Gyporoks,
mesmo nome do grupo que havia mantido contato estreito com Teóftlo
Ottoni seis décadas antes. Os membros desta tribo, lembrava Esti-
garribia, eram conhecidos por sua "extrema ferocidade". Preocupa-
do, ele procurou intermediários que facilitassem o diálogo e foi in-
formado que a pessoa indicada era um velho africano, Ladislau, que
na época da escravidão fugira da fazenda e fora acolhido por uma
tribo de Botocudos, por onde morou durante muito tempo, possivel-
mente até a época da Lei Áurea. Ladislau dominava perfeitamente a
língua e conhecia os costumes dos índios e pode-se supor que tenha
tido filhos entre eles, gerando alguns com aparência de mulatos, como
ainda hoje se verifica. Mesmo assim, os Giporocas, habitantes do
norte do rio Doce, mostraram-se extremamente desconfiados com a
chegada de Estigarribia: eles tinham a experiência de séculos de vio-
lência da parte dos "brancos", violência que ainda não desaparecera.
Um dos "principais" ficou inquieto de estar conversando com o repre-
sentante oficial da República afastado de seu arco e flechas. Percebendo
a situação, Estigarribia pediu-lhe que pegasse à vontade suas armas,
o que fez o índio descontrair-se. O inspetor explicou-lhe longamente
o intuito de sua missão em nome do governo e o resultado não se fez
por esperar: os demais índios finalmente aproximaram-se tratando-o
"com a maior delicadeza e carinho", chamando-o de "crenton hêrêhê",
que ele traduziu por "chefe bom", mas que ao pé da letra quer dizer
"homem de cabelo feio, tudo bem". E Estigarribia arrematava: "foi-
me fácil obter desses índios a promessa de que não depredariam mais
roças dos colonos, nem se apossariam de suas ferramentas".
Entre esses Giporocas o inspetor encontrou ainda um índio
Botocudo de uma tribo que fora extinta num confronto interétnico.
Chamado, numa triste ironia, de Pery, este índio de cerca de quarenta
anos contou que seu grupo, outrora numeroso, fora destroçado num
combate com os Giporocas, todos os homens foram mortos e as mu-
lheres incorporadas aos vencedores. 18 Este Pery do século XX não se
sentia incorporado ao novo grupo e considerava-se o último sobrevi-

18 Relatório apresentado pelo Impector Estigarribia em exercício no Estado do Espfrito


Santo, IR4, 1910, filme 166, Funai, Museu do Índio (RJ), p. 103
DE BOTOCUDO A KRENAK: CAMINHOS, PONTES E MUROS 379
vente de sua tribo, cujo nome Estigarribia não registrou. As lutas
interétnicas entre os Botocudos eram ainda constantes na região, sobre-
tudo à medida que o cerco das frentes de expansão apertava as garras
sobre os índios, reduzindo seus territórios e acirrando assim os con-
flitos e a facciosidade, que sempre foi uma das características marcan-
tes desses grupos. Os mesmos Giporocas estavam na ocasião em guerra
com os Coroados chamados por eles de Angrêtes (homens maus).
Foi registrada ainda a presença de Pojichás, grupo cujo nome
era conhecido já em meados do século XIX, mas cuja localização era
ainda incerta para os que viviam fora da floresta.
Um dos encontros mais marcantes foi em Natividade do Ma-
nhuaçú, na fronteira de Minas e Espírito Santo, com o grupo de Tet-
chuc, dos Gutkrak que "têm mantido os usos dos antigos botocudos",
como andar nus, usar botoques, não falar português, manter a poliga-
mia, etc. Na conversa com Estigarribia, por intermédio de intérpre-
tes, Tetchuc relatou a insatisfação em que viviam: fome, dificuldade
de encontrar alimentos e acossados pelos conflitos com as tribos vizi-
nhas (afirmou que muitos dos seus morreram nos últimos meses) e
com as frentes de expansão. Ao saber das intenções do governo Tetchuc
afirmou que seu grupo aceitaria sedentarizar-se, desde que ficassem
protegidos dos diversos inimigos e obtivessem ferramentas para cul-
tivar suas roças. Havia ainda entre os Gutkrak o grupo do "capitão"
Krenak e de seu filho Muim, que recusava aliança com os não índios
("não querem saber de relações", reconhecia Estigarribia). Com a
aproximação do grupo do Tetchuc, Krenak separar-se-ia e formaria
outra tribo, mantendo a resistência contra a proposta do SPI.
Registra- se ainda outra tribo de Botocudos (classificados no
relatório de "mansos") estabelecida no Etueth (Itueta), sul do rio Doce,
onde todos falavam português. Ao saberem da presença de Estigarribia
procuram-no, tomando assim a iniciativa do contato. Mas eles não
receberam maior atenção do inspetor na ocasião. 19 Certamente por-
que não estavam entre os "bravos" a pacificar: paradoxo que levava os
índios que rejeitavam o contato a serem mais valorizados por um
agente governamental.
Percebe-se, portanto, a partir da leitura atenta deste primeiro
relatório, que a ação do SPI em 1910 não representou uma ruptura
profunda no comportamento dos Botocudos, como se num passe de

19
Ibidem, p. 97.
380 KRENAK, ALVORECER DO "POVO NOVO"

mágica o contato "pacificador" transformasse selvagens guerreiros em


dóceis membros da sociedade nacional. Pode-se dizer que havia já
um quadro complexo, no qual as situações e reações dos grupos indí-
genas eram diferenciadas. Além disso, todos estes grupos já tinham
efetivado em algum momento contatos com a sociedade nacional.
Os próprios dirigentes do Serviço de Proteção aos Índios reco-
nhecem qual a tarefa primordial na área:

Qyanto aos índios bravios, a acção do Serviço inicia-se pela


adopção de medidas conducentes à total supressão das arreme-
tidas a mão armada, todas igualmente facinorosas e crudelíssimas,
contra elles organizadas, sob os nomes de batidas [... ).20

Ou seja, fica patente que a questão de pacificar os chamados


índios bravios deslocava-se para outro eixo: pacificar os não índios,
os colonos, os grupos paramilitares, as frentes de expansão, isto é,
pacificar os colonizadores bravos. Embora esses conceitos não te-
nham sido usados de maneira clara na época, o sentido era nitida-
mente este. O que estava em jogo com a criação do SPI era estabele-
cer certos limites da sociedade nacional e de seus representantes locais
nas suas relações com os grupos indígenas. Desse modo, destaca-se
que a pacificação do SPI não era voltada exclusivamente para os gru-
pos indígenas, como muitas vezes transparece, mas para a tentativa de
resolução de conflitos envolvendo diversos agentes históricos, inclu-
sive (mas não apenas) os grupos indígenas.
Depois de mapeada a situação dos Botocudos em Minas Gerais
e no Espírito Santo, os agentes governamentais traçaram o passo se-
guinte da estratégia no tocante aos índios: criar dois postos de "acção,
de attração e de pacificação" nos dois pontos onde a população indí-
gena não sedentária era maior: na margem do rio Pancas, entre os
rios Doce e São José; e no braço sul do rio São Mateus, na serra dos
Aimorés. Foram também solicitados dois contos de réis para a com-
pra de brindes, ferramentas, medicamentos e mantimentos e para a
contratação de trabalhadores e intérpretes. A partir daí seriam não
mais encontros esporádicos ou promessas, mas o estabelecimento de
contatos sistemáticos visando a alteração e ordenação da vida dos
grupos indígenas.

20 Relação das tribos. .. , [1911], Museu do Índio (RJ).


DE BOTOCUDO A KRENAK: CAMINHOS, PONTES E MUROS 381
Articulações feitas, os resultados, nos meses seguintes, foram
nítidos.
O inspetor Chaves conseguiu aproximar-se de alguns Botocudos
que mantinham contato intermitente com a sociedade brasileira. O
primeiro Posto de atração foi criado na confluência do rio Muniz
Freire com o braço sul do rio São Mateus, distante cerca de vinte
quilômetros do último morador da colônia de Pipnuc. Trataram de
fazer grandes roças e uma estrada para transporte de carga. Serviços
que eram executados com o apoio dos índios já contatados, que assim
iam aprendendo a trabalhar sistematicamente. Logo conclui- se uma
estrada ligando o vale do rio Doce a São Mateus e outro Posto de
atração foi instalado nas selvas, tidas ainda como impenetráveis e
desconhecidas. No raiar do século XX ainda se falava em "Desco-
bertas" numa região não muito distante do local onde aportara a es-
quadra de Cabral em 1500. O objetivo, pois, era o desenvolvimento
econômico da região, a exploração predatória das florestas e a incor-
poração dos índios como mão de obra subalterna.
O primeiro grupo contatado foi o Gutkrak que, diante do desa-
fio, cindiu-se em dois, conforme já foi dito. Um, mantendo o nome de
Gutkrak e chefiado por Tetchuc, aceitou o contato e, mais adiante,
veio a dividir-se também, desaparecendo como tribo. O outro grupo,
do "capitão" Krenak, derrotou os primeiros em conflitos e recusava o
contato sistemático com os brasileiros.
Munhangiruns e Nacknenucks, até então hostis, juntaram-se e
instalaram-se às margens do rio Pancas, quarenta e oito quilômetros
para dentro do rio Doce. Eles incluíam remanescentes de grupos
contatados nos anos 1820 (portanto quase um século antes), como os
Pokrane. Era a dissolução de tribos que por muitos anos serviram de
referência, como os grupos do capitão Cuido Pokrane e seus descen-
dentes e também dos Nacknenucks, que, em poucas décadas, passa-
ram da ausência de contato com a sociedade nacional a objetos de
estudos culturais e científicos, em Paris ou no Rio de Janeiro. Forma-
vam-se assim dois Postos do SPI, o Pancas e o Aimorés, onde os
índios passam a construir casas, engenhos de farinha, paióis, etc.
Analisando o intenso contato efetivado pelo SPI com as tribos de
Botocudos entre 1910 e 1912 verifica-se que os grupos indígenas que ti-
veram maior sobrevida foram justamente os que resistiram ou não ade-
riram facilmente à "pacificação". No caso, os Pojichás e Krenaks, além
dos membros de outras tribos que se juntaram a eles, como os Nakrehés.
382 KRENAK, ALVORECER DO "POVO NOVO"

Em fevereiro 1911, rio das Contas, sul da Bahia, uma expedi-


ção do SPI dirigiu-se ao vale do rio Gongogy, domínio dos Pojichás.
Ainda eram nômades mas, diante da crescente onda de colonização,
pararam de atacar, mas continuavam sofrendo ataques. Seja como fosse,
os Pojichás se mantinham "temidos pelos agricultores das terras adja-
centes às que elles percorrem [... ] evitam contatos com o civiliza-
do"Y Recusavam-se a princípio a retirar os presentes deixados pelos
agentes do SPI. No mês seguinte, nova expedição, e os Pojichás,
acuados e sem meios de tirar sua sobrevivência da floresta a contento,
começam a retirar presentes.
Um dos últimos grupos de Botocudos a resistir à proposta de
pacificação oficial, rejeitando a sedentarização e o contato permanen-
te com a sociedade nacional, internando-se nas matas que ainda res-
tavam, foi o do chefe Krenak. Somente após sua morte seu filho e
sucessor, Muim, aceitou o convívio constante com a sociedade na-
cional, incontornável naquele momento em razão do cerco e ocupa-
ção dos territórios indígenas. Entretanto, como se verá a seguir, Muim
não se acomodou nem submeteu-se passivamente, mas ainda apre-
sentaria vigorosa tentativa de interferência nos destinos de seu povo,
ou seja, pelejava no interior mesmo das relações estabelecidas pela
sociedade nacional.
Mas a figura de Krenak, por ser um chefe a resistir ao contato
permanente, tornou-se mítica desde aquela época. Como foi a tribo
do chefe Krenak que influiu na instalação definitiva em torno do rio
Eme, afluente do rio Doce na altura de Resplendor (o Posto Indígena
seria oficialmente rebatizado de Krenak), e para lá foram agrupados
índios de outros grupos de Botocudos, retomou- se a tradicional prá-
tica de nomear a tribo com o nome do chefe e da localidade, que
passou a se chamar Krenak, gerando nova denominação externa aos
Botocudos.22
Alguns Krenak, hoje, têm um mito de origem para a criação do
seu nome tribal. E, nesse sentido, o nome não seria uma homenagem
ao chefe Krenak, mas expressão simbólica de um momento de passa-

21
Carta do Sr. Antonio E stigarribia ao Sr. Miranda, Datada de 1991. Mês: abril,
Museu do Índio, RJ.
22
Esta associação entre o nome do chefe Krenak e a nova denominação gené-
rica do grupo, por parte dos atuais índios, aparece indicada, embora sem citar fontes,
no trabalho de G. Soares (1992) .
DE BOTOCUDO A KRENAK: CAMINHOS, PONTES E MUROS 383
gem. Um índio, ao nascer, caiu e bateu com a cabeça no chão, daí sua
mãe exclamou: kren-nak! (kren, cabeça; nak, chão).

É por isso que fala K.renak. Eles falam que uma vez uma índia
que tava quase ganhando menino, aí ela ganhou o menino e o
menino caiu com a cabeça na terra. Ai ela não sabia conversar
direito, ela falava assim K.ren Nakl K.ren Nak! Porque o menino
bateu com a cabeça na terra. Aí botaram o nome de K.renak,
porque o menino bateu com a cabeça na terra e ela falava
K.renak. 23

A descrição do nascimento resultando de um choque na cabeça


aparece também na mitologia grega. A guerreira Atenas, filha de
Zeus e de sua primeira esposa, Métis, se tornou a filha favorita do
pai. Qyando Métis estava grávida, Zeus a engoliu, a conselho de
Gaia, pois o ftlho seguinte poderia nascer mais forte que ele. Depois
de certo tempo, Zeus foi atacado por uma terrível dor de cabeça e,
para melhorá-la, pediu a Hefesto que lhe fendesse a cabeça com o
machado. Filho obediente, Hefesto não vacilou, e logo depois do
golpe Atena emergiu já crescida, completamente armada e lançando
terrível grito de guerra. 24
A narrativa dos K.renak, diga-se de passagem, foi feita por Him,
que descende dos Nakrehés, rivais do grupo de K.renak, e poderia
haver aí o prolongamento de um disputa identitária. De qualquer
modo esta representação de uma queda dolorida no instante do nasci-
mento expressa simbolicamente e de maneira aguda um momento
dolorido de passagem e de (re)nascimento: o atrito entre a cabeça e o
chão, entre o que se desejava e a dura realidade, choque do qual o
índio sobreviveu e ganhou dele seu novo nome. 25

23
Depoimento de José Alfredo de Oliveira Krenak (Him) ao autor em 10-9-
1998. A cartilha elaborada pelos jovens professores Krenak em 1997 traz também
essa narrativa (do menino batendo com a cabeça no chão) mais detalhada em Borum
e em português.
24
Cf. referência em <http://greciantiga.org/mitlmit09-7.asp>. Agradeço a
Maria Regina Ramos de Assis por ter me alertado dessa semelhança entre os dois
mitos de origem, o grego e o indígena.
25 "O que é que deu, o que é que não deu", assim resumiria a história do seu

povo outra índia Krenak, Maria Sônia (Tcharn) em depoimento ao autor em 11-9-
1998 .
384 KRENAK, ALVORECER DO "POVO NOVO"

A supressão do nome de Botocudo se apresenta como forma de


apagar o estigma que pesava sobre tal apelido, associado aos atributos
de ferocidade e tolice ao mesmo tempo. Os pioneiros do SPI estavam
entre os que trabalharam nesse sentido, usando inicialmente para es-
ses grupos a denominação de Aimorés e, depois, adotando a de Krenak.
Desse modo, a alteração do nome genérico e hostil apontava para
outra forma de relação e de percepção da sociedade nacional sobre
esses índios, resultado da ação conjunta de diversos protagonistas his-
tóricos- também e, sobretudo, dos próprios índios.
Tanto a referência à figura do chefe que resistiu quanto a lenda
do menino batendo a cabeça no chão têm sentido semelhante. A nova
identidade teve este duplo sentido: a aceitação forçada da pacificação
indigenista da Primeira República, a sedentarização, o uso de roupas,
o abandono do botoque e de algumas de suas tradições foram nomea-
das com o signo da resistência guerreira e da altivez daquele chefe
que, até o último momento, tomou posição pela preservação de seus
modos de vida na floresta. Sob essa dupla invocação, à maneira de
Atenas na Grécia antiga, florescia o "povo novo" Krenak, que ainda
enfrentaria situações das mais difíceis. Por um lado, homogeneizavam-
-se os subgrupos rivais de Botocudos sob esta designação, que servia
de etiqueta diante da sociedade nacional, embora o fracionamento e a
rivalidade interna não tenham desaparecido, apesar da redução de-
mográfica de seus integrantes. Por outro lado, se as estratégias de
negociação e contato permanente predominaram como única saída
possível, elas se referenciavam, ainda que simbolicamente, a uma prá-
tica de resistência guerreira e ao choque do contato, que gerou trans-
formações e durante tanto tempo marcou a vida desses índios. De
qualquer modo a nova designação externa, Krenak, passa a ser assu-
mida positivamente pelos índios, ao contrário das duas anteriores,
Aimorés e Botocudos.
A única foto que se conhece do chefe chamado Krenak, tirada
em 1910, mostra sugestivamente este índio vestido (assinalado à es-
querda na Figura 71). 26 Estava de calça e blusão compridos, com um
pano (lenço ou gravata) em torno do pescoço, descalço e com botoques
nas orelhas. Tinha uma pistola na mão esquerda. E seu olhar e ex-

26Esta foto e sua identificação constam do acervo particular da família de José


Vieira da Fonseca, participante da expedição do padre André Colli em 1910, d . I . M.
de Mattos (2004, p. 397).
DE BOTOCUDO A KRENAK: CAMINHOS, PONTES E MUROS 385
pressão facial eram altivos, duros, diretos, de tom desafiante e firme.
Em torno dele, um mosaico humano bem representativo daquele
momento: as índias de seu grupo apareciam com panos visivelmente
improvisados para cobrir a nudez; à esquerda da imagem um jovem
índio portava apenas a tanga tradicional enquanto, no canto oposto da
foto, havia outro índio vestido com blusa e calça, mas de botoque.
Entre os índios, por trás e pelos lados, cercando-os, trabalhadores
nacionais. Essa fotografia revela que o chefe K.renak não recusava o
contato com a sociedade nacional (e dificilmente poderia fazê-lo na-
quelas circunstâncias), mas rejeitava a proposta de submissão ou pa-
crncação intermediada pelo governo federal, que implicava perda de
importantes parcelas do território, de alterações substanciais nos modos
de vida, ou seja, resistia ao contato permanente e à incorporação
indiscriminada ou subalterna. A própria fotografia é resultado de uma
negociação, pois seu grupo, que se recusava a usar roupas e mantinha
os botoques, aparece coberto com panos. Ele próprio, K.renak, era o
mais vestido entre os índios e talvez a pistola que portava na mão seja
a chave para entender a aceitação (pelo menos naquele momento da
foto) do uso da roupa. As armas de fogo eram temidas pelos índios
que, justificadamente, atribuíam a elas muito de suas mortes e derro-
tas. O SPI proibiria, daí por diante, o uso de armas de fogo pelos
índios. Qyem sabe a negociação daquele instante com o guerreiro
chefe K.renak não tenha passado pelo recebimento da arma de fogo
em troca do uso da roupa?
Tal foto foi tirada pelo grupo do padre André Colli, que tentava
realizar trabalhos missionários com estes índios às vésperas da fim-
dação do SPILTN e que em 1910 fez uma expedição buscando contatá-
-los ao longo do rio Doce, ocasião em que foram feitas várias ima-
gensY Esse religioso foi o primeiro chefe do Posto Indígena Guido
Marliere, designado para atuar entre os K.renak, mas não teve longa
permanência, sendo logo destituído por Rondon no Rio de Janeiro,
apesar de ter recebido carta de nomeação do próprio presidente da
República, Wenceslau Brás. Rondon alegou que o governo não deve-
ria financiar "padres-nossos e ave-marias" entre os indígenas. Ocor-
ria, em torno do rio Doce, a mesma disputa travada em âmbito na-
cional entre os grupos e propostas que pretendiam ter predomínio
sobre o governo direto dos índios.

27
I. M. de Mattos (2004, pp. 395-7).
386 KRENAK, ALVORECER DO "POVO NOVO"

Figura 71

Ao mesmo tempo, os agentes indigenistas tentavam pacificar o


outro lado. Propunham que o território indígena fosse demarcado em
extensão abrangente, incluindo todas as áreas que as tribos percorriam
como nômades. Isso causou reações como a do senador capixaba}osé
Luís Alves, representando os interesses dos proprietários, enquanto a
Igreja também pressionava contra a intromissão do novo órgão go-
vernamental na seara do contato com os índios. 28 Diante das pressões
o SPI recuou e reduziu a amplitude das terras. Neste vaivém, confli-
tos e negociações, entraram também os próprios índios, a exemplo do
grupo do chefe Muim (fllho de Krenak) que, após ter aceitado a pro-
posta de pacificação indigenista oficial, investiu de maneira ostensiva
contra os que pretendiam ocupar suas terras em 1918.
Como resultado desses embates, em 1920, o governo de Minas
Gerais, então comandado por Artur Bernardes, aceitou destinar ofi-
cialmente quatro mil hectares aos Botocudos, com a mediação do
SPI. Mas a definição da área escolhida mudou, em boa medida, gra-
ças à determinação do grupo de Muim, que indicou preferência pelas
terras em torno do rio Eme, no município de Resplendor, onde então
existia o Posto Guido Marliere, em detrimento da área do rio Pancas,

28 Carta do Sr. Jerónimo Monteiro ao Sr. Antonio Estigarribia, março de 1911,


Museu do Índio, RJ.
DE BOTOCUDO A KRENAK: CAMINHOS, PONTES E MUROS 387
9
inicialmente prevista pelo SPI.2 Os índios do grupo de Muim insis-
tiram e inventaram as mais diferentes estratégias para ali permanece-
rem. O SPI providenciou então, com verba do governo estadual, a
construção de casas de alvenaria no local e a primeira residência a
ficar pronta foi ocupada pelo próprio Muim, que assim atuava neste
jogo de barganhas e conquistas. 30 A área do rio Eme ainda hoje é
ocupada pelos Krenak. É uma parcela ínfima, se comparada à área
que os Botocudos ocupavam um século antes do SPI, na época da
Guerra de 1808-1824. Mas mesmo esta proposta ainda encontraria
oposição forte, fazendo que, na prática, a localização dos trabalhado-
res (e proprietários) nacionais e estrangeiros fosse ganhando terreno
contra a proteção aos índios.
Para consolidar o acordo de 1920 o general Cândido Rondon
esteve neste ano no Congresso de Geografia, em Belo Horizonte,
onde pronunciou expressiva palestra referindo-se aos "valorosos fi-
lhos deste glorioso Estado, nascidos nas florestas do rio Doce, os
dizimados Aimorés que durante séculos, e talvez ainda carreguem, o
terrívellabéu de ferozes". Após elogiar o trabalho de Estigarribia e
realçar "a fé viva na identidade da natureza humana do índio com a
nossa", Rondon afirmava, em relação aos Krenak, que tinham aban-
donado "o arco vingador" e reconhecia: "estamos em dívida para com
eles". O chefe do SPI defendia para estes índios "a propriedade da
terra em que assentam as suas malocas e as suas lavouras, e onde
procedem a suas caçadas". E cobrava mais uma vez do governo de
Minas a promessa, que seria inicialmente cumprida:

[... ] reservar, na margem esquerda do rio Doce, subindo o


Eme, terras bastante para nelas viverem os atuais e futuros fi-
lhos da tribo dos Crenaque, última relíquia da outrora pujante
nação dos Aimoré. 31

O pronunciamento de Rondon era marcante por vários moti-


vos. Atacava diretamente a legenda de ferocidade (que durante muito

29
Cf. M. H. Paraíso (1998a).
30
Relatório dos trabalhos efetuados na Inspectoria deste serviço do Espfrito Santo
durante o ano próximo passado. SPI. Museu do Índio, RJ, 1920, p. 26.
31
Discurso de Rondon citado em A. B. de Magalhães, Índios do Brasil. ..
(1947, p. 60).
388 KRENAK, ALVORECER DO "POVO NOVO"

tempo serviu de justificativa para violências contra tais índios) e con-


trapunha-se ao estigma racial de inferioridade e desumanidade que
ainda vigorava em boa parte do mundo científico. E, em que pesem
os paradoxos de seu protecionismo indigenista, não só defendia a
posse da terra para esses grupos indígenas como incluía nela seus
terrenos de caça, isto é, as áreas que percorriam. E pela primeira vez
um representante do Estado nacional reconhecia formalmente a dívi-
da histórica para com esses mesmos índios, buscando alguma solução
prática e imediata que se contrapunha às violências bélicas oficiais e
das frentes de expansão. Em seu discurso Rondon deixava entrever,
ainda, as diversas faces da política do SPI: ao mesmo tempo que pro-
punha a sedentarização e trabalho agrícola a índios tradicionalmente
nômades e caçadores, deixava aberta a possibilidade de continuarem
a viver em malocas e a caçarem. Todavia, o decreto de 1920 do go-
verno estadual que legalizava as terras dos índios previa a construção
de casas e a repartição de lotes entre eles. Nota-se, portanto, diferen-
ças entre os agentes da sociedade nacional: as disputas entre o SPI e
o governo estadual sobre este ponto permaneceriam. O SPI e seus
agentes, em que pesem esforços e tentativas de intermediação, não
impediam ou controlavam completamente o impulso dos interesses
econômicos nem o peso da coerção governamental.
Como resultado dessa tensão ocorreu em 30 de janeiro de 1923
um massacre no Posto Guido Marliere onde morreram nove índios
Krenak (três homens, duas mulheres e quatro crianças) e sete ficaram
gravemente feridos. 32 A violência foi iniciativa de grupo de trabalha-
dores e pequenos proprietários instalados como colonos nas proximi-
dades e realizou-se à maneira de "matar uma aldeia" típica do século
XIX. Tal episódio atingiu os grupos familiares descendentes diretos
do chefe Krenak e dos N akrehés. Cinco dos assassinos de 1923 fo-
ram absolvidos posteriormente pelo júri, formado por outros colonos
e moradores locais, ao passo que os cinco outros que participaram do
crime nem sequer foram julgados. Outros desses matadores e seus
cúmplices teriam sido mortos por soldados e pelos próprios índios
em vingança, conforme se verá no Capítulo 12.
O evento de 1923 trouxe grande trauma aos demais índios Krenak
e ocasionou uma momentânea fuga de alguns da área do rio Eme

32 M. E . Brêa Monteiro (2004, p. 60); M . H . Paraíso (1998a), I. M. Mattos

(2004) e G. Soares (1992).


DE BOTOCUDO A KRENAK: CAMINHOS, PONTES E MUROS 389
para o posto do rio Pancas (ES), além de ter causado instabilidade à
política indigenista na região. Note-se que esse episódio ocorreu no
mesmo ano de outras situações de violência contra índios no país: os
Kaingang no Paraná sofreram investidas que resultaram em vários
mortos e choupanas incendiadas; além de ameaças e tomadas de ter-
ras pela força de Pataxós na Bahia e escravização de índios no Ama-
zonas.33 Verificava-se assim uma reação contra a política protecio-
nista do SPI que, apesar dos limites, buscava resguardar algumas terras
para determinados grupos indígenas.
Uma das crianças que sobreviveu ao massacre de 1923 ao se
esconder nas matas em torno do rio Eme, Pac (filho de Muim), veio
a ser pai de Djanira (Indjambré), que guarda viva lembrança do epi-
sódio e o narra a seus descendentes em detalhes, ainda com emoção,
como pude presenciar. 34 Embora muitos índios Krenak tenham mor-
rido posteriormente por violências diversas, este foi o último massa-
cre coletivo de maiores proporções e que passou a simbolizar (por
estar presente na memória dos atuais índios que dele souberam por
testemunhas oculares) todos os massacres anteriores. Pela narrativa
oral desse episódio conhecido por eles como "Massacre do Kuparak",
e de outros mais recentes, os índios Krenak tecem a memória e con-
tam a história de violência que seu povo enfrentou durante cinco
séculos de contato.
Entre as consequências práticas do triste episódio, governo esta-
dual e SPI aumentaram a área destinada aos índios, buscando evitar
novas wnas de atrito. Para contornar o trauma e rearticular a política
do SPI na região, o próprio general Rondon visitou os vinte e dois
índios Krenak que ainda persistiam no Posto Guido Marliere (rio Eme)
em 1926, acompanhado de participantes do 8.° Congresso Brasileiro
de Geografia, que se realizava em Vitória. 35 Na ocasião o chefe do
grupo indígena era Juquinhot, que substituíra Muirn, já falecido. Entre-
tanto, entre a chefia de Muim e a de Juquinhot, houve outro chefe,
Krembá, que teria sido morto em conflito interno pelos índios, segundo
relatos orais. 36 Um pesquisador observou então que Juquinhot...

33
Boletim do SPI, 1923, f. 5, Museu do Índio, RJ.
34
V. o depoimento de Djanira (lndjambré) no Capítulo 12.
35 S. F. Abreu. Os índios Crenaques (Botocudos do rio Doce) em 1926 ... ,

p. 13.
36
I. M . de Mattos (1996).
390 KRENAK, ALVORECER DO "POVO NOVO"

[... ] tem um caderno de notas, onde procura registrar fatos


notáveis e os dias em que os índios trabalham nas roças. 37

O mesmo observador constatava que tais anotações do chefe


indígena não obedeciam a "sinais convencionais", embora fossem or-
denadas por rigorosa lógica, que possivelmente foi explicada oral-
mente pelo índio. Cada linha correspondia a um dia de trabalho com
o nome de cada índio. Os signos eram de dois tipos: "pequenos círcu-
los malfeitos, uma espécie de C" e outros que "dão a impressão de um
cicloide mal desenhado". Havia também, como verificou o pesquisa-
dor, o desenho de um revólver no caderno de Juquinhot. O dia da
visita do general Rondon à localidade, por exemplo, estava assinalado
com uma seta, que o diferenciava dos demais dias. "Djimirá Rondão
patchiá quijém borum" ("O general Rondon visitou a casa dos ín-
dios"), explicava Juquinhot.
A iniciativa de escrita do chefe Juquinhot é sugestiva. Ele ex-
pressava uma tentativa de apropriação e reelaboração do uso de códi-
gos escritos que, durante os séculos anteriores, tiveram peso decisivo
na conformação dos códigos sobre tais índios, através de legislação e
também de relatos que compunham a imagem e a história do grupo.
Desse modo, colocava-se uma ortografia calcada em símbolos arbi-
trados por seu próprio autor que, assim, se diferenciava das conven-
ções ortográficas estabelecidas pela sociedade nacional. Tais signifi-
cantes tinham valor evocativo e compunham elementos descritivos
ou narrativos referenciados na realidade por ele vivida, criando, por
meio de elementos gráficos, uma forma de controle, pela escrita, de
seus trabalhos e de suas vidas. Desse modo, os Krenak ensaiavam
formas de contar e registrar sua própria história, diferenciadas das
que até então serviam predominantemente para submetê-los, e busca-
vam extrapolar o limite da transmissão oral. Os significantes em forma
de círculos pareciam aproximar-se das idas e vindas, avanços e recuos,
expressando por meio de movimentos circulares suas experiências e
cosmogonia. Além disso, agregava-se a tais símbolos um ícone, isto
é, o desenho do revólver, quando é sabido que as armas de fogo foram
(e eram) um dos principais instrumentos de sujeição dessas tribos.
Essas iniciativas de formar registras ou acervos com os instru-
mentos e meios da civilização ocidental, mas dentro de seus próprios

37
I. M . de Mattos (1996).
DE BOTOCUDO A KRENAK: CAMINHOS, PONTES E MUROS 391
recursos, persistem entre os Krenak atuais, como pude constatar pelo
considerável acervo de fotos e recortes de publicações guardado pelo
chefe Him, como se verá no Capítulo 12.
Nesse sentido, o destaque da visita de Rondon ao território in-
dígena em 1926 parece ter sido reapropriado e entendido pelos índios
não como gesto unilateral de um grande personagem, como fazem os
relatos oficiais do SPI, mas como um momento de quebra do cotidia-
no do trabalho na roça e, ao mesmo tempo, articulava-se tal persona-
gem de reconhecida projeção nacional à trajetória de vida dos Krenak.
Era alguém que tinha visitado o kijame (maloca ou residência), isto
é, o espaço próprio dos índios. Outras personalidades que visitaram a
tribo no mesmo período não parecem ter sido destacadas nos regis-
tros de Juquinhot. Este sinalizava, assim, as proximidades e alianças
possíveis desse dirigente do SPI cuja ação foi decisiva nos destinos e
caminhos dos Krenak. Um dos atuais índios Krenak, descendente do
grupo de Muim e Juquinhot, filho de Laurita, chama-se Rondon em
seu nome brasileiro - o que evidencia a formação entre estes índios
de um determinado conjunto de narrativas históricas referenciadas no
contato com a sociedade nacional. E, mais particularmente, aponta a
importância por eles atribuída em sua memória coletiva à presença
do fundador do SPI, assim homenageado e de algum modo incorpo-
rado ao conjunto de tradições dessa etnia. "Os tempos do SPI" são
vistos como uma das mais antigas referências históricas pelos atuais
Krenak, que atribuem assim àquele contexto um caráter fundador das
mudanças mais drásticas e perceptíveis em suas vidas. 38
O mesmo chefe Juquinhot foi, segundo relato de Krenaks atuais,
quem batizou o totem que servia como agrupamento para reza, canto
e dança e que foi levado da aldeia (cf. Capítulo 12).39 O nome dessa
madeira de pau, ou Deus dos Índios, Deus dos Botocudos, como a ele se
referem hoje os índios, era também]uquinhot. Vemos assim que este
chefe Juquinhot aparece como elaborador privilegiado de símbolos e
um dos artesãos das tradições do grupo. Além de escrever numa gra-
fia "inventada" e destacar como personagem a figura de Rondon,
Juquinhot erguia outras figuras, como essa madeira sagrada, cuja
perda ainda hoje é sentida pelos índios, servindo-lhes de referência

38Cf. depoimento de Djanira (lndjambré) ao autor, no Capítulo 12.


39
Depoimentos de Maria Sônia Krenak (Tcharn) ao autor em 10-9- 1998 e
12-9-2000.
392 KRENAK, ALVORECER DO "POVO NOVO"

como marco identitário entre o que se construiu e o que se perdeu


em suas vidas.
Apesar das condições desfavoráveis, os Krenak teimavam e tei-
mam em ser detentores, agentes e narradores de sua própria história.

