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A SOBERANIA DO AMOR

Novembro 24, 2018

1. A «Festa de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei», com esta


denominação, foi instituída pelo Papa Pio XI, em 11 de
Dezembro de 1925, com a Carta Encíclica Quas Primas.
Os tempos apresentavam-se sombrios e turvos e os céus
nublados como os de hoje, e Pio XI, homem de ação, que
já tinha fundado a Ação Católica em 1922, instituiu então
esta Festa com o intuito de promover a militância católica
e ajudar a sociedade a revestir-se dos valores cristãos. A
Festa de Cristo Rei era então celebrada no último
Domingo de Outubro. A reorganização da Liturgia no pós-
Concílio passou esta Festa para o último Domingo do Ano
Litúrgico, alterando-lhe a denominação para «Solenidade
de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo».

2. «O Senhor Reina». É assim que abre o Salmo 93, que


hoje cantamos. Esta locução verbal – «o Senhor reina» –
é também a mais usual no Antigo Testamento para dizer
Deus na ação de reinar, isto é, de salvar, justificar,
perdoar, criar. Na verdade, reinar é salvar, isto é, trazer
a prosperidade, o bem-estar e a alegria ao seu Povo. É
esta a missão do rei bíblico. Salvar é justificar. Justificar
é, no seu sentido mais profundo, transformar um pecador
em justo. Justificar é, portanto, perdoar. Neste profundo
sentido bíblico, justificar e perdoar são ações que só Deus
pode fazer, dado que, transformar um pecador em justo
é igual a criar ou recriar. E da ação de criar também só
Deus é o sujeito em toda a Escritura. Já se sabe que o
Novo Testamento transforma o ativo «Deus Reina» no
mais abstrato «Reino de Deus».

3. Tanta e quase indescritível riqueza, a de um Deus, que


o Livro de Daniel 7,3-12 apresenta solenemente sentado
no seu trono de Luz e de Fogo purificador, que inutiliza o
poder das quatro bestas enormes saídas do mar com
aspeto terrível, e que se assemelham a um leão com asas
de águia, um urso com costelas na boca, um leopardo
alado com quatro cabeças, e um monstro metálico
aterrorizador, com enormes dentes de ferro que tudo
tritura, cospe e espezinha debaixo das enormes patas.
Tinha ainda dez chifres na cabeça, mas nasceu-lhe
entretanto um outro mais pequeno e insolente, com uma
boca que proferia palavras arrogantes. Estas bestas
representam quatro impérios: babilónio, medo, persa e
grego (de Alexandre Magno e seus sucessores). Os dez
chifres são os reis da dinastia Selêucida, e o décimo
primeiro é Antíoco IV Epifânio (175-163). O tribunal
divino toma assento para julgar o arrogante Antíoco, que
é morto e destruído. E vê-se então, em contraponto com
as bestas que saem do mar, símbolo da desordem e do
mal, o Filho do Homem que vem sobre as nuvens, do
mundo celeste, portanto. A ele é entregue o reino eterno,
não assente no poder prepotente da brutalidade, mas no
poder manso do Amor (Daniel 7,13-14).

4. No Livro do Apocalipse 1,5-8, este Filho do Homem


tem um nome. Chama-se Jesus Cristo. Aparece
igualmente sobre as nuvens do céu e ostenta, entre
outros, o belíssimo título de «Aquele que nos ama»
(Apocalipse 1,5). E é por este Amor levado ao extremo
que vence, sem combater, este combate, amando,
abraçando, sofrendo, sorvendo e dissolvendo o poder da
brutalidade, como sucede aos poderosos da terra na
batalha de Harmagedôn (Apocalipse 16,14 e 16; 17,14;
19,11-21). Também não é assim de admirar que, neste
grande Livro do Apocalipse, o mar, que já vimos no Livro
de Daniel como fonte da confusão e do mal, deixe de
existir (Apocalipse 21,1). Vem assim a toda a luz a
soberania nova do Filho do Homem, que é Jesus, «Aquele
que nos ama». A sua soberania é o Amor, que é Primeiro
e Último (Apocalipse 1,8). É Primeiro, e, por ser Primeiro,
é também Último. Se é Primeiro e é também Último,
então o Amor é a soberania verdadeira, a única soberania
portanto, porque tudo o resto cai e fica pelo caminho.
Entre o Primeiro e o Último instala-se o penúltimo, que é
o poder velho e podre da violência e da brutalidade das
bestas ferozes que nos habitam. O Bem é de sempre e é
para sempre. É Primeiro e é Último. O Bem não começou,
portanto. O que começou foi o mal, que se foi insinuando
nas pregas do nosso coração. Mas o que começa,
também acaba. Os impérios da nossa violência, malvadez
e estupidez caem, imagine-se, vencidos por um Amor
frágil que é desde sempre e para sempre, e que vence,
sem combater, a nossa prepotência!