Entre visibilidade e invisibilidade

Após a implantação da presença mediadora do SPI entre os


índios Krenak, estes passaram a viver na complexa e tênue fronteira
entre preservarem a condição indígena, ainda que transformada, e a
integração indiscriminada à população nacional. Desde seu primeiro
relatório, dirigido ao tenente-coronel Rondon, a quem considerava
como "irmão mais velho", o tenente Estigarribia afirmava estar tra-
balhando pela "redempção dos indígenas, contingente precioso na
formação do typo brasileiro". 40 Retomava-se, pois, o conhecido mote
de incorporar e dissolver na argamassa nacional as culturas indíge-
nas, dentro da concepção moderna de nação vigente desde o século
XIX que pregava a homogeneidade política e cultural. Alguns agen-
tes do órgão, como Genésio Pimentel Barbosa, encarregado no Posto
Pancas que atuava diretamente em conta to com os Krenak, assumiam
claramente uma postura hostil em relação às tradições culturais indí-
genas, pregando a necessidade de um "saneamento moral" para "corri-
gir os defeituosos hábitos" e, mais ainda, a "regeneração dos hábitos e
costumes indígenas, destituídos que são de rudimentares princípios". 41
Por outro lado, verifica-se nos mesmos índios (que os discursos
e documentos oficiais apontavam como já civilizados e pacificados)
atitudes que revelavam resistências aos padrões de vida impostos, crian-
do brechas e resguardando traços de suas identidades e padrões cultu-
rais, mediante sofridas negociações e estratégias. Ainda em 1920 anota-
va-se que o grupo chefiado pelo "capitão" Xembruc permanecia nas
matas, evitando o Posto do SPI, cujos relatórios qualificavam tais índi-
os como "grupo arredio e tribo vagabunda"Y Ou o caso dos Nakrehés

40 Relatório apresentado pelo Inspector Estigar;ribia em exercício no Estado do Espírito

Santo, IR4, 1910, fume 166, Funai, Museu do Indio (RJ), p. 108.
41
Relatório apresentado pelo Sr. Genésio Pimentel Barbosa, encarregado do assenta-
mento de máquinas do Posto de Pancas, ao Sr. Inspetor do Serviço de Proteção aos Índios no
Estado do Espírito Santo, dezembro de 1916, Museu do Índio, RJ.
42
Relatório apresentado pelo Inspector Estiga>;ribia em exercício no Estado do Espírito
Santo, IR4, 1910, fUme 166, Funai, Museu do Indio (RJ), p. 13.
DE BOTOCUDO A KRENAK: CAMINHOS, PONTES E MUROS 393
que em 1926 saíram em bando do Posto do rio Eme porque, segundo
o inspetor Samuel Henrique da Silveira Lobo, ainda "guardam o
instincto nômade peculiar aos habitantes do interior" e alegaram que
iam visitar parentes em Itueto, e que só regressariam quando as casas
prometidas a eles estivessem construídas. 43 Havia, como é sabido, an-
tigas divergências tribais entre estes Nakrehés (que haviam sido deslo-
cados para a área do rio Eme) e os Krenak, que aí se encontravam
anteriormente, ambos pertencentes ao mesmo grupo etnolinguístico.
Os primeiros tempos do SPI, que acarretaram um contato inten-
so e permanente desses índios com a sociedade nacional, trouxeram
novos surtos de doenças, em alguns casos epidêmicas. Assim verifica-
ram-se entre 1920 e 1926 epidemias de varíola, sarampo, malária,
bouba, gripe, e constantes manifestações de diarreias e outras infecções.
Muitos índios morreram, outros ficaram incapacitados para o trabalho
produtivo que se esperava deles, alguns preferiam fugir isoladamente
para o mato ou para as cidades. Tais doenças causaram considerável
baixa demográfica entre os índios sob o governo do SPI. No raiar do
século XX as doenças dizimavam mais do que os massacres armados.
Ao mesmo tempo, o órgão indigenista passa a permitir e até
incentivar a presença de colonos brasileiros e estrangeiros no interior
das terras indígenas, mesmo no Posto do rio Eme, cuja área havia
sido cedida oficialmente pelo governo de Minas para os índios, como
já foi visto. Estes novos moradores, embora reconhecidos oficial-
mente como invasores, eram devidamente acolhidos e tinham direito
a se estabelecerem e até de plantarem no interior do território indíge-
na, recebendo faixas de terras próprias para isso. O argumento dos
encarregados do SPI: "assim se vão colonizando, gratuitamente para
os cofres públicos, aquelas paragens". 44 Instalaram-se então, além
dos agricultores brasileiros, três famílias alemãs e austríacas em 1921.
O resultado de tal política foi que, oito anos depois, em fins da Primeira
República, os índios estavam em minoria na área do rio Eme, ainda
chamada de Posto Cuido Marliere. Havia cento e noventa brasileiros,
dezessete estrangeiros e quarenta e sete índios. 45 A tendência parecia

43
Relat6rio dos servifOS eftctuados durante o ano de 1926, SPI, Museu do Índio, RJ.
44
Relat6rio dos trabalhos efttuados na Inspectoria deste servifO do Espfrito Santo
durante o ano pr6ximo passado. SPI. Museu do Índio, RJ, 1920, p. 31.
45
ExposifáO da atuafáo dos trabalhos a cargo desta Inspectoria durante o ano de 1929
findo, SPI- BA e MG, 1930, p. 376, Museu do Índio, RJ.
394 KRENAK, ALVORECER DO "POVO NOVO"

ser a de reforçar a invisibilidade destes últimos como índios, tornan-


do-os, em suas próprias terras, minoritários.
Os trabalhos do SPI, assim como os da Comissão Rondon que
implantava fios telegráficos, foram marcados pela produção de registros
visuais: fotografias e até filmes. 46 Estes materiais compunham, portan-
to, uma certa imagem dos índios, ou apontavam para o modo como
deveriam ser vistos, ou ocultados. No tocante aos Krenak, houve tam-
bém esta profusão de fotos que acompanhou e sucedeu os primeiros
momentos do contato com os agentes indigenistas republicanos. Nessas
fotografias, há uma característica marcante: os índios estavam sempre
vestidos- quando apareciam, pois nem sempre figuravam nas fotos.
Segundo o trabalho de Maria Elizabeth Brêa Monteiro, so-
mente no Posto Pancas (ES) foram tiradas em torno de cem fotogra-
fias entre fins dos anos 1910 e início da década seguinte. 47 E, como
analisou a mesma autora, os índios quase não apareciam na maioria
dessas fotos institucionais, que mostravam florestas desmatadas, casas
em construção, criação de animais domésticos, estradas sendo abertas
e até símbolos nacionais, como a bandeira do Brasil. Os índios foto-
grafados, nestes casos, além de não terem seus nomes identificados,
estavam sempre em atitude de trabalho, na lavoura, na construção de
casas ou na abertura de estradas (Figura 72).

Figura 72

46 Sobre as imagens da Comissão Rondon, v. L. A. Maciel, A nação por um fio ...

e F. Tacca, Ofeitiço abstrato...


47
M. E. Brêa Monteiro (2004).
DE BOTOCUDO A KRENAK: CAMINHOS, PONTES E MUROS 395
Era o avanço do progresso e civilização ocidental incorporando
à nação brasileira estas parcelas dos territórios e seus respectivos ha-
bitantes. Não se buscava mais o exotismo ou primitivismo dos "selva-
gens". Pode-se acrescentar então: o enfoque que dirigia as lentes mudara
e os reduzidos grupos indígenas ainda arredios ao contato nessa re-
gião não eram fotografados. A fotografia passa a ter, nesse contexto,
um caráter nitidamente civilizador, como se o ato de fotografar esti-
vesse vinculado ao de vestir. O enquadramento das lentes correspondia
ao enquadre nas regras do trabalho produtivo e ao abandono dos
padrões culturais como nomadismo, uso de ornamentos e nudez.
Sob tal ângulo, a Figura 73 é sugestiva uma vez que expressa
essa situação de passagem e as mutações que ocorriam na vida dessas
populações. Neste ícone podemos perceber as relações complexas
de um momento híbrido e os diferentes níveis de negociação, resis-
tência e sujeição: a iniciativa do Estado nacional por meio do órgão
indigenista e as condições de vida dos índios, que não estavam ple-
namente enquadrados. A foto pode ser lida em pelo menos dois ní-
veis: o das intenções de seus autores e o das expressões de seus per-
sonagens.
Os objetivos do fotógrafo institucional podem ser captados pe-
las palavras da legenda que acompanha a foto e pela própria compo-
sição do ícone. A legenda, manuscrita com caligrafia da época, no
verso da imagem, diz o seguinte:

Serviço de Localização de Trabalhadores Nacionais. Inspetoria


no Espírito Santo. Índios Aimorés que tomaram parte na turma
de exploração entre o rio Doce e S. Mateus, para a construção
da estrada e que, depois, estiveram na capital do Estado, em
visita às autoridades. Fotógrafo: Alberto Lucacelli. Vitória, ES.
11,3 X 16,7. 28/9/1911. 48

Logo de cara, um sintomático esquecimento: o de colocar a


"Proteção aos Índios" no título do órgão. Em seguida, definia-se a
nomeação de Aimorés, escolhida inicialmente pelos responsáveis do
SPILTN para estes índios, que só nos anos seguintes seriam denomi-
nados Krenak. Coloca-se também que tais indígenas só tiveram im-
portância para serem fotografados porque participaram dos trabalhos

48
Cf. Lata 33, n. 33, I e II, Arquivo IHGB.
396 KRENAK, ALVORECER DO "POVO NOVO"

para construção da estrada. Certamente era a rota que ligaria Colatina


a São Mateus, uma das prioridades do SPILTN na região, cuja cons-
trução era comandada diretamente pelo engenheiro e inspetor Antô-
nio Estigarribia, chefe regional do órgão. Em seguida, finaliza-se
com a visita às autoridades na capital, gesto que, pelo menos desde o
governo de D. João VI um século antes, foi característico das tentati-
vas de subordinação ou de negociações desses índios.
A legenda no verso identifica também algumas pessoas desta
foto, apenas quatro, do numeroso grupo, por numeração manuscrita
inserida na própria fotografia, acima de cada personagem considera-
do importante de ser nomeado. O número 1 é Delfina Chaves, uma
mulher branca de cabelos claros, identificada como "Esposa do Es-
crevente e Professora". O número 2 era Cândido Chaves, "Escreven-
te". O terceiro, Antônio Francisco, "Intérprete". E, por último, "Tex-
xú, Capitão Índio". Ou seja, identificava-se os dois principais agentes
da civilização e da ordem nacional e os dois agentes intermediários
com o grupo indígena.
Está claro que tais identificações estabelecem uma hierarquia
de importância e de poder. Hierarquia que pode ser vista na própria
posição ou pose dos respectivos fotografados: o escrevente (isto é,
escriturário da Justiça) aparece empertigado com seu paletó e chapéu
de coco pretos, além de se destacar pela altura entre as crianças que o
cercavam. Cândido Chaves, como já foi visto, era funcionário e auxi-
liar direto de Estigarribia e um dos encarregados das frentes de con-
tato do SPILTN com os Botocudos. Ele e a esposa emergiam como
espécies proeminentes de representantes da civilização em meio aos
"bugres". A presença destacada de Delfina na foto, esposa de Chaves,
indica como o poder público, ao ser exercido pelos agentes indigenistas
em relação aos índios, continha traços patrimoniais e de clientela
familiar, mesclando o público e o privado nas relações estabelecidas.
O intérprete quase não sai na foto e seu corpo e rosto aparecem cor-
tados pela metade no canto direito da imagem. E o chefe indígena
também quase não se vê: está na última ftleira, só aparece da boca
para cima e com chapéu na cabeça, embora ainda tente erguer o rosto
para aparecer melhor na foto.
Tex-xú ou Tetchuc, variando a grafia, era o mesmo chefe dos
Gutkrak que, meses antes, fora contatado pelos pioneiros do SPI,
conforme foi dito acima. Ele e seu grupo estavam então entre os que
mantinham os "costumes antigos dos Botocudos", andavam nus e não
DE BOTOCUDO A KRENAK: CAMINHOS, PONTES E MUROS 397
falavam português. Tetchuc até afirmara ser canibal, diante das per-
guntas que lhe eram dirigidas, possivelmente por ironia ou para im-
pressionar seu interlocutor. Entretanto, acossados pelas frentes de
expansão, pelas guerras tribais e por doenças, passavam fome e viram
muitos dos seus morrerem em situação desesperadora. Daí, Tetchuc
aceitou o acordo de pacificação, desde que ganhassem terras e ferra-
mentas para cultivá-las. Foi por causa desse movimento de negocia-
ção e aliança que ocorreu um racha entre os Gutkrak, quando Krenak
saiu e criou seu próprio grupo, arredio ao acordo. Trágica ironia do
destino: Tetchuc via agora seu grupo ser utilizado como mão de obra
pelo governo no qual buscava apoio e, apesar de ter escolhido a estra-
tégia de aliança para sobrevivência, foi o nome de Krenak que sobre-
viveu para a memória do grupo étnico e da sociedade nacional.
A mudança na vida desse grupo chefiado porTetchuc foi inten-
sa e rápida, como se vê pela foto, onde todos aparecem vestidos. Pros-
seguimos então nesta outra dimensão da leitura da imagem, isto é,
das poses, expressões e condições de vida estampadas nos corpos dos
fotografados. O que praticamente salta aos olhos nesta fotografia é a
"comissão de frente" das índias jovens e dos meninos de barriga estu-
fada. Se não fossem os garotos, poderíamos até imaginar por uma
fração de segundos que estariam todas grávidas. Mas o que germina-
va em seus ventres era a miséria e doenças. Antes mesmo de cuidar
das condições sanitárias, o governo através do SPILTN colocava-os
para trabalhar, aplacando a sede das frentes de expansão. A penúria
desta tribo consta dos relatos oficiais escritos, mas tal condição pode
ser captada também nesta foto, onde a verminose, as pernas finas e os
rostos endurecidos não se disfarçam pelas roupas padronizadas e mal-
-arranjadas que vestiam. O laço na cabeça de algumas lhes dá um
certo ar patético, de anjos decaídos ou bonecas mal-arrumadas. E
estavam descalços. O não uso dos sapatos (que aparece também nas
imagens de escravos de origem africana do século XIX) era uma
espécie de divisor de fronteiras sociais, demarcando os que, apesar de
vestidos, não pertenciam plenamente aos padrões sociais vigentes, ou
não tinham dinheiro para adquirir calçados. No caso dos índios, evi-
dencia também a condição híbrida em que se encontravam. Oliatro
índias, entre as mais velhas, usavam batoque nos lábios. O grupo
registrado nesta fotografia pisava, com seus pés descalços, uma estrada
que posteriormente seria pavimentada, apagando assim definitivamente
quaisquer marcas de pegada que tivessem ficado. A foto cristalizou
398 KRENAK, ALVORECER DO "POVO NOVO"

não apenas a presença de seus corpos, mas o momento e as condições


em que viviam, as relações que estabeleciam e o caminho que trilha-
vam. Esta tribo desapareceria em pouco tempo, ela sim, devorada
pela sociedade nacional.

Figura 73

Outra imagem sugestiva produzida pelo SPI foi a do "capitão"


Nazaré, com a seguinte legenda: "Grupo de Índios Aimorés. Posto do
Pancas, Estado doES, 12 x 17", sem data indicada. Colada no alto da
foto, outra legenda datilografada: "Inspetoria do Espírito Santo". E,
em grafia manuscrita, no verso, lê-se o nome de Nazaré (acompa-
nhado de seu nome indígena, Oropa [duas letras finais ilegíveis] e,
em escrita bastante apagada dificultando a compreensão, os nomes
indígenas dos três jovens que o acompanhavam (Figura 74). 49 A data
e circunstância desta foto podem ser situadas no relatório do SPI de
1920 que se refere à viagem de Colatina ao Posto Pancas do "nosso
capitão Nazareth e mais três índios [que] quiseram acompanhá-lo". 50
O objetivo da viagem foi levar esse chefe indígena, cujo grupo habi-

49
Cf. Lata 33, n. 0 33, I e II, Arquivo IHGB .
50
Relatório dos trabalhos efetuados na Inspectoria deste servifO do Espfrito Santo
durante o ano próximo passado. SPI. Museu do Índio, RJ, 1920, p. 1.
DE BOTOCUDO A KRENAK: CAMINHOS, PONTES E MUROS 399
tava nas proximidades de Colatina na fronteira de Minas com Espí-
rito Santo, até o Posto Pancas (ES), para tentar convencê-lo a se
transferir para lá. A viagem foi toda feita debaixo de chuvas torren-
ciais. Mesmo tendo concordado com a ida até lá acompanhando a
equipe do SPI, entretanto, o chefe índio não aceitou ficar definitiva-
mente, alegando cansaço e distância. Os mais jovens que foram com
ele, todavia, "gostaram muito e querem ir", segundo o mesmo relato
oficial. A fotografia, portanto, foi tirada neste momento de negocia-
ção, tornando o ícone um dos elementos desse "diálogo". Os índios
em questão ganhavam visibilidade nos registros escritos e iconográ-
ficos uma vez que eram considerados como possíveis aliados do ór-
gão governamental.
O "capitão" Nazaré parece ter tido, inicialmente, esta habilidade
de sobrevivência e foi outro dentre os Botocudos que dialogou na-
quele momento com a proposta de "pacificação". Ao ser contatado
nos idos de 1911 pelo SPILTN, os homens de seu grupo usavam
apenas uma pequena tanga, como já foi citado acima. Mas a imagem
que temos dele é sem sinal de uso de botoque e enfatiotado numa
roupa padronizada: sem olhar agressivo, encarava diretamente a câ-
mara, num misto de firmeza e tranquilidade. Estava em pé e recosta-
do num móvel de madeira trabalhada, segurando um pano que, ale-
goricamente, pode ser compreendido como um lenço da paz, bandeira
branca. Os quatro estão vestidos e calçados, o que indica a importância
a eles atribuída naquele momento ou o esforço para agradá-los e
trazê-los ao Posto, embora o rapaz sentado à direita da imagem apre-
sente um certo ar de desconforto- quem sabe pelos sapatos apertados?
O mesmo relatório do órgão indigenista refere-se a Nazaré de
forma elogiosa como "um índio ativo e bom diretor de sua gente" e
que possuía, na ocasião, "boas roças e algum gado". Entretanto, como
a se precaver de possíveis reclamações, vinha narrado logo a seguir
que certo dia, no povoado de Resplendor, Nazaré "embriagou-se, pra-
ticando muitos desatinos". Sugeria-se, portanto, que ele não estava
plenamente enquadrado - o que contrariava os mesmos registros
escritos e iconográficos que pretendiam atribuir-lhe a imagem de um
"bom índio". Tal desconfiança de ambiguidade coincide com o teste-
munho do engenheiro Ceciliano Abel de Almeida que, em viagem
pelo rio Doce, referiu-se aos "bugres do capitão Nazaré" que, segun-
do ouviu de alguns moradores da região, eram "mansos sim, quando
lhes dão roupas e eles vestem-nas, mas quando entram, de novo, na
400 KRENAK, ALVORECER DO "POVO NOVO"

mata, e despem-nas, tornam-se bravos como dantes". 51 Vestidos para


ou pela fotografia, ganhando visibilidade por sua capacidade de apro-
ximação e contato, Nazaré e os índios de seu grupo, que mantinham
ao mesmo tempo nomes tribais e nomes em português, criavam bre-
chas neste enquadre, com negociadas estratégias de resistência.

Figura 74
DE BOTOCUDO A KRENAK: CAMINHOS, PONTES E MUROS 401
Havia, pois, esta mistura de visibilidade e ocultação das identi-
dades indígenas, seja através de estratégias de resistência e sobrevi-
vência, quanto de tentativas de subordinação e eliminação dos pa-
drões culturais, gerando situações híbridas e mutações étnicas, entre
perdas e ganhos. Curioso paradoxo: ao mesmo tempo que os Krenak
eram induzidos a se confundirem com a população nacional, ainda se
mantinha em torno deles uma parcela da curiosidade e da fama dos
"temíveis Botocudos". As visitas de personalidades e pesquisadores
nacionais e estrangeiros eram frequentes.
Nas três primeiras décadas do século XX, mantendo acesos os
holofotes em torno de tais índios, estiveram presentes nos Postos In-
dígenas dos Krenak diversas personalidades do mundo da política e
da cultura. Visitaram-nos, acolhidos formalmente pelo SPI: Henri
Borel e Charles Montzé (da Embaixada da Bélgica) em 1921, que
exaltaram por escrito a "missão civilizadora" feita com os índios; Eli-
zabeth (Bessie) Steen, conhecida antropóloga norte-americana espe-
cialista em artes indígenas, considerada a primeira pesquisadora "bran-
ca" a viajar pela floresta amazônica e diretora da Universidade de
Artes e Ofícios da Califórnia, bem como o governador do Espírito
Santo, Florentino Ávidos, possivelmente ávido (o trocadilho é
irresistível) para tratar de assuntos pragmáticos, além do general
Rondon, todos em 1926.52 Em 1929, foi a vez de representantes da
Embaixada e do Consulado da França encontrarem os mesmos ín-
dios, acompanhados do professor Maurice Caullery, importante bió-
logo e zoólogo, autor de vários livros e membro de diversas institui-
ções científicas internacionais, entre as quais o Institut de France. 53
Além desta espécie de "turismo étnico", outros pesquisadores
estiveram entre os Krenak no mesmo período, produzindo e publicando
trabalhos, como os casos já citados do russo Henri Manizer (1915) e
Sylvio Fróis de Abreu (1926), além de Antônio Carlos Simoens da
Silva (1924) e Curt Nimuendajú (1939).
O moderno pensamento etnológico e antropológico produziu,
assim, suas primeiras reflexões sobre os Krenak por intermédio de
Manizer, de Nimuendajú e de Alfred Métraux (1930) que, mesmo sem

51
Citado em I. M . Mattos (2004, p. 192).
52
Relatório dos serviços eftctuados durante o ano de 1926, SPI, Museu do Índio, RJ.
53
Exposição da atuação dos trabalhos a cargo desta Inspectoria durante o ano de 1929
findo, SPI- BA e MG, 1930, p. 376, Museu do Índio, RJ.
402 KRENAK, ALVORECER DO "POVO NOVO"

estar em contato direto com tais índios, elaborou um importante tex-


to sobre eles.
As análises de Métraux & Ploetz foram as primeiras que, de
modo mais consistente e direto, dialogaram, criticaram e desconstruí-
ram o arcabouço teórico-científico da antropologia física e evolucio-
nista no tocante aos Botocudos. 54 Baseado na releitura crítica dos nu-
merosos trabalhos anteriores, desde os primeiros estudos até os então
recentes antropólogos oitocentistas, Métraux punha em evidência os
"viajantes repletos de preconceitos" e o determinismo físico que gerava
concepções e imagens de inferioridade sobre tais índios. Reflexão
desenvolvida com mais clareza no capítulo 25 do trabalho, sugestiva-
mente chamado ''As capacidades intelectuais dos Botocudos", no qual
destacava a capacidade de adaptação e conhecimento do meio ambiente
desses indivíduos e associava os discursos depreciativos aos interesses
sobre as terras dos índios. Métraux também discutiu de modo pionei-
ro a noção de Direito entre os Botocudos, bem como aspectos essen-
ciais de suas cosmologias, crenças, rituais e organização social.
Alfred Métraux (1902-1963), suíço de formação norte-america-
na e francesa, foi um dos mais fecundos antropólogos do século XX,
publicando cerca de duzentos e cinquenta títulos (com ênfase nos
estudos americanistas), renovando o conhecimento de diversos temas
que abordou, e foi o principal organizador do Handobook of South
American Indians (1946-1950), além de militante em favor dos direi-
tos políticos e culturais das populações indígenas através da Unesco e
de outros órgãos.
Destacam-se também as pesquisas do alemão naturalizado bra-
sileiro Curt Nimuendajú (1883-1945) que esteve no Posto Indígena
do rio Eme nos anos 1930 onde recolheu mitos, vocábulos e costu-
mes que ajudam a conhecer em mais profundidade a cultura desse
povo. 55 Nimuendajú, sobrenome guarani adotado por Curt Unkel,
vinculou-se ao SPI e durante quatro décadas percorreu o Brasil con-
vivendo com os mais diversos grupos indígenas, morando entre eles,
aprendendo suas línguas. Dessas atividades resultaram cerca de seis
dezenas de trabalhos consistentes sobre religião, mitos e morfologia
social, além da elaboração do conhecido Mapa etno- histórico do Brasil,

54
A. Métraux & H. Ploetz. La civilisation matérielle et la vie sociale et
religieuse des indiens Zê du Brésil méridional et oriental . . ., 1930.
55
C . Nimuendaju. Social organization and beliefs ofthe Botocudo ofEastern
Brazil . .. , 1946.
DE BOTOCUDO A KRENAK: CAMINHOS, PONTES E MUROS 403
onde indicava, aliás, os diversos subgrupos de Botocudos que conhe-
ceu ou soube da existência, ressaltando os nomes específicos de cada
um deles e não a denominação genérica. 56 Foi Nimuendajú quem
parece ter se apropriado do único totem existente entre os l<Ienak,
sem o conhecimento ou consentimento destes, que ainda hoje lamentam
a perda. O objeto encontra-se no Museu Paraense Emílio Goeldi. 57
Deslocando-se da produção acadêmica para a cultura de massas,
a imagem dos Botocudos se espraiava pela propaganda e pelos mer-
cados fonográfico e editorial. Até mesmo a publicidade comercial de
meados do século XX ensaiaria uma certa apropriação da imagem
desses índios como "produtos típicos" e "antigos" do Brasil. Veja-se o
caso das famosas estampas Eucalol (Figura 75), que traziam sucintas
informações históricas e geográficas sobre tal grupo, associados aos
infcios do Brasil. A legenda da estampa tinha o seguinte teor:

Vivem nas florestas entre Rio Prado e Rio Doce. Andam intei-
ramente nus e pintam o corpo. Antigamente eram antropófa-
gos. São polígamos. Acreditam que quando morrem se trans-
formam em jaguar. Fabricam arcos, massas de madeira e
machados de pedra.

Nesta mistura anacrônica, a estampa Eucalol descrevia condi-


ções de vida destes índios que já não correspondiam mais àquele tem-
po presente. Mas de qualquer modo eram inofensivos (deixaram de
ser antropófagos ... ) e primitivos (machado de pedra), embora ainda
exóticos, daí o interesse que podiam despertar para a propaganda.

Figura 75

56
C . Nimuendaju. Mapa etno-histórico . ..
57
Cf. I. M. Mattos, 2004, cit., p. 138.
404 KRENAK, ALVORECER DO "POVO NOVO"

Neste campo fértil da indústria cultural temos a curiosa mar-


chinha composta para o Carnaval de 1933 por Noel Rosa e João de
Barro (Braguinha):

Meu bisavô
que era um índio Botocudo
devorou a tribo inteira
com pajé, cacique e tudo!
E a minha avó
que comia à portuguesa
deglutiu meus dois avós
e ainda quis a sobremesa!

Nota-se nesta divertida letra, cujo ritmo da animada melodia


bem se adaptava aos festejos carnavalescos e foi gravada pela RCA
Victor, um registro híbrido em relação aos Botocudos. De um lado,
mantinha um pé na tradicional legenda de ferocidade e canibalismo,
além de destacar a autofagia. O Botocudo que devorou a própria
tribo, ou seja, a si mesmo. Os Botocudos somos nós mesmos, pare-
ciam dizer Noel e Braguinha.
Tal referência parece ter passado pelo crivo do Modernismo,
quando a antropofagia torna-se uma afirmação metafórica do naciona-
lismo cultural e na qual os índios, vistos como antepassados, devora-
vam carne humana num saudável festim. Interessante assinalar que
tanto no Manifesto Antropofágico (de 1928) de Oswald de Andrade
quanto na Revista deAntropofogia da mesma data o paradigma predo-
minante do "índio bom'' (neste caso, o canibal) era o Tupi, com nítida
influência dos livros de Hans Staden, Jean de Léry e de outros textos
do período colonial. Apesar da ruptura estética e cultural que prati-
cavam, os modernistas herdavam dos românticos a mesma simpatia
pelos Tupis. 58
Também num registro irônico e com certa dose de ambiguidade,
o conhecido escritor e polemista Monteiro Lobato forjou a expressão
"Botocúndia" na primeira metade do século XX para apelidar oBra-
sil: era uma versão ampliada e coletiva do Jeca Tatu para caracterizar
criticamente a nação e suas mazelas. Desse modo, o nome Botocudo
ainda aparecia (pela propagação das editoras empresariais na qual

58
O. de Andrade e outros. R evista de Antropofogia. ..
DE BOTOCUDO A KRENAK: CAMINHOS, PONTES E MUROS 405
Lobato teve destaque) como antagónico ao progresso, à maneira do
século XIX, e servia para rotular, num humor com dose autodepreciatíva
(ou autofágica também) o Brasil visto pela ótica do atraso, associado
ao apelido de tais índios.
A partir daí, entretanto, embora permaneça como referência
cultural pejorativa, o nome Botocudo se descola do grupo indígena
existente. E se inicia outro perfu de produção intelectual, acadêmica
e da elaboração de imagens em torno dos Krenak. Mediante releitura
do passado, ou coleta dos fragmentos do presente, realiza-se a ruptu-
ra com os paradigmas do século XIX. Mas havia um descompasso.
Tais estudos poriam em evidência e até valorizariam os padrões cul-
turais indígenas e, saindo da órbita do evolucionismo racial, não se
vinculariam mais à perspectiva de colonização e integração nacional
homogeneizadora. Mas à medida que estas novas referências eram
compostas, as condições de vida desse povo, ao contrário, se torna-
vam mais sofridas e sufocantes.
Capítulo 11
NA ARCA DE NOÉ,
A SOBREVIVÊNCIA POR UM FIO

N a segunda metade do século XX os índios outrora cha-


mados de Botocudos viveram seu momento mais difícil, a tal ponto
que foram dados, oficialmente, como extintos. Dispersão, queda
demográfica, perda de todas as suas terras com despejos e degredos,
mortes sucessivas e trágicas, prisões, perseguições ainda violentas e
situações de clandestinidade somaram-se para compor um quadro de
invisibilidade social extrema. A sobrevivência dos Krenak como iden-
tidade específica esteve por um fio.
Desde 1957 o antropólogo Darei Ribeiro, que se notabiliw u,
entre outros aspectos, pela defesa das terras e das culturas indígenas,
afirmou todavia que os Krenak estavam extintos, afirmação que man-
teria em seus livros reeditados ainda em meados dos anos 1990. Ba-
seado em dados do órgão indigenista oficial, ele desenvolveu análise
na qual apontava que nas áreas de economia agrícola se encontrava a
proporção mais alta de tribos extintas (indicando a quantidade de
sessenta por cento), com ênfase nas faixas de terras próximas à costa
atlântica. E afirmava que até o primeiro quartel do século XX esta-
vam "reduzidos a pequenos bandos apavorados e inteiramente desca-
racterizados por um século de choque sangrento com os civilizados
todos os grupos Botocudos e Pataxós de Minas Gerais, Espírito San-
to e Bahia, que já não existem".1 Além de baseadas em relatórios
oficiais, as conclusões de Darei Ribeiro deram-se inicialmente num
momento em que o protagonismo indígena não era dos mais evi-

1
D . Ribeiro. Os índios e a civilização. .. , pp. 275-6.
406
NA ARCA DE NOÉ, A SOBREVIVÊNCIA POR UM FIO 407
dentes e incluiriam o período em que os Krenak ficaram sem territó-
rio próprio.
Entre final dos anos 1950 até meados dos anos 1990 desenro-
lou-se, portanto, um período decisivo na vida dos Krenak, no qual
chegaram a perder não só as terras, mas também o reconhecimento
legal de sua existência como grupo específico. Foi um tempo de diáspora
e de exílios no qual ficou evidente que, mesmo sem área própria, man-
tiveram e até reforçaram seus laços de identidade cultural que, atacada
e modificada, permanecia e se recriava, por meio da língua, das relações
de parentesco, da memória coletiva e do apego a determinado território
(em torno dos rios Eme e Doce) que serviu como ponto de agluti-
nação.2 E, por meio de um habilidoso e corajoso movimento de resis-
tência, persistiram, ganharam aliados, enfrentaram inimigos e efeti-
varam a Reconquista de parte de seu território e do reconhecimento,
pela sociedade nacional, de suas condições étnicas diferenciadas.
Esse processo foi conduzido, basicamente, por duas gerações
de Krenak: uma, de mais velhos, nascida em torno dos anos 1910-20
(equivalente aos filhos e netos dos chefes indígenas que haviam efe-
tivado os primeiros contatos com o SPI) e que faleceu sem obter a
"terra prometida"; outra, mais nova, nascida nos anos 1940-50, cres-
ceu em conjuntura difícil, mas levou adiante e conseguiu efetivar a
nova etapa da luta deflagrada pelos pais, garantindo a posse das terras
e alavancando o reforço cultural e político. Essas duas gerações for-
maram uma espécie de arca de Noé, quando atravessaram um quase
impossível e avassalador dilúvio, reduzidas, em alguns momentos, a
cerca de vinte pessoas agrupadas, incluindo jovens e crianças peque-
nas. Muitas vezes esfarrapados, desmaiando de fome e acossados por
doenças, compuseram episódios com traços épicos, incluindo longas
marchas, isolamentos prolongados e repressões policiais militares.
O ressurgimento do grupo indígena correspondeu, por sua vez,
a um novo e expressivo conjunto de produções intelectuais e elabora-
ções de imagens, geradas direta ou indiretamente pela luta dos Krenak,
apresentando diferentes níveis de vínculo e solidariedade com tal mo-
vimento. Tal processo dos anos 1950-1990 ganhou, ao fim, conside-
rável visibilidade, com a coleta de depoimentos de protagonistas e

2 Sobre a importância e características da identidade étnica Krenak neste

contexto, v. os trabalhos já citados de I. Missagia de Mattos (1996 e 2004), L. Seiki


(1992), S. Marcato (1979), eM. H . Paraíso (1982, 1998a e 1998b).
408 KRENAK, ALVORECER DO "POVO NOVO"

com a presença de pessoas e grupos de apoio, organizações da socie-


dade civil, antropólogos e imprensa que, também, participaram em
diferentes instâncias desta Reconquista.

Bombas rompem o cotidiano

Já em 1940 haviam sido descobertas jazidas de mica no territó-


rio indígena do rio Eme, afluente do rio Doce, onde os Krenak esta-
vam oficialmente instalados pelo SPI, local em que, entretanto, se
encontravam em minoria desde meados dos anos 1920, como já se
viu. 3 Também ao longo dos anos 1930-1940 o Posto Indígena de
Pancas foi sendo desativado, embora dados oficiais publicados em
1947 ainda o dessem como existente e abrigando alguns Nakrehés e
outros indivíduos de subgrupos Botocudos. 4 Os índios do Pancas
foram levados, aos poucos, para o Posto Guido Marliere (rio Eme),
que passou assim a abrigar todos os antigos subgrupos de Botocudos.
Estavam, pois, encurralados: tirados de um lugar para outro e, neste,
colocados em minoria e cercados de perto por interesses econômicos
alheios aos índios, como os dos colonos que exploravam em suas
terras agricultura, pecuária e jazidas minerais.
Uma série de setenta fotos e um filme curta metragem, feitos em
1946 pelo SPI, compõem determinada imagem do Posto Guido Marliere
e dos Krenak. A exemplo do material fotográfico do Posto Pancas (cf.
capítulo anterior), a ênfase das fotografias recai também nos imóveis,
criação de gado, plantações, pastagens e índios trabalhando. Por sua
especificidade, esse conjunto de fotos e do filme, feito por um fotógrafo
profissional, Heinz Forthrnann, apresenta outros elementos: o destaque
para a presença do então diretor do SPI (que aparecia várias vezes,
única pessoa identificada nas legendas), índios recebendo comida e
atenção dessa autoridade e o enquadre estético de belas paisagens.
Esse material audiovisual surgiu para registrar a viagem de Ins-
peção do diretor do SPI, Modesto Donatini Dias da Cruz, ao Posto
Indígena Nacional Guido Marliere (IR.4) no vale do rio Doce, Mi-
nas Gerais em dezembro de 1946. 5 Ou seja, no ano seguinte ao fim

3
Cf. Dossiê de 1940 sobre direito de exploração de jazida de mica... Arquivo
do Museu do Índio (RJ).
4
Sobre o fun do Posto Pancas, v. M. E . Brêa Monteiro (2004) e A. B. Maga-
lhães (1947).
NA ARCA DE NOÉ, A SOBREVIVÉNCIA POR UM FIO 409
do Estado Novo. O próprio nome que os Postos do SPI passaram a
adotar e que nomeou o ftlme realizado na localidade é sugestivo:
Cuido Marliere- Um Posto Indígena de Nacionalização. Mantinha-se,
na verdade, a mesma linha oficial de incorporação e homogeneização
das culturas indígenas à sociedade nacional. E o clima nacionalista
que se reforçava na época, também entre o pensamento de esquerda,
contribuía para fortalecer essa concepção de incorporação das popu-
lações indígenas. A especificidade dos padrões culturais indígenas
dos Krenak em nenhum momento era enfocada pelas lentes do fotó-
grafo e cineasta, nem como etnografia, nem como exotismo.
É interessante anotar que Forthmann era um experiente e com-
petente cinegrafista e fotóW'afo da equipe permanente do Conselho
Nacional de Proteção ao Indio (CNPI, órgão dirigido por Rondon
ao qual estava subordinado o SPI) e, como tal, já viajara por todo o
Brasil capturando imagens das mais diversas tribos. Estivera, por exem-
plo, três anos antes dessas imagens dos Krenak, nas florestas do Xingu
à frente da expedição financiada pelos Diários Associados e coorde-
nada pelo jornalista Edmar Morel atrás da elucidação do sumiço do
coronel Percy Fawcett, ocasião em que filmou e fotografou quase
todas as tribos da região onde ainda não havia reserva indígena, dan-
do ênfase, nesse caso, aos aspectos e costumes dos índios enquadrados
como "selvagens". Ou seja, Forthmann sabia tirar fotos de qualidade e
valorizar a presença indígena, desde que isso fizesse parte das diretri-
zes institucionais para que trabalhava.
O prédio da escola construída pelo SPI aparece com destaque
em várias imagens (Figura 76). Chamada da "Escola Indígena Vatu",
era portadora desta duplicidade: considerada indígena por se destinar
a essas populações e batizada com o nome, na língua Krenak, do rio
Doce (Vatu, Uatu ou Watu), ensinava somente em português, como
então se fazia em todas as instituições semelhantes, com professores
brasileiros, não índios. Na porta da escola há um homem de jaleco
(provavelmente o professor) e um índio, cujos rostos não se distin-
guem, pois a intenção do enquadre, pela distância, era abarcar a fa-
chada do prédio, não as pessoas, que aparecem como figuras acessó-
rias do edifício institucional.

5
Informações sobre tal acervo e reproduções dessas fotos encontram-se na
Base de Dados do Museu do Índio (RJ), acessível também por internet: <www.
museudoindio.org.br>.
410 KRENAK, ALVORECER DO "POVO NOVO"

Figura 76

Entretanto, havia um processo de aprendizado paralelo que não


passava pela escola institucional, não se registrava pelas fotos, nem
aparecia nos textos oficiais, mas que emerge em relatos orais: neste
mesmo período algumas famílias Krenak ainda falavam "na língua"
entre si, que é como se referem ao falar Krenak (Borum). "Eu apren-
di quando era pequena, meu pai e minha mãe, antes de chegar capi-
tão Pinheiro os chefes não ligavam, né? Aí a gente conversava na
língua. As coisas que precisava de falar na língua falava e não proibi-
am não", lembra Laurita (Tacrukinic), nascida em 1943, bisneta do
chefe Krenak. 6 Laurita era filha de Sebastiana (Tacruk), por sua vez
filha de Muim e, portanto, neta do "capitão" Krenak. Laurita aludia
ao período posterior, da ditadura civil-militar, quando os Krenak seriam
proibidos de falar sua própria língua, como se verá no capítulo seguinte.
Note-se que Sebastiana (nascida em 1913) e Laurita nos anos 1940
tinham dois nomes, o brasileiro e o Krenak. E viviam numa situação
de bilinguismo, na qual o Borum era usado no âmbito doméstico e
familiar. Da mesma forma Maria Sônia (Tcharn), nascida em 1944
também na área do Posto Guido Marliêre e filha de Joaquim Grande
(Nuknak, o principal líder da resistência nos anos seguintes), ainda
hoje é uma das que fala fluentemente "na língua''. Ela recorda:
Oliem sabia contá história é papai. Ih, mas ele contava história
e nós ficava bem escutando ... 7

6
Depoimento de Laurita Félix Krenak (Takrukinic) ao autor, 13-9-2000.
NA ARCA DE NOÉ, A SOBREVIVÊNCIA POR UM FIO 411
Havia, pois, outras instâncias pedagógicas, baseadas nos laços
de família e que asseguravam, de algum modo, a transmissão das
tradições, da língua e das identidades étnicas, que assim conviviam, se
adaptavam e persistiam no interior da estrutura montada pelo Estado
nacional no território indígena. E esta transmissão cultural indígena
não era apenas paralela, mas até resistia ou se contrapunha à institui-
ção escolar nacional, como indica a mesma Laurita:

Antigamente os índios não gostava de ficar ensinando a ler por


causa disso, porque aí aprendia mais negócio de branco. 8

Com o tempo das rígidas e secas fotos da antropometria


etnográfica já ultrapassado, a fotografia se dirigia para um filão esté-
tico bastante explorado, aliás, pelos desenhos e pinturas dos viajantes
naturalistas do início do Oitocentos, ou seja, ressaltar a beleza das
paisagens pela composição de elementos e tons, como na Figura 77.
Juntava-se, como se diz, o útil ao agradável, pois a presença de gado
se alimentando e a construção de casas se aliava à contemplação da
natureza. Entretanto, a paisagem, apesar desse esforço estético, apa-
recia desmatada, em contrate com as florestas de gigantescas árvores
que caracterizavam a região um século antes.

Figura 77
7
Depoimento ao autor em 11-9-1998.
8
Depoimento de Laurita Félix K.renak (Takrukinic) ao autor, 13-9-2000.
412 KRENAK, ALVORECER DO "POVO NOVO"

A imagem do Posto Guido Marliere completava seu perfil da


nacionalização pelo registro do trabalho (Figura 78). No caso, traba-
lho infantil, com duas crianças Krenak em atividade de carpintaria. O
fato de crianças indígenas serem levadas a pesados trabalhos manuais,
vestidas de roupas e inseridas em escola onde não aprendiam suas
línguas originais não parecia apresentar-se como um problema para
os dirigentes do órgão oficial indigenista. Afinal, esta seria uma for-
ma de, desde cedo, torná-las cidadãos nacionais úteis e produtivos.

Figura 78

A presença do SPI se fazia na distribuição da merenda, cuja


cena ocupou onze das setenta fotos da série, como nas Figuras 79, 80
e 81. Na Figura 79, os índios aparecem agrupados aguardando adis-
tribuição (feita por uma mulher branca) de uma mesa que, aliás, não
era das mais fartas. O close no garotinho (Figura 80) mostra a fome
com que ele ataca o salgadinho, sem se importar muito com a proxi-
midade da câmara: trata-se de Gabriel (fllho de Sebastiana e irmão
de Laurita) que, anos depois, morreria de forma trágica quando ten-
tava voltar ao território Krenak, de onde sua família tinha sido expul-
sa. Na Figura 81 o diretor do SPI aproveita para aparecer no meio
dos pequenos Krenak que, ainda assim, dão mais importância à comida
e não param de mastigar. Nesses casos o fotógrafo colheu flagrantes
NA ARCA DE NOÉ, A SOBREVIVÊNCIA POR UM FIO 413
com certa dose de espontaneidade. Ainda que discretamente, fugia
das diretrizes institucionais, ao mostrar os corpos dos índios em mo-
vimento próprio, mastigando com fome e sem se impressionarem
com o dirigente do SPI, bem como a tentativa deste de parecer pró-
ximo a eles soando artificial.

Figura 79

Figura 81
414 KRENAK, ALVORECER DO "POVO NOVO"

O único rosto indígena a merecer destaque aparece em oito


imagens: três acompanhado do diretor do SPI e cinco em dose, sozi-
nho, como na Figura 82. Mas sua identificação na legenda é lacônica:
"velho índio Krenak". Talvez por achar o rosto expressivo e fotogêni-
co o fotógrafo deve tê-lo enfocado. É provável que tal índio tivesse
um peso maior no seu grupo, mas o fotógrafo institucional não atri-
buiu importância o suficiente para nomear-lhe. Q!em sabe mereceu
atenção por ser exemplar de uma "espécie em extinção"? Pela estima-
tiva da idade, em torno dos setenta anos, este índio deve ter nascido
em meados da década de 1870 e, portanto, foi um dos protagonistas
dos primeiros contatos com o SPI, além de certamente ocupar um
lugar importante na hierarquia interna dos Krenak, então reduzidos a
poucas famílias. O rosto dessa fotografia se assemelha bastante ao de
José Alfredo de Oliveira (Him), nascido também nessa área em 1944.

Figura 82
NA ARCA DE NOÉ, A SOBREVIVÊNCIA POR UM FIO 415
As fotos pretendiam, como está anotado em algumas legendas,
registrar o "cotidiano" do Posto Indígena Guido Marliere, bem como
a visita do diretor do órgão indigenista. Nesse sentido, reproduzem-
-se nesta série: gado pastando, paisagens, casas, trabalho produtivo,
paisagens, gado pastando, casas ... além da presença "protetora" do
Estado nacional brasileiro. Estão ausentes dos ícones as figuras hu-
manizadas e caracterizadas do conjunto dos índios Krenak, com seus
nomes, rostos e complexas condições de vida. Era como se, cento e
dois anos depois de serem fotografados pela primeira vez, os índios
deste grupo étnico, em virtude das transformações que sofreram, ti-
vessem perdido o atrativo.
As fotos omitem também deste "cotidiano" os não índios que
àquela altura, como já foi visto, eram maioria na localidade, a exercer
e se beneficiar das atividades produtivas. Era, pois, uma imagem bem
talhada a determinados ângulos pela fotografia. Tudo parecia ir às
mil maravilhas no caminho do progresso e da nacionalização, sob a
égide do Estado brasileiro. Desse modo, ainda que de maneira este-
ticamente agradável, tais fotos institucionais contribuíam para o lento
e paulatino trabalho de invisibilidade de tais índios, ao mesmo tempo
que acobertavam os que cobiçavam suas terras- situação que resul-
taria, nos anos seguintes, em momentos dramáticos, visando a extinção
dos Krenak.
Combinando os depoimentos dos Krenak atuais com a documen-
tação (textos e fotos) dos anos 1930-50, percebe-se que havia neste
"cotidiano" um certo equihôrio. Ouvindo as vozes dos índios sobre
seu passado recente, levando em conta suas estratégias e criatividades,
fica difícil, pois, manter apenas uma crítica de tipo negativista quanto
à atuação oficial e às tentativas de nacionalização homogênea, que
não tinham efeito absoluto e avassalador. Aparentemente esquecidos
e tidos como bem-comportados nesse período, esses índios, numa
condição subalterna, obtinham, entretanto, uma certa tranquilidade.
Já não eram mais foco espetacular do modismo intelectual e científi-
co que antes os buscava, com avidez, para transformá-los em objetos
de pesquisa. Estavam ali quietos no estreito canto deles. Na situação
estabelecida (ainda que colocasse os índios em desvantagem) havia
certo espaço ou brechas, mesmo que não visíveis ou institucionais,
onde os índios podiam de algum modo preservar, transmitir e recriar
suas identidades. Vivendo de forma aguda esta condição híbrida sob
a tutela direta do Estado nacional, minoritários em sua própria terra,
416 KRENAK, ALVORECER DO "POVO NOVO"

eles guardavam, discretos, certos espaços de identidade Borum e não


eram perseguidos por isso. Entretanto, este equilíbrio seria rompido,
literalmente, de modo explosivo.
O primeiro episódio que detonou todo o processo que duraria
em torno de quatro décadas de turbulência na vida dos Krenak foram
duas bombas que explodiram na sede do Posto Indígena, destruindo-
-o, em 1958. O evento chocou índios e funcionários e tornou o local
foco de repressão e investigação policial, além de causar o abandono
da área pela administração do órgão indigenista. Numa cronologia
específica para os Krenak, pode-se dizer que o período da repressão
militar direta começou sobre eles neste ano (antecipando-se à con-
juntura brasileira em seis anos) e se estenderia até meados da década
de 1980.
Embora sem deixarem feridos, as bombas foram marcantes
mesmo nas crianças e ainda hoje são lembradas como início de um
processo. Ao contar a "história da luta", invariavelmente os atuais
índios começam com este episódio. Como no caso de José Alfredo
(Him):

Jogaram duas bombas na casa do chefe do Posto, o nome dele


era Américo. Aí o capitão Pinheiro veio, disse que ia descobrir
quem jogou. Nessa época eu tinha doze anos. Porque eles iam
resolver, descobrir quem tinha jogado as bombas na casa do
chefe, do antigo SPI. O nome dele era Américo. Não sei se tá
• •' 9
vtvo, se F morreu ...

Além desse susto e trauma, ocorreram as perdas materiais, con-


forme outros índios que testemunharam a cena:

Jogaram bomba assim na casa. Jogaram bomba ali. Tinha o


encarregado, o Américo.[ ...] Todo mundo assombrado mes-
mo com aquele negócio de bomba. E ainda deixaram três bom-
bas na janela. [... ] Até hoje ninguém sabe quem jogou a bom-
ba. Aí jogou a bomba, quebraram os trem, tinha geladeira, fogão
a gás! Tudo que tinha dentro da casa foi destruído, que a bomba
quebrou tudo ... Não matou mesmo os índios porque os índio

9
Depoimentos de José Alfredo de Oliveira, Nego (Him), ao autor em 10-9-
1998 e 5-2-2000.
NA ARCA DE NOÉ, A SOBREVIVÊNCIA POR UM FIO 417
correu.[ ... ] Aí correu todo mundo, ficou todo mundo assom-
brado com aquele negócio de bomba. [... ] Ficou todo mundo
assombrado com aquilo, com medo de matar eles também. 10

Havia, desde a descoberta das jazidas de mica e da consolidação


de agricultores não índios na área (que desejavam tornar-se proprie-
tários legais), uma situação que gradativamente desfavorecia os ín-
dios. Os impostos pelo uso da terra passaram a ser pagos não mais ao
SPI, mas à prefeitura de Resplendor, consolidando assim alianças
com grupos de poder local. Qyem jogou as bombas visava, evidente-
mente, desestabilizar a situação e retirar o pouco de espaço que os
índios ainda mantinham. No mesmo ano de 1958 a administração da
área saiu da esfera do SPI e passou para Serviço Florestal do Estado
de Minas Gerais, que considerou a área como Horto Florestal, adminis-
trada, a partir daí, pela Polícia Florestal. 11 Após o episódio das bombas
o chefe do Posto Indígena efetivamente abandonou o local, alegando
medo de novos atentados. Com o SPI retirando-se de cena, estava
armada, pois, uma teia que visava retirar os índios de suas terras.
É nesse momento que entra em cena um personagem que en-
carnaria a coerção sobre os Krenak durante a ditadura civil-militar: o
capitão da Polícia Militar Manuel dos Santos Pinheiro, inicialmente
comandante da Polícia Florestal na localidade, mais tarde delegado
da Funai e responsável pelo presídio indígena, além de tornar-se pro-
prietário rural em outra região de Minas. Esse período durante o
qual a repressão foi mais aguda é lembrado pelos índios, sugestivamen-
te, como "o tempo do capitão Pinheiro", personagem que teria influên-
cia marcante na vida de outros povos indígenas de Minas Gerais.
A consequência imediata, na vida dos Krenak, das bombas e do
abandono do Posto pelo SPI foi maior do que eles poderiam prever.
Na base da "conversa", o capitão Pinheiro convenceu-os a saírem da
área, a princípio provisoriamente, enquanto a autoria do atentado se-
ria esclarecida e o Posto reconstruído. Iriam para um local melhor,
conforme prometido. E assim os Krenak aceitaram se deslocar até o
Posto Indígena Mariano de Oliveira (MG), que abrigava índios

10 Depoimento de uma índia Krenak do grupo Nakrehé em I. M. Mattos

(1996), p. 97. Depoimentos dos índios sobre este episódio estão em G. Soares (1992,
pp. 131-5).
11
Cf. L. Seki (1992), p. 5.
418 KRENAK, ALVORECER DO "POVO NOVO"

Maxacali, nos arredores da cidade com o mesmo nome. Foi o primei-


ro exílio desse período.

Aí o capitão Pinheiro veio, disse que ia descobrir quem jogou e


aí pegou jogou os índios tudo pra Maxacali. Nessa época eu
tinha doze anos. 12

O único índio que se recusou a sair do território e se escondeu


nos matos foi Joaquim Grande (Nuknak), originário de um grupo
Nackrehé. Apesar das ameaças de morte, insistiu em ficar, como lembra
uma de suas filhas, Júlia:

A polícia chama e diz que se nós não saísse, matava. Meu pai
falou assim: - E se matar? Eu não vou sair não. 13

O exemplo e a tenacidade desse índio são hoje reconhecidos


com admiração e respeito unânimes por todas as "famílias" Krenak.
Ele tornou-se, na prática, o símbolo de resistência com sua recusa.
Nascido em 1909 (portanto na data das fotos de Walter Garbe e um
ano antes da criação do SPI) tinha na época desse primeiro exílio
entre cinquenta e nove e sessenta e um anos e não seguiu a esposa
nem os numerosos filhos e parentes, expressando a ligação intensa
com o território e ficando como referência e esperança para os que
partiam. Desse modo, se aceitamos a comparação com a arca bíblica
do dilúvio, Joaquim Grande seria o próprio Noé, guardando o lugar
para seu povo. Sobre ele lembra um de seus sobrinhos, Zezão
(Kuparak):

O!Jando a terra saiu daqui e o pessoal expulsou tudo, ele não


saiu não. Ficou aqui com uns gatinhos e uns cachorros e não
saiu de jeito nenhum. Fiquei quatro anos fora e quando nós
voltemo ele tava aí sozinho. 14

12
Depoimento de José Alfredo de Oliveira Krenak, Nego, (Him), ao autor cm
10-9- 1998.
13
Depoimento de Julia Krenak em 1989, apud C . Soares, cit., p. 131.
14
Depoimento de José da Silva Damasceno, Zezão (Kuparak), ao autor em 11-
9-1998.
NA ARCA DE NOÉ, A SOBREVIVÊNCIA POR UM FIO 419
Note-se a expressão sobre a terra que saiu de lá, indicando que
"terra" tem um sentido não estritamente geográfico, mas vinculado à
própria presença dos seus habitantes. Joaquim Grande continuou a
cultivar roças e se alimentar de frutos e caças no mato, cercado de
bichos domésticos e sem aparecer aos não índios: tecia, assim, sua
invisível mas eficaz arca da sobrevivência, que serviria como estímu-
lo aos demais. A terra continuava nele e, por intermédio dele, seu
povo não perdia o vínculo com ela.
A situação dos que saíram foi das mais penosas, por vários
motivos. Os índios afirmam que foram abandonados na nova locali-
dade sem nenhuma assistência. Era uma região fria, muitos ficaram
doentes e vários morreram. A época do plantio passara e eles não
tinham como cultivar. Além disso, sofriam forte hostilidade dos índios
Maxacalis, tradicionais inimigos desde tempos antigos.
Ao perceberem o engodo em que haviam caído, os Krenak bus-
caram soluções várias. Alguns se dispersaram e foram para Postos
Indígenas em Mato Grosso (Cachoeirinha), São Paulo (Vanuíre) e
para a ilha do Bananal. Outros, porém, depois de dois anos, reuni-
ram-se e decidiram voltar para o território dos rios Eme e Doce. A
volta de parte do grupo durou noventa e cinco dias a pé, passando por
cidades, estradas, fazendas, florestas e plantações, atravessando e
margeando riosY Liderados porTeóftlo, um Nackrehé e pai de Him
(Nego), decidiram enfrentar os cerca de trezentos quilômetros de
Maxacali até Governador Valadares: paravam pelo caminho, pescavam
nos rios, trocavam alguns peixes por comida, passavam alguns dias
apenas com mandioca cozida e água. Durante o trajeto muitas doenças,
fome, desmaios, corpos cansados, medo de não chegarem ao termo.
Sônia Krenak, filha de Teófilo, recorda alguns momentos da marcha:

Meu pai tava com a perna dessa grossura de tanto que tava
inchado. Tinha mãe. Ia todo mundo. Só quem não tava doente
era eu. Aí ia pela estrada afora. Andando ... andando ... [... ]
Onde que nós parava nós dormia na beira da estrada. [... ] Caí
em cima de uma panela de angu, Me apanharam, eu nem vi.
Desmaiei. 16

15
Depoimentos dos índios sobre este episódio estão em G. Soares, pp. 131-5.
16
Depoimento de Sônia Krenak em 1989 em G. Soares, p. 133.
420 KRENAK, ALVORECER DO "POVO NOVO"

Ao fim, instalaram-se numa faixa estreita nas próprias terras


dos rios Doce e Eme como meeiros, isto é, repartindo o fruto do
trabalho com os invasores não índios, que agiam como proprietários.
O reencontro com Joaquim Grande emocionou a todos:

Nos descemos lá. Viemo a pé. Cheguemo em casa, tava tudo


fechado. Meu irmão foi olhando no quarto pra vê pai. "Pai! Ó
pai! Pai!" E ele veio encontrar com nós. Ele tinha tudo lá. Vi-
nha com feijão rancado, um mói. Sozinho, ele falou: "Ocês
veio! (alegre). Eu falei: "Nós veio! Nós viemo embora, pai! Lá
é ruim, nosso pai!". "Ah! Qye bom que ocês veio embora! Eu
não ia pra lá mesmo!" 17

Outro grupo Krenak, originário de Gutkraks e Nackrehés, li-


derados pelo índio Félix, pai de Laurita (Tacrukinic), tentou fazer a
mesma viagem de volta, uma parte a pé, outra de trem e de carona em
caminhão, também passando enormes dificuldades e fome. Mas fo-
ram interceptados pela polícia e enviados para São Paulo (Posto In-
dígena Vanuíre), quando muitos choraram de desespero e raiva por
não poderem ir para casa. As autoridades responsáveis pela detenção
desses índios assim se dirigiram a eles, segundo guardam na memória:

O lugar d' ocêis já acabou! Ocês não tem mais lugar lá. Lugar tá
por conta dos fazendeiros! Ocês num tem mais lugar!l 8

Estavam, assim, numa situação literalmente utópica (sem chão)


e enfrentavam um segundo exílio. Com a ida forçada para São Paulo,
escoltados por policiais, esse grupo separou-se. Laurita, jovem, estava
com tuberculose, só descoberta depois que desmaiou várias vezes.
Sua mãe Sebastiana (Tacruk, neta do chefe Krenak) e seu pai Félix,
com os irmãos, acompanharam-na até o hospital e depois saíram do
Posto Indígena e foram se instalar em Bauru (estado de São Paulo) na
casa de parentes. Fizeram o trajeto a pé, sob chuva e frio, carregando
os poucos pertences em sacos nas costas. Nesta cidade Laurita ficou
quatro anos num sanatório sem rever seus parentes, bastante abalada.
Certo dia apareceu para visitá-la seu tio José Domingo e ela não o

17
Depoimento de Júlia Krenak em 1989 em G . Soares, p. 134.
18
Depoimento de Luzia Krenak em 1989 em G. Soares, p. 135.
NA ARCA DE NOÉ, A SOBREVIVÊNCIA POR UM FIO 421
reconheceu. Mas somente quando ele começou a falar "na língua"
(Borum) ela então identificou-o como parente. Abraçaram-se emo-
cionados.19
Depois disso a família de Laurita volta para o Posto Vanuíre e,
em seguida, vai para Posto Aratibá, de Guaranis. O irmão de Laurita,
Gabriel (quando garoto fotografado comendo um salgadinho, cf. Fi-
gura 80), arranja emprego para juntar dinheiro e voltar ao território
tradicional, mas morre num acidente de trabalho, o que deixa seu pai
Félix transtornado, em estado de choque, falecendo logo a seguir.
Depois de ter encabeçado as marchas anteriores, o sofrimento levara
suas forças ao fim. Dessa vez foi Laurita quem assumiu a liderança e
animou o retorno para as terras tradicionais. Foi mais uma marcha
penosa, parte a pé, parte de trem. Ao chegarem finalmente nas margens
do rio Doce (Watu) o barqueiro da Guarda Florestal queria cobrar
para transportar o grupo. Laurita reagiu com altivez e indignação:

Tudo que tem aqui é nosso! Essa barca é nossa! O cabo de aço
é nosso! Nunca paguei! Não pago! Não vou pagarJ2°

Os Krenak estavam de volta. Entretanto, a situação do Brasil e


da vida destes índios passara por mudanças importantes. Estava longe
a luz no fim do túnel, como então se dizia. O dilúvio persistia.

Um campo de concentração étnico e político

Após o golpe civil-militar de 1964 e a implantação da ditadura,


o SPI transformou-se em Fundação Nacional do Índio (Funai) e o
Posto Cuido Marliêre foi afetado pela nova situação. Entre 1967 e
1972 funcionou neste território dos rios Eme e Doce um presídio
organizado em parceria pelos governos federal e estadual (MG), para
onde eram levados índios considerados delinquentes das mais diver-
sas etnias de todo o Brasil. 21 Organizou-se também no local a Guarda

19 Depoimento de Laurita Félix Krenak (Tacrukinic) em 1989 em G. Soares,

pp. 136- 7.
20
lbidem.
21 Sobre esse presídio indígena existem alguns trabalhos restritos ao âmbito

acadêmico, como a dissertação de J. G. S. Correa (2000) e as monografias de A.].


Dias Filho (1990, apud M. H . Paraíso 1998a, p. 422) e de C. S. Borges (2003); há
referências importantes nos trabalhos de M. H . Paraíso (1998a e 1998b e I. Missagia
422 KRENAK, ALVORECER DO "POVO NOVO"

Rural Indígena (Grin), uma milícia composta de índios treinados


para reprimir e vigiar os demais e que foi levada a atuar em outras
partes do país.
Os Krenak, embora dados oficialmente como extintos ou
"aculturados", haviam voltado dos exílios e passaram a viver na área
confinados, sob a mesma tutela militar, além de subordinados econo-
micamente aos fazendeiros. Sob nomes oficiais como Reformatório
Agrícola e Centro de Reeducação Indígena, funcionava no local um
campo de prisioneiros de caráter étnico e político, onde os detentos,
além de cumprirem pena por terem cometido algum crime na legis-
lação vigente, eram também reprimidos quando expressavam padrões
culturais indígenas e comportamentos tidos como desviantes ou amea-
çavam as propriedades dos não índios. Esse era o sentido da "refor-
ma" e da "reeducação" implementadas. Os presos durante o dia prati-
cavam trabalhos forçados sob vigilância policial-militar e quando
infringiam as normas locais recebiam castigos suplementares, como
ficarem em celas solitárias. Além disso, a prática de torturas era cons-
tante: espancamentos, afogamento em água, algemados durante dias e
noites e até assassinatos.
Tivemos assim, no país, experiência singular: um campo que
concentrava prisioneiros por viés étnico e político, além de um centro
de tortura e de coerção cultural voltado exclusivamente para os índios.
Tal episódio, entretanto, está em geral ausente de relatos e registros
sobre as violências da ditadura civil-militar de 1964-1985, como se
reproduzisse, no âmbito da esquerda, o etnocentrismo e a invisibilidade
em relação aos povos indígenasY

Mattos 1996); e também no livro de G. Soares (1992) que inclui relatos orais dos ín-
dios, embora nem sempre bem organizados. A documentação oficial da instituição en-
contra-se no Arquivo Museu do Índio (RJ), bem como alguns recortes de jornais da
época.
22 Um esforço para desvendar a história da Grin foi feito pelo então deputado

Nilmário Miranda (PT/MG) que, em 1999, solicitou formalmente e obteve do mi-


nistro da Justiça, José Carlos Dias, informações oficiais sobre o funcionamento de tal
milícia. A demanda resultou num dossiê elaborado pela Funai (1999) e pelo Museu
do Índio (RJ) que recolheu a documentação disponível (documentos administrativos,
correspondências internas, ofícios, memorandos e recortes de jornais) e enviou à
Câmara dos Deputados. Agradeço a obtenção de cópia deste dossiê à jornalista Luciene
Takahashi.
NA ARCA DE NOÉ, A SOBREVIVÊNCIA POR UM FIO 423
O idealizador e responsável pela dupla experiência da guarda
indígena e do presídio foi o já citado capitão Manuel dos Santos
Pinheiro, que em entrevista aos jornais da época se vangloriava:

Fui eu quem criou a Grin e idealizou Crenaque [como se refe-


ria à "colônia penal"]. Meu trabalho já vem sendo desenvolvido
há quase seis anos e acho que tem dado um bom resultado, com
saldo extremamente positivo. [... ] Sim, o índio é fator de se-
gurança nacional, pois quando ele se revolta cria a desordem e
a subversão e, deste modo, depois de preso pela Grin, é enviado
a Crenaque para reeducar-se e ser um índio bom. 23

O antigo estereótipo sobre bons e maus selvagens passava agora


pelo crivo da ideologia de segurança nacional. E a integração homo-
geneizadora à sociedade nacional intensificava-se de forma mais di-
reta e violenta. A criação da Grin atualizava outra tradição, notada,
por exemplo, nos tempos de D. João VI e D. Pedro I, ou seja, não
apenas a militarização do trato com os índios, mas as tentativas de
incorporação destes às forças militares. A trajetória desse capitão da
Polícia Militar de Minas Gerais cruzou-se com a dos índios já em
1958, como vimos, quando fora nomeado para comandar a Polícia
Florestal na área dos Krenak. Durante a ditadura seria convocado
pelo governo estadual para reprimir uma revolta de Maxacalis em
1966, no vale do Jequitinhonha, fronteira com a Bahia, que reagiam
à invasão e roubo de suas terras. Nas palavras do oficial:

Tratei logo de prender os índios que lideravam o movimento e


fui pouco a pouco restabelecendo a paz no local. Meu trabalho
foi considerado excelente e assim fui convidado pela presidên-
cia da Funai para trabalhar com os índios de Minas Gerais. 24

Nomeado para o posto de chefe da Ajudância Bahia Minas


(que equivalia à delegacia regional da Funai), o capitão Pinheiro
tratou de recrutar e treinar índios para a milícia, com apoio do Bata-
lhão Escola da PM em Minas Gerais. O objetivo declarado dessa

23 Entrevista ao Jornal do Brasil, 27-6-1972. O repórter do jornal foi expulso da

localidade quando tentou entrevistar os índios detidos.


24
Ibidem.
424 KRENAK, ALVORECER DO "POVO NOVO"

guarda era manter "a paz e a tranquilidade" nas áreas indígenas, im-
pedir que os índios saíssem de seus territórios demarcados, evitar o
porte de armas de fogo por estes e, ainda, paradoxalmente, preparar
os índios (da guarda) para defenderem suas próprias terras.
Em fevereiro de 1970 a solenidade de formatura da primeira
turma da Grin em Belo Horizonte contou com a presença do minis-
tro do Interior, Costa Cavalcanti, do governador Israel Pinheiro, do
prefeito Luís de Sousa Lima, do presidente da Funai, José Olteirós
Campos, além de comandantes militares e autoridades civis. 25 Os
novos guardas ouviram perftlados o Hino Nacional, desfilaram dian-
te da bandeira do Brasil e em seguida fizeram demonstrações das
técnicas aprendidas: busca e condução de presos, defesa contra ataque
sem armas, defesa contra ataque à mão armada e efetuar prisões a pé
e a cavalo. O presidente da República, general Emílio Garrastazu
Médici, demonstrou entusiasmo com a realização e autorizou libera-
ção de verba para o ministério do Interior formar mais duas turmas
de guardas indígenas. Alguns meses depois assumiu a direção da Funai
o general Oscar Jerônimo Bandeira de Melo, outro ferrenho defen-
sor da iniciativa.
Os membros da Grin portavam um uniforme próprio: botas,
calça verde, camisa amarelo-queimado, insígnia da guarda, quepe,
cinturão e cassetete. Eram inicialmente oitenta e cinco índios das
etnias Karajá (oriundos das aldeias de Santa Isabel, Fontoura e Ca-
noanan), Krahô (aldeias Pedra Branca, Cachoeira, Pedra Furada e
Santa Cruz), Xerente (aldeias Tocantínia e Rio do Sono), Gavião
(aldeia Mãe Maria) e Maxacali (aldeias Fradinho e Água Boa) .26
Atuaram não só no presídio da área Krenak, mas reprimiram diversos
grupos indígenas que entravam em conflito em Minas Gerais, To-
cantins, ilha do Bananal e Xavantina (MT).
Os índios Krenak testemunharam toda essa movimentação c
formularam suas próprias avaliações, como no caso de Maria Sônia
(Tcharn):

Tinha a Guarda Indígena. Tinha Krahô, Xavante, Xerente,


Maxacali, tinha até Maxacali preso ali. Krahô polícia, Xerente

25O Globo, 6-2-1970.