5. Tem de ser sem combater. Porque, se combatesse,


usaria os nossos métodos, e apenas aumentaria a
violência. É assim que Jesus atravessa as páginas dos
Evangelhos e da nossa história, entregando-se por Amor
à nossa violência, abraçando-a e, portanto, sofrendo-a,
dissolvendo-a e absolvendo-a. É assim que o Amor Reina,
Salva, Justifica, Perdoa e Recria. Os Judeus e Pilatos
representam, no Evangelho de hoje (João 18,33-37), os
impérios envelhecidos, podres e caducos da nossa
violência e estupidez. Os quatro Evangelhos documentam
a pergunta de Pilatos a Jesus: «Tu és o rei dos Judeus?»
(Mateus 27,11; Marcos 15,2; Lucas 23,3; João 18,33).
Nos sinóticos, Jesus dá uma resposta breve: «Tu o dizes»
(Mateus 27,11; Marcos 15,2; Lucas 23,3), para logo se
remeter a um silêncio habitado e teológico (Mateus
27,12; Marcos 15,4; Lucas 23,9), à maneira do Servo de
YHWH, Cordeiro conduzido ao matadouro, mas que não
abriu a boca (Isaías 53,7). João, ao contrário, apresenta
um longo diálogo entre Jesus e Pilatos, em que o ponto
mais alto está nas palavras de Jesus: «O meu reino não é
deste mundo; o meu reino não é daqui» (João 18,36). E
explica bem Jesus a Pilatos e a nós que, se o seu reino
fosse deste mundo, daqui, lá estariam certamente, para o
defender, as suas forças militares. Em vez dessa
quinquilharia, o seu Reino assenta num Amor novo e
subversivo, que não pode deixar de amar a nossa
violência até ao fim e ao fundo, sorvendo-lhe todo o
veneno.
6. As coisas são de tal ordem, tão novas, que, daqui para
a frente, a partir da entrada de um tal amor no mundo,
todas as formas de poder se devem considerar
superadas. Na verdade, Jesus é Rei na medida em que
contrapõe o amor ao poder. A Igreja participa nesta
soberania de Cristo, assumindo até ao fim a mais humilde
e radical atitude de serviço à humanidade, não servindo-
se da humanidade, mas servindo a humanidade em cada
ser humano, de acordo com o “código da autoridade
cristã”: «Sabeis que aqueles que se consideram chefes
das nações, as dominam, e os grandes exercem sobre
elas o seu poder. Não será assim entre vós; ao contrário,
aquele que quiser tornar-se grande entre vós, seja vosso
servo, e aquele que queira ser o primeiro entre vós, seja
escravo de todos. Na verdade, o Filho do Homem não
veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida
em resgate por muitos» (Marcos 10,42-45). Compete à
Igreja manter bem aberto este golpe que Cristo infligiu a
qualquer forma de poder e a todo o mal.

7. Vem, Senhor Jesus! Ilumina com a tua Luz nova as


trevas, as pregas e as pedras do nosso coração
empedernido. Reina sobre nós, Salva-nos, Justifica-nos,
Perdoa-nos, Recria-nos. Faz-nos outra vez à tua Imagem.
Dissolve a besta brava que há em nós e que, à imagem
de Caim, não fala, mas trucida e come o outro. Hoje é o
Dia da celebração de um amor novo e de uma nova
ordem assente, não no poder, mas no amor.

António Couto

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