26
Cf. Relação Nominal dos Componentes da Guarda Rural Indígena (Grin), 28-6-
1971, em Dossiê sobre a Grin . . . (Funai, 1999).
NA ARCA DE NOÉ, A SOBREVIVÊNCIA POR UM FIO 425
polícia, mas os Krenak nenhum passou pra guarda indígena,
mas os outros passaram. Colocavam os índios como guarda,
mas só pode ser fantasia ... [riso irônico]. Aquele material de
arma, aquele correão, aquele revólver... tudo na cinta. Tinha
carro, tinha tudo, mas não dava revólver pro índio. Só o branco
tava com revólver, mas o índio não. Passou para a Guarda Indí-
gena, mas nunca possui arma. 27

O relato acima aponta para as fraturas que foram ocorrendo no


projeto civilizador e militarista da Grin na arregimentação e uso dos
índios para força repressiva. Destaca-se que os próprios guardas ín-
dios não podiam usar arma de fogo, o que indica a desconfiança dos
dirigentes na "aculturação" (como então se dizia) plena dos indígenas,
ainda que treinados, pagos e beneficiados para isso. Seguia-se neste
ponto a tradição do SPI de não permitir o porte de armas de fogo aos
índios. Um ano após a formatura da primeira turma, o capitão Pi-
nheiro reconhecia em ofício que "toda tropa se encontra com seus
uniformes em péssimas condições de utilização". 28 Além disso, ocor-
riam atitudes desviantes, como o do índio nomeado Doutor Maxacali,
um Grin que ficou detido três meses e vinte e dois dias no presídio da
área Krenak recebendo "enquadramentos disciplinares" e realizando
"todos os trabalhos braçais". 29 Ou então o caso do índio Dioruma,
considerado como "o mais impossível e desordeiro dos grins" em
ofício do coronel Clodomiro Bloise, administrador do Parque Indí-
gena do Araguaia. 30
Outro Krenak, José Alfredo, conhecido por Nego (Him), tam-
bém testemunhou e interpretou a seu modo a experiência de
militarização:

Eles formaram a Grin pra ajudar eles. Eles botavam o próprio


índio pra bater no outro índio. Tinha índio Karajá, Maxacali,
Krahó, vários índios. Eles botaram um irmão meu, este que

27 Depoimento de Maria Sônia Krenak (Tcharn) ao autor em 12-9-2000.


28
Capitão Manoel dos Santos Pinheiro, Belo Horiwnte, Ofício n. 0 • 263/71,
25-6-1971, Funai.
29
Antônio Vicente, chefe do Posto Indígena Guido Marliere, Ofício n. .l29/
0

71, 6-9-1971, Funai.


°Citado por M. A. do Espírito Santo. MemtfnútJJrea GuardaRuml.lnd(felltt,
3

20-10-1999, em Dossiê sobre a Grin ... (Funai, 1999).


426 KRENAK, ALVORECER DO "POVO NOVO"

esteve preso quando soltaram botaram ele. Karajá tinha muito.


[... ] Era duro o tempo da policia. Pegava o povo e batia mesmo. 31

Ressalta-se, na sua percepção, o aspecto repressivo (em contra-


ponto aos discursos oficiais que associavam tal iniciativa à paz e or-
dem), bem como a utilização dos guardas indígenas para defesa dos
interesses dos outros, não índios (em contraste com o discurso oficial
que apregoava a formação da guarda para ensinar os índios a se de-
fender). Realmente os Karajá estavam entre os mais recrutados para a
Grin: foram vinte e seis formados na primeira turma. 32
O caso citado no depoimento acima envolveu um irmão de seu
Nego, João Batista de Oliveira, conhecido como João Bugre ou João
Botocudo. Foi pego bebendo uma garrafa de cachaça e, por isso, ficou
nove meses detido no presídio indígena. Ao ser solto foi incorporado
à Grin, tornando-se o único Krenak a pertencer a essa milícia. 33 Nota-
-se nesse caso uma estratégia de coerção das autoridades militares bra-
sileiras: primeiro prendiam, impondo uma pena arbitrária e desme-
dida para o "delito"; e ao cabo de muitos meses, como para quebrar a
resistência e não deixar-lhe outro caminho, incorporavam-no à guarda
indígena. Alternavam-se assim coerção e incorporação forçada. Entre-
tanto, o mesmo João Bugre teria atuação efetiva, anos depois, na luta
pela retomada das terras e reconstrução da identidade étnica dos Krenak.
Ainda nos anos 1970 vazaram para a imprensa denúncias de maus-
-tratos contra os índios, os quais o governo federal atribuía a "excessos"
dos próprios Grins, ao mesmo tempo que defendia tal instituição, que
não se sabe quando foi formalmente extinta. Em relatório oficial de
1999, o antropólogo Marco Antônio do Espírito Santo, avaliou a expe-
riência da milícia indicando sua degeneração: os processos e relatórios
localizados nos arquivos da Funai davam conta de atraso no pagamento
dos guardas, falta de fardamento, alcoolismo e abuso de poder.34
Desfez-se o que Maria Sônia Krenak chamou de fantasia: o modelo do

31
Depoimento de José Alfredo de Oliveira Krenak (Him) ao autor em 5-2-
2000.
32
Cf. Relação Nominal dos Componentes da Guarda Rural lndfgena (Grin), 28-6-
1971, em Dossiê sobre a Grin ... (Funai, 1999).
33
Depoimentos de José Alfredo de Oliveira Krenak (Him) ao autor em 5-2-
2000 e 14-92000.
34
M. A. do Espírito Santo. Memória sobre a Guarda Rural Indfgena, 20-10-
1999, em Dossiê sobre a Grin ... (Funai, 1999).
NA ARCA DE NOÉ, A SOBREVIVÊNCIA POR UM FIO 427
índio bom, perfeitamente enquadrado na farda. Porém, o mesmo antropó-
logo afirmava que tais práticas de militarização foram introjetadas por
algumas etnias e ainda se faziam presentes em fins da década de 1990.
Paralelo à guarda indígena, e interligado a ela, funcionou o
presídio. Nele estiveram dezenas de prisioneiros de variadas etnias:
Xerente, Pankararu, Maxacali, Guajajara, Terena, Karajá, Kadiwéu,
Pataxó, Kaingang, Bororo, Urubu, Canela, Fulniô e Mawé, além de
Krenak. Essa casa de detenção abrigou entre sessenta e oitenta presos
por períodos diferenciados, cujas acusações de crimes eram as se-
guintes: 44% vadiagem, 29% homicídio, 22% roubo e 5% embria-
guez.35 Nota-se que a acusação predominante, vadiagem, era abran-
gente e pouco definida, servindo para enquadrar índios pelos motivos
mais diversos, em geral os que não se adequavam bem ou apresenta-
vam resistência à ordem vigente, o que evidencia o caráter também
político das detenções.
A divisão do prédio onde funcionava o presídio ajuda a com-
preender suas características. De acordo com a planta hoje guardada
no arquivo do Museu do Índio (RJ), havia uma varanda coberta na
entrada. Já dentro do imóvel, o saguão era ladeado por dois pequenos
cômodos (um dos quais destinado à farmácia), seguidos do gabinete
do diretor e da enfermaria. Logo depois vinha um único cômodo
indicado como "alojamento de índios de bom comportamento". Em
seguida, um corredor de circulação era ladeado por duas peças para-
lelas entre si destinadas a "confinamento". Era a cadeia propriamente.
Num dos cantos da cela maior que ficava à direita havia dois cubícu-
los, sem indicação de uso na planta, e que mal poderiam conter uma
pessoa: certamente eram as chamadas celas solitárias. Ao final do
corredor ficava o cômodo nomeado de casa dos guardas à direita e a
cozinha e dispensa à esquerda, estas duas separadas com portas de
grades das celas de confinamento. Em frente à cozinha, o refeitório
encerrava o prédio de formato retangular. Havia, pois, uma hierar-
quia que se expressava em termos da arquitetura, quando os índios de
"bom comportamento" ficavam mais perto da entrada e da sala do
diretor, anteriores e separados das duas celas de confinamento, uma
das quais continha as solitárias, celas que ficavam mais perto da sala
dos guardas. Ou seja, para entrar e sair do imóvel era preciso passar
pela única porta, enquanto nos fundos, onde havia apenas janelas,

35
Cf.levantamento de Antônio Dias Filho citado em Paraíso (1998a), p. 422.
428 KRENAK, ALVORECER DO "POVO NOVO"

estavam os guardas. Com a fome que às vezes se agravava entre os


índios nessa época, a dispensa e a cozinha ficavam protegidas de pos-
síveis investidas deles, nos fundos. Um pequeno prédio anexo, que
funcionava como depósito, ficava de frente à entrada.
Para a vida dos Krenak acrescentava-se mais um transtorno além
da repressão militar direta e da preponderância dos fazendeiros em
suas terras: a intromissão direta em seus padrões culturais. A come-
çar pela convivência forçada com outras etnias, o que perturbava o
tradicional sistema de referências baseado na formação de bandos
familiares de um mesmo grupo etnolinguístico.
Um ponto destacado por índios Krenak oriundos de diferentes
subgrupos familiares foi a proibição, durante o "tempo do capitão
Pinheiro", de falarem na própria língua (Borum).

Na época do capitão Pinheiro os índios não podia conversar na


língua. Se conversasse no idioma ele achava ruim, mandava
prender, mandava bater... eles falavam que tava falando deles,
falando da polícia. E com isso os índios foi perdendo. Tem
muitos índios que nem sabe língua nenhuma, foi perdendo,
porque não podia conversar na língua. Ai eles baixava o cacete
nos índios, prendia. Nós vivemos uma vida muito triste. 36

O capitão Pinheiro proibia de falar na língua. Eles não gosta-


vam porque eles não entendiam [sorriso]. Agora tem muitos
que não sabem. Aqui tem poucos índios que sabem na língua. 37

Essa modalidade repressiva direcionada para o aspecto linguístico


(um dos pontos centrais da própria identidade Krenak e das identida-
des étnicas em geral) teve efeitos graves, destacados nos depoimentos
acima, prejudicando uma situação de bilinguismo, onde o Borum era
usado no âmbito familiar/doméstico e o português no contato com a
sociedade nacional. Somente os indivíduos nascidos dos anos 1950
para trás dominam hoje de maneira fluente o Borum.
Outro aspecto assinalado nos testemunhos era a restrição das
movimentações desses índios que, algumas décadas antes, ainda fa-

36
Depoimento de José Alfredo de Oliveira Krenak (Him) ao autor em 5-2-
2000.
37
Depoimento de Laurita Félix Krenak (Tacrukinic) ao autor em 13-9-2000.
NA ARCA DE NOÉ, A SOBREVIV~NCIA POR UM FIO 429
ziam suas "correrias". Agora, para saírem da área do presídio ou sim-
plesmente atravessarem o rio, os K.renak precisavam pedir autoriza-
ção aos militares. Notava-se assim um desrespeito a dois códigos: o
indígena, cujos costumes seculares baseavam-se na constante movi-
mentação por áreas do território; e o moderno direito constitucional
brasileiro, que teoricamente garantia o direito de ir e vir.

Eles fizeram uma cadeia aí pra prender os índios de fora, pra


trazer índios de Mato Grosso, Bahia, Pernambuco, de uma porção
de canto. E botavam na cadeia aí. Os índios K.renak que não
tinha nada com isso tinha que cumprir a mesma ordem dos
presos. Glier dizer que os índios K.renak estava sendo preso
também igual aos outros. Glialquer coisinha que os índios
K.renak fizesse ia preso também. Pra atravessar o rio tinha que
pedir ordem. Se atravessasse sem ordem ia pra cadeia. Se con-
versasse na língua ia pra cadeia, porque estava falando da polí-
cia. Muito triste pra nós. 38

Caracterizava-se assim um campo de prisioneiros ao mesmo


tempo étnico e político, urna vez que se entende política corno ins-
tância de mediação e gestão das relações sociais e não apenas nos seus
aspectos estritamente partidários ou eleitorais.
A versão dos índios é confirmada pelos arquivos oficiais que
ainda guardam as autorizações para os K.renak se locomoverem. Um
telegrama do chefe do Posto Indígena Guido Marliere de 1970 afir-
mava mesmo que "os índios Crenaques estão passando fome e sérias
privações, os mesmos estão sem nada para se alimentar" e solicitava
ao capitão Pinheiro permissão para que pudessem ir a Belo Horiwn-
te venderem seus artesanatos. 39 A restrição dos movimentos causava
situações de confinamento e penúria, até mesmo de fome. O que se
repete no pedido de autorização para o índio Jacó Josué (filho do
chefe Muirn e neto de K.renak) ir à capital mineira em companhia do
"civilizado" Adão Luís Viana para venderem flechas. 40

38
Depoimento de José Alfredo de Oliveira Krenak (Him) ao autor em 5-2-
2000.
39
Telegrama de 25-11- 1970 do chefe do Posto Indígena Guido Marliere,
Funai, Museu do Índio.
40
Antônio Vicente, chefe do Posto Indígena Guido Marliere, telegrama n.•
097/72 de 10-7-1972, Funai, Museu do Índio.
430 KRENAK, ALVORECER DO "POVO NOVO"

Da mesma forma anotava-se minuciosamente que em 3 de ju-


lho de 1971 as índias Laurita, Luzia e Sebastiana haviam tomado o
trem das lüh em Resplendor para fazer compras, voltando no mesmo
dia às 18h40m. O chefe do Posto, Antônio Vicente, afirmava que na
mesma ocasião "Sebastiana chegou completamente embriagada, sen-
do recolhida ao xadrez, onde permanecerá até vossa deliberação"Y
A referida índia "durante o dia está sendo colocada a fazer vários
trabalhos domésticos e à noite recolhida ao xadrez", segundo a mes-
ma autoridade local. Ou seja, submetida ao regime do campo de pri-
sioneiros: trabalhos forçados durante o dia e prisão de noite. Dessa
forma, Sebastiana (Tacruk), chamada de Bastianinha pelos Krenak,
mãe de Laurita, filha de Muim e neta do chefe Krenak, sobrevivera
quando criança ao Massacre do Kuparack em 1923, passara por dois
exílios, vira seu filho morrer e outros desaparecerem, e agora se en-
contrava prisioneira em suas próprias terras durante a ditadura civil-
-militar. Tal trajetória basta para explicar o ar de aguda tristeza que
aparece em uma de suas últimas fotos (Figura 83). Era uma tristeza
feita não apenas de angústias, mas de fatos, sangue nos olhos e lama
nos sapatos, como na música "Fortaleza", de Chico Buarque.

Figura 83

41
Telegrama de Antônio Vicente, 2.• chefe do PI Guido Marliere, ao capitão
PM Manuel dos Santos Pinheiro, de 5-7-1971, Funai, Museu do Índio.
NA ARCA DE NOÉ, A SOBREVIVÊNCIA POR UM FIO 431
Convivendo com a repressão, os índios criavam movimentos de
negociação. Foi o caso, por exemplo, desta prisão de Sebastiana, con-
forme narra sua filha Laurita:

Prenderam a minha mãe, depois o meu tio, mas não bateram


não. Adão foi lá conversar com ele e aí soltaram. 42

Ou seja, após a detenção, no presídio, de Sebastiana e de seu


irmão Jacó, foi o marido de Laurita, Adão Viana, não índio e traba-
lhando como vaqueiro do Posto da Funai, quem intercedeu e parece
ter conseguido a soltura de ambos, atuando assim como intermediá-
rio entre os índios seus familiares e as autoridades militares.
Também Maria Sônia (Tcharn), filha de Joaquim Grande (Nuk-
nak), esteve presa durante um mês na mesma época, entre 13 de se-
tembro e 14 de outubro de 1971, segundo documento oficial, embora
não tenha falado nisso nos depoimentos posteriores que me concedeu
sobre o presídio. 43 Maria Sônia casou-se com um dos índios prisio-
neiros, Bibiano, Xerente, com quem teve seis filhos: o casal mora
hoje na área Krenak, de frente para o rio Doce, cercado de filhos e
netos, como pude constatar.
"Qyando não tem Borum casa com outra tribo e aí vai aumen-
tando", explica Dejanira (Indjambré), 44 bisneta do chefe Krenak, que
se casou respectivamente com João Bugre (Krenak), Oriente (Fulniô)
e Lírio (Guarani Kaiowá) e demonstra orgulho pelos filhos e netos
que a cercam, com os quais fala na língua Borum, como presenciei.
Da mesma forma Eva Krenak (irmã de Maria Sônia) casou-se com
Manuel Vieira das Graças (Pankararu e detento do presídio durante
dois anos) com quem teve nove filhos. A irmã deste, Maria, Pankararu
(que veio para a área acompanhando os pais e o irmão preso), casou-
se com José Alfredo (Him), com quem tem seis filhos, todos com
nomes brasileiros e também Borum. 45
Há vários exemplos de matrimônios exogâmicos na época do
presídio indígena. Aparece aí uma estratégia de sobrevivência levada

42
Depoimento de Laurita Félix (Tacrukinic) ao autor em 13-9-2000.
43
Telegrama do chefe do PI Guido Marliêre ao capitão PM Manuel dos
Santos Pinheiro, 14-10-1971, Funai, Museu do Índio.
44
Depoimento de Dejanira (Indjambré) ao autor em 6-7-2000.
45
Para a genealogia dos atuais Krenak ver o quadro elaborado por Thais C . A.
Silva, transcrito em I. M. Mattos (1996, pp. 119-20).
432 KRENAK, ALVORECER DO "POVO NOVO"

a cabo pelos Krenak diante da situação adversa de estarem cercados


de indivíduos de outras etnias, além de verem seu próprio povo min-
guar. Casavam com índios que não eram Krenak, embora alguns fi-
lhos desses casamentos fossem criados como tais, reforçando assim a
identidade e a existência do grupo. Desse modo, o presídio indígena,
embora tivesse efeito desastroso e violento sobre a vida dos Krenak,
não teve o poder absolutamente devastador e de destruição cultural
que pretendia alcançar. Os próprios Krenak diante da situação cria-
ram estratégias de resistência, adotando a exogamia: transformaram a
adversidade em alianças matrimoniais, fortalecimento, reafirmação e
procriação da vida e de sua identidade étnica, ao mesmo tempo pre-
servada e transformada.
Além da coerção que atingia aspectos estruturantes da identi-
dade cultural dos Krenak (e para os quais eles formulavam estratégias
de resistência) havia a repressão física propriamente, pois o local
funcionava como centro de tortura. Embora, segundo os depoimen-
tos que colhi, os Krenak nunca tenha sido molestados nesse sentido,
eles testemunharam torturas em índios de outras etnias. 46
Os próprios documentos oficiais do presídio, embora não men-
cionem explicitamente os maus-tratos, levam nas entrelinhas indica-
ções de que eles ocorriam. Como no caso do índio e detento Oscar
que, em 18 de março de 1973, se "insubordinou com os Guardas
Indígenas" Antônio Karajá e Lourenço, sendo por isso recolhido ao
"alojamento em separado", segundo palavras do chefe do Posto, o
cabo da Polícia Militar Antônio Vicente. O qual acrescentava:

Não temos condições de ficar com o referido elemento nesta


localidade, solicito-vos com a possível urgência o seu encami-
nhamento a essa Ajudância para tratamento de saúdeY

Não é difícil depreender o ocorrido com um índio detento no


presídio nos anos 1970, em pleno governo Médici, que depois de

46 No livro de G. Soares, cit., há depoimentos anônimos de K.renak que rela-

tam, além da torrura, casos de assassinatos, cf. pp. 138-47. Qyando estive entre os
K.renak ouvi, fora dos depoimentos gravados, alusões a assassinatos na época do presí-
dio, mas essas testemunhas pareciam relutar em denunciar tais casos, possivelmente
por medo de represálias de responsáveis ainda vivos.
47 Telegrama de Antônio Vicente, Posto Indígena K.renak, ao capitão Manuel

dos Santos Pinheiro, 18-3-1973, Funai, Museu do Indio.


NA ARCA DE NOÉ, A SOBREVIVÊNCIA POR UM FIO 433
insubordinar-se contra dois guardas ficou isolado e necessitava de
urgente tratamento de saúde. Os espancamentos repetiam-se, como
testemunhou José Alfredo (Him), ele próprio funcionário do presí-
dio. Referindo-se à Grin, afirma:

Karajá tinha muito. Teve um índio Guaraja, pegaram ele, bate-


ram. O tenente Benjamim bateu nesse índio até arrebentar ele
todo. Ficou muito tempo na cadeia tomando remédio. Era duro
o tempo da policia. Pegava o povo e batia mesmo. De vez em
quando os índio fugia pra poder ir embora, pra terra deles, esses
presos que eles traziam de fora. Aquele que fugia e não acha-
vam ele mais, estava fora, agora aqueles que eles pegavam arre-
bentavam ele no pau. Prendia ele e batia. Prendia de noite e de
dia botava pra trabalhar. 48

Há vários relatos de fugas ou tentativas. Os índios de Minas


Gerais, por exemplo, quando conseguiam escapar, voltavam a pé para
suas localidades de origem, como testemunhou Maria Sônia Krenak:

Presídio ficou ai uns sete anos, mas demorou a acabar. Os


Maxacalis iam até a pé para a aldeia deles. 49

José Alfredo, o Nego (Him), esteve envolvido num destes ca-


sos: acusado de facilitar a evasão do índio Adílson Vascuru que, na
noite de 23 para 24 de setembro de 1971, fugiu da cadeia, sendo
recapturado na tarde do dia 25 pelos soldados Alberto Aredes e Luís
Carlos. Como consta do testemunho acima, os índios fugitivos, ao
serem encontrados, eram torturados. José Alfredo em seus depoi-
mentos alerta que tal prática era repetida:

Um índio lá que fugiu, depois pegaram ele, mas deram uma


coça! Bateram nele, afogaram dentro d água. Depois ficou pre-
so, algemado, amarrado na grade.50

48
Depoimento de José Alfredo de Oliveira Krenak, Nego (Him) ao autor em 5-
2-2000.
49 Depoimento de Maria Sônia Krenak (Tcharn) ao autor em 12-9-2000.
50
Depoimento de José Alfredo de Oliveira, Nego (Him) ao autor em 14-9-
2000 .
434 KRENAK, ALVORECER DO "POVO NOVO"

Na ocasião José Alfredo foi suspenso por seis dias de suas fim-
ções de auxiliar de almoxarifado por ter, segundo o cabo Antônio
Vicente, chefe do Posto:

[...] deixado o índio Adílson Vascuru penetrar dentro do Almo-


xarifado, quando fazia a entrega de sua ferramenta de trabalho,
e apanhar uma serra e praticar sua fuga com a mesma no dia 23
próximo passado. 51

O caso de José Alfredo, que seria reconhecido como cacique


dos Krenak nos anos 1980 por sua participação intensa na luta pela
retomada das terras, é exemplar dessas estratégias de resistência no
interior mesmo das estruturas impostas pelo Estado nacional brasi-
leiro. Por um lado, como funcionário do presídio, ganhava um pe-
queno salário com o qual sobrevivia, e que com frequência aliás atra-
sava, segundo registros da própria instituição. Nesse sentido, estaria
aparentemente submetido, controlado ou integrado. Por outro lado,
esteve envolvido em atritos e desacatos. Alguns meses depois da fuga
malograda do índio Adílson, José Alfredo (Nego) era citado em ou-
tro episódio, que causou sua prisão.
Segundo relato do chefe do Posto, o cabo da PM Antônio
Vicente, Nego cometera vários delitos: ausentara-se do presídio sem
autorização, atravessara o rio e fora à cidade jogar bilhar. Lá chegan-
do, desentendeu-se com um rapaz que o provocou durante o jogo e
deu-lhe com o taco de bilhar na cabeça, criando um "galo". Como o
rapaz quis prolongar a briga e ameaçou jogar uma pedra em Nego,
este colocou a mão na garrucha que levava na cintura e ameaçou-o.
O pai do rapaz procurou o chefe do Posto para queixar-se. Até aí, um
incidente que, olhado à distância, soa como banal. Mas que parece
ter sido a gota d'água para uma relação cada vez mais tensa entre o
chefe do Posto e José Alfredo, um Krenak oriundo de um grupo
Nakrehé. Este, chamado e interrogado pelos militares, confirmou o
episódio. O cabo Antônio Vicente então mandou que Nego fosse
escoltado por dois soldados até sua residência, onde teve a garrucha
apreendida. Ao regressar, sempre escoltado, Nego passou a ouvir
uma descompostura do militar, que afirmava já tê-lo "advertido vá-

51 Telegramas de Antônio Vicente, chefe do Posto Indígena Guido Marlicre,

ao capitão Manuel dos Santos Pinheiro, de 29-9 c 4-10-1971.


NA ARCA DE NOÉ, A SOBREVIV~NCIA POR UM FIO 435
rias vezes". Foi nesse ponto, segundo o mesmo militar, que "o ín-
dio José Alfredo insubordinou e começou a me desacatar com pala-
vras e querendo me ensinar como eu deveria proceder como chefe
do posto". 52
Note-se que a dita insubordinação foi acompanhada, segundo o
militar, da intenção de ensinar-lhe como deveria se comportar na
chefia, o que parece ter sido o ponto sensível, somado aos anteriores,
que decretou a imediata detenção de José Alfredo- que, como já foi
dito, seria reconhecido como cacique poucos anos depois. Havia,
portanto, uma disputa que se relacionava ao exercício do poder, entre
militares e índios. Colocava-se assim uma dimensão política na coer-
ção imposta pelo presídio militar aos indígenas, às quais estes res-
pondiam também na mesma instância. E é Him quem narra o desfe-
cho desse episódio dos idos dos anos 1970:

Eu mesmo fiquei preso dezessete dias só porque desobedeci as


ordens da policia e atravessei pro lado de lá do rio, tinha que
pedir a eles. 53

Os casos de tortura em índios nesse presídio são confirmados


pelo testemunho de outros Krenak, como Maria Sônia (Tcharn):

Violência aqui era assim. Um índio que bebia e roubava era


preso e apanhava. Apanhava lá no mato. Depois trazia e botava
eles preso. Diz que tinha um Terena lá que pegou um gado do
fazendeiro lá, mais ou menos umas quinze, dez cabeças e ven-
deu. Aí ficou preso aqui e os gado foi devolvido, a Funai foi lá
e devolveu tudo. Aí o dinheiro que o índio pegou a Funai
devolveu tudo pros dono. Os Krenak aqui não foram muito
presos não. 54

Acrescenta-se, no depoimento acima, a ligação das práticas


repressivas com a defesa de interesses econômicos de fazendeiros

52
Relatório de Antônio Vicente, chefe do Posto Indígena Guido Marliêre,
através do Ofício 073/72, ao capitão Manuel dos Santos Pinheiro, 13-7-1972, Funai,
Museu do Índio.
53
Depoimento de José Alfredo de Oliveira, Nego (Him) ao autor em 5-2-
2000 .
54
Depoimento de Maria Sônia Krenak (Tcharn) ao autor em 12-9-2000.
436 KRENAK, ALVORECER DO "POVO NOVO"

pecuaristas. O presídio e os maus-tratos físicos visavam também, de


forma direta, preservar a ordem social e corrigir os ataques à proprie-
dade privada dos fazendeiros não índios. Nem se investigou, neste
caso citado, se o índio Terena teria praticado tal roubo num território
que pertencera a seu grupo ou que estaria em litígio. A reforma e a
reeducação oferecidas aos índios eram, de forma brutal, tentativas de
submissão e destruição de suas vidas e terras.
Tal ponto ficaria mais claro em fins de 1972. Em 1970 a Funai
entrara na Justiça com pedido de reintegração de posse das áreas
ocupadas por não índios no Posto Indígena Guido Marliere, que desde
os anos 1920, como foi visto, haviam sido cedidas pelo SPI para
colonos brasileiros e estrangeiros. A iniciativa do órgão governamental
parecia ser favorável aos índios. Em dezembro de 1972, aJustiça deu
ganho de causa a Funai: decretou ordem de retirada dos colonos não
índios e consequente devolução aos Krenak de suas terras. Mas o que
aconteceu foi o contrário. A própria Funai, por intermédio de seu
representante regional, o famigerado capitão Pinheiro, além de não
informar aos índios sobre a decisão judicial, e buscando preservar os
interesses dos colonos não índios, resolveu fazer uma permuta com o
governo estadual (o governador de Minas era Rondon Pacheco): ce-
deu as terras do Posto Guido Marliere aos seus ocupantes não índios
e resolveu transferir o presídio e os Krenak para outra área cedida
para esse fim pela administração estadual, no município de Carmésia,
numa localidade chamada Fazenda Guarani.

E aí apareceu capitão Pinheiro outra vez: aí ele já era capitão


da Guarda Florestal e delegado da Funai. Aí botou na Justiça e
nós ganhemos. Aí nessa época era para tirar o povo em 24
horas, mas aí ele tirou nós e botou na Fazenda Guarani. Enga-
nou, né? Falou que tinha perdido e colocou na Fazenda Guarani.
09em não queria sair ia algemado no carro.55

Os índios Krenak reagiram indignados e desesperados, não acei-


tavam sair de suas terras. Mas não tinham como se defender. A re-
pressão militar entrou de cheio. Entre os dias 9 e 24 de dezembro de
1972 os Krenak foram despejados de suas casas à força por militares

55
Depoimento de José Alfredo de Oliveira Krenak, Nego (Him) ao autor em
10/9/1998.
NA ARCA DE NOÉ, A SOBREVIV~NCIA POR UM FIO 437
56
armados que os arrastavam e jogavam seus pertences em sacos. Como
testemunhou Luzia Krenak:

Este vendeu essa terra nossa sem nós saber. Joaquim Grande, o
finado Jacó, ninguém, índio nenhum queria ir para lá. Aí ele
pegou, algemou Joaquim Grande, levou ele algemado para a Fa-
zenda Guarani. Foi de trem. O trem de meio-dia não parava
aqui. Aí ele arrumou direitinho, escondido de índio. Trem veio e
parou. [ ... ] Mas aqui também ninguém gostava dele, pois o
índio pra atravessar o rio tinha que ir com ordem deles, com um
papelzinho na mão. ~ando voltava tinha que entregar. Ai! Ele
judiava muito dos índio. Joaquim Grande só saiu daqui amarra-
do. Se não fosse, não ia. Os fazendeiro aqui já não deixava nós
plantar. Botava boi pra dentro das roça. Não tinha jeito de plantar. 57

Joaquim Grande (Nuknak), que da última vez se negara a sair e


ficara no mato cercado de bichos, desta vez foi pego, algemado e
colocado na viatura militar. Jacó, filho do chefe Muim e neto de
Krenak, também se recusou a sair, foi preso, algemado e arrastado. As
crianças choravam assustadas, entre os adultos o clima era desolador.
As roças e criações de animais domésticos dos índios que garantiam
sua subsistência tiveram de ser abandonadas, perdidas. Gerado pelos
poderes militares e econômicos, começava mais um exílio desse povo.
O escritor Antonio Callado (1917-1997) publicou em 1982 o
romance A Expedição Montaigne, que tem como personagens princi-
pais o índio kamaiurá Ipavu, detido no presídio Krenk (Crenaque), e
o jornalista Vicente Beirão, misto de herói e cafetão dos índios, que
tencionava formar uma espécie de exército libertador com estes -
em contraponto à GRIN. Os primeiros capítulos são ambientados na
área do chamado reformatório em questão. O território dos antigos
Botocudos passa a ser cenário da trama, não qual estes índios pro-
priamente não aparecem. Nem mesmo o autor de Quarup chegou a
imaginar o desenlace da história do presídio indígena num livro
instigante e que me foi apresentado por minha filha Ana Paula.

56 Uma reportagem da Revista Comtrcio e Indústria, de 1981, realizada por

Hiram Firmino, narra detalhes desse despejo, cf. citação no livro de G. Soares, pp.
143-4, que traz também depoimentos dos índios sobre o episódio.
57
Depoimento de Luzia Krenak em 1989 em G. Soares, p. 144.
438 KRENAK, ALVORECER DO "POVO NOVO"

Novo exílio e Reconquista das antigas terras

A Fazenda Guarani, transformada agora em presídio e posto in-


dígena, ficava "a setecentos metros de altitude, numa região acidentada,
fria, chuvosa e desprovida de rios, onde os índios jamais se adaptariam",
segundo testemunho da linguista Lucy Seki, que esteve lá duas vezes
em pesquisa de campo durante o exílio dos Krenak, que duraria sete
anos. 58 Na localidade havia inicialmente quatrocentas e vinte e cinco
pessoas, das quais trezentas e setenta não índios. Dentre os índios, havia
trinta e seis considerados livres e dezenove "em estágio de Reeducação".
Os Krenak estavam reduzidos a vinte e dois indivíduos neste Posto
Indígena, ou seja, menos de dez por cento dos moradores do lugar. 59
O presídio foi caindo em desuso, desativado silenciosamente ao
longo do processo da chamada abertura política lenta e gradual. Nos
idos de 1976, isto é, já no governo do general Geisel, o administrador
da Fazenda Guarani informava que o local "não é mais um Centro de
Recuperação e Readaptação de índios delinquentes e não tem meios
legais nem físicos para conter índios da espécie de um Bibiano, que se
prevalece disso sabendo que não podemos usar a força física[ ... ]". 60
O documento deixa transparecer que as torturas haviam sido
suspensas, o que, aliás, se coaduna com as diretrizes que tentavam ser
impostas nesse sentido pelo governo federal naquela data, quando os
casos de tortura ocorridos a partir de 1975 apareciam como contrários
à orientação do Palácio do Planalto. A desobediência a essas novas
regras teve repercussão e causou demissão de importantes chefes mi-
litares, como no caso das mortes sob tortura do jornalista Wladimir
Herzog e do operário Manuel Fiel Filho, em São Paulo. Além disso,
destacam-se as atitudes pouco submissas do índio Bibiano, Xerente,
que, como já foi dito, hoje mora na área dos Krenak.
Mesmo com o presídio desativado em sua face mais repressiva,
a coerção continuava sob outras modalidades e os dirigentes militares
que cuidavam da questão indígena não haviam mudado de mentali-
dade. Veja-se por exemplo o coronel Clodomiro Bloise, delegado
regional da Funai em Governador Valadares em 1976, que assim

58
L. Seky, op. cit., pp. 6-7.
59
Relatório de Antônio Vicente, chefe do Posto Indígena Crenack Fazenda
Guarany, pelo Ofício 022/73, de 28-3-1973, Funai, Museu do Índio.
6
°Cf. Ofício 01/76 de 7-1-1976 do administrador da Fazenda Guarani, apud
M. A. do Espírito Santo. Memória . .. , cit., p. 4.
NA ARCA DE NOÉ, A SOBREVIVÊNCIA POR UM FIO 439
avaliava os índios sob sua administração:

Em princípio desejaria lembrar que os índios que habitam


aquela área são oriundos do Crenack, local de recuperação de
criminosos ou doentes sob vários aspectos: morte, roubo, defi-
C1enc1a mental [....] 61
0
• A

Este militar expressava suas fumaças lombrosianas e retomava


os estereótipos raciais e criminalistas em voga no século XIX e co-
meço do XX, que estigmatizavam as populações e indivíduos tidos
como desviantes a partir de determinantes biológicos ou físicos.
Uma lista elaborada pela Funai registrava os Krenak que se
encontravam neste exílio da Fazenda Guarani:

RELAÇAO NOMINAL DE ÍNDIOS KRENAK NA FAZENDA GuARANI, 1977

N.' deordem Nome Idade Sexo Observações

1 Joaquim Isidoro Crenaque 68 M Aposentado Funrural


2 Lucinda Damasceno 53 F
3 Maria Júlia lzidoro 25 F
4 José Alfredo de Oliveira 32 M
5 Eva Dora Crenaque 35 F
6 Maria Sônia Dora Crenaquc 33 F
7 Maria Augusta Crenaque 38 F
8 Djanira de Sousa Crenaque 24 F
9 Luis Vieira das Graças 10 M Pai e mãe Crenaque
10 Francisco Vieira das Graças 5 M Pai Pankararu, mãe Crenaque
11 Nilza Vieira das Graças 6 F Pai Pankararu, mãe Crenaque
12 Ricardo Vieira das Graças 4 M Pai Pankararu, mãe Crenaque
13 Marlene Vieira das Graças 10 meses F Pai Pankararu, mãe Crenaque
14 Marli Vieira das Graças 1 F Pai Pankararu, mãe Crenaque
15 Ambclina Batista de Oliveira 5 F Pai Crenaque, mãe Pankararu
16 José Carlos de Oliveira 3 M Pai Crenaque, mãe Pankararu
17 Solange Batista de Oliveira 1 F Pai Crenaque, mãe Pankararu
18 Aparecida de Sousa Crenaque 6 F Pai e mãe Crenaque
19 Lindomar de Sousa Crenaque 4 M Pai e mãe Crenaque
20 Arlete Ferre ira Crenaque 1 F Pai F ulniô e mãe Crenaque
21 Marinalva Pereira Crenaque 6 F Pai e mãe Crenaque
22 Roquismar Batista Oliveira 20 meses M Pai e mãe Crenaque
23 Marcos Pereira Crenaque 4 M Pai Xerente e mãe Crenaque
24 Alzira Pereira Crenaque 10meses F Pai Xerente e mãe Crenaque
25 Maria Luzia Crenaque 13 F Pai Maxacali e mãe Crenaque
26 Ronaldo Lino da Silva 6 M Pai F ulniô e mãe Crenaque
27 Lúcia Lino da Silva 5 F Pai Fulniô e mãe Crenaque
28 Biraci Lino da Silva 4 M Pai Fulniô e mãe Crenaque
29 Luzia Lino da Silva 2 F Pai Fulniô e mãe Crenaque
30 Osmar de Oliveira Crenaque 1 M Pai e mãe Crenaque

Fonte: Funai, 1977, transcrita em S. A. Marcato {1979), cit., p. 35.

61
Ofício 051/11". DR/76, de 2-2-1976, apud M. A. do Espírito Santo.
Memória ..., cit., p. 4.
440 KRENAK, ALVORECER DO "POVO NOVO"

Havia, como se vê, apenas oito adultos - os demais eram cri-


anças. Note-se que o órgão indigenista não registrava (e talvez des-
conhecesse) os nomes Borum de cada índio, acrescentando, em al-
guns, o "Crenaque" ao sobrenome, não se sabe com que critério. Ao
mesmo tempo eram anotadas as crianças com pai ou mãe de outra
etnia, com o sentido de reforçar a suposta descaracterização do gru-
po, que aparece indicada em outros documentos.
Muitos Krenak conseguiram fugir da ida à Fazenda Guarani e
se dispersaram: uns em Resplendor e Conselheiro Pena (MG), al-
guns em Colatina e Vitória (ES) e em São Paulo e Mato Grosso, ao
passo que outros "sumiram no mundo" e nunca mais contataram seus
parentes. Sem contar os que morreram de doenças, em condição de
pobreza ou por causas diversas. Vários Krenak, nessa ocasião, passa-
ram a uma situação de clandestinidade étnica, isto é, viviam na so-
ciedade brasileira, em cidades, trabalhando, sem revelarem seus no-
mes indígenas e identidade étnica, embora mantivessem contato com
os parentes. Era uma estratégia extrema para preservarem suas vidas
e identidades e não serem extintos de vez. Outros foram levados para
o Posto Indígena Vanuíre (estado de São Paulo), como Sebastiana
(Tacruk), Laurita (Tacrukinic) e seus filhos. Dejanira (Indjambré),
que ficara na Fazenda Guarani, foi uma das que circulou em outros
lugares onde havia parentes, ajudando a manter o vínculo.
O revés desta vez foi fatal para a mais velha geração dos Kre-
nak, que morreria no exílio em estado de profunda depressão.
Sobreviventes do Massacre do Kuparack em 1923, haviam liderado a
resistência nos ext1ios anteriores, mas agora chegavam a seu termo e
passavam o bastão adiante. Foi assim com Joaquim Grande, Pac, Se-
bastiana e Jacó.
Como lembra Zezão (Kuparak) a respeito de seu tio Joaquim
Grande (Nuknak):

Aí depois nós voltemos pra Guarani, ele não quis sair daqui,
mas a policia algemou ele. Algemou ele e jogaram dentro do
trem. Aí chegou na Fazenda Guarani ele ficou desgostoso e
morreu. 63

63
Depoimento de Depoimento de José da Silva Damasceno Krenak, Zezão,
(Kuparak), ao autor em 11-9-1998.
NA ARCA DE NOÉ, A SOBREVIV:f'.NCIA POR UM FIO 441
Vários relatos dão conta que Joaquim Grande, até então chefe
ou líder dos Krenak, ficou "ruim das ideias" e não sabia mais se situar.
Em uma de suas últimas fotos, tirada neste exílio, aparece não o líder
vigoroso e tenaz, mas um ar de cansaço e melancolia (Figura 84).

Figura 84

Pac, pai de Djanira (lndjambré) e neto do chefe Krenak, "can-


tou toda noite e morreu na manhã seguinte". 64
Os irmãos Sebastiana (Tacruk) e Jacó, também netos do chefe
Krenak, foram fotografados neste exílio posando com arcos e flechas

64 Cf. registro em G . Soares, cit., p. 173.


442 KRENAK, ALVORECER DO "POVO NOVO"

que vendiam como artesanato, com expressão ao mesmo tempo triste


e altiva, abatidos fisicamente (Figura 85).

"'\.

......
u

_.,11o

Figura 85

Os últimos tempos de Jacó foram relatados de forma expressiva


por seu filho Waldemar Krenak (Nadil):

Meu pai começou a ficar muito triste na Fazenda Guarani. Ele


já estava bem de idade. ~ando chegava a noite, ele começava a
falar com a gente. A pensar:
-O que a gente veio fazer aqui? O que esse pessoal está fazen-
do com a gente? Meus parente ta tudo enterrado no Krenak. E
eu tô aqui. Não sei o que faço na Fazenda Guarani. Aqui não
tem o rio pra pescá. Só tem morro! Olha, meus filho, vai acon-
tecer isso: esse lugar não é o meu. Eu quero pedir a vocês quan-
NA ARCA DE NOÉ, A SOBREVIVÊNCIA POR UM FIO 443
do eu morrer, vocês arruma um lugar pr' ocês junto com seus
parentes ... Aqui não dá pr'ocês ficar.
- Ó pai! Não fala isso não. Aqui também tem nossos parente...
-Tem, mas só que aqui não é o lugar nosso. E eu to ficando
triste por isso. Não tenho como voltar para a aldeia. No meio
dessa polícia se a gente voltar ta arriscado até a matar a gente.
Pai adoeceu. Caroço no estômago. Gemia de noite. A gente
falava com os civilizados, mas eles não ligavam. Até que foi
levado para o hospital de Guanhães e morreu. Foi enterrado na
Fazenda Guarani. Longe de Krenak. .. 65

Neste relato de Waldemar Krenak percebe-se ao mesmo tempo


a depressão e esperança dos mais velhos que, mediante uma verda-
deira doutrinação, buscavam sensibilizar e impulsionar os mais jo-
vens para dar o passo seguinte. Ao saírem de cena, apontavam possi-
bilidade de futuro diferente e melhor.

Aí quando fez sete anos nós descobrimos que nós tinha ganhado,
que era mentira dele [capitão Pinheiro], nós tinha ganhado e
ele tinha enganado, tinha tirado nós. Aí nós reunimos lá e deci-
dimos voltar outra vez. E aí nos voltemos. 66

Aí o estado doou a Fazenda Guarani para a Funai. Depois de


sete anos que nós estávamos lá apareceu uns antropólogos lá e aí
avisou nós que tinha ganhado. Aí nós resolvemos voltar pra cá. 67

O prédio antes ocupado pelo presídio no território dos rios


Eme e Doce passara a ser utilizado pelo Patronato da Associação São
Vicente de Paula, uma congregação que usava o local como escola
para crianças, dirigida por padres. Em 1979 ocorreu uma enchente
violenta do rio Doce que alagou e destruiu o prédio e desabrigou a
instituição religiosa. Ao olhar cópia da planta do imóvel do presídio
e avivar sua lembrança, Maria Sônia (Tcharn) tece a narrativa:

65
Depoimento de Wa!demar K.renak (Nadil) em 1989 em G. Soares, p. 147.
66
Depoimento de José Alfredo de Oliveira K.renak, Nego (Him) ao autor em
10-9-1998.
67
Depoimento de José Alfredo de Oliveira K.renak, Nego (Him) ao autor em
14-9-2000.
444 KRENAK, ALVORECER DO "POVO NOVO"

Não, mas esse aqui era do tempo do Patronato, depois que nós
fomos na Fazenda Guarani, no tempo do Patronato. Fizeram a
casa desse jeito. Então quando nós fomos embora, os padres
ficou mandando aqui. No tempo dos índios não era assim não,
eles fizeram um outro andar em cima. No tempo do presídio
era só daqui para cá [aponta no mapa]. Os meninos do patronato
ficou aqui, tinha escola, os padres olhava eles. Tinha de tudo aí.
Os padre chegou e tirou as portas de ferro e colocou porta
normal. Rio encheu [risada alegre] e destruiu tudo. Tá até caí-
do. Diz que morreu até um menino aí. Tiraram o menino de
barco. Panela, colchão, prato, foi tudo embora ... Desabou. Mas
eu não cheguei ver essa casa não. Qyando nós voltemos de Gua-
rani pra cá ela tava toda arriada, té os pessoal nosso ficou tudo
morando embaixo ... Fiquei nove anos na Fazenda Guarani e
os outros ficaram oito, eu fiquei um ano ainda. Por causa dos
meninos pequenos. Aí nós veio pra cá. Nós voltemos pra cá por-
que o pessoal do Krenak tava tudo aqui e nós viemos pra cá. 68

Por essa época da enchente do rio Doce, o país passava por


nova situação: começavam a articular-se movimentos sociais como
de metalúrgicos de São Paulo, canavieiros pernambucanos, trabalha-
dores sem-terra no Paraná e no Pará, estudantes urbanos, além de
lideranças indígenas que se manifestavam em pronunciamentos pú-
blicos. Acentuava-se o processo de abertura lenta e gradual da dita-
dura civil-militar, com o fim da censura prévia à imprensa e anistia
para presos políticos. Águas do rio e ventos da política: os sinais do
tempo se juntavam. Para os Krenak, era a hora do passo seguinte,
tentar mais uma Reconquista.
Em maio de 1980, vinte e sete índios Krenak (adultos e crian-
ças) entraram na área dos rios Eme e Doce e ficaram como posseiros
na estreita faixa de terra que fora até então ocupada pelo Patronato
São Vicente de Paula. Estavam cercados de fazendeiros e rancores,
mas decidiram permanecer e enfrentar a situação. Eles se instalaram
nas ruínas do presídio e do posto indígena. Nessa ocasião os índios
tiveram apoio de organizações não governamentais como o Grupo de
Estudos da Qyestão Indígena (Grequi, hoje desativado) e o Con-
selho Indigenista Missionário (Cimi, ligado à Igreja Católica). Re-

68 Depoimento de Maria Sônia Krcnak (Tcharn) ao autor em 12-9-2000.


NA ARCA DE NOÉ, A SOBREVIVÊNCIA POR UM FIO 445
ceberam também carta de solidariedade do Sindicato dos Trabalha-
dores Rurais de Teófilo Ottoni (MG), no qual se dizia que "grande
número de trabalhadores rurais, trazemos em nosso sangue a herança
indígena" e apoiavam os Krenak na luta pela posse da terra.
Poucos meses após este retorno, a linguista Lucy Seiki visitou
os Krenak e relatou as condições objetivas e subjetivas em que viviam:

As roças tinham sido substituídas por pastos, as árvores frutífe-


ras já não existiam. Muitos estavam enfermos ou convalescentes
de tuberculose mas, mesmo assim, trabalhando sob o sol, ar-
rancando colonião, tentando preparar o terreno para plantio.
Embora enfrentando dificuldades de toda ordem - moradia,
falta de alimentos, tensão resultante da pressão dos fazendeiros,
da incerteza de sua situação- achavam-se tranquilos e dispos-
tos a permanecer ali até a morte. Com os olhos perdidos no rio
Doce, o querido Uatu, com a tranquilidade e a paz de quem
reencontrou suas origens e sua própria razão de ser, os mais
velhos cantarolavam baixinho ou falavam de seu passado, indi-
cando-nos onde ficavam seus locais sagrados, locais de caça, as
grutas onde haviam deixado suas marcas. 69

Essa boa disposição ou ânimo dos Krenak foi percebida na oca-


sião por outros observadores não índios que em parte se surpreende-
ram, diante da situação de adversidade. A antropóloga Izabel Missagia
relaciona tal comportamento à vivência de uma "força mágica", Yiekéng
na língua Borum, palavra colhida por Curt Nimuendajú anos antes
que, no plano cosmológico, significa uma energia e predisposição
que aumentam quando eles se encontram em suas próprias terras. 70 A
terra (nak) voltara para lá com eles.
A arca não estava mais à deriva, porém o dilúvio persistia. Du-
rante dezessete anos os Krenak permaneceriam nessa situação precá-
ria em suas próprias terras. Foram tempos de incerteza, sofrimento,
mas também de inefável e sólida esperança.
Um levantamento parcial indicava que desde o primeiro exílio
na área Maxacali em 1958 até 1990, haviam morrido pelo menos
trinta e um índios Krenak pelas mais diversas causas, no âmbito dessa

69
L. Scki, op. cit., p. 9.
70
I. M . M attos (1996, p. 116).
446 KRENAK, ALVORECER DO "POVO NOVO"

diáspora a que foram lançados: além dos mais velhos que se abateram
pela depressão, dois por atropelamento na Estrada de Ferro Vitória-
-Minas, outro atingido por bala perdida num ônibus, dois por afoga-
mento no rio Doce, duas por problemas no parto, dois de úlcera, um
suicídio, um natimorto ... 71 Fora os casos que não chegaram a ser
anotados e os que desapareceram das vistas dos parentes.
Entre as mortes mais traumáticas, sobre a qual ainda paira um
silêncio pesado, está a de Augusto K.renak, em 1988, aos quarenta e
dois anos. Os acusados de sua morte são índios K.renak e outros não
índios que moravam na área. Augusto, oriundo dos Nackrehés, era
irmão de José Alfredo (Nego- Him) e considerado figura destaca-
da na luta pela posse da terra. Durante o "tempo do capitão Pinheiro"
caiu na clandestinidade e ficou foragido da área, para a qual voltou
nos idos de 1980, sendo um dos mais ativos na mobilização. Partici-
pou também de reuniões no Cimi com o bispo D. Tomás Balduíno.
Augusto teve quatro filhos (Manuel, Roseli, Wanderlei e Otaviano)
e foi casado com três mulheres, a última delas Marilza, filha de Laurita
(Tacruk). Há várias versões sobre os motivos de seu assassinato, to-
das girando em torno de antigas rivalidades entre os subgrupos de
Botocudos. Para os parentes de Augusto, o assassinato interessava a
fazendeiros que ocupavam as terras indígenas e teria sido estimulado
por alguns deles. Outros enxergaram novo capítulo de uma antiga
rixa entre Gutkraks e Nackrehés, na qual o chefe K.rembá (Gutkrak)
teria sido morto por Nackerehés décadas antes: nesse sentido a morte
de Augusto seria uma vingança que mantinha acesa a contenda, den-
tro da lógica de facciosidade, característica tradicional da organiza-
ção social desses grupos. Para outros, o estopim teria sido justamente
o fato de Augusto ter-se casado com uma índia do grupo rival. Fa-
lam-se ainda de reuniões envolvendo as demais "famílias" K.renak
que teriam decidido pela eliminação do referido índio. 72 As raras
referências desse episódio partem em geral de não índios. Passadas
mais de duas décadas, os K.renak dificilmente se dispõem a falar pu-
blicamente sobre este segredo interno. Apenas uma vez ouvi menção
fugaz. José Alfredo (Him) numa conversa informal no terreiro de sua
casa, num fim de tarde, referiu-se à morte do irmão sozinho por um

71
Cf. G. Soares, cit., pp. 173-4.
72
Um apanhado dessas discussões sobre este assassinato encontra-se na disser-
tação de I. M. Marttos (1996).
NA AR CA D E NOÉ, A SOBREVJVÉNCIA POR UM FIO 447
grupo armado como covardia, seus dentes cerraram e tive a impressão
que seus olhos marejaram. Mas não ousei interromper o longo silên-
cio que se seguiu ao desabafo.
Aos poucos foram chegando alguns Krenak de volta, enquanto
os demais, mesmo espalhados pelo país, estavam atentos à atuação de
seus parentes e ao embate decisivo que se travava em suas terras.
Alguns visitavam-se esporadicamente para manter contato. A foto-
grafla em alguns casos reforçava os laços de memória e afetividade
entre os familiares separados pelo exílio. Sugestivo foi o episódio
vivenciado pela linguista Lucy Seiki que, ao mostrar para um Krenak
que se encontrava no Posto Vanuíre (SP) fotos de seus parentes do rio
Doce percebeu que o índio ficou "profundamente emocionado":

Tremia-lhe todo o corpo e ele ficou por uns bons momentos


impossibilitado de pronunciar qualquer palavra. As notícias sobre
as fotos se espalharam e, durante a nossa estada em Vanuíre,
outros representantes Botocudos vinham visitar-nos trazendo
seus familiares para "conhecerem" a sua terra e a sua gente. 73

Os Krenak agora se apropriavam dos ícones feitos sobre eles


que passavam a ser vistos não apenas como forma de captura pela
imagem ou enquadre civilizador, mas transformavam-se em elo de
lembrança e ligação. As fotos serviam para romper simbolicamente a
distância imposta e ajudavam a manter viva a presença dos demais.
Ao mesmo tempo as fotos tiradas por pessoas e grupos de apoio,
registrando a luta dos Krenak pela retomada das terras, cenas do co-
tidiano e rostos de familiares, iam sendo guardadas cuidadosamente
por José Alfredo (Him). Este, em 1981, escreve um relato da luta de
seu povo desde o primeiro exílio em 1958. É possivelmente o pri-
meiro texto escrito por um Krenak sobre sua própria história, teste-
munhando embates, revezes, conquistas e esperanças: "Esta é a pri-
meira vez que pego nesta caneta para dizer as nossas notícias tão
simples. 74 Relembra a ida para a área Maxacali, a repressão policial
militar, o presídio, trabalhos forçados, o exílio na Fazenda Guarani, a
pressão dos fazendeiros, a conivência da Funai. A permanência em
seus territórios era o ponto central da argumentação:

73
L. Seiky, op. cit., p. 9.
448 KRENAK, ALVORECER DO "POVO NOVO"

Nós temos documento da nossa terra e sabemos que as terras


são nossas e onde morou nossos parentes. [... ] Tiraram nós
com a polícia, preso, amarrado, como se fosse uns porco. [... ]
Nós estamos entrando mais para dentro da terra que é nossa e
os fazendeiro fala que é deles. [... ] Nós temos muita gente e
queremos trabalhar e está sem jeito de trabalhar e não tem lu-
gar para trabalhar. Então nós estamos entrando na terra para
garantir que a terra é nossa.

Foi nesse período que José Alfredo, seu Nego, passa a ser reconhe-
cido como cacique dos Krenak, sobretudo como interlocutor junto à
sociedade nacional, embora sem anuência de todas as "famílias" Kre-
nak. Ele sucede assim Joaquim Grande que falecera um pouco antes.

~ando foi pra voltar da Fazenda Guarani pra cá ninguém ti-


nha coragem. Eu fui o único que teve coragem e aí me coloca-
ram como cacique. Aí nós voltemo. Muita gente ficou com
medo e vieram só três famílias. Viemos e acampemos aí, duran-
te dois, três anos, e os outros foi chegando atrás, foi chegando,
foi chegando ... Até hoje inda tá chegando gente [riso de satis-
fação]. Um bocado de gente. 75

A escrita, a fotografia, os registros históricos e os documentos


jurídicos passam a ser usados pelos índios em defesa de suas terras e
condições étnicas diferenciadas. No plano nacional surgiam vozes
expressivas, até mesmo com ativa mobilização em torno da Assembleia
Nacional Constituinte de 1987, que resultou em conquistas das primei-
ras referências, em textos constitucionais brasileiros, dos direitos cultu-
rais e territoriais indígenas na Constituição de 1988. Destacaram-se
nessa mobilização nomes como Marcos Terena e Aílton Krenak.
Os Krenak passam a frequentar assembleias e encontros do
movimento indígena organizado. Em 1984 realiza-se o Primeiro
Congresso dos Povos Indígenas de Minas Gerais, reunindo represen-
tantes Maxakali, Xacriabá, Pataxó, Tupiniquim, Guarani e Krenak. 76

74
Carta transcrita na íntegra em G . Soares, p. 153.
75
Depoimento de José Alfredo de Olveira Krenak (Him) ao autor cm 10-9-
1998.
76
Cf. G. Soares, p. 154.
NA ARCA DE NOÉ, A SOBREVIVÊNCIA POR UM FIO 449
Apesar de tradicionais rivalidades étnicas, partilhavam experiência
histórica em comum, inclusive a recente tutela policial militar. No
retorno desse encontro os Krenak ampliam a área ocupada, entrando
em fazendas tituladas pela Ruralminas. Uma decisão judicial deter-
mina o despejo. Mas outro juiz assinala os possíveis direitos dos ín-
dios e leva a causa a ser julgada em Belo Horiwnte. Qyatro anos
depois uma nova decisão judiciária determina o despejo dos Krenak,
que é cumprido com novos episódios de violência policial: planta-
ções e criações destruídas, casas arrebentadas, pertences lançados na
rua e ameaças com armas de fogo. Tiveram de voltar à estreita faixa
de oitenta hectares antes ocupada pelo Patronato São Vicente de Paula,
deixando os restantes três mil e novecentos hectares em mãos dos
colonos não índios.
Um documentário curta-metragem intitulado Krenak.r/Maxacalis
foi realizado em 1989 pela Massangana Multimídia Produções, da
Fundação Joaquim Nabuco, na série "Nossos Índios", em parceria
com a Funai, objetivando registrar "a vida e os costumes dos rema-
nescentes de diversos grupos indígenas do Nordeste". A parte relativa
aos Krenak mostra imagens de gado, curral, paisagens e alguns índios
em volta do rio Doce ao som da Bachiana n. o 5, de Villa Lobos.
Somente falam os funcionários não índios da Funai e as irmãs Júlia e
Maria Sônia Krenak não chegam a completar uma frase ao serem
ouvidas, além de não terem seus nomes identificados no flime . Os
Krenak eram espoliados não só em suas terras, mas também em suas
palavras. Na parte relativa aos Maxacali, a entrevista mais longa é
com um fazendeiro que reclama da presença desses índios próximos a
suas terras. Curiosa maneira de registrar a vida e os costumes dos
povos indígenas à custa do dinheiro público.
Em 1983 a Funai ingressara com ação para reintegração dos
índios ao total da área de quatro mil hectares efetivada em 1920 pelo
acordo entre o então SPI e o governo federal. Era, assim, o reconhe-
cimento oficial de que os Krenak não estavam extintos, ao contrário
do que insistiam em afirmar os fazendeiros em seus recursos judiciais.
Para esse processo de reconhecimento da identidade étnica foi deci-
siva a elaboração do laudo antropológico pelo órgão indigenista, que
ficou a cargo da antropóloga Maria Hilda Barqueiro Paraíso. O lau-
do, encaminhado em 1990, foi favorável aos índios, fazendo um am-
plo e detalhado levantamento de suas tradições históricas e ainda
presentes através da cosmologia, da consciência de suas especificidades
450 KRENAK, ALVORECER DO "POVO NOVO"

no interior da sociedade nacional, dos laços familiares e linguísticos e


da referência àquele território entre os rios Eme e Doce como área
tradicional. Maria Hilda, posteriormente professora do Programa de
Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Bahia, fize-
ra sua dissertação de Mestrado (1982) e faria sua tese de Doutorado
(1998b) sobre a trajetória dos Botocudos/K.renak e de outros grupos
indígenas da região.
A movimentação dos Krenak e seu ressurgimento geraram al-
gumas publicações e estudos que, numa perspectiva de solidariedade
e apoio a este povo, também ajudaram a efetivar a Reconquista. Em
maio de 1979 o Boletim do Museu do Índio, da Funai, publica um
trabalho da professora da Universidade Federal de Juiz de Fora, Sônia
de Almeida Marca to, chamado "A repressão contra os Botocudos em
Minas Gerais". Antes, portanto, do retorno do exílio da Fazenda
Guarani, e ainda durante a ditadura, o trabalho foi um dos primeiros
a olhar de forma crítica a experiência recente da repressão militar a
que os Krenak foram submetidos, baseando-se em documentação his-
tórica, documentos oficiais, pesquisa de campo e conversas com os
índios. No mesmo contexto e usando igualmente documentação es-
crita e relatos orais, a linguista Lucy Seiki, professora da Universi-
dade de Campinas, esteve várias vezes com os K.renak durante a dita-
dura e seu trabalho seria publicado também no Boletim do Museu do
Índio em 1992. A pesquisadora Geralda Chaves Soares recolheu ex-
pressivos depoimentos dos K.renak em fins dos anos 1980 e publicou
em 1992 o livro Os Borum do Watu. Os índios do rio Doce, pela organi-
zação não governamental Cefedes, de Minas Gerais: trata-se de um
trabalho de perspectiva militante no qual a autora toma posição e dá
voz, aos índios entrevistados. 77 A antropóloga Izabel Misságia de Mattos,
atualmente professora da Universidade Católica de Goiás, esteve tam-
bém em pesquisa de campo com os Krenak e deu ênfase às questões de
cosmologia, parentesco e relações sociais em sua dissertação de Mes-
trado sobre este povo defendida na Universidade de Campinas em
1996. Posteriormente esta antropóloga faria sua tese de doutorado
também na Unicamp sobre o mesmo grupo étnico, com a qual ga-
nharia o Prêmio Anpocs-Edusc de Antropologia em 2003.

77
Este livro estava esgotado e consegui obter um graças à generosidade deIta-
mar Souza Ferreira Krenak (Tchak), personagem do livro quando criança e que gen-
tilmente cedeu seu próprio exemplar, com anotações manuscritas e até alguns desenhos.
NA ARCA DE NOÉ, A SOBREVIVÊNCIA POR UM FIO 451
Era um conjunto de estudos que se colocava na perspectiva de
apoiar, compreender e estudar essa população indígena, com ênfase
na abordagem antropológica moderna e na trajetória histórica dos
Krenak/Botocudos, bem como na situação daquele tempo presente,
reconhecendo e defendendo para tais índios o direito à especificidade
de seus territórios, culturas e tradições, ainda que transformadas, no
interior da sociedade nacional. Os Krenak, cuja força cultural e histó-
rica servia de material e inspiração para tais estudos, além de serem
fontes ou informantes, sempre se interessaram em tomar conhecimento
do conteúdo de tais trabalhos relativos às suas vidas e história e inva-
riavelmente tomam posições e formam opiniões próprias (nem sem-
pre favoráveis) sobre tais obras.
Finalmente em 1996 o Supremo Tribunal Federal (STF), para
onde a questão da posse da terra fora levada, deu ganho de causa aos
Krenak, determinando a retirada dos não índios da área de quatro mil
hectares. Estes, entretanto, entraram com um recurso solicitando prazo
maior para saírem de lá. E em abril de 1997 o STF negou tal recurso,
ordenando que fosse cumprido imediatamente a retirada das cinquenta
e quatro famílias que ainda permaneciam. O juiz substituto da 3.•
Vara da Justiça Federal, ltelmar Raydan Evangelista, determinou à
Polícia Federal, ao Incra e à Procuradoria da República que executas-
sem a ordem. Alguns proprietários não índios, revoltados e num último
gesto de desespero, demoliram as próprias casas e destruíram planta-
ções, para que os índios não ficassem com nada. E com alguma co-
bertura da imprensa regional e nacional, no dia 29 de abril de 1997,
autoridades e forças policiais chegaram na área - dessa vez a favor
dos índios - para retirar os últimos colonos que se recusavam a sair.
A arca se abria e desmanchava. A terra em volta estava ressequida,
desmatada, casas destruídas. Ainda havia muito que semear. Mas o
dilúvio de quatro décadas chegara ao fim.
Capítulo 12
SEMENTES NA TERRA RECONQUISTADA

Enquanto o carro deslizava pela estrada, lembranças e ex-


pectativas misturavam-se. De minha casa no Rio de Janeiro à reserva
indígena Krenak em Minas Gerais é possível ir em doze horas. Dias
antes de partir, eu ainda me perguntava: o que um historiador vai
fazer no meio dos índios? Seria uma viagem nacional-etnográfica
(Mário de Andrade)? Ou etnológica (comment devient-on ethnologue,
Lévi-Strauss)? Relera Tristes tropiques, devorara um impecável ma-
nual de pesquisa de campo para antropólogos. Voltara ao bom e ve-
lho Léry. Consultara textos sobre história oral. 1 Tudo bem. Mas eu
não partia em busca da brasilidade recôndita, nem desvelar estruturas
mentais ou parentais, não pretendia descobrir antropófagos, nem ten-
taria a história do tempo presente por meio de entrevistas.
Outros motores me impulsionavam. Estava imerso, há alguns
anos, na história desse povo, repleta de tragédia, violência e resistên-
cia. Conhecera inúmeras representações culturais elaboradas sobre
eles. Para um historiador dedicado ao século XIX, avizinhava-se um
contato direto, e inédito, com personagens ao vivo. Sentia-me como a
protagonista Cecília, de Rosa púrpura do Cairo, de Woody Allen: de
tanto olhar o fUme, acabou entrando na tela e convivendo com os
atores. Havia, ainda, o exercício do encontro com o Outro, outros
códigos culturais e sociais - e nisso me baseava em experiências

1
M . de Andrade. O turista aprendiz . .. , [1927] 1976; C. Lévi-Strauss. Tristes
tropiques . .. {1955} 1984; J. Servier. Méthode de /'ethnologie. . ., 1986; M . M. Ferreira
&]. Amado. Usos e abusos da história oral. . ., 1996.
452
SEMENTES NA TERRA RECONQUISTADA 453
pessoais anteriores, anos de convívio, pesquisa e militância em favelas
e entre camadas pobres urbanas, livros de Paulo Freire.
Interligando tais motivações, um compromisso ético, marcado
de emoção e solidariedade, desafio que brotara das entranhas da pes-
quisa sobre história indígena: não podia mais ficar indiferente à vida
dessas pessoas, que adquiriam para mim imenso valor, de patrimônio
da humanidade, por estarem vivas, por serem de alguma maneira
desenlace e destino de uma história de longa duração que eu encon-
trara e sobre a qual escrevia. O verbo se faria carne.
Os historiadores por muito tempo contribuíram e contribuem
para a opressão sobre os índios, mesmo sem se relacionarem diretamente
com tais grupos, mas gerando imagens, criando, reforçando e divulgan-
do estereótipos e preconceitos ou simplesmente calando-se sobre o
tema. E talvez a contribuição dos historiadores (espécies de arqueólo-
gos de artefatos simbólicos, impressos ou verbais, ou como antropólogos
de um diálogo entre o passado e o presente de culturas diferentes) es-
teja apontada neste cruzamento de perspectivas (que não se confundem,
mas que se interligam na construção da trama histórica), enfocando
os índios não como objetos, mas como sujeitos históricos. Mesmo a
documentação produzida pelos "brancos" (sic) está permeada em suas
linhas e entrelinhas das falas, gestos e presenças indígenas. É importan-
te, neste caso, decodificá-las. Gerações e gerações de historiadores
imersos e comprometidos com determinados paradigmas de edificação
nacional baseados na homogeneização política e cultural não superam
tais padrões de uma hora para outra: acabam largando pelo caminho
a lição "antropofágica" de Marc Bloch para quem o historiador, como
o monstro da lenda, sente apetite ao farejar presença humana. 2
Como um passante, eu pretendia me deslocar de uma margem à
outra, do passado ao presente, para me nutrir com os índios que estão
vivos e relacioná-los a tudo que não desaparecera totalmente, espe-
rando poder caminhar com eles, nestas idas e vindas temporais. 3
Eu seria o primeiro visitante (fora do círculo dos que já fre-
quentavam o grupo) a chegar lá após a Reconquista legal de suas
terras, efetivada pelo Supremo Tribunal Federal em abril de 1997.

2
"Já o bom historiador se parece com o ogro da lenda. Onde farejar carne
humana, sabe que ali está a sua caça". M . Bloch. Apologia da história. .. , p. 54.
3
Sobre estas "viagens" no tempo histórico entre presente e passado, v. A.
Farge, 2000, p. 9.
454 KRENAK, ALVORECER DO "POVO NOVO"

Estávamos em setembro de 1998. 4 Várias vezes fora alertado, nos


preparativos da viagem, de que em geral esses índios eram desconfia-
dos, não gostavam de entrevistas, que eu não me decepcionasse se nas
primeiras vezes não falassem nada ... Desde que não sejam canibais,
está ótimo, retrucava brincando.
Finalmente o carro sai do asfalto e pega uma estradinha de
terra. Solavancos. Poucas casinhas ao longo, roças, um riacho, árvo-
res ralas. Logo vem a placa do governo federal indicando a entrada na
área indígena. O veículo estaciona no terreiro de uma casa de alvena-
ria avarandada, modesta, erguida sobre pilastras de madeira. Em vol-
ta, poucas cabeças de gado e galinhas ciscando.

Him: a luta continua

Logo me vejo sentado na velha poltrona da casa de José Alfredo


de Oliveira, então com cinquenta e quatro anos, apelidado de seu
Nego, reconhecido como cacique, cujo nome na língua Krenak é
Him (com o "h" aspirado, significa negro), como já foi visto. Expli-
quei os motivos de minha visita: resumo das pesquisas até ali e a
relevância que eu via em encontrar-me com eles. Mostrei-lhe algu-
mas reproduções de imagens antigas, do século XIX e XX. Ele escu-
tou e olhou tudo com muita atenção, identificou, nos registras mais
recentes, rostos de parentes e conhecidos. Em seguida, levantou-se e
voltou de seu quarto com uma batelada de pequenos álbuns e envelo-
pes de fotos e passou a mostrar-me também. O gesto, aparentemente
banal, pareceu-me importante por vários motivos. 5 Qyando visita-
mos parentes ou amigos existe o hábito de olharmos e trocarmos
fotos. Mas a troca que começava a estabelecer-se ali era diferente,
pois estávamos nos vendo pela primeira vez e apenas depois de alguns
instantes. Iniciava-se um escambo simbólico (Figura 86).

4
Entre os dias 8 a 12 de setembro de 1998, 4 a 8 de fevereiro de 2000 e 11 a
15 de setembro de 2000 estive entre os Krenak na reserva indígena em Resplendor
(MG), como parte dessa pesquisa histórica. Os depoimentos colhidos foram frutos
dessas viagens, nas quais fUmei, fotografei e conversei informalmente com vários
índios. Os relatos destas três visitas estão condensados neste capítulo e citados nos
capítulos anteriores.
5
"Montrez vos photos à quelqu'un; il sortira aussitôt les siennes." Roland
Barthes. La chambre claire. Note sur la photographie. Paris: Cahiers du Cinéma/Gallimard/
Seuil, 1980, p. 16.
SEMENTES NA TERRA RECONQUISTADA 455

Figura 86

Como historiador conhecera os índios de "papel velho", ou


melhor, as marcas deixadas pela presença e ação dos índios em dife-
rentes documentos. E uma das minhas formulações centrais para buscar
compreender a trajetória desse povo era justamente a de que o contato
com os homens da ciência e os intelectuais letrados (e respectivas
produções) foi uma das formas mais eficazes no processo de domina-
ção intentado sobre esses grupos. Constatar agora que uma de suas
lideranças tinha também seu próprio acervo de imagens, de ícones
fotográficos, ganhava dimensão literalmente significativa. 6 Como se
a resistência tivesse se estendido do campo propriamente bélico, guer-
reiro ou cultural, para a disputa também no campo simbólico. E real-
mente seu Nego tem esta prática reconhecida no interior do grupo:
recolhe fotos de família, pede a visitantes que tirem retratos regis-
trando momentos significativos, cobra o envio destas fotografias, guar-
da-as cuidadosamente. Não são apenas cenas domésticas, mas tam-
bém uma verdadeira galeria de registros sobre a luta pela posse da
terra das últimas quatro décadas, da qual ele participou ativamente:

6
Ver o artigo de José Ribamar Bessa Freire. A descoberta do museu pelos
índios. Cadernos de etnomuseologia, n.• 1, Programa de Estudos dos Povos Indígenas,
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 1999, pp. 9-36.
456 KRENAK, ALVORECER DO "POVO NOVO"

instantâneos de encontros com autoridades, de reuniões de lideranças


indígenas. Sua voz engasga um pouco de emoção ao mostrar o retrato
(tremido no foco e já desbotando na cor) com a cena do despejo
forçado que sofreram de suas terras, quando foram arrastados dali por
soldados durante a ditadura civil-militar em 1972.
Depois de ter conhecido grande parte do aparato científico e
cultural produzido ao longo de cinco séculos sobre este grupo indí-
gena eu me deparava com aqueles papéis guardados em envelopes da
Kodak e que representam, de alguma maneira, a formação por este
chefe Krenak de um aparato próprio de memória por meio de ima-
gens não apenas orais ou artesanais, mas apropriando-se, dentro de
suas possibilidades, das mesmas técnicas utilizadas sobre esse grupo
desde a invenção da fotografia pelo daguerreótipo.
Mostrei os daguerreótipos de 1844 para seu Nego, explicando
em algumas palavras o significado que atribuo a tais imagens: onde
as encontrei, sua antiguidade, etc. Eu havia mostrado antes os
daguerreótipos de Botocudos feitos por Marc Ferrez em 1876 e ele,
rindo, não aceitou identificar-se com os índios ali retratados, indicando
que deveriam ser de outra etnia. Mas diante das imagens de 1844 sua
atitude foi diferente. Olhou longamente, uma por uma, em silêncio.
Repetiu a operação várias vezes, sentado na varanda de sua casa com
ampla vista sobre a área Krenak. Deixei-o observar e trouxe mais
algumas informações que recolhera em arquivos, como a recomendação
de que aquele casal deveria ser estudado na Zoologia, como bichos.
Nesse ponto ele interrompeu a observação das fotos e comentou:
-Até hoje o povo considera os índios como bicho ... hé! ...
[leve risada irônica].
Momento de silêncio, olha de novo as fotos, detendo-se na do
rapaz que está de "três quartos". E continua:
- Não têm assim confiança nos índios como gente, né? Eles
acham que os índios é... bicho do mato! hé!. .. [novo riso irânico e
curto].
Pausa. Retoma a conversa, mas agora deixando de olhar as fo-
tos que estão à sua frente e virando de lado o rosto e o resto do corpo
em direção ao exterior, à ampla área em sua volta, com árvores, rio,
colinas, vale, e montanhas na linha do horizonte.
-Até agora mesmo eles mataram muito índio guerreando ...
Tem um caso que contam que, ali, embaixo [aponta] mataram ele na
prisão, os brancos mataram ele.
SEMENTES NA TERRA RECONQUISTADA 457
A conversa foi longa e a partir daí o chefe Him não mais olha-
va para as fotos em sua frente, mas vagueava o olhar pelo território ao
redor enquanto falava, embora umas duas vezes tenha recorrido à
consulta de fotos antigas para exemplificar o que estava falando. A
propósito do aspecto doente do rapaz do daguerreótipo, ele denuncia
as precárias condições de saúde dos atuais índios: a Funai e a Funasa
não têm dado a devida assistência médica aos Krenak. Uma simples
consulta ou compra de medicamento requer grandes esforços e des-
locamentos sem nenhum apoio, diz.
As fotografias puxaram o fio da memória, interligando também
diferentes tempos. Seu Nego agora passa a lembrar os anos 1970,
quando militares ocupavam a área indígena e proibiam os moradores
de falarem em suas línguas originais. O "tempo do capitão Pinheiro",
conforme o capítulo anterior.
Com esse depoimento percebi que começava a realizar uma
troca ou escambo simbólico. Em diferentes dimensões. A começar
pela mostra recíproca de fotografias e reproduções antigas. Como
também por um certo intercâmbio de informações que cada um tra-
zia: eu, como pesquisador, da investigação nos arquivos e de minhas
hipóteses; ele, como personagem, de suas vivências e reflexões. Os
daguerreótipos e o desejo de cada um de falar, a partir daqueles retra-
tos, funcionaram como catalisador de expressões diferentes sobre uma
mesma temática, que é a história daquele grupo indígena.
Pergunto sobre o falar Borum e Him pronuncia algumas pala-
vras "na língua": nariz, cabeça, olho, catarro (após uma tosse, da tu-
berculose não totalmente curada), galinha, cavalo, boi, etc. Identifi-
quei as mesmas palavras dos vocabulários do século XIX colhidas
por Wied-Neuwied, Saint-Hilaire e Jomard- e era a primeira vez
que as ouvia pronunciadas.
Seu Nego trouxe até a atualidade algo que a princípio eu tomava
como típico sobretudo do século XIX, a animalização dos índios. As-
sociou imediatamente a guerra e a repressão militar com aquelas ima-
gens, falou do ar de tristeza (que aparece também em sua própria fi-
sionomia, ao mesmo tempo resoluta, cf. Figura 87) e de suas motivações
social e historicamente situadas. Deixou entrever riso irônico e sutil
diante de situações dramáticas, que me fez lembrar a expressão da
índia do retrato. Mostrou-me seus dois arquivos: o de imagens foto-
gráficas e o da memória pessoal como pertencente a uma coletividade
com identidade própria. Os daguerreótipos de 1844 representaram,
458 KRENAK, ALVORECER DO "POVO NOVO"

de certa maneira, uma das "descobertas" da fotografia em relação aos


índios. Ao "descobrir" ele próprio esses daguerreótipos, o chefe Him
deu a eles um sentido dentro da história de seu grupo e de sua própria
história pessoal. Eu, como historiador, pude olhar e de alguma ma-
neira interferir nestas duas "descobertas" e fazer as minhas próprias,
tanto dos retratos antigos, como dos Krenak de hoje, num entrelaçar
de tempos e olhares que não é linear e que pode se desdobrar ao
infinito. Durante a conversa, ao fundo, um galo cantava, nítido, forte.

Figura 87
SEMENTES NA TERRA RECONQUISTADA 459
Estaria a terra prometida alcançada? A situação estava resolvi-
da após a decisão do STF no ano anterior, reconhecendo a proprie-
dade da área para os Krenak? Na percepção de Him, a luta continua-
va ainda em 1998, embora em outras condições:

Nós recebemos a área mas não tá respeitada não. Os fazendeiro


tão tacando boi aí dentro e a Funai não tá tomando providência
nenhuma. Não tá fazendo a cerca e quer que os índios mesmo
façam as cerca, não tá mandando material nenhum. De onde é
que os índios vai tirar material pra cerca se os índios não têm
como sobreviver? A obrigação é da Funai, não é dos índios não.
Obrigação da Funai é demarcar a terra e fazer a cerca praga-
rantir a área. Se ela marcar a terra e deixar pra lá por conta dos
outros não está garantido nada. Então pra que os funcionários
da Funai? Só pra ganhar dinheiro? Qyer dizer que eles ganha
pra cuidar dos índios e os índios é que vai cuidar da área pra
eles? Isso aí é responsabilidade da Funai.

Experiente de longas décadas na relação entre o grupo indígena


e o Estado nacional brasileiro (sem contar a experiência transmitida
por seus antepassados), José Alfredo assinalava a tensão ainda existente
com fazendeiros e, sobretudo, demarcava politicamente o terreno das
relações com o órgão indigenista. Nos tempos do SPI, como nos tem-
pos da Funai durante a ditadura civil-militar, era corriqueiro colocar os
índios como mão de obra a serviço do órgão indigenista, ou mesmo a
serviço de terceiros. Agora, Him invertia a relação e explicitava: o
Estado brasileiro, por intermédio da Funai, é que deve estar a serviço
dos índios, não o contrário. Não cabe aos índios trabalharem para colocar
as cercas e fazerem a demarcação, isso cabe à administração pública.
Entre a conversa surge o cafezinho e a impecável hospitalidade
de D. Maria (e também da filha Solange), esposa de seu Nego, índia
Pankararu que veio para a área na época do presídio acompanhando
o irmão detento.
Indago a seu Nego sobre a badalação midiática (em sua casa há
um aparelho de TV com antena parabólica) em torno dos quinhentos
anos da "Descoberta" do Brasil e ele comenta:

Fico até sem graça de contar esses quinhentos anos. Se for con-
tar é quinhentos anos de sofrimento para os índios, né? Té hoje
460 KRENAK, ALVORECER DO "POVO NOVO"

os índios tão sofrendo. Sofremos até . .. Inda tamos sofrendo,


porque essa área de terra aqui té hoje não concluíram a demar-
cação ainda, já tá com dois anos. Nem fizeram a cerca, nem
divisa, nem nada. Ta tudo bagunçado. Tem criação dos branco
aqui dentro. Tem mais criação dos branco aqui dentro do que
dos índios. Não sei quem é responsável pelo patrimônio da União,
se a Funai, se os índios ... Do jeito que a Funai está fazendo ela
quer é bagunça. Só querem ganhar do dinheiro e ficam quieto,
não fazem nada, não cumprem com a obrigação. Tem uma tal
de Funasa agora que acabou com o direito de tratamento dos
índios, porque eu mesmo fui fazer um tratamento e foi muito
difícil. Não tem mais ambulância agora. Não sei não ... Desse
jeito em vez de melhorar está piorando cada vez mais, né?

Mais uma vez, com clareza, ele faz a ponte entre o passado e o
presente e recoloca a relação entre o Estado nacional e os índios, tra-
zendo o relato para a situação específica do território Krenak após o
reconhecimento legal das terras. Ainda há o que conquistar. Sobretu-
do porque essas mesmas terras já haviam sido registradas legalmente
em nome dos índios em 1920 e isso não foi suficiente para impedir
que eles fossem expulsos de lá.
Nos intervalos da conversa compro um punhado de colares e
pulseiras artesanais, madeira e sementes, feitos por D. Maria e por
sua filha Ambelina: são talhados com precisão e harmonia. Posterior-
mente, verifico que são semelhantes a ornamentos que eu vira em
antiga gravura de Rugendas (Figura 16).
Sintetizando a história de seu povo, por ele vivida e percebida,
Him afirma:

Aqui tinha muito índio. Foi cabando tudo, foi brigando .. . foi
matando, foi cabando tudo. Agora que ta se formando outra vez
[abre um sorriso].

Este sentimento de alegria e esperança, de renovação e recome-


çar da vida, é marcante em todos os Krenak que encontrei, dos mais
velhos aos jovens. Ao fundo, o galo insistia em cantar em pleno dia,
estridente e perturbador.
No dia seguinte a este encontro fui guiado por dois filhos de
seu Nego, José Carlos e Solange, para transitar pela área Krenak e
SEMENTES NA TERRA RECONQUISTADA 461
mesmo fora dela (Figura 88). Marcante foi a ida à Pedra da Pintura,
do outro lado do rio Doce, já fora da atual reserva, mas também
território tradicional desses índios. A subida de duas horas pela mon-
tanha num dia ensolarado foi terrível para o pesquisador urbano, apesar
da paisagem agradável e de uma queda d'água onde paramos para
refrescar. Estava no grupo um primo de ambos, que mora no Espírito
Santo, cujos pais partiram na época dos exílios e hoje não se identifi-
cam mais como índios, embora visitem e mantenham contato com os
parentes. E também Marly Schiavini de Castro, professora, pesqui-
sadora e militante de movimentos sociais, uma das raras moradoras
do município que se solidarizou com os Krenak, acompanhando e
participando da luta pela posse da terra, aprendendo Borum e criando
com os índios laços de amizade e até de compadrio.

Figura 88

Durante uma das paradas para descanso pergunto a José Carlos


(que nasceu durante o exílio da Fazenda Guarani e tornou-se um dos
professores da escola bilíngue da área) qual seu nome "na língua":
462 KRENAK, ALVORECER DO "POVO NOVO"

É Kren. E não cream . . . - responde, fazendo trocadilho entre Kren


(cabeça em Borum) e cream (creme em inglês). José Carlos já partici-
pou de vários encontros de lideranças indígenas, incluindo uma tem-
porada em Londres. Sua irmã Solange chama-se Tetuita. O primo
disse apenas seu nome brasileiro. De José Carlos ouvi um caso que
considero antológico: estava participando de um debate numa uni-
versidade quando foi interpelado por uma senhora na assistência que
colocava em dúvida sua condição indígena, por estar de roupa e falar
português. José Carlos Krenak não titubeou:
- Se a questão é essa, posso falar em Borum, mas a senhora
não vai entender. O!Ianto a roupa, se quiser, podemos ir para um local
mais discreto e eu tiro a roupa...
Pano rápido. A "Pedra da Pintura" possui, além de uma espeta-
cular vista panorâmica sobre o rio Doce e a reserva indígena, um
conjunto de pinturas rupestres em grutas e mesmo ao ar livre, às quais
os índios dão importância e sempre se referem em conversas e depo-
imentos. Fiquei impressionado com a agilidade com que os jovens
subiam e desciam das escarpas (Figura 89), enquanto eu me limitava
a ftlmá-los e fotografá-los em segurança no chão.

/I~
Figura 89
SEMENTES NA TERRA RECONQUISTADA 463
Não consegui enxergar os quatis que eles me apontavam mais
adiante no mato. Em seguida, na volta, passamos rapidamente pelo
cemitério Krenak, uma colina coberta de capim na qual não identifi-
quei, num olhar superficial, nenhum símbolo exterior. Mas no dia
seguinte escutaria o significado deste local pela voz de Maria Sônia
(Tcharn):

Eu nasci foi lá perto de cemitério dos índios. Eu tenho minha


avó, meus irmãos, tudo enterrado ali. Meu bisavô está enterra-
do ali, chama João Damasceno. Todos eles têm nome Krenak,
nome daqui mesmo. João Damasceno o nome dele era Rainhom.
Eu tenho meu tio que tá enterrado aqui também, que chamava
Fernando e Paulino, e na nossa língua é Puri.

O cemitério, portanto, é um componente territorial marcante


para a cosmogonia e identidade Borum, assim como os nomes e o
nascimento na localidade: integra o ciclo vital. O silêncio imperava
ali, quebrado apenas pelo vento.
Após a excursão na Pedra da Pintura, cansados e com fome,
seguimos de carro até o centro de Resplendor, sede do município a
treze quilômetros da área Krenak. Chamo então o grupo para almo-
çar e ao chegarmos na porta de um dos poucos restaurantes da cida-
de, tipo comida a quilo, percebo uma hesitação dos jovens. Descubro
então que, apesar da proximidade geográfica, ainda existem fronteiras
fortes e muros invisíveis: eles nunca tinham entrado num restaurante
na cidade e por isso hesitavam. Com algumas brincadeiras quebrei o
gelo, ultrapassei a muralha e almoçamos tranquilamente, embora eu
notasse neles ainda um discreto desconforto. O preconceito contra as
populações indígenas ainda gera situações como essa, de apartheid
não declarado, mas vigente no cotidiano. Seu Nego tem razão: a luta
continua.

T charn e as dimensões do passado

Chego ao outro lado da reserva, que dá para o rio Doce, onde


antes funcionaram o Posto Guido Marliere e o presídio. Plantações
de milho, curral, praias fluviais. Paramos na modesta casa - um
casebre -para conversar com José da Silva Damasceno, Zezão
(Kuparak), quarenta e quatro anos. Ele exerce a estratégica função de
464 KRENAK, ALVORECER DO "POVO NOVO"

barqueiro, que faz a ligação e o transporte deste lado das terras com o
outro lado do rio, onde fica a cidade e a linha férrea. Qyando os
índios tinham suas movimentações e acesso à terra tolhidos, o con-
trole da travessia era vital como caminho, porta de entrada ou saída.
E hoje quem faz esta ponte marítima numa canoa de remo e com
pequeno motor é este índio Krenak, que também participou de lances
importantes na Reconquista. Zezão, cuja vida pessoal foi marcada
por recentes tragédias, olha ao lado dos filhos já rapazes as fotos
antigas que trago com interesse e atenção, reconhece parentes e re-
corda histórias de seu tio, o legendário Joaquim Grande.
Qyem está na varanda da própria casa para nos receber é Maria
Sônia (Tcharn), filha de Joaquim Grande. A casa de alvenaria é sim-
ples, pobre, mas bem dividida em cómodos, a cavaleiro do rio Doce.
Maria Sônia é dessas figuras carismáticas, cativantes, conversa calma,
densa, mesclando certa meiguice com a dureza das coisas que narra,
harmonizando o típico sotaque do interior mineiro com a entonação
Borum. Sua fala envolve facilmente, como nas boas contadoras de
história. Ela é uma das mais importantes intelectuais de seu povo, se
entendemos por intelectual os indivíduos que tecem a teia simbólica
na qual o grupo se enxerga, se expressa e se constitui. Ao escutar
minhas pretensões de escrever sobre a história dos Krenak, ela dá um
sorriso condescendente e comenta:

Mas a história dessa terra, desse troço aqui, leva a noite inteira
contando. Leva a vida inteira contando, o que é que aconteceu,
o que é que deu, o que é que não deu . ..

Sentada na varanda ao lado do marido Bibiano (o mesmo Xerente


tido como "insubordinado" quando detento no presídio indígena), ela
relembra passagens já citadas no capítulo anterior dessa época tão
repressiva (Figura 90). Bibiano faz artesanatos ao modo de seu pró-
prio povo e compro dele uma bela borduna talhada em madeira ma-
ciça, compacta, pesada e pontiaguda, arma temível enfeitada de penas
coloridas.
Na conversa com Maria Sônia depreendi que ela, além das re-
ferências ao tempo que vivenciou (presídio, Reconquista, etc.), fala
de dois diferentes tempos de "antigamente" e de um tempo simbóli-
co perdido.
Um primeiro tempo, mais antigo, é narrado por ela assim:
SEMENTES NA TERRA RECONQUISTADA 465

Figura 90

Não tinha televisão, não tinha rádio ... Só tinha tropa, jipe,
picape, carroçaria feita de madeira. O mais era boi de carga,
carregava compra, pra levar na roça. Única coisa que, quando o
pessoal encheu tudo aqui de fora a fora, os branco ... por causa
de uns votos que dava. Porque primeiro ... Agora negócio de
civil, negócio de tempo antigo, o civil... quem mandava era
civil. Civil A Lobo, mandava no estado todo, no Brasil. Depois
do civil A Lobo diz que entrou general Rondon, depois do
general Rondon dali começou ... No tempo do civil aqui tudo
era mata. Os índios quase dormiam no meio das capivaras, vea-
do ... No tempo do civil A Lobo ele dava conta de olhar os
branco também e dava conta de olhar pra ninguém passar pra
cá o pessoal de fora, lá na fronteira. Eu acho que você já ouviu
falar disso, nos livro véio a gente encontra. Naquele tempo quem
mandava era civil, em cada estado era um civil. Agora aqueles
delegados ruins, que fazia maldade com os outros, delegados
ruins, advogados ruins, o major mandava tirar eles e colocava
outro. Ficava só escolhendo. Não tinha esse negócio de voto,
esse negócio de título não ... O documento quem arrumava era
pros branco. Os índios nunca teve documento. Agora os índios
ta tendo documento, ta dirigindo, só agora. Mas antigamente
não possuía documento.
466 KRENAK, ALVORECER DO "POVO NOVO"

V árias questões se colocam nesta rica fala de Maria Sônia. Des-


taca-se a referência ao tempo anterior ao do general Rondon (ou seja,
do SPI a partir de 1910), quando tudo era mata e os índios dormiam
no meio de animais selvagens. Esse tempo, no entanto, já era marca-
do pela presença do governo civil e por instrumentos da civilização,
como veículos motorizados e construções de madeira. Desse modo, o
tempo do SPI, ou tempo do general Rondon, é visto na memória
desses índios como demarcatório de uma época, momento divisor.
Mas não a passagem de um estado puramente selvagem para outro
brutalmente civilizado, mas sim de um tempo luôrido, onde padrões
tradicionais dos índios e suas relações com o meio ambiente convi-
viam com a presença de administrações nacionais e locais que ainda
colocavam algum anteparo ou proteção contra os "brancos maus".
Outro ponto que se coloca na fala acima é a questão dos direi-
tos civis e políticos dos índios, que antes não votavam nem tinham
documento, embora tutelados por um poder civil, e agora, como re-
sultado de maior intromissão em suas vidas, já podem até dirigir, o
que é ao mesmo tempo uma aquisição.
O outro tempo de "antigamente" citado por Tcharn parece ser
posterior ao SPI, mas anterior ao tempo do capitão Pinheiro (ditadu-
ra e exílios) e que ganha os seguintes contornos:

Antigamente aqui a área era bonita. Tinha gado, tinha cabrito,


carneiro... E tudo quanto é chefe que chegava aqui dentro costu-
mava alugar pedacinho pro civilizado plantar. Aí quando os índios
revoltavam o chefe ia embora e largava o civilizado no mesmo
lugar. Agora os índios viviam pescando, outros fazia roça ... Aí
o civilizado foi juntando! Foi juntando, foi juntando... Eles
estragou muito índio por aqui. O capitão que se chamavaJuqui-
nhot comandava o Krenak lá no Kuparak, lá no Ferruginha. Onde
tem a pedra, chama Ferrujão. Qyando tinha a seca do rio os ín-
dios ficavam debaixo dela, quando no tempo da seca. O Eme nasce
debaixo dela. Mas pro civilizado matar eles ... tratou eles bem
pra depois cabá com eles. Tratou eles bem pra depois matá eles.
Escapou menino, né? Os meninos que ia caçá mundéu, a laço,
esses daí escapou. Mas dos que entrou lá no cercado não escapou
nenhum. Acho que escapou é três. Qyem sabia contá história é
papai, esse véio que tá no retrato aí [aponta o retrato de Joaquim
Grande]. Ih, mas ele contava história e nós ficava bem escutando ...
SEMENTES NA TERRA RECONQUISTADA 467
Como a pontuar esta fala, o trem Vitória-Minas passa naquele
momento, margeando do outro lado o rio Doce, junto da reserva,
bem em frente à casa de Maria Sônia. O chacoalhar dos vagões é
forte e atravessa a conversa. A linha férrea rasgando o território Krenak
foi traumática para os índios no início do século XX e agora incorpo-
rou-se à rotina, como que para lembrá-los diariamente deste conví-
vio forçado. Essa ferrovia separa o atual território Krenak da serra
dos Sete Salões, ou montanha Kuparak, onde ficam as pinturas rupestres
e a Gruta dos Sete Salões. É como uma demarcação palpável não
apenas da fronteira indígena, mas de um tempo e espaço dos quais os
índios foram apartados.
O relato de Maria Sônia lembra o tempo a partir do "capitão"
Juquinhot, ou seja, pós-contato com o SPI, quando os índios se re-
voltavam, mas os não índios foram se aglomerando nas terras (como
já visto no capítulo anterior), o que resultou na morte de vários Krenak.
Tempo no qual, em suas palavras, os civilizados tratavam bem os
índios para poder matá-los. Os índios neste tempo não estavam mais
cercados de animais selvagens, como nos relatos anteriores, mas da
criação de animais domésticos: ainda assim a área era vista como
bonita, numa associação com certa fartura, ou pelo menos ausência
de penúria. Note-se que Maria Sônia refere-se aos não índios como
"civilizados", sem conotação de superioridade, mas incorporando e
reinterpretando assim o vocabulário imposto pela sociedade nacional,
cujos representantes se apresentavam como civilizados, negando tal
condição aos índios. Em sua fala ela retoma a demarcação entre civi-
lizados e índios, mas sem atribuir a estes uma condição de inferiori-
dade ou de que estivessem trilhando o caminho da dita civilização.
Além (ou ao lado) destes dois "tempos antigos" (um caracteri-
zado por convívio não marcadamente destrutivo entre civilizados e
índios e da proximidade com animais selvagens, anterior ao general
Rondon, e outro tempo posterior a este, quando os civilizados iam se
aglomerando, tratando bem e causando a morte de índios, tempo de
criação de animais domésticos), aparece pela narrativa de Tcharn a
referência a um tempo de símbolos perdidos.

Tinha até aquele negócio ... como é que chama? .... O Deus
dos índios no 'campamento, uma madeira de pau. O pessoal
roubou no 'campamento. Aquele pau, madeira, boneco feito de
madeira, os índios oravam aqui. Disse que a única coisa que
468 KRENAK, ALVORECER DO "POVO NOVO"

pareceu aqui no Krenak foi aquilo. Então os índios rezavam


aqui, cantavam no 'campamento' Mas o negócio dos civilizado
chegando por aqui, negócio de terra, eles roubaram essa madeira.
Diz o Nadil que ela está no Paraguai ou na Argentina. Cê viu
esse pau? [pergunta ao autor] Pois é, esse pau era Deus dos
Botocudos. Tudo que eles pedia essa madeira dava. É Deus
deles, é uma madeira, um pau. Esse Deus o nome dele é Ju-
quinhot, e tinha o capitão Juquinhot também, isso lá no Kuparak.
E no dia da festa deles essa madeira andava lá no 'campamento,
onde é que tinha dança, a dança dos Krenak. Tinha quatro
'campamento, quatro aldeia: Kuparak, patrimônio do Eme, na
beira do rio e São Mateus do Pancas. Qyatro. [... ]Esse pau,
diz que Juquinhot é que batizou aquele pau. Era capitão.

Essa referência a um tipo de totem com o mesmo nome do


chefe Juquinhot (v. capítulo anterior) é constante entre os Krenak
mais velhos. Há vários relatos sobre o desaparecimento desta figura
de madeira, cuja ausência é lamentada. 7 A referência a tal símbolo
parece relacionar-se ao tempo que esses índios eram chamados de
Botocudos: tinha potencial congregador, ficava numa localidade cen-
tral da aldeia ou acampamento e servia para determinadas danças e
preces - e foi roubado. Eu disse a Maria Sônia que a antropóloga
lzabel Misságia de Mattos localizou este mesmo totem (Yonkyón)
na Coleção Curt Nimuendajú no acervo do Museu Emilio Goeldi,
no Pará, mas ela não pareceu dar muita importância à informação e
continuou lamentando a perda, por roubo. 8 Fiquei com a impressão
de que não se trata mais de recuperar a peça em si, mas de uma
narrativa sobre o símbolo de um tempo perdido, tempo de perdas.
Nesse momento chega Maiara, ainda criança, neta de Maria Sô-
nia (Tcharn) e também de Laurita (Tacrukinic). Entrego a ela minha
fUmadora e ensino rapidamente como usar. Maiara começa a filmar
seus parentes em volta, dando risadas, tremendo um pouco o foco e
causando confusão entre sua mãe Marinalva e sua tia Alzira, que se
levantam para se esconder dos closes da câmara indiscreta. Acabamos

7
V., por exemplo, no livro de G. Soares que dedica um capítulo a depoimentos
de índios sobre este totem, bem como uma narrativa bilingue na Cartilha Krenak
elaborada em 1997.
8
Cf. I. M. Mattos, 2004, cit., p. 138.
SEMENTES NA TERRA RECONQUISTADA 469
rindo das cenas desencontradas filmadas por Maiara que, aliás, se
tornaria, sem saber, estrela da propaganda cinematográfica e etnográfica,
como se verá adiante. O clima entra essas três gerações de mulheres
Krenak era de carinho e respeito, como se expressa na Figura 91.

Figura 91

Saímos da casa e, guiados por Maria Sonia, fomos até as ruínas


do presídio indígena (Figura 92). O mato cresceu em volta, por den-
tro, por cima. Paredes e lajes desabaram e se desmancharam (Figura
93). Ela conta que os índios tiram aos poucos o que podem aprovei-
tar do material de construção para usar em suas próprias casas. Estão,
neste caso, "canibalizando" o que restou do prédio do campo de pri-
sioneiros étnico e político. A comparação é inevitável e simples: aquela
estrutura repressiva causou estragos, mas foi superada e desmantela-
da, minada por dentro e por fora, enquanto o grupo indígena não
apenas sobrevive, mas se reforça e recria, inclusive destrói com as
próprias mãos e se reapropria do que restou do "tempo do capitão
Pinheiro". A força da identidade cultural prevaleceu sobre a força
coerciva, apesar das cicatrizes. E surgem das ruínas um novo tempo e
um novo povo.
,,OAON OAOd, OG 'H3::>::>n!OA'1V ')IVN3:1DI OL.v
SEMENTES NA TERRA RECONQUISTADA 471

Figura 93

lndjambré e uma aula de história

A população dos Krenak na terra Reconquistada na época de


minhas visitas girava em torno de cento e cinquenta indivíduos e
continua aumentando progressivamente, não só com os nascimentos,
mas com a chegada de parentes dispersos pelos exílios e repressões
dos anos anteriores.
Encontro alguns índios descendentes do grupo dos Gutkrak, ao
qual pertenciam os chefes Krenak e Muim. No terreiro da casa de
Laurita (Tacrukinic) ouvimos algumas frases em Borum bastante
fluente, bem como rápidas lembranças do tempo de sua infância e do
presídio (Figura 94). Cercada de netos, ela explica que tem trabalha-
do para ensinar a língua e as tradições Borum aos mais jovens:

Muitos tá aprendendo, porque eu to ensinando, né? Muito tá


aprendendo, cantar, aprender as coisas. Eles estão sabendo já.
Mas têm muitos que não interessa, tem muitos que aprendeu
mais negócio de branco, então não interessa... Antigamente os
índios não gostava de ficar ensinando a ler por causa disso,
porque aí aprendia mais negócio de branco.
472 KRENAK, ALVORECER DO "POVO NOVO"

Mesmo reconhecendo as dificuldades e o desinteresse, Laurita


assegura assim a transmissão da língua materna e paterna, que volta,
ao que parece, a ser usada no âmbito doméstico. 9

- Figura 94

9
Nas três vezes em que fui à reserva indígena dos Krenak tentei entrevistar
Laurita, mas infelizmente ela não se mostrou disposta a falar. Apenas na última vez
aceitou gravar um depoimento, mas interrompeu a conversa em poucos minutos, nos
quais, entretanto, forneceu informações preciosas.
SEMENTES NA TERRA RECONQUISTADA 473
A alguns passos da casa desta bisneta do chefe Krenak corre o
rio Eme, do qual tanto ouvira falar nos documentos antigos: ali os
animais domésticos e aves selvagens bebem, as mulheres lavam rou-
pas e as crianças brincam e mergulham com familiaridade. Um gru-
po de curucas fica curioso com minha pequena ftlmadora e passo a
eles por uns instantes o aparelho, quando se divertem em captar ima-
gens (Figura 95).

Figura 95

Andando pela área sou apresentado a Waldemar Krenak (fllho


de Jacó e, portanto, bisneto do chefe Krenak) que era na ocasião, logo
após a retomada legal das terras em 1997 pelos Krenak, chefe do
Posto Indígena. Recebeu-me com simpatia e disse para que eu ficasse
à vontade no território, desejando sucesso na pesquisa. Posteriormen-
te Waldemar ocuparia o cargo de administrador regional da Funai
em Governador Valadares (estado de Minas Gerais).
Mostrei também os daguerreótipos a Djanira de Sousa, qua-
renta e sete anos, tratada pelo apelido de Deja, na língua Krenak
chama-se lndjambré. Vivaz, ela é chefe de um grupo familiar no
474 KRENAK, ALVORECER DO "POVO NOVO"

interior da aldeia composto de muitos filhos e netos: conhecida como


contadora de histórias, tem fluência verbal e é uma das depositárias
da tradição oral das lendas e narrativas antigas e da própria língua
Borum. Orgulha-se de ser bisneta do "capitão" Krenak. Deja rece-
beu-me no terreiro de sua casa e logo formou-se à volta um grupo de
familiares para escutar a conversa, jovens e crianças. Todos sentaram
no chão ou em troncos de árvore, só havia duas cadeiras e ela, sen-
tando-se numa, designou-me a outra, tratando-me de maneira cortês
por kraí (branco ou não índio em Borum). Embora Deja fale portu-
guês fluente e com sotaque do interior mineiro, percebi nela um so-
taque Borum mais acentuado e fiquei com a impressão de que este é
o idioma em que ela se expressa com mais sentimento e à vontade.
Filmei a conversa.
Passei-lhe as reproduções dos daguerreótipos de 1844 e repeti
minha breve explicação. A reação de Deja foi imediata: passou a mos-
trar o retrato da mulher aos filhos e netos ao redor, fazendo a seguir co-
mentários sobre cada uma das imagens em Borum. Como não compre-
endo esta língua, aguardei. Mostrando agora o retrato do rapaz posando
de frente, ela passa a falar em português, ou seja, para mim também:
-Olha aqui, os parentes da gente!. ..
Com essa simples frase Indjambré estabeleceu o parentesco e a
descendência, pouco importando se genética (consanguínea), cultural
(do mesmo grupo etnolinguístico) ou simbólica (identificando-se e a
seu grupo) com os dois índios fotografados. As imagens feitas em
Paris em 1844 estavam sendo repatriadas. Ainda brandindo o retrato
do rapaz, ela afirma:
-Esse aí já morreu há muitos anos, né? ... Ave Maria! Nós
somos os restantes, né? ...
Deixando de lado termos como remanescentes ou sobreviven-
tes, ela usa o sugestivo termo restante, isto é, os que não foram assas-
sinados, como ela situará no decorrer de sua fala. E Dejanira volta a
falar em Borum com seus próprios descendentes, fazendo, entre ou-
tras coisas, comentários sobre o batoque nas orelhas do rapaz e no
furo dos lábios da moça, como me traduziria rapidamente depois . Ela
estava ali dando uma aula não só de um episódio da história de seu
povo, mas de sua cultura e na sua língua a partir do elemento externo
(as fotos) que eu trouxera. E me fazia presenciar a transmissão oral.
Falando em sua língua original, ela estava como que estabelecendo o
vínculo entre os antigos e os novos e cumprindo o papel criativo de
SEMENTES NA TERRA RECONQUISTADA 475
intelectual. Indjambré ensinava também aos seus descendentes a lín-
gua, as tradições e a história na perspectiva de sua própria cultura.
Naquele momento dei-me conta que meu papel de historiador
em fase de pesquisa junto desses índios poderia ser este: como que
um agente transmissor entre determinados arquivos (aos quais eles
não costumam ter acesso) e o patrimônio de sua cultura, que não é
estática e pode reelaborar-se, inclusive, neste contato com o passado
do grupo, desde que tal transformação seja, digamos, filtrada por seus
próprios valores e concepções, que se expressam sobretudo por meio
da identidade linguística. Talvez por isso, no momento crucial de
transmitir aos seus descendentes a imagem de antepassados, simbóli-
cos ou não, ela fez questão de expressar-se em Borum. Enquanto
falava no seu idioma ela deu uma gargalhada, no que foi acompanha-
da dos parentes e eu mesmo acabei rindo também. Ela regozijou-se
em português: - Ah, uma risada .. .P 0
Em seguida, Deja pergunta-me, sempre mostrando as fotos
erguidas, se elas foram tiradas nos tempos do SPI. Vacilei um pouco
para pronunciar-me e ela não aguardou minha resposta, deu o silên-
cio como assentimento e passou a falar dos tempos antigos, isto é,
aqueles alcançados por sua memória pessoal ou transmitidos a ela
por seus antepassados imediatos.
-Isso aqui tudo era mata... Depois que o branco andou ma-
tando índio ...
Em duas frases ela coloca a ligação entre a destruição do meio
ambiente com a perseguição aos grupos indígenas, trazendo também
a associação entre guerra e imagem. Sua narrativa passa a ser acompa-
nhada de gestos constantes: a linguagem corporal expressiva. A gesti-
culação traça arabescos no ar, sua cabeça vira constantemente de um
lado para outro, de maneira pausada e segura, como querendo mostrar
o lugar onde se passa a história que conta. Os dedos apontando e os
braços esticados pareciam querer tocar ou trazer de volta o tempo pas-
sado, revivido de maneira intensa por meio de suas palavras. Mais uma
vez a linearidade do tempo rompia-se, enquanto construíam-se os ne-
xos entre aqueles daguerreótipos e o tempo presente. Os dedos e mãos
de Indjambré enquanto mexiam-se no ar como que teciam esta teia.

10 Posteriormente recordei do texto de Frank Lestringant, "Léry ou !e rire de

I'Indien", prefácio a Jean de Léry. Histoire d'un voyage enterre de Brésil (1578}. Paris: Le
Livre de Poche, Bibliotheque Classique, 1994, pp. 15-40.
476 KRENAK, ALVORECER DO "POVO NOVO"

Ao falar da ligação entre fotografia e morte, Barthes lembrou o


exemplo da Comuna de Paris, quando os revoltosos que se deixaram
fotografar foram depois perseguidos pela polícia de Thiers e assas-
sinadosY
Agora vejo Indjambré narrar-me, sempre empunhando as re-
produções dos daguerreótipos (apropriara-se deles) e às vezes esgri-
mando-as no ar, uma história contada por seu pai, Pac, e por seu tio
Jacó, que eram crianças quando o episódio ocorreu. A princípio não
identifiquei do que se tratava. Mas logo me dei conta de que eu estava
presenciando uma narrativa bilíngue (Borum e português) do Massacre
do Kuparak de 1923 (cf. Capítulo 10), a última tentativa de matança
coletiva de uma aldeia registrada contra estes índios, prática constan-
te nos séculos anteriores. Apesar de longa, transcrevo a instigante fala
de Indjambré, que se constitui numa complexa palestra sobre a histó-
ria de seu povo, entremeada de diálogos dos personagens citados:

A gente não existia não. Aqui tudo era mata ... ! Até lá [gesto
largo] pro lado do Garrafão, lá no Kuparack. Depois que o
branco andou matando índio ... O índio morava lá [aponta] e o
chefe morava ali do outro lado do rio [aponta para outro lado].
Mas o branco acabou com os pobrezinhos dos índios lá, ma-
tou ... matou índio ... Aí saíram ali por debaixo do ... tinha
só trilha, não passava carro, não passava nada, só animal, cava-
lo. Aí passaram por debaixo dali das matas até sair lá pra acudir
o índio. Aí quando começou a matar o índio, saiu um parente
da gente, que sabia conversar na língua da gente. Aí eles con-
versaram. Nosso parente conversava com eles na língua, e eles
não sabiam. "O que cês ta falando?" "Nós tamo falando é isso" e
iam mostrando. Aí eles foram aprendendo. Ele era irmão do tio
Cristino. Morava tudo aqui. Então os meus parente saiu de lá,
quando tava acabando com os parente da gente lá, aí saiu meu
pai, meus tio e veio por dentro, debaixo da mata escondido, saiu
cá na beira do rio, aí travessou e avisou o chefe que os branco
tava acabando com o índio, tava matando. Eles matava a mãe, o
pai, pegava o nenenzinho e botava no meio da estrada. O
nenenzinho chorava, eles com facão armado pra poder bater.
Assim que o nenenzinho chorava, na estrada, quando o pai vi-

11
R. Barthes, op. cit., p. 25.
SEMENTES NA TERRA RECONQUISTADA 477
nha pegar, ou mãe, eles pegava [faz gesto com a mão imitando
o facão] e cortava com facão. Se não aparecia ninguém, aí eles
cortava o neném. Cortava tudo. Ai deixava. Ai os parentes da
gente disse que fugiu pros mato e avisou, pra chamar o chefe.
Ai o chefe vinha e ... [ela continua um trecho da narrativa
falando em Borum, depois retoma em português] .... e tudo .. .
aí ... tá arrasando, tudo derrubado. Ai . .. inté ... mode que .. .
Aí o chefe falou: "O que é que a nós pode fazer?" "O que é que
nós pode fazer? Pode ir lá pegar o 'tomóvel, naquele tempo se
falava assim, o branco tem 'tomóvel, vai lá buscar polícia pra
poder levar lá". Ai o chefe falou: "é, tem que fazer isso mesmo".
Aí foi lá pegou o 'tomóvel, avisou a polícia, aí atendeu o chefe.
"Como é que nós faz pra ir lá? Nós não temos carro. "Não tem
carro, então pega cavalo." Ai arrumou uns animal pros policial.
Ai o índio foi na frente, o chefe e o companheiro do chefe.
[Narra a seguir o diálogo entre os policiais e os índios.]
- Vocês conhecem os brancos, aqueles que matou os índios?
-Sei . ..
-Vocês sabem mesmo?
- Sei ... Qyando chegar lá a pé eu vou avisar vocês.
Ai chegaram na casona deles lá, aquela maloca grande . . .
Aí tio Cristino: [Ela fala o diálogo em Borum.]. Ai falou com
eles: - É aqui que tá os homens. Mas é verdade mesmo?,
tornou a perguntar. [Fala a resposta em Borum.]
- Então nós vamos rodear, vamos cercar ela.
Aí tornou a perguntar: [Fala em Borum.]. Faltava uma hora
pro almoço deles lá. Ai disse que o chefe chegou e bateu palma.
Aí a polícia cercou tudo, os homens. Aí saiu um homem. Ai o
chefe perguntou na língua [Fala em Borum e depois traduz
para o português.]: "É esse aí que matou nós! É esse aí. .. ! É
esse aí mesmo que matou nossos tonton .. .".Ai foi e falou com
a polícia. Aí a polícia foi e falou assim: "Vamos abrir essa por-
ta!" Acho que eles abriram a porta pra poder olhar. Ai chegou
lá e os homens viram que eram os soldados e disse "Nossa
senhora, agora nós deve tá perdido!" [riso divertido] Ai cadê
jeito pra correr? Ai disse que a polícia foi lá e entrou dentro de
casa: "vocês estão presos!" Ai um querendo abrir a janela pra
correr! Ai o outro escapuliu ... Ai eles disseram: do jeito que
vocês fizeram com índio a gente vai fazer com vocês [Repete
478 KRENAK, ALVORECER DO "POVO NOVO"

com a mão o gesto imitando o facão.] Aí diz que foi matando.


Do jeito que vocês fizeram com neném novo nós vamos fazer
também. Aí foram cortando com facão. Aí eles disseram: "não
faz isso não! Não me mata não! Eu sou pai de filho!" "Mas
vocês não mataram pai de filho? Então nós vamos matar vocês
também." Aí bateu, eles caíram, aí foi lá e cortou eles com facão
[sorriso]. ''Agora, vocês nunca mais vai fazer isso com índio!
Vocês não sabem que índio são de menor? Não pode fazer isso!
Então nós vai fazer do mesmo jeito ... " Aí eles foi lá, pegou
'mendoim, rapadura, banana, jogou tudo no chão pros índios . ..
"tome aí!" Aí os parente da gente foi, assobiou, chamando os
parente da gente, pelo 'sobio [assobio]. Aí os meninos de lá
respondeu tudo. [Fala em Borum e traduz em seguida para por-
tuguês.]. Vem cá pra nós comer 'mendoim! 'mendoim com ra-
padura! [risada divertida]. Aí os parente da gente chegou, diz
que tava tudo alegre, os indiozinho. Tava tudo escondido, com
fome no meio do mato, com medo de morrer. "Pode comer tudo
aí à vontade! Tudo aí no chão! Pode comer tudo" Aí jogou um
bocado... matou ... deixou pra lá ... ''Ainda tem mais? Tem
mais!" Ah, foi juntando o pessoal, foi juntando. O chefe disse:
''Agora vocês vão morar tudo aí dentro. Agora não dá pra vocês
diminuírem senão o resto dos kraí vai acabar com vocês. Então
vamos botar tudo aqui pra dentro". E tá tudo aí até hoje. Mode
de que eles sofreram. Aí eles pegaram e acabaram de experi-
mentar aqueles legumes ... Aí a polícia falou: "}em mais?" E o
chefe falou: "tem mais ... " "Então vamos lá." E mas os índios
lá foi sabido, porque tinha escondido, só ficava a cozinheira lá.
Assim que eles chegaram falaram assim: os homens podem ver
você com os índios, e vigiem a estrada. Se vier alguém você
avisa nós. Você leva comida e vai até cm cima... mostrando o
lugar, né?. Aí o chefe nosso chegou lá e nós. Aí chegou lá
foram quebrando cana, a polícia foi deixando, prá eles chu-
par... Aí chegou lá assim um monte de canavial... Aí falou
assim: "Cuidado ... ! com os pessoal, cê fica quieto, senão se
eles conversar, eles vai correr." [Narra diálogos em Borum.]
Não, cê fica quieto. Aí aqueles policial quebrou cana. Aí che-
gou numa casona. Aí lá a mulher saía e entrava pra dentro. Saía
e entrava pra dentro. [Imita com o corpo o movimento.] Aí
falaram assim: "Tá vendo aquela mulher lá? É companheira
SEMENTES NA TERRA RECONQUISTADA 479
também. Ela é matadora de gente, de índio. Ela que leva comi-
da pros kinham no mato." Aí os homens tava escondido. Aí os
policial falou: "Ela tá querendo levar almoço, tá na hora de
almoço mesmo. Vamos ficar escondido." E eles só olhando ela.
Ela saía, entrava pra casa. Tornava a sair.. . E eles lá abaixado
olhando. Depois de muito tempo ela saiu com uma baciona...
com uma gamela, cheia de comida. Aí foi pro picadão ... e eles
tão olhando, pra onde que ela ia. E a polícia disse: "cês vão
ficar aqui e eu que vou 'companhar. E eu vou cercar eles". E o
chefe falou assim: [Fala em Borum e depois traduz em portu-
guês.] "Vocês fica aí quietinho, meus filhos, que eu vou lá pe-
gar os brancos. Vou levar tcholdát." Tcholdát é polícia, né? Aí
disse que foram 'companhando a mulher, né? 'companhando,
'companhando, até chegou no mato, a mulher parava, olhava
pra trás, eles abaixava [Imita com o corpo o movimento.]. Aí
chegou lá no final da mata e ela: "já chegou o almoço, tá pron-
to!" Aí a polícia escutou: "é ali! Deixa ela chegar, deixa chegar
pra almoçar!" E a polícia pertinho, 'suntando. Aí quando a po-
lícia chegou e disse: "tá tudo quietinho, deve de tá comendo".
Aí a polícia falou: "um vai pro lado, outro vai pro outro". Aí
chegou devagarzinho: "Vocês tá preso!" Aí disse que eles ficou
assustado. Aí ficou: "não, não corre não". Estava tudo cercado.
Aí as polícia deram tiro e algemaram eles. Eles correram, fo-
ram atrás, deram tiro, machucando eles, né? Aí cataram eles e
matou um bocado dos homens, lá mesmo no mato. Tadinhos,
nem deram pra eles sumir... [sorriso]. A mulher dizia: "Não
faça isso não!" Aí 'cabou com os homens, matou, machucou ...
deixou pra lá ... um bocado fugiu. Aí pegou a mulher pra dar
uma coça. E ela dizia: "não foi eu não, não tenho nada com
isso!" "Não, mas você tem sim, você tava dando cobertura pra
eles, carregando comida. Por que você não avisou nós?." Vixe,
mas bateu, bateu, bateu ... E ela: "não me mate não!" E ele: "eu
vou matar também". Aí a mulher disse: "O meu Deus, não me
mate não!" "Mato sim!" E diz que bateu, bateu, até matar! Ma-
taram essa mulher! Eu não era nascida, meu pai era criança
ainda. Meu pai, minha tia, meu tio Jacó. Eles vieram fugindo
pelas matas, quase não se podia passar com medo dos homens,
e eles é que vieram na frente.
Meu tio Krembá era chefe. O chefe dos índios, o cacique, era
480 KRENAK, ALVORECER DO "POVO NOVO"

meu bisavô que era o capitão Krenak. Aí ele morreu ficou o


filho que era o capitão, Muim . Aí esse Muim morreu c tlcou
Krembá. Meu pai chamava Pac c o nome dele mesmo era Jnsé
Manuel. Meu nome é Dcjanira, na língua é lndjambré, é mu-
lher de idade ...
Aí eles trouxeram os índios tudo pra cá. Coitado de nós. Nós
sofremos c tamos sofrendo inté agora. "E como é que eles não
matou vocês?" Não matou nós porque nos fugimo s, ué! Corre -
ram pra beira do rio, por isso que não matou eles. Aí o chefe
protegeu.

:Foi uma matança de quase toda uma aldeia por "brancos" (kraí).
Numa primeira investida, os agressores mataram alguns adultos c
levaram as crianças. Em seguida, colocaram as crianças (que chora-
vam alto) na beira da estrada e esconderam-se nas proximidades.
Qlando os pais ouvindo o choro apareciam para resgatar os fi lhos
eram mortos a golpes de facão.
- Se não aparecia ninguém eles cortavam os nenenzinho:; de
facão também, mataram tudo .
Ela contou então, sem esconder satisfação, como sobreviventes
do massacre, entre os quais seu pai Pac c seus tios Jacó c Sebastiana,
guiaram alguns policiais e depois de muitas artimanhas e esfor~~os
conseguiram vingar-se, matando também de facão alguns colonos
que haviam cometido a a~ressão. E arremata:
-Nós sofremos c tamos sofrendo inté agora. Não matou n<'>s
porque nós fugimos, ué!
Há outros relatos sob re este episódio do Massacre do Kupa
rak, seja na documentação escrita do SPI que se encontra no Arqui -
vo do Museu do Índio quanto cm outros relatos orais transcritos,
como o de Maria Sônia na Cartilha dos Krenak, sem contar o livro de
Geralda Soares, que se base ia cm alguns depoimentos não identifi -
cados e que apresenta até uma história em quadrinhos sobre o tcí.gi -
co evento.
Um dos aspectos relevantes do depoimento acima transcrito de
Deja é que os índios não aparecem apenas como vítimas da brutalida-
de, mas capazes também de se proteger, escapar para sobreviver, de
alianças com autoridades e mesmo de participarem da execução de
uma vingança à altura do ocorrido. Naqueles idos de 1923 (pela me-
diação do SPI) havia uma predisposição tanto das autoridades kde-
SEMENTES NA TERRA RECONQUISTADA 481

rais quanto do governo estadual (que legalizara as terras desses índios


em 1920) em não hostilizar os Krenak, daí que a aliança citada por
Indjambré com os soldados seja verossímil. Nota-se também que, ao
recriar os diálogos da época, ela reproduz a fala dos índios em Borum,
como que fazendo-os simbolicamente reviver através dessas palavras
e dando vida a essa língua através do relato.
Ao final dessa narrativa de uma história densa e sofrida, Ind-
jambré abre um sorriso e num gesto largo à sua volta:
-Esse povo aqui todo é meu, isso tudo aqui é fUho, neto ...
Completava-se assim em sua narrativa o ciclo vital e o sentido
do tempo. As imagens do passado, percebidas no presente, reavivaram
a memória dos massacres e da guerra, mas ao encerrar sua narrativa
ela aponta para o presente e para seu futuro, sua descendência. Os
"restantes" que sobreviveram e sobrevivem às tentativas de extermínio
físico ou cultural. Os que escaparam das lentes dos daguerreótipos e
dos golpes dos facões.
Comparando o escambo simbólico de Him à narrativa bilíngue
de Indjambré remeti-me novamente aos daguerreótipos, aos "papéis
velhos" dos arquivos e às marcas deixadas neles por índios que já
morreram. Nas imagens de 1844, que serviram para detonar essas
lembranças, a mulher fotografada encarava a câmara de frente e o
rapaz, esquivo, exprime sua revolta repudiando o contato. Esse grupo
indígena, diversificado e numeroso em outros tempos, caracteriza-se,
entre outras coisas, por ser composto de estrategistas. Eles sempre
foram grandes estrategistas nesse contato de longa duração com os
kraí, predominando entre alguns uma atitude de convivência de fron-
teiras e interação como forma de sobrevivência, ao passo que em
outros aparecia mais a defesa da integridade cultural e de distancia-
mento no contato como atitude de resistência. Guerreiros ambos, mas
de maneira diferente. Os atuais Krenak não indagaram sobre o desti-
no dos índios fotografados em 1844: eles mostraram e contaram o
que está vivo deles.

As recentes produções culturais

A partir de 1997, isto é, da Reconquista de suas terras, surgem


novas referências e produções culturais sobre os Krenak, algumas
com a participação direta dos próprios índios, outras, ao contrário,
reproduzindo antigos estereótipos.
482 KRENAK, ALVORECER DO "POVO NOVO"

É desconcertante verificar, no século XXI, que brasileiros inte-


grantes do mundo da ciência, da cultura letrada e da política institu-
cional ainda afirmem que os índios outrora chamados Botocudos de
Minas Gerais e Espírito Santo estão extintos e que eram represen-
tantes próximos dos homens das cavernas. O biólogo João Paulo Atui
é autor de uma dissertação de mestrado neste sentido, defendida no
Laboratório de Estudos Evolutivos Humanos da Universidade de São
Paulo, orientada por Walter Neves, o qual parece ter chegado a uma
antiga descoberta: "Os botocudos são, para todos os efeitos,
paleoíndios". Tais estudiosos pretendem corrigir "uma injustiça anti-
ga, já que antropólogos do século XIX já apontavam (com técnicas
bem menos confiáveis) a semelhança entre paleoíndios e botocudos,
mas foram desacreditados depois". Outro antropólogo da instituição,
Rui Murrieta, defende o mesmo ponto de vista. Segundo ele, os Bo-
tocudos "hoje extintos" que viviam no interior de Minas, Bahia e
Espírito Santo, disputavam ricas zonas de transição entre a mata atlân-
tica e o cerrado com as tribos tupis e os portugueses. "Os botocudos
estavam no meio do tiroteio. E é por isso que eles são um grupinho
desgraçado de estudar: ficavam para cima e para baixo o tempo to-
do", diz ele. 12
Na mesma linha (de também ignorar as produções acadêmicas
dos últimos oitenta anos sobre a existência dos Krenak) parece seguir
a equipe do geneticista Sergio Danilo Pena, da Universidade Federal
de Minas Gerais, que buscou descendentes dos Aimorés especifica-
mente em Qyeixadinha (estado de Minas Gerais) -com foco na
herança genética passada pelas mães índias, o DNA mitocondrial.
"Ainda que os últimos da tribo (Aimorés] tenham morrido na década
de 1920, uma vila no vale do Jequitinhonha (estado de Minas Ge-
rais) parece guardar os genes dessa nação indígena", é a premissa
deste pesquisador. 13
O mote da extinção dos índios nomeados de Botocudos se repete
nas referências turísticas no Espírito Santo, como nesta publicação
oficial do Museu Histórico de Regência (estado do Espírito Santo):

12 Declarações e informações obtidas da matéria "Os sobreviventes: crânios de


índios extintos do Brasil Central indicam elo com primeiros povoadores da América",
de Reinaldo José Lopes, da Folha de S.Paulo, caderno Mais, 9-10-2005, transcrita no
jornal da Ciência, e-mai/2872, de 10 de outubro de 2005 .
13
Cf. referência em <www.folha.com.br> em 20-9-2004 e transcrita também
no site da SBPC.
SEMENTES NA TERRA RECONQUISTADA 483
Eram chamados de Botocudos porque usavam botoques nos
lábios e orelhas desde os sete anos. Lutaram por suas terras até
o final do século XIX, quando foram exterminados após o con-
de de Linhares, Ministro do Império [sic], declarar guerra
contra eles. 14

E até mesmo o escritor e político ambientalista Fernando Gabeira


dá sua inesperada contribuição nesta vereda, não apenas referendando
a suposta extinção, como reforçando visões preconceituosas. Ao visi-
tar uma comunidade descendente de imigrantes europeus na região
do Pancas (estado do Espírito Santos), ele afirmou:

Se os pomeranos, que falam um idioma parecido com o ale-


mão, fossem mesmo expulsos, seria a terceira grande maldade
que sofreriam no território brasileiro. A primeira foi quando
chegaram da Europa, com promessas não só de terras férteis,
mas estradas, postos médicos, armazéns. Não havia nada disso.
Foram jogados no mato e ainda por cima tendo como vizinhos
os antropófagos botocudos, destruídos pelos grileiros. 15

A antropofagia, o parentesco próximo com os homens das ca-


vernas e a extinção inelutável, tão reiterados pelos cronistas coloniais,
por viajantes naturalistas, pela Antropologia Física do século XIX e
pela memória coletiva hostil forjada pelos colonos, encontra resso-
nâncias ainda hoje. Até um presidente da República (o único, aliás,
com conhecimentos especializados e amplos de história e antropo-
logia) colocou seu tijolo nesse edifício simbólico. O então presiden-
te Fernando Henrique Cardoso, numa polêmica pública em 2000
com seu antecessor, Itamar Franco, procurou ofendê-lo chamando-o
de Botocudo. No que foi prontamente repelido por Itamar (que se
sentiu ultrajado), político de Minas Gerais em cujo colégio eleitoral
encontram-se os Krenak. Essas metáforas indígenas consideradas
insultuosas pelos dois homens públicos do século XXI expressam
discurso típico do século XIX, quando tais tribos eram vistas pela ótica

14
Legenda de imagem de Botocudo em <www.regencia.org.br/museu/
museuS.jpg>, site oficial do Museu Histórico de Regência (Espírito Santo).
15
Comentário no blog <www.gabeira.com.br/ diario/diario.asp?id=302>; 20-
7-2004.
484 KRENAK, ALVORECER DO "POVO NOVO"

do evolucionismo, espécie de elo perdido ou de misteriosa perma-


nência do homem pré-histórico nos tempos ascendentes do progres-
so e da civilização. 16
Mas nem todas as manifestações culturais de fins do século XX
transitavam pela ótica oitocentista. O fume (vinte e dois minutos)
Erehé Krenak, rodado em 1999 na reserva indígena e dirigido por
Nívea Dias e Alessandro Carvalho, trabalha com efeitos especiais,
mesclando animação e documentário, para narrar lendas dos Krenak
e contar um pouco de sua história. Utiliza como atriz a jovem Maia-
ra, no papel de Alice Krenak (numa alusão à Alice no País das Ma-
ravilhas), garota que vai até o "fundo da caverna sem fundo", em
busca de um precioso tesouro, ou seja, a identidade de seu povo. Um
ponto alto do fUme são as duas avós de Maiara, Laurita (Tacrucki-
nic) e Maria Sônia (Tcharn), num diálogo na língua Borum, que
aparece assim registrada. Esse vídeo, embora interesse também a adul-
tos, foi elaborado numa linguagem típica infantil, visando ser visto
também pelas crianças não índias das escolas de Minas Gerais, bus-
cando assim contrapor-se ao preconceito ainda vigente contra as po-
pulações indígenas.
O vídeo Erehé Krenak foi exibido na 6." Mostra Internacional
do Filme Etnográfico, realizada entre 27 de agosto e 2 de setembro
de 1999 no Museu do Folclore Édison Carneiro, no Rio de Janeiro,
composta de fUmes, vídeos e fórum de cinema e antropologia. Entre-
tanto, pude constatar a surpresa da diretora do fUme, Nívea Dias, ao
ver que todo o material de propaganda do evento (folder e cartaz
coloridos, em grande formato, espalhados no local, para a imprensa e
em vários pontos da cidade) tinham em destaque o rosto de Maiara
ocupando a maior parte da área impressa, sorrindo e apontando, na
montagem feita, para o título do evento. O expressivo rosto da jovem
Krenak fora retirado de uma das cenas do vídeo e utilizado como
publicidade e divulgação para todos os meios de comunicação sem
que estivesse impresso, no referido material, nenhuma referência ou
créditos à dona do rosto e ao flime. Nem a diretora do fUme, muito
menos a própria Maiara, seus responsáveis ou índios Krenak tinham
sido consultados. Direitos de imagem pareciam ser desconhecidos

16 V. a este respeito artigo do autor: M . Morei, Desrespeito aos botocudos,


jornal do Brasil, 26/912000.
SEMENTES NA TERRA RECONQUISTADA 485
pelos organizadores da mostra, que além de reviverem a noção do
índio genérico e anônimo, apresentavam mais uma forma de espolia-
ção dos índios, referente às suas imagens.
Pela primeira vez músicas na língua Borum foram gravadas num
CD cm 1999, O canto das montanhas, resultado do I Festival de Dança
e Cultura Indígena da Serra do Cipó, organizado por Ailton Krenak.
através do Núcleo de Cultura Indígena. São ao todo nove canções em
Borum: Theon Hó, Yrnõn Dhiuk Yndhiak, Hô Nym Parem, Kicrok
Tondon Nukuin, Nak Inhaut Borum Rerré, Pó Hamêk, Taru
Rundhium e Thi Ruhá Nim Nengâm, algumas acompanhadas com
flautas de taquara e bambu. O mesmo CD traz ainda quatro canções
Maxacali e sete dos Pataxó.
Um dos instrumentos culturais mais expressivos foi a implanta-
ção da Escola Indígena na reserva Krenak. em 1997, com professores
índios, com apoio técnico e material do Ministério da Educação, da
Secretaria Estadual de Educação (MG), Universidade Federal de
Minas Gerais e Funai. Para esta escola, na qual os jovens aprendem
Borum e português, foi elaborada a cartilha Conne Pãnda, Ríthioc
Krenak, que contou com a participação dos professores Maurício
Krcnak, José Carlos Krenak, Marcos Krenak., Os mar Krenak. e Itamar
Krenak. Note-se que essa cartilha foi elaborada no governo Fernando
Henrique Cardoso, evidenciando que, apesar das tolices ditas pelos
governantes, a relação do Estado nacional com esses índios havia
mudado, como resultado também da luta deles, reconhecendo-lhes o
direito à especificidade cultural no interior da nação brasileira. A
cartilha em questão traz palavras, frases e textos bilíngues Borum/
português relacionados à história e tradições culturais deste povo, em
geral coletados e traduzidos pelos próprios professores índios de re-
latos orais dos mais velhos.
Qtando visitei o prédio da escola constatei que muitos percor-
rem a cada dia longos trechos pela reserva, de bicicleta, a cavalo ou a
pé, para frequentarem as aulas, como professores e alunos, além de
cuidarem com toda atenção do material escolar e das instalações. Fui
guiado até a escola pelos professores José Carlos e José Osmar e pela
aluna Maiara, que posaram em frente ao imóvel em atitude de solida-
riedade recíproca (Figura 96). Estavam ali, naquele ambiente sim-
ples, exercendo transmissões culturais e direitos árduos de serem con-
quistados. Ao fundo, a montanha chamada de Kuparak..
486 KRENAK, ALVORECER DO "POVO NOVO"

Figura 96

Outra jovem, Shirley Djukurnã Krenak, filha de Waldemar (por-


tanto, trineta do chefe Krenak), escreveu e publicou um livro que
valoriza sua criatividade e tradições culturais: A onça protetora -
Borum Huá Kuparak, pelas Edições Paulinas, em 2005. Trata-se de
uma história infantil narrando e recriando a lenda de Borum Huá
Kuparak, isto é, da criança que virou onça. Trata-se de um animal
mítico que domina as caças na região do rio Doce. O livro foi lança-
do em eventos no Brasil e na Itália com a presença da autora.
Através da escola, de textos ou do engajamento nas lutas atuais,
a geração de Krenaks nascida nos anos 1970-80 começa a assumir a
transmissão e criação cultural e a organização política, herdando tem-
pos menos difíceis do que os vividos por seus pais e avós, mas ainda
com desafios consideráveis pela frente. Ambos, o povo velho que já
morreu e o povo novo que está nascendo, para retomar a divisão
proposta por Maria Sônia (Tcharn), são como sementes na terra em
qüe tõdó~ pÍsaram.
E por falar em sementes, recordo que na última vez que estive
no território dos Krenak, em setembro de 2000, levava comigo umas
SEMENTES NA TERRA RECONQUlSTADA 487
ameixas compradas no mercado da cidade vizinha, Resplendor. Ofe-
reci umas a seu Nego (Him) e ele disse que nunca tinha visto ou
comido tal fruta. Depois de saboreá-las, guardou as sementes para
prepará-las e plantar. Em seguida, retirou com suas próprias mãos,
cuidadosamente, uma pequena planta nativa da região, que dá uma
florzinha vermelha, acompanhada de torrão de terra, e deu-me para
plantar em casa, sob o olhar solidário de sua esposa D. Maria, que
me fez recomendações para não estragar a planta. Trouxe com toda
atenção a muda na viagem de volta, coloquei-a num vaso na varanda
do apartamento, reguei, mas não vingou. Paciência, não tenho cabeça
(kren) para cuidar de coisas essenciais como a terra (nak), mas pelo
menos escrevi este livro.
FONTES E BIBLIOGRAFIA

1. FONTES
1.1 Manuscritas
1.2 Impressas ou digitalizadas
1.3 Depoimentos

2. BIBLIOGRAFIA GERAL
2.1 Periódicos
2.2 Instrumentos de trabalho e obras de referência
2.3 Livros, artigos e trabalhos acadêmicos
2.4 Textos e documentos por Internet

1. FoNTES

1.1 Manuscritas

1.1.1 Arquivo Nacional do Brasil

1.1.1.1 Coleção "Conselho de Fazenda":


• Cod. 34, vol. 1 (1808-1816):
Aviso do Presidente do Real Erario ao Thesoureiro Mar sobre a
copia do Aviso dirigido da Secretaria de Estado dos Negocias Estrangeiros
e da Guerra para assistencia de dous Indios, 23 de novembro de 1808, p.
20.
488
FONTES E BIBLIOGRAFIA 489
Aviso sobre a Representação do Governo da Capitania do Espírito
Santo, 6 de novembro de 1809.
Aviso para se assistir mensalmente aos dous Indios que se achão no
Arsenal Real do Exercito, 18 de julho de 1810.
Aviso sobre o pagamento dos Indios empregados no Arsenal Real do
Exercito, 3 de novembro de 1810.
Aviso sobre a assistencia dos Indios Botecudos, 21 de março de 1811
Aviso para se pagar ao Coronel Francisco Manoel da Silva e Mel/o
a despesa que fez com seus lndios, 29 de julho de 1812.

1.1.1.2 Série "Ministério do Reino/ Ministério do Império"


(IJJ 9)
1.1.1.2.1 Correspondências dos Governadores da Capitania e
Presidentes da Província do Espírito Santo
• Vol. de 1808-1820:
Ofícios de: 18 de abril de 1808, 14 de maio de 1808, 20 de
junho de 1808, 30 de março de 1809, abril de 1809, 18 de abril de
1809, 7 de agosto de 1809, 6 de agosto de 1809, 24 de novembro de
1809, 3 de novembro de 1812, 18 de novembro de 1812, 13 de feve-
reiro de 1814, 28 de agosto de 1816, 30 de agosto de 1816, 11 de
novembro de 1817, 12 de novembro de 1817, 12 de novembro de
1817, 5 de dezembro de 1818, 17 de fevereiro de 1819, 22 de março
de 1819, 23 de abril de 1819, 28 de janeiro de 1820, 13 de julho de
1820. E também: "Relação da Prata pertencente ao Collegio que foi
dos Extinctos Jesuítas da Ilha da Vittoria", 1808, p. 52.
• Vol. de 1821-1823:
Ofícios de: 16 de janeiro de 1821, 14 de julho de 1821, 16 de
agosto de 1810 (apud), 12 de abril de 1822, 11 de junho de 1822, 22
de agosto de 1822, 19 de abril de 1823, 2 de maio de 1823.
• Vol. de 1824-1826:
Ofícios de: 8 de março de 1824, 10 de março de 1824, 5 de
abril de 1824, 25 de maio de 1824, 1 de julho de 1824, 22 de julho de
1824, 4 de agosto de 1824, 21 de agosto de 1824, 31 de agosto de
1824, 11 de outubro de 1824, 20 de outubro de 1824, 31 de outubro
de 1824, 22 de abril de 1825, 11 de junho de 1825, 11 de agosto de
1825, 22 de agosto de 1825, 23 de agosto de 1825, 3 de dezembro de
1825, 12 de junho de 1826, 2 de agosto de 1826.
• Vol. de 1841-1849:
Ofícios de: 11 de outubro de 1847, 17 de dezembro de 1847,25
490 FONTES E BIBLIOGRAFIA

de agosto de 1848, 30 de agosto de 1848 e 20 de outubro de 1848.


Orçamento de Despesa do Ministerio do Imperio pela Thesouraria
da Província do Espírito Santo para o exercício 1849-1850.

1.1.1.2.2 Correspondências dos Governadores da Capitania e


Presidentes da Província de Minas Gerais
• Vol. de 1808-1813:
Ofícios de: 31 de maio de 1811 e 5 de junho de 1811
• Vol. de 1824:
Ofícios de: 1 de abril de 1824, 3 de junho de 1824, 7 de agosto
de 1824, 16 de outubro de 1824, 20 de dezembro de 1824.
• Vol. do segundo semestre de 1825:
Ofícios de: 5 de setembro de 1825, 8 de outubro de 1825, 25 de
outubro de 1825.

1.1.1.2.3 Correspondências dos Governadores da Capitania e


Presidentes da Província da Bahia:
• Vol. 1808-1809:
Ofícios de: 18 de janeiro de 1808, 18 de janeiro de 1808, 12 de
outubro de 1808.
• Vol. 1813-1814:
Ofício de 6 de agosto de 1813.

1.1.1. 2.4 Registro de Correspondência do Espírito Santo (1808-


1856):
D. Fernando José de Portugal para o juiz de Fora e Officiaes das
Comarcas da Vil/a de Campos, 17 de maio de 1809.
Marquês de Aguiar para juiz de Fora da Vila de Campos, 4 de
julho de 1815.
João Severiano Maciel da Costa para a Comarca da Vil/a da Nova
Almeida, 10 de janeiro de 1824.
João Severiano Maciel da Costa para o Presidente da Província, 28
de janeiro de 1824.
Nomeação do Coronel Julião Fernandes Leão, Inspetor e Director
do Aldeamento dos Indios Boticudos do Rio Doce, 4 de junho de 1824.
João Severiano Maciel da Costa para o Presidente da Província, 18
de setembro de 1824.
Estevão Ribeiro de Resende para o Presidente da Província do
Espírito Santo, 24 de dezembro de 1824.
FONTES E BIBLIOGRAFIA 491
Estevão Ribeiro de Resende para o Presidente da Província do
Espirita Santo, 22 de fevereiro de 1825.
Estevão Ribeiro de Resende para o Presidente da Província do
Espirita Santo, 8 de outubro de 1825.
Estevão Ribeiro de Resende para o Presidente da Província do
Espirita Santo, 17 de outubro de 1825.
Barão de Valença para o Presidente da Província do Espirita Santo,
18 de outubro de 1825.
Visconde de São Leopoldo para Ouvidor da Comarca do Espirita
Santo, 3 de fevereiro de 1827.
Visconde de São Leopoldo para João Antonio Lisboa, 30 de maio
de 1827.
Visconde de São Leopoldo para Ignacio Accioli de Vasconcellos, 10
de outubro de 1827.
Pedro de Araujo Lima para Ignacio Accioli de Vasconcellos, 5 de
janeiro de 1828.
Pedro de Araujo Lima para Ignacio Accioli de Vasconcellos, 12 de
março de 1828.

1.1.1.3 Série "Educação" (IE 7)


1.1.1.3.1 Museu Nacional
Esqueletos remettidos pela Presidência de Minas Gerais para o Muséo
Nacional, 26 de abril de 1875 (IE 7-77)
Ofícios de Ladislao Netto, Diretor do Museu Nacional-1882
(IE 7-65): 4 de abril, 2 de maio, 6 de junho, 6 de junho e 16 de
junho.

1.1.1.3.2 Casa dos Contos


Constituição de tropas que combatem os Botocudos {1796-1798}, F.
72.8/10.

1.1.1.4 Junta da Real Fazenda da Capitania do Rio de Janeiro,


registro de avisos e ofícios, portarias e editais do vice-rei, provisões e
cartas régias, requerimentos, etc. (4B - 206).
Carta Régia do Principe Regente D. João, dirigida a Pedro Maria
Xavier de Ataide e Melo, Governador das Minas Gerais, ordenando que
forme um corpo de soldados pedestres para luta contra os {ndios Botocudo,
'Rio de Janeiro, 13 de maio de 1808.
492 FONTES E BIBLIOGRAFIA

1.1.2 Fundação Biblioteca Nacional

Assento do Conselho da Fazenda referente à forma de se adminis-


trarem as minas de ouro descobertas na Capitania do Espírito Santo, 23
de outubro de 1702, II -19,17,1 n. 0 139.
Carta da Comarca da Vila do Rio Grande de Belmonte para Chefe
da Polícia Caetano Vicente de Almeida Junior, 3 de abril de 1838, II -
33, 19, 60.
Carta de Affonso Furtado de Castro do Rego de Mendonça a Matias
da Cunha, Governador do Rio de Janeiro, ordenando a entrega de 150
índios a José Gonçalves de Oliveira, Capitam Mar da Capitania do
Espírito Santo, encarregado do descobrimento das esmeraldas, 14 de agosto
de 1675, 7, 1, 32 n. 0 55.
Carta de D. Rodrigo da Costa a Francisco Ribeiro de Miranda, 15
de dezembro de 1703, 7, 1, 32 n. 0 329.
Carta de Francisco Monteiro de Moraes para Francisco Ribeiro,
Capitão Mordo Espírito Santo, 7 de julho de 1702.
Carta Patente {de Affonso Furtado de Castro do Rego de M en-
donça} do posto de Capitão Morde toda a gente que vay ao descobri-
mento das Esmeraldas, provido em José Gonçalves de Oliveira, Capitam
Morda Capitania do Espírito Santo, 13 de agosto de 1675, 1, 2, 9
n. 0 259.
Carta Régia de D. João VI dirigida dirigida a Pedro Maria Xav ier
de Ataide e Melo, Governador das Minas Gerais, ordenando que forme
um corpo de soldados pedestres para luta contra os índios Botocudo, Rio
de Janeiro, 13 de maio de 1808, II, 36, 8, 14.
Carta Régia dirigida ao Conde dos Arcos, Governador da Bahia,
autorizando o levantamento de um destacamento de vinte homens na Po-
voação dos Arcos, nessa capitania, para proteção dos colonos aí estabeleci-
dos e repressão do provavel abuso dos vizinhos Botocudos, Rio de Janei-
ro, 21 de novembro de 1813, II - 33, 29, 98.
Carta Régia do Príncipe Regente D. João, dirigida a Pedro Maria
Xavier de Ataide e Melo, Governador das Minas Gerais, ordenando que
forme um corpo de soldados pedestres para luta contra os índios Botocudo,
Rio de Janeiro, 13 de maio de 1808, I- 28, 31, 20.
Consulta do Conselho Ultramarino sobre a nomeação de governa-
dor com experiência militar para a Capitania do Espírito Santo, 12 de
outubro de 1714, 8, 1, 2 n.o 162.
FONTES E BIBLIOGRAFIA 493
Consulta do Conselho Ultramarino sobre o pedido de José Gonçal-
ves de Oliveira acerca da organização da jornada das minas de esmeral-
das, 18 de novembro de 1875, 15, 4, 16, n. 6. 0

Copia de huma Carta feita pelo Sargento Mor Eschewege acerca dos
Botocudos e das divisões da Conquista, com notas pelo deputado da junta
Militar, Matheus Herculano Monteiro, 1811, 8, 1, 8, n. 0 166, f. 135.
Governo dos índios de Minas Gerais, Espírito Santo e Bahia, II -
31, 1, 10.
Iriformações e documentos vários relativos ao aldeamento de indios
e divisão da comarca de Ilheos, 23 de fevereiro de 1782, II - 34, 5, 93.
Ofícios e relatorios sobre o estado atual dos indios de Ilheus e Sergipe
d'El Rey, 1803, II - 34, 5, 101.
Provisão Régia ordenando que o Conde de Sabugosa, Vice-Rei do
Brasil, informe a respeito da Entrada realizada por Francisco de Melo
Coutinho SoutoMaior, 5 de dezembro de 1731, II- 33, 21, 53.
Representação dos habitantes da região de Ponte Nova, dirigida ao
Imperador Pedro!, 1826, II, 36, 5, 21.
Representação dos moradores de várias localidades da freguesia de
São Miguel, termo de Caeté, solicitando providências contra as incursões
dos índios Botocudos, 7 pp., 17 de outubro de 1827, II, 36, 4, 44.
Vocabulario Portuguez-Botocudo Por Guido Thomaz Marliere,
Cavalheiro das Ordens de São Luiz e de Christo, coronel da Cavalaria
do Estado Maior do Exercito e co-Diretor geral dos Indios da Província
de Minas Geraes, 1835.

1.1.3 Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro

1.1.3.1 Arquivos do Conselho Ultramarino, Évora e Tombo de


Portugal (cópias manuscritas feitas no século XIX):
Arq. 1.1.16 Minas no Rio São Mateus e Conquista do Gentio, 7
de junho de 1738, p. 37.
Arq. 1.1.19 Estado de Ilheos, 1 de agosto de 1780, p. 268.
Arq. 1.1.20 Ojicios e mapas do Rio Doce, ]equitinhonha, etc., 28
de janeiro de 1805, pp. 186-188-227; Estado de Ilheos, pp. 106-151;
Trabalho dos primeirosjesuitas no Brasil, s.d.- does. de autoria de Baltha-
zar da Silva Lisboa, enviados a D. Rodrigo de Souza Coutinho. Rela-
torios, descrições e mapas da Capitania de Porto Seguro, does. de autoria
do capitão João da Silva Santos enviados ao Governador e Capitão
General da Bahia, Francisco da Cunha Menezes, 28 de janeiro de 1805.
494 FONTES E BIBLIOGRAFIA

Arq. 1.1.23 Descobrimento das minas de prata nos matos de Caythé,


22 de setembro de 1704, p. 161.
Arq. 1.1.27 Gentio Bravo nos sertões da Bahia, 1750, p. 147.
Arq. 1.1.28 Minas do Gaste/lo, 27 de novembro de 1761, p. 87.
Arq. 1.3.8 Relatório de José Antonio Freire de Almeida para o
ministro ThoméJoaquim da Costa Corte Real, 4 de janeiro de 1759.
Arq. 1.3.10 Carta de Pero de Coes a El Rey Dom João III, 29 de
abril de 1546; Carta de Vasco Fernandes Coutinho escreveu da Vil/a de
Ilheos ao Governador do Brasil, s.d.; Carta de D. Diogo de Menezes
para El Rey D. Fellipe II, 23 de agosto de 1608.

1.1.3.2 Arquivo "Documentos"


Cartas do Diretor dos Aldeamentos do Rio Doce, João Malaquias
dos Santos, ao Presidente da Província do Espírito Santo, José Manoel da
Silva, sobre os presentes enviados aos índios Botocudos e Pokranes por SM
O Imperador, pacificação dos mesmos, copia de oficio ao padre vigario José
Roiz Pimenta, Linhares, 1841, Lata 346, Doe. 27.
Guerra aos Botocudos. Carta de Balthazar da Silva Lisboa ao Con -
de de Linhares, 1810, Lata 109, Doe. 14, n. 0 1.
Presentes de D. Pedro II aos Botocudos. Cartas do Diretor dos
Aldeamentos do Rio Doce, João Malaquias dos Santos e Azevedo, 1841,
Lata 346, Doe. 12.
Trabalho de índios no Espírito Santo. Carta de Frederico Willner
ao Dr. Luiz Pedreira do Couto Ferraz, 13 de novembro de 1846,
DL.2.17.

1.1.4 Biblioteca do Ministério das Relações Exteriores, Arqui-


vo do ltamaraty (Rio de Janeiro)

• Cartas d'El Rey escritas aos Senhores Alvaro de Sousa e Gaspar


de Souza -1613-1617, tradução paleográfica, mimeo., 1989:
Carta d'el Rey ao Senhor Gaspar de Souza sobre o descobrimento
de Marcos d'Azeredo da Serra das Esmeraldas, 22 de fevereiro de 1613,
doe. 75.
Carta d'el Rey ao Senhor Gaspar de Sousa sobre a aldea dos Indios
de Santo Antonio doJaguaripe, 24 de maio de 1613, doe. 88.
Carta d'el Rey para o Senhor Gaspar de Souza em que lhe agradece
o que ordenou contra o navio estranieiro que foi à Paraiba e outras cousas
acerca dos indios, 23 de junho de 1613, doe. 89.
FONTES E BIBLIOGRAFIA 495

1.1.5 Arquivo Histórico do Exército (Comando Militar do


Leste, Rio de Janeiro)

• Livro das Capitanias


Espírito Santo (1808-1824), does.: 19 de novembro de 1808,
23 de fevereiro de 1810, 30 de setembro de 1809, 13 de novembro de
1811, 22 de julho de 1811 e 10 de outubro de 1810.
Minas Gerais (1808-1811), does.: 30 de janeiro de 1810 e 13
de abril de 1813.

1.1.6 Arquivo Público do Estado da Bahia

• Dossiês sobre aldeamentos e Missões Indígenas, 1758-1807, Se-


ção de Arquivo Colonial e Provincial, n.o 603, cadernos 9 e 14.
• Mapas das Aldeias Indígenas da Província da Bahia. Presidên-
cia da Província. Série Agricultura. Diretório Geral dos Índios. Se-
ção de Arquivo Colonial e Provincial. José Jácome Correa, Diretor
Geral dos Indios, 14 de novembro de 1861.

1.1. 7 Arquivo Público Estadual do Espírito Santo

• Grupo Documental Governadoria G, Séries Accioly:


Livro 67, Correspondências e registres oficiais entre 1815-1840.
Volume 311, Registres demográficos dos anos 1840-1850.
• Relat6rio do Presidente da Província no Espírito Santo, o Dou-
tor Luiz Pedreira do Coutto Ferraz na Abertura da Assembléia Legislativa
Provincial. Rio de Janeiro: Typographia do Diário, 1848.
• Relat6rio com que o Senhor Dr. Sebastião Machado Nunes, Pre-
sidente da Província do Espírito Santo,Abriu a Assembléia Legislativa
Provincial. Vitória: Typographia C . de P. A. Azevedo, 1854.
• Relat6rio com que o Senhor Dr. Sebastião Machado Nunes, Pre-
sidente da Província do Espírito Santo,Abriu a Assembléia Legislativa
Provincial. Vitória: Typographia C. de P. A. Azevedo, 1855.
• Relat6rio lido no Paço da Assembléia Legislativa da Província do
Espírito Santo pelo prezidente o Exmo. Sr. Doutor Francisco Ferreira
Correa, na sessão Ordinária do Ano de 1871. Vitória: T ypographia de
Correia da Vitória, 1872.
496 FONTES E BIBLIOGRAFIA

1.1.8 Instituto de Estudos Brasileiros, Universidade de São Paulo

Requerimento do padre Caetano Fonseca Vasconcelos, vigário da igre-


ja de São Miguel de Piracicaba, no distrito de Vila Nova da Rainha, pe-
dindo número maior de presídios na região de Minas Gerais com a finali-
dade de evitar danos e mortes causados por botocudos. Cod. 59, doe. 1936,
manuscrito da Coleção Alberto Lamego, IEB/USP.

1.1.9 Arquivo do Museu do Índio (Funai), Rio de Janeiro

1.1. 9.1 Serviço de Proteção aos Índios


Boletim do SPI, 1923.
Carta do Sr. Antonio Estigarribia ao Sr. Miranda, Datada de
1991. Mês: abril.
Carta do Sr. Jerónimo Monteiro ao Sr. Antonio Estigarribia, mar-
ço de 1911.
Dossiê de 1940 sobre direito de exploração de jazida de mica
localizada em área compreendida pelo Posto Guido Marliere.
Exposição da atuação dos trabalhos a cargo desta Inspectoria duran-
te o ano de 1929 findo, SPI- BA e MG, 1930.
Relatório apresentado pelo Inspector Estigarribia em exercício no
Estado do Espírito Santo, IR4, 1910, filme 166.
Relatório apresentado pelo Sr. Genésio Pimentel Barbosa, encarrega-
do do assentamento de máquinas do Posto de Pancas, ao Sr. Inspetor do Ser-
viço de Proteção aos Índios no Estado do Espírito Santo, dezembro de 1916.
Relatório dos serviços efectuados durante o ano de 1926, SPI.
Relatório dos trabalhos efetuados na Inspectoria deste serviço doEs-
pírito Santo durante o ano próximo passado. SPI. 1920.

1.1.9.2 Fundação Nacional do Índio, Reformatório Agrícola


Indígena (presídio)

Antonio Vicente, chefe do Posto Indígena Guido Marliere,


Oficio n!129/71, 6-9-1971.
Antonio Vicente, chefe do Posto Indígena Guido Marliere, te-
legrama n. o 097172 de 10-7-1972.
Capitão Manoel dos Santos Pinheiro, Belo Horiwnte, Oficio
n. • 263/71, 25-6-1971.
FONTES E BIBLIOGRAFIA 497
Relatório de Antonio Vicente, chefe do Posto Indígena Crenack
Fazenda Guarany, através de Ofício 022/73, de 28-3-1973.
Relatório de Antonio Vicente, Chefe do Posto Indígena Guido
Marliere, através do Ofício 073/72, ao capitão Manoel dos Santos
Pinheiro, 13-7-1972.
Telegrama de 25-11-1970 do Chefe do Posto Indígena Guido
Marliere.
Telegrama de Antonio Vicente, 2.° Chefe do PI Guido Marliere,
ao capitão PM Manoel dos Santos Pinheiro, de 5-7-1971.
Telegrama de Antonio Vicente, Posto Indígena Krenak, ao ca-
pitão Manoel dos Santos Pinheiro, 18-3-1973.
Telegrama do chefe do PI Guido Marliere ao capitão PM
Manoel dos Santos Pinheiro, 14-10-1971.
Telegramas de Antonio Vicente, Chefe do Posto Indígena Guido
Marliere, ao capitão Manoel dos Santos Pinheiro, de 29-9 e 4-10-
1971.

1.2 Fontes Impressas ou digitalizadas

ABREU, Innocencio Gonçalves de. Carta sobre os Botocudos.


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José Alfredo de Oliveira Krenak (Nego/Him), 10-9-1998, 5-
2-2000 e 14-9-2000.
José da Silva Damasceno (Zezão/Kuparak), 11-9-1998.
Laurita Félix (Tacrukinic), 13-9-2000.
Maria Sônia Krenak (Tcharn), 11-9-1998, 6-2-2000 e 12-9-
2000.
FONTES E BIBLIOGRAFIA 503

2. BIBLIOGRAFIA GERAL

2.1 Periódicos

• Correio Braziliense (1808)


• Folha de S.Paulo (2004 e 2005).
• Gazeta Pernambucana (1822)
• (O) Globo (1970)
• Hoje em Dia (2000)
• Jornal da Ciência (SBPC, 2005)
• jornal do Brasil (1972, 2000)
• Revista da Exposição Anthropologica Brazileira, Rio de Janeiro,
dir. de Mello Moraes Filho. Rio de Janeiro: Typographia de Pinhei-
ro & C., 29 de julho de 1882.
• Revista !Ilustrada, n. 0 310, Rio de Janeiro, anno I, 1882.

2.2 Instrumentos de trabalho e obras de referência

• Catálogo de Iconografia Coleção Alberto Lamego, Julio Caio


Velloso (org.). São Paulo: IEB/USP, 2002.
• Catálogo de Manuscritos Coleção Alberto Lamego, Arlinda Ro-
cha Nogueira e outros (org.). São Paulo: IEB/USP, 2002.
• Collecção das Leis do Imperio do Brazil. Rio de Janeiro:
Typographia Nacional (1! Parte, 1831), 1873.
• Diccionario Bibliographico Portuguez. Volumes 1 a 23. Inno-
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Center for Research Libraries (CRL): <http://www.crl.edu/
content/provopen.htm >.
Relatorio que apresentou a Assembléa Legislativa da Bahia o
excellentissimo senhor Barão de S. Lourenço, presidente da mesma
província, em 11 de abril de 1869. Bahia:Typ. de]. G . Tourinho, 1869.
Falia com que o excellentissimo senhor dezembargador João Anto-
nio de Araujo Freitas Henriques abrio a 1.a sessão da 19.a legislatura da
Assembléa Provincial da Bahia em 1.o de março de 1872. Bahia: Typ.
do Correio da Bahia, 1872.
Relatorio que á Assembléa Legislativa Provincial de Minas Geraes
apresentou no acto da abertura da sessão ordinaria de 1865 o dezembar-
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Ouro Preto: Typ. do Minas Geraes, 1865.
Relatorio que á Assembléa Legislativa Provincial de Minas Geraes
apresentou no acto da abertura da sessão ordinaria de 1870 o vice-presi-
dente, dr. Agostinho José Ferreira Bretas. Ouro Preto: Typographia Pro-
vincial, 1870.
Relatorio apresentado á Assembléa Legislativa da província do Es-
pírito-Santo em sua sessão ordinaria de 8 de março de 1881 pelo presidente
da província, exm. sr. dr. Marcellino de Assis Tostes. Victoria: Typ. da
Gazeta da Victoria, 1881.
Falia que o exm. sr. dr. Theophilo Ottoni dirigio á Assembléa Pro-
vincial de Minas Geraes, ao insta/lar-se a 1.• sessão da 24.• legislatura
em o 1! de agosto de 1882. Ouro Preto: Typ. de Carlos Andrade, 1882.
Falia com que no dia 3 de abril de 1881 abriu a 2.• sessão da 23.•
legislatura da Assembléa Legislativa Provincial da Bahia o illm. e exm.
sr. conselheiro João Lustosa da Cunha Paranaguá, presidente da província.
Bahia: Typ. do "Diario da Bahia," 1881.
Relatorio apresentado á Assembléa Legislativa Provincial do Es-
pírito-Santo pelo presidente da província, desembargador Antonio Joaquim
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Museus e Coleções Zoológicas: <www.biota.org.br/pdf/
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ES1UDOS HISTÓRICOS

TITULOS PUBLICADOS ATÉ DEZEMBRO DE 2009

Portugal e Brasil na crise do Antigo Sirtema Colonial (1777-1808), Fernando Navais


As Ferrovias de São Paulo: 1870-1940, F1ávio A. M. de Saes
Hirtória e Tradiçõts da Cidade de São Paulo, Ernâni Silva Bruno (3 volumes)
A Condição Feminina no Rio dt]aneiro no Stculo XIX, Miriam Moreira Leite
Metamorfoses da Riqueza: São Paulo, 1845-1895, Zélia Maria Cardoso de MeUo
Hirtória da Guerra do Peloponeso, Tucídides
Trabalho, Progresso e a Socitdade Civilizada, lraci Gaivão Salles
Vieira e a Visão Trágica do Barroco, Luis Palacin
A Conquirta da Terra no Universo da Pobreza, Luiza Rios Ricci Volpato
O Tempo Saquarema: a Formação do Estado Imptrial, Ilmar Rohloff de Mattos
A Revolução Industrial no Século XVIII, Paul Mantoux
O Engenho: Complexo Econômico- Sorial Cubano do Açúcar (vol. I), Manuel Moreno F raginals
Cocheiros e Carroceiros: Homens Livres no Rio de Senhores e Escravos, Ana Maria da Silva Moura
Negro na Rua: a Nova Face da Escravidão, Marilenc Rosa Nogueira da Silva
Pré-Capitalirmo e Capitalirmo: a Formação do Brasil Colonial, Sedi Hirano
O Engenho (vols. II e III), Manuel Moreno Fraginals
Rafus da Concentração Industrial em São Paulo, Wilson Cano
Puegrinos, Mongl!.f e Guerreiros: Feudo- Citricalirmo e Religiosidade em Castela Medieval, Hilário Franco Júnior
O Abastecimento da Capitania das Minas Gera ir no Século XVIII, Mafalda Zemella
A Borracha na Amazônia: Expansão e Decadênria (1850-1920}, Barbara Weinstein
Europa, França e Ceará: Origens do Capital Estrangeiro no Brasil, Denise Monteiro Takcya
A Independência do Brasil, F emando N ovais & Carlos Guilherme Mota
A Espada de Dãmodts: o Ex&rito, a Guerra do Paraguai ta Crire do Império, Wilma Peres Costa
Na Bahia, Contra o Império: História do Ensaio de Sedição de 1798, István Jancsó
Uma Ctdade na TranStção. Santos: 1870-1913, Ana Lucta Duatte Lana
Mendigos, Moleques e Vadios na Bahia do Século XIX, Walter Fraga Filho
Colónia e Nativismo: a Hist6ria como •Biografia da Nação'", Rogério Forastieri da Silva
Portugal na Época da RestaurOfáo, Eduardo D'Oliveira França
A NovaAtlãnlida de Spix e Martius: Natureza e Civilização na Viagem Pelo Brasil (1817-1820}, Karen
Macknow Lisboa
Barrocas Famílias: Vida Familiar em Minas Gera ir no Século XVIII, Luciano Raposo de Almeida Figueiredo
Uma República de Leitores: História e Memória na Recepção das Cartas Chilenas (1 845-1989}, Joaci Pereira
Furtado
O Universo do Indistinto: Estado e Sociedade nas Minas Setecentistas (1735-1808), Marco Antonio Silveira
Estado e Agricultura no Brasil- PolfticaAgrícola e Modernização Económica Brasileira (1960-1980}, Wenccslau
Gonçalves Neto
A Ciência dos Trópicos: a Arte Médica no Brasil no Século XVIll, Márcia Moisés Ribeiro
A Misera Sorte: a Escravidão Africana no Brasil Holandês e as Guerras do Trdfico no Atlântico Sul (1621-1648),
Pedro Puntoni
A Nação comoArtifato: Deputados do Brasil na.r Cortes Portuguesas (1821 -1822), Márcia Regina Berbcl
AdminirtrOfáo e Escravidão: Idéias Sobre a Gestão da Agricultura Escravirta Brasileira, Rafael de Bivar Marquese
Homens de Negócio: a Interiorização da Metrópole e do Comércio nas Minas Settcentistas,Júnia Ferreira Furtado
A República Ensina a Morar (Melhor}, Carlos A. C. Lemos
A Historiografia Portuguesa, Hoje,JoséTengarrinha (coordenador)
Bases da Formação Territorial do Brasil· o Território Colonial Brasileiro no •Longo" Stculo XVI, Antonio Carlos
Roben Moraes
A Bahio e a Carreira da fndia,José R~beno ~o Amaral Lapa
Imrgração Portuguesa no Brasrl, Eulália Mana Lahmeyer Lobo
A Guerra dos Bárbaros: Povos Indígenas e a Colonização do Sertão Nordeste do Brasil, Pedro Puntoni
O Rei no Espelho: a Monarquia Portuguesa e a Colonização da América (1 ó40-1720}, Rodrigo Rentes Monteiro
Estado e Nação no Fim dos Impérios ibéricos no Prata (1808-1828}, João Pawo G. Pimenta
O jovem Rei Encantado: Expectativas do Messianismo Régio em Portugal, Séculos XIII a XVI, Ana Pawa Torres
Megiani
Luta Subterrânea.· o PCB em 1937-1938, Dainis Karepovs
Estes Penhascos: Cláudio Manuel da Costa ta Paisagem das Minas, Sérgio Alcides
Brasil· a Formação do Estado e daNação, IstvánJancsó (org.)
Colonização e Monopólio no Nordeste Brasiltiro,José Ribeiro Júnior
Os Conquirtados: 1492 e a População Indígena das Américas, Heraclio Bonilla (org.)
Balanço do Debate: Transição Feudai-Capitalirta, Eduardo Barros Mariutti
Livros de Devoção, A tos de Censura: Ensaios de História do Livro e da Leitura na América Portuguesa (1750-
1821}, Leila Mezan Algranti
Esquecidos e Renascidos: Historiografia Académica Luso-Americana (1724-1759}, lris Kantor
O Sertão ltinçranll: l"'xpdições da Capitania de São Paulo no Século XVIII, Glória Kok
As Transformaçõu dos Espaços Públicos: Imprensa, A tom Políticos< Sociabilidade na Cidade Imperial (1820-
1840), Masco Morei
A Sombra do Pod<r: Martinho de Melo e Castro e aAdministração da Capitania de Minas Gerais (1770-1795},
Virgínia Maria Trindade Valadarcs
Negócios de Trapaça, Caminhare Descaminhos naAmmca Portuguesa (1700-1750), Paulo Cavalcante
Ind<j>mdincia: História< Historiografia, lstvánJancsó {org.)
Os Caminhos da Riqu'zo dos Paulistanos na Pnmúra Metade do Oitocmtos, Maria Lucília Viveiros Araújo
O Rio da Prata ta Consolidação do Estado Imperial, Gabriela Nunes Ferreira
Inventando a Nação: Intelectuais Ilustrados e Estadistas Luso-Brasileiros na Crise doAntt'go Regime Português
(1750-1822), Ana Rosa Cloclet da Silva
Vida Política em Tt:mpo de Criu: Rio dt]antiro (1808-1824), Andréa Slemian
O Patriotismo Constitucional: Pernambuco, 1820-1822, Denis Antônio de Mendonça Bçrnardes
Colonialismo, lmpfflalismo e o Desrnvolvimento Económico Europeu, Eduardo Barros Mariutti
Frontúras Movediças: A Comarca de Itapicuru e a Formação do Arraial de Canudos. (Relações Sociais na Bahia
do SéwloXJX), Monica Duarte Dan tas
A Experiência do Tempo: conceitos e narrativas na formação nacional brasileira (1813-1845), Valdei Lopes de
Araujo
Colonialismo, lmperialiJmo e o Desmvolvimento Económico Europeu, Eduardo Barros Mariutti
Estratificação Social e Mobilizoçõu Políticas no Processo de Formação do Estado Nacional Brasileiro, Andréa
Lisly Gonçalves
Crimu e Escravos na Capitania de Todos os Negros (Minas Gerais, 1720-1800), Liana Maria Reis
A Estalagem e o Impmo: Crise do Antigo Rtgimt, Fiscalidadt t Fronttira na Provfncia de São Pedro (1808-
1831 ), Marcia Eckert Miranda
Liberais e Povo: a Construção da Hegemonia Lib<rai-Mod<rada na Província de Minas Gçrais (1830-1834),
Wlamir Silva
Cidades, Províncias, Estados: Origens da Nação Argentina (1800-1842), José Carlos Chiaramonte
Sob o Impmo das úis: Constituirão e Unidade Nacional na Formarão do Brasil (1822-1834}, Andréa Slemian
Sonhos Africanos, Vivincias Ladinas: Escravos e Forros em São Paulo(J850-1880}, Maria Cristina Cortez
WISSembach
Marco Morei é mesrre em História do Estudos Históricos
Brasil pela UFRJ, doutor em História pela
Universiré Paris I (Panrhéon-Sorbonne),
com pós-dourorado em História no IEB/ Através desta coleção, visa-se a dar maior divulgação às mats recentes
USP e jornalista profissional. Atua como
professor do Departamento de História da pesquisas realizadas entre nós, nos domínios de Clio, bem como, através de
Uerj e pesquisador do CNPq. Autor de cuidadosas traduções, pôr ao alcance de um maior público ledor as mais
ensaios acadêmicos, artigos em revistas e
jornais de grande circulação e livros, entre
significativas produções da historiografia mundial. No primeiro caso, já
os quais: jornalismo popular nas favelas foram publicadas várias teses universitárias, que vinham circulando em
cariocas (I 987), Cipriano Barata na senti- edições mimeografadas; no segundo, traduções de autores como Paul
nela da liberdade (200 I); Palavra, imagem e
poder: o surgimento da imprensa no Brasil do Mantoux e Manuel Moreno Fraginals. Entre uns e outros, isto é, entre a
sécuwXIX (2003); O período das Regências historiografia brasileira e a estrangeira, a coleção também procurará divulgar
1831-1840 (2003); As tramformaçóes dos
espaços públicos: imprensa, atores pollticos e trabalhos de estrangeiros sobre o Brasil, isto é, de "brasilianistas", bem como
sociabilidades na cidade imperial 1820- estudos brasileiros mais abrangentes, que expressem a nossa visão de
1840 (2.' ed., 2016). E a organização das
obras: Sentinela da liberdade e outros escri- mundo. Em outras etapas, projetam-se coletâneas de textos para o ensino
tos (1821-1835), de Cipriano Barata (2008) superior. A metodologia da história deverá ser devidamente contemplada.
e A Revolta da Chibata, de Edmar Morei
Como se vê, o projeto é ambicioso, e se destina não apenas aos aprendizes e
(5.a ed., 2009).
mestres do ofício de historiador, mas ao público cultivado em geral, que
cada vez mais vai sentindo a necessidade e importância dos estudos
históricos. Nem poderia ser de outra forma: conhecer o passado é a única
maneira de nos libertarmos dele, isto é, destruir os seus mitos.

HUCITEC EDITORA ISBN: 978-85-8404-050-6


PARA VOC~ LER E RELER

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